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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº129 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2004 VOLUME IX ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 129 O ENSINO DA ÉTICA ÂNGELA MUNHOZ TAVARES; DEOLINDA DE FÁTIMA CUNHA, FRANCISCO DAS CHAGAS PRIMEIRA VERSÃO

Volume IX

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Volume IX do Primeira Versão (Janeiro/Abril de 2004)

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Page 1: Volume IX

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº129 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 129

O ENSINO DA ÉTICA

ÂNGELA MUNHOZ TAVARES; DEOLINDA DE FÁTIMA CUNHA, FRANCISCO DAS CHAGAS

PRIMEIRA VERSÃO

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Ângela M. Munhoz Tavares; Deolinda de Fátima P. Cunha; Francisco das Chagas Silva O ENSINO DA ÉTICA Licenciada em Educação Física; Pedagoga; Professor de História e Filosofia

“A verdadeira moral zomba da moral”.(Pascal)

Observando os múltiplos papéis exercidos pela escola, ao longo do tempo, percebe-se que, dentro das variações no tempo e no espaço, nas diversidades

culturais, esta tem sido uma instituição fundamental para a sociedade, mas que tem sistematizado e socializado os saberes que atendem a demandas da sociedade,

priorizando concepções das classes hegemônicas, onde o currículo é a materialidade e mecanismo dessa hegemonia, como núcleo de um projeto pedagógico.

Faz-se então a análise de um tema curricular sob esse enfoque, de, à qual interesse busca atender. Para tanto, analisa-se o conceito de ética, no contexto da

função social da escola, e sua situação nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Para situarmos a escola do mundo moderno, em termos de sua função social, é necessário, pelo menos, uma breve incursão ao passado. Sabe-se que, desde

tempos remotos o conhecimento da comunidade era selecionado e transmitido às novas gerações, e, segundo Sônia Terezinha (2001: 19) “a escola para crianças e

jovens, como hoje a conhecemos, tem presença recente na história da humanidade”.

Embora, no mesmo texto, acima citado, Sônia Terezinha afirme que “o ensino organizado em instituição própria tenha começado pelas universidades”, (Idem)

é bom lembrar-se de que na Grécia clássica já havia um ensino, com aspectos institucionais, inclusive com a sistematização de currículos, como o Trivium (composto

pelas disciplinas de Lógica, Gramática e Retórica) e o Quadrivium.( composto pela música, aritmética, geometria e Astronomia)

Na Idade Média o ensino ficou sob a organização dos cleros secular e regular, com maior organização, nos mosteiros e nas catedrais. E,

eram poucos os que tinham acesso às primeiras letras e formas elementares de aprendizagem, preparatórias para as universidades (...) Quando existia, a

escola destinava-se apenas aos filhos das camadas mais ricas da população [...] Foi apenas há cerca de 200 anos, com os ideais da Revolução Francesa e

da democracia americana, que a escola passou a ser compreendida como uma instituição importante, não apenas para os filhos das elites como para os

filhos da das camadas trabalhadoras (Idem).

As mudanças políticas tiveram influência sobre a função social da escola por que foram movimentos revolucionários onde, a participação popular muda sua natureza,

nas relações com a aristocracia. E, se a partir desse momento a busca pela democracia se intensifica, as instituições, como a escola, não poderiam ficar imunes

No Brasil, enfocamos a escola já nesse contexto da sua relação com a democracia, que se inicia pela questão do acesso, onde “a educação pública e gratuita,

resultante de iniciativa do Estado, é uma conquista da República e, especificamente, do século XX” (Idem, 21). E, embora o Estado brasileiro tenha se preocupado em

expandir a escolaridade obrigatória, iniciando um processo de universalização do ensino fundamental, é questionável a qualidade desse ensino.

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É importante ressaltar que a Constituição de 1988 e a LDB, definem o papel da escola como um agente capaz de contribuir para o pleno desenvolvimento da

pessoa, preparando-a para a cidadania e qualificando-a para o trabalho. Porém, vale lembrar os descompassos entre a legislação e a realidade educacional. Ou seja, nem

sempre, as determinações legais são concretizadas, a curto ou em médio prazo, tanto em termos da oferta escolar, quanto dos objetivos educacionais. Desse modo ainda

é um desafio para o Brasil, construir uma escola onde todos sejam acolhidos e tenham sucesso. E ainda se ter claro o caráter ou a noção desse sucesso. Ou seja, em qual

sentido? Para o trabalho? Para o convívio social? Para a sociedade do conhecimento (e da comunicação)? Ou numa perspectiva integral, global?

Trata-se, portanto, além do acesso à escola e do controle da evasão, do desempenho pedagógico; se os agentes possuem competências que garantem um

ensino prático e reflexivo, e ainda se há autonomia como finalidade, no currículo formal ou real (Currículo Formal é o currículo oficial, no caso, os PCNs e o currículo

real é o currículo que de fato acontece espontaneamente na sala de aula, inclusive podendo ocorrer intervenção dos professores [Libâneo, 2001].). Isto é, pergunta-se

então se os saberes, que constroem o cidadão-democrático, são contemplados nos currículos e nas práticas didático-pedagógicas. Entende-se que é nesse sentido,

que a legislação brasileira expressa que promover o pleno desenvolvimento do educando é um aspecto importante da função social da escola.

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), aprovada em 1996 (Lei n° 9.394/96) tem como novidade, a flexibilidade, onde as escolas passaram a ter autonomia para se

organizarem administrativa e pedagogicamente, isto é, para prever formas de organização que permitam atender às peculiaridades regionais e locais, às diferentes

clientelas e necessidades do processo de aprendizagem (art.23). O novo modelo de educação é fundamentado em princípios democráticos como a descentralização,

inclusive na gestão da escola. Visão que enfatiza uma ampliação da participação da comunidade nos trabalhos da escola, e em sua vivência de forma geral. A escola

seria como um laboratório de democracia, onde o limite seria eleições para professores.

As pessoas possuem grande importância para a construção dessa escola, que hoje é vista por alguns, como revolucionária. Contribuem, no convívio

democrático, tendo em vista que as mudanças na escola só ocorrem em relação às mudanças na comunidade na qual ela está inserida. E, na construção da base, e

como guia dessa escola, o projeto pedagógico deve ser construído levando em conta a articulação entre conteúdo e vida, visando essa convivência democrática na

escola, onde a realidade escolar seja o seguimento da realidade “externa”.Um projeto educativo que visa anular esse interno/externo; dentro/fora; sala/comunidade. A

partir dessa realidade, essa escola deverá trabalhar problemas da sociedade como a violência, no caso, trazido para dentro da própria escola, e todos os

comportamentos que afetam o convívio social, dentro e fora da escola, e combater mecanismos de heteronomia e alienação.

Pelo lado da escola, a construção das habilidades e competências, no caso, para o desenvolvimento da democracia, se dá, como toda atividade com os alunos,

tendo como base os conteúdos oficiais. E sabe-se que existe uma crítica aos PCNs. Embora não seja objetivo desse artigo, entrar nesse mérito, essa discussão é

pertinente, tendo em vista que trata também do modelo dos temas transversais. No caso, é a limitação da ética, como tema circunstancial (ou não estrutural). Ou

seja, porque como outros temas fundamentais para a formação da autonomia e cidadania do homem, a ética não entrou como disciplina. E, o que mais preocupa,

além da desvalorização da ciência dos valores, é a própria ética ensinada, isto é, o conceito proposto no currículo formal.

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ÉTICA E CIDADANIA

Como essa pesquisa é bibliográfica, não se tem um recorte empírico, mas pode-se abstrair o modelo de escola introduzido pela LDB, e pelos Parâmetros

Curriculares Nacionais, situando-a num processo de construção da democracia na sociedade e na própria escola. E como contradição, busca-se uma visão crítica e

enfoca-se com um pensamento dialético, o Tema Transversal ética.

Mesmo com toda a deficiência pedagógica, decorrente do não-planejamento adequado do curso e aula de ética, no ensino médio, no caso da obediência às

diretrizes da transversalidade, podemos ter um professor-educador que, na relativa autonomia, consiga contemplar a ética como currículo real, inclusive de forma

dialógica com a ética da rua, da comunidade - "o currículo oculto”1 (Libâneo 2001: 144). Porém, a pergunta feita sobre a ética do currículo formal, cabe também ao

currículo oculto, sobre qual teoria de ética é contemplada no processo de ensino e aprendizagem; qual ética é ensinada na prática pedagógica, em sala de aula. Os

alunos contextualizam esse saber? Existe uma pedagogia dialética2, na vivência dos valores dessa ética (aluno-comunidade-escola)? A resposta a esse questionamento

está na vida dos alunos. E como a moral que se vive parece estar em crise, alguma coisa não está funcionando.

Se de um lado a nova concepção de educação, busca corresponder demandas da cidadania, a partir da autonomia dos alunos, e para alguns chega a ser um

processo revolucionário na educação, de outro lado temos uma realidade empírica que é a falta de visão da importância desse saber, principalmente no contexto atual,

dos valores vividos no capitalismo, e as conseqüências dessa crise e desses valores no próprio cotidiano, na própria sociedade.

Olhando diretamente os PCNS, temos logo em sua introdução:“A necessidade de que a educação trabalhe a formação ética dos alunos está cada vez mais

evidente. A escola deve assumir-se como um espaço de vivência e discussão dos referenciais éticos, não uma instância normativa e normatizadora, mas um local social

privilegiado de construção dos significados éticos necessários e constituitivos”.(Maria Inês, 1998: 16).

Portanto, expõe-se uma visão correta, e coerente com os objetivos da nova concepção de educação materializada nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Entretanto, o nosso olhar busca observar que existe uma crítica, revelando um imaginário da educação, complexo o suficiente para se abrir uma discussão que

busque, não uma análise caricata da realidade empírica, desse universo educativo - o ensino da ética, mas, que aponte para o que realmente subjaz; do que a crítica

de estudiosos tem de validade, e qual a conseqüência da lacuna enfocada no currículo (e modelo pedagógico – didático), na cultura escolar, na atual conjuntura. E se

há realmente uma lacuna, se essa conseqüência não é um objetivo “oculto” do próprio currículo, isto é, não atende a uma concepção de educação e de ética, que não

tenha êxito no saber que se propõe: a competência ética, numa ética antropológica, uma antropoética,3 para uma autonomia autêntica, que pressupõe o equilíbrio

homem/espécie/ produtor/ humano; para uma humanização.

1 "Refere-se às influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores provenientes das experiências culturais dos valores, e significados trazidos pelas pessoas do seu meu social e vivenciado na própria escola". (idem) 2 Pedagogia defendida por Paulo Freire e defendida posteriormente por educadores no sentido de uma ciência da prática (MAZZOTI, 1993: 5). 3 Pensamento ético iniciado por Kierkegard, Max e existencialistas, hoje desenvolvido no que se chama: "Ética do gênero humano", (Edgar Morin, 2001).

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Assim, uma compreensão da Instituição Escola, no modelo tradicional, como produtora e reprodutora do saber sistematizado, portanto, o currículo que forma

o trabalhador ou cidadão, que a classe hegemônica pretende, teríamos também o ensino, pura e simplesmente da ética constituída, que não liberta, e pelo contrário,

prende, aliena.

Pressupondo-se uma instituição, que vise desenvolver competência pessoal e consciência ética, ecológica, cívica e democrática, mas que sua prática, não seja

uma práxis, não se baseie em teorias, nem contextualize esse saber de forma dialética: ação pedagógica e reflexão e depois ação novamente; que não reflita sua

própria prática pedagógica, com certeza, essa instituição na sua gestão, não questiona sobre uma possível intencionalidade nas lacunas apontadas pela crítica aos

PCNs. E assim, temos um problema em relação ao texto sobre ética, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, onde o resultado alcançado se contrapõe aos objetivos e

finalidades, revelando incoerência entre o que se ensina sobre ética e o proposto. Senão vejamos:“A questão cultural das preocupações éticas é a análise de diversos

valores presentes na sociedade, a problematização dos conflitos existentes nas relações humanas quando ambas as partes não dão conta de responder questões

complexas que envolvem a moral e a afirmação de princípios que organizam as condutas dos sujeitos sociais”.( PCNs, 1998: 66).

Até aí se vê insernção política, quando se prevê a autonomia do professor – educador e da própria escola, não normatizando a ética. E ainda, quando na própria

introdução aos PCNs, no mesmo texto acima citado, se reconhece que: “Na escola, o tema: ética, se encontra nas relações entre aos agentes que constituem essa instituição,

alunos, professores e pais, e também nos currículos, uma vez que o conhecimento não é neutro nem impermeável a valores de todo o tipo”. (idem)

Então, além de reconhecimento ao outro, que pressupõe a inter-relação currículo formal/oculto, onde cada um, professor e aluno (e demais membros da

comunidade escolar), são sujeito ético, na intersubjetividade, há, nos PCNs, o reconhecimento de um caráter fundamental da ética: a contradição Moral

Constituída/Moral Constituinte. O que corresponderia à face progressista dessa concepção da educação que se fala. Porém, são as lacunas, que podem esconder uma

intencionalidade de um consenso sobre a ética, que esteja mais para Kant: uma moral universal, um homem universal9, que para Nietzsche: “um espírito livre”

(Germano 1993: 34).

É óbvio que, consultando o conteúdo de ética nos PCNs, não se encontra aspectos de uma ética classista, nos moldes da ética grega de Platão e Aristóteles.

Se assim o fosse, não teria sentido esse artigo. Da mesma forma não é explícito um sujeito ético puramente racional ou formalista, de uma razão universal, que

também seria alheio à realidade das relações sociais de hoje, e não assume prioridades de valores, dos filósofos citados. Porém, também não se assume uma teoria

comprometida com a transformação da realidade. E essa omissão, por si só, já contribui para a hegemonia da concepção de ética do Estado capitalista, no sentido

dado por Gramsci, segundo Germano (1993:35): de que a ética está vinculada a um projeto sócio-político.

Um princípio básico da Ética Kantiana: "Aja de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne uma lei universal". (Germano, 1993: 31). Assim a questão moral está ligada a motivação.

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Entende-se, que, embora se ministre um conteúdo, cheio de morais e bons costumes, e diga-se ao aluno, que ele seja um sujeito ético, isto é que questione

essa moral, se não se desenvolver uma competência política, para uma posição frente a esses valores, essa ética, no atual estágio das relações políticas, seria uma

ética abstrata, no sentido de distante da concretude, que seria o enfrentamento com a ética da classe hegemônica.

Conclui-se situando a ética na questão curricular, onde: Pedra (in Libâneo 2001: 142) supõe que o “currículo se sustenta em representações sociais presentes

na cultura no qual se dá a teoria e a prática do currículo”. E, para Gimeno Sacristãn currículo: “é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e a

educação; entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a teoria (idéias, suposições e aspirações) e a prática possível, dada

determinadas condições”.(idem)

Portanto, no currículo se dá a posição da escola em relação à cultura. Assim sendo, o currículo pode ir além do que foi falado, que seria a própria cultura

sistematizada em ensino (seleção, organização). Além de corpus da ética herdada, o currículo poderia ser o espaço privilegiado, não só da discussão social da ética

vigente, mas instrumento científico, num modelo de pedagogia que se realiza na prática. E, o contrário, instrumento de alienação, se o professor-educador não

ampliar seus conhecimentos ou não se comprometer com esse tema como componente dessa pedagogia prática, a priori, científica, experimentando na dialeticidade,

uma ética concreta, que auxilie as demandas sociais pela humanização e pela democracia.

Essa competência do professor seria aquela que levaria o aluno a ter o que mobilizar, como saber voltado para a liberdade; para enfrentar problemas que

muitas vezes se relacionam com valores não democráticos, ou situações da ausência dos valores democráticos.

Por exemplo, quem nos garante que esteja sendo despertado pelo menos o espírito reflexivo sobre a moral constituída em nossos alunos? E se perguntarmos à

grande parte dos alunos: o que é ética? Será que responderiam apontando fatos e ações de mudanças? Ou se limitariam a citar casos de falta de ética, com um repertório

decorado, da moralidade instituída, exemplificando o que aprendeu como ética? Talvez, nem uma visão de superestrutura ou de imaginário (ou outra de totalidade), esse

aluno teria. Escapando-lhe inclusive, que o crime contra o erário público no Brasil se tornara banal, quase costume da classe hegemônica. “O crime organizado oficial”. A

mesma moralidade que talvez tenha nascido com o valor “propriedade privada”. Valor que contribuíra para a formação de uma sociedade de extrema individualidade, fator

dificultador da realização da democracia, por ser uma sociedade de valores antagônicos aos valores democráticos.

Estaríamos na escola, trabalhando com um sujeito ético abstrato. Ou seja, um sujeito ético situado numa temporalidade de um passado remoto na história do

pensamento da ética. Um sujeito misto, de uma ética Aristotélica-Kantiana, mais para prisioneiro de uma (película de) ética Aristotélica, do que para um sujeito ético

(mocinho do filme da sociedade Kantiana), menos ator vivo de uma ética humana, existencialista, libertária, um sujeito concreto como Freud, Nietzche e Marx buscaram.4

Então o sujeito moral, que poderá ter sido trabalhado, em um alinhamento ético dos moldes tradicionais da ocidentalidade e do capitalismo, num consenso, não será um

4 O pensamento ético de Freud se diferencia por trazer um novo fator, não apenas teórico, o mundo inconsciente. Nietzsch busca recuperar, justamente: as forças instituitivas desse mundo abstrato, como influente no comportamento, que para eles são vitais, e que teriam sido subjugadas muito tempo, por razões como a de Aristóteles e a de Kant. E, para Marx, toda moral esta condicionada sócio-historicamente.

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sujeito autônomo em sua concretude (que não é película nem o próprio filme rodando na temporalidade do presente), será alienado. Inclusive, é nesse sentido que

Gramsci critica Kant, pela proposição de uma ética que prende o indivíduo a um modelo de cultura; um conformismo (Germano 1993: 36).5

Trata-se de uma discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem da ética, que sem uma devida clareza teórica, e sem o desenvolvimento das

competências tratadas neste artigo, corre-se o risco de não se alcançar os objetivos éticos, e as finalidades que, em tese, os PCNs propõe: a cidadania, a democracia.

Uma ética onde o indivíduo não seja reprimido, nem classificado como subproduto cultural - mão de obra - trabalhado (educado) pela ética do consenso. Pois seus

valores são ofertados pela classe hegemônica, que sofistica seus mecanismos de analfabetismo político, nesses bens simbólicos.

BIBLIOGRAFIA

PENINN, Sônia Terezinha de Souza. Como articular a função social da escola com as especificidades e as demandas da escola. Brasília/DF: CONSED, 2001.

GERMANO, R. Medeiros: A ética e o ensino de ética no Brasil.São Paulo. Cortêz, 1993.

BRASIL. Lei n. º 9.424 - 1996 (LDB).

BRASIL. Constituição - 1988.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais - 1998.

MARIA, Inês. Parâmetros Curriculares Nacionais. Temas Transversais - Introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

MORIN, Edgar. Ética do gênero humano, 2001.

SACRISTÃN, Gimeno A ética e o ensino de ética no Brasil. São Paulo. Cortêz, 1993.

5 Gramsci vincula a ética a educação. Para ele a ética assim como pode vir do consenso para o qual a educação instrumental pode vir também de uma concepção política democrática. E, enfim, é concreta.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO III, Nº130 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 130

A RELAÇÃO ENTRE SENTIDO E REFERÊNCIA

A PARTIR DO OLHAR DE FREGE

MARINALVA VIEIRA BARBOSA

PRIMEIRA VERSÃO

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Marinalva Vieira Barbosa A RELAÇÃO ENTRE SENTIDO E REFERÊNCIA A PARTIR DO OLHAR DE FREGE [email protected] Aluna do Curso de Mestrado em Lingüística - IEL – UNICAMP

Qual o significado do que você está falando? O que você quer dizer com isso? Essas são questões que marcam o nosso cotidiano, mas que refletem também

uma polêmica que faz parte dos estudos semânticos. A definição do sentido das palavras no mundo, a necessidade de especificar a que o sentido se refere, de que ele

fala, tem sido uma busca de diferentes teóricos ligados ao campo da Semântica. O Filósofo Alemão Gottlob Frege, por exemplo, buscou amparo na lógica para

desenvolver a sua teoria sobre o sentido e o referente. A abordagem freguiana postula que o estudo do significado tem como base o conceito de verdade. Um nome

próprio, por exemplo, tem significado quando conseguimos alcançar, através do seu sentido, o objeto no mundo. ( p. 94)

A relação entre o significado da palavra e seu referente foi discutida por Frege no clássico ensaio Sobre o sentido e a referência (1982). Frege inicia seu texto

afirmando que a igualdade desafia a reflexão dando origem a questões que não são muito fáceis de responder. A relação de igualdade ou a explicação de como é

possível que uma sentença da forma a=a tenha valor cognitivo diferente de uma sentença da forma a=b é o ponto de partida do texto referido. No caso de a=a,

trata-se da relação que o objeto tem consigo mesmo; já em a=b a relação de igualdade é constituída entre dois sinais ou nomes diferentes que se referem a um

mesmo objeto. (p.61)

É a consideração de que o sentido de uma expressão ou de uma sentença não se confunde com o objeto de referência que torna possível explicar como os

valores cognitivos de a=a e de a=b diferem. Numa afirmação do tipo a estrela da manhã é a estrela da manhã, teríamos uma relação do tipo a=a, em que o verbo ser

estabelece uma relação de identidades entre dois objetos. Neste caso, não há diferença nem distinção de sentidos. Já na afirmação a estrela da manhã é a estrela da

tarde, temos uma relação do tipo a=b, pois dois sentidos diferentes são usados para referir a um mesmo objeto.

As relações do tipo a=a são denominadas de analíticas e são verdadeiras em qualquer circunstância. É uma verdade óbvia. Já a expressão a=b remete a uma

relação descritiva. Neste caso, o verbo ser liga expressões com sentidos diferentes, estabelecendo uma relação de identidade a partir de elementos diferentes. Na

relação a=b existem extensões muito valiosas de nosso conhecimento, e nem sempre podem ser estabelecidas a priori. As expressões apresentadas nos exemplos

acima têm um mesmo referente - o planeta Vênus - no entanto, existem dois modos de referir a este objeto. Estrela da manhã e estrela da tarde são duas expressões

com sentidos diferentes que remetem a um mesmo objeto. (p. 61)

Tomando como base um sistema ternário, Frege concebe o signo a partir da distinção entre nome próprio, sentido e referência. Usando como exemplo as

linhas constitutivas do triângulo, o teórico afirma que os pontos que ligam a e b e a e c apresentam a mesma intersecção, isto é, são descrições que apresentam o

mesmo ponto de referência, mas com sentidos diferentes. Para Guimarães (1995), Frege trata a igualdade como sendo uma relação entre os sinais a e b e não entre

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os objetos designados por a e b. Assim, uma diferença só poderá aparecer se à diferença entre sinais corresponde uma diferença no modo de apresentação daquilo

que é designado. (p.61)

Os diferentes modos de referir a um mesmo objeto, segundo Oliveira (2001), mostra que a teoria desenvolvida por Frege considera que o significado envolve

pelos menos dois conceitos: o de sentido e o de referência. Essa face dupla do significado é responsável pela ambigüidade existente em perguntas do tipo: qual o

significado da cor vermelha? Tal pergunta pode mobilizar dois tipos de respostas: uma que aponta para o seu referente, no caso uma amostra do vermelho; a outra

resposta pode envolver definições que falam da categoria do vermelho como pertencente às chamadas cores primárias, ou seja, que remetem ao sentido que o

vermelho tem. Ao perguntar pelo significado de uma palavra podemos ter respostas que falam de sua referência ou que falam do seu sentido.

A descrição do conceito de significado toma como ponto de partida o conceito de verdade, isto é, trata-se de uma proposta semântica que está fundamentada

na relação da linguagem com os objetos no mundo, sendo o referente a condição fundamental para a compreensão do significado. O referente é o objeto no mundo,

que por sua vez, só pode ser alcançado a partir do seu sentido. Neste contexto, um nome próprio exprime seu sentido e designa ou refere-se a sua referência. Por

meio de um sinal exprimimos seu sentido e designamos a sua referência. (p.67)

Para Frege, quando as palavras são usadas de forma costumeira fala-se de referência. No entanto, também podem ser usadas para referir a si próprias ou

sobre o seu sentido. Isto ocorre quando recorremos às palavras de outrem para falarmos de um determinado assunto. As palavras de quem cita têm como referência

as palavras citadas, sendo que somente as palavras trazidas de um outro contexto é que apresentam referência usual. Daí termos sinais de sinais. O outro caso que

ocorre nestas circunstâncias é o da citação indireta, em que usamos o sentido das palavras de outrem, mas não as mobilizamos diretamente para o contexto de uso,

ou seja, quando fazemos uma citação indireta, as palavras também não apresentam uma referência costumeira.

Outra noção também implicada no conceito de significado é a de representação, que trata do aspecto subjetivo do significado. A representação apresenta

muitas diferenças no sentido de um sinal por ser resultado de um olhar individual sobre um determinado objeto. A representação que alguém tem da lua, por

exemplo, é única. Daí Frege dizer que a representação deve ser vinculada a uma época. Retomando a cor vermelha, podemos dizer que atualmente no Brasil ela

suscita diferentes representações dependendo dos envolvidos. Para um militante do MST, vermelho significa luta pela conquista da terra. Já para um integrante do

movimento ruralista, esta cor está ligada aos movimentos de esquerda, que por sua vez representam baderna, desrespeito e transgressão a ordem estabelecida. Para

o primeiro, a cor representa necessidade de conquistar, tornar válido um direito; para o segundo, ela representa a quebra de uma ordem estabelecida, a quebra de

direitos. Nos dois casos, a cor - o referente do vermelho - não muda, não há um vermelho para o sem-terra e outro para o militante do movimento ruralista, o que

muda é a forma de ver o vermelho.

As representações mudam de acordo com a época e os envolvidos, mas o sentido – cor primária que difere do azul ou do amarelo – e a referência – uma

amostra da cor vermelha – são comuns a todos os falantes de uma comunidade, são compartilhados. Daí a representação diferir do sentido de um sinal, que pode ser

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propriedade de muitos e não resultado de um olhar individual. Segundo Frege, os sentidos são o tesouro comum de pensamentos da humanidade, são resultados dos

vários caminhos traçados por nossos antepassados e revelam os diferentes modos de apresentar e conhecer um objeto.

Diante disso, pode-se dizer que a referência do nome próprio é o objeto que ocupa um lugar no mundo, já a representação é resultado do olhar individual

sobre o objeto, o que faz com que esta tenha um caráter único e subjetivo. Entre a referência e a representação está o sentido, que não apresenta a mesma

subjetividade da representação, mas também não é o objeto. O sentido é o que tem de estável, de compartilhável na língua. O caráter subjetivo da representação fez

com que Frege a excluísse dos estudos semânticos, considerando tratar-se de uma questão de interesse da psicologia. A discussão sobre este assunto aparece em seu

texto com a finalidade de evitar que a representação seja confundida com o sentido ou com a referência.

Ao discutir o caso das sentenças assertivas completas, Frege afirma que o pensamento – sentido das sentenças - não pode ser a referência da sentença porque muda. Observa-se que a referência parece na teoria freguiana como uma condição fundamental, tanto que Frege postula não só a necessidade de o nome

próprio apresentar uma referência, mas também a sentença. Assim, ao sentido de uma sentença chamou de pensamento e à sua referência de valor de verdade. Tal

condição traz o problema das sentenças que possuem sentido, mas que não têm uma referência.

Como pensar, por exemplo, uma referência para sentença do tipo Papai Noel tem uma barba longa e muito branca? Como pleitear um valor de verdade para

tal sentença? Segundo Frege, por não ser um objeto no mundo, por ser um nome sem referência, não é possível dizer se é uma sentença verdadeira ou falsa. A

condição de verdade de uma sentença pode ser afirmada a partir de sua existência no mundo, ou seja, a sentença Papai Noel tem uma barba longa e muito branca

não pode ser considerada verdadeira ou falsa porque é uma criação imaginária cuja existência não pode ser comprovada. É uma criação que faz parte do imaginário

das pessoas, portanto para a teoria freguiana é totalmente irrelevante que tenha referência ou não, isto porque é a busca da verdade que possibilita o movimento do

sentido para a referência.

Segundo Oliveira (2001), a forma como Frege resolve o problema criado pelos nomes relacionados ao mundo ficcional decorre de sua posição quanto ao problema da

pressuposição existencial. A sentença Papai Noel tem uma barba longa e muito branca carrega a pressuposição de que papai noel existe. Negamos ou afirmamos uma

sentença se consideramos que sua pressuposição de existência é verdadeira. Se partimos do pressuposto de que papai noel não existe, então não podemos tecer qualquer

juízo sobre tal sentença, ou seja, não se pode afirmar a condição de verdade ou falsidade sobre sentenças que falam de papai noel. Para Guimarães:

Frege (...) ao ser levado a tratar a pressuposição, trouxe para os estudos da significação a questão da exterioridade no sentido, não para incluí-la,

mas para excluí-la de modo direto na sua formulação. Note-se que o único exterior a ser considerado para Frege é o dos objetos, e o dos valores

de verdade. A exclusão de Frege é interessante porque o que ele exclui é a relação de sentido entre a sentença e um já-dito fora da sentença, o

que ele exclui é linguagem. É a exterioridade enquanto linguagem. (1995, p. 86)

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Por aspirar a construção de uma linguagem perfeita, que não apresentasse os mesmos problemas da linguagem natural, Frege deixa de fora de sua teoria

aquilo que não pode ter uma referência no mundo, pois parte do princípio de que a linguagem natural apresenta ambigüidades que poderiam ser eliminadas numa

linguagem artificial, objetiva. Para construir essa linguagem perfeita, apela para um mundo em que nomes e sentenças, necessariamente, precisam ter uma

referência. Somente quando pensa a representação é que afasta-se desse mundo, mas a coloca no campo do individual.

Assim, se as palavras são usadas de modo corrente, o que se pretende falar é de sua referência. Utilizando as palavras do modo em que são conhecidas por

aqueles que usam um sistema lingüístico, a referência é o objeto no mundo do qual se quer falar. Nos contextos indiretos, considerados opacos, a referência localiza-

se em outras palavras. Mas em tais condições não se fala em referência usual, mas indireta. (p. 64)

Ao discutir as condições em que o valor de verdade de uma sentença pode ser mantido, Frege afirma que não ocorre alteração quando é possível trocar uma

expressão por outra que tenha a mesma referência. Nos exemplos Marta é a mãe de Carla e a professora de português é a mãe de Carla temos duas formas

diferentes para falar de um mesmo referente, ou seja, os sentidos dessas expressões podem ser intercambiados sem que o seu valor de verdade seja alterado.

No entanto, essa condição sofre alteração quando tratamos das sentenças complexas em discurso direto e indireto, pois nesses casos não apresentam um

pensamento independente. Isto ocorre porque uma sentença em discurso direto remete a uma outra sentença e em discurso indireto a um pensamento. Daí a conclusão de

que nas sentenças subordinadas, as substituições não se dão entre expressões com referência costumeira, mas entre as que apresentam um sentido costumeiro.

Na sentença Colombo inferiu que da redondeza da terra poderia alcançar a Índia viajando em direção ao oeste estão presentes como referência dois

pensamentos diferentes: o de que a terra é redonda e o de que Colombo descobriu as Índias. Isso não é suficiente para que possamos afirmar que se trata de uma

sentença verdadeira ou falsa, uma vez que a condição de verdade é estabelecida pela convicção de Colombo de que a terra é redonda e de que podia chegar às

Índias. A condição esférica da terra e o sucesso da viagem não são importantes para a verdade da sentença. (p. 73)

No exemplo acima, se for feita uma substituição por outra sentença que tenha a mesma referência, poderá ocorrer alteração no valor de verdade da sentença

complexa, pois estamos tratando da crença de Colombo. Nesses casos, nos diz Frege, podemos realizar substituições desde que mantenhamos inalterado o sentido

das expressões e não a referência. Isto é, podemos substituir por uma sentença sinônima. (Oliveira, 2001, p. 119)

Por estar falando de linguagem a partir do campo da lógica, a preocupação com a verdade, para Frege, estava ligada à necessidade de encontrar as várias

maneiras por meio das quais o pensamento se apresenta, daí a busca de um modelo de sentença que satisfaça as condições que defende em sua teoria. Para tanto,

toma como modelo sentenças subordinadas cujas palavras tenham referências costumeiras e não apresentam um pensamento como sentido nem um valor de verdade

como referência.

No exemplo: aquele que descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias morreu na miséria, segundo Guimarães (1995), a expressão subordinada que

descobriu a forma elíptica planetária não apresenta referência nem sentido. A ausência de sentido é explicada pelo fato de ser uma expressão que não pode ser usada

de forma independente. Por outro lado, a referência tem como objetivo designar alguém – Kepler, o descobridor – o que não encerra um valor de verdade. Para

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Frege, o que é afirmado na subordinada não faz parte do que se afirma na sentença complexa. Isto pode ser verificado a partir do teste da negação e da interrogação.

Negação ou interrogação, tanto uma como a outra vão incidir somente na oração principal.

Esse modelo permite que Frege contorne, por exemplo, o problema colocado pela sentença com discursos direto e indireto, pois pode fazer a substituição de

uma sentença por outra que tenha a mesma referência sem que o valor de verdade seja alterado. As sentenças subordinadas apresentam apenas uma parte do

pensamento contido na sentença complexa e não tem um valor de verdade como referência. Tal condição é possível porque ou as palavras da sentença subordinada

têm uma referência indireta, de modo que a referência da subordinada, e não o seu sentido, constitui um pensamento, ou bem a sentença subordinada, por conter um

indicador indefinido, é incompleta e só exprime um pensamento quando justaposta à sentença principal (p. 81). Em suma, a separação feita por Frege entre sentido e referente é resultado de uma concepção que busca racionalizar a linguagem. Essa busca pela

objetivação é a responsável pela idéia de que seria possível construir uma máquina que reproduzisse de forma limpa e objetiva a competência semântica de um

falante. Recorrendo às palavras de Oliveira (2001), podemos dizer que a máquina freguiana consegue imitar a criatividade semântica do falante, mas não dá conta de

explicar toda a sua complexidade. É uma tarefa espinhosa higienizar a linguagem, matematizar o sentido, pois trata-se de algo cujo os limites não são redutíveis a

uma definição e nem passíveis de explicações exatas.

BIBLIOGRAFIA

FERRARI, Ana Josefina. A voz do dono – uma análise das descrições feitas nos anúncios de jornal dos escravos fugidos no oeste paulista entre 1870-1876. Dissertação de mestrado. Unicamp, 2002. FREGE, Gottlob. (1982). Sobre o Sentido e a Referência. In: Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1978. GUIMARÃES, Eduardo. (1995). Os Limites do sentido. Campinas, Pontes. ________. Semântica do acontecimento. Campinas, Pontes. 2002. OLIVEIRA, Roberta Pires. Semântica Formal – uma breve introdução. Campinas, Mercado das Letras. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp. 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº131 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 131

O ÚLTIMO YON KIPPUR

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

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Nilza Menezes O Último Yon Kippur Centro de Documentação Histórica do TJ/RO (A Comunidade Hebraica na região dos vales do Madeira, Mamoré e Guaporé) [email protected]

Esse trabalho tem a proposta de ampliar os registros e estudos sobre o povo judeu nos vales dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé. As fontes utilizadas são os

documentos pertencentes ao acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do estado de Rondônia: processos judiciais, livros cartoriais de Imóveis e

Registro Civil que registram a movimentação das pessoas pelas vilas ao longo do trecho ligado pela Vila de Porto Velho, ponto de partida da Estrada de Ferro Madeira Mamoré

a Guajará-Mirim, ponto final da ferrovia que se estendia por rios e florestas. A periodização é dada pela instalação da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira no ano de

1912, em face da documentação produzida a partir de então dentro da esfera do judiciário e que foram as principais fontes para a pesquisa.

O registro pessoal proporcionado pela ficha de mapeamento, onde os descendentes narram a história das suas famílias foi fonte importante, contribuindo para

a observação das trajetórias pessoais dos judeus na região, e proporcionou a percepção das relações familiares e principalmente a observação do momento de

rompimento que o título desse trabalho propõe, a quebra da tradição religiosa. A narrativa de Mirian, filha de um judeu casado com uma mulher, identificada como

não judia que era filha de bolivianos, nascida na Bolívia, traz de forma clara essa observação. O pai de Mirian até morrer guardou os costumes religiosos. Os filhos

possuem nomes típicos, Abrão, Myrian e Muny, mas somente ele praticou nas datas próprias do judaísmo a sua fé. Para os filhos o dia do Íon Kippur, era um dia em

que ninguém podia falar com o pai e que ele comia um pão que vinha de São Paulo.

A presença hebraica na região tem sido estudada e foi registrada com maestria por Samuel Benchimol em diversos trabalhos, no entanto procuraremos aqui,

alargar e ampliar as observações já existentes quanto a presença dos judeus nas cidades de Porto Velho até Guajará-Mirim, observando as atividades exercidas e o

movimento do grupo, registrando a importante presença desses imigrantes.

Em trabalho sobre as identidades judaicas no Brasil organizado por Bila Sorj falando sobre os Judeus na Amazônia, Eva Alterman Blay registra a história de

vida do judeu Isaac, que aos 21 anos no ano de 1909, vivia nos seringais perto da Bolívia junto ao Rio Abunã e que trazia seus filhos para o brith-milah (circuncisão)

em Porto Velho onde existia uma comunidade hebraica composta de trabalhadores dos seringais e da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.

Conforme Samuel Benchimol em estudo sobre os judeus na Amazônia, as cerimônias religiosas eram realizadas em Belém onde havia um rabino (Benchimol,

1999), no entanto, Eva Blay nos informa sobre a realização da circuncisão na Vila de Porto Velho por volta de 1909. O mais provável é que fosse na localidade de

Santo Antonio do Rio Madeira, vez que no ano de 1909 em Porto Velho existia apenas o barracão da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, sendo que todo o centro

político, econômico e social estava em Santo Antonio e nas localidades até Guajará-Mirim.

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Apesar de não termos registros, os documentos estudados deixam perceber que eles não chegaram a uma organização completa vez que seus mortos foram

enterrados em cemitérios não judeus conforme os registros encontrados de Isaac Benchimol (Cemitério da Candelária por volta de 1910) e no cemitério da localidade

de Abunã encontra-se enterrado Isaac Essabá (1913) (Benchimol.1999).

Inscrições em túmulos no Cemitério dos Inocentes em Porto Velho, onde estão Salomão David Quirub, nascido em 07 de março de 1891 e falecido em 06 de

março de 1942; Isaac Benchimol falecido em 21 de julho de 1927, onde consta “(...) homenagem de sua esposa, filhos e HEBRAICOS de Porto Velho”; Marcos

Benchimol falecido em 25 de março de 1938; Lazaro Bohabot “(...) filho de Jayme Bohabot”, falecido em 10 de novembro de 1922, são alguns dos nomes que

registram a variedade de nomes de família e a presença marcante na região. Os registros de morte como da Senhora Reina Buzaglo falecida em Santo Antonio do Rio

Madeira em 1913, cujo inventário registra bens. Os autos de inventário deixam transparecer a importância da família.

Isaac Benchimol é enterrado em 1910 na Candelária (Benchimol, 1999) e em 1923 no cemitério dos Inocentes consta outro sepultamento com pessoa do

mesmo nome. Embora os nomes sejam os mesmos não se trata da mesma pessoa. É comum a confusão feita pela repetição dos nomes entre os judeus. Essa

confusão também ocorre quando se trata dos sírios e libaneses. A variedade dos nomes adotados por eles não é muito grande e era costume ficar repetindo o nome

nos descendentes, assim como a utilização de nomes brasileiros, procurando a aproximação sonora com seus nomes originais.

Quando da observação da documentação existente no Centro de Documentação Histórica do Poder Judiciário, onde estão anotadas as transações comerciais e

as atividades dos habitantes locais, percebemos a grande concentração dos nomes que podem ser identificados como hebraicos na localidade de Santo Antonio,

mesmo porque nos primeiros anos do século XX a localidade de Porto Velho pertencia a Ferrovia. Santo Antonio do Rio Madeira é que apresentava uma sociedade

organizada.

Conforme anotação os judeus na região precederam aos árabes (Benchimol, 1999), outro grupo migratório notável. Jeffrey Lesser em seu livro A Negociação

da Identidade Nacional que trata da minoria de migrantes e da luta pela etnicidade no Brasil observa:

A surpresa dos brasileiros ante a crescente população originária do oriente Médio transformou-se em choque, quando ficou claro que o primeiro grupo

numeroso de imigrantes árabes a vir para o Brasil não era muçulmano nem cristão. De fato, a comunidade norte-africana que começou a se estabelecer na foz do

Amazonas, nas primeiras décadas do século XIX, era exclusivamente judia.

Os judeus instalados em Santo Antonio do Rio Madeira, assim como os de Manaus, mantinham as mesmas características e comportamento, sendo certo que

a maioria era procedente de Marrocos e exerciam atividades comerciais. Sendo claro também que os judeus que desde o começo do século XIX começaram a se

estabelecer ao longo dos rios formavam uma rede de Belém até onde foi possível chegar.

Quando da instalação das atividades judiciárias a documentação nos permite observar os registros de imóveis e transações comerciais datados a partir de

1912, efetuados no cartório da localidade. Neles encontramos um numero grande de famílias hebraicas instaladas na comunidade, exercendo o comércio por meio de

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uma rede idêntica a dos árabes que ocorreu logo a seguir, mantida através de Belém, Manaus, Porto Velho, Santo Antonio do Rio Madeira, Fortaleza do Abunã,

Presidente Marques, Generoso Ponce, chegando até Guajará-Mirim.

A identificação é feita através dos sobrenomes de família. Samuel Benchimol, relaciona os nomes de famílias que adentraram a Amazônia, muitos desses nomes

são encontrados exercendo atividades comerciais na localidade de Santo Antonio do Rio Madeira, sendo perceptível que não eram apenas viajantes. Os nomes dos

homens aparecem os nomes das esposas assinando em atas de casamentos, em transações comerciais, observando que as mulheres não eram analfabetas e tinham uma

participação mais ativa na vida e nos negócios dos maridos que as brasileiras ou outras estrangeiras. Grande número de nomes é encontrado nos documentos de compra

e venda de imóveis, nas transações comerciais, nos casamentos e informações sobre falecimento proporcionado pelos inventários.

No caso dos judeus que habitavam a região de Santo Antonio do Rio Madeira, muitos deles são identificáveis através da ata de casamento onde encontramos

o nome dos pais dos noivos oriundos do Marrocos e onde é registrado o casamento religioso já realizado de acordo com as tradições hebraicas. Possivelmente essa

cerimônia tivesse sido realizada em Belém, onde havia uma sinagoga e um rabino, sendo o casamento civil realizado após, em Santo Antonio onde residiam as

famílias.

A característica comum entre eles é a procedência. Oriundos de Tanger no Marrocos refaziam na Amazônia a continuidade das suas tradições, casando-se com

os iguais, assim como anotou Benchimol em seu estudo “AMAZÕNIA - Formação Social e Cultural”.

A premissa de que para se criar uma sinagoga são necessários dez judeus (homens) com certeza poderia ser aplicada em Santo Antonio do Rio Madeira no

começo do século. Relacionamos aqui nomes de família, alguns já registrados por Benchimol e que aparecem nos documentos de Santo Antonio do Rio Madeira entre

os anos de 1912 e 1930, residindo ou comercializando temporariamente.

Israel, Azulay, Nabeth, Reich, Guitart, Chermont, Larramaga, Meyer, Bensabaht, Essabá, Serfaty, Benarech, Eshrique, Benchimol, Benchitrit, Buzaglo, Cerreuya ou

Serruja, Malaquias, Marache, Nabeth, Guitart, Chermont, Reich, Benayon, Chacon, Dantas, Bastos, França, Castillo, Sotello, Barbiery, Drervell, Norton e Gusman.

Observamos nomes como Siqueira, Penha, Pessoa, Barchilon, Paiva, Barreto, qualificados como portugueses e que são encontrados nas mesmas listas onde se

encontram os judeus estabelecendo casamentos e relações comerciais.

Eles mantinham relações comerciais com os árabes em pequena escala, observando-se um relacionamento mais estreito com os portugueses. Percebe-se pela

relação dos nomes nas cerimônias de casamento e as testemunhas arroladas nas questões judiciais e nas transações imobiliárias que as duas nacionalidades se

serviam uma da outra, havendo troca nas relações.

Cabe aqui uma observação sobre o assunto “cristãos novos”. Ser judeu não é uma situação externa e sim uma condição interna e sabemos que muitos judeus

durante todo o processo de perseguição que sofreram foram obrigados a mudarem de nome. Relações de negócios e casamentos de membros das comunidades

hebraica e portuguesa são freqüentes, induzindo-nos a crer que seriam os portugueses cristãos novos, mas isso os documentos não nos respondem.

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Quando do trabalho de campo anotamos que no caso da colaboradora Mirian Magosso, seu pai contraiu núpcias com uma mulher de origem boliviana e que a

cerimônia foi realizada no Pará. Essa mulher era viúva de um outro judeu da família Azulay. Nos parecendo que esses casamentos no período passavam por um

processo de triagem. Todos eram realizados no Pará onde existia uma sinagoga.

Aqui nos reportamos ao que não é dito, ao que está por de trás das falas, nos silêncios. Conforme dados os judeus começaram a migrar para a região de

Belém desde 1810, foram mais de 100 anos de transformações e de migração. Benchimol fala dos filhos de judeus ao longo dos rios e aqui enxergo parte dos

portugueses de Santo Antonio como cristãos novos. Conforme estudos sobre as mulheres judias (polacas), contrabandeadas e vendidas no Brasil para exploração

sexual (Benchimol, 1999) (Kushnir, 1996), observamos casos de mulheres com nome hebraico, procedentes do Marrocos vivendo em Porto Velho com homens de

outras nacionalidades, qualificadas de forma pejorativa e envolvidas em processos criminais.

Um exemplo pode ser encontrado no processo onde o português Manoel de Oliveira Campos e sua “concubina” Mercedes Sol Sabbat, marroquina (judia) ele

com 26 ela com 25 anos de idade são acusados por brigas na residência de funcionário da Madeira Mamoré Railway Company, na vila de Porto Velho.

A evidência oferecida pela documentação das atividades dessa comunidade na região é bastante ampla e diversificada. Encontramos registros com nomes

hebraicos como o caso de Ida Bentes Azulay sem muitas qualificações; consta que ela vivia com Orlando Pereira da Costa com quem teve dois filhos que não receberam o

nome Azulay em seus registros de nascimento, constando apenas o nome do pai. Ida era doméstica e Orlando carregador de Malas, e pelo nome de família acreditamos

que fosse Ida uma judia, mas Orlando não nos dá essa pista. Apesar da premissa de que a condição de judeu seja transmitida pelo ventre materno, o documento não nos

propicia esse entendimento, assim como a condição paterna, como o caso de Miriam, não foi suficiente para manter a continuidade cultural.

Com relação às atividades comerciais, essa presença também é notável. Francisco da Cunha Bembom, Elias Leão Buzaglo, e Jacob Essabá, que também

traduzia documentos do espanhol para o português, tinham firmas estabelecidas em Manaus.

Abrão Levy, comerciante representante da Firma B. Levy. Moises Serfaty era comerciante em Porto Velho, Saleb Merheb, que foi comerciante na povoação de

Generoso Ponce, cujo inventário tramitou em 1923. O montante da herança que foi de cinco contos e dezoito mil e novecentos réis foram adjudicados pela viúva Rosa

Morheb e pelos filhos José Saleh Morheb de 11 anos, Genoveva Saleh Morheb de 07 anos e Josephina Saleh Morheb de cinco anos. Salomão Rengito era comerciante

em Santo Antonio do Rio Madeira em 1926.

As firmas estabelecidas apresentam os nomes: Dinard Benayon e Companhia tendo como sócio Moyses José Bensabath; foi liquidada em 1916. Castillo &

Companhia, Beynayon & Companhia, B. Levy e Companhia, N. Ariola e Companhia que nos induzem a afirmar pertenciam aos judeus em razão da forma de

comercializar, sempre dentro de uma organização oportunizada pela rede partindo de Belém para Manaus e até Guajará-Mirim.

Muitos deles tinham firma estabelecida em Manaus e mantinham negócios em Santo Antonio, assim como nas demais localidades ao longo da ferrovia até

Guajará-Mirim, sendo administrada por algum parente.

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É certo e deve ser registrada a importância desses imigrantes na localidade que além das atividades comerciais exerciam os cargos públicos relevantes na

sociedade de Santo Antonio. O nome Chacon do primeiro juiz da Comarca (1912-1914) de Santo Antonio figura na lista das famílias hebraicas da Amazônia, assim

como Moyses José Bensabaht, comerciante e juiz suplente (1913 –1916) e José Penha, que era juiz adjunto do Distrito Judiciário do Estado do Amazonas.

Apesar de não termos registros nesta coleção de documentos anteriores ao ano de 1912 da localidade, certo é que essas famílias já se encontravam instaladas

ali desde antes de 1900, provavelmente desde o início do período da exploração da borracha. Possivelmente desde o período em que foram abertos para navegação o

Rio Amazonas e seus afluentes (1866) e que os judeus pioneiros que já se encontravam no Pará adentraram e se expandiram ao longo dos rios, das vilas, dos

povoados e seringais da hinterlândia.

Benchimol anota que de 1810 a 1910 mais de mil famílias de imigrantes judeus, tanto sefarditas-marroquinas como de outros grupos culturais judeus da

Europa e do Oriente Médio, vieram fazer a Amazônia, trazidos por motivos econômicos, sociais, religiosos e educacionais em busca da ERETZ AMAZÔNIA - A NOVA

TERRA DA PROMISSÃO.

Com a queda da borracha esses nomes desaparecem, permanecendo poucos vestígios dessa presença tão marcante. Conforme ainda registra Benchimol, a

maior parte estabeleceu-se em Manaus e Belém, estando registrados apenas a família Benesby e David Israel em Guajará Mirim. A família Querub em Porto Velho,

Benchimol em Fortaleza do Abunã e Moses Bensabá em Santo Antonio do Rio Madeira.

Os nomes de família são como uma bandeira, significam tradição de famílias importantes da região. Nomes que já figuraram e figuram nas listas dos

deputados, prefeitos, médicos, comerciantes, advogados, enfim, pessoas de destaque da sociedade. Muitos nem mesmo tem muita consciência, desconhecem os

significados de ser um neto de judeu em face da identidade perdida.

As famílias, Benesby e Israel são citadas no trabalho de Samuel Benchimol como sendo os únicos remanescentes dos judeus na região do Guaporé. Ao que se

observa pelas pesquisas desenvolvidas, a família Benesby permanece tanto em Guajará-Mirim como em Porto Velho mantendo as tradições culturais, no entanto a

família Israel conforme se observa da fala da Mirian perdeu a identidade cultural. Com a morte de David Israel, tendo em vista seus filhos serem de ventre de mãe não

judia, os filhos não se consideram judeus. Lembram o nome de família, um parente antigo que cultuava o Iom kipurr, e já se reconhecem como católicos.

Mesmo ficando a dúvida com relação à origem de Sara, face aos seus casamentos com dois judeus, ao fato de seu nome ser comum entre os mesmos, ela

também poderia ser filha de pai judeu, que colocou-lhe um nome do seu gosto, mas a mãe não judia transmitiu-lhe a condição de também não ser judia. Seu filho do

primeiro casamento que traz o nome Azulay, de origem judia pelo pai, não é judeu, condição que o ventre materno não lhe concedeu. Pelas informações de Miriam,

ele é reconhecido socialmente como judeu, porém não participou das reuniões, das cerimônias religiosas com a família Benesby em Guajará-Mirim a exemplo de David

Israel, seu padrasto.

Como exemplo utilizamos a história de Miriam que serve para percebermos como podem ter ocorrido as relações entre os imigrantes hebraicos para as regiões

mais isoladas da Amazônia. A história de Miriam pode não ser só dela, pode ser de tantos outros filhos e netos de judeus que foram perdendo a identidade.

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Mirian Israel Magosso, filha de David Miguel Israel, conta a história do seu pai e seus avós na Amazônia. Sua narrativa nos permite leituras de tantas outras

famílias judias que vieram fazer a América ou fugindo das guerras. Suas lembranças são imagens que lhe deram. Sabe que seu pai era judeu, que praticava os rituais

hebraicos em Guajará-Mirim com a família Benesby, mas isso na sua vida ficou apenas como imagens do dia que seu pai passava comendo o pão diferente e sem falar

com ninguém. Ela informa que o pão para o jejum vinha de São Paulo. Sua mãe se chamava Sara, natural de Trinidad-Bolívia e segundo Mirim era católica, apesar de

ter sido casada em primeiras núpcias com o judeu Isaac Azulay com quem tivera o filho Abrão Azulay. Em segundas núpcias uniu-se em Belém do Pará com David

Miguel Israel tendo nascido dessa união Mirian e Muny. Mirim informa que seu pai praticou a religião, comemorando o Íon Kippur até morrer, mas os filhos nunca

praticaram, se reconhecem como católicos.

Durante as entrevistas com Miriam, questionando sobre o nome da sua mãe Sara Montanho, nome tipicamente hebraico e o fato de ter a mesma se casado, tanto

nas primeiras núpcias da qual ficou viúva como na segunda com homens judeus. Ainda mais o fato de terem sido os casamentos realizados na cidade de Belém local de

congraçamento dos judeus pela existência de sinagoga, a mesma não sabe se esses fatos guardam alguma relação com a origem da família de sua mãe.

Pedimos a Mirian que narrasse o que sabia da história de sua família. Ela sabia que estávamos querendo saber sobre o povo judeu na região e começa assim a

descrever o que teve conhecimento:

Passarei agora a contar a História de meu pai David Miguel Israel. Chegou no Brasil, no Estado do Amazonas um casal de imigrantes com o nome de Jacob D’

Israel e Rica D’ Israel isso aconteceu mais ou menos no ano de 1897. Vieram para aqui fugindo das guerras, mas nesse intervalo de tempo minha avó Rica D’Israel

engravidou, dando à luz a meu pai David Miguel Israel. Ele nasceu em Borba Estado do Amazonas aos 14 dias do mês de setembro de 1900 e foi registrado no

cartório desse município. Pouco tempo depois surgiu um surto de malária na época era a febre amarela muito grande no Amazonas. Meus avós temendo morrer desta

moléstia embarcaram novamente para Montreal na França. Alguns anos depois meus avós entregaram esse filho David Miguel Israel para um colégio interno, que só

saiu dali quando completou 18 anos, já bem educado falando vários idiomas. O próprio colégio o mandou para o Brasil para o alistamento Militar, devido sua certidão

de nascimento ser de Borba-Amazonas. Chegou aqui um rapaz de 18 anos, serviu o exército e depois nunca mais voltou para a França. Sua atividade era mascatear

pelos rios, marretava muito comprando e vendendo produtos e tornou-se comerciante em Manaus. Tinha um comércio de confecções, foi aí que ouviu falar em

Guajará-Mirim, havia explodido aqui a borracha, a compra de peles, a poalha, e foi aí que ele veio para cá e começou a comprar peles, poalha, borracha e mandar

para exportação. Conheceu nessa época minha mãe Sara Montanho e teve duas filhas Muny Israel Barbosa e Mirian Israel Magosso. Meu pai morreu no dia 27 de abril

de 1985, com 85 anos de idade aqui em Guajará-Mirim.

O relato de Mirian, obtido através de uma ficha de mapeamento nos apresenta a história de uma família das tantas que vieram para a região e que exerceram

atividades comerciais. Ela fala do seu pai, que nasceu em 1909, portanto esse tempo ao qual ela está se referindo é um tempo recente, mas que nos oferece

descortinar como se processam as transformações.

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Sara Montanho poderia ter tido uma história parecida com a de Mirian, talvez seus pais tenham passado pelo mesmo processo de estrangulamento cultural, o

que fez com que ela perdesse a identidade. Muitas mulheres podem ter passado por processos idênticos.

Para concluir vale lembrar as observações de Benchimol em capítulo sobre a demografia judaica (Valer, 1999), onde ele aborda a questão dos filhos de judeus

espalhados pelas barrancas de rios, dos tempos em que os judeus viajavam com seus regatões, antes dos árabes, ocorrendo o desaparecimento para o judaísmo de

um grande número de famílias judaicas no interior amazônico. O ser, viver, ficar e sobrevier judeu não se tornou possível, e assim como o pai de Mirian que foi o

último da família a comemorar o Yon Kipur, tantos outros esqueceram do dia de pedir perdão e acabaram incorporados e integrados à população amazônica.

Fontes Primárias Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia Centro de Documentação Histórica do Estado de Rondônia Jornais Alto Madeira décadas de 10 a 40

Bibliografia

ANTONACCIO, Gaitano. A Colônia Árabe No Amazonas. Manaus, 1996. BENCHIMOL. Samuel. Amazônia, Formação Social eCultural. Valer, Manaus,1999. BLAY, Eva Alterman. Judeus na Amazônia. In Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo. (org) Bila Sorj) Imago, Rio de Janeiro,1997. FAUSTO, Boris (org) Fazer a América. Edusp, São Paulo, 2000. HARDMANN, Francisco Foot. Trem Fantasma-A Modernidade Na Selva. Companhia das Letras, São Paulo,1988. KUSHNIR, Beatriz. Baile das Mascaras. Imago, Rio de Janeiro, 1996. MAIA, Álvaro. Gente dos Seringais. Rio de Janeiro, 1956. MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória. Contexto, São Paulo, 1994. OLIVEIRA, Lucia Luppi. O Brasil dos Imigrantes. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001. SCLIAR, Moacyr. Souza, Marcio. Entre Moises e Macunaíma. Garamond, Rio de Janeiro, 2000. TRUZZI. Oswaldo. Patrícios – Sírios e Libaneses em São Paulo. Hucitec, São Paulo, 1997. TRUZZI. Oswaldo. De Mascates A Doutores: Sírios E Libaneses em São Paulo. Editora Sumaré, São Paulo, 1992.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº132 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

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TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 132

AGORA ESTOU CONTENTE: O DIALOGISMO

NUM CANTO RELIGIOSO BATISTA

MOISÉS PEIXOTO

PRIMEIRA VERSÃO

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Moisés Peixoto AGORA ESTOU CONTENTE Aluno do curso de Mestrado em Ciências Humanas - UFRO O dialogismo num canto religioso batista [email protected]

É sabido que a língua não é somente organizada e usada para lamentar, rejeitar, suplicar, advertir, persuadir, comandar, mas também para cantar, pois cantar

é um ato de fala, é uma enunciação. Cantar é discursar, é por a linguagem para agir de uma determinada maneira, é um modo de vida social e como diz Garcez: “... é

uma atividade humana cujas categorias observáveis se modificam no tempo e apresentam um funcionamento profundamente interdependente do tipo de contexto

social em que ocorrem” (1998: 46). O hino, a canção ou qualquer outra linguagem musical, como discurso, é um produto do trabalho coletivo e histórico. E como tal,

não existe no vácuo, mas está imersa numa rede de valores discursivos de vários níveis. Todo o universo lingüístico onde as canções musicais e demais modalidade de

canto fazem parte, constrói-se, existe e funciona num universo social, coletivo, e não pode ser abstraído dessa condição.

Ao cantar estamos fazendo uso de várias unidades sonoras, cujo sentido só pode ser estabelecido e entendido como um produto do uso, como o resultado

mesmo da atividade significante: o significado de uma palavra é o seu uso na língua.. Neste sentido, apesar dos hinos serem um discurso construído, inicialmente,

pelas comunidades religiosas que o cantam, eles também interagem com o contexto social onde estão inseridos. A linguagem seja ela religiosa ou não é uma ação

interativa, pois segundo considera Bakhtin, “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação

monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das

enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (1997: 123).

Vemos, enfim, o hino como uma enunciação; como um discurso, um texto religioso mediado por uma linguagem musical; linguagem esta que se fundamenta

no entendimento de que são dialógicos E assim são “porque resultam do embate de muitas vozes sociais” (Barros, 1999:06) e também conforme justifica Lucila

Garcez, “a enunciação tem uma orientação social, é orientada para o outro e é por ele determinada; porque sua compreensão depende de formulação ativa de

resposta, de contra-palavras; é dialógico porque é essencialmente polifônico” (1998:56). O hino aqui em questão se intitula: “Agora estou contente” e faz parte da

liturgia das Igrejas Batistas brasileiras.

O CORPUS DO HINO

A partir do pressuposto teórico de que a linguagem seja ela qual for, é uma forma de ação; que o dialogismo é o seu princípio constitutivo e a condição do sentido do

discurso, apontaremos algumas das diferentes vozes que dialogam num hino batista e verificar se elas se aproximam ou se distanciam da ética protestante de Weber.

O hino ou o canto religioso dentro dessa concepção tem sua melhor representação na letra da canção “The Shall My Heart Keep Singing”, escrita em quatro

estrofes por J.J. Maxfield e publicada em 1888 na coletânea “New Hymns and Solos”, de Ira David Sankey (1840-1908); mais tarde, na coletânea “Secred Songs and

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Solos”; cuja música foi composta por Wiliam Augustine Ogden (1841-1897). A letra original foi traduzida por Stuart Edwin Mcnair (1867-1959). Este hino foi

introduzido no hinário batista, denominado de “Cantor Cristão” na 36a. Edição, 1971 com o titulo “Cristo Satisfaz” (CC-395) e no “Hinário para o Culto Cristão” na 1a.

Edição em 1990, intitulada: “Agora estou Contente” (HCC-319), omitindo a terceira estrofe da letra original de J.J.Maxfield. Eis o hino:

Riquezas não preciso ter, mas sim celeste bem; nem falsa paz, ou vão prazer, porquanto o salvo tem eterna paz no Salvador, por desfrutar o seu amor.

Estribilho: Vivo feliz com Cristo, ele me satisfaz. Com esse amor do redentor, agora estou contente.

Do mundo as honras para mim perderam seu valor. Já tenho a paz divina, enfim, servindo ao meu senhor. E mais feliz, então serei ao ver a glória do meu Rei.

Até que esteja lá no céu, a onde Cristo entrou, e veja a face já sem véu de quem me resgatou, desejo só aqui viver de um modo que lhes dê prazer.

AS CONDIÇOES DE SUA PRODUÇÃO

É bom lembrar que a forma de enunciação do hino [sua estrutura] é determinada pelas condições de sua produção. É nos cultos das Igrejas que esta

enunciação se produz inicialmente. Dependendo do culto que se faça e do contexto histórico-social que ele está inserido [o contexto brasileiro], este hino produzirá

sentidos diferentes, apesar da letra, aparentemente, permanecer a mesma. Isto quer dizer que as chamadas “condições de produção” não são fixas e uniformes, mas

dinâmicas. São nos cultos das Igrejas, onde os sentidos deste e de outros hinos são produzidos. Como no Brasil, o formato dos cultos não é de natureza simbólica e

nem coletiva, mas pragmática e individualista, isto é, o culto tem como objetivo não o louvor e a adoração em si mesmo por parte da coletividade, mas sim, a

conversão e reconsagração do indivíduo; são nessas condições, proporcionadas por tais cultos, que todos os hinos são cantados pela igreja. Eles são selecionados e

executados com o propósito de reafirmar as suas “verdades” ou convicções oficiais, abraçadas por cada pessoa que dela fazem parte e de convencer os outros, de

fora do grupo, a fazerem o mesmo, convertendo-se. Tal formatação litúrgica do culto dessas igrejas faz parte da tradição cultural construídas por elas ao longo do

tempo, a partir da herança deixada pelos missionários que a instituíram em solo brasileiro. A respeito desta herança foi dito que: “em lugar do culto de louvor e

adoração recebemos o culto de conversão-reconsagração, o culto-trabalho e o culto pedagógico” (Mendonça, 1990:182). Sendo assim então, o culto no Brasil, vem

sendo um espaço forjado para que a experiência de conversão e reconsagração; trabalho e exercício da pedagogia possa acontecer. Tudo é voltado para esses

propósitos, mesmo que nem sempre eles sejam atingidos. É bom lembrar que outras leituras podem ser feitas dos hinos que são cantados por uma igreja, não há

como garantir que os objetivos do grupo sejam atingidos. Isto quer dizer que, não há como assegurar uma única interpretação dada para eles. Os hinos podem ser

interpretados de muitas maneiras e isso devido ao seu caráter dialógico, polifônico.

Num culto batista nunca só há batistas participando, pessoas de outras denominações cristãs e de outras confissões religiosas [por exemplo: o Candomblé]

podem se fazer presentes e ouvir ou cantar este e outros hinos. Qualquer hino cantado neste culto só envolverá a todos se alguma de sua voz constitutiva fizer parte

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também do repertório dessas pessoas presentes. Tais vozes podem está sendo reafirmada ou contestada dentro dela. Quando cantamos, ocorre um diálogo entre

elas. Como são de variados matizes, há vozes, inclusive, que diferem da ética protestante descrita por Max Weber, por exemplo. Mas para que possamos verificar isso

é importante termo de imediato, uma idéia resumida do pensamento Weberiano a respeito.

A ÉTICA PROTESTANTE SEGUNDO MAX WEBER

Na obra: “A Ética Protestante e o Espírito Do Capitalismo”, Max Weber investiga a emergência do capitalismo como sistema econômico e suas conseqüências

na sociedade como um todo, concentrando seus estudos principalmente na Inglaterra. Weber, nesta sua obra, afirma que o objetivo da Reforma não era criar o

espírito capitalista e que a mesma não foi à única responsável pela criação do capitalismo. Logo na introdução de seu livro, ele nos apresenta um conceito que será

trabalhado no decorrer da sua obra, a racionalidade. É esta que define o espírito capitalista. Segundo ele mesmo diz: “... usamos provisoriamente a expressão do

espírito do capitalismo (moderno) para designar a atitude que busca o lucro racional...” (2001:55) O capitalismo moderno é marcado por uma extrema racionalização e

é um fenômeno peculiar à sociedade ocidental. Para entender tal questão é necessário levar em conta a ética particular dos primeiros empresários capitalistas e

compreender que esta ética não estava presente nas outras civilizações. Para exemplificar esta ética peculiar, o autor faz referência às anotações de Benjamin

Franklin, onde o aumento do capital aparece como ideal de um homem honesto e de crédito reconhecido. Weber afirma que a ética protestante foi um dos fatores de

racionalização da vida que contribuiu para afirmar o que ele chama de “espírito do capitalismo”. Entretanto esta não foi à única causa na gestação do capitalismo, e

sim um elemento que contribuiu para lhes dar forma. É a disciplina econômica e a maximização da eficiência técnica, enfim, o princípio da racionalização que

distinguirá o capitalismo das formas tradicionais de gerir a economia e o tornará incompatível com a visão mágica ou sacra da Europa medieval. Após afirmar que: “O

calvinismo foi à fé sob a qual se desenrolaram as grandes contendas políticas e culturais dos séculos XVI e XVII nos países mais desenvolvidos...” (2001:75), Weber foi

procurar em certas correntes protestantes calvinistas a base das idéias que contribuíram para formar o espírito capitalista. Apesar de encontrar diferentes dogmas

teológicos entre essas Igrejas, o autor observou que suas máximas teológicas eram semelhantes e que todas eram marcadas por uma conduta de vida baseada no

ascetismo. O que lhes interessou foram às motivações psicológicas que tem sua origem nas crenças e práticas religiosas que criam um tipo ideal, sem pretender

refletir com isso a realidade histórica. Desta forma, Weber busca racionalidade até na religião, querendo compreender como essas motivações agiram na realidade

para formar o espírito capitalista. Assim, ao falar do calvinismo, Weber pensa na ética peculiar a certos meios calvinistas do fim do século XVII e não na própria ética

de Calvino.

A ética encontrada por Weber nas religiões protestantes apresenta em sua base uma interpretação da predestinação que aceita os desígnios de Deus como

irrevogáveis e impenetráveis, sendo tão impossível perder a graça, uma vez que ela foi concedida, quanto ganha-la se foi recusada. Outra característica é a rejeição do

sagrado e do sacramento, visto que é em seu próprio espírito e não por intermédio de outrem que o protestante deve compreender a palavra de Deus e o sinal da sua

eleição. Desta forma, toda a magia envolvida no conceito católico de conquista ou reconquista da salvação é eliminada e a religião passa por uma racionalização

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crescente. Porém a necessidade de saber se pertence ou não à categoria dos eleitos será uma constante na vida do protestante, que tentará identificar os sinais da

salvação na conduta de sua vida pessoal, rigorosamente submetida aos mandamentos de Deus, e em seu êxito social, correspondente à vontade divina. Este êxito

social compreende o sucesso na atividade profissional. Desta forma o sucesso é uma manifestação da glória de Deus e um sinal da salvação. O êxito no trabalho

confirma a vocação pessoal e justifica a eleição, não se podendo comprar a própria salvação com boas obras ou sacramentos, o que diferencia o protestante do

católico que, por sua vez, espera que a salvação surja da “mágica” do sacerdote ou de suas “boas obras”.

“Apesar, pois da inutilidade das boas ações como meios de se obter a salvação,..., eram, contudo indispensáveis como sinal de eleição” (2001: 86).

Outro sinal da eleição é o ascetismo que demonstrar que o crente é portador da verdadeira fé. O constante domínio de si e a conduta ascética contribuíram

para racionalizar a gestão dos negócios, tornando o protestante apto a organizar as empresas e, conseqüentemente, racionalizando a economia. Porém, a acumulação

de riqueza, proveniente do êxito profissional, poderia ser vista como uma contradição às leis divinas, o que não é verdade se observarmos que o condenável é a

ociosidade e não aquisição de riquezas. O tempo não pode ser desperdiçado e deve ser dedicado ao máximo para o trabalho, já que “não é trabalho em si, mas um

trabalho racional, uma vocação, que é pedida por Deus”. Além disso, o protestante deve usufruir somente daquilo que é absolutamente necessário para sua

subsistência, evitando gastar com supérfluos e luxurias e combatendo o uso irracional da riqueza, o que fortalece a idéia de acumulação. Desta forma, originou-se um

estilo de vida que alimentou diretamente o espírito do capitalismo, criando uma situação uma situação favorável ao seu desenvolvimento. Com a extrema valorização

da riqueza e a idéia de que era necessário evitar o luxo, o lucro era reinvestido em trabalho, provocando assim uma incessante acumulação de capital. Weber afirma

que esta organização racional dos negócios e esta conduta não são a causa única do capitalismo, mas sim um de seus elementos fundamentais. Por fim, a análise das

relações existentes entre a ética protestante e o espírito do capitalismo é apenas um exemplo sugestivo que mostra como um código ético de origem religiosa

determina um comportamento moral que transforma os aspectos econômicos.

AS VOZES ATRAVESSADORAS

Novamente segundo Bakhtin: “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os

domínios” (1997:41). Sendo assim, nenhum hino existe e nem é cantado no vazio. Como são produtos históricos-sociais, produtos eclesiásticos, não só tem finalidade

religiosa, devocionais ou proselitista, mas também ideológica e política. São essas vozes que lhes atravessam.

Seria interessante realizarmos nossa análise a partir da letra original, mas não sendo possível, tivemos que nos deter na tradução mais recente dela em uso

nas Igrejas que utilizam o Hinário para o Culto Cristão, uma vez que isto não afeta o dialogismo que pretendemos apontar. As vozes que buscamos identificar na letra

deste hino, ainda continuam lhes atravessando. Não obstante, é bom lembrar que o hino em si mesmo não nos diz nada, não tem sentido e nem nenhum significado a

qual possamos desvelar, descobrir. A sua interpretação é produzida quando ele é cantado, quando ele está em interação; fora disso, ele é somente apenas texto,

somente discurso. Mas, que vozes podemos perceber na constituição desta canção? Que fios ideológicos tecem suas palavras? Ao observarmos a primeira estrofe:

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“Riquezas eu não preciso ter mas sim celeste bem...” [1ªestrofe]

Muitos são as vozes que atravessam esse discurso do hino sobre a riqueza. Uma dela vem da sociologia e economia, que a define como, ter posses, ter bens e

propriedades. Na linguagem tanto marxista como liberal riqueza implica em ser proprietário de algum meio de produção de bens que proporciona ao possuidor os

benefícios da sociedade onde se encontra. O dinheiro, como os demais bens, é encarado como uma mercadoria e estão sujeitas as trocas, para que seja multiplicada.

Ele deve ser gerador de mais dinheiro, mais riqueza. Não existe em si mesmo ou para si mesmo, mas é produto do trabalho humano.

A riqueza segundo a literatura bíblica é definida indiretamente de diferentes maneiras tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Segundo Du Buit &

Monloubou (1997: 630-1): “No Antigo Testamento, a riqueza é contemplada em primeiro lugar como sinal de benção de Deus que recompensa a fidelidade do homem.

A abundancia dos bens dos patriarcas e de Jó constitui um sinal dessa benção. A riqueza é um dom de Deus; é lícito deseja-la. Mas contra esse otimismo constante

começam a se fazer ouvir vozes diversas. A dos Sábios, por exemplo, moderadas, mas às vezes sarcástica. Não se deve, segundo eles, dar demasiada importância à

riqueza, porque ao morrer ninguém leva nada consigo. O rico não pode comprar um suplemento de vida. Além do mais, a riqueza traz muitas preocupações: Quem se

farta de riquezas não logra conciliar o sono. A pessoa muito rica corre o perigo de afastar-se do senhor”. “No Novo Testamento, o dinheiro constitui um grande

obstáculo para se entrar no Reino dos Céus; ele é personificado como se fosse uma divindade pagã ‘Mammon’”.

Há a voz [doutrina oficial] da igreja batista que dialoga também no hino, propondo uma única e válida interpretação, cuja inspiração advem de uma leitura

particular da Bíblia, onde a riqueza é definida como ter posses e bens materiais também, mas que nada disso pertence ao homem, mas a Deus. O homem seria

apenas o seu administrador. Segundo a declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (1987: 18): “Todas as bênçãos temporais e espirituais procedem de

Deus e por isso devem os homens a ele o que são e possuem e, também, o sustento,... o crente é mordomo ou administrador da vida, das aptidões, do tempo, dos

bens, da influência, das oportunidades, da personalidade, dos recursos naturais e de tudo o que Deus lhe confia em seu infinito amor, providência e sabedoria”. Já os

chamados princípios batistas (1987:21), reafirmam que “os bens materiais em si não são maus nem bons. O amor ao dinheiro, e não o dinheiro em si, é a raiz de

todas as espécies de males”. Observem que tal visão se relaciona com a ideologia liberal. É uma relação histórica. Os batistas surgem, enquanto denominação religiosa

na Europa pós Reforma Protestante no século XVI e no Brasil, no início do período Republicano, no final do século XIX, junto com o liberalismo econômico. Sua

doutrina é forjada em meio a esse contexto social.

Portanto, cantar: “riquezas não preciso ter” para quem já a possui e que vive de sua acumulação, seja este batista, católico, espírita ou qualquer outra coisa,

pode tanto significar uma crítica como uma sugestão, quando aponta para um outro objetivo que tais pessoas deveriam buscar atingir: “os bens celestiais”. Tais

pessoas já possuem bens materiais, já estão satisfeitas com elas ou até fartas delas, agora precisam também acumular bens de uma outra natureza. O que seria,

portanto, “bens celestiais” para um batista, por exemplo? Nenhuma resposta seria satisfatória, uma vez que até os bens materiais poderia fazer parte desta categoria

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para eles. Neste caso, vai predominar o sentido que a comunidade lhes der. Para os que não possuem e nem acumulam riquezas, tal canção pode servir de consolo ou

desculpas. Posso não possuir nenhum patrimônio, não ter emprego, moradia, saúde, vestimentas e alimentos e ser feliz assim mesmo, porque, quando eu morrer,

terei tudo isso lá no céu. Posso também, me contentar com o que já tenho, mesmo que seja nada, e me satisfazer com os bens simbólicos que Deus me dar. Sou

pobre, mas Deus me dar saúde e inteligência! Isto é que é uma benção celestial! “O salvo tem eterna paz no Salvador” assim afirma o hino ainda na sua primeira

estrofe. Por isso dispensa a riqueza. O importante é ser rico espiritualmente. Bem aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o Reino de Deus, assim diz os

evangelhos.

Tal compreensão acima é ideológica. Uma vez que muitos protestantes apesar de falarem desse jeito, tem uma conduta oposta. Esta idéia não condiz com o

ideal de valorização da riqueza que alguns deles defendem. Se fosse para eles mesmos praticarem tal entendimento, esta canção jamais seria cantada, porque ser

cristão não significa fazer voto de pobreza e desprezar a riqueza por crê que ela não traz paz e nem prazer verdadeiro. Ora, quem assim agia, segundo Max Weber era

o católico pré Reforma protestante. Este, segundo ele: “vivia eticamente da mão para a boca” (2001: 87). Se satisfazer só com os bens celestiais, para muitos

calvinistas por exemplo, é se satisfazer com pouco; é sinal de que esta pessoa não é um eleito, mais sim um parasita de Deus. Isso tudo, se levarmos em

consideração em que contexto econômico nós estamos inseridos, levanta inúmeras questões políticas, a saber: Por que cantarmos esse ideal num tempo onde a idéia

de trabalho está se diluindo e o desemprego é muito mais real?

A pobreza era adotada como regra de vida no século XI como contraponto ao luxo proporcionado pela riqueza. Segundo Macedo: “... do século XI em diante,

as cidades aumentaram em número e em importância. Justamente nesse momento, em que a riqueza proporcionada pelas atividades urbanas ficava mais visível, a

pobreza passou a ser encarada como um ideal” (1996:58). Seria a pobreza, um ideal de vida almejado por quem assim canta em nossas cidades de hoje?

“Do mundo as honras para mim perderam seu valor”.[2ªEstrofe]

Do mundo as honras para mim perderam seu valor. Já tenho a paz divina. Este é o início da segunda estrofe e qual voz estaria cruzando esta frase? É a voz

do ascetismo. Segundo Weber uma voz legitimamente protestante. Segundo ela, não poso sentir prazer com os resultados do meu trabalho. Nenhuma honra, que seja

ela política, econômica ou social. O crente tem que ser discreto, poupador. O resultado do trabalho deve ser investido no crescimento desse trabalho e não no

consumo ou na gastança. O consumismo, segundo esta ética descrita por Weber, é irracional para o capitalismo. Não obstante, no mundo do século XXI em que o

prazer da vida é consumir e que você é aquilo que consome, tal ética protestante soaria estranho, não tem seguidores fieis nem entre os próprios protestantes. Frases

do tipo que diz: “desejo só aqui viver de um modo que lhes dê prazer” não reproduz o ideal ascético dos protestantes do século XIX descritos por Weber, uma vez que

o conceito de prazer foi também estendido, sem culpa alguma, aos homens. Desde a metade do século XX, podemos observar, o quanto o protestantismo de todos os

tipos tem abraçado inteiramente a lógica capitalista, no que diz respeito à criação de um mercado especificamente dirigido ao consumidor evangélico para que

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possam, com isso, criarem toda uma gama de produtos variados e com isso obterem cada vez mais lucros pessoais. Neste sentido, todos ou quaisquer argumentos

religiosos, teológicos e comercias para justificar o empreendimento podem ser usados. O empreendimento é visto como uma cruzada evangelística; o mercado como

um espaço onde se concorre com satanás e os seus produtos e o lucro como a vitória dos santos contra o príncipe das trevas. O lucro material é visto como uma

benção de Deus que proporciona também bênçãos espirituais. Muitas pessoas têm sido evangelizadas e se tornado evangélicas por meio desses produtos disponíveis

no mercado. Nele podemos encontrar todos os tipos de produto, desde Bíblia de vários tipos para variado gosto, como chaveiro com mensagens religiosas, CDs,

camisas, bonés, celulares e etc. Tal comportamento deixou de ser visto como “coisas do mundo” e as “coisas do mundo” passaram a ser algo diferente.

Enfim, há ainda uma ética protestante que subjaz o comportamento dos evangélicos de hoje, porém esvaziado do antigo ascetismo por eles vivido. O

protestantismo deixou de ser puritano para se tornar utilitarista, logo, algumas das vozes que atravessam um hino como este acima supracitado, dificilmente, faria

referência ao ideal ascético do passado. Os diferentes entendimentos aqui construídos são apenas alguns dos inúmeros que podem ser construídos.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. (1929). MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Hucitec, São Paulo, 1997.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. DIALOGISMO, POLIFONIA E ENUNCIAÇÃO. In Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 01/09, EUSP. São Paulo, 1999.

DU BUIT, F.M & MONLOUBOU, L. DICIONÁRIO BÍBLICO UNIVERSAL. Vozes. Petrópolis, 1997.

GARCEZ, Lucília. A ESCRITA E O OUTRO. EDUNB, Brasília, 1998.

HINÁRIO PARA O CULTO CRISTÃO, JUERP, Rio de Janeiro, 1992.

MACEDO, José Rivair. RELIGIOSIDADE E MESSIANISMO NA IDADE MÉDIA. Moderna, São Paulo, 1996.

MENDONÇA, Antônio G. CRISE DO CULTO PROTESTANTE NO BRASIL In Introdução ao Protestantismo no Brasil. 171/204, Loyola, São Paulo, 1990.

WEBER, Max. A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO. Martin Claret, São Paulo, 2001.

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SONHO E PSICOLOGIA TEXTUAL

CERES FERREIRA CARNEIRO

PRIMEIRA VERSÃO

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Ceres Ferreira Carneiro Aluna do mestrado interdisciplinar em ciências humanas – UFRO

... “Como se a voz, mais naturalmente que a mão, cedesse às

nostalgias.” (PAUL ZUMTHOR)

A proposta aqui é abordar as teorias de Paul Zumthor a partir das obras introdução à Poesia Oral (capítulo IV), a Letra e a Voz (capítulo V) e Tradição e

Esquecimento. Zumthor demonstra singular capacidade para transitar nas questões inerentes à oralidade, escrita e memória, perpassando por diversos momentos

históricos e criando alternativas outras de reflexão para os leitores sobre os referidos temas. trataremos os textos de Zumthor fazendo paralelos entre o papel do

intérprete e do ouvinte, entre escrita e oralidade, entre memória, esquecimento e tradição.

Ao discutir a função do intérprete e do ouvinte, o autor vai conceituar o primeiro como sendo “o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o gesto,

pelo ouvido e pela vista” (1997a, pg. 225) e o segundo como aquele que “possui dois papéis: o de receptor e de co-autor” (1997a, pg.242). a relação entre ambos é

indissolúvel, pois só há intérprete se houver um ouvinte e vice-versa, mesmo numa relação unilateral quando somos ouvintes de nós mesmos.

Para Zumthor, o papel do intérprete é mais importante do que o do compositor, pois é a sua performance, o seu desempenho que propiciarão reações

auditivas, corporais, emocionais do auditório, ou seja, do ouvinte. o público tende a associar a autoria da obra ao intérprete e não ao compositor, justamente porque a

poesia oral assume um caráter de anonimato se considerarmos que os discursos, por serem fragmentados, não conseguem manter sua autonomia, mas sim as de

quem os pronuncia. nós mesmos tendemos a lembrar o nome do intérprete (cantor) de tal música e não do seu compositor/autor.

A performance do intérprete é, pois, a responsável pela sua força enquanto disseminador do texto oral. a intimidade do intérprete com o poema ou do

narrador com o que está lendo vai ser avaliada pelo efeito que sua performance terá sobre o público ou sobre o ouvinte: de convencimento, de emoção, de desprezo.

não podemos ignorar, portanto, que nem sempre o que está sendo dito ou interpretado está adequado ao ouvinte ou ao público ali presente. é necessária uma

empatia entre intérprete e ouvinte para que haja um resultado final qualitativo, ou seja, o público alvo deve ter interesses compatíveis com os do intérprete.

A qualidade da performance está vinculada à completa interação entre intérprete, texto e ouvinte. Richaudeau vai estabelecer dois fatos relativos ao ato do

leitor que corresponde, neste caso, ao do ouvinte: “distinguir entre as várias espécies de leitura aquelas que diferenciam ao mesmo tempo a natureza do texto-alvo, a

função que lhe atribui o leitor e a capacidade de memória” (1993, pg. 104). A memorização e o prazer do auditório ou do leitor estão vinculados, assim como o

contexto sociomental em que está inserido o ato de ler ou de ouvir. nossa memória faz um registro eterno quando compreendemos o que está sendo lido ou dito de

forma espontânea e prazerosa. o ouvinte e o texto sofrem adaptações à medida que se estabelece uma relação entre eles, logo, as alterações da performance vão

alterar a reação do ouvinte. o ouvinte é responsável não só pela forma pela qual nós percebemos a dimensão histórica da poesia oral, pois a sua recepção interferirá

na nossa, como também vai criar perspectivas em relação à performance dentro de regras por ele anteriormente conhecidas.

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Enfocando o ouvinte dentro do período atual, temos uma peculiaridade: as técnicas de convencimento passam a ser padronizadas pela mídia. o programador é

quem fará a performance, estará entre a notícia e o ouvinte, será o responsável pela credibilidade ou não do que está sendo veiculado. o ouvinte perde assim toda sua

possibilidade de criação ou de co-autoria, passa a ter uma relação robótica com este tipo de intérprete, tão diferente da antiga relação quando a poesia oral era o

texto.

Com o passar dos tempos a interpretação, a performance e a própria poesia oral vão assumindo um caráter comercial e essa transição inicia-se quando o

autor passa a exigir seus direitos. podemos afirmar que a comercialização de sua obra está ligada ao emprego da escrita que, desde seu surgimento, é monopolizada

pela classe dominante: enquanto a poesia oral ocupava-se em retratar as angústias dos oprimidos, os poetas eram porta-vozes destes. esta inversão de valores vai

nortear, por muitos séculos, os propósitos e os destinos de ambas.

Zumthor vai ter a preocupação em diagnosticar se há contradição na poesia entre o uso da escritura e das práticas vocais. vai afirmar que “a escritura é a

intenção ou a pressuposição de uma passagem para o impresso” (1993, pg. 99), alega que cada um tem o seu ritmo próprio de desenvolvimento. para M. Clanchy, o

surgimento da escritura é resultado da necessidade em fixar mensagens inicialmente orais e para m. Scholz o seu surgimento está vinculado ao desenvolvimento do

comércio, das comunicações e do direito; é importante observar que tais definições se complementam. a linguagem que o manuscrito vai fixar é a da comunicação

direta, não importava, desta forma, distinguir autor, intérprete ou escrevente. no caso dos textos literários ou, mais especificamente, da poesia oral, as divergências

entre o escrito e o oral vão se acentuar. afinal, quem recitava as poesia era o autor ou o ator ? na poesia, o copista tem uma liberdade maior: o copilador assumia que

emendava certos textos para “adequá-lo ao bom uso”, o que caracteriza a presença inegável e marcante do co-autor.

Zumthor defende a possibilidade de que, em função do momento histórico, o texto vai depender ou de uma oralidade que funcione na zona da escritura ou de

uma escritura que funcione na oralidade. Mcluchan também percebe essa diferença definindo-a como homem escrevente e homem tipográfico. o fato é que o

manuscrito mantém a característica tátil-oral e a escrita vai adquirir mais efeito a partir do surgimento da imprensa. w. Ong diz que “o manuscrito é uma continuidade

do oral” (1993, pg. 99), a imprensa, no entanto, cria uma ruptura neste ponto.

Zumthor nos chama atenção para o fato de que o domínio da escrita era extremamente difícil e de que não era estimulada entre todas as camadas sociais:

“escrever é um ofício árduo, cansativo, um artesanato organizado” (1993, pg. 100). essas dificuldades vão sendo minimizadas com o passar dos anos e o incentivo à

escrita vai ocorrer somente a partir do século XX. o trabalho do scriba era restrito a uma elite: chancelaria pontifícia, de bispados, de prefeituras. as oficinas dos

copistas, adquiriam, inclusive, celebridade pelo exercício desse ofício tamanho o seu grau de dificuldade. essas dificuldades inerentes à escritura, determinada pelo

período histórico (observar tabela anexa ilustrando a evolução da escrita a partir do século XIII segundo Paul Zumthor no capítulo v de a letra e a voz.), vão

influenciar a sua decodificação, pois muitos sabiam escrever, mas não ler: eram dois aprendizados distintos. alguns autores vêem a escritura com o poder de apoiar

seu discurso: é o próprio atestado da verdade que vai acrescentar eficácia ao governo dos homens. a palavra, afinal, é o meio pelo qual o homem se manifesta

plenamente; não podemos ignorar, entretanto, que para os iletrados, a letra é inacessível, imaterial, mágica.

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A voz está presente na escrita e vice-versa: é “o verbo encarnado na escritura” (1993, pg.113). a passagem do vocal para o escrito é repleta de confrontações,

tensões, oposições conflitivas e muitas vezes contraditórias; é mais do que transcrição, é transcriação. a poesia terá seu registro assegurado muito provavelmente bem

depois de sua criação, perdendo assim o rigor de sua transcrição. o texto oral desfaz e recria permanentemente o seu sentido, o que não ocorre tão rapidamente com

a escritura. a movência das interpretações que se fazem deles também é diferenciada. é curioso observarmos que na europa, até o período contemporâneo,

acreditava-se que a cegueira, por impossibilitar a escrita, dava maior vocação, aptidão ao poeta oral. “o cego é o velho rei lear da lenda céltica, louco e cruel, ou ,

obscura transparência para além do corpo, o homem liberado da escrita para sempre.” (1997, pg. 234). a impossibilidade da escrita concede ao homem uma melhor

performance por permiti-lo alcançar maior fidedignidade ao que está sendo interpretado, justamente porque vai livrá-lo da tensão resultante da capacidade de

executar os dois papéis.

Ao refletirmos sobre a duração e memória dessas obra, Zumthor nos diz que ela nunca é a mesma, pois qualquer forma de arquivamento compromete a

integridade semântica e estrutural do texto. se o texto for oral recorre-se à passagem do oral para o escrito como um meio de conservação mais seguro (menos

contundente) do que foi dito, pois as narrativas faladas são mais propensas às intervenções e influências externas, ainda que este recurso o fará perder o que tem de

mais precioso: o movimento vital da performance, mas em contrapartida, estimulará novas performances. a escritura não garante, portanto, a perpetuação ou

imutabilidade da obra, apenas a torna menos violável.

A memorização, única forma existente de arquivamento até o surgimento da escrita, continua a cumprir seu ofício ainda que à margem do arquivo. a escritura

vai preencher duas funções: transmissão do texto e conservação do texto. vários textos vão aparecer na escritura sem acabamento, sobretudo a poesia oral.

naturalmente, a difusão da escrita e de outras formas de comunicação contribuem para o enfraquecimento das memórias. o computador e toda sua “memória” vem

nos acomodar ainda mais no que se refere aos registros que deveríamos fazer em nosso cérebro, em pleno século XXI nos preocupamos basicamente com a

memorização de senhas.

Todo grupo tem um saber cumulativo de si oriundo da memória e que são empregados na linguagem, pois o tipo de cultura é determinado pelo uso que uma

sociedade faz da memória. as tradições orais são fundamentais para a manutenção dos costumes e servirão de alicerce para a constituição da história de uma

sociedade. ainda que o destino dessas tradições sejam incertos: podem sobreviver incompreensivelmente ou desaparecerem, a reminiscência, entretanto, impedirá o

extermínio da edificação “das passarelas entre um passado fabuloso e nosso pobre presente, entre este e um futuro que só tem por fim um outro mundo” (1997,

pgs.33/34).

Culturas só se lembram esquecendo” (1997, pg.15); é feita uma seleção do que se quer lembrar. a seleção nos permite desconectar com a história no

momento em que a vivemos. a memória coletiva vai recuperar ou manter o que pode permanecer funcional. só registramos o que nos interessa ou nos tem utilidade.

A teia de percepções de costumes e de idéias é a responsável pelo desenvolvimento e perduração das tradições orais: “a voz anterior pela qual falam em

nossos pais e a outra que recusa. dessa maneira, ao mesmo tempo, somos propulsionados e ficamos presos” (1997, pg. 262). A poesia oral garante que a cada

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performance se criem novos espaços em detrimento das performances que surgirão. a performance vai encontrar sua plenitude na sua relação com obras anteriores e

posteriores, é esta movência que vai garantir a manutenção das tradições de uma sociedade.

A memória coletiva captura os fragmentos significantes e os transforma em elementos de tradição; é o resultado de uma seleção, conseqüência de uma

vontade de esquecimento. a manutenção da poesia, inclusive, se dá pela reminiscência, pelo costume e pelo esquecimento, permitindo ao passado permanecer vivo.

Sendo a tradição “uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas atuais” (Ortega y Gasset, apud Zumthor, 1997 b, pg. 13),

o esquecimento é necessário a partir do momento em que nenhuma compreensão é total e toda interpretação é fragmentária, os vazios tornam-se, pois, primordiais

para a continuidade da história. é um ritual aderir à tradição e submeter a ela o seu discurso.

A vontade de esquecimento é um mecanismo utilizado para excluir da tradição certos elementos da memória coletiva, indesejáveis para ela. “memória e

esquecimento são instrumentos conjuntos e indissociáveis de toda ação.” (1997b, pg. 20). a memória é fruto de uma constante tensão entre o que mantém a tradição

e o que ela preferiu esquecer. nos mitos antigos, por exemplo, esquecimento quer dizer simultaneamente morte e retorno à vida: é o momento crucial da

reencarnação.

Não podemos pensar em manutenção das tradições sem pensarmos em memória, nas suas formas de registro e na seleção do que se vai registrar. a

oralidade, tratada por Zumthor, genericamente, como poesia oral, a partir da função do intérprete/narrador e do ouvinte, é fonte primeira de toda forma de

comunicação, dividindo após sua tarefa com a escrita, que nasce com outro propósito e assume, como vimos, papel diferenciado da linguagem oral, mas também de

indiscutível primazia para a evolução da humanidade. tanto a oralidade como a escritura são condições sine qua non para a existência da tradição.

1200 SEC. XIII SEC. XIV 1400 SEC. XV 1700 SÉC. XIX SEC. XX

Escrita assume utilização notarial, comercial e jurídica;

Modelo cursivo nas mensagens utilitárias.

Modelo

dos livros

Livro: objeto ritual. O talmude foi condenado como um herege de carne e osso.

Números de livros em biblioteca passa pela primeira vez da casa dos 1000 volumes;

Reúnem várias obras de um mesmo autor num único livro;

Escrituras são

A escritura era um fio delgado que atava toda a europa.

A escritura tinha um valor simbólico: representava poder entre os homens;

Leitura silenciosa torna-se obrigatória, por regulamento nas bibliotecas.

Escrita deixa de ser um fio delgado e passa a ser um véu espesso.

Ensino obrigatório torna a imprensa completamente perceptível.

Os meios de comunicação evoluem muito, o que cria um vocabulário próprio, capaz de exprimir mais fielmente a fala.

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emancipadas das dependências vocais.

BIBLIOGRAFIA

ZUMTHOR, PAUL. A LETRA E A VOZ. SÃO PAULO: CIA. DAS LETRAS, 1993.

_______. INTRODUÇÃO À POESIA ORAL. SÃO PAULO: HUCITEC, 1997.

_______. TRADIÇÃO E ESQUECIMENTO. SÃO PAULO: HUCITEC, 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº134 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 134

PAUL ZUMTHOR E AS MARCAS DA ORALIDADE

ELISABETE CHISTOFOLETTI

PRIMEIRA VERSÃO

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SONHO E PSICOLOGIA TEXTUAL

Elisabete Christofoletti Psicóloga, mestra em Educação [email protected]

Das muitas maneiras de trabalharmos com sonhos, a relatada a seguir foi vivenciada por um grupo de sonhos via e-mail, posteriormente um dos sonhadores

colocou à disposição o processo efetuado com seu sonho para a realização de um outro trabalho com Psicologia Textual.

O trabalho inicial, realizado em grupo pela internet, contou com vários sonhadores. No começo do processo, cada um dos participantes apresentou

concomitantemente seus respectivos sonhos textualizados. O analista, coordenador do grupo, solicitou que este escolhesse dentre os sonhos apresentados o que mais

chamou a atenção. Analisadas as escolhas e argumentações o analista propôs o primeiro sonho a ser trabalhado pelo grupo.

Um a um todos foram trabalhados, em seqüência proposta pelo analista a partir dos argumentos iniciais, até que todos os sonhadores tiveram seus sonhos

passados por esse processo no grupo. O sonho aqui apresentado é fruto deste ritual.

Posteriormente, este sonhador colocou o conjunto de e-mai’s referentes ao sonho narrado, aos esclarecimentos, aos

questionamentos e às contribuições dos outros sonhadores em relação a seu sonho para ser possível a realização deste trabalho de

Psicologia Textual.

Buscando elucidar o processo de Psicologia Textual será exposto este sonho como fora narrado pela primeira vez e depois serão apresentadas várias versões

somente do seu início (dois ou três primeiros parágrafos) com a finalidade de visualizar a construção do processo de Psicologia Textual com as variações e inserções

de cada momento, possibilitando compreender esta metodologia de trabalho.

Este grupo de sonhos tem um movimento com ritmo e temporalidade próprio, assim como um ritual de trabalho, criado em função de sua característica

principal: um grupo de trabalho via e-mail, onde cada sonhador dentro do tempo dedicado a ele, sem ser identificado (no sentido de explicações pessoas como

origem, atividade profissional) se expunha da maneira que desejasse, podendo após fazer sua narrativa (nos e-mail´s), fazer nova leitura, mantendo ou alterando-a

antes de enviar para o grupo de sonhos. A narrativa do sonho, dos esclarecimentos, do re-sonhado ou mesmo da discussão a respeito do sonho realizou-se sempre

como intervenção escrita, o que de certa forma facilitou o trabalho e a leitura sob a ótica da Psicologia Textual.

Definida a escolha do sonho a ser trabalhado, seu relato constitui-se como primeira narrativa do sonho para o grupo: a primeira

versão do trabalho.

Durante o processo de Psicologia Textual, respeitamos o ritmo de constituição do trabalho com este sonho. A princípio, cada etapa do grupo de sonhos por e-

mail passa a ser nominado de versão. A cada nova versão conteúdos são acrescidos, trabalhados dentro do texto para que tenhamos uma unidade, narrativa dentre

tantas que o sujeito apresenta em seu cotidiano.

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Quando temos essa unidade, a textualização da narrativa a partir do sonho narrado, é devolvida ao sonhador para que leia e faça suas intervenções, seja no

acréscimo de outros conteúdos, seja retirando, excluindo o que não tenha ficado claro ou que não gostaria que constasse naquela sua narrativa.

Retornamos novamente com o texto, que após lapidação em relação à escrita, guarda ainda a tarefa de buscar elucidações de conteúdos ali expostos ou de

promover abertura para que outros conteúdos possam fluir, chegando a sua versão final em relação a esta narrativa.

Buscando melhor esclarecer a respeito do processo de Psicologia Textual, segue o sonho como foi narrado pela primeira vez, que corresponde à primeira

versão.

“Estou na floresta, é noite. Há silêncio na mata, como se pudesse sentir o caminhar por ela.

Sinto que tem algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, homens e mulheres, mas enxergo o rosto de umas duas mulheres somente.

Aqui começo a ficar confusa com o sonho, me sinto agoniada, existe uma criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma

sensação de indiferença.

Alguém chega e diz que vou ter uma criança ou que uma criança que está chegando é minha. Tenho a sensação de

que estão colocando uma criança em meu colo. É um menino, com os traços físicos que poderia dizer que era meu.

Esta criança não é minha, esta pessoa em torno e depois outras começam a pressionar-me dizendo que não, que é

sim, ou que terei um filho. Este é o momento de maior angústia, porque não consigo fazer as pessoas pararem de

falar e de pressionar-me. A tensão aumenta muito, até que grito: Não é meu, porque não quero e não posso ter

filhos! No mesmo instante, num movimento de braços para o alto, é como se jogasse a criança para cima que

desaparece, como se desaparecesse no infinito.

O silêncio retorna, continuo na floresta, há luz, embora acordo assustada e ao mesmo tempo tranqüila, aliviada pelo grito.”

Daqui em diante trabalharemos somente com os três primeiros parágrafos do sonho para melhor exemplificação da metodologia.

“Estou na floresta, é noite. Há silêncio na mata, como se pudesse sentir o caminhar por ela.

Sinto que tem algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, homens e mulheres, mas enxergo o rosto de umas duas mulheres somente.

Aqui começo a ficar confusa com o sonho, me sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma

sensação de indiferença.”

Apresentado o sonho, os participantes (também sonhadores), iniciam uma série de perguntas na busca de clareza em relação à narrativa, a “história contada”.

Esta é a constituição da segunda versão do sonho, quando a narrativa recebe as solicitações de esclarecimentos e as perguntas respondidas.

“1.Qual a idade das pessoas e quem são?

As pessoas que consigo identificar o rosto são amigos. A idade varia entre 27 e 40 anos.

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2. Este lugar, esta floresta lhe é familiar, te lembra algum lugar conhecido?

É floresta, fechada, única e um pouco escura.

3. Aparece nesta floresta mais alguma coisa além da mata e das pessoas?

Não.

4. Estas pessoas estão próximas de você? Como você percebe que elas se aproximam? Fizeram barulho?

Sim, estão próximas, e aparecem juntas com a imagem, a cena na floresta. Não percebi nenhum barulho.

5. Qual foi à reação de quem foi olhado com indiferença? Não entendi se "as duas" que foram olhadas com indiferença foram às mulheres ou a mulher e a

criança...

Parece-me que nenhuma. As duas eram olhadas com indiferença, mas em especial a criança.”

As respostas e esclarecimentos, agora são inseridas no novo texto do sonho.

Constituímos aqui nossa terceira versão, onde temos as respostas inseridas.

“Estou na floresta, fechada, úmida e um pouco escura é noite. Há silêncio na mata, como se pudesse sentir o caminhar por ela.

Sinto que tem algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, amigos, homens e mulheres, todos adultos, variando a idade entre vinte e sete e

quarenta anos, mas enxergo o rosto de umas duas mulheres somente.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida, a barriga bastante

grande. Creio que seja engravidar "de barriga" e ter uma criança.

As pessoas estão próximas de mim, e aparecem juntas com a imagem, não sei se há aproximação ou barulho na cena na floresta.

Aqui começo a ficar confusa com o sonho, me sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma

sensação de indiferença.”

Na terceira etapa, cada sonhador re-sonha o sonho em discussão.

O re-sonhar dos outros membros do grupo, foi analisado pela sonhadora, podendo ou não ser incorporado. O que entendia que poderia ser seu também foi

assimilado e negando ou ignorando o conteúdo com o qual não se identificava. Não necessariamente os sonhos se misturam às intervenções. Neste momento é feita a

adequação e seleção do que pode compor a narrativa.

O relato do outro pode ter trazido percepções que não se havia sentido, mesmo que falasse referindo-se a algo específico da vida de quem re-sonhou,

podendo-se fazer inúmeras leituras das mesmas informações.

Constituímos a quarta versão, com o que foi re-sonhado pelos membros do grupo. Ao final da narrativa feita pelo sonhador, acrescentou-se o que foi re-

sonhado pelos outros membros do grupo de sonhos. O sonhador (neste momento) “principal”, fala a respeito de seu sonho e do que foi re-sonhado a partir dele. O

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que sentiu a cada pergunta, a cada re-sonhar, e como absorveu as provocações. Este é o primeiro momento em que o sonhador fala, se posiciona de forma direta ao

grupo.

Com isso temos a quinta versão, que é sonho, perguntas com respostas, re-sonhos dos outros membros do grupo já inseridas no texto do sonho e os

comentários. Aqui se encerra o trabalho com esse sonhador, no grupo de sonhos on-line.

Para a Psicologia Textual, entramos na sexta versão. Depois da narrativa do sonho abrimos espaço no texto para a inclusão do re-sonhado e as discussões

em relação ao sonho trabalhado e que diz respeito ao sonhador, gerando um único texto.

Retornemos ao nosso exemplo dos três primeiros parágrafos desta sexta versão:

“Estou na floresta é amazônica, fechada, úmida e um pouco escura, única, é noite. Há silêncio na mata, como se pudesse sentir o caminhar por ela.

Sinto que tem algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, amigos, homens e mulheres, todos adultos, variando a idade entre vinte e sete e

quarenta anos, mas enxergo o rosto de umas duas mulheres somente.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida, a barriga bastante

grande. Creio que seja engravidar "de barriga" e ter uma criança.

As pessoas estão próximas de mim, e aparecem juntas com a imagem, não sei se há aproximação ou barulho na cena na floresta.

Aqui começo a ficar confusa com o sonho, me sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma

sensação de indiferença.”

Com a Sétima e Oitava versões. a narrativa do sonho recebe nova composição, novo tratamento. O texto vai sendo trabalhado literariamente.

Sétima Versão:

“Estou na floresta é amazônica, é fechada, é úmida, é pouco escura, é única, é noite. A floresta silencia, sinto o caminhar por ela,

também sinto algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, amigos, dentre eles homens e mulheres, adultos com a idade

variando entre vinte e sete e quarenta anos, mas enxergo somente o rosto de umas duas mulheres.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida (de barriga), a barriga

bastante grande, iria ter uma criança.

As pessoas estão próximas de mim, e aparecem juntas com a imagem, não sei quando se aproximam de mim e se para isso fizeram barulho. Começo a ficar

confusa com meu sonho, me sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma sensação de indiferença, as

mulheres olhadas com indiferença parecem não demonstrarem nenhum tipo de sentimento, mas o olhar de indiferença mais pesado era para a criança, não

representava nada.”

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Oitava Versão:

“Um dia desses tive um sonho ...

Estou na floresta é amazônica, é fechada, é úmida, é pouco escura, é única, e é noite. A floresta silencia, sinto o caminhar por ela,

também sinto algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, amigos, dentre eles homens e mulheres, adultos com a idade

variando entre vinte e sete e quarenta anos, mas enxergo somente o rosto de umas duas mulheres.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida (de barriga), a barriga

bastante grande, iria ter uma criança.

As pessoas estão próximas de mim, aparecem juntas com a imagem, não sei quando e como se aproximam de mim, não ouvi barulho. Começo a ficar confusa

com meu sonho, me sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma sensação de indiferença, as mulheres

olhadas com indiferença parecem não demonstrarem nenhum tipo de sentimento, mas o olhar de indiferença mais pesado era para a criança, não representava nada.

Estou surpresa com meu sentimento.”

Nona versão. Novamente o texto é trabalhado.

“Um dia desses tive um sonho ...

Estou na floresta é amazônica, é fechada, é úmida, é pouco escura, é única e é noite. A floresta silencia. Sinto o caminhar por ela.

Também sinto algumas pessoas próximas de mim. São todos conhecidos, amigos, dentre eles homens e mulheres adultas com a idade

variando entre vinte e sete e quarenta anos, mas enxergo somente o rosto de umas duas mulheres.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida (de barriga), a barriga

bastante grande, iria ter uma criança.

As pessoas estão próximas de mim, aparecem juntas com a imagem, não sei quando e como se aproximam de mim, não ouvi barulho. Começo a ficar confusa

com meu sonho, me sinto agoniada. Existe uma criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma sensação de indiferença. As mulheres

olhadas com indiferença parecem não demonstrarem nenhum tipo de sentimento, mas o olhar de indiferença mais pesado era para a criança, não representava nada.

Estou surpresa com meu sentimento.”

Décima versão. Chegamos a uma narrativa que já pode ser lida pelo sonhador.

Aqui o texto retorna ao sonhador. Em posse de sua narrativa, o sonhador lê o texto, com o gravador ligado, faz alterações de conteúdos que não ficaram

muito claros ou de conteúdos que não gostaria que permanecesse além de inserir conteúdos novos, principalmente com a reflexão do sonho, momento em que o

sonhador reage às provocações deste.

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“Um dia desses tive um sonho ...

Estou na floresta é fechada, é úmida, é escura, é única, é de noite. A floresta silencia. Caminho por ela, não estou sozinha. Estão comigo

conhecidos, amigos, homens e mulheres entre vinte e sete e quarenta anos, mas enxergo somente o rosto de umas duas mulheres.

Não percebo mais nada na floresta além dela mesma e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida com a barriga bastante grande.

As pessoas estão próximas a mim, aparecem juntas com a imagem, não sei quando e como se aproximam, não ouvi barulho. Começo a ficar confusa, me

sinto agoniada, existe um criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma sensação de indiferença. Não demonstro nenhum tipo de

sentimento. O olhar de indiferença maior era para a criança que não representava nada. Fico surpresa com meu sentimento, mas não assustada.”

Décima primeira versão. Transcritas as observações, elas são inseridas.

Na leitura do próprio sonho, com a incorporação dos questionamentos ou provocações do restante do grupo, o sonhador traz o conteúdo suscitado pelo

diálogo estabelecido, buscando em lembranças, sentimentos, angústias, a sua individuação.

Décima segunda versão. O texto volta a ser trabalhado, a narrativa altera-se, mantém-se o tempo todo com grande movimento, como é a psique, como é o

quotidiano.

O texto continua sendo trabalhado, até que fique finalizado na décima terceira versão. Narrativa apresentada neste trabalho.

Realizar o trabalho de Psicologia Textual com um sonho e um sonho trabalhado on-line e em grupo significava um desafio, primeiro porque estamos

convivendo com uma nova formatação de relações, relação terapêutica/analítica, onde o contato não é físico, onde as possibilidades de ficcionalidade são muito

maiores, onde não podemos ter a mínima segurança de que a pessoa que esteve sentada em frente ao computador no e-mail de ontem é a mesma do e-mail de hoje,

lidamos com uma ficcionalidade relativamente nova dentro dos conceitos terapêuticos/analíticos, provocando também de forma diferenciada as fantasias que pode

fazer o terapeuta/analista.

A textualização favorece compreender a narrativa, tomá-la nas mãos. Quando falamos, nos prendemos em nosso discurso, entramos em seu centro e dele não

saímos com facilidade.

O sonho vai se transformando, é mutante, tem movimento, mostra as caras do personagem, uma de suas facetas, um de seus papeis.

Tantas são as leituras que poderíamos fazer desse sonho, inclusive de que o sonho retrata o feminino. Existem padrões de formatação e quando buscamos

rompê-los, sofremos, pois foi quebrada uma formatação que garante a mulher a possibilidade da maternidade, além do papel social desenvolvido, contamos com a

Grande Mãe que sempre nos rodeia.

Também é essa uma leitura. A possibilidade do mesmo sonho apresentar inúmeros significados (onde cada membro do grupo pode re-sonhar a partir do

sonho do outro) é possível pela ausência de uma universalidade.

Quando o sonhador faz a escolha da narrativa do sonho que deseja apresentar no e-mail, e posteriormente quando escolhe a narrativa que faz enquanto

reflexão de seu sonho, elas correspondem à escolha de vida que faz. A cada pergunta respondida, a cada questionamento incorporado, a singularidade clarificada é

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fortalecida no processo textual, até que possamos identificar a superação do texto/narrativa, a superação do sonho e das inquietações que apresenta, já que nem

sempre o que apresentamos são necessariamente conflitos ou problemas.

O texto resultante, apresentado e discutido com o sonhador, é agora exposto em sua totalidade, sendo iniciado com um poema, fruto da contribuição do

grupo de sonhos, quando do re-sonhar.

Tive um sonho ...

Estou na floresta é fechada, é úmida, é escura, é única, é de noite. A floresta silencia. Caminho por ela, não estou sozinha. Estão comigo conhecidos, amigos,

homens e mulheres que tem entre vinte e sete e quarenta anos, mas enxergo somente o rosto de duas mulheres.

Não percebo mais nada na floresta além dela e das pessoas. Uma dessas mulheres estava grávida com a barriga bastante grande.

As pessoas estão próximas a mim, aparecem juntas com a imagem, não sei quando e como se aproximam, não ouvi barulho. Começo a ficar confusa, me sinto agoniada, existe

uma criança de colo que é de uma dessas mulheres. Olho para as duas e tenho uma sensação de indiferença. Não demonstro nenhum tipo de sentimento. O olhar de indiferença maior

era para a criança que não representava nada. Fico surpresa com meu sentimento, mas não assustada.

Alguém chega e diz que vou ter uma criança ou que uma criança que está chegando é minha. Tenho a sensação de que a estão colocando em meus braços: um menino,

fisicamente é muito parecido comigo quando era pequena. Tem uns quatro meses, os olhos de meu marido, lembro-me de uma foto minha. É uma criança linda e sorridente. Não sinto

nenhuma ligação com essa criança, não quero nada que me segure, estou querendo mais é continuar caminhando, encontrando as pessoas, realizando meus sonhos, mas de repente

todos estão ao meu redor, dizendo que está chegando uma criança, um filho para mim. Não quero, sei que não está vindo, não quero um filho, mas eles insistem.

Quem vem falar comigo é uma das mulheres. A criança que me é dada não é a mesma que está no colo da mulher. Não consigo continuar caminhando, fico desesperada. Olho

a criança e ela se parece comigo, mas não pode ser meu filho, não engravidei, estão me enganando, estão doidos e querendo me confundir.

Esta criança não é minha, primeiro uma pessoa, depois outra, todas me pressionando dizendo que o filho é meu, e que se não quiser este terei outro mas terei.

Este é o momento de maior angústia, porque não consigo fazer as pessoas pararem de falar e de me pressionar. Não quero filhos, estou agoniada, não me ouvem, não me

respeitam. Falo e não ouvem, fazem pressão para que tenha algum filho. A tensão aumenta muito, até que grito um grande e sonoro:

- NÃO!! Não é meu. Não quero!

Este grito trouxe a sensação de que livrei-me delas todas, como se levassem um susto e me deixassem em paz, como se tudo desaparecesse.

No mesmo instante, num movimento de braços para o alto jogo a criança para cima que desaparece, como se sumisse no infinito. Como que devolvendo-a para o lugar de onde

veio. Será que para Deus? Ela mergulha na negritude do céu e desaparece juntamente com todas as pessoas e toda minha angústia.

Não há incômodo ou aflição por ter jogado a criança e ela não ter voltado.

O silêncio retorna, continuo a andar tranqüilamente na floresta, há luz do sol embora não saiba se é dia ou noite, mas tudo fica claro. Acordo assustada e ao mesmo tempo

tranqüila, aliviada pelo grito.

É o silêncio seguido da sensação de tarefa cumprida. Um silêncio bom.

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Depois que acordei comecei a pensar que embora não tenha ficado com o filho, remeto-me a lembranças de encontros que já tive com crianças, meus filhos, porque não? Que

jamais se pareceriam comigo, mas ter encontrado com cada um desses “filhos” revelou-me coisas que eu não sabia, até mesmo em certa e distante ocasião, o desejo meu, nada secreto

de ter filhos.

Estes filhos possibilitaram-me aprender, crescer. Embora não tivessem nada meu, e eu nada deles, pude com o passar dos anos também encontrar-me neles, nos sorrisos,

lágrimas, alegrias. Quantos sorrisos disfarçados por não dar o braço a torcer e sua prepotência quando pensa que sabe coisas que eu não sei, e eu? Penso que sei coisas que ele não

sabe (assim como eu quando criança).

Mas, quando penso no filho que poderia ter tido, penso em seu abraço, em nossas brigas e o quanto poderíamos falar de abobrinhas daquelas que só se fala em família, com

quem se confia! Acho que cada vez mais nos parecemos, um com o outro, e seríamos tão diferentes. Ele me teria e eu a ele, estaria em mim a partir de minhas lembranças, deixando-

me embevecida de suas lembranças, cheiro, sorriso e bicos de braveza. Mas ele não virá.

A família, ah, essa sim já cobrou filhos, mas as prioridades são outras. Fico tranqüila em ter atirado a criança para cima, não me sinto culpada por não aceitá-la.

Pensando em filhos lembro-me da descoberta da sexualidade, quando imaginava como os bebes eram feitos, gravidez, barriga. Porém tudo passou, até mesmo quando pensava

que se tivesse um filho precisaria dos avós para que fizessem coisas que somente eles sabem fazer.

Houve um tempo em que me incomodei com a postura das pessoas, pressão, quanta pressão senti, por tantas outras escolhas ...

A sensação de pressão por quase todas as escolhas que fiz, por ser quem queria ser e do jeito que queria, pelo sonho, pelo grito de liberdade, o grito do nascimento, da

independência, e a certeza de que estava certa.

Aprendi a conviver com o olhar de indiferença das pessoas. Já foi difícil suportar esse vazio do olhar, necessitei acolhimento aprovação ou aceitação. Todo bebê para se sentir

aceito e reconhecer sua identidade busca no olhar da mãe a condição de vir a ser. Aprendi a buscar dentro a condição de vir a ser.

Pensando em meu sonho, gostei muito do grito. Um grito de nascimento. Pensei: É isso aí!

Livrei-me, consegui adentrar em meu caminho. O filho está em mim, é preciso coragem para deixá-lo fluir, dedicar-me mais a ele, esse é o destino que faço e posso fazê-lo.

Sinto-me tranqüila.

Minhas escolhas exigem exposição e ousadia. Não tenho medo, sei o que quero.

Achei interessante essa sacada de que uma delas estava grávida e mantive indiferença e distanciamento. Acho que dei um passo adiante com esse sonho. Essas imagens

trazem símbolos fortes e talvez não seja muito fácil expressar as reações que essas imagens provocaram e talvez por isso pinte um pouco de silêncio aqui, o Silêncio da noite, das coisas

e sons que não compreendo muito bem ...

Por um lado o tema da criança que chega é bastante alvissareiro, promissor, pleno de futuridade, idade futura, anunciação, renovação, começos e esperanças. A imagem final

por outro lado, poderia parecer quase absurda pelo tom de recusa, uma recusa veemente, que traz alívio, devolvendo esse filho para a noite, para os céus ou para Deus. Que

reações/reverberações essas cena evocam? Seria uma loucura? Pecado? Atentado? Negação da maternidade? São reações possíveis do ponto de vista da consciência e da moral.

Carrego também uma moral.

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Mas, não sinto nada disso no sonho, não aparece culpa, nem amoral. A criança é devolvida para o infinito de onde deve ter vindo. Uma criança arquetípica e como tal contém

muitos outros aspectos além daqueles mais obviamente positivos. Por exemplo, também faz parte da Criança o Choro e o Abandono. Abandono que está presente nas crianças

recusadas, abortadas, sem casa, sem família. Édipo foi abandonado, Moisés foi abandonado, os heróis são abandonados ...

Meu sonho fala ousadamente de uma escolha, uma escolha difícil, tão difícil como uma Escolha de Sofia. Uma escolha de vida, uma opção da Alma, um caminho e uma forma,

portanto, recusar também implica escolher.

Vem à lembrança esse trecho de uma das canções do Caetano ...

"Ah! bruta flor do querer ... ah! bruta flor ... bruta flor...

O quereres e o estares sempre afim

Do que em mim é de mim tão desigual

Faz-me querer-te bem ... querer-te mal

Bem a ti ... mal ao quereres assim

Infinitivamente pessoal

O querendo querer-te sem ter fim

E querendo-te aprender o total

Do querer que há e do que não há em mim."

Meu sonho me remete a minhas dualidades, contradições, desejos ... "Oh pedaço de mim ... pedaço apartado de mim ..."

Jung em um seminário, o das visões, relata que a protagonista aproxima-se do povoado que fica na base de um vulcão prestes a entrar em erupção. O clima no povoado é de

apreensão e Jung interpreta que aquele momento de apreensão que antecede a ruptura uma ruptura com a ordem comum para o surgimento do individual, alertando-nos para os

momentos que podem anteceder nossas rupturas.

Também lembrei-me da volta do filho pródigo do André Gide, em que o filho pródigo após ter voltado ao lar, aconselha seu irmão mais novo que mostra sinais de que também

pretende se lançar ao mundo, quando ele diz:

- Então irmão, você está pretendendo sair pelo mundo, ficar dias sem comer, dormindo ao relento, ficando à mercê da natureza e dos ladrões ao invés de desfrutar aqui o amor

da sua família, a riqueza e o conforto que nossos pais nos proporcionam?

E quando o irmão diz que sim, ele retruca:

- Então irmão, ouça o conselho de seu irmão mais velho, que já passou por tudo isso:

- Vá! Mas não volte!

Bibliografia

CALDAS, Alberto Lins. Psicologia Textual: Entre a Psicologia e a História Oral. Caderno de Criação, ano V, nº 16, junho. Porto Velho, 1998.

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MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História e Memória ou Simplesmente História Oral? Anais do Encontro de História e Documentação Oral. Brasília, UnB, 1993.

SANTOS, Nilson. Singularidade e Diálogo, in Presença n 9, ano 9, 1997.

Page 47: Volume IX

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº135 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 135

A CHARGE NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA

NAIR GURGEL

PRIMEIRA VERSÃO

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Nair Gurgel

A CHARGE NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA Departamento de Letras – UFRO [email protected]

A ironia parece então “uma armadilha que permite frustrar o assujeitamento dos enunciadores às regras

da racionalidade e da conveniência públicas”.(D. Maingueneau, 1993, apud B. Basire, 1985)

Uma das características essenciais do gênero “charge” é a articulação que existe entre diferentes linguagens, especialmente a verbal e a visual. Ao optar por

analisar textos humorísticos da mídia escrita (jornais, revistas, etc.), ao mesmo tempo em que fazemos um recorte para um estudo mais detalhado, optamos também

por analisar os textos imagéticos, ou seja, aqueles que valorizam mais a imagem. Tal fato dá-se, não apenas por pura preferência, mas inclusive por considerar que a

ilustração, no caso as charges, os cartuns e as tiras, além de provocarem o humor, em termos de conteúdo, podem ser tão ricas e densas quanto os outros textos

opinativos, crônicas e editoriais, por exemplo. Além de atrair a atenção do leitor, o texto com imagens transmite também um posicionamento crítico sobre

personagens e fatos políticos.

Pêcheux (1993), citando Althusser, diz que o assujeitamento “é o movimento de interpelação dos indivíduos por uma ideologia, condição necessária para que

o indivíduo torne-se sujeito do seu discurso ao, livremente, submeter-se às condições de produção impostas pela ordem superior estabelecida, embora tenha a ilusão

de autonomia”. Entendemos que a interpelação ideológica seja contingente, entretanto não acreditamos que os sujeitos estejam obrigados a submeterem-se às

condições de produção impostas pelos aparelhos ideológicos. Prefiro acreditar na tese que ora defendo: a do “não-assujeitamento”6 e retomar Michel De Certeau

(1994), para confirmar que “é preciso interessar-se não pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens, mas pelas operações dos seus usuários; é mister

ocupar-se com as ‘maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prática”.

Para ler e/ou escrever textos, principalmente os que ora analiso, é necessária a percepção de pequenas diferenças onde tantos outros só vêem identidade e

uniformização. Portanto, minha atenção está voltada para os jogos, as táticas, as estratégias, muitas vezes silenciosas e sutis que “insinuam” leituras e escrituras no

fio discursivo, no vão do discurso, no não-dito. Resta encontrar o meio para distinguir “maneira de fazer”, de pensar, estilos, ações diferenciadas, ou seja, fazer “a

teoria das práticas”.

Contudo, antes de iniciar nossa análise, faz-se necessária a diferenciação entre charge, caricatura e cartum. Conversando com pessoas, lendo revistas

diversas, ouvindo algumas entrevistas percebemos que existe uma certa dificuldade em definir os termos e que muitas vezes eles são utilizados um pelo outro. Essa

confusão é explicada pela generalização, ou seja, pelo que há de comum entre esses textos, seus traços básicos: a visualização e o humor.

6 Reforço novamente a minha concepção de ‘não-assujeitamento’: rejeição à submissão ideológica total proposta por Althusser e assumida por Pêcheux, especialmente na “primeira época” da AD. Certeau disse: “Sempre é bom recordar que não se devem tomar os outros por idiotas”.

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Rabaça & Barbosa (1978), em seu Dicionário de comunicação, define a caricatura como “uma forma de arte que se expressa através do desenho, da pintura,

da escultura, etc., e cuja finalidade é o humor”. De acordo com essa perspectiva, são subdivisões da caricatura: a charge, o cartum, o desenho de humor e a própria

caricatura, tomada agora em seu conceito mais particularizado.

Para definir caricatura, traçaremos um paralelo entre a caricatura e a Literatura. Assim como na Literatura existem os gêneros romance, conto, etc.; na

caricatura existe o que costuma-se chamar de portrait-charge – caricatura de pessoas, a charge basicamente política, o cartum (com ou sem palavras, isolado ou em

seqüência, mas sempre transmitindo uma piada) e o desenho-de-humor que não tem a preocupação do gag7, concentrando o humor no próprio traço).

O cartum, no Dicionário de comunicação, é tratado como uma anedota gráfica, com o objetivo de provocar o riso do espectador. É uma das manifestações da

caricatura, em sentido amplo, e chega ao riso através da crítica mordaz, irônica, satírica e principalmente humorística do comportamento humano, de suas fraquezas e

de seus hábitos e costumes.

A charge (do francês charger: carregar, exagerar), para os autores do Dicionário de comunicação, é um tipo de cartum “cujo objetivo é a crítica humorística de

um fato ou acontecimento específico, em geral de natureza política” (Rabaça & Barbosa, 1978: 89). De acordo com os autores, uma boa charge deve procurar um

assunto atual e ir direto onde estão centrados a atenção e o interesse do público leitor.

Chico Caruso8fez distinção entre cartum, charge e caricatura, comparando-os à fotografia. O cartum seria como uma máquina fotográfica focada no infinito;

por focar uma realidade genérica sua possibilidade de compreensão é muito maior. A charge focaliza uma certa realidade, geralmente política, fazendo uma síntese.

Somente os que conhecem essa realidade entendem a charge. Já a caricatura focaliza um elemento dessa determinada realidade focada pela charge.

De acordo com o que foi exposto acima, podemos sintetizar, considerando a função que cada um desempenha, as definições abaixo:

Cartum – crítica de costumes, genérico, atemporal.

Charge – crítica a um personagem, fato ou acontecimento político específico, limitação temporal.

Caricatura – exagero proposital nas características marcantes de um indivíduo.

Caricatura de José Serra – Ex-Ministro da Saúde e candidato à presidência da República derrotado por Lula no segundo turno. O detalhe fica por

conta do mosquito “aedes aegypti”, causador da epidemia da “dengue”, doença que lhe trouxe problemas refletidos em sua campanha política.

7 Gag é qualquer fenômeno cômico, geralmente muito breve, inserido numa representação de teatro, cinema, tv, rádio, etc. É expresso por meio de palavras, gestos ou pela própria situação. 8 Em entrevista dada no programa Domingão do Faustão, exibido pela Rede Globo de Televisão, em 20/02/94

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Clayton - Chargeonline. 11/03/01/ (Jornal O povo/CE)

Charge - crítica a um personagem (FHC), fato ou acontecimento político específico limitação temporal. Só quem sabe da trajetória política de FHC pode

entender o “recado” da charge: a transformação do príncipe em sapo. Ao mesmo tempo, o leitor precisa reconhecer o episódio da narrativa infantil (príncipe/sapo) que

foi invertido. (Imagens Fabulosas. Revista Veja)

Cartun - Crítica de costumes, genérico, atemporal. O cartum acima mostra o Congresso Nacional e a

opinião do “povo” sobre os políticos. Ou melhor, o que o povo de fora pensa a respeito do povo de dentro.

(Reinaldo Carvalho ccqhumor.com.br)

Como meu trabalho requer uma análise do ponto de vista da Análise do Discurso, é importante

esclarecer a terminologia adotada. Para as relações intertextuais estaremos adotando conceitos propostos por

Bakhtin (1986), estudioso que se preocupou com as questões intertextuais e polifônicas. Bakhtin considera como

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realidade fundamental da língua a interação verbal, realizada através da enunciação. É preciso entender o dialogismo em Bakhtin, não como um conceito, mas como o

reflexo de sua visão de mundo. Só assim é possível entender suas concepções de signo, enunciado, carnavalização, e polifonia.

A charge é uma forma de comunicação condensada com muitas informações, cujo entendimento depende de um conjunto de dados e fatos contemporâneos

ao momento específico em que se estabelece a relação discursiva entre o produtor e o receptor. Sendo a charge de natureza icônica9, pretendo, nesta pesquisa,

transpor alguns critérios de textualidade firmados para textos verbais para a análise das charges. Dentre eles, a interdiscursividade merece destaque por estabelecer

relações entre o texto base e outros textos produzidos. Dessa forma, alarga-se a concepção de intertextualidade, geralmente focalizada apenas no âmbito da

linguagem verbal e permitindo a confluência entre sistemas semióticos diferentes.

Beaugrand & Dresser (1981) afirmam que são sete os fatores responsáveis pela textualidade: “coerência, coesão, intencionalidade, aceitabilidade,

informatividade, situacionalidade e intertextualidade”. Os dois primeiros fatores (coerência e coesão) estão centrados do próprio texto; os outros cinco

fatores restantes estão centrados no usuário. Embora todos os fatores acima possam ser utilizados para textos não verbais, o que mais interessa para o

presente trabalho é a intertextualidade, pois diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto (produção e recepção) dependente de outro(s)

texto(s) previamente existente(s). Cada fator de textualidade merece um estudo mais aprofundado dentro da análise da charge, porém, nossa intenção é

apenas mostrar que os fatores apresentados por Beaugrand & Dressler (1981) para os textos verbais cabem também nas charges.

Entretanto, o traço caracterizador da charge é a polifonia que permite perceber um jogo de vozes contrastantes provocador do riso, assumindo, assim, o

estatuto de texto humorístico. No plano exofórico, o intertexto ressoa na charge, ao fornecer as informações e o suporte contextual para o seu entendimento, seja

conduzindo para uma direção convergente de sentidos, portanto parafrástica, seja numa direção divergente, parodística.

Outro ponto importante a ser observado na charge é o fato de que, na sua construção interna, ela é bivocal, porque é carnavalesca, no sentido bakhtiniano.

Ela informa e opina sobre o seu tema por meio da representação de um “mundo às avessas”, aguçando, pela própria inversão de valores sociais que promove, uma

visão mais nítida da realidade. O autor da charge cumpre um ritual ambivalente, porque conjuga elementos díspares, ao figurar a autoridade e destroná-la e ao

apontar a ordem instituída pelo reverso de sua aparência séria.

O texto que analisaremos a seguir é de Nani & Péricles e foi retirado da revista “Bundas”, Nº 18; julho/2000.

9 Os ícones são signos que estão numa relação de semelhança com a realidade exterior, que apresentam a mesma propriedade que o objeto denotado.

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Podemos perceber, pelo menos, três relações intertextuais na charge ao lado, a saber: a) um contexto onde o presidente da república concede uma

entrevista e faz um comentário infeliz; b) um contexto onde Eduardo Jorge ‘entrega’ o

presidente, c) um contexto onde o juiz Nicolau é acusado de fraude. Todos os contextos são

intermediados por um outro intertexto que é a figura do “Amigo da onça”, antigo

personagem, caricatura mensal da extinta revista O Cruzeiro. Falaremos de cada um deles

com maiores detalhes:

a) Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil, questionado certa vez por uma

repórter a respeito de sua posição enquanto sociólogo, responde, fazendo referências ao líder

sindical da época,Vicentinho: também tenho um pé na cozinha, referindo-se a sua possível origem

humilde e cabocla;

b) Eduardo Jorge, ex-Ministro do Governo Fernando Henrique, enfrentando pesadas

acusações de enriquecimento sob tráfico de influência junto ao governo, teria intermediado

interesses e pessoas no mínimo duvidosas. Em extensa lista, ponteava o nome de conhecido Juiz

foragido, implicado no rumoroso caso do Tribunal do Trabalho em São Paulo. Assim, pois, é

representado na charge como o protótipo do “Amigo da onça” atual;

c) O juiz Nicolau, mais conhecido como “Nicolaulau”, freqüentou os noticiários da mídia por

longo tempo, como principal responsável pelo desvio de verba da obra do Fórum Trabalhista. Uma ligação por mais tênue, um acobertamento mesmo que por

hipótese, para com o Juiz foragido, seria, algo definitivamente desastroso para o Governo FHC;

d) O “Amigo da onça”, como já dito, foi um personagem criado e imortalizado por Péricles nas páginas da extinta revista O Cruzeiro. Representava aquele

amigo que mesmo parecendo querer agradar, acabava sempre colocando o companheiro em situação difícil. Amigo, porém não tanto...

A junção de contextos diferentes dá-nos a idéia de contexto intericônico (relações entre as imagens associadas em série ou em sucessão) que, além de marcar

a temporalidade e a cronologia das ações, proporciona interpretações humorísticas em situações de comicidade. Já com o contexto intra-icônico (relações entre os

diferentes elementos da imagem), há uma conjunção entre elementos visuais e verbais, que auxiliam a transmissão de idéias, marcando um posicionamento crítico e

provocar o riso, principal objetivo da charge humorística.

A intertextualidade e a interdiscursividade acontecem a partir do momento em que há uma relação direta da charge com notícias veiculadas pela mídia. Dessa forma,

o jogo polifônico da charge e os contextos intra e intericônico contribuem para levar o leitor ao riso que é deflagrado pela fala do amigo-da-onça ao entregar o pé-de-cabra

presenteado pelo juiz Nicolau, provocando uma ação carnavalesca do destronamento e mostrando que no jogo polifônico “fala” mais que uma voz.

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Ao dizer Eu tenho um pé na cozinha, o presidente abandonou o sentido literal das palavras “pé” e “cozinha”, (extremidade inferior do corpo humano e parte

da casa onde se preparam os alimentos, respectivamente) e buscou as seguintes correlações: pé = origem e cozinha = negro. Sou mulato. Dessa forma, estaria o

presidente fazendo demagogia e dizendo, em outras palavras, que estava do lado do povo por entender suas dificuldades.

No entanto, o amigo-da-onça, que apenas explorou um sentido da palavra “pé”, apressou-se em ir buscar outro tipo de pé – o pé-de-cabra que não é o pé de

nenhuma cabra (fêmea do bode); é apenas uma ferramenta que, entre outras tantas utilidades, serve para arrancar pregos, tábuas e similares. Aurélio define-o assim:

alavanca de ferro cuja extremidade é fendida à semelhança de um pé de cabra.[Sin. (bras., RJ): truncha.]. 2 Bras. Pop. V. diabo (2).

Talvez devido a sua semelhança com o pé do diabo (igual ao pé da cabra), o fato é que tal instrumento, por sua indiscutível eficiência, acabou caindo no gosto

dos gatunos, dos ladrões, dos arrombadores, assim mesmo como o diabo gosta... Bem sabemos que o juiz Nicolau não era afeito a esse tipo de crime; lá no grupo dos

larápios podiam dizer que ele não era do tipo de por a mão na massa, preferia mesmo era colocar a mão na bola, ou no bolo? Em outra linguagem, diríamos que o

tipo de crime praticado pelo juiz Nicolau está enquadrado entre os de “colarinho branco”. Porém o que faz com que uma charge seja facilmente entendida é sua

capacidade de síntese. Logo, se o juiz Nicolau nunca usou um pé de cabra, não importa; o que interessa ao chargista é fazer com que o leitor interprete o pé-de-cabra

como um símbolo da desonestidade.

A análise de charges mostra que sua leitura requer um duplo movimento, envolvendo a percepção concomitante de duas máscaras, a da seriedade/autoridade

e a da ridicularização. Os efeitos de sentido da charge são ocasionados pela simultaneidade dos movimentos opostos, mas justapostos, que possibilitam um riso de

zombaria sobre nossa atualidade sócio-político-econômica.

A charge é, como já propusemos acima, um tipo de texto que atrai a atenção do leitor, pois, enquanto imagem, é de rápida leitura, transmitindo múltiplas

informações de forma condensada. Além de facilitar a leitura, a charge diferencia-se dos demais gêneros por fazer sua crítica usando o humor.

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Page 55: Volume IX

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº136 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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A GRAMÁTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS

J M dos Santos

PRIMEIRA VERSÃO

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J. M. dos Santos A GRAMÁTICA E O ENSINO DO PORTUGUÊS Professor de Língua Portuguesa CEULJI-RO [email protected]

O uso da gramática no ensino do Português nas escolas, em geral, vem gerando acirradas polêmicas ao longo dos anos. Esse fato é atribuído ao silêncio dos

gramáticos diante das críticas fundamentadas dos lingüistas, relativas às falhas existentes no ensino do português, visto que eles procuram valorizar o ensino

gramatical em detrimento do texto, numa concepção de que o conhecimento de conceitos e regras teóricas levam ao domínio da linguagem, mas o que observamos

é exatamente o inverso. Pretendemos, assim,à luz da razão, mostrar as incoerências gramaticais quanto ao ensino posto em prática, em nossas escolas, em virtude

de uma visão distorcida quanto ao que vem a ser norma padrão.

O nosso sistema educacional tem sido alvo de críticas há algumas décadas, pois o Ensino Fundamental, alicerce falido em que se apóia o Ensino Médio, está

mergulhado na plenitude da ignorância das autoridades educacionais e com ele o próprio Ensino Médio. Diante desse quadro caótico, a esperança de nossos educadores,

sequiosos por mudanças que efetivamente justifiquem aquilo de que tanto se tem falado nos meios educacionais – qualidade total - esvai-se, dando espaço à desilusão

que os prostra por duas razões - promessas vãs e a continuidade do descaso para com a educação. Isso tem contribuído para o fracasso do próprio sistema e

desespero dos que objetivam formar alunos críticos, donos de seu próprio discurso e futuros componentes de uma sociedade mais justa e humana. Assim, diante desse

quadro crítico, é difícil ensinar português para falantes do português, por se tornar tarefa angustiante para qualquer professor em face das inúmeras divergências de

gramáticos radicais, que não aceitam as variedades dialetais empregadas pelos alunos na comunicacão, observadas na prática pedagógica, fruto de currículos dissonantes

com a realidade lingüística do nosso país, pois se ensina a língua pátria como sendo um corpo único, homogêneo, imutável.

Analisando essas incoerências, vejamos como BECHARA (1982:199) conceitua período: “Chama-se período o conjunto oracional cuja enunciação termina por

silêncio ou pausa mais apreciável, indicada normalmente na escrita por ponto.”

Notando a falta de clareza, redime-se no parágrafo seguinte, dizendo ser período simples o constituído por uma só oração. O que se entende por

conjunto oracional? é a reunião das partes que constituem um todo. Confrontando Bechara com ANDRÉ (1997:274), nota-se uma semelhança entre ambos

parecendo-nos este mais conflitante em relação àquele, ao dizer que “Período é o enunciado que se constitui de duas ou mais orações.”

Como pode o aluno assimilar esses conceitos falaciosos e que procedimento tomará ao enfrentar concursos públicos, em especial o Vestibular? Se

nós, professores, não fizermos uma avaliação prévia do livro didático, antes de adotá-lo, estaremos nos acomodando funcionalmente e permitindo ao aluno

acreditar cegamente em tudo quanto o livro contiver. Essas aberrações não param por aqui. Ao perceber esse “festival”, o estudante volta-se para o lado

crítico, inquirindo o professor para explicar esses absurdos. Ás vezes, o professor é tão radical quanto o gramático e não aceita a participação do discente,

pois também não domina a GN, classificando-o como perturbador ou gracejador. Essa postura do docente compromete o rendimento da aprendizagem,

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deixando seqüelas no discente a ponto de se incompatibilizar com a matéria e também com o professor. Assim, transmite-se essa visão distorcida sobre o

ensino da língua como sendo o “decoreba” de uma infinidade de regras e de exceções, complicando mais a vida do aluno, principalmente daquele oriundo

de camada social menos privilegiada.

O que se vê dentro de sala de aula é tentar-se anular diversidades lingüísticas que expressam diferenças e conflitos existentes entre grupos etários e

étnicos e, sobremaneira, entre classes sociais. A esse respeito BOGO (1988:11) diz que a gramática tem sido o objeto do ensino de português no Brasil e

não a língua, como deveria ser. Em conseqüência, estão sendo transmitidos aos alunos do Ensino Fundamental e do Médio conceitos lingüísticos falhos.

Refletindo sobre esse ensino posto em prática pelas escolas públicas e particulares, verifica-se uma prática lastimável que é encher a cabeça do estudante

com algo inútil, confuso, incompleto – o conhecimento teórico não contribui significativamente para o domínio da língua. Considerando a inutilidade desse

conhecimento imposto ao aluno como um verdadeiro crime GERALDI (1987:21) afirma que: “O ensino da língua foi desviado para o ensino da teoria

gramatical.”

Ora, se a função básica da escola é o ensino da língua padrão, não é com teoria gramatical que ela concretizará seu objetivo. Esses contrastes levam o

estudante ao desinteresse pelo estudo da língua, pois quando pensa haver entendido conteúdo trabalhado em sala de aula, amargura-se ao se deparar com

determinadas construções, pois não consegue entender o enunciado, daí resultam as frustrações, reprovações, recriminações que começam pela própria escola e o

preconceito lingüístico de que não sabe português. Isso é o resultado de um ensino centrado na Gramática Tradicional – o conhecimento se esvai por falta de

sustentação científica; é como caminhar por sobre o lodo; não há firmeza nos passos dados e a queda é inevitável. Toda essa parafernália gramatical tradicional é

fruto de uma preocupação da escola em mostrar ao estudante a língua considerada padrão pela elite cultural que insiste em se pautar por modelos clássicos do

século III aC. Sabe-se que, através da história, a cidade de Alessandria, no Egito, foi considerada, naquela época, importante centro da cultura grega.

Assim, a grande literatura clássica da Grécia despertou o interesse dos estudiosos desse campo, pois estavam preocupados na preservação da pureza da

língua grega. Dessa forma nasceu a gramática que em grego significa “a arte de escrever. Como podemos observar, as regras gramaticais foram criadas voltadas para

o uso literário dos considerados grandes escritores do passado, recebendo o nome de Gramática Tradicional. Analisando esses fenômenos lingüísticos, John Lyons

afirma que elas resultaram em dois equívocos fatais: o primeiro, consiste em separar rigidamente a língua escrita da falada; o segundo, na forma de encarar a

mudança das línguas que eles acreditavam ser uma “corrupção”, “decadência”, também concebida por muita gente até hoje. Em função desses equívocos, formou-se

o “erro clássico” no estudo da linguagem que, apesar de dois milênios de reinado, só foi enxergado no final do século XIX e no início do XX com o surgimento da

Lingüística. Logo, enquanto não houver uma proposta pedagógica capaz de eliminar esses equívocos ocorridos no ensino da língua e uma mudança substancial das

motivações ideológicas que sustentam esse ensino mutilado, castrador, a gramática tradicional permanecerá como alvo crítico preferido, embora se reconheça ser ela

o principal ponto de referência para o Ensino Fundamental e o Médio, face se constituir num indicador de problemas conceituais teóricos e prático já focalizados pelos

lingüistas como uma contribuição no estudo da linguagem.

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Tudo isso resulta na submissão da língua à gramática. Como? Com o passar dos séculos, a Gramática Tradicional mudou de roupagem, mas o conteúdo

continuou o mesmo, isto é, passou a ser denominada de Gramática Normativa. Assim, a GT transformou-se numa ferramenta ideológica e as gramáticas escritas para

descrever e fixar como regras e padrões as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a serem

imitados. Com a instrumentalização da Gramática Normativa em mecanismo ideológico de poder e de controle de uma camada social sobre as demais, formou-se essa

“falsa consciência” coletiva de que os usuários de uma língua necessitam da Gramática Normativa como se ela fosse uma espécie de fonte mística da qual emana a

língua “pura”. Foi assim que a língua subordinou-se à gramática, segundo Bagno, (2000:87).

Finalmente, devemos ou não utilizar a gramática no ensino do português? Não há dúvida que sim, embora saibamos perfeitamente que ela em si não ensina

ninguém a falar, contudo ajuda na medida em que saibamos separar o útil do inútil. Bagno é de opinião que a gramática deve conter uma boa quantidade de

atividades de pesquisa, que possibilitem ao aluno a produção de seu próprio conhecimento lingüístico, como uma arma eficaz contra a reprodução irrefletida e acrítica

da doutrina gramatical normativa. Isso levaria o professor de português a sair do seu comodismo, a ser dinâmico, deixando de ser apenas um repetidor da doutrina

gramatical normativista que ele mesmo não domina integralmente. Portanto a importância da gramática está na competência do professor ao trabalhá-la em sala de

aula, não priorizando conceitos e nomenclaturas para que o aluno possa ter liberdade de pensamento e de expressão verbal.

À vista das considerações feitas, conclui-se que a gramática não justifica seu papel de única fonte para o ensino da língua nas escolas, tanto do ponto de vista

teórico quanto prático, bem como o título de código normativo da linguagem tomada no geral. Os gramáticos levam ao último estágio do desespero tanto o professor

quanto o estudante no estudo gramatical em virtude das divergências existentes entre eles. Assim, no momento em que o aluno entender que as regras da norma culta

são variáveis e que o emprego de uma forma pode ser normal numa modalidade lingüística, raro em outra e inexistente numa terceira, o seu rendimento escolar será

mais eficiente. Também é necessário que gramáticos e lingüistas formem uma verdadeira simbiose, para que haja espaço dentro de sala de aula para o ensino de

“gramáticas” e que a elite cultural se conscientize de que houve mudanças profundas na língua padrão concebida pela GT e que no Brasil já não se fala o português de

Portugal, e sim, o português brasileiro. Aí não tenhamos dúvida quanto à extinção da discriminação rígida que a escola põe em prática.

BIBLIOGRAFIA GERALDI, J.W. O texto na sala de aula. Cascavel, Assoeste, 1987. ANDRÉ, H.A. Gramática Ilustrada. São Paulo, Moderna, 1997. BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo, Nacional, 1982. BAGNO, M. Dramática da Língua Portuguesa. São Paulo, Edições Loyola, 2000. BOGO, O. Gramática: Leitura Crítica. Curitiba, HDV, 1988.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº137 - MARÇO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 137

FLÁVIO DUTKA

VISÃO COLONIZADORA E

DESENVOLVIMENTO EM RONDÔNIA

Klondy Lucia de Oliveira Agra

PRIMEIRA VERSÃO

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Klondy Lúcia de Oliveira Agra VISÃO COLONIZADORA E DESENVOLVIMENTO DE RONDÔNIA Professora de Língua Portuguesa - SESC/RO [email protected]

Em toda a história dos grandes descobrimentos observa-se o olhar superior dos povos europeus sobre os povos encontrados no Novo Mundo. Esta superioridade é

descrita através de comparações das populações tradicionais com os europeus, até alcançar o imaginário dos antigos viajantes, do jardim do Éden ao antimundo10.

Em se tratando da história sobre a penetração do europeu na Amazônia, as marcas do fantástico e do preconceito estão desde o primeiro documento, redigido

pelo dominicano frei Gaspar de Carvajal11 até a literatura contemporânea12.

Através destas leituras, vê-se com clareza a visão colonizadora que afeta o discurso de todos que tomam para si novas terras e com elas projetos e modos de vida.

Localizado na floresta Amazônica, região que representa hoje a maior reserva biogenética do planeta, guardando em seus ecossistemas um monumental volume de

conhecimento em grande parte ainda inexplorado, cuja biodiversidade tem despertado o interesse mundial, está o Estado de Rondônia, o qual tem sido objeto de

múltiplas pesquisas nestes últimos anos.

A leitura e observação dos dados colhidos através destas pesquisas têm mostrado que a colonização de Rondônia tem sido feita de modo desordenado e com

interesse e valores diversos. A ocupação, que inicialmente não se deu por ação oficial e sim por ação particular, por ocasião da construção da estrada de ferro

Madeira-Mamoré13, vem sofrendo ao longo da sua história a interferência de instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, com alegações variadas.

Órgãos públicos e privados vêm através de projetos e pesquisas, tentando direcionar o desenvolvimento sustentável de Rondônia tendo como meta a

equalização do desenvolvimento populacional com o desenvolvimento econômico da região14.

A Visão Colonizadora – Um Entrave ao Desenvolvimento de Rondônia visou uma imersão nesse espaço com vistas a verificar se o que vinha sendo proposto

através desses projetos tem levando em conta os princípios reitores da Agenda 2115, investigando a origem, a metodologia e analisando através do discurso de seus

proponentes se o que era pretendido não trazia demasiada carga da visão colonizadora para Rondônia.

Pretendeu-se com este estudo esclarecer dúvidas a respeito da história social desta parte da Amazônia, a qual vem há muito entravando o seu

desenvolvimento sob um olhar falsamente paternalista, que na verdade, não passa de uma visão colonizadora.

10 Riqueza de detalhes são encontrados no trabalho de Neide Gondim “A Invenção da Amazônia”. 11 Escreveu em 1541-2 “A penetração do europeu no maior rio da Amazônia”, foi um expedicionário às ordens de Francisco Orellana, governador da cidade de Santiago de Guayiaquil. 12Vários são os trabalhos que se referem ao homem Amazônico como homem indolente e de pouca inteligência. 13 Cf. CABRAL, Otaviano. História de uma região: Mato Grosso, Fronteira Brasil – Bolívia e Rondônia. Rio de Janeiro, Himalaia – 1963. 14 Vários destes projetos e pesquisas estão diretamente ligados a dois grandes programas criados pelo Governo Federal com financiamento do BIRD: O Polonoroeste (década de 80) e o Planafloro (década de 90). 15 Conferência da Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Agenda 21, Rio de Janeiro, 1992.

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Chamamos aqui, de visão colonizadora, interesses e idéias que vêm atender a países chamados desenvolvidos economicamente sustentáveis. Idéias que nem

sempre são válidas para países em desenvolvimento, mas que prontamente são acatadas, beneficiando apenas alguns grupos, trazendo um desenvolvimento

questionável à região.

A tendência dos povos estabelecerem colônias tem tido grande influência na história mundial. As colonizações têm distribuído conhecimento e cultura a todos

os pontos do mundo, levando ao descobrimento e ao desenvolvimento de novas terras. Entretanto, a colonização tem causado também guerras sangrentas e

destruição dos que estão no caminho de todos que espalham seu imperialismo.

Os termos colonialismo e imperialismo caminham juntos. Colonialismo é o sistema ou orientação política tendente a manter sob domínio, inclusive econômico,

possessões de determinadas regiões. Imperialismo refere-se a prática de estender a força política, através de ações ou pensamentos, aos territórios conquistados.

Estes territórios adquiridos são as colônias. Entende-se então, que as colônias não são criadas somente através da força. Algumas vezes, nações vão conquistando e

colonizando outras regiões gradualmente, através de idéias, concessões e negócios.

Através dessa pesquisa, pretendeu-se também, esclarecer como vinha sendo feita a colonização de Rondônia, a que nível e por quais empresas, negócios ou

países. Interessando, sobremodo, concentrar a atenção nos aspectos envolvendo interdependência do desenvolvimento sustentável (DS), o desenvolvimento

econômico (DE) e a visão colonizadora que entrava esses processos.

Observando-se que como uma verdade universal das sociedades humanas, a produção dos meios de vida e as relações de poder, a esfera econômica e a esfera

política, reproduzem-se e potenciam-se toda vez que um novo ciclo de colonização se inicia, e que no estado de Rondônia, este fenômeno não tem sido diferente.

Não se tratou aqui de ver a palavra colonização como o simples ato de ocupação da terra, se foi mais além, ou seja, se foi ao sentido básico de colo16, tomar conta de

, importando não só em cuidar, mas também em mandar. Traço que é inerente em diversas formas na ocupação feita neste Estado.

O QUE ACONTECE EM RONDÔNIA

Há uma gama imensa de projetos de desenvolvimento regional a nível federal e estadual que mencionam o desenvolvimento do Estado através de vários

programas envolvendo um alto custo no patrocínio de órgãos, instituições e ONGs que têm por finalidade a execução dos mesmos. Ainda, ultimamente, tem havido

gastos vultosos com encontros, estudos e palestras visando o desenvolvimento sustentável, como a Conferência das Nações Unidas sobre meio Ambiente e

Desenvolvimento ( Cúpula da Terra, ECO 92 ), a Rio + 5, a revisão da AGENDA 21 e tantos outros envolvendo todo o país, desde os grandes centros até os pequenos

municípios.

16 Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar. (cf. BOSI, Alfredo. p. 11)

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Como o desenvolvimento sustentável (DS) tem sido a tônica destes estudos e pesquisas e o seu conceito tem sido muito questionável, embora sua significação

já possua vasta literatura (v. g. Guimarães, 1994; Blowers, 1993; Barbier, 1987; Baroni, 1992), optou-se aqui por considerar o conceito formulado pelo relatório

Brundtland17, cujo enunciado é o seguinte: “ o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as

gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”, salientando ainda que “satisfazer as necessidades e as aspirações humanas é o principal motivo do

desenvolvimento” (WCED, 1987).

Ao mencionar o relatório acima, deve-se lembrar a retórica defendida pelos países imperialistas a seus colonizados, quando com a alegação de objetivar o

desenvolvimento sustentável, atentam as preocupações com o meio ambiente, lembram as necessidades e aspirações humanas, no entanto, não propõem alternativas

de progresso ao imporem limitações18. Cobram sem apontar caminhos para o crescimento através da execução de projetos agrícolas específicos, projetos com

sustentabilidade de recursos renováveis ou o uso otimizado dos não-renováveis. Projetos, que se acontecem, são através de ações isoladas ou setoriais, que envolvem

a adoção de medidas visando coibir ou reparar agressões ao meio ambiente.

O povo brasileiro que vem de uma cultura colonizada, e que, não consegue livrar-se dos países imperialistas, seja através da dependência econômica ou da

própria inoperância do estado, quando faz seu próprio deslocamento de outras regiões para Rondônia, traz consigo uma visão colonizadora que visa a exploração da

terra e de sua população tradicional, causando danos irreparáveis às pessoas e a natureza.

De acordo com BARTHOLO & BURSZTYN (1999), todas as iniciativas de exploração regional executadas até a conclusão de seus estudos19, como: projetos

agropecuários, atividade mineradora e exploração madereira trouxeram ao Estado de Rondônia impactos ambientais negativos, gerando desde o assoreamento dos

rios até a perda da biodiversidade de sua floresta.

Impactos ambientais gerados através da visão colonizadora que em qualquer situação é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se

a nível colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse processo não são apenas suportes físicos de operações

econômicas; são também uma gama de conhecimentos geradores de cultura que vêm não só somar a cultura local, mas também, subjugá-la. Para esclarecer cita-se

BOSI (1992):

“ A ação colonizadora reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do culto e da cultura. A ordem do cultivo em primeiro lugar. As migrações e o povoamento reforçam o

princípio básico do domínio sobre a natureza, peculiar a todas as sociedades humanas. Novas terras, novos bens abrem-se à cobiça dos invasores. Reaviva-se o ímpeto predatório

e mercantil que leva a aceleração econômica da matriz em termos de uma acumulação de riqueza em geral rápida e grávida de conseqüências para o sistema de trocas

internacional . O processo colonizador não se esgota no seu efeito modernizante de eventual propulsor do capitalismo mundial: quando estimulado, aciona ou reinventa regimes

arcaicos de trabalho, começando pelo extermínio ou a escravidão dos nativos nas áreas de maior interesse econômico.”(P. 20)

17 O informe da World Commission on Environment and Development (WCED) popularizado como Relatório Brundtland (WCED, 1987). 18 Um exemplo claro desse discurso imperialista encontra-se no certificado ambiental da International Organization of Standardization (ISO), a ISO série 14000. 19 Estudos e pesquisas do Projeto Úmidas que deram origem ao livro “Amazônia Sustentável” Estratégia de Desenvolvimento Rondônia 2.020.

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Buscar a extensão da visão colonizadora embutida nos vários projetos direcionados ao desenvolvimento de Rondônia, fazendo um paralelo com a história

social desta parte da Amazônia, foi o principal alvo deste estudo. Baseado no estudo teórico através da pesquisa bibliográfica, entrevistas, questionários, análises e

comparações dos projetos executados, não executados e em execução, junto aos órgãos oficiais, foi feita a investigação da existência ou não do discurso colonizador

em relação à região para nortear novos estudos e pesquisas em prol de um discurso anti-colonialista na construção de novos projetos, tentando assim, impedir que a

visão colonizadora continuasse a ser um entrave ao desenvolvimento de Rondônia.

OS SONHOS E A REALIDADE

Ao observar a instalação de Rondônia através de sua história, não há como deixar de fazer um estudo profundo do relato dos primeiros europeus, dos

dirigentes e trabalhadores da ferrovia, do relatório de Osvaldo Cruz quando de sua visita a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré e aos escritos de outros,

que com mais ou menos poesia em seus textos, descrevem o nascimento de uma população, sem grande cuidado quanto a descrição da população local e do trauma

trazido com a nova população de migrantes a esta população. Migrantes que chegavam a terra e que, por não agüentarem o clima e intempéries locais, ou morriam a

míngua ou desistiam de lutar e entregavam-se a uma sub-vida. Trabalhos nos quais a população indígena e tradicional aparecem, ora como inimigos mortais, ora

como escravos, sempre deixadas de lado como pessoas humanas e donos de uma cultura particular.

Ao chegar a literatura contemporânea e aos projetos objetos deste estudo, pode-se fazer um paralelo com a história social desta parte da Amazônia e

observa-se que, com o passar dos anos e a constante migração de pessoas de diferentes pontos do Brasil para Rondônia, o preconceito, antes visto contra a

população indígena e tradicional, tem sido transferido para os vários habitantes do estado ( povo formado por pessoas do Brasil e do exterior).

Nota-se, na maioria dos escritos, que descrevem as pessoas, costumes e tradições como seres à parte, tratando-os como nativos sem os serem.

Encontramos em projetos e pesquisas ainda recentes, o mesmo vigor de potencialidades imaginadas por autores do século XVII, onde os navegadores

descreviam o orvalho das folhas e a beleza do pôr do sol nas águas do Madeira. E como diz GONDIM ( 1994) quando cita Euclides da Cunha:

“ O mistério que ainda espera o homem imaginativo por detrás da cerrada muralha verde, parece atender a uma anseio euclidiano sentenciar: que ali é a guerra de mil anos

contra o desconhecido. O triunfo virá ao fim de trabalhos incalculáveis, em futuro remotíssimo, ao arrancarem os derradeiros véus da paragem maravilhosa, onde hoje se nos

esvaem os olhos deslumbrados e vazios. Mas não haverá segredos na própria natureza. A definição dos últimos aspectos da Amazônia será o desfecho de toda a História

Natural.”(P. 271)

Assim como a Amazônia em toda a sua extensão, Rondônia reencontra-se hoje sob a visão colonizadora que a revê como o paraíso pronto a ser

libertado de seus habitantes desqualificados e inválidos pelas mãos poderosos do ser inteligente e infalível que vem ocupá-la. E para demostrar esta visão

recorremos a TODOROV (1983, p. 122) quando o mesmo cita referência ao homem amazônico: “todos esses selvagens têm o ar sonhador porque não

pensam em nada”. Como esta afirmativa, encontram-se várias outras, num total desrespeito à população indígena e a população tradicional . Lembrando

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ainda que, no final da década de oitenta, Rondônia já se encontrava com uma população de aproximadamente 1.000.000 de pessoas, trazida de todos os

cantos do país, incentivados pelo programa Polonoroeste20 criado pelo Governo Federal na década de oitenta. Programa que teve como objetivo principal

asfaltar o trecho da BR-364 entre Cuiabá e Porto Velho, com financiamento feito pelo BIRD21.

O Polonoroeste trouxe como conseqüência, além do aumento do fluxo de migrantes em busca de terra e trabalho, o desmatamento acelerado, a

invasão de áreas indígenas e unidades de conservação, o crescimento desordenado das áreas de garimpo, a exploração predatória da madeira e a

concentração fundiária.

Com o brutal crescimento demográfico ocorrido em Rondônia ocorreu uma acirrada disputa pela posse de terras, com violentas pressões sobre os

territórios ocupados pelas populações indígenas.

Assim, em 1990, para corrigir desvios na execução do Polonoroeste foi criado o Planafloro22. Projeto que tinha como objetivo geral: “conservar a

biodiversidade de Rondônia, criando, ao mesmo tempo, uma base para a utilização sustentável de seus recursos naturais renováveis, visando os benefícios

econômicos diretos para a população local”. Suas ações deveriam estar baseadas no zoneamento socioeconômico-ecológico, cujo objetivo central seria

desestimular a expansão desordenada da fronteira de Rondônia, reduzindo a taxa de destruição da floresta tropical a níveis controláveis e aceitáveis,

incluindo também um programa de reformas institucionais que permitisse o fortalecimento institucional, a capacitação técnica e a articulação das políticas

públicas.

Na execução do Planafloro houve falhas quanto ao zoneamento socioeconômico-ecológico. O zoneamento ao propor uma abordagem restrita à

preservação dos recursos florestais, ignorou as demandas socioeconômicas, apresentando clara opção por um enfoque preservacionista, apoiado em forte

legislação proibitiva. Assim, o Planafloro foi perdendo o caráter de um instrumento flexível e subsidiador da tomada de decisão necessário à gestão

ambiental.

Um forte concorrente para a revisão e prorrogação de Planafloro foi a criação de uma grande quantidade de unidades estaduais de conservação

UCs23 em prazo muito curto, resultando em diversos problemas relacionados com a demarcação inadequada de certas áreas e com a ausência de diretrizes

básicas, procedimentos operacionais apropriados e falta de aparelhamento institucional.

O governo federal, através de seus vários órgãos, peca por não ter um bom gerenciamento. Desde a década de 70, quando o INCRA24 promoveu

uma colonização oficial irregular e desqualificada, com resultados tão negativos que em 1975, o mesmo órgão já havia distribuído para fins de assentamento

20 Programa de Desenvolvimento Integrado do Noroeste do Brasil. 21 Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento/Banco Mundial. 22 Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia. 23 Unidades de Conservação: são áreas protegidas, estabelecidas em ecossistemas significativos, assim considerados por incluírem importantes recursos naturais de interesse científico ou cultural. 24 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

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cerca de 4,3 milhões de hectares. Só nos anos de 1996 e 1997, foram criados cerca de 17 projetos de assentamento, ocupando cerca de 200.000 hectares,

nenhum dos quais submetido ao licenciamento ambiental. E ainda, havendo a divisão entre o IBAMA25 e SEDAM26 quanto ao licenciamento e autorização

para a realização de atividades potencialmente danosas ao meio ambiente, há um desencontro de opiniões e projetos, que acabam trazendo um conflito de

competências que gera licenciamentos altercados, remetendo a ocupação de Rondônia ao lado danoso da colonização, ou seja, a exploração de sua terra e

de seu povo.

De acordo com a SEDAM, a área desmatada em Rondônia aumentou de 3.981.313 hectares em 1993 para 4.873.143 hectares em 1995. De 16,7%

para 20,4% da área total do Estado. Em 1977, cerca de 22,71% de sua área total já estava desmatada. Estes dados colocam Rondônia como líder de taxas

de desmatamento da Amazônia legal.

Além do desmatamento, Rondônia sofre com outras formas de exploração que acarretam impactos ambientais bastante negativos: a atividade

mineradora e a exploração madereira. Atividades que levam ao empobrecimento da floresta, com perda da biodiversidade e a exposição do solo às

intempéries.

Há ainda, em tramitação em Brasília, um projeto que prevê o desmatamento de mais 50% da área da Amazônia que por enquanto continua

preservada, isto, se levado adiante, deixará todos os outros projetos que vieram através do Planafloro, visando o desenvolvimento sustentável de Rondônia,

a ter sido anos e anos de pesquisas perdidas. E, com certeza, levará Rondônia ao desmatamento total, visando, como a maioria dos projetos colonizadores,

ao interesse de pequenos grupos em detrimento da terra e de seu povo.

Mais uma vez, repete-se o erro do passado que, através de projetos agropecuários para a região, com a falsa premissa de que o solo da Amazônia

era fértil e poderia garantir uma produção agrícola farta e duradoura, trouxe milhares de pessoas a sobreviver na miséria nas cidades de Rondônia. Pois, o

solo da floresta, na sua maior parte, é composto por uma base arenosa coberta por camada pequena de húmus que, após o desmatamento, é lavada

rapidamente pelas chuvas, dando início a erosão, com deslocamento de terras para os rios e igarapés. Um grande passo seria a conscientização dos

parlamentares e a total inutilização de projetos deste tipo.

Após a análise, estudo e comparações dos dados, o paralelo traçado entre os discursos colonialistas encontrados e a história social de Rondônia,

observou-se que no Estado de Rondônia, que por sua localização, seu clima e sua ocupação acelerada e descontrolada, é um retrato-síntese da região

amazônica, não está havendo a responsabilidade de órgãos ou pessoas com o seu desenvolvimento sustentável. Nos projetos analisados não se está

levando em conta as necessidades da população local. Desde a exploração dos potenciais turísticos até a explorações de gases, óleos e plantas, remetem as

25 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. 26 Secretaria de Desenvolvimento e Meio Ambiente do Estado de Rondônia.

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atenções a interesses individuais de pessoas, órgãos, empresas ou países, esquecendo a devida atenção ao verdadeiro interessado no que se refere ao

desenvolvimento regional: a população local.

As populações indígenas em Rondônia têm sido objetos de pesquisa das mais variadas formas, mas não há uma preocupação real com o capital cultural destes

povos. Prevalecendo a visão colonizadora sem assegurar-lhes condições de sobrevivência. Como uma população mundial, rica em conhecimentos tradicionais sobre

suas terras, seus recursos e seu meio ambiente em geral, o indígena rondoniense tem sido olhado com olhos paternalistas, do imperialista que olha seus colonizados,

sempre prontos a explorar suas riquezas e sua força de trabalho, sem incluir direitos legais que o façam donos de suas vidas com instrumentos jurídicos e políticos que

dirijam, normatizem e proteja seu modo de vida, fato que ocorre com os mais variados povos do mundo.

Apesar de, a Universidade Federal de Rondônia e, principalmente, o NAEA (Núcleo de Altos Estudos Amazônicos) estar investindo em estudos e pesquisas

objetivando dar um desenvolvimento sustentável a região e o financiamento dado pelo Banco Mundial, a falta de uma total integração entre os departamentos das

universidades públicas e dos mais variados profissionais e órgãos faz com que os projetos recaiam na mesma falácia: a visão colonizadora. Criando unidades de

conservação que só objetivam resguardar nichos de biodiversidade para as gerações futuras e preservar áreas de beleza cênica e paisagística preservando e dando

continuidade somente ao pior lado da colonização: a exploração da terra e de seu povo, com a destruição de sua identidade cultural.

Somente a formação de uma consciência nacional, através de cursos obrigatórios a políticos, professores e pessoas interessadas a elaboração de projetos que

visem o desenvolvimento regional poderá desconstruir essa visão colonizadora e trazer benefícios não só ao Estado de Rondônia, mas a todo o nosso país.

BIBLIOGRAFIA

ATLAN, Henry. Entre o Cristal e a Fumaça: Ensaio Sobre a Organização do Ser Vivo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.

BARBA, Clarides Henrich de. O Método Científico. Porto Velho, UNIR, 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº138 - MARÇO - PORTO VELHO, 2004

VOLUME IX

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for

Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 138

FLÁVIO DUTKA

FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO:

NOVAS E VELHAS NARRATIVAS

Clarides H. de Barba, Rosângela C. S. Rodrigues

PRIMEIRA VERSÃO

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Clarides H. de Barba, Rosângela C. S. Rodrigues FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: NOVAS E VELHAS NARRATIVAS Professor de Filosofia – UFRO, Supervisora educacional [email protected] , [email protected]

Estamos vivendo um novo século, uma nova era. Quem precisava de um acontecimento histórico para marcar essa passagem teve em 11 de setembro de

2001, o espetáculo da explosão do World Trade Center. Uma das características da pós – modernidade, é a transformação de tragédias em grandes espetáculos.

Na atualidade, a máxima de Karl Marx: “tudo que é sólido desmancha – se no ar”, nunca antes foi tão precisa. Vivemos a era do espetáculo, do fugaz, do

efêmero, da velocidade e da virtualidade, onde nada dura, tudo passa. Nossas velhas instituições: família, escola, igreja, polícia, congresso, universidade, a tempos

foram atentadas. Hoje a televisão, o rádio, o jornal são fontes consagradas de “verdades e realidades”.

Como herdeiros de uma nova era, mas com corações e mentes no século passado, nos prendemos aos velhos problemas e ignoramos o presente. Apesar de

todo avanço tecnológico e científico, existem problemas do século passado que ainda não foram superados – a desigualdade social é um deles.

Neste artigo, apresentamos uma proposta de ruptura como passado. Seria ingenuidade de nossa parte querer negar as contribuições de Paulo Freire,

Demerval Saviani, Moacir Gadotti, José Libâneo e de tantos outros teóricos de renome que fecundam o campo da investigação pedagógica e filosófica da educação.

Nossa proposta é de lançar nosso olhar para a modernidade. Certos de que o passado é presente, mas que para entendê –lo é preciso pensar no “devir”, no

vir a ser e nas possibilidades eminentes do presente que começam a constituir uma nova concepção de mundo, de homem e de educação.

Gostaríamos de contribuir com a compreensão do mosaico do pensamento pedagógico, através das novas “lentes” oferecidas pelos pressupostos filosóficos

apresentados por Paulo Ghiraldelli Júnior, um dos mais atuais estudiosos da filosofia da educação no Brasil.

Procurar pensar o que é Filosofia? O que é Filosofia da Educação? Quais seus representantes? Quais as contribuições das teorias pedagógicas para a melhor

compreensão do processo ensino – aprendizagem? Que relações podem ser estabelecidas entre o discurso teórico e a prática pedagógica? São questões que ainda não

foram superadas de todo o terreno pedagógico.

FILOSOFIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Definir filosofia e filosofia da educação não é uma questão simples, pois a sua pluralidade conceitual varia de acordo com a concepção epistemológica

defendida pelos diferentes filósofos. Para alguns, a filosofia deveria se preocupar com a essência, para outros a atenção deveria voltar – se para o fenômeno, uns

acreditam que a busca da verdade é a função da filosofia . Platão considerava a filosofia como o desenvolvimento do saber em benefício do homem.

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Para este trabalho, iremos considerar a concepção de filosofia e de filosofia da Educação de Demerval Saviani: (...) podemos conceituar filosofia como uma reflexão

(radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade apresenta. (...) Filosofia da Educação não seria outra coisa senão uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto)

sobre os problemas que a realidade educacional apresenta (2000:20)

De acordo com esses princípios, a capacidade do educador de pensar sobre sua prática cotidiana, vai muito além de enumerar as teorias da

educação de acordo com as concepções pedagógicas e de saber se está sendo construtivista, tradicionalista, idealista ou racionalista. A atitude filosófica,

requer a habilidade de identificar, analisar e resolver os problemas da educação.

De acordo com Saviani, a tarefa de Filosofia da Educação é de oferecer aos educadores um método de reflexão que lhes permitam encarar os

problemas educacionais, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução de questões tais como: conflito entre filosofia de vida e ideologia na

atividade do educador, a relação entre meios e fins da educação, a relação entre teoria e prática, os condicionamentos da atividade docente, até onde se

pode contá-los ou superá-los Saviani (2000: 23).

Os educadores precisam compreender que consciente ou inconscientemente toda prática pedagógica está embasada numa teoria, numa

filosofia, ou seja, numa concepção de mundo, de educação e de homem que se pretende formar. Esta deveria ser a primeira definição a ser feita, antes

mesmo de se definir quais os objetivos da educação.

Nossa educação tem sido pautada pelos princípios do silêncio, da obediência, do autoritarismo, da hierarquia, da ordem, da passividade, da dissimulação,

(fingir o ensinar e o aprender) da omissão, da exclusão, da fraude, da rotulação e da desigualdade. Como resultado dessa prática espera-se que o aluno seja um

cidadão crítico, atuante, participativo, honesto, solidário, criativo e humano. É a grande contradição se revelando entre o discurso e o fazer pedagógico.

Nos saberes necessários à prática docente, Paulo Freire nos ensina: No processo de fala e escuta, a disciplina do silêncio a ser assumida com rigor e a seu tempo

pelos sujeitos que falam e escutam é um “sine qua” da comunicação dialógica. O primeiro sinal de que o sujeito que fala sabe escutar, é a demonstração de sua capacidade de

controlar não só a necessidade de dizer a sua palavra, que é um direito, mas também o gosto pessoal, profundamente respeitável de expressá-la. (2001: 131)

Como esperar do aluno que atravessa a educação básica (11 anos) sobre a égide do silêncio, tenha consciência do seu direito de voz? Mais do que um ser que

escreve, o homem pode ser definido como ser que fala. Somos seres narrativos. Nossas relações pessoais, sentimentais, amorosas, são permeadas pela oralidade. A

escrita no papel não tem a mesma força ordenatória ou salvadora que tem a palavra expressa pela fala. Os psiquiatras nos seus consultórios e os padres nos

confessionários conhecem muito bem esse poder.

Precisamos abrir espaços de comunicação com nosso aluno, permeada pelo ato da fala e da escuta. Deixar que o aluno fale sobre seu cotidiano, seus sonhos,

sua família, seus desejos, seus medos, suas desilusões, suas alegrias, suas tristezas, suas fantasias, seus conhecimentos é a forma de considerá-lo como sujeito de

sua história. É construir sua identidade e subjetividade pessoal.

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Moacir Gadotti, demonstra que se a escola não é o lugar possível para o diálogo para educadores e educandos, é porque na sociedade, a liberdade de

expressão não é uma atitude desenvolvida de igual direito para todos. Como desenvolver o diálogo numa sociedade de conflitos?

Qual é o papel do educador crítico nessa sociedade? Essas são as questões que irão permear a pedagogia do conflito.

A pedagogia do conflito é a teoria de uma prática pedagógica que procura, não esconder o conflito, mas afrontá-lo, desmascarando-o. Para lutar contra as

desigualdades, elas devem estar evidentes para todos os membros de uma sociedade e não ser percebida como um fato natural e universal.

Os conflitos existem porque os interesses das classes sociais são divergentes. Uns lutam pela manutenção do status quo, outros querem a transformação da

estrutura social a fim de que se desenvolva maior equidade social. Nesse contexto , o papel do educador segundo Gadotti deve ser: crítico e revolucionário. Seu papel é o

de inquietar, incomodar, perturbar: a função do pedagogo parece ser esta: à contradição(opressor/ oprimido, por exemplo) ele acrescenta a consciência da contradição. Foi isso que

fizeram por exemplo Lao-tsé, Sócrates, Marx, Nietzsche, Freud, mão Tsé- tung, Freint, Amilcar Cabral, Gramsci e outros grandes nomes da história antiga ou contemporânea(1988:120)

Essa não é uma tarefa fácil, mas o educador precisa assumir esse desafio, nessa sociedade de conflitos, de classes e de interesses diferentes, de criar

condições necessárias que fortaleçam o aparecimento de uma nova concepção de homem, materializada em pessoas conscientes, solidárias, organizadas e capazes de

superar o individualismo. No contexto da dominação política e da exploração econômica capitalista, o papel do educador revolucionário é o de ser um agente atuante

do discurso contra-hegemônico.

Toda classe que assume o poder passa a lutar para que o seu conhecimento seja aceito, dizimado e aceito como natural e verdadeiro. O desejo de hegemonia

faz com que os outros saberes sejam relegados, esquecidos e eliminados. Nesse sentido é preciso questionar a hegemonia de uma classe e de uma forma de

conhecimento e de um discurso. Sendo essas modalidades hegemônicas (poderes) colocadas em evidências, abre-se uma possibilidade de vislumbrar as bases

estruturais do sistema capitalista, e dessa forma “minar” o seu sustentáculo.

CONTRIBUIÇÃO DE ALGUNS AUTORES

As idéias filosóficas de Paulo Freire, Moacir Gadotti e Demerval Saviani, contribuíram de forma significativa para a formação da concepção da educação como

um ato político e transformador da realidade social. Essa concepção foi lida por muitos professores e pedagogos de forma equivocada. Em consequência, a prática

pedagógica passou a ser direcionada para a formação política em detrimento das demais habilidades necessárias a formação de um sujeito atuante na sociedade e

conhecedor de sua história.

José Carlos Libâneo irá perceber que o monopólio do conhecimento é o fator que contribui para a manutenção de uma estrutural social. A possibilidade para

mudança está na apropriação do conhecimento por parte daqueles que estão à margem da sociedade. Ë este o princípio que irá reger a Pedagogia Crítico Social dos

Conteúdos. Segundo Libâneo, a Pedagogia Crítico Social dos Conteúdos: (...) postula para o ensino a tarefa de propiciar aos alunos o desenvolvimento de suas capacidades e

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habilidades intelectuais, mediante a transmissão e a aquisição ativa dos conteúdos escolares, articulando no mesmo processo, a aquisição e noções sistematizadas e as qualidades

individuais dos alunos que lhe possibilitam a auto-atividade e a busca independente e criativa das noções(1994:70)

De acordo com o pensamento de Libâneo, é através do domínio de conteúdos científicos, de métodos de estudos e habilidades e hábitos de raciocínio

científico é que os alunos poderão formar consciência crítica face às realidades sociais e assim terão capacidade de assumir no conjunto das lutas sociais a sua

condição de agentes ativos das transformações sociais e de si próprios.

Apesar das considerações apresentadas, nosso objetivo não é o de demonstrar, por exemplo uma trajetória teórica de Paulo Freire desde a “Pedagogia do

Oprimido” até “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática docente”, ou sobre a Pedagogia Libertadora, o que não é uma tarefa fácil quando se quer

apresentar algo de novo. Paulo freire é um dos autores mais lido, discutido, criticado, odiado e amado por esses rincões do Brasil. É preciso perceber que seus estudos

inauguraram a possibilidade de um pensamento autônomo do sistema educacional.

Demerval Saviani, foi um dos pioneiros na década de 70, a desenvolver a tentativa de encaminhar dialeticamente o problema dos objetivos e meios da

educação brasileira. Sua teoria, sobre a “curvatura da vara agregada aos pressupostos da pedagogia para além da essência e da existência” causaram várias

discussões no seio acadêmico (2000: 62).

O estudo das tendências pedagógicas na prática escolar: liberais e progressistas27, realizado por José Carlos Libâneo, trouxe grandes contribuições para o

campo educacional. Através da tendência Crítico Social dos Conteúdos, foi possível aos educadores, a compreensão da necessidade da valorização dos conteúdos em

confronto com as realidades sociais.

Por sua vez, Moacir Gadotti, através de sua “pedagogia do conflito”, apesar do autor considerá-la como prática e não como teoria, nos demonstra que “toda

construção da história e de suas idéias é certamente desconstruída, contraditória, fragmentada, como aliás, a história das idéias de todos os tempos” (1988: 118).

Descrever sobre qualquer um dos autores citados, que com certeza contribuíram de forma significativas e com idéias inovadoras para a compreensão do

sistema do ensino brasileiro, sem cair na mesmice ou numa postura passional é quase que impossível. Seus pensamentos representam postulados teóricos que

atenderam as expectativas e as necessidades de uma determinada época histórica.

CONCEPÇÃO DA VERDADE E TEORIA DEFLACIONÁRIA

Ghiraldelli compreende o grupo de teóricos conhecidos como os deflacionistas28. Antes de nos aprofundarmos nesse campo desconhecido, se faz necessário

compreender a questão que fundamenta os trabalhos desse grupo – A concepção da verdade. A verdade é o tema central da Filosofia, da Filosofia da Educação e do

27 No quadro das tendências liberais inclui-se: a tendência tradicional, a renovada progressista, a renovada não-diretiva e a tendência tecnicista. No segundo grupo estão presentes: a tendência libertadora, a libertária e a crítico social dos conteúdos, a qual é defendida pelo autor. 28 Para Ghiraldelli, autores deflacionistas, são aqueles que discutem tanto determinado assunto que chega a apresentar-se de maneira formalizada. O tema da verdade é muito discutido entre estes estudiosos.

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próprio pensamento pedagógico. O que mantém a crença nos discursos de um indivíduo, os quais ele desenvolve no decorrer do dia, de acordo com seus variados

papéis sociais é a verdade, ou numa leitura foucaltiana, o desejo de verdade:

Se nos situarmos no nível de uma proposição, no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso, não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional,

nem violenta. Mas se situamos em outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nosso discurso, essa vontade de verdade que

atravessou tanto séculos de nossa história ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber é talvez algo como um sistema de

exclusão: histórico, institucionalmente constrangedor que vemos desenhar-se(2000:14).

Se por exemplo uma turma de alunos desconfiasse que o discurso proferido pelo professor não está condizente com a verdade, dificilmente eles

permaneceriam na sala de aula. A crença na verdade é que move os nossos passos rumo ao futuro.

Da Grécia Antiga até o advento da pós-modernidade foram inúmeros os teóricos e filósofos que se preocuparam em estabelecer a essência da verdade. Na

atualidade, esses estudos compreendem a Teoria da Correspondência29, a Teoria da Coerência30 e a Teoria Deflacionária31. Vamos centrar nossa atenção nessa última,

pois acreditamos que ela apresenta uma ruptura epistemológica frente aos postulados estabelecidos pelas teorias anteriores.

De acordo com Ghiraldelli, o deflacionismo é o movimento dos filósofos adeptos da teoria da verdade que dessubstantivam a verdade, que desessencializam a

verdade, ou no limite, que retiram da verdade qualquer conotação metafísica. (Estilos em educação. 2000:17)

O verdadeiro ou a verdade para os deflacionistas, pertence ao campo da pragmática linguística. A verdade estaria “reduzida” a uma questão de retórica. Bem

sabiam os filósofos gregos.

Que contribuições essa teoria oferece para a compreensão da filosofia da educação ou para a pedagogia? O que Ghiraldelli tem de comum com Freire, Saviani,

Gadotti e Libâneo? Como tal teoria pode favorecer o entendimento das relações estabelecidas em sala de aula entre professores e alunos?

Para os deflacionistas, a verdade revela-se ou pode ser estudada no âmbito dos discursos. Como estudiosos da educação, a primeira coisa que deveríamos

fazer é observar os discursos provocados pelas várias teorias ou tendências pedagógicas. Deveríamos calcular a força de cada pedagogia ou suas incongruências

através da escada de Ransey.

Ransey é visto por Ghiraldelli como o pai das atuais teorias deflacionárias. O que vem a ser a escada de Ransey?

A metáfora da escada é a seguinte: na base podemos dizer “p”, no primeiro degrau podemos dizer “é verdadeiro que p”, no segundo degrau colocamos “está na ordem do

universo que p”, e assim por diante, de modo que um dos últimos degraus (se é que isto tem fim) envolveria o máximo de floreamento que a linguagem pode dar, de modo a

realizarmos uma boa performance linguística segundo interesses determinados. Ser deflacionista é, então, acreditar que, do ponto de vista que poderíamos encontrar de

29 Teoria da correspondência: Uma preposição é verdadeira se e somente ela correspondesse aos fatos. 30 Teoria da Coerência : Uma preposição seria verdadeira na medida em que apresente uma ótima adequação a proposição e ou sentença. 31 Para a teoria deflacionária, a concepção de verdade é redundante, isto é, o que falamos sobre a verdade é algo puramente formal.

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substancial nas frases que são postas nos degraus da escada, a perspectiva da base da escada. Se alguma diferença há, ela não é uma diferença substantiva ou metafísica,

mas apenas retórica (Estilos em Filosofia da Educação, 2000: 18)

Na tentativa de analisar o discurso pedagógico brasileiro como base nos pressupostos da escada de Ransey, Ghiraldelli nos apresenta uma análise sobre os

discursos elaborados por Paulo Freire, Anísio Teixeira e o marxismo pedagógico. Em suma, para os deflacionistas, o grande problema da pedagogia advém da postura não –

crítica de professores que não percebem que Paulo Freire e o marxismo pedagógico em termos filosóficos, estão ainda no século XIX. (Estilos em Filosofia da Educação, 2000: 21).

Dos discursos citados, o que “caiu na estrada e foi sufocado pelas pedras” foi o discurso de Anísio Teixeira. Ele foi esquecido porque era consciente da verdade

redundante, que não pertence ao campo da metafísica, mas ao campo da pragmática da linguagem.

Os professores e pedagogos acreditaram ( de acordo com seus desejos de verdade) naqueles que tinham na boca a “fala de Deus”, daí terem se jogado nos

braços do que houve de mais dogmático na história da educação brasileira, que foi o que Ghiraldelli caracterizou de marxismo pedagógico dos anos de 1980.

Investigar uma palavra é vê-la em sua relação com outras palavras, ver seu uso e fazer uso dela. o mesmo de ser feito com os discursos. Afinal, todo discurso

expressa o desejo de verdade de uma palavra.

Apropriar – se do discurso deflacionário para Ghiraldelli induz a pergunta sobre a essência da verdade. Esta torna-se parte de um projeto de descrição de

como a comunicação acontece, como é que acontece algo empírico pelo qual somos capazes de nos comunicar enquanto seres que emitem sons, ruídos e significado.(

filosofia da Educação,2000:52)

A nova postura pedagógica que busca construir um novo referencial de entendimento da educação é a “pós – virada em favor das narrativas”. Esta nova

postura em filosofia da educação representa um conjunto dinâmico de preceitos que parecem querer vingar uma nova postura de uma nova geração de professores

compromissados com a fertilização da imaginação, mais do que com o conhecimento dos saberes.

A imaginação constitui um dos fatores internos imprescindíveis à aprendizagem e a cognição dos alunos. Para que essa possibilidade se materialize, se faz

necessário, localizar o aparecimento do novo pensar e agir e a de conhecer o velho. O saber constituído, que se quer natural e universal, e nega com isso a

pluralidade de culturas existentes no cotidiano.

De acordo com De Certau:

(...) no cotidiano existem mil maneiras de jogar/ desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros em termos de discursos ou prática de

escrita. Esse jogo caracteriza-se numa atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos, que, por não Ter um próprio, deve desembaraçar-se em uma rede de

forças e de representações estabelecidas manifestas nos atos de andar, falar, ler, cozinhar.(1994: 79)

A “pós-narrativa” caracteriza-se por uma retórica educacional em construção. Até o século XVII e XVIII, a realidade era considerada através da metafísica.

Com o advento da modernidade ou pós-modernidade, o real passou a ser uma questão debatida por narrativas formadoras de novos espaços: o cinema, a literatura, a

ficção, a arte, a música, a poesia, a indústria cultural, o jornal televisado ou escrito.

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O primeiro passo do processo educativo na “pós-narrativa”, começa pela consciência de que temos várias descrições do que chamamos de realidade.

“Dependendo das palavras, certas coisas existem e são importantes. Se as palavras são outras, estas coisas são lixos (...)Tudo é discurso: a ciência, a religião, o

saber, a arte, a educação. Há um discurso opressor e um discurso libertador” Gadotti (1988: 56).

Os discursos (falados , escritos) são materializações das vontades de verdade e de poder. O discurso de quem já está no poder é “opressor” porque o seu

objetivo é a manutenção do “status quo” e, o discurso de quem está a margem do poder, pressupõe um discurso “libertador”, pois sua função é o de o homem de sua

posição de “oprimido”.

Na escola se faz necessário construir nos alunos a habilidade de escrever e ler as diversas formas de gêneros discursivos. É essa nova forma de encarar a

educação que encanta os educadores cansados pelo tecnicismo oficial e pelo neo-tecnicismo progressista. Recupera assim, na sala de aula, a beleza, o indivíduo, o

pessoal, o poético, o inconsciente, a emoção.

O real, na atualidade, é uma escrita discursiva. Assim sendo, o termo realidade é complexo, não só porque entre a realidade e a ficção existe uma linha tênue,

mas porque ambas estão sendo conceituadas e expostas segundo meios de comunicação cada vez mais inusitados. Em alguns extremos, a virtualidade é preferida

frente a realidade.

A adoção por si só das narrativas no espaço escolar, não irá solucionar os problemas do ensino nem tão pouco revelar as nuanças das diversas formas de

discursos. É no fazer pedagógico e na relação professor e aluno, que as narrativas devem ganhar sentido e encontrar “jogos de linguagem” ou seus significados.

Os “jogos de linguagem” ou jogos imaginários, são estruturados de diferentes formas, estilos e gêneros recorrentes conforme o interesse em jogo. Há

mensagens discursivas que causam maior efeito se forem transmitidas através da música, da poesia, da literatura, de um filme, de uma novela. Há outras que

necessitam da obrigatoriedade para poder se impor, ou para que a ordem seja mantida, nesse campo aparecem as leis, os decretos-leis, os ofícios, os memorandos,

enfim todo do Código de Direito.

As teorias desenvolvidas pelos professores deveriam ser entendidas como forma de narrativas. A ciência, os mitos, o senso comum, as lendas, são narrativas

discursivas construídas pelos homens de forma histórica e social.

Um discurso filosófico, educacional, político, poético, ou literário, são a priori, narrativas, são discursos, são criações humanas elaboradas com o objetivo de

conquistar o coração e a mente de outrem em favor do seu desejo de verdade.

Se os diversos discursos forem vistos como narrativas, o professor não pode privilegiar uma forma de conhecimento em detrimento de outra. Amplia-se assim,

o acesso a formas variadas de conhecimentos e a utilização de recursos metodológicos como a televisão, o rádio, a internet, o cd-rom, o vídeo-cassete, o gravador, a

filmadora. O quadro e o giz não podem continuar sendo a única referência do espaço escolar.

Em suma, as velhas fórmulas e as antigas teorias devem ser vistas como conhecimentos necessários para identificar nos atuais discursos o que já foi superado

e o que nesse “mar de palavras” pode contribuir para o processo de aprendizagem dos nossos alunos.

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Hoje, precisamos nos apropriar de novos instrumentos de análise da realidade social e educacional, pois querer enxergar o presente e vislumbrar o futuro com

os olhos do passado é o mesmo que exigir da borboleta que volte ao casulo para aprender a voar com maestria.

Em termos de tendências pedagógicas e filosóficas apresentadas nesse estudo e para fins exclusivos deste, organizamos a seguinte proposta para a melhor

compreensão dos atuais problemas que envolvem o campo educacional.

Por um momento, suspendemos as teorias de Paulo Freire, Moacir Gadotti, Demerval Saviani e José C. Libâneo que são considerados representantes da

tendência histórico-marxistas e procurar os sentidos dos discursos pedagógicos com base nas propostas apresentadas por Ghiraldelli, que propõe a análise dos

discursos, como forma de marcar as descontinuidades, as rupturas, as formações e reproduções de idéias desencadeadas pela lógica do poder centralizador e que se

quer hegemônico, natural e universal.

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SALVE-SE QUEM PUDER – QUEM PODE? Globalização e Felicidade Humana

Monica Lopes Folena Araújo, Nina Cátia Alexandre Cavalcante, Sid Orleans Cruz , José Joaquim

Pereira Da Silva

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 78

Monica Lopes Folena Araújo, SALVE-SE QUEM PUDER – QUEM PODE? Globalização e Felicidade Humana Nina Cátia Alexandre Cavalcante, Sid Orleans Cruz , José Joaquim Pereira Da Silva Professora do Depto de Biologia – UFRO, SENAC [email protected] [email protected], [email protected]

Aristóteles: “ Parece que a felicidade, mais do que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais, mais que as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-la-íamos, ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes “.

Nosso interesse em analisar acerca dos aspectos sociais da globalização e suas conseqüências na felicidade humana se deu a partir da leitura do texto

“SALVE-SE QUEM PUDER! MAS QUEM PODE? – O desaparecimento da classe média e a ascensão dos sedutores extremistas”, no capítulo intitulado “A TRAIÇÃO

DAS ELITES: O Brasil como modelo mundial”. O referido capítulo retrata a vida de moradores do condomínio fechado Alphaville, situado a oeste da grande São

Paulo, que se consideram pessoas felizes por viverem nesse sistema de moradia que consideram um verdadeiro paraíso.

A visão de paraíso apresentada por esses moradores é a de “uma grande área, equivalente a 44 campos de futebol, rodeada de muros de vários metros de

altura, equipada de focos de prospecção e sensores eletrônicos, que reagem a cada movimento: um ideal local de fuga para os habitantes da metrópole que temem

os criminosos, para aqueles que querem viver como as famílias médias da Europa – ou de regiões ainda mais prósperas dos Estados Unidos – sem terem de se

render à realidade social de seu próprio país.”

Um outro aspecto mencionado pelos moradores diz respeito à segurança oferecida pelo sistema de condomínio fechado. Trata-se de “um sistema perfeito,

um lugar no qual crianças com menos de 12 anos de idade, sem a companhia do encarregado de educação não podem transpor a grade de aço da entrada;

menores só o podem fazer com a autorização expressa dos pais”.

A felicidade é portanto retratada por esses moradores como algo externo ao ser humano, enquanto que as bibliografias sobre a felicidade com as quais

temos entrado em contato, referem-se à felicidade como uma “certa atividade da alma conforme a excelência humana perfeita”. Verificamos dessa forma, que na

visão de Aristóteles, a felicidade está relacionada à satisfação de sentimentos essenciais, enquanto que para os moradores do referido condomínio essa felicidade se

alicerça em signos palpáveis produzidos pelo mercado comercial, amplamente referendados pela mídia, como possuidores de atributos de prazer, de satisfação, de

status social e porque não dizer de felicidade. Apesar das diferenças conceituais, ora apresentadas, percebemos que há um ponto em comum. Em todos os tempos

consolida-se a crença de que a felicidade é “um bem supremo que todos almejam alcançar”.

Nessa perspectiva definem-se como objetivos de nosso estudo: 1. Geral:

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- Compreender o sentido da felicidade nos dias de hoje, face aos atravessamentos culturais de uma sociedade globalizada, voltada para a cultura do

consumo, verificando o posicionamento individual de entrevistados que residem em condomínios fechados, de classe média alta na cidade de Porto Velho.

2. Específicos:

a. Investigar se os referenciais de felicidade humana se pautam em motivações externas ou internas à alma.

b. Investigar a interferência das horas dedicadas ao trabalho no relacionamento familiar.

c. Identificar a(s) razões das pessoas optarem por um sistema de moradia em condomínio fechado.

d. Relacionar a possibilidade de maior segurança com a opção das pessoas por residirem em condomínio fechado.

e. Alencar quantitativamente os aspectos positivos e negativos da globalização na felicidade das pessoas.

f. Verificar a relação feita pelos entrevistados entre educação e felicidade.

Greenwood (1965) diferencia três métodos de investigação: o experimental, o de medida ou análise extensiva e o de casos ou intensivo. Neste processo de

estudo, optamos pelo método extensivo que é o mais utilizado na observação dos fatos. O recurso do qual nos servimos para investigar acerca da influência dos

valores sociais da globalização e suas conseqüências na felicidade humana, foi a aplicação de um questionário a residentes de condomínios fechados na cidade de

Porto Velho. Esse instrumento nos permitiu efetuar a coleta de informações da forma mais prática e objetiva possível, considerando a disponibilidade de tempo

dessas pessoas para responderem às nossas perguntas.

Temos claro que a metodologia não constitui uma receita geradora de cientificidade, mas que pelo contrário, é a própria lógica do ato investigativo. Por

isso, o conceito de metodologia que defendemos é essencialmente o da organização crítica das operações técnicas de investigação (Almeida e Pinto, 1995). Dessa

forma, a revisão de literatura que utilizamos mostrou-se um instrumento bastante adequado tanto no que concerne a contribuir na seleção dos valores sociais da

globalização que precisariam estar presentes em nossas questões por se constituírem em referenciais da felicidade humana, quanto no que diz respeito ao que nos

acrescentaram em termos de conhecimento e de riqueza conceitual para que pudéssemos desvendar e compreender de modo mais objetivo as respostas emitidas

pelas pessoas.

A nossa preocupação e interesse no estudo dessa problemática orienta-se na tentativa de articulação dos referenciais teóricos com as hipóteses, a partir das

quais a situação dos efeitos dos valores sociais da globalização na felicidade humana foi analisada, já que concordamos ser este um dos pontos fortes do texto.

Imbuídos nesse espírito, procuramos mais o sentido das coisas que propriamente explicações em nossa investigação.

Assim, ao abordarmos essa problemática, procuramos encontrar respostas para as seguintes questões:

1. Será que os valores sociais da globalização tornam as pessoas felizes ou infelizes?

2. Terá a globalização afetado a vida pessoal e profissional das pessoas?

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3. Será razoável pensar que o principal motivo das pessoas residirem em condomínios é escapar da violência acentuada pela globalização?

4. Será o conceito das pessoas positivo ou negativo em relação à influência da globalização na felicidade humana?

5. Até que ponto podemos sustentar que, na opinião das pessoas, educar para o sucesso profissional mais que educar para qualquer outro aspecto é

garantia de felicidade?

6. Terá fundamento pensar que a felicidade é atualmente encontrada em fatores externos à alma como o demonstrado pelos residentes do condomínio

citado no texto?

7. De que forma os valores sociais da globalização respondem aos sentimentos essenciais do ser humano?

A pesquisa “A influência da globalização na felicidade humana”, utilizada como recurso para obtenção de dados elucidativos sobre o estudo do tema

proposto, teve como participantes 42 entrevistados residentes em condomínios fechados de classe média alta na cidade de Porto Velho, destes entrevistados, 29

são do sexo feminino e 13 do sexo masculino. Do total de participantes, 22 encontram-se na faixa etária de 31 a 40 anos de idade, 08 deles possuem de 21 a 30

anos , 03 deles encontram-se na faixa etária de 15 a 20 anos, 05 deles possuem de 41 a 50 anos e 03 pessoas estão com mais de 51 anos. Registramos a seguir o

conjunto de conclusões resultantes da tabulação dos dados da referida pesquisa:

1. Grande parte dos entrevistados possui uma carga horária de trabalho muito intensa, mas ainda dedicam parte considerável do seu

tempo à convivência familiar.

Ao analisarmos a situação dos entrevistados com relação a quantidade de horas trabalhadas diariamente , verificamos que 42,85% deles dedicam mais de

08 horas ao trabalho, 80,95% são casados, 61,9% possuem de 02 a 03 filhos, 64,28% dedicam mais de 02 horas por dia e todos os finais de semana à família.

Estes dados nos revelam que apesar da mutação radical que vem ocorrendo na vida das pessoas, por conta da globalização, fato este apresentado por diversos

autores (IANNI, 1997 e SOUZA, 2000) ainda assim, os sentimentos essenciais dos entrevistados demonstram estarem fortalecidos.

2. A maioria dos entrevistados deposita nos sentimentos essenciais do ser humano a fonte de sua felicidade

Quando indagados acerca do significado da felicidade, 76,19% dos entrevistados envolvidos responderam ser a convivência familiar o fundamento de tal

sentimento, 40,47% a realização amorosa, 35,71% o sucesso financeiro, e em quarto lugar o sucesso profissional com 28,57%. Cabe-nos ressaltar que os dados

apresentados referem-se apenas aos maiores índices obtidos em cada item em uma escala de um a quatro.

Verificamos que 88,09% das pessoas consideram-se felizes. A pesquisa mostra, na sua única questão dissertativa, que os referenciais que confirmam tal

resposta têm por base questões relacionadas principalmente ao convívio familiar e saúde, seguida da aquisição de bens materiais.

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Em relação a educação para a felicidade, constatamos que 35,71% acreditam que educar para constituir uma família consiste na mola mestra para atingir a

felicidade futura. Por outro lado, 28,7% da população entrevistada acredita que educar para combater mecanismos que levam à alienação sócio-política e cultural

seja a base para o mesmo fim.

Diante do exposto, fica claro que a felicidade humana está relacionada a sentimentos puramente essenciais e não a referenciais externos trazidos pela

globalização, tais como: consumismo, competitividade, superficialidade dos relacionamentos, status e fetichismo.

Os resultados, com que nos deparamos em nossa pesquisa, encontram apoio na sabedoria do filósofo Aristóteles. Na sua obra intitulada “Ética a

Nicômacos”, ao refletir acerca da felicidade humana, trata de relacioná-la com o estado de excelência humana. Afirma desta forma que “a excelência humana

significa, a excelência não do corpo, mas da alma, e que a felicidade é uma atividade da alma“.

Apesar destes resultados nos surpreenderem, precisamos também registrar o quanto nos alimentam em esperança e entusiasmo, considerando que “se

encontram nos sentimentos essenciais do ser humano a marca da resistência aos valores da cultura do consumo e conseqüentemente a fonte de energia capaz de

“salvar a condição humana do seu próprio deperecimento” ( Adorno,1995 ). Ainda, segundo Adorno, resistir aos valores sociais da globalização e mais

especificamente aos da cultura do consumo, significa movimentar-se de forma contrária às possibilidades de expansão da “consciência coisificada”, a qual se refere

da seguinte forma: “...No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros

iguais a coisas.”

3. Escapar à violência urbana estimulou as pessoas a residirem em condomínios fechados.

Dentre os entrevistados, 88,09% afirmam que a segurança é o fator preponderante e fundamental para a sua escolha, enquanto que 28,57% asseguram

necessitar de privacidade. Nas palavras de Thomaz Wood, ao se referir à globalização e hipercompetição, “outra dimensão da crise é também algo de que todo o

mundo fala o tempo todo: a violência urbana. As saídas procuradas são o carro blindado, o apartamento em lugar da casa e a colocação de grades e cercas. O

paulistano, como outros brasileiros, vive hoje dentro de bolhas, sempre fechado, pois o carro é uma bolha, assim como o apartamento, o shopping center e o resto.”

Um outro dado encontrado na pesquisa, que confirma a afirmação exposta, no que diz respeito à relação existente entre violência urbana e globalização,

refere-se ao fato de encontrarmos um percentual de pessoas estipulado em 59,5% que confirmaram, como escolha, caso o nosso município fosse totalmente

seguro e sem nenhuma ou pouquíssima criminalidade, morar em ambientes abertos (casas, chácaras). Concluímos assim que, na medida em que é superado o

problema da segurança, a grande opção dos entrevistados é pela liberdade, que se constitui em mais um sentimento essencial de toda a humanidade.

4. Como fator positivo, a globalização é apresentada como instrumento voltado a encurtar distâncias, ampliar a rede de relacionamentos

humanos e elevar o nível cultural dos entrevistados.

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Pode-se perceber uma clara divisão de opinião relativa aos aspectos positivos e negativos da influência da globalização na felicidade humana. Dentre os

entrevistados, 59,52% acreditam que este processo mundial é positivo à felicidade por facilitar o acesso ao conhecimento, enquanto que 45,23% utilizam-se da

mesma opinião por reconhecer o acesso às novas tecnologias e à facilidade de relacionar-se através do encurtamento das distâncias. Posições como estas

encontradas em nossa pesquisa, nos são confirmadas através dos estudos de Thomaz Wood, 2002, ao tratar de mais uma das características do processo que

chamamos de globalização. O autor salienta que “esse alto grau de conexão tornou o sistema muito mais complicado de operar. O que antes era um sistema com

partes mais isoladas, que se controlavam localmente (sistema político, social, cultural, empresarial, etc.), agora é um todo, com múltiplas conexões. Assim, qualquer

coisa que aconteça no outro lado do mundo logo se propaga por todo o globo porque a conexão é enorme. É claro, o transporte de passageiros e o número de

ligações telefônicas são apenas dois exemplos. Fenômeno similar acontece com os fluxos financeiros, o transporte de matérias primas e produtos acabados, etc. Há

séculos que esta conexão vem crescendo, mas nos últimos anos aumentou exponencialmente.”

Apresentamos, a seguir, uma figura que retrata a conectividade no mundo relacionada ao tráfego aéreo de passageiros e ligações telefônicas registrados

pela National Geographic, no período de 1960 e 2000.

Conectividade no mundo 1960 e 2000. In: Thomaz Wood (2002) p. 15.

Ainda em relação a este aspecto e confirmando a situação exposta acima, registramos a posição de Milton Santos, 1994, ao referir que “ a aceleração

contemporânea impôs novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte das idéias mas, também, acrescentou novos itens à história. Junto com uma nova

evolução das potências e dos rendimentos, com o uso de novos materiais e de novas formas de energia, o domínio mais completo do espectro eletromagnético, a

expansão demográfica (a população mundial triplica entre 1650 e 1900 e triplica mais uma vez entre 1900 e 1984), a explosão urbana e a explosão do consumo

também evoluiu o crescimento exponencial do número de objetos e do arsenal de palavras. Mas, sobretudo, causa próxima ou remota de tudo isso, a evolução do

conhecimento, maravilha do nosso tempo que ilumina ou ensombrece todas as facetas do acontecer.”

5. Os resultados negativos da globalização ressaltados no trabalho demonstram a consciência dos entrevistados em relação ao Apartheid

Social, à elevação dos níveis de desemprego e ao incentivo à posse de objetos descartáveis.

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Muitos dos entrevistados apresentaram apenas pontos positivos dos efeitos da globalização na felicidade humana, outros apenas os pontos negativos e

alguns se expressaram de ambas as formas. Dentre os que destacaram aspectos negativos, 42,85% relataram que a globalização aumenta a exclusão social das

pessoas de baixa renda, o que nos é confirmado através dos referenciais teóricos de Robert Wright (2001), ao apresentar dados de estudo da Century Fundation,

que mostra, por exemplo, que os 10% mais pobres da população do planeta aumentaram sua fatia na renda mundial de 0,3% para 0,5% , entre 1995 e 1997,

enquanto que os 10% mais ricos ampliaram sua participação de 50,6% para 59,6%. Por esses números, verifica-se o quanto é patético o aumento de crescimento

da renda da população mais pobre, mesmo sabendo-se que houve crescimento.

Dando continuidade a análise da pesquisa, 28,57% enfatizaram o desemprego e o estímulo ao consumismo como fatores negativos. Citando Thomaz Wood,

2002, em geral pinta-se de cor de rosa o quadro da globalização. Diz-se que é uma coisa boa, está mudando o Brasil, coloca em alcance do consumidor maior

variedade de produtos, etc. Parece que estamos evoluindo no meio de carros melhores, mais seguros, bonitos e rápidos. Mas este processo tem outro lado, muito

delicado e nada brilhante: o da desigualdade, da crise. Parafraseando Solange Jobim e Souza (2000), ao se referir às bases que fundamentam e fortalecem o

sistema capitalista, que nada mais é do que passagem de uma ordem social produtiva para uma ordem social reprodutiva, que possui em seu cerne a cultura do

consumo, “objetos e coisas são com freqüência utilizados para demarcar relações sociais, estilos de vida, hábitos e preferências entre as pessoas. As relações entre

as crianças e também entre os adultos e as crianças, são demarcadas pela “cultura das coisas, ou seja, pelos bens materiais e simbólicos que circulam entre nós,

originando noções de bem-estar, felicidade, prazer, e também o seu oposto, a infelicidade e o desprazer. “

Outro aspecto sobre o qual não podemos deixar de refletir, diz respeito à própria evolução das contradições do sistema capitalista que se fortalece na

medida e na dinâmica do avanço tecnológico, tornando possível produzir-se cada vez mais em menos tempo e com acentuada redução da mão-de-obra, ou seja,

prescindindo-se cada vez menos do trabalhador e necessitando-se cada vez mais de consumidores. Ainda no que tange a este contexto, a autora citada enfatiza que

“a economia da descartabilidade tomou lugar da economia da permanência, tornando mais vantajoso substituir do que consertar, onde o novo fica velho no instante

em que tomamos posse da mercadoria. A imagem da felicidade do homem atual está, portanto, indissoluvelmente relacionada à posse de objetos descartáveis.

Contudo não é difícil perceber que a expansão do consumismo não tem sido garantia da felicidade, pois permanecemos constantemente frustrados com os objetos

que nunca coincidem com os sonhos que nos prometem.”

Acreditamos no fato de que não há outro caminho para o Brasil resolver suas desigualdades sociais senão o da educação para elevar sua competitividade

mediante a melhoria da sua tecnologia e maior modernização.

Como relata Nogueira (2000), “vivemos hoje um momento de evidentes transformações na sociedade, diretamente vinculadas ao que vem ocorrendo no

mundo inteiro. A cada dia a chamada globalização vem impondo certos valores e preceitos nas mais diversas áreas da atividade humana”.

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Com certeza, o aspecto educacional também está envolvido neste processo, porém, se a escola for vista apenas como mais um meio social de veiculação

de valores na vida das pessoas que por ela passa, encontrará seu limite na legitimidade que cada indivíduo e no que a própria sociedade lhe confere. Os alunos

precisam ampliar sua capacidade de julgamento e a consciência de como realizar escolhas, para que se tornem cidadãos capazes de se posicionar e atuar em

situações de conflito, como as impostas pela globalização.

Salve-se quem puder, mas quem pode? Acreditamos na premissa de que a educação voltada para a transformação social, como sugere Candau (1988), é

o primeiro passo na busca da salvação. Redenção esta que consiste em buscar o equilíbrio para uma melhor convivência com o processo globalizador em que nos

encontramos, para que nos tornemos parte da engrenagem e nela possamos interferir.

Parece-nos também fundamental o desenvolvimento local como forma de valorização de nossa cultura e, portanto, de nos mantermos vivos nesta

máquina engenhosa. Melo (1995) afirma que torna-se necessário hoje adotar, de forma profunda e generalizada, a abordagem do desenvolvimento local nas

sociedades contemporâneas e sugere algumas pistas para procurar reduzir a hegemonia generalizada da mercantilização corrente, que atropela os valores, os quais

resgatam e fortalecem os sentimentos essenciais dos seres humanos e que, conseqüentemente, comprometem qualquer expectativa de felicidade.

Retomando Alberto Melo (1995) “o programa reduz-se a poucas linhas mestras: salvaguardar e recriar espaços de gratuidade e de produção de pequena

escala, de base familiar ou comunitária; e redefinir espaços de bens públicos, da responsabilidade de poderes públicos democraticamente eleitos e controlados, aos

vários níveis – desde o local ao mundial; travar e em seguida reduzir o agravamento das desigualdades; restaurar ou instaurar sistemas mútuos de solidariedade,

redistribuição e proteção social; criar atividades e empregos a partir de necessidades básicas urgentes, das pessoas como do ambiente; garantir que as formas de

produção e de vida respeitarão os recursos e os valores éticos da civilização.”

Por fim, parafraseando Coutinho (2001) “o Brasil tem um longo caminho pela frente, mas tem também uma chance incrível”. Nós também acreditamos

nisto, que o nosso país ainda pode vir a ter uma sociedade rica, grande, justa e generosa como tanto merece.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, J. F. de; PINTO, J. M. A Investigação nas Ciências Sociais. Lisboa, Editorial Presença, 1995. CANDAU, Vera Maria (org.). Rumo a Uma Nova Didática. Petrópolis, Vozes, 1988. IANNI, Octávio. A História da Mundialização. in: A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977. MARTIN, Hans-Peter; CHUMANN, Harald. Salve-se Quem Puder! Mas Quem Pode? in: A Armadilha da Globalização. Lisboa, Terramar, 1999. NOGUEIRA, Ione da Silva. A Violência nas Escolas e o Desafio da Educação Para a Cidadania. in: O Direito a Ter Direitos. São Paulo, Autores Associados,

2000. RAMONET, Ignácio. A Agonia da Cultura. in: Geopolítica do Caos. Petrópolis, Vozes, 1998. SANTOS, Milton. A Aceleração Contemporânea: Tempo-Mundo e Espaço-Mundo. in: Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo, Hucitec. WOOD, Thomaz. Globalização e Hipercompetição: A sociedade das Organizações e o Desafio da Mudança. São Paulo, CIEE, 2002.

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