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1 HOMICÍDIO ____________________________ 1.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME É no art. 121 – “matar alguém: pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos” que o Código Penal brasileiro protege a vida humana extra-uterina. Sobre o homicídio escreveu Nelson Hungria: “Como diz IMPALLOMENI, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à existência dos indivíduos que compõem o agregado social. ”1 Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A destruição da vida intra-uterina poderá configurar uma das modalidades do crime de aborto, adiante abordado. A vida humana tem começo e fim. Só há homicídio após o nascimento com vida e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam o período de existência da vida humana, protegida no art. 121 do Código Penal. A lei não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da ciência para definir esse termo. A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra- uterina começa com o início do parto. Parto é “o conjunto de processos mecânicos, fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a termo ou já viável” 2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amniótico. 1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26. 2 GOMES, Hélio. Medicina legal. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.

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escreveu Nelson Hungria: Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra- fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam aborto, adiante abordado. ciência para definir esse termo.

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1

HOMICÍDIO

____________________________

1.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO

CRIME

É no art. 121 – “matar alguém: pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos” –

que o Código Penal brasileiro protege a vida humana extra-uterina. Sobre o homicídio

escreveu Nelson Hungria:

“Como diz IMPALLOMENI, todos os direitos partem do direito de viver,

pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O

homicídio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois é o atentado

contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os

bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à

existência dos indivíduos que compõem o agregado social.”1

Homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, por outro homem. A

destruição da vida intra-uterina poderá configurar uma das modalidades do crime de

aborto, adiante abordado.

A vida humana tem começo e fim. Só há homicídio após o nascimento com vida

e antes da morte. Necessário, portanto, determinar esses dois momentos que delimitam

o período de existência da vida humana, protegida no art. 121 do Código Penal. A lei

não estabelece quando começa a vida; portanto, cabe à doutrina buscar o socorro da

ciência para definir esse termo.

A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idéia de que a vida extra-

uterina começa com o início do parto. Parto é “o conjunto de processos mecânicos,

fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a

termo ou já viável”2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amniótico.

1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26. 2 GOMES, Hélio. Medicina legal. 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.

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2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Deve-se considerar iniciado o parto cirúrgico – cesariana – com a primeira incisão

realizada no corpo da gestante, pelo obstetra.

Iniciado o parto, há vida extra-uterina e sua destruição será homicídio, ou

infanticídio, como se verá adiante. Antes do início do parto, poderá haver aborto.

Não é necessário que o ser seja viável. Haverá homicídio ainda que o ser

humano não tenha viabilidade. Mesmo quando se tratar de ser incapaz de sobreviver,

ainda assim sua vida está protegida. Nasceu, ainda que venha a morrer segundos ou

minutos depois, tem a proteção do Direito. Não é necessário que tenha respirado, pois

há situações em que o ser viveu sem ter respirado.

Seres monstruosos, verdadeiras aberrações, recebem igual proteção atribuída

aos ditos seres humanos normais, daí que basta que tenha nascido de mulher para que

sejam considerados o “alguém” da norma penal incriminadora do art. 121 do Código

Penal.

De se perguntar: se um ser produzido a partir de fecundação in vitro vier a ser

gerado fora do útero de uma mulher – isto é, numa máquina que reproduza as

condições do útero – será considerado o “alguém” do art. 121? Se a resposta for

positiva, destruí-lo será homicídio.

A hipótese não é um absurdo ou apenas tema de ficção científica. Não está

muito distante o tempo em que se poderá presenciar esse progresso da ciência. Será ele

um ser humano?

Penso que seres produzidos a partir de células do que hoje é denominado ser

humano, inclusive os clones humanos, devem, em qualquer hipótese, merecer a

proteção do Direito Penal, ainda quando venham a ter algumas ou muitas

características diferentes das dos atuais humanos.

Nesse futuro, que não está tão distante, bastará à doutrina alterar o conceito

atualmente aceito de humano – ser nascido de mulher – para considerar alguém

qualquer ser originado, de qualquer modo, a partir de células obtidas, direta ou

indiretamente, de mulher. Aquele ser que tiver sido produzido a partir de células de

mulher ou de células que vieram de outro ser que adveio de mulher será humano e,

portanto, terá sua vida protegida pelo Direito Penal.

O termo final da vida é a morte. É o fim da vida. Indispensável determinar seu

momento, quando o Direito deixa de proteger a vida humana, posto que, a partir daí,

não há mais vida, apenas o cadáver, o corpo morto do homem, que também vai merecer

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Homicídio - 3

proteção penal, como se verá, mais adiante.

A determinação do momento da morte é cada vez mais importante nos dias

atuais, uma vez que muito se avançou nas técnicas de transplantes de órgãos de

cadáveres para seres vivos, criando a possibilidade concreta de extração criminosa de

partes de corpo ainda vivo, o que, à evidência, constitui conduta criminosa.

O critério aceito pela Doutrina e pela Jurisprudência é o da morte cerebral ou

encefálica: a destruição anatômica do cérebro em sua totalidade. A Lei nº 9.434, de 4

de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo

humano para fins de transplante e tratamento, estabelece, em seu art. 3º, que:

“A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano

destinados a transplantes ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de

morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes

das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios

clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de

Medicina.”

Assim dispondo, a lei definiu quando termina a vida: no momento em que

ocorre a chamada morte encefálica, determinando ao Conselho Federal de Medicina

(CFM) que, através de resolução, estabeleça os critérios clínicos e tecnológicos a serem

utilizados para sua constatação.

O CFM cumpriu a ordem legal através da Resolução nº 1.480/97, assim

dispondo:

“Art. 1º A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames

clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para

determinadas faixas etárias.

Art. 2º Os dados clínicos e complementares observados quando da

caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no ‘termo de

declaração de morte encefálica’ anexo a esta Resolução.

Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao

presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de

Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens.

Art. 3º A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de

causa conhecida.

Art. 4º Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte

encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-

espinal e apnéia.

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4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Art. 5º Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para

a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme

abaixo especificado:

a) de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas

b) de 2 meses a 1 ano incompleto – 24 horas

c) de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas

d) acima de 2 anos – 6 horas

Art. 6º Os exames complementares a serem observados para constatação de

morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:

a) ausência de atividade elétrica cerebral ou,

b) ausência de atividade metabólica cerebral ou,

c) ausência de perfusão sangüínea cerebral.

Art. 7º Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme

abaixo especificado:

a) acima de 2 anos – um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’;

b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º, alíneas ‘a’, ‘b’ e

‘c’. Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com

intervalo de 12 horas entre um e outro;

c) de 2 meses a 1 ano incompleto – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24

horas entre um e outro;

d) de 7 dias a 2 meses incompletos – 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48

horas entre um e outro.”

O termo final da vida foi clara e precisamente definido pelo ordenamento

jurídico brasileiro. Com a morte, portanto, não há mais ser humano, apenas o cadáver.

Sua destruição não poderá configurar homicídio, posto que não há mais “alguém”, e

sim o corpo morto do que foi alguém. Poderá caracterizar um dos crimes contra o

cadáver, descritos nos arts. 211 e 212 do Código Penal.

No passado, alguns doutrinadores entendiam que o homicídio era a destruição

violenta e injusta da vida de um homem. Evidente que esses dois componentes não

integram o tipo de homicídio. Não é indispensável que a destruição seja causada com

emprego de violência, posto que é possível cometer o homicídio sem ela. Quanto à

injustiça, é de ver que não integra o tipo de homicídio, mas é a própria ilicitude. Na

esfera da tipicidade do homicídio, não se cogita da injustiça da conduta ou do fato, o

que se resolve no âmbito da ilicitude.

Em síntese: homicídio é a destruição da vida humana extra-uterina, praticada

por outro ser humano. A destruição da própria vida é suicídio, fato atípico, e a da vida

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Homicídio - 5

intra-uterina poderá ser aborto (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal).

Sujeito ativo do homicídio é qualquer pessoa. Haverá infanticídio, se a mãe

matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, sob influência do estado puerperal

(art. 123 do Código Penal).

Sujeito passivo do homicídio é alguém, qualquer pessoa, salvo se o recém-

nascido, morto pela própria mãe durante o parto ou logo após, sob a influência do

estado puerperal (art. 123 do Código Penal).

1.2 HOMICÍDIO DOLOSO

Contém o parágrafo único do art. 18 do Código Penal norma geral segundo a

qual, “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto

como crime, senão quando o pratica dolosamente”. A ordem para o legislador é a de

construir tipos dolosos e só excepcionalmente, ao lado de alguns, criar também tipos

culposos. Assim, os tipos penais são construídos incluindo o dolo como um de seus

elementos, sendo desnecessária a menção expressa a esse elemento subjetivo. Não será

doloso o tipo quando a norma, expressamente, exigir a culpa, em sentido estrito, como

uma de suas elementares. Por isso, o tipo penal do art. 121 do Código Penal deve ser

lido assim: matar alguém dolosamente.

Dolo é a consciência e vontade de realizar o tipo legal de crime. Tratando-se de

crime de resultado, haverá homicídio doloso quando o sujeito ativo realizar uma

conduta com consciência e vontade de produzir o evento morte do sujeito passivo –

dolo direto ou determinado –, ou quando, consciente de que sua conduta é capaz de

produzir a morte, mesmo sem a desejar, o agente não se importar com sua produção,

isto é, aceitá-la, se ela acontecer – dolo eventual.

Homicídio com dolo direto é aquele em que o agente prevê que, com sua

conduta, causará a morte da vítima e a realiza exatamente com a finalidade de que a

morte ocorra. Como o dolo é a previsão do resultado (consciência) e a vontade de

produzi-lo – um elemento subjetivo, portanto, verificável no interior da psique do

agente –, sua demonstração, em algumas situações, não é tarefa das mais fáceis.

Homicídio com dolo eventual é aquele em que o agente, prevendo que sua

conduta poderá causar a morte da vítima, realiza-a sem a finalidade de matar, mas, se a

vítima morrer, esse resultado lhe será absolutamente indiferente. Não quer matar, mas,

se matar, “tudo bem”. A demonstração do dolo eventual é ainda muito mais difícil que a

do dolo direto.

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6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Deve o aplicador da lei realizar um raciocínio lógico com base nas

circunstâncias que cercaram o fato, para deduzir a presença do dolo. Analisar a ação

material e obter, dela, a certeza de que o agente previra o resultado e o desejara, ou,

pelo menos, nele consentira. Não é tarefa simples e fácil.

Induvidoso que aquele que, ao ver uma pessoa, pensa em disparar contra sua

cabeça ou seu tórax um projétil de arma de fogo tem plena consciência de que, se agir,

vai atingi-la, bem assim de que o ferimento causará, muito provavelmente, sua morte.

Tendo essa consciência, fazendo essa previsão, e mesmo assim agindo, só é lógico

concluir que queria produzir o resultado.

A consideração sobre o instrumento utilizado, a localização da lesão produzida,

as relações entre agente e vítima, os antecedentes do fato, o local em que se deu, e

acerca de outras circunstâncias que envolvem o acontecimento é indispensável para

que se possa concluir pela existência do dolo na conduta do sujeito.

Principalmente quando se tratar de dolo eventual, aquele em que o sujeito,

mesmo prevendo o resultado morte, e não o desejando, age aceitando-o, se ele

eventualmente acontecer. Esse dolo é de mais difícil demonstração, porque,

encontrando-se na esfera do pensamento do agente, sua atitude interna é a de não

querer a morte, mas nela consentir, aceitando-a, se ela ocorrer. É de difícil verificação,

porque muito se aproxima daquela atitude interna de prever a morte, não desejar e

confiar, sincera, mas levianamente, que ela não acontecerá, a qual não configura dolo,

mas culpa consciente.

Veja-se o seguinte exemplo: João, dirigindo seu veículo, vê à sua frente a

pedestre Maria. João pensa: “Vou assustar Maria, passando com meu carro bem

próximo dela.”

É previsível, como é óbvio, que com a conduta que pretende realizar poderá,

sem desejar, atropelar Maria. E João faz essa previsão. A seu lado, está José, que o

adverte do perigo. Provado está, portanto, que João fez a previsão. Todavia, João pode

tomar duas atitudes internas: 1ª Responde para José: “Sei que é possível atingi-la, mas

não se preocupe, José, eu não vou atropelá-la. Sou exímio motorista. Não há perigo.”

Em seguida, João impulsiona seu veículo e, sem desejar, nem aceitar, acaba por

atropelar Maria, causando-lhe a morte. 2ª Responde para José: “Sei que é possível

atingi-la, não quero, mas se acontecer, aconteceu. Não me importo.” Em seguida João

movimenta seu veículo e acaba por atropelar e matar Maria.

Na primeira hipótese, João agiu sem dolo eventual. Na segunda, agiu

dolosamente, pois, tendo previsto o que poderia acontecer, aceitou o resultado que, de

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Homicídio - 7

fato, aconteceu.

No exemplo dado, com os desdobramentos possíveis, ficou fácil demonstrar a

atitude interna do sujeito, graças à presença de uma testemunha do fato, que poderá

relatar exatamente o que se passou na cabeça do agente. Na realidade, todavia, uma

testemunha presencial honesta e sincera nem sempre comparece em juízo para facilitar

a tarefa do julgador.

Analisando o mesmo exemplo, tal qual ocorreu, porém sem a testemunha

presencial, a tarefa do julgador será mais difícil. Como poderá o juiz identificar a

presença ou a ausência do dolo eventual?

Primeira indagação importante: João e Maria eram conhecidos? Eram amigos?

Se eram conhecidos, é possível crer na hipótese de que João pretendia, mesmo, aplicar

um susto em Maria. Se não eram conhecidos, não se pode, com segurança, crer nisso.

Se conhecidos e amigos, não tendo João nenhum motivo para causar algum mal para a

vítima, é possível concluir que ele não tenha aceitado, anuído, consentido na morte. Se,

porém, eram conhecidos e inimigos, ficará difícil acolher a alegação de não-aceitação

do resultado por parte de João.

Em qualquer caso, penso, a atitude de João de promover uma brincadeira –

divertir-se – com algo tão perigoso impõe sua compreensão como hipótese de

desconsideração para com o bem jurídico, afastando, assim, a própria idéia de não-

aceitação do resultado morte.

Analise-se o caso do atirador de facas, do circo, que tem como parceira do

espetáculo sua própria mulher. Há anos, apresentam-se em público, sem que jamais

tenha ocorrido qualquer acidente. Até que um dia, ao atirar uma das facas, ele atinge e

mata sua esposa. Há homicídio doloso ou culposo?

Como descobrir a presença ou ausência de dolo? Tarefa difícil, mas não

impossível.

As investigações podem levar ao conhecimento da informação de que, nos

últimos dias, o marido desconfiava de que ela o traía, tendo-a visto nos braços do

trapezista, na noite anterior ao fato. Uma testemunha vira-o presenciando o encontro

dos amantes, que nada perceberam. Levada essa informação à autoridade policial, esta

pode concluir que na verdade o atirador aproveitou-se da situação para simular um

acidente, a fim de fugir da acusação de homicídio doloso. Novas investigações levarão à

verdade.

Se, porém, nada se descobrir acerca da existência de um motivo para a prática

do homicídio, a conclusão inexorável haverá de ser a de que o atirador nem quis, nem

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consentiu na morte da esposa que tanto amava. Nesse caso, não haverá dolo. Ausente o

dolo, poderá haver homicídio culposo ou um indiferente penal.

Importante discussão, que nos dias atuais ganha cada vez maior importância,

diz respeito aos homicídios praticados no trânsito, especialmente aqueles provocados

por condução perigosa por parte de jovens que se dão à prática dos chamados “rachas”.

O grande problema é saber: quem provoca morte durante os “rachas” age dolosa ou

culposamente?

No passado, doutrina e jurisprudência eram quase sempre unânimes em

concluir pela ausência de dolo, simplesmente por ter sido praticado o homicídio no

trânsito, com o uso de um veículo automotor, o que, à evidência, não correspondia à

própria realidade desses infaustos acontecimentos, nem atendia às necessidades de

proteção do bem jurídico.

É certo que a grande maioria dos homicídios praticados no trânsito é, mesmo,

culposa, por terem seus agentes se conduzido com negligência, imprudência ou

imperícia, não querendo, nem aceitando, portanto, o resultado morte. Em muitas

situações, nem mesmo a previsão é feita pelo condutor do veículo, de modo que aí não

se pode falar em culpa consciente, mas culpa inconsciente.

Na situação em que o agente participa de um “racha”, todavia, a situação é bem

outra. Não se trata de mera inobservância do dever de cuidado objetivo, que ocorre

quando condutores de veículos desrespeitam o limite de velocidade, realizando

manobras imprudentes ou comportando-se com imperícia ou negligência.

No “racha”, as pessoas organizam-se para uma competição sem qualquer outra

motivação como ocorre no tráfego de veículos nas cidades. Querem simplesmente

extravasar certos sentimentos de frustração pessoal. O objetivo é se exibirem, e nada

mais.

Ora, essa atitude interna é, por si só, reveladora da profunda desconsideração

dos praticantes de “rachas” para com os bens jurídicos que se colocam a sua frente:

vidas humanas, integridades corporais e mesmo bens materiais. O simples fato de se

dedicarem a esse pretenso “esporte” em via pública já é suficiente para demonstrar que

não estão preocupados com a possibilidade de agredirem algum bem jurídico. Não o

valorizam, não se preocupam com sua provável lesão. Não se importam com sua

preservação. Move-lhes apenas a busca do prazer individual, ainda que, para alcançá-

lo, outros sejam prejudicados.

Daí que não se pode concluir que aqueles que praticam tais condutas estejam

imbuídos daquela atitude interna de não-aceitação, sincera porém leviana, da

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Homicídio - 9

possibilidade da causação do resultado lesivo indesejado. Deve-se, ao contrário,

concluir no sentido de que, tendo-se conduzido com indiferença para com os bens

jurídicos em sua volta, que podem ser atingidos pelos movimentos que produzem com

seus veículos, estão, com esse comportamento, aceitando a possibilidade concreta de

lesioná-los, daí que sua conduta é dolosa, com dolo eventual.

Nesse sentido, vem posicionando-se o Superior Tribunal de Justiça:

“Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no

trânsito. Na hipótese de ‘racha’, em se tratando de pronúncia, a desclassificação

da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova

por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não

favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro

societate.

O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das

circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria

adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do

possível, provável.

O tráfego é atividade própria de risco permitido. O ‘racha’, no entanto, é – em

princípio – anomalia extrema que escapa dos limites próprios da atividade

regulamentada.”3

Como já se disse, embora o dolo – direto ou eventual – esteja na cabeça do

agente, cabe ao juiz, analisando as circunstâncias que envolvem o fato, emitir seu juízo

valorativo acerca da atitude interna do sujeito ativo do crime.

Não basta que este afirme não ter desejado nem aceitado o resultado, é preciso

que o juiz disso se convença, com base na análise profunda de todas as circunstâncias

fáticas.

Evidente que ao julgador caberá emitir sua conclusão acerca dos fatos, e sua

decisão será passível de reexame pela instância superior, afastando, assim, o perigo de

julgamento injusto. O que não se pode aceitar é que, pelo simples fato de ter sido a

morte causada no trânsito, chegue-se à generalização de que é culposa.

1.2.1 Homicídio simples

3 DJ de 21 out. 2002, p. 381.

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10 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

No caput do art. 121 está o tipo fundamental do homicídio, denominado

homicídio simples.

O homicídio é um crime comum, material, simples, de dano, instantâneo de

efeitos permanentes e de forma livre. Diz-se que é um crime comum, porque pode ser

praticado por qualquer pessoa, não se exigindo, ademais, qualquer qualidade

diferenciada do sujeito passivo.

É crime material, porque há no tipo a descrição de uma conduta, com a

exigência, para sua consumação, de que o resultado morte seja produzido pela conduta

do agente.

Simples, porque atinge um único bem jurídico, a vida humana extra-uterina, e

de dano, pois destrói o bem jurídico protegido.

É instantâneo de efeitos permanentes, porque consuma-se no momento da

morte da vítima e suas conseqüências perduram por todo o tempo.

É um crime que pode ser praticado pelas mais diversas formas de execução, por

ação stricto sensu ou por omissão, daí que se diz ser um crime de forma livre.

O homicídio por ação, ou comissivo, é aquele praticado através de uma conduta

positiva do agente, que realiza um movimento corporal final, como disparar uma arma

de fogo, desferir um golpe de faca, arremessar uma pedra ou uma barra de ferro,

empurrar a vítima no precipício, ministrar-lhe veneno, constringir seu pescoço,

impedindo a respiração.

A ação pode ser física, como nos exemplos dados, mas também pode ser moral,

como a de assustar uma pessoa cardíaca ou fragilizada física ou mentalmente, visando

a que ela morra.

O homicídio por omissão, chamado omissivo comissivo ou comissivo por

omissão, é o praticado apenas pelos chamados garantes, aqueles que têm o dever de

agir para impedir o resultado e que, omitindo-se, permitem, com isso, a morte da

vítima (art. 13, § 2º, CP). Assim a mãe que deixa de amamentar o filho para que ele

morra e o salva-vidas que permanece inerte diante do afogamento, desejando que o

afogado venha a óbito.

Conquanto a lei tenha construído outros tipos derivados do homicídio simples –

os privilegiados no § 1º e os qualificados no § 2º do mesmo artigo –, haverá homicídio

simples quando não for nem privilegiado, nem qualificado. Em outras palavras, para

saber se há homicídio simples, deve-se raciocinar por exclusão. Somente será homicídio

simples, se não tiver sido nem privilegiado, nem qualificado, nem qualificado-

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Homicídio - 11

privilegiado. Se o fato não se ajustar a nenhuma das circunstâncias privilegiadoras ou

qualificadoras, será homicídio simples.

1.2.2 Homicídio privilegiado

Se é verdade que a destruição da vida humana por ação dolosa de outra pessoa

constitui um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurídico, é preciso verificar

que o desvalor da conduta pode ser diferente em cada situação.

Se no homicídio o resultado é sempre o mesmo – a morte da vítima –, a

conduta do agente nem sempre pode ser qualificada igualmente, pois se entremostra,

muitas vezes, diferenciada uma de outras.

Por essa razão, ao lado do homicídio simples, a lei fez derivar, no § 1º do art. 121

do Código Penal, algumas espécies de homicídio que, por circunstâncias especiais em

que é praticado, são merecedores de reprovação menor do que a conferida ao homicídio

simples. “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou

moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da

vítima”, a pena deverá ser reduzida de um sexto a um terço.

Há decisões jurisprudenciais e opiniões doutrinárias respeitáveis no sentido de

que a redução da pena é mera faculdade do juiz. Sustentam essa tese a forma literal

“poderá” contida no § 1º do art. 121 do Código Penal .

Penso que a diminuição da pena não é uma faculdade do juiz, mas um direito

subjetivo do acusado que tiver a seu favor reconhecida uma circunstância

privilegiadora, pelo Tribunal do Júri – que é o órgão competente para julgar os crimes

dolosos contra a vida.

No inciso XXXVIII do art. 5º da Carta Magna está consagrada a “soberania dos

veredictos do júri”, isto é, de todas as suas decisões, as quais, por essa razão, não são

meras indicações ou recomendações para o juiz, mas determinações que devem ser,

necessariamente, atendidas.

Seria um contra-senso o júri afirmar o privilégio e o juiz não ficar vinculado a essa

decisão, o que, a meu ver, constitui agressão à soberania do tribunal popular,

assegurada constitucionalmente. DAMÁSIO DE JESUS ensina: “Reconhecido o

privilégio pelos jurados, não fica ao arbítrio do julgador diminuir ou não a pena. A

faculdade diz respeito ao quantum da redução.”4

4 Direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 56.

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12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A dúvida foi espancada com a nova redação do art. 492, inciso I, alínea “c”, do

Código de Processo Penal, dada pela Lei nº 11.689, de 2008, que obriga o juiz, no caso

de condenação, a prolatar sentença na qual imporá as diminuições da pena admitidas

pelo júri.

Há homicídio privilegiado pelas seguintes circunstâncias: (a) por motivo de

relevante valor social; (b) por motivo de relevante valor moral; e (c) sob o domínio de

violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º do

Código Penal).

As duas primeiras figuras dizem respeito à motivação do agente, a última, a seu

estado psíquico emocional provocado por atitude da vítima.

1.2.2.1 Homicídio por motivo de relevante valor social

Homicídio por motivo de relevante valor social é aquele em que o agente age

impulsionado por uma razão de grande importância social. Por valor social deve-se

entender o que diz respeito aos objetivos da coletividade, a ser aferido segundo critérios

objetivos e de acordo com a consciência ético-social geral. Além disso, o valor social que

motiva a ação deve ser relevante, vale dizer, de grande importância, digno da maior

consideração por parte de todos.

Nos dias de hoje, em que a criminalidade violenta e organizada, especialmente o

tráfico ilícito de entorpecentes, subjuga amplos setores sociais, mormente bairros e

favelas, pode-se reconhecer o privilégio na conduta daquele que, com a exclusiva

intenção de combater a criminalidade, mata o chefe da quadrilha que domina sua

região. Move-o a busca da paz e da tranqüilidade social, que são, a toda evidência, de

enorme relevância social.

1.2.2.2 Homicídio por motivo de relevante valor moral

Já no homicídio por motivo de relevante valor moral, cuida-se de uma

motivação por valor de natureza moral. Tais valores são particulares, individuais, do

próprio agente e devem, igualmente, ser de grande importância. Não contempla,

portanto, qualquer valor individual, mas aquele que é considerado, ética e

objetivamente, de grau elevado pela consciência social. Seria, por exemplo, o caso do

pai que mata o autor do estupro contra sua filha menor. Já se entendeu também que o

marido traído que mata a mulher adúltera comete o crime por motivo de relevante

Page 13: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 13

valor moral; todavia, melhor é compreendê-lo, em algumas situações, como homicídio

privilegiado por violenta emoção, adiante comentado.

A eutanásia é considerada pela doutrina dominante um homicídio privilegiado

por motivo de relevante valor moral. Segundo Nelson Hungria, homicídio eutanásico é

aquele praticado para abreviar piedosamente o irremediável sofrimento da vítima, e a

pedido ou com o assentimento desta. O sofrimento irremediável da vítima, portanto,

constitui o valor moral de relevância que, impelindo o agente, torna-o menos

severamente punível.

O tema é fascinante e mereceu profundas discussões no seio da Comissão de

Reforma do Código Penal de 1997/1999, quando se tratou da eutanásia e da

ortotanásia. A proposta da comissão foi considerar a eutanásia uma espécie de

homicídio privilegiado e a ortotanásia uma causa de exclusão da ilicitude. Ficaram

assim redigidas as duas propostas:

Eutanásia: “Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente,

descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por

compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe

sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal,

devidamente diagnosticados: Pena – reclusão, de dois a cinco anos.”

A proposta estabelece vários requisitos para o reconhecimento desse homicídio

privilegiado, regulamentando-o de modo claro e preciso.

Segundo ela, não será qualquer pessoa que poderá ser beneficiada com o

privilégio. Só o cônjuge ou companheiro, o ascendente ou descendente, o irmão ou

irmã, ou uma pessoa ligada por estreitos laços de afeição com a vítima.

A vítima deve ser, necessariamente, maior de 18 anos e imputável e deve fazer o

pedido de abreviação da vida ao agente. A motivação deste deve ser a compaixão e é

indispensável que tenha a finalidade precípua de abreviar o sofrimento físico, que deve

ser insuportável e causado por uma doença grave, estando a vítima em estado terminal,

o que deverá ser devidamente diagnosticado.

Ortotanásia: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio

artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável,

e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge,

companheiro, ascendente, descendente ou irmão.”

Segundo a proposta, para caracterizar a ortotanásia devem concorrer os

HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 125.

Page 14: VOLUME 02 - 1_Part1

14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

seguintes elementos: a vítima deve estar sendo mantida viva por meio artificial; sua

morte deve ser atestada como iminente e inevitável por dois médicos; é necessário o

consentimento da vítima ou, não podendo dá-lo, de seu cônjuge ou companheiro,

ascendente, descendente ou irmão.

As diferenças entre a eutanásia e a ortotanásia, conforme as duas proposições,

são claras.

Na eutanásia, a vítima deve estar experimentando, vivendo, um sofrimento

físico insuportável, causado por uma doença grave, e em estado terminal. São as dores

horríveis e o desconforto irremediáveis que acompanham certas doenças graves.

Na ortotanásia, a vítima deve estar na iminência de morrer, e mantida viva por

meio artificial, isto é, por aparelhos ou equipamentos médicos. Não é necessário haver

sofrimento físico insuportável. Não há necessidade de algum sofrimento físico, mas

deve a pessoa estar sendo mantida viva artificialmente e a morte deve ser iminente e

inevitável. Na eutanásia, a morte não precisa ser nem iminente, nem inevitável, mas a

doença grave e o estado terminal devem ser diagnosticados, e na ortotanásia a

iminência e inevitabilidade da morte devem ser atestadas por dois médicos.

A vítima, na eutanásia, deve ser maior de 18 anos e imputável, circunstância não

mencionada na ortotanásia, daí que pode ter qualquer idade e ser, inclusive,

inimputável.

Na eutanásia, o agente pratica uma ação para causar a morte da vítima, movido

pela compaixão e a pedido dela. Na ortotanásia, o agente, com o consentimento da

vítima ou de um seu familiar, realiza um comportamento omissivo, deixando de

continuar mantendo a vítima viva por meio artificial. Claro que o desligamento dos

aparelhos é uma ação, stricto sensu, mas o que se exigia antes era a continuidade da

ação de manter a vida artificialmente, e o agente deixa de realizá-la, isto é, deixa de

continuar mantendo a vida por meios artificiais.

Na eutanásia, a vida em estado terminal é destruída. Na ortotanásia, a morte

iminente e inevitável é antecipada. Na primeira, a finalidade é colocar um fim a um

sofrimento insuportável, acabando com uma vida que já se encontrava em estado

terminal, isto é, próxima do fim. Um fim ainda não iminente, nem necessariamente

inevitável, mas próximo. Por isso que a proposta a considera crime, porém privilegiado.

Já na ortotanásia, não se está mais diante de uma vida digna e independente, capaz de

manter-se naturalmente, senão por meio de sofisticados aparelhos e equipamentos

médicos. E mais, a morte é, por isso também, iminente e inevitável. Antecipar sua

chegada é um gesto de amor, daí que não pode ser considerado um crime.

Page 15: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 15

Estão corretas as propostas da comissão, uma vez que definem, com rigor, essas

duas situações concretas, impondo exigências a serem observadas pelo órgão julgador.

Os adversários dessas inovações legislativas ora defendidas são muitos. Seus

argumentos são, quase sempre, de natureza moral ou religiosa do tipo “só Deus pode

decidir quando o homem deve morrer”, ou “ninguém pode tirar a vida de outrem”.

Enquanto, todavia, o Congresso Nacional não aprovar modificações nesse ou

noutro sentido, tanto a eutanásia quanto a ortotanásia serão tratadas apenas como

circunstâncias privilegiadoras de um homicídio. O tema é fascinante e a sociedade

precisa discuti-lo sem preconceitos.

1.2.2.3 Homicídio emocional

Há homicídio sob o domínio de violenta emoção quando o agente, diante de

uma injusta provocação da vítima, se vê dominado por tamanha emoção e reage

imediatamente. São três, pois, os requisitos para sua caracterização: a injusta

provocação da vítima, a emoção violenta que domina o agente e sua reação imediata.

Injusta provocação é o comportamento da vítima capaz de, por sua natureza e,

principalmente, injustiça, desencadear um processo emotivo de grande intensidade no

agente. Pode ser uma ação ou omissão que a vítima realiza em relação ao próprio

agente ou a terceira pessoa. Não se confunde a provocação com a agressão, que, se

existente, pode ensejar uma situação de legítima defesa. A provocação é um

comportamento menos grave que a agressão, e com esta não se confunde. É uma

atitude de desvalor para com um bem jurídico.

“A provocação pode consistir em ofensas à honra, vias de fato, ameaças, riso

de escárnio ou desprezo, apelidos vilipendiosos, expressões ambíguas, indiretas

mordazes, revelação de segredos, exercício abusivo de direito, atos emulativos etc.” 5

A provocação deve ser injusta do ponto de vista objetivo, não do que sobre ela

pensa o agente. Contudo, para se considerar a injustiça da provocação, deve o

intérprete analisar as qualidades e condições pessoais de agente e vítima, de modo a

considerar presente este requisito do homicídio emocional. Há aquele que, pelos

valores que cultua, pode não sentir-se atingido com uma ofensa sobre sua honestidade

no mundo dos negócios e sentir-se afrontado com uma menção depreciativa de seus

atributos físicos ou de suas relações amorosas. Outros reagem de modo exatamente

5 HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 149.

Page 16: VOLUME 02 - 1_Part1

16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

contrário. Ofensas graves que tenham partido de uma pessoa de pouca credibilidade

podem até ser relevadas por determinada pessoa, ao passo que um simples comentário

crítico oriundo de um homem respeitado pode causar-lhe grande indignação.

Não basta, porém, que a vítima tenha realizado a provocação injusta. É

necessário que esta tenha desencadeado a violenta emoção.

Emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o

equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de

conseqüência, a de agir, não retirando, todavia, sua capacidade de entendimento ou de

determinação. A norma exige que a emoção seja violenta, isto é, de tal intensidade que

haja muito mais do que uma simples alteração do equilíbrio psicológico. É a verdadeira

ira ou a cólera que domina o sujeito, transformando-o por completo num ser

descontrolado capaz de realizar comportamentos agressivos que não realizaria no

estado normal.

A reação deve ser pronta e rápida, imediatamente após a provocação, pois do

contrário não se poderia atribuí-la ao estado emocional. Passado algum tempo após a

provocação, o estado psíquico alterado do agente já não será o mesmo, o furor já terá

arrefecido e sua reação só poderá ser atribuída ao desejo de vingança ou ao ódio que em

si se instalara, sentimento esse que o Direito não poderia, mesmo, premiar. Se não

reagiu no instante seguinte à provocação, em que a intensidade da emoção que lhe

arrebatou era maior, é porque ela não lhe alterou sobremaneira a capacidade de

controlar-se, logo, não pode invocar o privilégio, que não se compatibiliza com a reação

tardia.

O chamado homicídio passional – daquele que mata por ciúmes, pela traição ou

por simples suspeita, ou pelo flagrante de adultério ou, ainda, pela perda da pessoa

amada que o abandonou – tem sido objeto de muitas discussões e decisões as mais

diversas.

É preciso distinguir a situação do agente que encontra o cônjuge em flagrante de

adultério, das demais hipóteses. Não há dúvida de que a traição é um comportamento

equivalente a uma provocação injusta. Afinal, a fidelidade e o respeito mútuos são

deveres jurídicos, ainda quando não haja casamento mas só união estável. A visão dos

amantes trocando carícias amorosas é, sem dúvidas, um fator de determinação da

instalação, na mente do traído, de violenta emoção, aquela que pode desencadear a

reação imediata. Tomado de cólera, irado diante da certeza absoluta da traição, a

reação imediata com a morte de um ou de ambos ajusta-se perfeitamente à terceira

figura privilegiadora do § 1º do art. 121.

Page 17: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 17

Já os homicidas passionais que matam por ciúmes, por suspeitas de traição ou

porque foram abandonados, não estão acobertados pela norma. Não tendo havido

qualquer provocação injusta, não há falar-se naquela violenta emoção, que deve ser

causada pela ação da vítima. Ainda quando o agente esteja efetivamente perturbado ou

mesmo sob o domínio de violenta emoção, é de ver que, nesses casos, a causa da

alteração psíquica não pode ser atribuída a qualquer comportamento da vítima, mas

tão-somente a suas próprias conjecturas, a sua própria criação mental.

Dir-se-á que tais atitudes internas são decorrentes do sentimento de amor que o

agente nutre pela outra pessoa e que a sensação de perda, ou o ciúme, ou, ainda, a

suspeita de traição são capazes de produzir as alterações psicológicas que

desencadeiam o processo emotivo violento. Perderiam aí, esses passionais, a plena

capacidade de determinação e, por isso, mereceriam menor reprovação penal.

Não é assim. Se é certo que o ciúme pode até ser considerado produto do

sentimento de amor, não menos certo que ele seja principalmente fruto do sentimento

de posse ou domínio sobre pessoa, o que, se não pode ser considerado fútil, também

não pode ser entendido como motivo nobre. Daí que a perda da pessoa amada ou a

suspeita sobre sua fidelidade não se ajustam à norma que beneficia o homicida. Sem

que exista uma atuação concreta da vítima, que provoque a reação do agente, o

privilégio seria, na prática, um incentivo às construções mentais destrutivas que podem

acometer, momentaneamente, certos indivíduos.

1.2.3 Homicídio qualificado

Assim como há circunstâncias legais que impõem menor reprovação ao

homicídio, outras há que, ao contrário, exigem maior reprimenda penal. Isso vai

acontecer quando o fato é cercado por circunstâncias mais reprováveis, chamadas

qualificadoras.

As que qualificam o homicídio constituem, em relação aos demais crimes,

circunstâncias que sempre agravam a pena, as quais serão consideradas pelo juiz após a

fixação da pena-base. No homicídio, entretanto, já serão consideradas para a imposição

de maior reprimenda no momento da fixação da pena-base. Estão contidas nos incisos I

a V do § 2º do art. 121 do Código Penal.

A Lei nº 8.930, de 6 de setembro de 1994, que deu nova redação ao art. 1º da

Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, incluiu, dentre os crimes hediondos, todos os

homicídios qualificados, consumados ou tentados. Incluiu também o homicídio

simples, “quando cometido em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que por

Page 18: VOLUME 02 - 1_Part1

18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

um só executor”.

Ora, no ordenamento penal brasileiro não existe a figura típica de “grupo de

extermínio”, daí que a norma é inaplicável, por força do princípio constitucional da

legalidade, por falta da definição legal utilizada. Por outro lado, é impossível um

homicídio praticado pelos vulgarmente chamados grupos de extermínio não ser,

necessariamente, qualificado por uma das circunstâncias do § 2º do Código Penal, o

que torna essa norma absolutamente desnecessária.

A pena cominada para os homicídios qualificados é reclusão, de 12 a 30 anos.

A premeditação não é uma circunstância qualificadora do homicídio. Também

não o é a relação de parentesco próximo entre agente e vítima. A premeditação, por si

só, não revela um grau de perversidade ou de torpeza. Tanto é possível o agente

premeditar um crime por motivo de relevante valor moral, quanto fazê-lo impelido por

uma motivação fútil. O mesmo se diga em relação ao homicídio do ascendente pelo

descendente, ou deste por aquele. Nesta última situação, há uma circunstância

agravante da pena (art. 61, II, e, do Código Penal).

A premeditação, se evidenciada, pode ser levada em conta pelo juiz, no

momento da fixação da pena-base como uma circunstância judicial desfavorável ao

agente.

As circunstâncias qualificadoras do homicídio dizem respeito (1) aos motivos

determinantes do crime, (2) aos meios empregados, (3) à forma ou ao modo de

execução ou (4) à conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.

Nos incisos I e II do § 2º do art. 121 do Código Penal estão descritas as

circunstâncias qualificadoras que dizem respeito aos motivos do crime: paga, promessa

de recompensa ou outro motivo torpe e motivo fútil.

O inciso III descreve circunstâncias que se referem aos meios empregados pelo

agente: veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel, ou do

qual possa resultar perigo comum.

Formas ou modos de execução qualificadores do homicídio estão contemplados

no inciso IV, que assim considera a traição, a emboscada, a dissimulação e outro

recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

Finalmente, também qualifica o homicídio a conexão finalística ou

conseqüencial, relacionada no inciso V: homicídio praticado para assegurar a execução,

ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime.

Page 19: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 19

1.2.3.1 Paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe

Motivo é a força psíquica que impele alguém a fazer ou deixar de fazer alguma

coisa.

Aquele que age impelido pelo recebimento de um pagamento, um valor

pecuniário ou uma promessa de recompensa demonstra sua profunda desconsideração

para com o bem jurídico mais importante. Considera o valor monetário ou o bem

material ou imaterial que receberá mais importante do que a vida humana. Demonstra

frieza e insensibilidade diante do sofrimento da vítima e, mais grave, das conseqüências

da morte de um ser humano. Como se fora um deus, decide, por uma motivação abjeta,

pôr fim a uma vida humana simplesmente para auferir um ganho monetário ou uma

vantagem patrimonial, econômica ou de qualquer natureza. É o cúmulo do egoísmo.

Interromper toda uma vida pela simples razão de obter um ganho pessoal.

Discute-se se qualificadora alcançaria tanto o autor executor do procedimento

típico, quanto o autor intelectual, o que promete a recompensa ou que efetua o

pagamento, dizendo uma parte da doutrina que sim, uma vez que tanto a conduta de

um quanto a do outro merecem a mesma reprovação social.

Noutro sentido é a opinião de FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS:

“Observe-se, ainda, que o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o

concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio

seria ou não qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente,

argumentando que a paga e promessa de recompensa são elementares do delito,

comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outros

respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora é

punir a cobiça, o móvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele que

manda matar. Esta última orientação é mais certeira, pois, como sustenta

Heleno Cláudio Fragoso, ‘não se exclui que mediante a ação de um sicário

pratique alguém um homicídio por motivo de relevante valor social ou moral. A

qualificação do homicídio mercenário justifica-se pela ausência de razões

pessoais por parte do executor (indício de insensibilidade moral) e pelo motivo

torpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurança,

servindo-se de um terceiro’ (Lições de Direito Penal, Parte Especial, pág. 68,

Forense, 1989). Se, por exemplo, o pai pagar um pistoleiro para matar o

estuprador da filha, a solução, a nosso ver, será a seguinte: o pai (mandante)

responderá por homicídio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro

(executor), por homicídio mercenário (CP, art. 121, § 2º, II). Anote-se que a paga

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20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

e a promessa de recompensa não constituem elementares do delito e, sim,

circunstâncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadora

ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstância subjetiva (motivo de paga ou

promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe, nos termos do art.

30 do CP.” 6

Não creio que essa seja a melhor solução, nem tampouco que a busca da

vontade da lei, nesse caso, deva ser feita à luz da norma do art. 30 do Código Penal.

A conduta do mandante, ainda que impelido por motivo de relevante valor

moral, não pode ser considerada apenas como a de quem pretende a impunidade e a

segurança, senão como a de quem não teve a coragem moral para, por suas próprias

mãos e arrostando todas as conseqüências de seu gesto, destruir a vida de quem, a seu

ver, merecia a morte. Longe de merecer tratamento diferenciado, há de receber, do

Direito, a mesma consideração dada ao que agiu impelido pelo fim da obtenção da

vantagem material, monetária.

Quem, pretendendo a morte de outrem, procura esconder-se atrás da ação do

executor, buscando impunidade e segurança, é tão vil quanto o que friamente executa a

morte de alguém sem qualquer outra motivação pessoal, senão a da obtenção do

recebimento do valor ou da vantagem ajustada. Aquele é o covarde que confia na

possibilidade de, não executando o procedimento típico, jamais ser alcançado pelo

aparelho estatal repressor. A busca da impunidade ou da segurança, longe de beneficiá-

lo, é, a meu ver, razão para maior censura penal. Se tivesse um motivo de relevante

valor moral e executasse ele próprio o homicídio, aí sim mereceria a diminuição da

pena, na forma do § 1º do art. 121, não incorrendo na majoração decorrente de

qualificadora. Se, mesmo tendo uma motivação relevante do ponto de vista moral ou

social, prefere pagar a outrem para que mate alguém, não pode merecer censura menor

do que aquele que não teve medo, nem buscou segurança ou impunidade. Pensar o

contrário é homenagear a covardia, e isso não é compatível com o Direito.

Também é possível ver, no que recebe a paga ou a promessa de recompensa,

uma motivação de relevante valor moral, quando o faz para proporcionar alimentos a

seus filhos famintos. Nos dias de hoje, em que a miséria e a fome grassam pelos rincões

deste rico país, não é desarrazoado reconhecer no gesto de um sicário destes um fiapo

de valor moral. Sicário sim, mas, em algum caso, por motivo de relevante valor moral.

A descrição típica do inciso I do § 2º do art. 121 não deve ser lida apenas em

6 Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 28.

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Homicídio - 21

relação ao executor, mas também ao mandante, independentemente de se considerá-la,

ou não, circunstância elementar do tipo de homicídio. É que, ao descrevê-la como

“mediante paga ou promessa de recompensa”, a norma buscou alcançar a totalidade

de um contrato bilateral que, por sua própria natureza jurídica, envolve direitos e

obrigações para ambas as partes, e não apenas uma motivação pessoal exclusiva do

contratado.

O escopo da norma não é, simplesmente, o de reprovar mais severamente o fim

de lucro que moveu o executor, mas, também e antes, a conduta de ambos, executor e

mandante: celebrarem um pacto cujo objeto é a destruição de uma vida humana. Ou

seja, um contrato entre duas pessoas que visa à destruição do bem jurídico mais

importante. Um porque encomendou a morte de um homem, o outro porque aceitou a

encomenda. Ambos, igualmente, tiveram motivação torpe, abjeta, repugnante. O

primeiro porque, dispondo de dinheiro, sentiu-se à vontade para buscar alcançar a

destruição de uma vida humana, por mãos alheias. O outro porque, simplesmente por

dinheiro, não teve qualquer condescendência com a existência de um semelhante.

Se a vontade da lei fosse a de considerar qualificada apenas a atitude do

executor, não utilizaria a expressão “mediante paga ou promessa de recompensa”,

mas escolheria outra fórmula específica, exclusiva ou própria do executor, como “para

(ou com o fim de) obter paga ou promessa de recompensa”. A expressão mediante

significa aquilo que medeia. O verbo mediar significa ficar no meio de dois pontos, no

espaço, ou de duas épocas, no tempo. Assim, ao utilizar essa expressão, a lei vinculou

as duas partes, o mandante e o executor. A paga ou a promessa de recompensa é o elo

que liga as duas pessoas, é o que medeia as duas vontades e suas motivações. Logo, o

que medeia duas condutas a ambas se agrega, razão por que ambos praticam homicídio

qualificado.

Esta é uma solução acima de tudo justa, porquanto tanto repugna o gesto de

quem executa a morte, quanto o de quem a encomendou. O pagamento feito macula

tanto o que o fez, quanto o que o recebeu. O primeiro por não ter considerado a vida

humana senão uma coisa, passível de ser destruída por força do poder de quem dispõe

de numerário capaz de seduzir quem dele precisa. Este, por tê-lo considerado mais

importante que a vida humana.

Ambos, portanto, responderão na forma qualificada do homicídio.

Quanto à possibilidade de um dos dois, mandante e executor, ou até mesmo de

ambos terem agido, ao mesmo tempo, por motivo de relevante valor moral, nada obsta

seu reconhecimento também pelo órgão julgador, o Tribunal do Júri.

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22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Assim, o pai que manda matar o estuprador da filha poderá ter a seu favor

reconhecido o privilégio, que pode, perfeitamente, harmonizar-se com a qualificadora

em questão. Será, pois, apenado por um homicídio ao mesmo tempo qualificado e

privilegiado, figura perfeitamente compatível com a vontade do Direito. Terá sua pena,

de 12 a 30 anos, diminuída, de um a dois terços, sem qualquer dificuldade.

O mesmo se diga do que executou a morte para obter numerário destinado a

comprar alimentos para saciar a fome de seus filhos menores.

Essa sim a solução mais justa, porque reconhece, a um só tempo, a presença de

uma circunstância que aumenta a reprovação e outra que a diminui. Sua convivência

em nada agride o sistema de leis do Estado.

A mesma norma do § 1º do art. 121 utiliza, aqui, da interpretação analógica,

equiparando à paga ou promessa de recompensa qualquer outro motivo torpe. A

motivação do agente que se assemelhar à daquele que contrata a morte de alguém, ou

do que mata, mediante paga ou promessa de recompensa, será considerada torpe, isto

é, abjeta, repugnante.

Serão torpes todos os motivos que, à semelhança do fim de lucro, ou da

contratação de alguém para destruir uma vida humana, impelirem o sujeito a matar

alguém. São os motivos indignos, que contrastam com os valores morais.

É torpe a força que impele o filho a executar ou a contratar a morte dos pais,

com a finalidade de se livrar de sua presença na sua vida, de suas orientações, dos

corretivos normais, para alcançar a liberdade plena, para viver sem controle ou limites

aceitáveis em sociedade. Mais torpe ainda, quando o fim é a obtenção de valores

materiais, a título de herança.

A torpeza, como disse NELSON HUNGRIA, revela um grau particular de

perversidade7.

A vingança, porém, não é, necessariamente ou por si só, um motivo torpe. Tanto

que a lei a ela não se referiu. A vingança pode dar-se até mesmo por um motivo

razoável, não justificado, é óbvio, mas não abjeto ou repugnante. É preciso analisar os

motivos que levaram o sujeito a promover sua vingança. Estes podem, sim, ser torpes

ou não.

1.2.3.2 Motivo fútil

7 Op. cit. p. 162.

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Homicídio - 23

Fútil é o motivo ínfimo, insignificante, mesquinho, vazio, leviano, frívolo,

extremamente desproporcionado ou de somenos importância, que impele o sujeito a

matar, revelando, assim, a intensa insensibilidade que o domina. É o motivo banal.

O agente que mata a vítima porque esta lhe pisou o pé, o que mata o garçom

porque este derramou vinho na roupa de sua acompanhante, bem assim o que atinge o

torcedor que comemorou a vitória de seu clube de futebol agem impelidos por

motivação fútil.

A futilidade nasce da prepotência e da intolerância que caracterizam certos

indivíduos. São os que se consideram seres superiores, pela força do poder econômico,

ou pela superioridade nos planos físico, intelectual ou moral. Contrariados em qualquer

pretensão, enchem-se de ira e voltam-se violentamente contra os mais fracos ou

desavisados. Não aceitam o “não”. Não toleram a crítica, não convivem com nada que

lhes incomode. Não sendo agredidos, nem tampouco provocados, mas, simplesmente,

não recebendo o que querem, não ouvindo o que gostariam, ou não vendo o que

desejavam, reagem e matam.

E porque se consideram verdadeiros deuses, ai de quem, em sua frente, se

postar como, a seu próprio juízo, responsável ou culpado pela não-realização de seus

desejos. Chegam a matar e nessas circunstâncias receberão reprovação penal mais

severa.

Ciúme, já se disse há pouco, é um sentimento que não justifica qualquer

conduta típica, nem tampouco, por si só, é capaz de ensejar uma causa de diminuição

da pena. Ainda assim não é um motivo torpe, posto que derivado de um estado afetivo.

Não é, por isso, abjeto, nem repugnante. Seria fútil?

Também não. Mesmo que se possa considerá-lo fruto de um sentimento

retrógrado, inaceitável, de posse sobre uma pessoa, ainda que querida ou amada, não

pode ser incluído entre os motivos insignificantes. O só fato de nascer, como

efetivamente nasce, também do sentimento do amor, é revelador, senão de sua

nobreza, pelo menos de sua importância. Logo, não pode ser ínfimo, nem desprezível

ou banal.

O ciúme não é causa de justificação da conduta, nem circunstância

privilegiadora, todavia, não pode ser considerado motivo fútil, posto que, ainda que não

se lhe reconheça qualquer nobreza, não se pode tê-lo como mesquinho.

Os humanos, não sei se infelizmente, têm, para com alguns de seus

semelhantes, esse sentimento intenso, de tê-lo como seu, de querê-lo para si, de

exclusividade no relacionamento, mormente o afetivo e sexual e, só por isso, é de se

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24 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

compreender o ciúme como um estado relevante, ainda que incompatível com a plena

liberdade individual e o respeito que todos a ela devem dedicar.

A embriaguez seria compatível com a motivação fútil?

Essa é outra questão à qual se dedicam os estudiosos do Direito Penal. Para uns,

o estado de embriaguez do sujeito ativo do crime é absolutamente incompatível com a

futilidade, por não lhe ser possível formular um juízo de proporção entre o motivo e a

conduta. Já outros entendem plenamente harmonizável a alteração psíquica decorrente

da ingestão de substância embriagante com a avaliação do motivo que impele o agente

a praticar o crime.

Não há receituário preciso para o problema. Importa verificar, em primeiro

plano, o grau de embriaguez. Se for completa, é evidente que não está o sujeito com a

capacidade de discernir sobre a proporção entre a provocação e a conduta. Como já se

disse anteriormente, a responsabilidade penal, nos casos de embriaguez voluntária ou

culposa, é objetiva, por força da teoria da actio libera in causa, adotada pelo

ordenamento penal. Rigorosamente, há, nessas hipóteses, ausência de conduta, por

absoluta falta de consciência ou vontade. Fazer incidir, ademais, a circunstância

qualificadora do motivo fútil é, a meu ver, responsabilizar o indivíduo, objetivamente,

duas vezes. É bastante que ele seja apenado, mas aí deve-se contentar com a tipicidade

do homicídio simples.

Dividem-se, doutrina e jurisprudência, acerca da ausência de motivo ser

equiparada, ou não, ao motivo fútil. Penso que correto é o entendimento segundo o

qual, se o agente praticar o fato sem qualquer motivo, deverá responder pela forma

qualificada, uma vez que não poderia merecer menor reprovação do que aquele que

agiu por um motivo banal. Se é certo que o motivo fútil é o pequeno demais, o motivo

nenhum a ele deve equiparar-se, porque, inexistente, é como se fora ainda menor.

1.2.3.3 Veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio

insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum

No inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal estão considerados

determinados meios empregados pelo agente, os quais, por sua natureza insidiosa ou

cruel, revelam a extrema perversidade com que o crime é praticado, daí que não

poderia ser considerado um homicídio simples. Se o homicídio já é, por si só, um crime

extremamente grave por destruir o bem jurídico mais importante, a utilização de certos

meios, que infligem maior sofrimento à vítima, constitui circunstância que o torna mais

severamente punido.

Page 25: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 25

A Toxicologia, ciência que estuda os venenos ou substâncias tóxicas, não

apresenta um conceito unânime de veneno, uma vez que determinadas substâncias

perigosas para a vida da maioria das pessoas, em alguns casos, apresentam-se, em

relação a outras vidas, absolutamente inócuas. O açúcar, alimento para quase todos,

para o diabético pode ser letal.

Isso porque, segundo HÉLIO GOMES, “entre alimento, medicamento e veneno

nem sempre se pode fazer distinção rigorosa. SOUZA LIMA, em sua notável

Toxicologia, primeiro livro escrito no Brasil sobre o assunto, diz:

“Por exemplo, o álcool, que em pequena dose é reputado um alimento

respiratório (como se dizia na antiga filosofia); em dose mais elevada é um

medicamento excitante difusivo, e, além de certos limites, torna-se veneno

estupefaciente. A mesma substância é, pois, um alimento enquanto concorre

para a nutrição e para a vida, um medicamento quando cura ou modifica

favoravelmente a marcha e terminação das moléstias, e um veneno quando

produz desordens graves na economia e a morte.”8

É do mesmo SOUZA LIMA a seguinte definição de veneno:

“substância estranha à categoria dos agentes vulnerantes e patogênicos, que,

introduzida ou aplicada de qualquer modo ao corpo humano em certa

quantidade, relativamente grande, produz mais ou menos rapidamente

acidentes graves na economia, que podem terminar pela morte, ou deixar

defeitos permanentes e irremediáveis”.

Para NELSON HUNGRIA, veneno é “a substância que, introduzida no

organismo, é capaz de, mediante ação química ou bioquímica, lesar a saúde ou

destruir a vida”9.

Neste último sentido, também deve ser considerado veneno o vírus, que é um

elemento gerador de doença, por sua característica de contagiosidade, e que pode ser

introduzido no corpo humano causando lesões ou a própria morte.

O veneno pode ser introduzido no organismo pela via gastrointestinal, pelas

vias respiratórias, pela via endérmica ou hipodérmica, pela pele ou pelas mucosas e

diretamente no sistema circulatório. Sua atuação ocorrerá quando atingir o sistema

arterial e capilar, que é seu campo de ação.

A qualificadora incidirá apenas quando o veneno é ministrado de modo

8 Op. cit. p. 434. 9 Op. cit. p. 162

Page 26: VOLUME 02 - 1_Part1

26 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

insidioso, isto é, dissimulado. A vítima é ludibriada pelo agente, e não percebe sua

intenção criminosa.

Se o agente utiliza-se de violência ou grave ameaça para que a vítima seja

exposta ao contato com o veneno, ingerindo-o ou inalando-o, e tenha, por isso,

consciência da ação lesiva que a substância vai produzir em seu organismo, o homicídio

será qualificado pela crueldade, uma vez que importará em grande sofrimento.

O uso do fogo sobre o corpo humano provoca enorme sofrimento. O calor

produzido pela combustão e as chamas que dela decorrem importam em dores

horríveis, além da consciência de que os órgãos do corpo estão sob um violento e rápido

processo de destruição, consumindo-se. A exposição do corpo a temperaturas elevadas

produz modificações de sua matéria que vão chegar até a carbonização. É meio

crudelíssimo.

A norma não se referiu à exposição do corpo humano a temperaturas

extremamente baixas, que podem levá-lo ao congelamento. Com certeza porque tal

fenônemo natural não seja próprio de nosso espaço geográfico. Todavia, um homicídio

cometido com a submissão da vítima ao frio intenso, produzido artificialmente, será,

induvidosamente, qualificado pela crueldade.

Explosivo, para os fins da norma em comento, é qualquer corpo, aparelho ou

substância capaz de produzir explosão. Explosão é a expansão violenta de gases, em

forma de calor, acompanhada de estrondo e pressão disruptiva, causada por repentina

liberação de energia decorrente de uma reação química muito rápida, ou de uma reação

nuclear, ou do escape de gases ou vapores sob grande pressão. Com a explosão, as

matérias próximas, inclusive corpos humanos, sofrem a ação da enorme força

expansiva dos gases liberados, recebendo seu impacto, o que pode ser letal.

Asfixia é a supressão da respiração, com a cessação das trocas orgânicas,

reduzindo-se o teor de oxigênio, aumentado o de gás carbônico no sangue arterial. São

várias as modalidades de asfixia.

A chamada sufocação direta é aquela produzida por uma ação que impede a

entrada do ar no aparelho respiratório através das vias aéreas superiores ou de seus

orifícios externos. Com as mãos ou certos objetos moles, como um travesseiro ou

cobertor, o agente fecha os orifícios superiores do aparelho respiratório. É a chamada

oclusão direta das narinas e da boca. Para ser concluída, é necessário que haja

desproporção de força entre os sujeitos do crime. Ocorre muito nos casos de

infanticídio.

Pode a sufocação direta dar-se através da oclusão dos orifícios da faringe e da

Page 27: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 27

laringe, que se realiza com a introdução de panos, papel, rolha ou outros objetos

adequados, na boca da vítima, obstruindo aqueles órgãos, dando início à supressão do

processo respiratório.

Há sufocação indireta quando a vítima é impedida através de uma força externa

de realizar os movimentos de inspiração e de expiração. O peso excessivo do agressor

sobre o tórax da vítima é uma dessas situações. É também chamada de compressão

torácica.

Asfixia por enforcamento decorre da constrição do pescoço exercida por meio

de um laço, fixado num ponto superior ao corpo, cujo peso atua como força constritora.

As vias respiratórias são obstruídas e a morte pode demorar geralmente de cinco a dez

minutos.

O estrangulamento consiste na constrição do pescoço, também por laço;

todavia, a força atuante, diferentemente do enforcamento, não é o próprio peso da

vítima. Se o agente utilizar-se das próprias mãos para efetuar a constrição, a asfixia se

denomina esganadura.

Confinamento é uma forma de asfixia na qual a vítima é mantida presa num

ambiente fechado, sem a necessária e adequada renovação de ar, de tal modo que as

quantidades de oxigênio e de remoção do gás carbônico não sejam adequadas ao

processo respiratório. O sofrimento da vítima é indizível, porque, à medida que o

tempo passa, vai sentindo os efeitos da diminuição do oxigênio e do aumento da

umidade e da temperatura ambiente.

“À medida que o tempo passa, a situação vai se agravando e duas síndromes

vão se instalando simultaneamente: hipóxia e exaustão térmica. Ambas levam a uma

fase de reação com hiperpnéia, taquicardia, elevação da pressão arterial e início de

pânico. Mais adiante, vem o desespero, grande agitação e perda da consciência com

ou sem convulsões. Segue-se estado de coma, que evolui para o estado de choque e a

morte por asfixia.” 10

O soterramento é a asfixia em que a vítima fica coberta completamente por

escombros ou por terra. Dá-se quando, por exemplo, é provocado um desabamento ou

quando a vítima é enterrada viva. A morte poderá se dar pela compressão torácica ou

por sufocação direta.

Também há asfixia no afogamento. Nesse caso, ocorre a penetração de grande

10 GOMES, Hélio. Op. cit. p. 519.

Page 28: VOLUME 02 - 1_Part1

28 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

quantidade de líquido, água ou outro, nos pulmões, através das vias respiratórias.

Qualquer que seja a modalidade, a asfixia é um meio cruel, porque impõe um

sofrimento desnecessário para a vítima, daí a razão de ser uma circunstância

qualificadora do homicídio.

Também qualifica o homicídio o uso de tortura em sua execução. É a utilização

de tormentos, físicos ou mentais, para executar a morte da vítima. A expressão tortura,

do inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal, não corresponde à idêntica expressão

utilizada na construção dos tipos legais de crime de tortura definidos na Lei nº 9.455,

de 7 de abril de 1997. No homicídio, significa um dos meios cruéis, utilizados pelo

agente na execução do homicídio.

A definição dos crimes de tortura é uma exigência mundial, antes mesmo de ser

uma ordem constitucional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art.

V, estabeleceu que “Ninguém será submetido à tortura ou a tratamento ou castigo

cruel, desumano ou degradante”.

A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas adotou, em 10 de

dezembro de 1984, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Penais

Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que foi aprovada pelo Congresso Nacional pelo

Decreto Legislativo nº 4, de 22 de maio de 1989 e promulgada pelo Presidente da

República pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, a qual, na Parte I, art. 1º,

estabelece:

“Para os fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato

através do qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos

intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,

informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa

tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta

pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de

qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um

funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua

instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará

como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de

sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”11

Em nenhuma hipótese, a tortura é admitida, como se vê do art. 2º da mesma

Convenção, o qual, em seu item 2, dispõe: “Em nenhum caso poderão invocar-se

11 BRASIL. Diário Oficial da União, de 18 fev. 1991, p. 3012-3015.

Page 29: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 29

circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade

política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para

tortura.”

A Lei nº 9.455/97, no art. 1º (caput e §§ 1º e 2º), descreveu seis condutas

típicas de tortura (a tortura-prova, a tortura como crime-meio, a tortura racial ou

discriminatória, a tortura-pena ou castigo, a tortura do encarcerado e a omissão

frente à tortura). Já no § 3º cuidou do crime qualificado pelo resultado, preterdoloso, e

no § 4.º previu causas de aumento de pena.

ALBERTO SILVA FRANCO, acerca do conflito entre a qualificadora do

homicídio e os tipos da Lei de Tortura, assim se expressou:

“Mas qual seria o tipo de relacionamento entre a tortura e o homicídio? Aqui,

a questão apresenta um enfoque diverso. Se o resultado morte não foi querido

pelo torturador, mas advém como conseqüência da ação torturadora, a

solução da matéria já se acha na própria Lei 9.455/97 que prevê a hipótese de

tortura qualificada e lhe comina pena reclusiva de oito a dezesseis anos. Mas,

se o agente está praticando a tortura e, num dado momento, decide eliminar a

vida do torturado, é evidente que, nessa situação concreta, houve duas

violações, representando a segunda um desvio em relação à primeira: o

agente quis torturar e depois, quis matar. Em verdade, são duas ações

completas e bem definidas a configurar dois delitos, em concurso material: a

tortura e o homicídio.”12

Três são as possibilidades. Na primeira, o agente age dolosamente realizando

um dos tipos legais de tortura e sobrevém, por culpa, stricto sensu, o resultado morte.

Aí há crime de tortura seguida de morte. É crime preterdoloso. Há dolo na ação

material de realizar a tortura, com o elemento subjetivo respectivo, e culpa na produção

do resultado morte.

Na segunda, o agente tem o dolo de realizar um crime de tortura e, no decorrer

de sua ação, resolve matar a vítima. Nesse caso, há dois crimes, tortura e homicídio, em

concurso material.

Uma terceira hipótese: o agente quer, desde o início, cometer um crime de

tortura e também matar a vítima. Quer infligir intenso sofrimento físico ou mental, com

o fim de obter uma confissão da vítima e, também, deseja sua morte. Aí haverá

concurso formal entre um crime de tortura e outro de homicídio qualificado, com a

12 Tortura – Breves anotações sobre a Lei nº 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 19, p. 65.

Page 30: VOLUME 02 - 1_Part1

30 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

aplicação cumulativa de pena, porquanto resultantes de desígnios autônomos.

Assim, a tortura que qualifica o homicídio é o suplício violento que o agente

inflige à vítima, como meio para a obtenção do resultado morte, que não se confunde

com qualquer dos crimes de tortura, que, muito embora constituam, igualmente,

intenso sofrimento físico ou mental para a vítima, devem, para perfazer-se, realizar os

outros elementos do respectivo tipo.

Para alcançar outras condutas igualmente reprováveis, a norma do inciso III do

§ 2º do art. 121 utiliza, outra vez, o mecanismo da interpretação analógica, a fim de que

o intérprete, diante do caso concreto, faça a comparação entre o meio efetivamente

utilizado pelo agente e um dos já explicados (veneno, fogo, explosivo, asfixia e

tortura). Se o meio concretamente usado tiver sido, à semelhança desses, insidioso ou

cruel, ou do qual possa resultar perigo comum, a qualificadora incidirá.

Meio insidioso é aquele dissimulado em sua influência maléfica. Através dele, o

agente emprega um ardil ou um artifício qualquer, de modo a ludibriar a boa-fé do

agente. Como no caso da propinação de veneno, a vítima não percebe a intenção

criminosa. Vale-se o agente de determinado estratagema ou de armadilha para realizar

o intento criminoso. O meio insidioso é como a dissimulação, mencionada no inciso IV

do mesmo § 2º, adiante comentada, porém deve guardar maior similitude com a

utilização do veneno, quando a vítima até colabora com a ação do agente. Tanto na

insídia quanto na dissimulação, a vítima fica privada da possibilidade de resistir à ação

criminosa, mas naquela dá alguma contribuição, ainda que passiva, para o evento, ao

passo que na dissimulação não dá qualquer colaboração.

A diferença está, ainda, em que a insídia consiste no meio utilizado, ao passo

que a dissimulação encontra-se no modo como o fato é praticado, o que se vai

demonstrar adiante.

Meio cruel é todo aquele que importa para a vítima um padecimento físico ou

mental além do necessário e suficiente para a consumação do homicídio. É o

sofrimento desnecessário, inútil. Muitos podem imaginar que a reiteração ou o excesso

de golpes perpetrados pelo agente contra a vítima constitui meio cruel de execução do

homicídio. Não necessariamente. Pode ocorrer que já ao primeiro golpe a vítima perca

os sentidos ou mesmo venha a óbito, o que, à evidência, não importa em sofrimento

desnecessário ou excessivo.

Matar a vítima através de reiterados e sucessivos cortes em seu corpo,

produzindo, lentamente, hemorragia e deixando-a sem qualquer socorro até que a

morte ocorra é uma forma extremamente cruel de homicídio. Revela a absoluta falta de

Page 31: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 31

piedade do agente, extrema frieza e insensibilidade, que provocam enorme e desumano

sofrimento para a vítima. Bater num idoso ou num enfermo, minando-lhe,

paulatinamente, as forças até que sobrevenha a morte, é igualmente matar por meio

cruel. Manter alguém em cárcere privado privando-o de água ou de alimento para que

ele, com o tempo, venha perder suas forças e, lenta e dolorosamente, morrer é outra

induvidosa hipótese de homicídio por meio cruel.

A crueldade do meio deve ser interpretada à semelhança da tortura ou da

asfixia, nas quais a vítima é morta depois de algum tempo de enorme sofrimento, físico

ou moral.

Haverá homicídio qualificado por um meio de que possa resultar perigo

comum quando a conduta do agente puder causar, além da morte da vítima, uma

situação de perigo para a vida ou para a saúde de outras pessoas. A verificação deve ser

feita com recurso da interpretação analógica, comparando-se o meio utilizado

efetivamente pelo agente com as hipóteses de utilização de fogo ou de explosivo, já

comentadas. Tanto na utilização do fogo quanto na do explosivo existe a possibilidade

concreta de que outras pessoas venham sofrer as conseqüências da ação delituosa. A

fórmula genérica ora comentada permitirá ao julgador considerar também qualificado

o homicídio utilizado através de incêndio ou de inundação provocados pelo agente com

vistas na morte de determinada pessoa.

Assim, se o agente, sabendo que seu desafeto encontra-se em determinado local,

resolve causar um incêndio ou um desabamento do prédio, com o fim de provocar um

acidente e sua morte, incidirá essa qualificadora.

É certo que se ele souber da presença de outras pessoas, fizer a previsão da

morte de alguma ou de várias delas e, pelo menos, mostrar-se indiferente a um desses

eventos letais, e uma daquelas pessoas vier a ser atingida e morrer, haverá dois

homicídios dolosos, em concurso formal imperfeito. Inaceitável que, tendo feito a

previsão da morte de qualquer dos demais, possa ter agido apenas com culpa

consciente. Haverá dolo eventual.

Desconhecendo o agente a presença, ainda que previsível, de outras pessoas nas

imediações e, portanto, agindo sem dolo em relação à morte ou à lesão corporal de

qualquer delas, a solução é outra. Se não resultar morte ou lesão corporal de qualquer

dos circunstantes, haverá então concurso formal perfeito entre o crime de homicídio

qualificado e o crime de perigo comum. Se resultar morte ou lesão corporal de qualquer

deles, haverá concurso formal perfeito entre o crime de homicídio qualificado realizado

e homicídio culposo ou lesão corporal culposa.

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32 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.3.4 Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que

dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido

O inciso IV do § 2º do art. 121 do Código Penal descreve circunstâncias

qualificadoras que dizem respeito às formas ou modos de execução do homicídio, todas

elas insidiosas, traiçoeiras, ardilosas, dissimuladas, nas quais a vítima vê dificultada ou

impossibilitada sua capacidade defensiva. Só por isso impõe-se a reprimenda mais

severa, por isso que há homicídio qualificado.

Traição é o ataque súbito e sorrateiro, que colhe a vítima desavisada, tranqüila.

É a ação inesperada, que estava fora da cogitação da vítima, a qual não tinha qualquer

possibilidade de perceber o gesto homicida. Constitui traição matar a vítima pelas

costas, isto é, quando ela, desatenta, não pode pressentir o ataque letal. Não se deve

confundir a ação pelas costas com o disparo ou golpe efetuado nas costas, que pode

ocorrer apenas porque, no momento de seu desfecho, a vítima vira as costas para o

agente, ainda que para empreender fuga.

Emboscada é o mesmo que tocaia. É a espera da vítima que, despreocupada,

não está preparada para um ataque criminoso. O agente, escondido, aguarda sua

passagem para só então, com plena segurança, desencadear a ação que a fulminará.

Tanto quanto na traição, a vítima não está em condições de esboçar qualquer gesto

defensivo, porque desconhece o intento do agente e, quase sempre, ignora sua própria

presença nas imediações.

Dissimulação é o comportamento anterior do agente consistente em disfarçar,

ocultar ou esconder a intenção de matar. Age de modo a que a vítima não perceba seu

fim homicida. Procura, por várias formas, conquistar a confiança da vítima, inspirando

nela até mesmo o sentimento de amizade para, quando esta mostrar-se absolutamente

confiante e despreocupada, só aí executar o homicídio. Conheci um homicida

profissional que utilizava a dissimulação como modo de executar suas vítimas. Delas se

aproximava, tornava-se amigo, íntimo até, para, depois de dias de relacionamento

amistoso, convidá-las para jantar em sua residência onde, horas depois, com a vítima

totalmente tranqüila, executava-a friamente, tranqüilamente, sem qualquer

possibilidade de reação.

Também incidirá essa qualificadora quando o agente utilizar outro recurso que

dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Outra vez o Código Penal determina

ao intérprete que realize uma interpretação analógica. Deve analisar o modo como o

homicídio foi praticado e, se concluir que esse modo é análogo à traição, à emboscada

Page 33: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 33

ou à dissimulação, deverá impor a qualificadora. Em outras palavras, a traição, a

emboscada e a dissimulação são recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do

ofendido. Assim, qualquer outro recurso que, à semelhança desses, tornar impossível

ou difícil a defesa da vítima, será uma circunstância qualificadora do homicídio. É o

caso do homicídio cometido mediante surpresa, que se assemelha a traição, emboscada

e dissimulação. Haverá surpresa quando a vítima não tiver razão para suspeitar ou

esperar a intenção do agente.

O homicídio cometido quando a vítima encontrava-se dormindo ou embriagada

ajusta-se a essa fórmula genérica, porquanto ela, nessas condições, não tinha qualquer

possibilidade de defender-se.

1.2.3.5 Execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro

crime

Finalmente, no inciso V do § 2º do art. 121, encontram-se as circunstâncias que

qualificam o homicídio por sua conexão teleológica ou conseqüencial com outro crime.

O agente mata alguém para assegurar a execução de outro crime. Há conexão

teleológica.

Quando mata para garantir a ocultação, a impunidade, ou para assegurar a

vantagem obtida com o outro delito, há conexão conseqüencial.

Essas qualificadoras, segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, são espécies de

motivo torpe e sua relevância está no elemento subjetivo, bastando que se apure a

conexão em sentido meramente psicológico. Isto é, basta que o sujeito tenha praticado

o homicídio com uma daquelas finalidades para que sua reprovabilidade seja maior. A

torpeza é evidente em qualquer das hipóteses.

A primeira figura é a do que mata com o fim de tornar possível ou mais fácil a

realização de outro crime, não sendo indispensável que este venha a ser executado.

Basta que o agente tenha matado com a finalidade de assegurar a execução do outro

crime. Esse crime pode, inclusive, ser outro homicídio, já que a lei não restringiu essa

possibilidade.

Se o agente mata alguém para assegurar a execução de um furto, isto é, de uma

subtração de coisa alheia móvel, não incidirá a qualificadora, mas sim a norma do art.

157, §§ 1º e 3º do Código Penal, chamado latrocínio, solução, aliás, mais gravosa.

E se o crime-fim for um crime impossível ou um delito putativo, imaginário, a

qualificadora incidirá?

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34 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A norma fala em execução, daí que é de se perguntar se a qualificadora incidirá

na hipótese em que o agente tenha praticado o homicídio para assegurar não a

execução, mas a consumação de outro crime.

Vejam-se os exemplos:

a) Carlos, desejando matar Maria, casada com Joaquim, ingressa no quarto do casal,

imaginando que estariam dormindo, quando é surpreendido com o marido acordado;

mata-o, então, para, em seguida, disparar vários tiros de revólver contra Maria que,

nada obstante Carlos imaginá-la dormindo, já estava morta em virtude de um ataque

cardíaco ocorrido duas horas antes;

b) Eduardo, crendo que o incesto é crime e desejoso de manter relações sexuais

consentidas com sua filha, Cláudia, maior de 18 anos, mas sabendo que sua mulher,

Célia, poderia descobri-los, resolve matá-la, a fim de obter seu intento libidinoso;

c) João, com dolo de matar, dispara arma de fogo contra Manoel, que não morre

imediatamente. Pedro socorre Manoel e vai levá-lo ao hospital quando João o mata,

para assegurar a consumação do homicídio contra Manoel.

Qual solução se deve dar para essas três situações? Na primeira, o homicídio é

cometido com a finalidade de cometer um crime impossível, porque o objeto é

absolutamente impróprio. Maria não era mais alguém. Não havia Maria. Havia o corpo

de Maria. E o agente cometeu o homicídio contra Joaquim, para assegurar a prática de

um crime cuja consumação era impossível.

No segundo exemplo, Eduardo comete o homicídio contra Célia, para assegurar

a execução de um não-crime, mas que, em sua mente, constituía um delito. Um crime

putativo por erro de proibição.

No último exemplo, o agente mata alguém para assegurar não a execução, mas a

consumação de outro crime.

Se é certo que as normas penais incriminadoras, especialmente as que

impõem maior censura penal, não podem ser interpretadas extensivamente, não

incidirá essa qualificadora. O crime impossível não é crime, mas uma tentativa

inadequada, inidônea, de crime, e conquanto a norma em comento faça menção

expressa a um “crime”, tornar-se-ia necessário ampliar seu significado para alcançar

também o crime impossível. O mesmo em relação ao delito putativo. Dever-se-ia,

igualmente, ampliar o significado de execução para alcançar também a consumação?

Penso que a melhor solução é não aceitar a interpretação extensiva da norma

incriminadora, para não fazer qualquer concessão a esse expediente, ainda que por um

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Homicídio - 35

motivo de busca da solução mais justa. Mesmo porque não há necessidade, nas três

situações, de utilizá-la, uma vez que os três homicídios serão igualmente qualificados,

já que, nas três situações, dúvidas não podem restar de que a motivação dos agentes, ao

matarem as vítimas, é, nas três hipóteses, induvidosamente torpe, abjeta, repugnante,

aplicando-se-lhes, por isso, a qualificadora do inciso I, e não a do inciso V, do § 2º, do

art. 121.

Também são qualificados os homicídios cometidos para assegurar a ocultação

ou a impunidade de outro crime. Ocultação e impunidade se distinguem. DAMÁSIO

explica:

“Na ocultação, o sujeito visa a impedir a descoberta do crime. Ex.: o incendiário

mata a testemunha do crime. Na impunidade, o crime é conhecido, enquanto a

autoria é desconhecida. Ex.: o sujeito mata a testemunha de um desastre

ferroviário criminoso. Como vimos, existe diferença entre ocultação e

impunidade. Na ocultação, o outro delito não é conhecido; na impunidade, o

crime é conhecido, a autoria, entretanto, não é conhecida.” 13

Impõe-se maior reprovação porque, nas duas situações, o sujeito busca um fim

abjeto, repugnante, desvalorizando uma vida humana por puro egoísmo, para livrar-se

da aplicação da lei penal.

A última figura dessa qualificadora é a prática do homicídio com a finalidade de

assegurar vantagem de outro crime. Essa vantagem pode ser de qualquer natureza,

patrimonial ou moral. Assim, nela incide o que mata o parceiro do furto, para ficar com

a res furtiva.

Não é necessário que o outro crime tenha sido praticado pelo mesmo sujeito do

homicídio. Ele pode matar alguém para assegurar a execução de um crime a ser

perpetrado por outro, ou para assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem de

crime praticado por terceira pessoa.

O homicídio e o outro crime são dois crimes conexos, e não um crime complexo

– como é a hipótese de latrocínio –, daí que o agente, na hipótese de ter sido também o

autor ou partícipe do outro crime, responderá por ambos os delitos, em concurso

material.

Se o crime conexo com o homicídio, teleológica ou conseqüencialmente, tiver

sua punibilidade extinta, a qualificadora, ainda assim, prevalecerá, consoante dispõe a

13 Op. cit. p. 60-61.

Page 36: VOLUME 02 - 1_Part1

36 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

norma do art. 108 do Código Penal.

1.2.3.6 Anteprojeto de Código Penal

No já mencionado anteprojeto de Código Penal, dois novos incisos estão

incluídos no § 2º do art. 121, que contém novas circunstâncias qualificadoras.

A primeira delas: “por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação

sexual, condição física ou social, religião ou origem” – diz respeito aos motivos que

impelem o agente, os quais, poderiam dizer os críticos, são todos torpes, sendo

desnecessária sua explicitação na norma. Não creio que seja assim. Fala-se que o

brasileiro não é um povo racista, mas a realidade mostra, muitas vezes, o contrário.

Quase ninguém tem a coragem de assumir, em público, uma postura racista, mas no

dia-a-dia são ainda muitos os que se comportam com atitudes que levam à exclusão de

muitos indivíduos, exatamente por sua raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual,

condição física ou social, religião e também por sua origem.

A intolerância de muitos, inclusive de pessoas que se organizam em grupos

formados para a prática de crimes inspirados por esses motivos, vem crescendo e é

dever do legislador procurar, sempre que necessário e possível, ampliar o alcance da

norma incriminadora, de modo claro e preciso, em respeito ao princípio da legalidade.

Sempre que possível, melhor não deixar para o julgador a tarefa interpretativa,

mormente quando se tratar de temas dessa natureza.

A explicitação dessas novas figuras qualificadas, longe de ser desnecessária, por

já estarem, implicitamente, contempladas na categoria de “motivo torpe”, é uma

exigência imposta pela necessidade de conferir melhor e maior proteção às minorias

dentro da sociedade, contra os ataques homicidas de pessoas intolerantes.

A outra inovação é a qualificação do homicídio quando cometido “por grupo de

extermínio”. Nos últimos tempos, tem sido cada vez mais comum a prática de

homicídios perpetrados por grupos de pessoas que se organizam exatamente com a

finalidade de matar, pelas mais diversas motivações, seja mediante paga ou por outro

motivo torpe. A nova qualificadora é de natureza objetiva. O grupo de extermínio é uma

espécie de quadrilha, portanto deve ter o mínimo de quatro integrantes, e ser

constituído para cometer homicídios.

1.2.4 Homicídio qualificado-privilegiado

Doutrina e jurisprudência divergem quanto à possibilidade de um homicídio ser

Page 37: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 37

ao mesmo tempo qualificado e privilegiado.

Uma corrente entende ser impossível a convivência de privilégio com

qualificadora, porquanto o primeiro é uma mera causa de diminuição da pena e que,

situado topograficamente, no § 1º do art. 121, diz respeito, exclusivamente, ao

homicídio simples, descrito no caput do artigo. Logo, se o homicídio é qualificado,

ainda que cometido por relevante valor moral, não poderá ser aplicada, em hipótese

alguma, a diminuição da pena.

Outra corrente, que admite a possibilidade do concurso de qualificadora

objetiva e circunstância privilegiadora, considera, entretanto, que esta é preponderante,

isto é, afasta a incidência daquela, por força do que dispõe o art. 67 do Código Penal.

Para essa corrente, ainda que cometido à traição, o homicídio cometido por relevante

valor social será tão-somente privilegiado, diminuída a pena de seis a vinte anos à razão

de um a dois terços.

As duas correntes não são aceitáveis. A ordem de colocação topográfica das

circunstâncias, privilegiadoras e qualificadoras, no interior do art. 121 não significa que

as primeiras destinam-se a regular apenas o preceito incriminador do caput. Ambos os

parágrafos dizem respeito ao tipo básico, fundamental. As qualificadoras não

constituem tipos autônomos, nem circunstâncias elementares de um novo tipo de

homicídio. Se o legislador entendeu de, para as primeiras, determinar a redução da

pena, e, quanto às segundas, de cominar pena abstrata autônoma, nem por isso se pode

concluir que teve a lei a vontade de impedir sua harmonia. Esta deve ser buscada com

base na razão de ser do art. 121 em sua totalidade, em seus fins. Direito é, acima de

tudo, bom-senso e coerência.

A individualização da pena, garantia constitucional inarredável, busca o

encontro da pena justa, e esta deve ser conhecida com base na consideração de todas as

circunstâncias que envolvem o fato. Todas elas: as elementares do tipo, as judiciais, as

privilegiadoras e as qualificadoras, as agravantes e as atenuantes.

Assim, toda e qualquer circunstância que estiver presente num fato, que nele se

intrincar, seja ela própria do agente, seja do crime em si, deve ser considerada pelo

julgador. E só não o será por força de um mandamento legal expresso, como é o caso da

preponderância das atenuantes de caráter pessoal sobre as agravantes. Existe aí norma

nesse sentido, a do art. 67 do Código Penal.

A segunda corrente, muito embora invoque a mesma norma do art. 67 para

ditar que as circunstâncias subjetivas devem preponderar sobre as objetivas, esquece-se

de que referida norma diz respeito apenas às circunstâncias atenuantes e agravantes,

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38 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

não aos casos de aumento de pena e circunstâncias qualificadoras.

É certo que se pode admitir interpretação extensiva de norma penal explicativa

ou da que, de qualquer modo, beneficiar o réu; todavia, isso só deve ser possível

quando a interpretação chegar a um resultado harmônico no seio do sistema. Penso

que o resultado concreto de uma interpretação nesse sentido não realiza os fins da lei,

que é o do encontro da pena mais justa para o caso real. O que se busca, sempre, é a

solução mais justa, e ela não está em nenhuma das duas correntes.

O que não se admite, porém, é a convivência de circunstâncias que se excluem,

por absoluta incompatibilidade lógico-jurídica.

Assim, não é possível um homicídio por motivo fútil ser cometido por motivo de

relevante valor moral ou social. Não é possível ser ao mesmo tempo insignificante e

relevante. Mas, viu-se, é possível um homicídio mediante paga ser cometido por motivo

de relevante valor moral, em situação excepcionalíssima. Normalmente, entretanto, o

que repugna não pode ser importante do ponto de vista dos valores sociais.

Por isso a razão está com os adeptos da terceira corrente, ao admitirem a

possibilidade de um homicídio ser privilegiado e qualificado a um só tempo. Não é,

todavia, possível em qualquer situação. É incomportável, em regra, a convivência das

qualificadoras de natureza subjetiva com as privilegiadoras, todas de natureza pessoal.

Todavia, é possível um homicídio qualificado por uma circunstância objetiva ser, a um

só tempo, também privilegiado.

Assim, é possível matar alguém à traição, de emboscada, mediante

dissimulação, com a utilização de veneno, fogo, asfixia, tortura, meio insidioso ou cruel,

por motivo de relevante valor moral ou social.

Claro que não é possível matar alguém, de emboscada, à traição ou mediante

dissimulação, estando o sujeito ativo sob o domínio de violenta emoção, logo após

injusta provocação da vítima, porque a reação do agente deve ser imediata à

provocação, e essas qualificadoras exigem que o sujeito encontre a vítima desavisada ou

despreocupada. No entanto, esse privilégio pode conviver harmonicamente com a

utilização de meio cruel, ou da asfixia.

Em síntese, quando for possível a convivência coerente, lógica e harmônica

entre circunstâncias privilegiadoras e as qualificadoras – o que se dá com quase todas

qualificadoras objetivas –, o homicídio será qualificado-privilegiado.

O homicídio qualificado é considerado hediondo. O homicídio privilegiado não

o é, porquanto o art. 1º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 8.930/94,

a ele não se referiu. Nem podia porque, apesar de não existir um conceito legal de

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Homicídio - 39

hediondez, não se pode imaginar que um homicídio cometido por motivo de relevante

valor moral seja equiparado aos crimes de maior gravidade, como o são todos os

rotulados de hediondos. A relevância moral ou social e o estado emocional decorrente

de uma provocação injusta da vítima não se compatibilizam com a hediondez.

E o homicídio qualificado-privilegiado? Pelas mesmas razões que um homicídio

privilegiado não pode ser tido como hediondo, também não o pode o homicídio

qualificado-privilegiado. Primeiro porque a lei expressamente não o incluiu no rol dos

hediondos. Segundo porque a circunstância privilegiadora afasta a qualificação de

hediondez, que só pode ser vista nos crimes repugnantes, abjetos, que exigem grande

reprovabilidade penal.

1.2.5 Causa especial de aumento de pena

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) deu

nova redação ao § 4º do art. 121, para acrescentar uma causa de aumento de pena:

“Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado

contra pessoa menor de 14 (quatorze anos).” A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de

2003, deu nova redação: “Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um

terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60

(sessenta) anos.”

O aumento incidirá em todos os casos de homicídio doloso, simples, privilegiado,

qualificado ou qualificado-privilegiado, afastando, é lógico, a agravante genérica do art.

61, II, h, do Código Penal, aplicável a todos os demais crimes cometidos contra criança

e idosos. Claro, pois a mesma circunstância não poderia ser considerada duas vezes,

num bis in idem inaceitável.

A razão de ser dessa circunstância majorante da pena é a maior reprovabilidade da

conduta praticada contra o menor de 14 anos e o maior de 60 anos, os quais, por suas

características pessoais, têm menor capacidade de defender-se. Protege-se, assim, de

modo mais severo, a vida humana ainda distante do pleno estágio de desenvolvimento

físico e mental e aquela mais próxima do seu fim.

É unânime o pensamento da doutrina mais consistente de que a idade da vítima

deve entrar na esfera da consciência do agente, isto é, deve ser abrangida pelo dolo. Se

o agente não sabia, nem podia saber, que a vítima tinha menos de 14 ou mais de 60

anos, o aumento não incidirá, por erro de tipo inevitável.

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40 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.6 Homicídio e nexo de causalidade

Não basta a existência de uma conduta dolosa e um resultado morte. Entre ambos

deve haver nexo de causalidade. É a relação de causa e efeito indispensável para atribuir, ao

agente da conduta, a responsabilidade pela causação da morte da vítima.

O Código Penal brasileiro adotou, no art. 13, a teoria da equivalência das condições –

conditio sine qua non – para resolver o problema do nexo causal, restringindo-a com a

norma do § 1º, que manda excluir a imputação do resultado quando uma causa

superveniente relativamente independente tiver, por si só, produzido o resultado.

Causa é aquilo de que uma coisa depende para existir, é o que determina a

existência da coisa. Todos os antecedentes causais – a condição: que permite a uma

causa produzir seu efeito, seja como instrumento ou meio, seja afastando obstáculos à

produção do resultado; a ocasião: uma circunstância acidental que cria condições que

favorecem a produção do resultado; a concausa: a confluência ou concorrência de mais

de uma causa na produção do mesmo resultado – são equivalentes, todavia, o julgador

deve partir da conduta do agente, desconsiderando todos os antecedentes desta, que

não guardam qualquer relação com o resultado. O marco inicial é a conduta

examinada. Tudo que a antecede, não importa. Não fora assim, a imputação do

resultado alcançaria até mesmo o vendedor e o fabricante da arma utilizada no

homicídio.

São considerados, portanto, apenas os antecedentes causais contemporâneos e

subseqüentes à conduta objeto da averiguação feita pelo intérprete.

Na determinação da relação de causalidade entre conduta e resultado, devem-se

utilizar dois raciocínios. O primeiro é o procedimento hipotético de eliminação, de

Thyrén, segundo o qual se deve examinar a série causal excluindo, mentalmente, a

conduta do agente e verificar o que acontece. Se o resultado, apesar da supressão da

conduta, ainda assim acontecer, da forma como ocorreu, a conclusão é a de que a

conduta não é a causa do resultado.

Em outras palavras, se, diante de um fato concreto, o intérprete excluir a ação do

agente disparando os tiros em direção à vítima e, mesmo assim, concluir que a morte

desta ainda assim ocorreria, como ocorreu, deve concluir que a ação do sujeito ativo

não foi a causa da morte, porque ela, mesmo com a consideração de que o agente não

tivesse disparado seu revólver, ainda assim teria acontecido.

Se, pelo mesmo exercício de abstração mental realizado, o intérprete, excluindo a

ação do agente, verificar que a morte da vítima não teria ocorrido, concluirá que a

morte só ocorreu em razão dos disparos efetuados. Logo, a conduta terá sido,

Page 41: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 41

necessariamente, a causa da morte, que, portanto, será imputada ao agente.

Imagine-se um fato com a seguinte série causal: Álvaro dispara um tiro de revólver

contra a pessoa de Alfredo, atingindo seu tórax. Seguem-se: socorro a Alfredo numa

ambulância, onde desmaia; instalação de um processo hemorrágico; perda de sangue;

chegada ao hospital; internação; submissão à cirurgia para retirada do projétil instalado no

pulmão e combate ao processo infeccioso decorrente dos vários ferimentos produzidos pela

trajetória do projétil; morte da vítima, atestada como pneumonia bilateral, de estase

severa, secundária a ferimento por projétil de arma de fogo.

Pelo procedimento hipotético de eliminação, excluído, mentalmente, da série

causal, o disparo da arma de fogo, concluirá o intérprete que a morte da vítima não

ocorreria. A conclusão a que deve chegar é a de que a conduta do agente, disparando

sua arma, foi a causa da morte da vítima.

Outra série causal: Marcos dispara uma arma de fogo contra Antonio, que

sobrevive. Paulo, seu desafeto, sem saber da conduta de Marcos, entra no local onde o

ferido se encontrava e efetua um disparo contra sua cabeça, vindo Antonio a morrer,

imediatamente. Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Marcos, chegará o

intérprete à conclusão de que, mesmo assim, o resultado morte teria ocorrido, daí que

não pode ser imputado à conduta de Marcos, mas sim à de Paulo.

A limitação imposta pelo legislador à teoria da equivalência das condições – a

superveniência de causa relativamente independente, que por si só produz o resultado

– vai resolver outras situações em que, por imposição de absoluta justiça, o agente da

conduta não responderá pelo resultado.

Veja-se o exemplo: Fausto dispara um tiro de revólver contra Augusto,

produzindo-lhe lesões abdominais graves, com comprometimento dos intestinos,

estômago e pulmões e infecção que começa a generalizar-se. Mesmo assim, a vítima

não morre imediatamente. É socorrida e transportada para um hospital onde,

internada, é vítima de queimaduras e envenenamento, provocados por um incêndio,

criminoso ou acidental, falecendo em decorrência de intoxicação causada pela inalação

de gases produzidos pela queima de materiais utilizados na construção do prédio do

hospital.

Eliminando-se, mentalmente, a conduta de Fausto, o resultado morte não

ocorreria, uma vez que não fosse o ferimento provocado, Augusto não teria sido

transportado ao hospital, nem internado. Logo, não estaria no nosocômio quando da

irrupção do incêndio. Não haveria a morte pela intoxicação. A conclusão, portanto,

seria a de que Fausto deve responder pela morte.

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42 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Se é certo que Fausto desejava, pretendia, queria matar, tanto que disparou a arma

contra Augusto, não menos certo é que, efetivamente, realmente, não conseguiu matá-

lo. Não foi, realmente, o ferimento causado por Fausto que produziu a morte da vítima.

Dir-se-á que, de qualquer modo, a vítima morreria, uma vez que os ferimentos e as

lesões deles decorrentes eram, mesmo, de molde a produzir a morte. Ainda que se

concordasse com essa afirmação, é de ver que, todavia, antes que tal ocorresse, outra

causa interveio no processo causal e produziu a morte.

Augusto morreria de qualquer modo?

Não se sabe, com absoluta certeza, e nunca se saberia. Nenhuma ciência, nenhum

equipamento, nenhuma máquina, nem tampouco um humano podem afirmar, com

total e absoluta certeza, que a morte ocorreria de qualquer modo. Só Deus poderia

afirmá-la, mas ele não é operador do Direito dos homens.

Impossível tal certeza por uma razão muito simples: antes do processo causal

inaugurado pela conduta de Fausto ter sua continuidade e conclusão, culminando com

a morte de Augusto, outra causa, autônoma, com potencialidade própria, com eficiência

independente, determinou a produção da morte, modificando o primeiro processo

causal inaugurado pela conduta delituosa. A nova causa alterou o primeiro processo

causal que, tudo indica, levaria ao evento letal, e instalou um novo processo causal que

levou à morte, impedindo o primeiro processo de concluir-se. De modo que ficou

impossível afirmar que o primeiro processo chegaria a seu termo com resultado

idêntico.

Houve uma alteração no curso do processo causal originalmente desencadeado,

por outro processo causal que foi o produzido a partir do incêndio: chamas, labaredas,

energia térmica excessiva, produção de gases tóxicos, asfixia e queimaduras, o qual, por

si só, deu causa ao evento morte.

Esta aconteceu de modo e com características completamente diferentes das que

existiriam se não fosse a causa superveniente, o incêndio. Não fosse este, a vítima

jamais morreria intoxicada ou asfixiada, ou em razão de queimaduras, mas sim em

decorrência do processo infeccioso instalado mediante as lesões nos intestinos,

estômago e pulmões, ou de uma das suas possíveis conseqüências. Em outras palavras,

a vítima acabou morrendo diferentemente do que teria morrido, se não fosse essa nova

causa.

Em hipóteses como essa, incide a norma do § 1º do art. 13 do Código Penal:

“A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação

quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto,

Page 43: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 43

imputam-se a quem os praticou.”

Assim, realizada uma conduta, inaugurada e desencadeada uma série causal,

pode ocorrer de uma causa superveniente interpor-se no curso daquela série,

conformando um novo caminho causal, um novo percurso, com outras características,

decorrentes de sua própria eficiência e determinando o resultado morte. Nessa

hipótese, ao agente da conduta não poderá ser atribuída a morte da vítima. É que não

foi ela sua causa, posto que outra, mais eficaz ou eficaz de modo mais rápido, ou eficaz

simplesmente, produziu a morte antes da outra. Antecipou-se a ela. E, por isso, a essa

causa superveniente e a seu produtor é que a morte deve ser atribuída. Não ao agente da

conduta, ainda quando seu dolo tenha sido o de matar, pois o crime não é só o dolo, não

é só a intenção, mas esta, exteriorizada e acompanhada, necessariamente, do nexo de

causa e efeito com o resultado produzido.

Dúvidas não há, portanto, de que a causa superveniente relativamente

independente que por si só tiver produzido o resultado excluirá a imputação deste ao

agente da conduta.

Debatem doutrinadores acerca das causas concomitantes e preexistentes, que

também sejam relativamente independentes da conduta do sujeito ativo do crime e que

tiverem, por si sós, produzido o resultado. Nessas situações, a quem deverá ser

atribuído o resultado? Ao agente ou ao responsável, se houver, pela causa concomitante

ou preexistente? Exemplos de causas chamadas preexistentes: a condição de hemofílico

ou de fragilizado fisicamente da vítima, que, após a conduta do agente, com esta

interage dando causa, por si só, ao resultado morte. Exemplo de causa concomitante: o

infarto sofrido pela vítima no momento dos disparos praticados pelo agente, levando à

morte, por si só.

Ao ver da Doutrina, são causas que já tinham existência, anterior ou

simultaneamente, à conduta, e, mesmo que tenham, por si sós, produzido o resultado,

não afastam sua imputação ao agente, porque a norma assim não o quis.

O Código foi expresso e claro. Apenas as causas supervenientes, relativamente

independentes da conduta do agente, podem excluir a imputação do resultado ao

sujeito ativo do crime. Silenciou quanto às que a Doutrina denomina causas

preexistentes e concomitantes. Se a elas não se referiu, dizem, é porque não quis excluir a

imputação do resultado ao agente. Ou a omissão legal não teria essa significação? Seria

possível interpretação extensiva ou uso da analogia, para abarcar também essas

hipóteses?

O problema, penso, deve ser resolvido tendo em conta os fins da norma.

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44 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A razão de ser do § 1º do art. 13 do Código Penal é limitar a aplicação da teoria

da equivalência das condições. É buscar a solução mais precisa possível para a

problemática da imputação do resultado. O objetivo é atribuí-lo exclusivamente a quem

lhe deu causa.

Se a morte decorreu de outra causa, preponderante, mais forte, decisiva, o

agente por ela não deve responder. Por isso, a expressão clara contida no preceito: por

si só. Não é, portanto, qualquer causa superveniente que exclui a imputação do

resultado ao agente da conduta, mas apenas aquela que por si só tenha produzido-o.

Por si só, quer dizer aquela que, por suas próprias potencialidades, por sua própria

capacidade destrutiva, por sua própria natureza, por seu próprio poder, físico, químico,

biológico, seja determinante do resultado morte.

Tanto que, analisando-se o preceito do § 1º desse art. 13, verifica-se que seu

âmago, sua essência, sua substância está não somente na superveniência da causa, mas

também em sua potencialidade lesiva, o que revela que a intenção da lei é a de

considerar excludente da imputação do resultado aquela causa que, por sua essência,

seja capaz de, sozinha, produzir o resultado morte. E assim o quis porque, diante de

duas causas concorrentes, que se interligam, interagem, ou concausas, uma delas a

conduta do agente, a outra de outra origem, sendo uma delas preponderante, a esta

será atribuído o resultado morte.

Quando a causa superveniente não for capaz de por si só produzir o resultado,

este será atribuído ao agente da conduta. E isso ocorrerá porque a conduta foi,

efetivamente, a causa determinante, a preponderante, a mais eficaz, a mais eficiente,

para a produção do resultado.

Por ter-se referido a essa outra causa preponderante, autônoma e capaz, de per

si, de produzir o resultado, a norma utilizou a expressão superveniente não com o fito

de exigir que, necessariamente, ela se originasse, no tempo, na posição de

posterioridade. A superveniência diz respeito a sua materialização ou concretização,

mas não quer dizer que sua origem tenha que ser, necessariamente, posterior à

conduta.

Volte-se ao exemplo da irrupção do incêndio no hospital para onde foi levada a

vítima dos disparos. Imagine-se que ela, ferida às 11:50 horas, ingresse no hospital às

12:00 horas, e que o incêndio tenha principiado, sem que ninguém o percebesse, às

11:49 horas. Ninguém discorda de que a morte da vítima pela intoxicação pelos gases

expelidos ou por queimaduras é uma causa superveniente relativamente independente

que, por si só, produziu o resultado. Pois bem, mas essa causa ocorreu antes da conduta

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Homicídio - 45

do agente. Ela, a causa, não é superveniente; sua atuação, contudo, o é. Ela não é

originariamente superveniente, mas atuou supervenientemente. Não nasceu depois, mas

atuou a posteriori.

Assim, é de todo claro que a vontade da norma é abarcar toda causa que, por si

só, seja capaz de produzir o resultado, e que tenha atuado ou interagido após a conduta

do agente. Sua manifestação, sua concretização, sua ação lesiva devem,

necessariamente, interferir no processo causal inaugurado pela conduta do agente. Por

isso que deve ser superveniente. Não deve, necessariamente, ter surgido, sido criada,

produzida depois da conduta, mas sim produzido seus efeitos após a conduta do agente.

Assim, a anterior particular condição física da vítima, sua debilidade, a hemofilia,

embora preexistentes, só interferem após o ferimento causado pelo agente. Estão, antes

da conduta, adormecidas, sem produzir qualquer efeito, mas atuam depois. Logo, são

supervenientes enquanto causa do resultado, ainda que sejam preexistentes enquanto

condição ou estado particular. No entanto, condição e estado são, por si sós, incapazes

de produzir qualquer efeito danoso.

Assim, a meu ver, não importa o momento em que se originou a causa

superveniente relativamente independente. Importa quando ela começou a produzir

efeitos. Mesmo quando as condições que ela possui para atuar no mundo físico sejam

preexistentes ou concomitantes, o que interessa é o momento em que ela passa a

interagir com a conduta do agente. Se essa interação tiver início após a conduta do

agente, ela será superveniente enquanto causa da morte. Ainda que sua potencialidade

letal preexista, ou seja contemporânea à conduta do agente, o que interessa é o

momento em que ela atua, vive no mundo físico enquanto ente concreto causador de

uma lesão.

Daí que não se trata de interpretar extensiva ou analogicamente a expressão

superveniência. É preciso apenas compreender, exatamente, o significado dessa

expressão. Causa superveniente não é a que nasce após a conduta, mas a que atua após

a conduta, independentemente do momento em que tenha surgido no mundo. A norma

assim é clara e precisa, e sua interpretação há de ser meramente declaratória, não

exigindo qualquer fórmula ampliativa.

Se o agente, todavia, tinha conhecimento da condição de hemofílico da vítima,

de seu estado débil, ou da cardiopatia que portava, a solução há de ser outra, porque aí

estava ele em condições de prever a interação entre essas concausas e sua conduta,

abrangida, portanto, pelo dolo. Nessa hipótese, o resultado morte a ele será imputado.

Em conclusão, toda e qualquer causa que, independentemente do momento de

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46 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

sua criação, atuar, todavia, após a conduta do agente e, mais importante, tiver por si só

produzido o resultado, excluirá a imputação deste ao agente da conduta.

Nesse caso, o agente responderá apenas pelos atos praticados. Se queria matar,

responderá por tentativa de homicídio. Se seu desejo era apenas o de ferir, responderá

pelo crime de lesão corporal.

1.2.7 Tentativa de homicídio

1.2.7.1 Conceito e elementos

Há crime consumado se nele se reúnem todos os elementos do tipo. Há crime

tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade

do agente. É a norma do art. 14 do Código Penal: “Diz-se o crime: I – consumado, quando

nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; II – tentado, quando, iniciada a

execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”

No homicídio consumado, os elementos são: a execução do procedimento típico,

o dolo de matar, o resultado morte e o nexo de causalidade. Iniciada, todavia, sua

execução, não vindo ele consumar-se, com a morte da vítima, por circunstâncias alheias à

vontade do agente, há tentativa de homicídio.

Sem dolo de matar, não se pode falar em tentativa de homicídio. O agente deve

ter a vontade de causar a morte, ou pelo menos aceitá-la como resultado provável

previsto.

Somente a vontade de matar também não é suficiente para configurar a

tentativa de homicídio. É indispensável que o sujeito tenha dado início ao processo de

execução. Deve iniciar o ataque ao bem jurídico: vida.

Os atos preparatórios para o homicídio, como a aquisição da arma, do veneno,

ou da corda com que pretende enforcar a vítima, a procura pelo desafeto, a emboscada,

esperando a sua passagem, não constituem, ainda, o início da execução, por isso que só

serão puníveis se, por si sós, constituírem outro crime, como é o caso do porte ilegal de

arma.

Para haver tentativa, é indispensável que o agente realize algum ato executório.

Haverá início de execução quando o comportamento do agente começa a realizar o tipo.

Apontar a arma de fogo na direção da vítima pode já constituir o primeiro ato de

execução. Assim também quando aponta e dispara a arma, inicia o desferimento do

golpe de faca, dissolve o veneno no copo que contém água, e o entrega à vítima, quando

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Homicídio - 47

a empurra no precipício ou no rio onde quer que ela se afogue, enlaça seu pescoço

visando estrangulá-la ou a conduz para o ambiente fechado onde pretende que ela

morra confinada.

Há, portanto, tentativa de homicídio quando, atuando o sujeito com dolo de

matar, direto ou eventual, e iniciada a execução, não sobrevém a morte da vítima por

uma circunstância alheia à vontade do agente.

A não-consumação do homicídio pode decorrer da interrupção do processo

executório ou, ainda quando este se conclui, de outra causa.

Tentativa de homicídio por interrupção do processo de execução: Flávio aponta

sua arma contra Artur e, no momento exato em que vai atirar, tem seu braço desviado

por um empurrão dado por Carlos, indo o projétil desviar-se e atingir o tronco da árvore

sob a qual a vítima dormia. O processo de execução foi interrompido.

Outro exemplo: o agente dispara o primeiro tiro contra a vítima atingindo-lhe o

braço e, como seu intento era matá-la, vai disparar o segundo tiro, postando-se mais

próximo dela, quando chega a Polícia e o prende. Novamente, vê-se que o processo de

execução, iniciado, foi interrompido por força externa, uma circunstância que se situa

fora da vontade do agente. Essa é a chamada tentativa imperfeita.

Tentativa de homicídio com a conclusão do processo de execução: Mário

dispara cinco tiros de revólver contra Germano, causando-lhe diversos ferimentos, e

foge. Germano é socorrido com vida, levado ao hospital, onde, submetido a diversas

intervenções médicas, restabelece-se completamente. Aqui a execução se concluiu, mas

o resultado não ocorreu graças à atuação pronta de outra pessoa e o socorro médico

preciso. Essa é uma circunstância alheia à vontade do agente impeditiva da

consumação do homicídio. É a chamada tentativa perfeita ou crime-falho.

Questão interessante: seria possível uma tentativa de homicídio comissivo por

omissão?

O homicídio doloso comissivo por omissão ocorre quando um garante – o que

tem o dever de agir para impedir o resultado, conforme o § 1º do art. 13 do Código

Penal –, podendo agir, omite-se, dolosamente, com vistas na produção do resultado ou,

se não o desejar, aceitando-o se ele eventualmente acontecer.

A tentativa é possível, sim, embora muito raramente se possa verificá-la na vida

real. Veja-se o exemplo. Antonio, pai de José, de onze anos de idade, à beira da piscina

de sua residência, vê seu filho, que não sabe nadar, afogando-se. Ao perceber a

situação, decide omitir-se porque, se seu filho morrer, será seu único e legítimo

herdeiro, acrescendo ao próprio patrimônio, com a sucessão causa mortis, todos os

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48 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

bens que o infante adquirira por sucessão de sua mãe, recentemente também falecida.

Omite-se, portanto, inequivocamente com dolo de matar. Está, assim, na iminência de

consumação um homicídio doloso, comissivo por omissão, pois, exímio nadador, em

seu perfeito juízo, com plena consciência e vontade, decide ficar inerte. No exato

momento em que José está quase se afogando, chegando a engolir água, Edson chega

no local e atira-se, incontinenti, na piscina e retira-o da piscina, impedindo seu

afogamento e sua morte. Inequivocamente, houve tentativa de homicídio comissivo por

omissão.

Houve dolo, início de execução – no caso, por omissão, na medida em que,

vendo o início do afogamento, inexistiu qualquer conduta positiva visando impedir o

resultado e, por último, não-consumação por circunstância alheia à vontade do

omitente.

A tentativa, por tudo que se viu, é possível em relação a quaisquer crimes

dolosos, comissivos ou omissivos impróprios.

1.2.7.2 Punibilidade da tentativa

A tentativa, em regra, não é um crime autônomo. Logo, não existe o crime de

tentativa de homicídio, mas a tentativa de crime de homicídio. A pena cominada é

dependente da pena para o crime consumado, conforme estabelece o parágrafo único

do art. 14 do Código Penal, diminuída de um a dois terços.

A redução da pena é obrigatória, não mera faculdade do juiz presidente do

Tribunal do Júri. O quantum da redução deve ser obtido com base na consideração

objetiva do fato ocorrido como um todo. O iter criminis percorrido e a maior ou menor

gravidade das lesões devem ser apreciados pelo juiz, a fim de definir a quantidade de

diminuição que aplicará.

Tratando-se de tentativa perfeita, em que o iter criminis é percorrido quase

integralmente, aproximando-se muito de sua consumação, a redução deve aproximar-

se do mínimo. Na tentativa branca, em que a vítima é sequer lesionada – quando, por

exemplo, por falha de pontaria, não é atingida pelo disparo –, é razoável que a

diminuição seja na quantidade máxima.

1.2.7.3 Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Podem acontecer duas situações em que, agindo dolosamente, e iniciado o

processo executório, o próprio agente atua no sentido de obter a não-consumação do

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Homicídio - 49

homicídio. No curso do processo de execução, o próprio agente pode desistir de

continuá-lo, interrompendo-o, ele mesmo, voluntariamente.

Ou então, após ter concluído a execução, o próprio agente, também

voluntariamente, age com vistas a impedir que o resultado aconteça.

Na primeira hipótese, haverá desistência voluntária; na segunda,

arrependimento eficaz.

Há desistência voluntária quando o agente, após disparar o primeiro tiro que

acerta a perna da vítima, estando com a arma municiada e em plenas condições de

continuar disparando contra ela, que se encontra caída, desiste de dar o segundo tiro e

resolve deixá-la ali, tomando outro rumo.

Há arrependimento eficaz quando, após disparar os tiros contra a vítima, o

agente, voluntariamente, adota medidas com vistas na prestação de socorro,

conduzindo-a para um hospital, onde ela se recupera. Se o agente se arrepende, mas,

por azar ou qualquer outra razão, não conseguir impedir a ocorrência da morte, seu

arrependimento será ineficaz, subsistindo, por isso, a tentativa de homicídio. Claro que

sua atitude positiva, louvável, generosa, em relação ao bem jurídico que, inicialmente,

queria destruir, será levada em conta pelo juiz, no momento da aplicação da pena,

como uma circunstância judicial favorável.

Importante dizer que tanto numa quanto na outra situação o agente deve atuar

voluntariamente, movido exclusivamente por sua vontade. Se a desistência de efetuar o

segundo tiro se der pela chegada da polícia, ou se o agente conduzir a vítima ao hospital

sob ameaça de outras pessoas, haverá tentativa de homicídio, pois a não-consumação,

nesses casos, terá decorrido de circunstâncias alheias à vontade do agente.

Havendo desistência voluntária ou arrependimento eficaz, diz o art. 15 do

Código Penal, o agente não responderá pela tentativa de homicídio, mas apenas pelos

atos que tiver praticado. Nos dois exemplos dados, responderá pela lesão corporal que

tiver causado na vítima.

Acerca da natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento

eficaz, discordam nossos dois maiores penalistas modernos. Para ALBERTO SILVA

FRANCO, são causas de exclusão da punibilidade, ditadas por razões de política

criminal. Um prêmio ao agente que desistiu do homicídio ou que impediu a morte14.

DAMÁSIO E. DE JESUS pensa, de acordo com JOSÉ FREDERICO MARQUES, que são

14 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 164.

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50 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

causas de exclusão da tipicidade15, posição com a qual concordo.

Nos crimes de resultado, os fatos tornam-se típicos pela conduta e pelo

resultado, e pelo nexo causal. Se o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do

agente, a conotação típica se altera, deixando de ser homicídio para configurar uma

tentativa de homicídio.

Ora, se quando o resultado não ocorre por razões alheias à vontade do agente, a

tipicidade se altera, com muito mais razão ela se alterará quando o resultado não

acontecer porque o próprio agente alterou sua conduta, com a mudança de sua

intenção, de sua vontade.

Num primeiro momento, ele queria alcançar o resultado, mas, depois, ele

mesmo quer, e consegue impedir que ele aconteça. O dolo de matar, inicialmente vivo

na cabeça do agente, dá lugar, por sua própria decisão, a outro dolo, o de salvar o bem

jurídico, deixando de prosseguir na execução, ou impedindo a produção do resultado.

Houve, inicialmente, uma conduta dolosa de matar, portanto típica de homicídio.

Depois, por decisão do próprio agente, o dolo cedeu lugar para outra finalidade,

positiva, louvável, lícita, protetora do bem jurídico.

É evidente que a tipicidade alterou-se substancialmente. Pode remanescer,

portanto, outra tipicidade – a dos atos praticados –, não a da tentativa.

1.2.7.4 Homicídio impossível

O chamado crime impossível, ou tentativa inidônea, ou ainda tentativa

inadequada, está assim definido no art. 17 do Código Penal: “Não se pune a tentativa

quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é

impossível consumar-se o crime.”

Mesmo agindo com dolo de matar, o agente utiliza meio executório

absolutamente ineficaz. Um meio sem qualquer idoneidade para resultar na morte da

vítima. Quer matar alguém, mas utiliza uma arma descarregada. Pretende envenenar a

vítima, mas, em vez de ministrar-lhe algum veneno, dá-lhe uma substância inócua. Nos

dois casos, morte alguma haverá. Impossível.

Noutras situações, mesmo utilizando meios eficazes, o agente atua sobre um

objeto impróprio. Atira na vítima que imaginava dormindo, quando já estava morta.

Não há alguém. Impossível matar um não-alguém.

15 Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 342.

Page 51: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 51

O meio deve ser absolutamente ineficaz. Se for apenas relativamente ineficiente,

como a utilização de arma que vem a falhar, subsiste a tentativa. Nesse caso, assim

como a arma falhou, poderia não ter falhado. A ineficiência não é absoluta.

É que, em qualquer situação, o Direito somente se importa com condutas que

tenham pelo menos o potencial de lesionar ou expor a perigo um bem jurídico. Ao

utilizar-se de meio sem qualquer eficácia, ou atuar sobre um objeto totalmente

impróprio, a conduta, ainda que dolosa, mesmo que intensamente cruel, não era idônea

para sequer expor a perigo o bem jurídico. Segundo o princípio da lesividade, o Direito

Penal somente se ocupa de condutas que tenham idoneidade para lesionar ou expor a

perigo um bem jurídico.

1.2.7.5 Resumo

Em síntese: iniciada a execução dolosa do homicídio, pode suceder que:

a) a execução não se completa por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Há tentativa de homicídio. É a chamada tentativa imperfeita;

b) a execução se completa, mas, ainda assim, o resultado morte não ocorre por

circunstâncias alheias à vontade do agente. Há tentativa de homicídio.

Tentativa perfeita ou crime falho;

c) a execução não se completa por vontade do próprio agente, que interrompe,

voluntariamente, o processo executório. Não há tentativa de homicídio, mas

desistência voluntária;

d) a execução se completa, mas o resultado não acontece por ação do próprio

agente. Não há tentativa de homicídio, mas arrependimento eficaz;

e) a consumação é impossível por ter o agente utilizado um meio absolutamente

ineficaz ou atuado sobre um objeto absolutamente impróprio. Há crime

impossível ou tentativa inidônea, impunível.

1.2.8 Concurso de pessoas

Quando duas ou mais pessoas realizam, simultaneamente, um mesmo

procedimento típico de homicídio, isto é, quando elas executam, diretamente, a morte

da vítima, a tipicidade do fato é verificável por ajustamento direto ao tipo. Dois

homens, ao mesmo tempo, ou um logo após o outro, disparam cada qual sua arma

contra outrem. Ambos, dolosamente, atuaram no sentido da obtenção da morte da

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52 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

vítima. Ambos realizaram a conduta típica do art. 121 do Código Penal.

Nem sempre a concorrência de vontades e condutas para a realização de um

homicídio se dá dessa forma direta, clara, precisa, com mais de um sujeito realizando as

formas de execução da morte de outra pessoa. Muitas vezes, a vontade de determinada

pessoa dirige-se para a determinação, a outrem, da execução do crime; noutras, apenas

para contribuir para sua execução. Todas as pessoas que contribuírem, concorrerem,

enfim, para a prática do homicídio, por ele devem responder.

O Código Penal adotou, em seu art. 29, a seguinte norma geral, para alcançar as

condutas daqueles que tiverem concorrido para a realização de um crime: “Quem, de

qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida

de sua culpabilidade.” Como visto, não definiu, com precisão, o conceito de autor ou

co-autor do crime, deixando para a doutrina a tarefa de esclarecê-lo.

1.2.8.1 Autoria no homicídio

Várias teorias foram formuladas a respeito da matéria, mas a lei brasileira não

se comprometeu, expressamente, com nenhuma delas. Segundo ALBERTO SILVA

FRANCO,

“no entanto, na medida em que introduziu o dolo na ação típica final, como se

pode depreender da conceituação de erro sobre o tipo, na medida em que

aceitou o erro de proibição e, finalmente, na medida em que abandonou o

rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas,

reconhecendo que o agente responde pelo concurso na medida de sua

culpabilidade, deixou entrever sua acolhida às mais relevantes teses finalistas,

o que leva à conclusão de que abraçou também a teoria do domínio do fato”16.

E o que diz a teoria do domínio do fato? Autor de um crime é quem possui o

domínio final da ação, podendo decidir sobre a consumação do procedimento típico. A

determinação da autoria está vinculada ao tipo legal de crime, mas depende da

presença do elemento subjetivo, que é a vontade comandando o rumo do fato.

Aquele que tiver o poder de decidir sobre continuar ou interromper o

procedimento típico, que puder decidir sobre consumá-lo, arrepender-se ou desistir de

prosseguir na execução, ou continuar, este é autor do crime. Ainda que não venha

16 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 483.

Page 53: VOLUME 02 - 1_Part1

Homicídio - 53

realizar qualquer parte do procedimento típico, poderá ser o autor, desde que tiver

previamente determinado a outros que o realizassem. Mesmo não executando, nem

parcialmente, qualquer ação típica, mas se a tiver planejado, organizado, dela será

autor. Sim, porque assim agindo, terá dado início à realização intelectual do

procedimento típico e, por essa razão, insere sua conduta na realização da conduta

ajustada ao tipo. Esse é o autor intelectual.

Todo aquele que realiza o tipo de homicídio diretamente, disparando o revólver,

golpeando com a faca, ministrando o veneno, empurrando a vítima no rio para que

morra afogada, enfim, todo o que executar, diretamente, qualquer ação material com

vistas na produção do resultado morte é autor do homicídio. Porque tem poder,

domínio, sobre a ação final. Porque pode interromper o processo executório, decidindo

sobre a consumação. É o que pode desistir. Esse é chamado autor executor. É,

portanto, aquele que executa, ainda que parcialmente, o procedimento típico.

Pode haver mais de um autor executor. Vladimir e Alfredo seguram a vítima

corpulenta, para que Leônidas nela desfira os golpes de facão. Os dois primeiros

imobilizaram a vítima, impedindo sua possibilidade de defesa para que o terceiro nela

produzisse as lesões letais. Os três são autores executores porque qualquer deles tinha o

poder de decidir, dominavam a ação final.

Se Américo constrange moral e violentamente Maurício – impondo gravíssima

ameaça ao filho deste, seqüestrado e sob a mira de arma de fogo –, exigindo-lhe a

morte de Custódio, é autor mediato do homicídio que Maurício executa contra a pessoa

de Custódio. Américo é autor porque, com a coação moral irresistível imprimida contra

Maurício, obteve e manteve o domínio da ação deste. Teve o poder de decisão. Maurício

é autor executor, porque, caso quisesse, poderia ter desistido da execução, deixando,

entretanto, a vida de seu filho em grave perigo. Será desculpado, é verdade, por

inexigibilidade de conduta diversa, mas é igualmente autor de homicídio ilícito.

O autor mediato é, pois, aquele que, para obter a realização do procedimento

típico, abusa de uma terceira pessoa, imprimindo-lhe uma força, física ou moral, para

alcançar a consumação do homicídio, servindo-se de outrem como instrumento para o

alcance de sua pretensão.

Havendo, no mesmo fato, mais de um autor – executores, intelectuais ou

mediato –, diz-se que houve co-autoria. Todos serão co-autores.

1.2.8.2 Participação em homicídio

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54 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

A pessoa que tiver concorrido para um homicídio sem poder decidir sobre sua

consumação não é autor. Não tendo domínio sobre a ação final, não é autor, porque,

nesse caso, a ação final está sob o domínio de outrem. É tão-somente partícipe do

homicídio. Partícipe é quem contribui, sem realizar diretamente qualquer ato do

processo de execução, para o fato típico que está sob o domínio final de outra pessoa.

A participação é, portanto, acessória. Inexiste sem que haja autoria.

Para haver participação, é essencial que o partícipe tenha atuado com dolo. Com

vontade de colaborar para o homicídio, ou, pelo menos, com a previsão e aceitação da

própria colaboração para com o resultado morte de outrem. Deve, por isso,

necessariamente, ter consciência de que seu comportamento é contributivo para com o

procedimento típico que está sob o domínio do autor, intelectual ou executor.

Imagine-se que Frederico é a única pessoa que sabe do paradeiro de Edgar, um

traficante procurado pela polícia. Se, a pedido de Jorge, que afirma desejar enviar ao

“chefão” um pacote com cocaína, presta a informação do local onde ele está escondido e

Jorge, com a notícia, procura, encontra e mata o traficante, terá Frederico contribuído

para a execução do homicídio?

Claro que não. Ele não tinha consciência de que estava colaborando para um

homicídio logo, dele não teve vontade de participar, por isso que não será partícipe.

São várias as formas de participação em homicídio.

A contribuição pode ser simplesmente moral, sem qualquer ação material

concreta, como, por exemplo, quando alguém induz ou instiga outrem a cometer o

crime. Induzir é fazer nascer, na mente do outro, a idéia criminosa. Instigar é estimular

a idéia já existente.

Certo é, todavia, que o partícipe somente será responsabilizado se o crime

chegar a ser, pelo menos, tentado. Logo, não será punido o que instigou, auxiliou, ou

determinou, se o concorrente nem mesmo iniciou a execução do procedimento típico,

uma vez que o Direito Penal só intervém sobre fatos típicos consumados – realizados

na integridade dos tipos – e também sobre a tentativa de sua realização, que tem como

elemento indispensável o início da execução. É a regra do art. 31 do Código Penal: “O

ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em

contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”

A colaboração material ocorre quando a conduta do partícipe integra, de modo

secundário, sem qualquer poder de decisão, o processo causal. Entregar ou emprestar a

arma para o autor, prestar a informação sobre seu paradeiro desconhecido, conduzir o

executor até o local do crime, acompanhá-lo e permanecer a seu lado no momento da

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Homicídio - 55

execução, seja encorajando-o, seja colaborando para a intimidação da vítima, são

formas de participação material. Sempre é bom lembrar que se o concorrente tiver

algum poder de decisão, mínimo que seja, já não será partícipe, mas co-autor, como já

explicitado.

A participação admite gradação em sua importância causal. Ela pode ter maior ou

menor importância no processo causal. Pode ser mais eficiente ou menos eficiente.

Cumpre, portanto, no caso concreto, analisar o grau da atuação de cada partícipe para

considerá-la de maior ou de menor importância. É o que determina o § 1º do art. 29 do

Código Penal: “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser

diminuída de um sexto a um terço.”

Não há receita milagrosa para o intérprete, como, aliás, não há fórmulas

mágicas no Direito. É preciso considerar o fato em sua totalidade e destacar, nele, o

comportamento do partícipe. Pode-se utilizar aqui o procedimento hipotético de

eliminação de Thyrén, abstraindo, da série causal, a conduta do partícipe e verificando

ao depois como teria decorrido o processo causal dominado pelo autor.

Se com esse raciocínio hipotético a série causal puder prosseguir sem grandes

dificuldades, a participação é de menor importância. Do contrário, se o processo causal

encontrar barreiras mais dificilmente contornáveis, a participação terá sido de maior

importância.

A simples conivência não é participação. Ter conhecimento de que o crime será

praticado ou mesmo presenciá-lo permanecendo inerte, sem nenhuma vontade

exteriorizada de aderir a sua execução ou consumação, não é dele participar. Ainda

quando a pessoa espere que o autor seja bem-sucedido, nem por isso está contribuindo

para o crime. Se, entretanto, o que assiste é um garante, aquele que tem o dever de agir

para impedir o resultado, sua omissão é típica.

A colaboração posterior ao crime não é participação. Encerrado o iter criminis

do homicídio, com a consumação, não há mais falar em participação. Porque, a partir

desse momento, não mais é possível contribuir para o que já se concluiu. A participação

posterior, entretanto, pode constituir crime autônomo, de favorecimento real ou

pessoal, definidos nos arts. 348 e 349 do Código Penal.

Uma questão interessantíssima é a seguinte. Certa pessoa determina, ao

pistoleiro, a morte de um desafeto. Dias depois e antes que o futuro executor cumpra

sua pactuada obrigação de matar, aquele que seria mandante do crime se arrepende e

comunica a suspensão do homicídio contratado, mas o executor resolve desobedecer à

ordem e cumprir a sua parte. Mata a vítima. Aquele é co-autor do homicídio executado?

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56 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Será partícipe?

Penso que não é autor, porque na realidade não teve domínio do fato, na

medida em que não conseguiu decidir sobre sua interrupção, tendo o evento criminoso

decorrido da própria vontade do executor, que o terá tomado para si, por motivação

própria. É, entretanto, partícipe do crime, porque fez nascer, na mente do executor, a

idéia homicida.

1.2.8.3 Cooperação dolosamente diversa

Duas ou mais pessoas podem concorrer para o mesmo crime, com dolos

diversos. Pode haver um homicídio em que um concorrente, o autor intelectual ou um

partícipe, tenha agido com outro dolo, não o de matar, mas o de lesionar. Veja-se o

exemplo.

Marcelo determina a Sílvio que vá até o Bar de Alfredo e dê-lhe uma boa surra,

um espancamento para não deixar saudades. Sílvio, entretanto, excede-se e acaba

matando Alfredo. Marcelo desejava apenas produzir lesões corporais, mas Sílvio

acabou por matar, dolosamente, a vítima. Seus dolos foram, portanto, distintos,

diversos.

Outro exemplo. Raul contribui com Felizardo para a morte de Flávio. Ao

executar o homicídio, Felizardo age com extrema crueldade, circunstância não desejada

nem aceita pelo partícipe.

Qual a solução?

Marcelo deve responder em concurso de homicídio que não desejava? Ou deve

responder por lesões corporais que não aconteceram?

Raul responderá como partícipe de um homicídio simples, que estava em seu

dolo, ou pelo homicídio qualificado pelo meio cruel, utilizado pelo autor do crime sem

seu conhecimento ou consentimento?

O § 2º do art. 29 assim determina: “Se algum dos concorrentes quis participar

de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até

metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.”

Com base nesse preceito, é preciso situar os vários desdobramentos possíveis.

Tome-se o exemplo de alguém que contrata os serviços de outro para espancar

uma terceira pessoa.

A primeira hipótese é de não ser previsível o resultado mais grave. O primeiro

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Homicídio - 57

concorrente não pode fazer a previsão do resultado morte. Nesse caso, vai responder

pelo crime de lesão corporal, e o executor responderá por homicídio. O meio cruel

empregado pelo autor do homicídio não pode ser atribuído ao partícipe que não podia

prever sua utilização.

A segunda hipótese: o resultado mais grave pode ser previsto. Em algumas

situações, ao partícipe ou co-autor pode ser possível fazer a previsão de que o executor

poderá realizar o delito mais grave. Acontece quando alguém manda bater numa pessoa

idosa ou enferma, ou deficiente físico, que, por uma dessas condições, poderá – é

previsível –, com as lesões sofridas, ser morta. Ou quando se participa de um homicídio

que se quer simples, mas sabe-se que o concorrente, o executor, um brutamontes,

violento, sanguinário, maldoso, é capaz de matar de forma cruel.

Sendo previsível o resultado mais gravoso, o concorrente poderá ter duas

atitudes internas. Uma a de, mesmo diante da previsibilidade, não prever, ou,

prevendo, não aceitar o resultado mais grave. Isto é, não prevê, apesar de previsível. Ou

prevê, mas não aceita que ele ocorra. Nesses casos, o concorrente responderá pelo

crime menos grave, mas com pena aumentada até metade. Esse aumento é uma

imposição de maior reprovação por sua conduta negligente.

A outra atitude é, prevendo, aceitar o resultado mais gravoso. Aí responderá

igualmente pelo resultado mais grave, porque agiu dolosamente. Nessa situação, o

concorrente, embora quisesse, inicialmente, participar de um crime menos grave,

consentiu na realização do mais grave; por isso, é inaplicável o preceito do § 2º do art.

29.

A solução do § 2º do art. 29 é justa, pois se se aplicasse sempre, ao concorrente

que queria um crime menos grave, a mesma pena daquele realizado, a

responsabilização do primeiro seria puramente objetiva, o que não atende aos ditames

de um direito penal justo e fincado no princípio da culpabilidade.

Quando ele tenha, porém, consentido na realização do crime mais grave, por ele

responderá, considerando a eventualidade de seu dolo, também na medida de sua

culpabilidade.

Quando o resultado mais grave era previsível, mesmo respondendo pelo delito

mais leve, terá a pena aumentada consideravelmente, de metade, porque maior a

reprovabilidade de sua conduta.

1.2.8.4 Comunicabilidade de circunstâncias

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58 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Circunstâncias, para os fins do Direito Penal, são dados que ora integram, ora

se ligam aos tipos, com a finalidade de fazer aumentar ou diminuir a pena cominada.

Umas têm natureza objetiva; outras, subjetiva.

Circunstâncias objetivas ou reais são as que dizem respeito à materialidade do

fato – modo de execução, meios utilizados, tempo, lugar, qualidades do sujeito passivo

etc.

Circunstâncias subjetivas ou pessoais referem-se ao agente do fato, à motivação

que o impele a realizar a conduta, as suas relações com o sujeito passivo, ou com seus

concorrentes, ou a seus atributos pessoais.

Quando as circunstâncias integram a estrutura do tipo, são chamadas essenciais

ou elementares, porque são indispensáveis à verificação da tipicidade. São elementos

do tipo.

Quando se situam fora do tipo, são chamadas circunstâncias acidentais.

Para resolver o problema da comunicabilidade das circunstâncias entre os diversos

concorrentes, deve o intérprete atentar para o preceito inserto no art. 30 do Código Penal:

“Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando

elementares do crime”, e dele extrair as regras aplicáveis a todas as hipóteses.

A primeira regra é a de que: todas as circunstâncias de caráter objetivo, reais,

comunicam-se aos concorrentes. Não há norma escrita a respeito, mas a interpretação

deve ser feita a contrario sensu. Se a norma impede a comunicação de circunstâncias

pessoais, exceto as elementares do crime, é porque, a contrario sensu, quer que todas

as demais sejam transmitidas aos concorrentes. Assim, o uso de meio cruel, tortura,

asfixia ou a insídia, a dissimulação, que são circunstâncias objetivas qualificadoras do

homicídio, comunicam-se aos co-autores e partícipes. Todavia, como já dito

anteriormente, se o concorrente – co-autor intelectual ou partícipe – não teve

conhecimento de que o executor utilizaria de meio cruel ou agiria de emboscada, é de

ver que a qualificadora objetiva não entrou na esfera de seu conhecimento, logo não

pode a ele ser aplicada.

A segunda regra é: as circunstâncias pessoais não elementares do tipo não se

comunicam. Assim as qualificadoras do motivo fútil, torpe, ou a finalidade de assegurar

a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Nem tampouco as

circunstâncias privilegiadoras – motivo de relevante valor moral ou social – serão

comunicadas ao partícipe e co-autor.

Terceira: as circunstâncias pessoais ou subjetivas que sejam elementares do

crime comunicam-se sempre. No tipo de homicídio, não há qualquer circunstância

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Homicídio - 59

pessoal elementar, exceto o dolo, que, por isso, comunica-se sempre aos que para ele

concorrem. Outras circunstâncias pessoais existem apenas nas formas privilegiadas e

qualificadas do homicídio, mas são elas circunstâncias acidentais, e não integrantes do

tipo fundamental. Logo, nenhuma delas se comunica ao concorrente, partícipe ou co-

autor.

A não ser, é óbvio, se o concorrente tiver conhecimento da circunstância

subjetiva e incorporá-la a seu dolo, isto é, se, ao aderir a conduta do executor ou co-

autor, também agir motivado pela futilidade ou torpeza com que atuar o executor, bem

assim se abraçar a nobreza do motivo.

Não apenas as circunstâncias subjetivas são incomunicáveis, também as

condições pessoais do agente. Menoridade de 21 anos e reincidência, por exemplo,

sendo condições subjetivas, são incomunicáveis aos concorrentes do crime.

1.2.9 Concurso de crimes

O agente pode realizar, contemporaneamente ao homicídio, pouco tempo antes

ou depois, outra conduta delituosa, ou, mediante uma só ação, cometer mais de um

crime, de mesma espécie ou não. Dar-se-á, então, o chamado concurso de crimes, que

pode ser material, formal ou crime continuado.

1.2.9.1 Concurso material

O art. 69 do Código Penal define o concurso material de crimes, determinando,

nessa hipótese, a aplicação cumulativa das penas privativas de liberdade

correspondentes. Ocorre quando o agente, mediante mais de uma conduta, pratica dois

ou mais crimes, idênticos ou não.

O agente mata a vítima, e depois oculta ou destrói o cadáver. Haverá homicídio

e um crime de ocultação ou destruição de cadáver, aplicando-se as penas

cumulativamente.

Faustino mata Aristizábal, depois comete lesões corporais contra Joaquim e,

por último, calunia a irmã de ambos, que se encontrava próxima. Um homicídio, uma

lesão corporal e uma calúnia.

As regras para a aplicação da pena são:

1. Tratando-se de duas penas privativas de liberdade, serão aplicadas

cumulativamente, devendo o juiz, é óbvio, individualizar cada pena, somando-

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60 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

se ao final as penas definitivas.

2. Sendo possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de

direitos, deve o juiz atentar para o seguinte. Se a pena privativa de liberdade

aplicada para um dos crimes não tiver sido suspensa, como dispõe o art. 77 do

Código Penal (sursis), a pena para o outro crime concorrente não poderá ser

substituída por restritiva de direitos. Ou seja, só é possível a substituição de

uma das penas privativas de liberdade aplicadas, se a pena aplicada para o

crime concorrente tiver sido suspensa. Caso seja possível a substituição das

várias penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos, se forem

compatíveis, o condenado poderá cumpri-las simultaneamente. Se não,

cumprirá sucessivamente.

Outro exemplo: após estuprar a vítima, o sujeito mata-a. São duas ações

distintas, dois crimes distintos. Responderá por ambos, e se a tiver matado para

assegurar a impunidade ou a ocultação do crime de estupro, será apenado por um

estupro e um homicídio qualificado. Se a matar por mero prazer, será qualificado pela

torpeza do motivo. Não é a mesma hipótese quando o agente tiver usado violência na

realização do estupro e dela resultar a morte da vítima, caso em que responderá por

estupro seguido de morte, cuja pena será de 12 a 25 anos. Essa hipótese ocorre quando

a morte decorreu de negligência do agente. É crime preterdoloso. Agiu com dolo de

estuprar, e teve culpa na morte.

O concurso material, ou real, resulta da existência de duas ou mais condutas

distintas, isoladas, separadas, autônomas. São fatos diferentes, crimes diferentes, ainda

que realizados em momentos próximos.

1.2.9.2 Concurso formal

Há concurso formal, ou ideal, quando o agente, mediante uma só conduta,

pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Aplica-se apenas uma das penas, a mais

grave, se distintas, aumentada de um sexto até metade. Uma só ação ou uma única

omissão realizando mais de um crime. Exemplo: o agente sabota uma pequena

aeronave, matando seus três ocupantes.

Há concurso formal quando há unidade de conduta e pluralidade de crimes.

Há concurso formal homogêneo quando os crimes praticados são definidos na

mesma norma legal, contra vários sujeitos passivos.

O concurso formal será heterogêneo se os crimes praticados estiverem definidos

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Homicídio - 61

em normas penais distintas. No mesmo exemplo da sabotagem da aeronave, pode

acontecer que, com a única conduta do agente, sejam causados dois homicídios e

também lesões corporais em um passageiro, que se salvou.

O concurso formal pode ser perfeito ou imperfeito.

O concurso formal perfeito está definido na primeira parte do art. 70 do Código

Penal: “Quando, mediante uma só conduta, o agente pratica dois ou mais crimes,

idênticos ou não.”

Na segunda parte do mesmo artigo, a definição de concurso formal imperfeito:

“Quando, mediante uma só conduta dolosa, o agente pratica dois ou mais

crimes, idênticos ou não, resultantes de desígnios autônomos.”

As diferenças são evidentes. O concurso formal perfeito pode ocorrer em relação

a crimes dolosos e culposos, ao passo que o concurso formal imperfeito trata apenas de

crimes dolosos. Neste, os crimes praticados devem decorrer de desígnios autônomos do

agente. Desígnio é desejo, pretensão, vontade, fim, objetivo. Haverá concurso formal

imperfeito quando os dois ou mais crimes cometidos através de uma só conduta

estiveram previamente ideados ou idealizados pelo agente. Eram crimes desejados,

pretendidos pelo sujeito que os realizou com uma única conduta.

Há autonomia de desígnios, no exemplo da sabotagem da aeronave, se o agente,

quando realizou a conduta, tinha a vontade de, com o desastre aéreo, matar seus três

ocupantes.

Para o concurso formal perfeito, aplica-se apenas uma das penas, a mais grave,

se distintas, aumentada de um sexto até metade. Se, porém, ao realizar a operação de

aumento da pena do crime mais grave, o juiz chegar a um quantum superior ao que

chegaria caso utilizasse a regra do concurso material, cumulando-as, deverá então

aplicá-las cumulativamente. Por exemplo, num concurso formal perfeito entre um

homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se aplicar pena mínima para o

homicídio qualificado, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, chegará a

uma pena definitiva de 14 anos, ao passo que, se forem simplesmente somadas as penas

para os dois crimes, a pena definitiva seria de apenas 13 anos de reclusão. Nesse caso,

mesmo tendo havido concurso formal, o juiz aplicará a regra do concurso material, daí

que a doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico.

Para o concurso formal imperfeito, as penas serão aplicadas cumulativamente,

como no concurso material.

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62 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

1.2.9.3 Homicídio continuado

O crime continuado é uma criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal,

resulta em punição menos severa ao agente que comete mais de um crime. No concurso

formal, como se viu, aplica-se apenas uma das penas, aumentada até metade. No crime

continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a

pena de um dos crimes, a mais grave se diversas, aumentada, porém, de 1/6 a 2/3. É

um critério mais severo do que o do concurso formal.

Haverá crime continuado quando o agente realizar mais de uma conduta e com

elas praticar mais de um crime, porém da mesma espécie, e que guardem, entre si, um

nexo de continuidade materializado por meio de certa homogeneidade ou uniformidade

de suas circunstâncias de natureza objetiva. É a regra do art. 71 do Código Penal.

Antes da reforma penal de 1984, não se admitia a aplicabilidade do instituto do

crime continuado quando se tratasse de crimes que se voltavam contra bens

personalíssimos, especialmente quando praticados contra vítimas diferentes. Quanto ao

homicídio, então, era absolutamente impossível pensar na hipótese, eis que as vítimas

sempre seriam diferentes.

Com a reforma, entretanto, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo

texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive

contra vítimas diferentes. É o que se encontra no parágrafo único do art. 71:

“Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou

grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os

antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os

motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas,

ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo

único do art. 70 e do art. 75 deste Código.”

Assim, admite-se a continuidade delitiva também nos crimes de homicídio.

Para tanto, é preciso que estejam presentes todos os requisitos do crime

continuado, mais a consideração sobre as circunstâncias judiciais mencionadas no

parágrafo único do art. 71.

Para haver crime continuado, é preciso que os crimes sejam da mesma espécie,

e que haja nexo de continuação.

Parte da doutrina entende que são da mesma espécie apenas os crimes previstos

no mesmo tipo penal, porque possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo

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Homicídio - 63

as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas e consumadas17. Assim poderá

haver continuidade entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de

homicídio ou um homicídio qualificado.

Crimes da mesma espécie, a meu ver, são aqueles que violarem o mesmo bem

jurídico. São os crimes cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie

pressupõe a de gênero. Assim, homicídio e aborto e infanticídio são espécies do gênero

de crimes contra a vida. Será possível, assim, haver continuação entre um homicídio e

um aborto, e um infanticídio.

A continuidade exige nexo de continuação, cuja constatação se fará pela análise

das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições

assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade.

Os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. A análise

não é aritmética, estabelecendo tempo máximo entre um crime e outro, um, dois ou

três meses. Os lugares onde tiverem sido cometidos também deverão ser próximos.

Deve o modus operandi, que inclui os meios utilizados e o modo de atacar as vítimas,

ser homogêneo nos vários crimes.

A homogeneidade deve abranger o conjunto das circunstâncias, que são todas

objetivas, não bastando haver harmonia de tempo e lugar, se, por exemplo, a maneira

de execução é absolutamente diferente em cada crime.

Veja-se esse Acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

“PENAL – HOMICÍDIO QUALIFICADO – RECONHECIMENTO DE CONCURSO

MATERIAL – INOCORRÊNCIA – CONTINUIDADE DELITIVA –

CONFIGURAÇÃO.

Crime continuado é aquele no qual o agente, mediante mais de uma ação ou

omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, os quais, pelas

semelhantes condições de tempo, lugar, modo de execução, podem ser tidos como

continuação dos outros (art. 71 do CP). O modus operandi, em tais delitos, deve

ser o mesmo, sendo necessária a homogeneidade das condutas.

No caso sub judice, a peça vestibular, bem como o libelo, apontam a ocorrência

de um homicídio qualificado e em seguida a tentativa de cometimento de outro

homicídio, pelas mesmas autoras e em circunstâncias objetivas homogêneas.

Destarte, configura-se a continuidade delitiva, e não o concurso material.

17 DAMÁSIO E. DE JESUS, Direito penal. v. 1, p. 526.

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64 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

Ordem concedida para reconhecer a ocorrência de continuidade delitiva,

afastando-se, assim, o concurso material (HC 21.770-RJ, rel. Min. Jorge

Scartezzini, j. 24-9-2002, DJ de 18.11.2002).”

Superadas estão, portanto, duas antigas discussões. Uma a de que, para a

continuidade delitiva, deveriam ser consideradas circunstâncias de natureza subjetiva.

Não há necessidade de os crimes resultarem de um único desígnio do agente. Bastam as

circunstâncias objetivas serem harmônicas. A outra discussão é sua aplicabilidade

quanto ao homicídio, pacificada sua admissibilidade pela jurisprudência das cortes

superiores.

A diferença é que, tanto no homicídio quanto nos crimes cometidos contra

vítimas diferentes, com violência ou grave ameaça, a pena será aumentada até o triplo,

desde que as circunstâncias judiciais mencionadas no parágrafo único do art. 71 sejam

favoráveis ao agente.

Em qualquer hipótese, entretanto, a pena não pode ser superior à que caberia

caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem ser superior a 30 anos.

1.2.10 Conflito aparente de normas

Dá-se o conflito aparente de normas, também chamado simplesmente de

concurso de normas, quando, para um mesmo fato – conduta, nexo e resultado –

concreto, parecem ajustar-se-lhe duas ou mais normas distintas, isto é, dois tipos legais

de crime.

Na verdade, não há nenhum conflito, nem tampouco um concurso de normas,

uma vez que segundo o princípio do ne bis in idem ninguém será punido duas vezes

pelo mesmo fato. O conflito, portanto, é só aparente. O concurso é inexistente. Apenas

uma das normas incriminadoras se ajustará ao fato natural.

Para a resolução dos possíveis conflitos aparentes de normas, deve o intérprete

aplicar o princípio da especialidade e o princípio da absorção. Segundo o primeiro, se

entre as duas normas aparentemente em conflito existir uma relação de gênero e

espécie, a norma especial afastará a incidência da norma genérica. Uma norma é

especial em relação à outra, genérica ou geral, quando contiver, em sua descrição, todos

os mesmos elementos, objetivos, normativos e subjetivos, contidos na norma genérica,

e mais alguns, ou só um, objetivos, normativos ou subjetivos. Esses elementos a mais

que a norma especial têm são os elementos especializantes.

O tipo de homicídio simples – matar alguém – contém uma norma geral, da

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Homicídio - 65

qual são tipos especiais as normas dos §§ 1º e 2º do mesmo art. 121. Os homicídios

privilegiados são tipos especiais em relação ao tipo do homicídio simples. Os

homicídios qualificados são, igualmente, especiais em relação ao homicídio simples.

Entre eles, portanto, há relação de gênero para espécie. É só olhar os elementos:

• homicídio simples: matar alguém dolosamente;

• homicídio qualificado: matar alguém dolosamente, por motivo fútil.

O “por motivo fútil” é o elemento especializante, que torna o homicídio

qualificado especial em relação ao homicídio simples.

Segundo o princípio da especialização, a norma especial derroga a norma geral.

Lex specialis derrogat lex generalis. Ou seja, quando João mata Maria por motivo fútil,

será punido uma única vez, segundo a norma incriminadora do art. 121, § 2º, II, do

Código Penal.

O infanticídio – adiante comentado – é também um tipo especial em relação ao

homicídio simples, de modo que se a mãe, durante ou logo após o parto, matar o

próprio filho, estando sob a influência do estado puerperal, será punida apenas uma

vez, com a pena prevista no art. 123, que afastará a incidência da norma do art. 121.

O mais conhecido conflito aparente de normas que envolve o homicídio é o que

se dá entre a norma do art. 121, § 2º, V, e as contidas no art. 157, §§ 1º e 3º. Veja-se o

exemplo: Salviano subtraiu, para si, um objeto de propriedade de José Carlos, e quando

se retirava do local do crime, na posse do bem furtado, é surpreendido pela vítima que

tentou reaver a res furtiva, momento em que Salviano, para assegurar a posse do bem,

desferiu um tiro de revólver, matando José Carlos.

Aparentemente, e só aparentemente, esse fato ajusta-se a dois tipos legais de

crime: homicídio qualificado para assegurar a vantagem de outro crime, e roubo

impróprio seguido de morte, também chamado latrocínio.

Só uma das normas é aplicável, pois o conflito é só aparente. No primeiro tipo,

de homicídio qualificado, os elementos são:

• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem de outro crime.

No segundo tipo, de roubo impróprio seguido de morte, os elementos são:

• matar alguém dolosamente, para assegurar a vantagem do crime de furto.

A segunda norma, pois, é especial em relação à primeira, pois naquela a morte

da vítima visava assegurar a vantagem de outro crime, isto é, de qualquer crime, ao

passo que, na segunda, a morte da vítima busca assegurar a vantagem de determinado