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VOLUME ÚNICO ENSINO MÉDIO Componente curricular: Filosofia Berlendis & Vertecchia Editores 2ª edição, São Paulo: 2016. FilosofiA temas e percursos Vinicius de Figueiredo (Organizador e autor) Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná Luiz Repa Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento João Vergílio Cuter Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo Roberto Bolzani Filho Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo Marco Valentim Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná Paulo Vieira Neto Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

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VOLUME ÚNICOENSINO MÉDIO

Componente curricular: Filosofia

Berlendis & Vertecchia Editores

2ª edição, São Paulo: 2016.

FilosofiA temas e percursos

Vinicius de Figueiredo (Organizador e autor)Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

Luiz RepaDoutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo

e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

João Vergílio CuterDoutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo

Roberto Bolzani FilhoDoutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo

Marco ValentimDoutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

Paulo Vieira NetoDoutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Filosofia : temas e percursos / organização de Vinicius de Figueiredo -- 2. ed. -- São Paulo :Berlendis & Vertecchia, 2016.

Vários autores.ISBN 978-85-7723-079-2 (aluno)ISBN 978-85-7723-080-8 (professor)

1. Filosofia (Ensino Médio) I. Figueiredo, Vinicius de. II. Título

16-01276 (aluno) 16-01277 (professor) CDD-107.12

Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Ensino médio 107.12

Copyright do livro e textos não assinados: © 2013 berlendis editores ltda.Copyright dos textos: © 2013 os Autores.

Direitos reservados com exclusividade aBerlendis Editores Ltda.

Rua Moacir Piza, 63 - 01421-030 São Paulo, SPTel: (11) 3085.9583 Fax: (11) 3085.2344

[email protected]

Proibida toda xerocópia, mesmo de uma página, e toda reprodução, física ou digital, de qualquer trecho, de textos e imagens deste livro sem a prévia autorização expressa e por escrito dos detentores dos direitos correspondentes. Toda cópia não autorizada

infringe a legislação nacional e as convenções internacionais de direitos autorais.

Os editores declaram ter feito o máximo esforço em localizar os detentores dos direitos de textos e imagens utilizados neste livro. No caso de alguma involuntária omissão ou incorreção de nossa parte, pedimos gentilmente entrar em contato com a equipe editorial.

Coordenação editorial:

Bruno Berlendis de Carvalho

Organização:Vinicius de Figueiredo

Consultoria pedagógica:Jairo Marçal

Jeosafá Gonçalves

Revisão:Caio da Costa Pereira, Letícia França

Projeto gráfico:Claudia Intatilo

Foto da capa: Marco Giannotti, “Bernini”

Diagramação:Claudia Intatilo

Colaboradoras: Cláudia Carminati, Najla Bunduki

Pesquisa iconográfica:Andrea Bolanho

São Paulo, 2ª edição 2016

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sumário

apresentação ........................................................................................................6

Nota ao leitor ........................................................................................................ 8

Filosofia, o pensamento e o livro: quinze perguntas e respostas ................ 10

Modo de usar ...................................................................................................... 14

Sobre os autores ................................................................................................ 17

unidades .............................................................................................................. 18

unidade 1 • natureza e cultura ......................................................................... 20

O limite entre dois universos ........................................................................... 21

O naufrágio de Robinson Crusoé ..................................................................... 24

A diversidade das culturas ................................................................................ 28

A ideia de “natureza humana” ......................................................................... 31

Montaigne e os canibais .................................................................................... 33

“Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas” ....................................... 39

unidade 2 • razão e paixão ..........................................................................44Uma espécie que se diz racional ...................................................................... 45

Virtude e paixão ................................................................................................. 53

A rejeição das paixões ....................................................................................... 59

A razão a serviço das paixões ........................................................................... 63

História, razão e paixões ................................................................................... 69

unidade 3 • lógica e argumentação .................................................................. 76

Racionalidade e emoção .................................................................................. 77

A arte de persuadir ............................................................................................ 82

Premissas e conclusões ..................................................................................... 86

Falácia e argumento .......................................................................................... 97

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unidade 4 • dúvida e certeza ........................................................................... 110

Vivemos cercados de dúvidas ........................................................................ 111

A dúvida, base da investigação ..................................................................... 117

Duvidando para atingir a certeza ................................................................. 124

Limites da dúvida ao garantir a certeza ........................................................ 135

unidade 5 • realidade e aparência .................................................................. 144

As aparências enganam? ................................................................................ 145

A revolução filosófica e científica moderna ................................................. 150

Ser e parecer justo ........................................................................................... 155

A realidade da aparência ................................................................................ 164

unidade 6 • espírito e letra .............................................................................. 172

Interpretar as regras do jogo ......................................................................... 173

Mudar a “letra” para manter o “espírito” ...................................................... 177

Traduzir e interpretar ...................................................................................... 182

Questões de interpretação ............................................................................. 188

unidade 7 • eu e o outro .................................................................................. 196

O enigma do Eu e do Outro ............................................................................ 197

O “Eu penso”: Descartes .................................................................................. 204

O Eu com o Outro ............................................................................................. 207

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento ................................................. 212

A defesa da tolerância ..................................................................................... 218

unidade 8 • liberdade e necessidade ............................................................. 224

A tragédia de Édipo .......................................................................................... 225

Estoicismo e a necessidade do universo ....................................................... 227

A origem da ideia de necessidade ................................................................ 235

Necessidade natural e liberdade humana .................................................... 238

unidade 9 • ordem e caos ............................................................................... 250

A bagunça do meu quarto .............................................................................. 251

A origem do mundo ......................................................................................... 256

A ordem política ............................................................................................. 259

Da ordem do irracional ................................................................................... 267

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unidade 10 • continuidade e ruptura .............................................................. 278

Como e quando algo muda? ........................................................................... 279

O “movimento” segundo Aristóteles ............................................................. 288

“Perfectibilidade” e “desenvolvimento” ....................................................... 293

As revoluções científicas ................................................................................. 302

unidade 11 • princípio e temporalidade ......................................................... 308

A diferença entre fundamento e início ......................................................... 309

Platão e o tempo .............................................................................................. 317

O tempo em Agostinho ................................................................................... 321

Elogio de Kant a Platão ................................................................................... 329

Regularidade da experiência .......................................................................... 333

A noção de progresso científico ..................................................................... 336

unidade 12 • finito e infinito ........................................................................... 342

A biblioteca de Borges ..................................................................................... 343

Filosofia grega e infinito .................................................................................. 347

O infinito divino ................................................................................................ 352

Quem é finito não pode conceber o sem-fim ............................................... 357

O infinito atual nas matemáticas................................................................... 361

apêndices .......................................................................................................... 371

Quadro sinótico: grandes áreas da Filosofia ................................................ 372

Conteúdos e referências ................................................................................. 374

Índice de boxes bio-filosóficos ....................................................................... 399

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“Read the book”

Tim Maia (1942-1998)6

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Apresentação

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As palavras que seguem são importan-tes. Seu intuito é esclarecer inicialmen-

te alguns aspectos do livro que você tem em mãos. Este texto não é bem um manual de instruções, mas uma espécie de tutorial que irá ajudá-lo a tirar todo proveito do livro. Por isso, é uma boa ideia lê-lo com atenção.

Primeiro, uma palavra sobre a estrutura geral do livro. Ao todo, ele possui doze Uni-dades, que se subdividem em módulos. Cada Unidade está organizada a partir de um par de noções complementares, como: Liber-dade e necessidade, Finito e infinito, Dúvida e certeza etc. Essa noções, como ficará claro ao se iniciar a leitura do livro, correspondem a conceitos fundamentais da filosofia. Cada par de noções funciona como uma chave de leitura para a abordagem dos principais problemas filosóficos, questões que ocuparam muitos pensadores ao longo de mais de dois mil anos de reflexão.

Mais de dois mil anos? Não se assuste com isso. O teorema de Pitágoras, que você conhece da matemática, também tem essa idade. E permanece tão atual e importante quanto o foi a partir do momento em que Pitágoras o formulou. Arquimedes (287-212 a.C.), outro grego genial, enunciou a lei do empuxo e a lei da alavanca, válidas de lá para cá. Hipócrates (460-370 a.C.) foi o pai da medicina grega, e até hoje os médicos que se formam prestam o juramento que leva o seu nome, de zelar pela vida e saúde de seus pacientes. Esses são apenas alguns exemplos de inúmeras contribuições mate-máticas, físicas e científicas que remontam

a um passado distante, esperando por nossa curiosidade e vontade de saber.

No caso da filosofia, as coisas se pas-sam de maneira semelhante. Seu estudo é inseparável do contato com os autores que fizeram a história do pensamento. Isso não significa que o estudo filosófico seja uma decoreba das opiniões de cada um desses filósofos, muito pelo contrário. Essa via é desinteressante e pouco pedagógica. Afinal, que ganho há em decorar que Platão pensou assim, Descartes, assado e assim por diante?

O essencial é despertar a atenção para saber por que e como os filósofos de todos os tempos pensaram o que pensaram. Nos-so compromisso é o de apresentar algumas questões de forma que você se interesse pe-las respostas que foram suscitadas por elas, como também pela maneira peculiar de formular aquelas perguntas. É preciso des-pertar sua curiosidade, o que não deixará de trazer recompensas.

Ou melhor: trata-se de auxiliar sua curio-sidade a vir à superfície. Pois você logo perce-berá que questões filosóficas estão por toda parte. Não é um acaso se, da Antiguidade grega até os dias de hoje, grandes pensado-res tenham se ocupado da filosofia. A razão é simples: problemas filosóficos brotam es-pontaneamente em nossa reflexão, desde que o mundo é mundo. A curiosidade é o pri-meiro passo para se fazer filosofia. Por isso, o que um livro de Filosofia deve procurar fazer é acolher nosso espanto e nossa admiração diante dos mistérios e dos problemas traba-lhados pelos filósofos, mistérios e problemas

nota ao leitor

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que também são nossos. Isso, pode ter certe-za, promete ser uma aventura inesquecível.

Não ganhamos muito decorando as opi-niões que os filósofos ao longo da história têm a nos transmitir. Bem melhor que isso é buscar compreender o que os levou a pen-sar o que pensaram, dizer o que disseram. Se isso ocorrer, você já estará filosofando.

Nossa escolha por organizar o livro em módulos no interior de Unidades temáticas foi concebida com esse objetivo. Cada uma das Unidades inicia-se com uma introdução ao par de noções que lhe dá o título. Em se-guida, explora-as sob vários aspectos dife-rentes. Cada abordagem do tema equivale a uma etapa da Unidade (um módulo), que vai se aprofundando e assim promovendo a variação de nosso olhar sobre os problemas apresentados de partida. Ao longo de cada Unidade, como você verá, as diferentes ma-neiras de se aproximar do assunto vão lhe dando maior complexidade.

Mas a estrutura também permite que se leiam os módulos separadamente, ou numa ordem diferente daquela aqui sugerida. Você pode, digamos, fazer um estudo sobre diferentes aspectos da teoria do conheci-mento. Para tanto, confira dois importan-tes grupos de tabelas ao final do volume. O primeiro grupo traz as referências abor-dadas em cada Unidade: autores, temas, interdisciplinaridade etc. Além disso, você encontra um quadro sinótico (isto é: de “vi-são geral”) da distribuição, ao longo do li-vro, das grandes áres da Filosofia: filosofia política, moral, estética etc.

O percurso de uma determinada Uni-dade não chega a uma resposta definitiva e inquestionável para os problemas discu-tidos nela. Um dos pioneiros da reflexão filosófica, Platão, escreveu diálogos em que Sócrates, seu mestre, indagava a seus interlocutores: “o que é a beleza?”, “o que é a coragem?”, “o que é o conhecimento?”, “o que é a justiça?”. Muitos desses diálo-gos investigam tais noções sem chegar a um resultado definitivo. No entanto, nin-guém que já teve a chance de travar con-tato com tais textos negou que houves-se neles muita filosofia. A filosofia está menos nas respostas definitivas que nas questões bem formuladas.

Mas não vá pensar que ali onde não há respostas definitivas não possa haver aprendizado. Aprende-se muito quando se verifica que existe mais de uma resposta, especialmente quando estamos falando de interrogações essenciais para nós. Exami-ná-las será parte importante de um proces-so ao longo do qual você irá formular seu próprio ponto de vista sobre o mundo que o cerca. Consequentemente, para você se questionar e se posicionar quanto a assun-tos os mais diversos: das ciências à ordem política, passando pela sociedade, a finitude humana, a natureza, a arte... tudo isso é matéria de reflexão filosófica.

Esse livro foi concebido como uma in-trodução à grande aventura do pensamen-to. Nosso desejo é que você aproveite a paisagem que se descortina nas páginas a seguir!

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Filosofia, o pensamento e o livro: quinze perguntas e respostas

1. O que é filosofia?A palavra “filosofia” tem origem no termo grego “philosophía”, que reúne duas pa-

lavras: philía (= amor; amizade) e sophía (= sabedoria). Assim, “filosofia”, no seu sentido mais amplo, é o amor à sabedoria. Tudo leva a crer que Pitágoras (570-495 a.C.), um importante sábio da Grécia antiga, tenha sido o primeiro a utilizar o ter-mo com esse sentido. Ele teria chamado sua atividade de reflexão como a prática da filosofia.

2. Qualquer pessoa que levanta perguntas sobre o sentido das coisas e dos seres é filósofo?

No sentido mais amplo de “filosofia”, sim. Por isso a filosofia é uma disciplina funda-mental na formação intelectual de todos nós. Esse é o motivo pelo qual a filosofia é uma disciplina escolar. Afinal, ela trata de problemas que interessam a todas as disciplinas e a todos os indivíduos que refletem sobre o mundo que nos cerca.

3. Existe então uma filosofia oriental e outra africana, ao lado da filosofia inventada pelos gregos da Antiguidade?

Se nos ativermos ao sentido amplo de filosofia, segundo o qual a filosofia é a atividade da reflexão em geral, todo indivíduo que refletiu sobre as questões mais essenciais aos seres humanos praticou filosofia. Nesse sentido, ela jamais foi privilégio de uma cultura particular. Entretanto, em seu sentido mais especializado, a filosofia teve origem entre os gregos antigos, e no seu desenvolvimento nunca deixou de remeter a essa origem. Foi a partir dos gregos antigos que a filosofia começou a fixar um conjunto de textos repetidamente lidos e interpretados, e foi assim que, ainda na Antiguidade, essa atividade do pensar se expandiu para fora da Grécia.

4. Onde encontrar a filosofia nesse sentido mais específico? Nos textos que nos deixaram os filósofos, ao longo de um percurso histórico. Essa

história é longa e sinuosa. Ampliou-se com o tempo, sofreu influências árabes e orientais, e hoje é estudada em todas as partes do mundo. Mas ela não é nada parecida com um simples acúmulo de opiniões (gregas, romanas, árabes, medie-vais, modernas...). Cada nova grande formulação filosófica recoloca as questões trabalhadas por filósofos anteriores. Estudar filosofia é familiarizar-se com gran-des questões que foram levantadas no âmbito das ciências, da literatura e da arte, da política, da ética etc.

5. Como está organizado o presente livro? Em diversos módulos, dispostos em 12 Unidades. Cada Unidade aborda um par de

noções complementares entre si. Essas noções são referências temáticas e repre-sentam questões que possuem dois aspectos: são muito familiares a nossa refle-xão cotidiana e ao mesmo tempo são essenciais à reflexão filosófica.

6. O que significa a ideia de percurso no interior das Unidades?Cada Unidade introduz grandes ideias em torno de um par de temas. Em seguida,

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são apresentados desenvolvimentos que esses temas receberam por mais de um filósofo. À medida que se avança na Unidade, os temas que lhe dão título são aprofundados em um nível maior de complexidade. Boxes informativos situam o contexto histórico, literário, científico, social e político em que foram enunciadas as teses examinadas no percurso. Eventuais remissões de uma Unidade a outra também são sugeridas ao longo de cada um dos caminhos que você é convidado a percorrer. Além disso, em cada Unidade você encontrará Situações de aprendiza-gem que incentivam uma reflexão qualificada sobre os temas examinados. Assim, cada Unidade propõe um percurso reflexivo que fornece uma ampla compreensão acerca das variações admitidas pelos temas essenciais da filosofia. Você poderá identificar, desse modo, as alterações que os temas discutidos foram sofrendo ao longo da história, da Antiguidade até os dias de hoje. Esse aspecto é muito impor-tante, pois mostra que os conceitos de que nos servimos para conhecer e agir no mundo têm uma história e nem sempre foram compreendidos como pensamos. Além disso, houve também épocas em que as mesmas questões promoveram de-senvolvimentos diversos por parte de grandes pensadores.

7. Existe relação entre as doze Unidades do livro? Questões filosóficas exibem inúmeras relações entre si. Não por acaso, é muito di-

fícil restringir a contribuição dos grandes autores do pensamento em um único domínio da filosofia. Geralmente, o que foi pensado por eles diz respeito a mais de um âmbito da reflexão, envolvendo consequências semelhantes para a ética, a epistemologia, a estética etc. Uma vez que o livro que você tem em mãos não é organizado por apresentações consecutivas das ideias de um filósofo, depois ou-tro e assim por diante, mas segundo os principais temas da filosofia, você pode se deparar mais de uma vez com um mesmo filósofo em diferentes módulos e Unida-des. Em cada uma delas, o filósofo irá revelar uma faceta de seu pensamento, sua contribuição para o tema em análise. Descartes, por exemplo, aparece em diversos módulos sob perspectivas diferentes. Seu aspecto varia conforme o percurso que está sendo proposto nesta ou naquela Unidade. E isso constitui uma primeira for-ma de interação entre os doze grandes eixos deste livro. A outra se deve ao fato de que os temas que dão nome às Unidades são muito amplos e, por isso, possuem relações entre si. Mas não se preocupe, a apresentação de cada um deles foi pensa-da de modo a tornar essas relações palpáveis a você. Cuidamos de assinalar pontos de passagem entre as partes do livro. Assim, à medida que você for lendo-o, desco-brirá atalhos surpreendentes entre os caminhos da reflexão filosófica.

8. Não há um ponto fixo a partir do qual este livro tem início? Não. Cada Unidade possui uma ordem interna, pensada como um percurso reflexivo

por meio do qual você será apresentado a diversas perspectivas sobre os temas abordados. Mas isso não é tudo, pois os módulos que compõem cada Unidade foram concebidos para permitir também uma leitura independente. Entre uma e outra Unidade, como dissemos há pouco, há pontos de passagem de uma pro-blemática para outra, que assinalamos no corpo do texto. Não há necessidade de se começar a leitura por uma Unidade determinada. Claro que se pode adotar a ordem proposta aqui, começando pela Unidade que abre o livro e seguindo linear-mente até a que o fecha. Mas isso não é necessário, pois essa ordem não é a única possível e nem pretende ser “a melhor”. Cabe à orientação pedagógica – ou a você, se o estiver lendo de maneira autônoma – decidir qual sequência de estudo pode

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ser mais interessante. Este livro é como um carrossel em movimento: você esco-lhe um ponto de entrada qualquer e, em seguida, já dentro dele, vai se deslocando entre os módulos e as Unidades.

9. Este livro segue uma ordem cronológica, que se inicia pelo estudo dos filósofos da Antiguidade e termina com a abordagem de contribuições contemporâneas sobre os temas discutidos?

Não exatamente. Cada um dos percursos apresentados nas Unidades representa uma aventura através da história do pensamento filosófico, exibindo as princi-pais variações que seus temas sofreram ao longo do tempo. O estudo da filosofia, nessa medida, é o estudo da história da filosofia. Por isso, as Unidades buscam apresentar os temas sob a forma como foram abordados na Antiguidade, na Idade Média, na Idade Moderna, até nossos dias. Mas isso não é a mesma coisa que con-tar a história das opiniões dos diferentes filósofos, um depois do outro, conforme seu lugar na cronologia do pensamento. Afinal, nenhuma questão filosófica está isolada em um passado remoto, de maneira que só tivesse interesse histórico. A história da filosofia é marcada por retomadas de pontos de vista formulados previamente, o que torna as noções de passado, presente e futuro relativas. Nossa reflexão filosófica se apropria da linha da história a seu modo, ligando pontas, desfazendo nós e criando uma temporalidade própria, para a qual nenhuma con-tribuição é ultrapassada.

10. Como, exatamente, a filosofia “atualiza” o passado? Isso ocorre essencialmente porque, em filosofia, o clássico é atual. Retomar e estudar

autores e textos da Grécia antiga, do pensamento medieval ou do Renascimento tem muito a nos ensinar, a começar porque somos herdeiros, do ponto de vista de nossos valores e concepções de mundo, da tradição cultural do Ocidente, que é sedimentada na filosofia. Além disso, nada do que consideramos atual consiste em uma atualidade pura, mas sempre traz consigo uma memória, uma sedimen-tação de significados – e é muito útil escavar a profundidade dos conceitos e ideias de que nos servimos no dia a dia para fazer ver seu brilho.

11. Diante de duas visões filosóficas diferentes sobre uma mesma questão, onde encontrar a verdade? 

A filosofia é mais a reflexão qualificada sobre as questões do que as respostas indivi-duais que damos a elas. A reflexão sobre valores, princípios e condutas, sejam eles ligados à ciência, à moral, à política ou à arte, é condição prévia para tomarmos posições a respeito do mundo em que nos inserimos. A reflexão filosófica é in-dispensável a duas etapas da abordagem a qualquer questão. Em primeiro lugar, porque ela nos ajuda muito a compreender e avaliar os aspectos envolvidos no assunto em discussão. Em segundo lugar, porque ela é auxílio indispensável para elaborarmos as razões que sustentam nossos pontos de vista sobre ele.

12. Existe uma técnica para entender as diferentes formas do “filosofar”?Sim, e ela consiste, basicamente, na leitura e na interpretação de textos. Esse é um

excelente meio para compreender as maneiras sob as quais uma questão admite ser problematizada. Isso nada tem que ver com decorar o que escreveu esse ou aquele filósofo. O importante, ao lermos um trecho de determinado texto filo-sófico, é observar o pensamento em ação, não para aderir a ele irrefletidamente,

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mas para flagrar a razão em sua atividade discursiva, argumentativa, retórica. E, tendo em vista os problemas e soluções apresentados pelos filósofos, enriquecer-mos nossos próprios pontos de vista sobre as matérias discutidas.

13. Qual a utilidade prática disso? Você já viu alguém que sabe argumentar bem discutindo com alguém que vacila nas

respostas, que é muito teimoso, que não tem clareza no raciocínio, que desen-volve mal suas ideias? Pensar de forma qualificada é sempre útil. Mesmo que seja para não fazer nada de imediato. Pelo menos relativizamos nossas certezas, qua-lificamos nossas crenças, passamos a conceber o mundo de forma diferente da maneira usual. Além disso, a filosofia investiga as escolhas metodológicas, as al-ternativas éticas, os aspectos políticos, psicológicos e estéticos presentes nos ou-tros saberes, tais como a matemática, a física, a química, a literatura, a biologia, as artes, a história, a geografia e a sociologia. E essa investigação é muito útil para a compreensão das premissas e pressupostos que estão na base dessas disciplinas. Logo, o estudo da filosofia possui grande utilidade para a formação pedagógica, humanística e científica de modo geral.

14. Quer dizer que há uma relação entre a reflexão filosófica e as outras disciplinas do saber?

Sem dúvida! Para início de conversa, muitos autores da história da filosofia se consi-deravam não simplesmente filósofos, mas também (às vezes, em primeiro lugar) cientistas, pensadores políticos, teólogos ou psicólogos. Os temas que dão título às Unidades do livro comprovam essa afirmação. Reflita um pouco sobre eles. A noção de infinito, por exemplo, possui implicações teológicas, científicas e mate-máticas. A noção de cultura tem um alcance ético, estético e científico. Já a noção de certeza exige nossa abertura para as condições do conhecimento da natureza, assim como para a psicologia e a ética. Todos os temas escolhidos para encabeçar as doze Unidades dão ocasião para desenvolvimentos interdisciplinares, que são explorados ao longo dos caminhos apresentados no livro que você tem em mãos.

15. Qual a contribuição ética e política da filosofia nos dias de hoje? Com a proliferação das mídias, com a velocidade da informação – e sua volatilidade –,

hoje somos expostos a uma massa de opiniões, preconceitos, dogmas e discursos sobre os quais muitas vezes nem temos oportunidade de refletir. A ampla circula-ção de informações e ideias resulta em benefícios importantes, que são inegáveis. Por outro lado, isso requer nossa atenção, porque todo esse acúmulo pode tanto nos ajudar quanto nos desorientar. Além disso, há no mundo contemporâneo uma tendência de as práticas e as formas de pensar tornarem-se parecidas ou até mesmo uniformes: é o que se convencionou chamar de “pensamento único”. Daí a importância de uma formação que incorpore, como um de seus princípios, a capacidade individual de pensar de modo diverso do costumeiro, pensar com base em sua própria razão e a partir de sua experiência particular. O estudo da filosofia contribui para isso, a começar porque nos põe em contato com grandes pensa-dores que conceberam o mundo de modo original. Pensar com eles nos ajuda a refletir melhor sobre aquilo em que acreditamos e, consequentemente, modificar nosso modo de pensar, ampliá-lo, torná-lo mais refinado e mais rico.

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modo de usar

As partes que constituem o livroEste é um livro escrito a muitas mãos. Embora os

diferentes módulos tenham sido confiados a espe-cialistas em suas respectivas áreas (filosofia antiga, lógica etc.), a discussão entre todos os autores foi um passo importante para chegarmos ao resul-tado que você tem em mãos. Não fazia tanto sentido indicar que autores escreveram essa ou aquela parte, uma vez que todas foram profundamente redimensionadas a partir desse diálogo interno.

Cada Unidade é composta de diferentes módulos; cada módulo pode ser dividido em tópicos menores, às vezes contendo ainda subdivisões segundo ítens específicos. De forma que o conteúdo está sempre disposto dentro de uma hierarquia, o que facilita seja o controle do tempo dedicado a cada assunto, seja as possíveis leituras ortogonais, isto é, que não seguem o livro linearmente. Eis um exemplo dessa estrutura: Unidade: Lógica e argumentação; módulo: Falácia e argumento; tópico: Falácia formal.

unidade 3 lógica e argumentação

Argumentos estão por toda a parte. Quan-do queremos convencer alguém de alguma

coisa, quase sempre lançamos mão de um ar-gumento. Acontece nos negócios, nas relações familiares, no trabalho, na política, nos tribu-nais, nos livros, nos cultos religiosos  – onde houver seres humanos reunidos, certamente haverá discordância, debate, argumentação. Mas o que vem a ser um argumento? Falando de maneira geral, poderíamos dizer que um argumento é um tipo de discurso cuja finalidade é dar razões capazes de convencer alguém a respeito de algo. No entanto, apesar de ser uma boa aproximação, essa definição talvez seja excessivamente ampla. Ela coloca num mesmo grupo coisas que talvez devêssemos distinguir.

Racionalidade e emoção ................. 77

A arte de persuadir ................. 82

Premissas e conclusões .............. 86

Falácia e argumento .............. 97

Cent

ral P

ress

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ty Im

ages

O líder dos direitos civis Martin Luther King (1929-1968) discursa na Marcha sobre Washington (28/08/1963), no Lincoln Memorial.

Aristóteles

Nasceu na cidade de Estágira, na Macedônia, em

384 a.C., e morreu em Atenas em 322 a.C. Foi, du-

rante algum tempo, responsável pela educação do

jovem Alexandre, filho do rei Filipe da Macedônia,

que iniciou um domínio sobre os Gregos que seu

filho iria expandir, obtendo o mais vasto império até

então conhecido, que alcançou a Índia.

Antes disso, com cerca de dezoito anos, Aristó-

teles viajou a Atenas e logo entrou para a Academia,

escola fundada por Platão (428-348 a.C.). Nela per-

maneceu por vinte anos, deixando-a apenas após a

morte do mestre. Depois de retirar-se de Atenas por

alguns anos, retorna e funda sua própria escola, o

Liceu, no qual ensina até o fim de sua vida.

A filosofia de Aristóteles consiste numa tentati-

va de pensar questões e problemas filosóficos her-

dados do platonismo, mas por vias e por meio de

soluções que frequentemente se

distanciam desse mesmo plato-

nismo. Assim como seu mestre,

Aristóteles foi um autêntico fun-

dador de temas filosóficos, não

somente em áreas que ainda

hoje consideramos como tipica-

mente filosóficas, como metafí-

sica, lógica, ética, como também

em assuntos que posteriormente

ganharam autonomia científica,

como a física ou a biologia. Al-

guns de seu principais escritos

são: Metafísica, Ética a Nicômaco, Primeiros analíticos,

Segundos analíticos, Partes dos animais, Física.

A influência exercida por Aristóteles na Anti-

guidade tardia, na Idade Média (especialmente a

partir da recuperação de importantes livros seus,

à época desconhecidos no Ocidente, conservados

por pensadores árabes) e no início da Modernidade

foi extraordinária, provavelmente inigualada. Sua

metafísica e seu pensamento moral forneceram

elementos analíticos e conceituais para a teologia

cristã durante a Idade Média, e os principais pensa-

dores da Modernidade nele tiveram seu grande ad-

versário, no intuito de propor uma nova concepção

de ciência. Sua ética ainda é vivamente debatida por

pensadores contemporâneos.

Obras de Aristóteles e sua edição críticaPara a localização precisa de textos de Aris-

tóteles, a comunidade de pesquisadores con-

vencionou tomar como referência a edição de

August Immanuel Bekker das obras do filósofo.

O motivo é simples: o filólogo alemão Bekker

(1785-1871) foi o primeiro a realizar uma edição crítica dessas obras, a qual serviu de base para

as posteriores.

O que significa “edição crítica”? Basicamente,

que numa edição dessas são confrontadas e anota-

das todas (ou as principais) fontes documentais de

que dispomos de determinado texto. Como você

pode imaginar, pode ser bastante trabalhoso o

processo de confrontar essas fontes, para localizar

diferenças de um documento a outro (chamadas

variantes: acréscimos, supressões, discrepâncias e

variações de ortografia e gramáti-

ca etc.). Feito isso, o editor crítico

terá de decidir, com base em uma

pesquisa mais abrangente, quais

dessas variantes o texto principal

deve seguir no corpo da página;

as outras variantes são anotadas

em pé de página.

Voltando à edição de Bekker

para as obras de Aristóteles: a

numeração ali utilizada, e que

depois virou padrão nas referên-

cias às obras do filósofo, com-

põe-se de três elementos: o número da página,

a coluna (a ou b) e a linha. Assim, para o seguinte

trecho (citado no corpo desta Unidade): “[...] é proi-

bido falar de coisas que não sejam essenciais à dis-

cussão do caso em pauta. Esse é um costume muito

sadio. Não é correto atrapalhar o discernimento de

quem julga provocando raiva, inveja ou compaixão”,

a referência é 1354a 14-18.

“1354”: essa página pertence ao livro da Retóri-

ca (aliás, é a primeira, uma vez que, na edição de

Bekker, o livro vai dessa página à página 1419);

“a” indica que o texto referido está na primeira

coluna da página.

“14-18” indica as linhas da coluna em que se

encontra o trecho citado.

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Expressões lógicas no nosso cotidianoPesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Quando fazemos pesquisas na internet ou em outros bancos de dados, muitas ve-zes usamos expressões lógicas. Digamos que você queira lembrar o nome de uma canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiro”, ou conhecer grava-ções dela.

Se, num site de buscas ou banco de da-dos, você digitar

pandeiro OR(melodia)encontrará milhares de resultados que não lhe interessam. Isso porque o mo-tor de busca utilizou a disjunção, o ope-rador “ou” (⋁), e trará resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro ou melodia.

Você pode direcionar melhor sua pes-quisa, por exemplo digitando no campo de busca:

pandeiro AND(melodia)ou

pandeiro +melodiaO que significa essa expressão? Que

estamos interessados em todos resulta-dos que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. Não queremos registros que tragam apenas um deles, só “pandeiro” sem “melodia”, nem apenas “melodia” sem “pandeiro”.

Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não está mesmo inte-ressado no grande artista paraibano Jackson do Pandeiro (nome artístico de José Gomes Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de res-tringir ainda mais os resultados de sua bus-ca, por meio da expressão:

pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson)ou pandeiro +melodia -Jackson• No exemplo acima, que operadores

lógicos foram utilizados? Tente “traduzi-lo” para a linguagem lógica formal, utilizando os operadores e símbolos explicados no box sobre conectivos lógicos. (Um aviso: motores de busca da internet não costu-mam reconhecer esses símbolos; o objetivo é somente compreender quais são esses conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prática.)

• Em seguida, construa outras expressões de busca, mais complexas. Por exemplo: você está interessado em resultados que tenham a ver com “mangueira”, que podem ser ou não referentes à escola de samba ca-rioca, mas que não tenham a ver diretamen-te com a árvore frutífera do gênero Mangife-ra. Como deveríamos formular a expressão de busca? Há mais de um modo de fazê-lo? Experimente formular, por escrito, duas ou-tras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

Falácia e argumento

De acordo com a noção mais geral de “argumento”, toda pessoa que argu-menta está sempre tentando persuadir um determinado “auditório”. Esse audi-tório pode ter dimensões muito diferen-tes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

apenas uma pessoa – tome como exemplo um vendedor que tenta convencer você a comprar um determinado produto numa loja. O auditório de quem argumenta pode também ser composto por um pe-queno grupo de pessoas – é o que acon-tece quando o professor de matemática

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cionados na segunda premissa (o que não é de modo algum necessário).

Mesmo assim, um crítico que não ti-vesse ido à estreia poderia ter ido ao en-saio geral da peça, ou então a uma outra apresentação qualquer, no segundo ou no terceiro dia. Poderia também ter forma-do sua opinião conversando com colegas seus, nos quais confia, que foram à peça e estavam em condições de lhe dar uma des-crição detalhada do desempenho de cada um dos atores.

Para que você perceba melhor a situa-ção envolvida, compare o argumento que acabamos de analisar com este outro: “Somente os que foram à estreia da com-panhia de teatro puderam formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desempenho dos atores. Alguns críticos não foram à estreia. A opinião de alguns críticos, portanto, não está bem funda-mentada.” Repare que a única diferença em relação ao argumento anterior é o uso da palavra “somente” ao invés da palavra “todos”. A diferença pode parecer peque-na, mas, neste caso, é decisiva.

Suponha que a primeira premissa seja verdadeira: que apenas (apenas, veja bem!) as pessoas que foram à estreia es-tavam em condições de formar uma opi-nião fundamentada sobre o desempenho dos atores. Ora, se isso for verdade, e se também for verdade que alguns críticos não foram à estreia, a conclusão inevitá-vel é que esses críticos não estavam em condições de dar opiniões fundamenta-das a respeito do desempenho dos atores. Aqui, não há escapatória. O argumento é bom. Se suas premissas forem verdadei-ras, a conclusão também será verdadeira.

Existe, portanto, uma certa relação entre as premissas e a conclusão, no caso do pri-meiro argumento, que não existe no caso do segundo. No segundo caso, as premissas dão apoio à conclusão, podem ser citadas como evidências em favor dela, como razões para aceitá-la. No primeiro caso, não. As premissas não fornecem apoio para acei-

tarmos a conclusão. Se a aceitamos, é por outras razões, que não aquelas apresen-tadas nas premissas. Como você reparou, porém, os dois argumentos são muito pa-recidos. Eles só diferem no detalhe – neste caso, pela substituição da palavra “todos” pela palavra “somente”. Isso faz com que o primeiro argumento nos engane. Ele pare-ce ser bom, embora na verdade não o seja. Argumentos assim, que parecem ser bons, mas não são, nós chamaremos de falácias.

É fundamental que você aprenda a re-conhecer uma falácia. É por meio das falá-cias que somos enganados – às vezes até por nós mesmos. Em todos os contextos em que são utilizados argumentos, quem argumenta pode muito bem lançar mão de falácias, fazendo-nos tirar conclusões equivocadas que poderíamos perfeita-mente evitar. É por isso que o estudo das falácias é tão importante. Conhecendo-as, seremos capazes de identificar um mau argumento e contestá-lo (se ele nos for apresentado por outra pessoa), ou sim-plesmente não usá-lo (caso nós mesmos o estejamos querendo apresentar).

Falácia formalA falácia encontrada no argumento que

apresentamos acima envolve uma forma argumentativa que é falaciosa. Isso quer dizer que ela pertence a um grupo de argu-mentos caracterizado por uma determina-da estrutura. Essa estrutura pode ser me-lhor observada se empregarmos variáveis. Considere o seguinte esquema:

Todo(a) A é B.

Algum(a) C não é A.

Portanto, algum(a) C não é B.

Neste esquema, a letra “A” está no lugar da expressão “pessoa que foi à estreia da companhia de teatro”; a letra B, no lugar de “pessoa que podia formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desem-penho dos atores”; e a letra “C”, no lugar de “crítico”. Nenhum argumento que tenha

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oBoxes sobre os autores

Esses boxes trazem informações sobre a vida e a obra dos autores discutidos nas Unidades. Auxiliam a compreensão do contexto cultural, social e político no qual eles se inscrevem. Os boxes sobre autores também assinalam influências e afinidades de determinado filósofo e eventuais repercussões de sua filoso-fia nas obras de outros pensadores. Há também a preocupação de informar as principais obras traduzidas para a lingua portu-guesa em edições de qualidade e, sempre que possível, recentes.

Note que, como alguns autores são examinados em mais de uma Unidade, você deve localizar em qual delas se encontra o boxe sobre o autor em pauta. Digamos que você esteja lendo a Unidade Razão e paixão, que remete a Aristóteles[+]. O sinal [+] ao lado do nome indica que existe, no nosso livro, um boxe sobre esse autor: basta então buscá-lo na lista de boxes biográ-ficos, ao final do volume, para localizá-lo.

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Citações e traduçõesParte essencial dos percursos reflexivos propostos em cada

módulo consiste na análise e discussão de trechos de textos filosófi-cos que têm o que dizer sobre os temas abordados. É útil você desde já familiarizar-se com algumas convenções. Ei-las abaixo:

[1] “A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não, podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andando e cismando... Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posi-ção em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.” ([2] M. de Assis, [3] Obra completa, [4] org. A. Coutinho, [5] vol. 1. [6] Rio de Janeiro: [7] Nova Aguilar, [8] 1994, [9] Cap. CXXVI, [10] pp. 928-929)

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“Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi desco-berto em nosso século, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França Antártida.” (Montaigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins Fontes, p. 303)

A principal conclusão que Montaige extrai do relato do viajante acerca dos cos-tumes e hábitos dos nativos brasileiros pode ser considerada como uma crítica severa à atitude que hoje chamaríamos de “etnocêntrica”, isto é, a afirmação de uma cultura como superior às demais (o termo “etnocentrismo” não foi utilizado por Montaigne, mas por antropólogos do século XX). Veja só:

“Mas, para retomar meu assun-to, acho que não há nessa nação nada

de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e usos do país em que estamos. Nele sem-pre está a religião perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e cabal de todas as coisas. Eles são selvagens, assim como chamamos de selvagens os frutos que a natureza, por si mesma e por sua marcha habitual, produziu; sen-do que, em verdade, antes deveríamos chamar de selvagens aqueles [frutos] que com nossa arte alteramos e desvia-mos da ordem comum. Naqueles outros estão vivas e vigorosas as verdadeiras e mais úteis e naturais virtudes e proprie-dades, as quais abastardamos nestes, e simplesmente as adaptamos ao prazer

Victor Meirelles (1832-1903), A primeira missa (óleo sb/ tela, 1861). A missa, que simbo-

liza o encontro desigual de duas civilizações, foi celebrada pelo padre Henrique de Coim-

bra em 26 de abril de 1500.

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Expressões lógicas no nosso cotidianoPesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Quando fazemos pesquisas na internet ou em outros bancos de dados, muitas ve-zes usamos expressões lógicas. Digamos que você queira lembrar o nome de uma canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiro”, ou conhecer grava-ções dela.

Se, num site de buscas ou banco de da-dos, você digitar

pandeiro OR(melodia)encontrará milhares de resultados que não lhe interessam. Isso porque o mo-tor de busca utilizou a disjunção, o ope-rador “ou” (⋁), e trará resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro ou melodia.

Você pode direcionar melhor sua pes-quisa, por exemplo digitando no campo de busca:

pandeiro AND(melodia)ou

pandeiro +melodiaO que significa essa expressão? Que

estamos interessados em todos resulta-dos que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. Não queremos registros que tragam apenas um deles, só “pandeiro” sem “melodia”, nem apenas “melodia” sem “pandeiro”.

Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não está mesmo inte-ressado no grande artista paraibano Jackson do Pandeiro (nome artístico de José Gomes Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de res-tringir ainda mais os resultados de sua bus-ca, por meio da expressão:

pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson)ou pandeiro +melodia -Jackson• No exemplo acima, que operadores

lógicos foram utilizados? Tente “traduzi-lo” para a linguagem lógica formal, utilizando os operadores e símbolos explicados no box sobre conectivos lógicos. (Um aviso: motores de busca da internet não costu-mam reconhecer esses símbolos; o objetivo é somente compreender quais são esses conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prática.)

• Em seguida, construa outras expressões de busca, mais complexas. Por exemplo: você está interessado em resultados que tenham a ver com “mangueira”, que podem ser ou não referentes à escola de samba ca-rioca, mas que não tenham a ver diretamen-te com a árvore frutífera do gênero Mangife-ra. Como deveríamos formular a expressão de busca? Há mais de um modo de fazê-lo? Experimente formular, por escrito, duas ou-tras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

Falácia e argumento

De acordo com a noção mais geral de “argumento”, toda pessoa que argu-menta está sempre tentando persuadir um determinado “auditório”. Esse audi-tório pode ter dimensões muito diferen-tes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

apenas uma pessoa – tome como exemplo um vendedor que tenta convencer você a comprar um determinado produto numa loja. O auditório de quem argumenta pode também ser composto por um pe-queno grupo de pessoas – é o que acon-tece quando o professor de matemática

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Situações de aprendizagemAs situações de aprendizagem possuem duas funções. Elas são o

momento para elaboração de uma reflexão mais detida de sua parte sobre os conteúdos abordados nas Unidades e também constituem a ocasião para um processo avaliativo. A especificiade da filosofia admi-te e possibilita formas de avaliação diferentes do esquema tradicional de perguntas/respostas. Por isso, as situações de aprendizagem pro-põem atividades tais como: debate dirigido sobre os temas apresen-tados, seminários e, especialmente, desenvolvimentos dissertativos individuais, nos quais você é convidado a formular, em breves reda-ções, os pontos do debate e o seu posicionamento diante deles.

[1] Trecho citado da obra. Sempre entre aspas.

[2] Autor da obra[3] Título da obra[4] Organizador da obra (nem sempre

há um organizador).[5] Em que volume da obra se encontra

o trecho citado. Essa informação só é necessária quando a obra possui mais de um volume.

[6] Cidade em que se encontra a sede da editora que publicou a obra.

[7] Nome da editora.[8] Ano de edição da obra.[9] Capítulo em que se situa o trecho

citado. Essa informação pode ser muito útil, quando há edições diver-sas da mesma obra, com paginações diferentes. Mas ela não é obrigatória em citações.

[10] Número da página ou das páginas em que o trecho citado se encontra.

Há um elemento suplementar nas indicações de um trecho citado. Trata-se do nome do tradutor da obra. No caso acima, não há tradutor algum, já que Macha-do de Assis escreveu em nossa língua. Mas na maior parte das citações a obra citada é uma tradução. E, embora nem sempre isso ocorra, é muito importante indicar ao leitor o nome do tradutor ou tradutora. Afinal, trata-se de um trabalho importantíssimo que tem de ser reconhecido.

Veja um exemplo, tirado da Unidade Natureza e cultura, de um trecho de obra traduzida:

“Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso século, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França Antártida.” (Montaigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 303)

Esforçamo-nos para trazer sempre traduções de qualidade reconhecida. Em alguns casos, nós mesmos (os autores, o organizador e o editor) traduzimos os

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textos. Na quase totalidade dos casos, essa tradução foi feita a partir da língua em que os textos foram originalmente escritos (grego, latim, alemão, francês etc.). Isso não significa que, toda vez que você encontrar trechos com a indicação: “Tradução nossa”, não haja uma ou-tra boa tradução publicada em nosso idioma. Quando não se tratava de obras inéditas em português, motivos diferentes levaram a essa decisão. Em primeiro lugar, porque tivemos o privilégio de contar, em nossa equipe, com professores que são também reconhecidos tra-dutores profissionais. Em segundo lugar, por-que diversas boas traduções foram editadas há muito tempo, e assim o leitor seria remetido a publicações que hoje, na prática, são bem difíceis de encontrar. Por fim, em alguns ca-sos, a nossa tradução possibilitou aproximar o texto filosófico de leitores não especializados, tornando-o, na medida do pos-sível, mais compreensível – mas sempre com o cuidado de não dis-tanciar a tradução do texto origi-nal. É o que poderíamos chamar de tradução dirigida (neste caso, dirigida ao público não especia-lizado, em particular no contex-to do Ensino Médio). Assim, se optamos por deixar o texto mais fluido e acessível, isto não envol-veu perda de fidelidade da tradu-ção com relação ao original.

Imagine agora que você está redigindo um trabalho disser-tativo e deve citar duas vezes a mesma obra – por exemplo, essa antes men-cionada, os Ensaios de Michel de Montaig-ne. A primeira citação de um determinado trecho é tal e qual a do exemplo que demos. Mas a segunda faz referência a uma passa-gem, digamos, da página 305. Nesse caso, para não ter de repetir todas as informações (autor, nome da obra, parte da obra, capítu-lo, tradução, cidade da editora, nome da edi-tora, ano de publicação e paginação), basta você escrever:

Montaigne, Ensaios, op. cit. [11], p. 305.

Por vezes, nos trechos citados, você irá de-parar-se com colchetes. Veja esse caso:

“[...] posso agora dar um grande número de provas, cada uma das quais é uma prova perfeitamente rigorosa [12] [...] Posso provar agora, por exemplo, que existem duas mãos humanas. Como? Levantando minhas duas mãos e dizendo, enquanto faço determinado gesto com a mão direita, ‘Aqui está uma mão’, e acrescentando, enquanto faço determinado gesto com a esquerda, ‘e aqui está outra’. E se, ao fazê-lo, eu provei ipso facto [13] [i.e., pela própria evidência do fato] a existência de coisas exteriores, vocês verão que posso fazê--lo, então, de muitas outras maneiras: não há necessidade de multiplicar os exemplos.” (G. E. Moore, “Prova de um mundo exterior”. Tradução nossa. Edição de referência: “Proof

of an external world”, in: Philo-sophical papers. Allen & Unwin, 1963, 2ª ed., p. 146)

Os colchetes ou parênteses possuem duas funções. A pri-meira é a de indicar que o trecho não é uma citação integral da passagem da obra citada. Logo, eles assinalam que ali foram omitidas palavras ou orações do texto original. Essas omissões justificam-se na medida em que pode ocorrer que, para os propósitos da nossa argumen-tação, não seja necessário citar integralmente o trecho original.

Trata-se de um princípio de economia, legíti-mo e muito utilizado mundo afora – basta que cuidemos de indicá-lo, toda vez que fizermos recurso a ele.

A segunda função dos colchetes ou parênte-ses é a de explicar algo que possa soar estranho ou difícil ao leitor que não está com a obra cita-da em mãos. Por vezes, o autor citado já intro-duziu, numa passagem antecedente ao trecho citado, uma ideia ou explicação do que aparece no trecho citado. Os colchetes explicativos ser-vem para auxiliar a compreensão adequada dos conteúdos do trecho citado.

[11] Op. cit. é a abreviatura de opus citatum (“obra cita-da”). Indica que a presente citação pertence à mesma edição citada anteriormen-te, o que mudou foi apenas a página.

[12] Colchetes de omissão. Com eles, indica-se que há pala-vras ou mesmo sentenças no texto original que não foram transcritas na citação.

[13] Colchetes explicativos. Aqui, as palavras enunciadas não são do autor citado, G. E. Moore, mas nossas, e visam esclarecer melhor o argu-mento em questão.

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Vinicius de Figueiredo formou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu seu mestrado (1993) e doutorado (1999) sobre Kant. Foi bolsis-ta do programa de formação de quadros e assistente de pesquisa do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) en-tre 1990 e 1993. Leciona no Departamen-to de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1993. Foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) entre 2011 e 2012. É autor de Quatro figuras da aparência (Londrina: Lido, 1995) e Kant & Crítica da razão pura (Rio de Janeiro: Zahar, 2005) e organizador da coleção Filósofos na sala de aula (São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006-2009, 3 vols.).

os autoresJoão Vergílio Gallerani Cuter formou-se em filoso-

fia pela Universidade de São Paulo (USP). Defendeu uma tese de doutoramento (1993) a respeito das relações en-tre a teoria dos tipos de Russell e a teoria da figuração do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein. Desde 1995, é professor do Departamento de Filosofia da USP. Publicou diversos artigos em revistas nacionais e inter-nacionais e é autor do livro Misticismo e lógica (São Paulo: Annablume, 2013). Atualmente, desenvolve pesquisa a respeito dos manuscritos produzidos por Wittgenstein no período que vai de 1929 até 1933 – o assim chamado “período intermediário” de sua filosofia.

Luiz Repa é professor de teoria das ciências humanas no Departamento de Filosofia da Uni-versidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasilei-ro de Análise e Planejamento (NDD/CEBRAP). Possui graduação (1995), mestrado (2000) e doutorado (2004) em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Fez estudo complementar na Goethe-Universität de Frankfurt am Main (2001). Publicou o livro A transformação da filoso-fia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica (São Paulo: Esfera Pública, 2008), e coorganizou o livro Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade (São Paulo: Esfera Pública, 2008), e Habermas e a reconstrução: sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana (Campinas: Papirus, 2012).

Marco Antonio Valentim formou-se em filoso-fia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2000. Cursou mestrado em filosofia, com dissertação sobre Platão (2002), e doutorado em filosofia, com tese sobre Heidegger e Descartes (2007), ambos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Des-de 2006, leciona no Departamento de Filosofia da UFPR. É autor de diversos artigos de história da filo-sofia publicados em livros e revistas acadêmicas.

Paulo Vieira Neto formou-se em fi-losofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu seu mestrado sobre Kant (1994) e doutorado sobre Espinosa (2003). Leciona no Departamento de Fi-losofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1994.

Roberto Bolzani Filho é bacharel e licen-ciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu mestrado sobre o ceticismo pirrônico grego  (1992) e doutorado a respeito da filosofia cética na Academia pla-tônica (2003). Desde 1988, leciona história da filosofia antiga na mesma instituição, desen-volvendo pesquisas nessa área. É autor de Aca-dêmicos versus pirrônicos (São Paulo: Alameda, 2013) e de artigos publicados em revistas es-pecializadas.

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In memoriam

Tom Figueiredo (1938-2013)18

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Unidades

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unidade 1 natureza e cultura

V amos propor a você um simples experimen-to: lembre-se do que você fez no dia de hoje,

desde a hora em que acordou. Inevitavelmente, você utilizou uma série de objetos criados pelo ser humano, que não existiam na natureza (sua cama; sua escova de dentes; o livro que você tem em mãos). Essa é uma maneira fácil de constatar-mos que nossa vida é permeada de cultura. Mas a cultura está muito além dos objetos que inventa – está também na base da própria maneira como organizamos nosso pensamento. Assim, ao viver em sociedade, nos distanciamos do mundo natu-ral: somos algo mais do que meros “seres natu-rais”. Por outro lado, o ser humano, o homo sapiens sapiens, não é uma espécie que pertence ao reino animal? Até que ponto nossas diferentes culturas são capazes de nos afastar dessa realidade?

O limite entre dois universos................... 21

O naufrágio de Robinson Crusoé ...... 24

A diversidade das culturas ..................... 28

A ideia de “natureza humana” ................... 31

Montaigne e os canibais ............. 33

“Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas” ......... 39

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Cena do filme O homem urso, de Werner Herzog

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Há um filme documentário de Werner Herzog, O homem urso (EUA: 2005), que conta uma história terrível. É a história verídica de Timothy Treadwell, ecologista norte-americano que decidiu ir viver en-tre os ursos do Alasca. Por treze verões se-guidos, Timothy tomou a direção do nor-te em um pequeno hidroavião, cujo piloto retornava seis meses após tê-lo deixado na região que ele escolhera para viver isolado. Timothy registrava com a filmadora sua aproximação dos ursos selvagens. Preten-dia ser reconhecido por eles como mem-bro do grupo. O material registrado por Thimothy foi incorporado por Herzog a seu filme, que intercala às cenas no Alasca depoimentos de seus parentes e amigos. Em sua última viagem, Thimothy levou consigo sua namorada, Amie Huguenard.

Quando, em outubro de 2003, aterriza no local combinado para trazê-los de vol-ta, o piloto encontra apenas seus res-tos mortais na barraca, inteiramente destruída. Eles foram atacados e devora-dos por um urso. Não se sabe se o urso agressor pertencia ou não ao grupo que

Thimothy acompanhava ano após ano. Outro filme, de Sean Penn, também

reconstitui uma história verídica que termina tragicamente no Alasca. Na natureza selvagem (EUA: 2007) conta a vida de Christopher McCandless, um jo-vem norte-americano nascido em uma família rica, que decide alterar os planos traçados para seu futuro. Abandona os estudos, cruza o país e, depois de dois anos de estrada, decide embrenhar-se no Alasca, em uma região inóspita e des-povoada. Vive por meses em um ônibus abandonado na floresta, separado de tudo e de todos pelo inverno rigoroso, até que, por causa da ingestão de se-mentes tóxicas de uma planta silvestre, adoece e, sem reunir forças para voltar à civilização, acaba morrendo.

Além do Alasca, essas duas histórias têm em comum o fato de que seus protagonistas quiseram cruzar uma fronteira. Ou melhor, aproximaram-se muito dela, experimenta-ram de forma radical e prolongada o limite que separa a natureza da cultura. A expe-riência infelizmente custou-lhes a vida.

O limite entre dois universos

Amyr Klink (1955 - ) tornou-se mundialmente conhecido quando atravessou o Oceano

Atlântico em um barco a remo (1984). Dali em diante, fez várias navegações pelo mundo.

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Você poderá dizer: mas há tantas histó-rias assim... Os romances de Jack London (1876-1816), que narram as desventu-ras dos baleeiros singrando os mares por meses a fio; os relatos de Saint-Exupéry (1900-1944), que foi aviador no início do século XX e que sobrevoava os Andes sem instrumentos, em meio a tempestades... E nem é preciso restringir-se ao passa-do mais remoto. Mais recentemente, em 1984, Amyr Klink, velejador brasileiro, cruzou o Atlântico Sul a remo, em um bar-co de oito metros de comprimento, numa aventura fabulosa que imortalizou em seu livro Cem dias entre céu e mar. Como se isso não bastasse, construiu outro barco (um pouco maior, desta vez) e partiu em

Todo mundo sabe que Saint-Exupéry escreveu O pequeno príncipe (1943). O que nem todos sabem é que ele também publicou outros livros, bem menos conheci-dos, porém mais interessantes que a obra que o imortali-zou. Aí vai a lista deles:

L’aviateur (O aviador), 1926Courrier sud (Correio do Sul), 1929Vol de nuit (Voo noturno), 1931Terre des hommes (Terra dos homens), 1939Pilote de guerre (Piloto de guerra), 1942Lettre à un otage (Carta a um refém), 1943/1944

A obra de Jack London já é mais extensa. Listamos abaixo apenas alguns títulos, os mais conhecidos, dis-poníveis em tradução para o português:

A estrada (Boitempo, 2008)Antes de Adão (L&PM, 1999)A praga escarlate (Conrad, 2003)Caninos brancos (L&PM, 2004)Chamado selvagem (Hemus, 2008)O povo do abismo (Ed. Perseu Abramo, 2004)Tacão de ferro (Hemus, 2008)De Amyr Klink, destacamos três livros: Cem dias entre céu e mar (Cia. das Letras, 2005)Linha d’água (Cia. das Letras, 2006)Mar sem fim (Cia. das Letras, 2000)

LITERATURA DE AVENTURA: ALGUMAS DICAS

direção à Antártida. De lá, cruzou o globo terrestre, até chegar ao extremo norte, no qual permaneceu por dois meses, inteira-mente sozinho, com o barco cercado de gelo e neve. No degelo, voltou ao Brasil.

Poderíamos buscar outros exemplos para engrossar esta lista de feitos extraordi-nários. Só que nosso intuito, aqui, é outro. Queremos instituir diferenças. Compare os casos mencionados acima, veja o que eles têm em comum uns com os outros, e no que diferem. Jack London e Saint-Exupéry, cada qual a seu modo, nos contam aventuras de homens que participaram de dois grandes empreendimentos econômicos: a pesca baleeira do fim do século XIX e o início da aviação na primeira metade do século XX. Claro que isso não diminui em nada as faça-nhas que retratam em seus textos. São acon-tecimentos extraordinários, sem dúvida.

A diferença em relação aos dois ho-mens que perderam a vida no Alasca está em que os heróis de Jack London e Saint--Exupéry integram empreendimentos que afirmam o poder dos seres humanos sobre a natureza. Esse também é o caso dos feitos de Amyr Klink. Basta abrir um de seus livros para constatar seu minucio-so cuidado em antecipar os imprevistos, planejar alternativas, programar suas travessias, de modo a voltar vivo para po-der contar sua história e lembrá-la entre nós. Amyr Klink tem algo do Ulisses da Odisseia, de Homero, que se amarrou ao mastro de seu navio para resistir ao canto enfeitiçado das sereias e, assim, retornar a Ítaca, sua cidade natal.

Amyr Klink, ao modo de Saint-Exu-péry, Jack London e tantos outros, pro-va que a espécie humana é capaz de um extraordinário vigor diante das forças da natureza. Já Timothy Treadwell e Christopher McCandless, com cujos exemplos começamos este módulo, pa-recem ter atendido outra vocação. Não que quisessem perder suas vidas; mas talvez a tenham perdido por terem pou-co a pouco esticado a corda até romper o

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Leia o texto a seguir, do livro em que Amyr

Klink relata sua travessia do Atlântico Sul em

um barco a remo. Note como ele dispõe de

um objetivo muito claro: atravessar o oceano

e retornar à civilização:

“Aos poucos percebi que entrava em equi-

líbrio com o mundo à minha volta. Um cenário

eterno e dinâmico a um só tempo, exatamente o

mesmo que viram os navegadores do passado.

Talvez com igual intensidade e emoção, medo ou

alegria. E a noção de tempo tão exata a ponto de

conhecer os décimos de segundo de cada hora,

ou tão vaga no espaço que séculos nada signifi-

cariam em transformações.

Não me encontrava em uma situação indefi-

nida ou permanente, e talvez por isso me sentisse

bem. Tinha um objetivo na mente, e um só: che-

gar ao Brasil. E, ainda que fosse distante ou extre-

mamente difícil, sabia que poderia alcançá-lo.

Situação privilegiada, pensei. Durante tanto

tempo antes de partir, tudo o que sonhei, tudo

em que pensei foi estar remando no meio do

Atlântico. E era, naquele momento, precisamente

o que estava fazendo. Não podia reclamar.

Estava realizando um velho e encardido sonho.

Só restava ter paciência. Por outro lado, tinha

consciência de que vivia momentos importan-

tes, pois poucas vezes na vida tem-se um único

objetivo e a firme certeza de que, a cada dia que

passa, a cada hora, a cada remada, se está mais

próximo dele.”

(Extraído de Amyr Klink, Cem dias entre o céu

e o mar. São Paulo: Cia. das Letras [Cia. de Bolso],

2012, Cap. 9, p. 76)

Análise de texto ou filme e apresentação de seminário

• Assista em equipe ao filme Na natu-reza selvagem, de Sean Penn, que narra a história de Christopher McCandless, ou leia o livro em que o filme foi ba-seado, es crito por John Krakauer, Na natureza sel vagem (Tradução: Pedro M. Soares. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1998). Em seguida, busque iden-tificar com seus colegas de equipe os momentos da história que podem ser reportados ao problema discutido aqui – a saber, o da relação de Christopher McCandless com sua cultura e seu meio, sua rebeldia, seu desejo de abandonar

o modo de vida de sua família. Expo-nham, então, na forma de seminário para os demais colegas, o que significou para Christopher McCandless a solidão que ele encontrou no Alasca.

A solidão do Alasca

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Para pensarmos sobre o que significa, para o homem, sair da sociedade e viver isolado, é muito oportuno mencionar um livro que marcou época e até hoje é lido em todo mundo. Daniel Defoe publicou A vida e as estranhas e surpreendentes aven-turas de Robinson Crusoé, marinheiro, de York em 1719. O que nem todos sabem é que, para contar as aventuras de Crusoé, Defoe se inspirou em uma história real, a de um marinheiro escocês, Alexander Sel-kirk, que, após desentender-se com seu capitão, desembarcou por livre escolha em uma ilha do arquipélago Juan Fernan-dez, a 600 quilômetros da costa chilena, onde viveu entre 1704 e 1709.

Há um aspecto importante na história de Selkirk que devemos reter, em vista da nossa classificação entre os casos de afir-mação do homem sobre a natureza e os daqueles que buscam isolar-se do restante dos homens por sua livre escolha, como se procurassem dissolver a fronteira entre a natureza e a humanidade. No último mo-mento, Selkirk arrependeu-se e acenou para voltar ao navio, mas o capitão se re-cusou a embarcá-lo. O navegador que o en-controu e o levou de volta ao Reino Unido em 1709 relata o que lhe contou o próprio Selkirk: nos primeiros meses, ele “quase sucumbiu à melancolia e ao terror de ser abandonado em um sítio tão desolado”.

Robinson Crusoé, a criação literária de Daniel Defoe inspirada em Selkirk, é vítima do mesmo terror, tão logo se dá conta de que é o único sobrevivente do naufrágio e de que está em uma ilha deserta. Mas em

seguida se acalma e procura reintroduzir a ordem de sua vida antiga na situação em que agora se encontra, contra sua vontade. A primeira coisa que faz, nesse sentido, é ta-lhar em uma árvore os dias que vão se suce-dendo uns aos outros, de modo a fixar, por meio do calendário, uma ordem humana na temporalidade indiferente da natureza.

Uma filósofa francesa comenta bem esse ponto: “Substituindo a preguiço-sa fluidez dos dias e a indiferenciação do passado pela inscrição regular do tempo,

liame que os ligava à cultura, à humani-dade. Ambos, cada um a seu modo, não pretendiam afirmar-se sobre a natureza, mas diluir-se nela, como se buscassem ex-tinguir a própria oposição entre o mundo natural e a cultura. A pergunta que suge-rem os dois filmes, o de Werner Herzog e

o de Sean Penn, é a mesma: será possível atravessar essa fronteira, a não ser sob o custo da própria vida? No seu último mo-mento, Christopher McCandless parece ter-se dado conta disso, pois em seu diá-rio anotou o seguinte: “a vida não é para ser sozinha”.

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Gravura do frontispício da 1ª edição de A

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aventuras de Robinson Crusoé.

O naufrágio de Robinson Crusoé

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Robinson restitui o mundo à humanidade” (Bernardette Delamarre, Autrui. Tradução nossa. Paris: Notions, 2005, p. 5).

De fato, o meio encontrado por Crusoé para não sucumbir à sua desventura é po-voar sua solidão com traços de humanida-de, o que ele faz, primeiro, fabricando um calendário e, depois, mediante o trabalho. Você poderá se indagar qual, afinal de con-tas, a importância de construir uma casa, deco rá-la com algum mobiliário; qual é a utilidade de cultivar uma horta, fazer um cercado, organizar um rebanho, acumu-lar provisões, quando, no final das con-tas, Crusoé bem poderia passar sem isso, sobre-vivendo modestamente das dádivas asseguradas pelo clima e pela vegeta-ção da ilha em que se viu lançado. Mas o ponto é exatamente este: a vida, ao menos tal como ele a entendia, não se resume à simples sobrevivência. O cultivo da terra já é ir além da mera sobrevivên-cia, é ultrapas sá-la pela cultura.

Mas essas duas coisas – um calendário, o trabalho – serão sufi-cientes para habitarmos o mundo da cultu-ra? Crusoé fez seu calendário, ordenou um espaço humano e começou a chamar a ilha de “sua ilha”. Contudo, passaram-se mais de duas décadas até que ele encontrasse outro rosto humano... Assim prossegue o romance: um nativo de uma ilha vizinha, fugindo de uma tribo inimiga da sua, é sal-vo por Crusoé de seus perseguidores. Ele o acolhe, o batiza de “Sexta-Feira”, o dia da semana em que ocorre o encontro. O silên-cio solitário em que vivera até ali é final-mente rompido:

“[...] ele me disse algumas palavras, as quais, porém, eu não pude entender; ainda assim, foram-me muito agra-

dáveis, sendo o primeiro som de uma voz humana que eu escutara por mais de vinte e cinco anos.” (Daniel Defoe, A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé. Tradução nossa. Edição de referência: D. Defoe, The life and strange surprizing adventu-res of Robinson Crusoe. Londres: Taylor, 1719 [1ª parte publicada], p. 241)

Esse acontecimento é decisivo. Perce be-se, na narrativa de Defoe, como o retorno de Crusoé à humanidade, de que falava Berna-dette Delamarre ao assinalar a importância

do calendário, comple-ta-se apenas no instan-te em que ele passa a se comunicar novamente com outro ser humano.

De início, Sexta-Fei-ra e Crusoé mal conse-guem se entender: co-municam-se por sinais e por interjeições. Não importa. Pela reação de Crusoé, percebemos que a humanidade, pre-parada pelo calendário e pelo trabalho, realiza-se para valer apenas com o

exercício da linguagem, no horizonte da co-municação entre os humanos.

Não que, de sua chegada à ilha até este momento, Crusoé tivesse desaprendido a falar, nem que estivesse privado de pen-samentos, que correspondem a signos linguísticos de sua língua materna, o inglês. Antes de encontrar Sexta-Feira, Crusoé po-dia repetir a si mesmo, por exemplo, que estava em “sua ilha”.

Mas somente após encontrar Sex ta-Fei ra e lhe ensinar seu idioma, o enun-ciado de que aquela era “sua ilha” deixou de ser um pensamento privado. E, ao se tornar intersubjetivo (isto é, algo que se passa entre dois ou mais sujeitos), esse enunciado se articula com uma forma de vida determinada, com uma maneira

Somente após Crusoé encontrar Sexta-Feira

e lhe ensinar seu idioma, o enunciado

de que aquela era “sua ilha” deixou de ser um pensamento

privado.

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particular da existência dos homens. No caso de nosso romance, essa existência é marcada pelo afeto que os une em sua desventura, e também pela hierarquia entre Crusoé e Sexta-Feira, o nativo que admite sem questionamentos que a ilha é de seu “patrão”.

O romance de Robinson Crusoé ilustra bem o fato de que, para haver cultura, não é suficiente a existência solitária de um ho-mem. Partindo do nosso romance em dire-ção a um enunciado mais geral, podemos afirmar que apenas há cultura ali onde há trabalho e comunicação entre pessoas – ou seja, ali onde a natureza é apropriada e modificada tendo em vista fins humanos.

E isso nos leva a outra consequência: se é mesmo assim, então também toda comunidade humana é produtora de cul-tura, pois o que torna um conjunto de homens uma comunidade, por mais sim-

ples que seja, é a troca simbólica que os indivíduos pertencentes a ela estabele-cem entre si, os valores que partilham, a maneira como interagem com o meio etc.

Para Robinson Crusoé, sua vida na ilha ganha definitivamente a forma da cultura apenas quando ele, ao encontrar Sexta-Feira, reproduz os valores de seu modo de vida anterior, na Inglaterra.

Observemos, porém, que Sexta-Feira dispunha de uma cultura precedente, que compartilhava com seu povo. Ao se depa-rar com Crusoé, ele abandona docilmente seu modo de vida anterior e se submete aos ritos da cultura de que seu “senhor” é portador. Sexta-Feira, por assim dizer, tro-ca um modo de afirmação sobre a natureza por outro, que corresponde ao de Crusoé.

Vamos agora extrair conclusões do per-curso feito até aqui. Vimos, primeiro, que a cultura representa uma afirmação dos seres humanos sobre a natureza. Onde há cultura, a natureza é modificada e apro-priada pelos indivíduos conforme fins de ordem simbólica, não apenas biológica.

Mas o fato de que haja cultura não sig-nifica que a natureza desapareça. Os seres humanos, embora sejam vetores da cultu-ra, nem por isso deixam de pertencer ao reino natural. De modo que toda cultura, como afirmação humana sobre a natureza, também corresponde, em certa medida, a uma afirmação dos seres humanos sobre o que neles mesmos é natureza. Assim, a cultura, além de modificar o meio natural em que se encontram os seres humanos, também corresponde a uma intervenção simbólica permanente dos seres humanos sobre si mesmos.

Muitas questões atuais se agrupam sob essa perspectiva. Por exemplo, a ecologia dá origem a um discurso muito presente nos dias de hoje e procura nos advertir sobre o fato de que nossa forma de civilização pode ameaçar o equilíbrio biológico do planeta. Muitos ecologistas afirmam que corremos sérios riscos de produzir catástrofes que poderiam ser

De acordo com o mito grego, ao roubar o

fogo dos deuses e presenteá-lo aos humanos,

o titã Prometeu tornou possível a passagem

da natureza à cultura.

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evitadas se os fins buscados por nossa civilização fossem reconsiderados à luz do que se designa um “desenvolvimento sustentável”. Muito antes deles, mais de um filósofo assinalou que, a depender de como é exercida, a afirmação do ser hu-mano sobre a natureza pode ser prejudi-cial à natureza de que também é feito o próprio ser humano.

As conclusões acima dizem respeito a um primeiro grupo de reflexões levantado pelo nosso tema. Mas examinamos um se-gundo ponto importante. Vimos também que há maneiras diferentes de os agrupa-mentos humanos se afirmarem sobre a natureza. O romance de Daniel Defoe nos dá um exemplo disso: Crusoé e Sexta-Feira são portadores de culturas muito diversas entre si. Ocorre que Sexta-Feira se adap-ta completamente ao modo de vida de Crusoé. Mas lembremos que se trata de um romance, cuja narrativa corresponde ao re-lato pessoal de Crusoé. O romancista deci-diu não dar voz própria a Sexta-Feira.

Os desafios da ecologia

Desenvolvimento individual por escrito

• Por meio de consulta à impren-sa, apresente, em um pequeno texto de aproximadamente uma página, um caso em que a afirmação da humani-dade sobre a natureza representa um risco de dano ou mesmo de extinção da natureza. Em seguida, em um pará-grafo separado, exponha o que seria, do seu ponto de vista, uma afirma-ção da humanidade sobre a natureza capaz de modificá-la, sem, todavia, destruí-la. Como conclusão, compare o ponto de vista elaborado por você com o conceito de “desenvolvimento susten-tável”, cujo significado você poderá pes-quisar em livros, revistas e na internet.

Nesta imagem aérea, vê-se a cerca para conter o vazamento de asfalto ocorrido na refinaria

localizada em Ichihara, Chiba, no Japão, em junho de 2012.

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Isso nos leva a outra conclusão, relativa não mais à oposição geral entre natureza e cultura. Trata-se, agora, da questão re-presentada pelo contato e embate entre as diferentes culturas. Você verá que, ao tomar Sexta-Feira como um indivíduo destituído de civilização própria, a ser “civilizado”,

Crusoé opera com uma noção etnocêntrica de cultura. Tal noção só reconhece como válida a sua própria forma de se afirmar sobre a natureza. Ora, por que um modo de afirmação do homem sobre a natureza tem de se impor às demais culturas, como se fosse a “verdadeira” cultura?

O saque de Roma pelos visigodos em

410 d.C. foi visto como um golpe no

centro da civilização clássica.

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A diversidade das culturas

É fácil constatar que o homem se coloca face à natureza em função de sua cultura. No entanto, o universo da cultura é diver-sificado e multifacetado. Não há uma única cultura, mas um conjunto delas. Dito de outro modo, os homens de diferentes cul-turas (por exemplo, o europeu moderno e o ameríndio) se afirmam frente à natureza segundo diferentes formas de vida.

É a situação exemplificada pelo ro-mance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Vivendo sozinho em uma ilha, o prota-gonista do livro termina encontrando um nativo, ao qual dá o nome de “Sex-ta-Feira”. Crusoé logo se dá a tarefa de “civilizar” Sexta-Feira. No romance, tudo se passa como se Sexta-Feira não perten-cesse a nenhuma cultura, nem integrasse universo algum de simbolização antes de se deparar com Crusoé. Sexta-Feira apare-ce no livro como o representante de uma natureza em estado bruto, que Crusoé moldará conforme seus próprios valores. Como se Crusoé representasse o polo da cultura e Sexta-Feira, o da natureza.

Ocorre que, como informa o próprio romance, Sexta-Feira também pertencia a um agrupamento social do qual se des-garrou antes de se deparar com Crusoé. O encontro entre eles, portanto, equiva-le ao confronto entre duas culturas di-versas e não entre a cultura, de um lado, e a natureza, de outro.

Isso nos leva diretamente ao ponto que nos interessa examinar agora. Esse ponto é, primeiro, a diversidade das cul-turas. Mas é também nossa atitude em

relação a esse mesmo fenômeno. Como lidamos com o fato de que outros agru-pamentos humanos possam se pautar por valores tão diversos dos nossos?

O romance de Defoe, por exemplo, re-vela que a diversidade cultural muitas ve-zes não foi admitida pelos integrantes de uma cultura, especialmente quando esta pretende ser a única civilização autênti-ca, verdadeira. Crusoé está tão preso a essa convicção que chega a crer que, sem seu auxílio, Sexta-Feira não desenvolve-

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Um filósofo-antropólogo no BrasilClaude Lévi-Strauss (1908-2009), um dos

maiores antropólogos do século XX, discorre

sobre a atitude de uma cultura que quer se

impor sobre as outras, chamando-a pelo

nome de etnocentrismo – a convicção de que

os “nossos” costumes correspondam ao cen-

tro irradiador e exclusivo de toda civilização.

De fato, a tendência a considerar quem é dife-

rente de nós como “selvagem”, “bárbaro” etc.

é antiga e não se limita aos preconceitos que

europeus manifestavam em relação a nativos

de terras desconhecidas.

Lévi-Strauss, nascido em Bruxelas, for-

mou-se em direito e filosofia em Paris. Sua

tese de doutoramento, As estruturas elemen-

tares do parentesco (1949), é o resultado de

uma extensa pesquisa, que se iniciou quando

Lévi-Strauss aceitou participar da missão

francesa na Universidade de São Paulo (USP),

entre 1935 e 1939. Foi nesse período que

Lévi-Strauss descobriu sua vocação de antro-

pólogo, como ele mesmo narra em Tristes

trópicos (1955), obra na qual documenta sua

estadia entre nós. Lévi-Strauss travou contato

com os bororo e com os nambiquaras, em

Mato Grosso, em uma experiência que foi

decisiva para sua elaboração teórica.

Em seu retorno à França, Lévi-Strauss se

consagrou como autor de uma obra de refe-

rência internacional, além de ter sido um dos

principais pensadores ligados ao estrutura-

lismo. Foi muito próximo de Merleau-Ponty

(1908-1961) e de Jacques Lacan (1901-1981),

entre outras personalidades do universo

intelectual francês do século XX. Em O pensa-

mento selvagem (1962) Lévi-Strauss polemizou

fortemente com Jean-Paul Sartre (1905-1980),

abrindo terreno para a difusão do estrutura-

lismo na cultura francesa da década de 1960.

Leituras recomendadas:

C. Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto

e de longe. Tradução: L. Mello e J. Leite. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1990 (Trata-se

de uma longa entrevista concedida por Lévi-

-Strauss a D. Eribon, muito oportuna como

introdução aos problemas e questões abor-

dados pelo famoso antropólogo).

C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem.

Campinas: Papirus, 2005.

C. Lévi-Strauss, Tristes trópicos. Tradução:

Rosa F. D’Aguiar. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996.

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ria as capacidades de se comunicar e de adquirir conhecimento. A crer no que pensa Crusoé, Sexta-Feira seria incapaz de desenvolver de modo completamente adequado a linguagem, se o europeu não lhe ensinasse seu próprio idioma.

Diversidade e afirmaçãoO “etnocentrismo” é o tema de um

texto publicado pelo antropólogo Clau-

de Lévi-Strauss pela primeira vez em 1952 e depois inserido em uma obra de referência nos estudos de antropologia. O texto original se intitula “Raça e his-tória” e inicia advertindo-nos de que re-pudiar o que nos parece estranho é uma atitude muito antiga na história huma-na. Formas culturais diversas das nos-sas são classificadas como “selvagens”, “inadequadas”, “imorais”. Segundo Lévi-

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-Strauss, esse tipo de reação exprime uma completa incompreensão em rela-ção a modos de vida, de crença ou pen-samento que nos sejam estranhos.

O que chama a atenção é o fato de que isso não é de hoje. Na Antiguidade, recorda-nos Lévi-Strauss, tudo o que não era grego era designado pejorativamente pelos gregos como “bárbaro”. Do ponto de vista etimológico, “bárbaro” provavel-mente se refere ao canto dos pássaros – mas não no sentido de enaltecer sua be-leza. Antes, “bárbaro” originariamente se

referia ao fato de que os pássaros emitem sons desarticulados, confusos, por opo-sição ao “valor significante da linguagem humana”. Como acrescenta Lévi-Strauss,

Leitura recomendadaClaude Lévi-Strauss, “Raça e história”,

in: Antropologia estrutural – Volume 2.

Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São

Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 357-399.

A filosofia e a antropologia

Desenvolvimento individual por escrito

A antropologia apresenta-nos estu-dos de culturas e modos de vida muito diversos do nosso. As relações entre a antropologia e a filosofia, por isso, são inúmeras. Vários estudos antropológi-cos possuem interesse filosófico.

A história da antropologia está cheia de estudos de casos muito in-teressantes, exatamente porque nos colocam diante de modos de vida pau-tados por hábitos e costumes radical-

mente diferentes daqueles que nos habituamos a considerar “naturais”. Recorrendo à biblioteca e à internet, identifique dois exemplos de estudo antropológico. Em seguida, escolha um deles e desenvolva um texto de aproximadamente uma página, apre-sentando as características principais da cultura que foi objeto da investiga-ção antropológica (localização geográ-fica, população, tipo de organização social, forma de relação com o meio, religião, instituições, etc.)

“Bárbaro” é uma palavra de origem grega,

por meio da qual os gregos da Antiguidade

designavam aqueles que não eram gregos,

isto é, os estrangeiros. Ao mesmo tempo, a

palavra “barbárie” costuma ser utilizada em

oposição à “civilização”. Juntando as duas

coisas, seríamos conduzidos à conclusão de

que o “estrangeiro” é o “não-civilizado”.

Toda questão recai, como se vê, sobre

a relação que uma cultura assume diante

dos indivíduos que não pertencem a ela.

O termo “barbarismo” designa o uso deli-

berado de palavras estrangeiras. Quando,

por exemplo, digo que vou pegar minha

“bike”, isso caracteriza um barbarismo ou

estrangeirismo. Discute-se muito se a pro-

liferação de barbarismos (isto é, de pala-

vras estrangeiras) é ou não prejudicial à

língua nacional.

O que você pensa a respeito?

OS SENTIDOS DA PALAVRA “BÁRBARO”

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“selvagem” vai na mesma direção, pois evoca “selva”, referindo-se à vida animal, em contraste com a cultura dos humanos. Nos dois casos, conclui Lévi-Strauss, é recusada a diversidade cultural. Joga-se para fora do âmbito da cultura, empurra--se para o âmbito natural tudo aquilo que não é considerado “normal”.

Graças às contribuições da antropolo-gia e da etnografia ao longo do século XX (muitas das quais devemos à obra de Lévi--Strauss), as ciências humanas têm se mos-trado muito críticas diante de mentalidades e comportamentos etnocêntricos. Hoje em dia, a ideia de que povos ou simplesmente grupos humanos que se orientam por va-lores diferentes dos nossos sejam “primiti-vos” ou “bárbaros” pode até vir à tona na retórica de extremistas e xenófobos, mas, de maneira geral, discursos dessa ordem já não são respaldados, como foram outrora, por teorias ditas “científicas”.

O fato é que uma questão tão com-plexa e instigante como a da diversi-dade das culturas sempre traz desafios para a reflexão filosófica.

Barbaridades, bárbaros e barbarismos

Desenvolvimento individual por escrito

• Desenvolva um pequeno texto, de aproximadamente uma página, fornecendo exemplos de barbarismo idiomático e expondo seu ponto de vista sobre esse assunto. Não perca de vista que, por trás dessa discussão , o que está em jogo é a relação entre culturas diversas.

A ideia de “natureza humana”

Diferentes sociedades humanas ins-tituem modos diversos de se relacionar com a natureza. Dizemos então que per-tencem a culturas diferentes. Há, de ou-tro lado, valores considerados universais, como os direitos humanos, que não esta-riam restritos a essa ou aquela cultura. Os direitos humanos supõem como válida a premissa de que, sob certos aspectos, to-dos nós – mulheres, homens, sul-ameri-canos, asiáticos, europeus, hindus, tupis, guaranis, protestantes, muçulmanos, ca-tólicos, umbandistas etc. – sejamos iguais ao menos sob um aspecto. A argumentação em prol dos direitos humanos afirma que, apesar de todas as diferenças culturais que pesem sobre os indivíduos, somos todos igualmente sujeitos possuindo certos di-reitos inalienáveis, que dizem respeito à condição humana indistintamente, isto é, sem distinção de raça, sexo, cultura ou classe social.

O tema dos direitos do homem ou direitos humanos surgiu na cena da política mundial ao longo do século XVIII, no movimento de ideias chama-do “Iluminismo”, “Esclarecimento” ou “Filosofia das Luzes”. Foram pensadores iluministas que deram origem ao tipo de discurso político e à base filosófico--jurídica para a Revolução Francesa, de 1789. Veja você mesmo o texto de apre-sentação e os dois primeiros artigos da Declaração dos direitos do homem, procla-mada pela Assembleia nacional france-sa, em 1789, no contexto da revolução que derrubou o Antigo Regime:

“Os representantes do povo fran-cês, constituídos como Assembleia na-cional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos di-reitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção

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dos governos, decidiram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente apresentada a todos os membros do corpo social, lhes re-corde incessantemente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, po-dendo ser a todo instante comparados com o objetivo de toda instituição polí-tica, sejam a ele mais conformes; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, se direcionem sempre para a conservação da Cons-tituição e da felicidade de todos. Em consequência, a Assembleia nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser supremo, os seguin-tes direitos do homem e do cidadão.

Artigo 1º: Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direito. As distinções sociais só podem se fundar sobre a utilidade comum.

Art. 2º: O objetivo de toda associa-ção política é a conservação dos direi-tos naturais e imprescritíveis [isto é, que não prescrevem, permanente-mente válidos] do homem. Esses di-reitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” (Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789. Tra-dução nossa. Edição de referência: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents. Paris: Larousse, 1989, pp. 75-76)

Podemos, com base no que foi dito, for-mar uma noção do que está em jogo. Vamos considerar três pontos. Primeiramente, po-demos dizer que a cultura é a expressão de uma afirmação do homem sobre a natu-reza. Mas há inúmeros modos de fazê-lo, vale dizer: o ser humano se caracteriza pela diversidade de culturas. Mas como a existên-cia de diversas culturas se articula com o

conceito de humanidade, do qual depende a questão dos direitos humanos?

Você já deve ter se dado conta do se-guinte: a argumentação que defende a ideia dos direitos humanos supõe que a humanidade possua uma realidade em si, independente das diferenças entre as culturas. Supõe-se que há uma “natureza humana” que atravessa todas as culturas, abrigando sob si os indivíduos de todos os povos e nações da Terra. Segundo esse ponto de vista, embora diferentes em seus costumes e hábitos, sob um aspecto deci-sivo os seres humanos pertencem todos a uma mesma categoria, designada pelo ter-mo abstrato “humanidade”.

O resultado disso, podemos resumi--lo assim: em seu significado mais geral, a natureza se opõe à cultura; no entanto, como que em resposta às diferenças entre os indivíduos e à diversidade de culturas, postulou-se como válido um outro signi-ficado para “natureza”, a saber, o de uma natureza humana, que abarca todos os seres humanos, independentemente da cultura a que pertencem, do credo que professam ou da condição social em que se encontram.

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Sala do picadeiro, na qual se reuniu a

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tir de novembro de 1789.

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Dirigindo nossa atenção para a história das ideias, constatamos que o postulado universalista na base da convicção de que a humanidade abarca todos os seres huma-nos é quase tão antigo quanto as doutrinas que buscaram separar os indivíduos entre “homens” e “bárbaros”. Se, por um lado, a civilização greco-romana destituía da plena condição de humanidade uma parte considerável dos seres humanos (escra-vos, mulheres, estrangeiros, crianças), de outro lado, concepções ligadas a grandes religiões, como o budismo, o cristianismo e o islamismo, por exemplo, já professa-vam, bem antes dos tempos modernos, que todos os seres humanos se encontram sob uma mesma idêntica condição.

Essas duas tendências opostas coexisti-ram de forma mais ou menos conflituosa. Desde seus primórdios, por exemplo, o pensamento ligado ao cristianismo bus-cou definir como sua comunidade todas as pessoas que tivessem sido batizadas. Ao contrário de certas concepções mais tradicionalistas do judaísmo, que apre-goam uma linhagem genealógica para seus membros, todo e qualquer homem ou mulher que aceitasse os seus preceitos podia se tornar um membro da comuni-dade cristã. Aliás, o termo “católico” vem do grego katholikós, que quer dizer “geral”, “universal”, “que vale para todos”.

No entanto, durante a Idade Média europeia, muitos judeus, embora tivessem suas vidas poupadas, foram destituídos dos direitos de que gozavam os cristãos. Assim também, nas cruzadas dos sécu-

los XI a XIII, os Estados e a Igreja católi-ca postularam a retomada de Jerusalém das mãos daqueles a quem chamavam de “infiéis”, dessa forma “demonizados” pe-los europeus que os foram combater.

Com a expansão marítima e o contato dos europeus com os povos ameríndios, a partir do século XVI, a questão foi recolocada. Diante das civilizações pré--colombianas ou das nações indígenas da América e da Oceania, cuja organi-zação, religião e mentalidade eram tão diferentes das concepções dos coloniza-dores, as questões em torno desse tema ganharam um novo impulso.

Como reporta o antropólogo Claude Lé-vi-Strauss[+], as incertezas e perplexidades trazidas pelo contato de culturas tão diver-sas eram percebidas de um lado e de outro. No século XVI, por exemplo, os espanhóis formaram comissões para determinar se os povos que habitavam as Antilhas tinham ou não alma. Por sua vez, e na mesma épo-ca, indígenas imergiam brancos capturados por longo período, a fim de descobrir se seus corpos se putrefaziam ou não.

Era mesmo de se esperar que a época dos “grandes descobrimentos” instigasse muitos a examinar o significado e a ex-tensão do conceito de humanidade. Mas talvez fosse menos previsível outro des-dobramento desse mesmo fenômeno. Os “descobrimentos” conduziram pensado-res europeus a relativizarem e questiona-rem o conceito de “civilização” forjado na própria Europa – realizando, desse modo, uma espécie de autocrítica.

Montaigne e os canibais

Nos tempos que se seguiram aos gran-des “descobrimentos”, surge na Europa uma reflexão autocrítica que relativiza a noção de que os europeus fossem, afinal, tão “civilizados” como há tanto era co-mum afirmar-se. Exemplo disso encon-tramos em um ensaio de Michel de Mon-

taigne (1533-1592), que traz o sugestivo título “Dos canibais”.

Há uma curiosidade em torno deste ensaio. Montaigne discorre sobre os nati-vos trazidos do sul do Brasil para a França, numa expedição comandada por Nicolas D. de Villegagnon em 1557. O ensaísta

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Montaigne teve oportunidade de conhecê--los e conversar com eles com a ajuda de um intérprete. O texto oferece uma exce-lente ocasião para refletirmos sobre a di-versidade de culturas.

A base para o retrato traçado por Mon-taigne reside, como ele nos adverte, em relatos orais:

“Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso século, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França Antártida.” (Mon-taigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins Fontes, p. 303)

A principal conclusão que Montaige extrai do relato do viajante acerca dos cos-tumes e hábitos dos nativos brasileiros pode ser considerada como uma crítica severa à atitude que hoje chamaríamos de

“etnocêntrica”, isto é, a afirmação de uma cultura como superior às demais (o ter-mo “etnocentrismo” não foi utilizado por Montaigne, mas por antropólogos do sé-culo XX). Veja só:

“Mas, para retomar meu assun-to, acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume; como verdadeiramente parece que não temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razão a não ser o exemplo e o modelo das opiniões e usos do país em que estamos. Nele sem-pre está a religião perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e cabal de todas as coisas. Eles são selvagens, assim como chamamos de selvagens os frutos que a natureza, por si mesma e por sua marcha habitual, produziu; sen-do que, em verdade, antes deveríamos

Victor Meirelles (1832-1903), A primeira missa (óleo sb/ tela, 1861). A missa, que sim-boliza o encontro desigual de duas civilizações, foi celebrada pelo padre Henrique de Coimbra em 26 de abril de 1500.

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chamar de selvagens aqueles [frutos] que com nossa arte alteramos e desvia-mos da ordem comum. Naqueles outros estão vivas e vigorosas as verdadeiras e mais úteis e naturais virtudes e proprie-dades, as quais abastardamos nestes, e simplesmente as adaptamos ao prazer de nosso paladar corrompido.” (Mon-taigne, Ensaios, op. cit., pp. 307-308)

Vamos analisar essa passagem. O trecho selecionado inicia questionando a visão, co-mum naquela época, de que os nativos da América seriam bárbaros, enquanto os eu-ropeus, civilizados. Montaigne, como é fácil perceber, vai muito além do relato do via-jante que lhe serviu de fonte, pois interpre-ta, raciocina e tira conclusões desse mesmo relato. Ele fornece uma explicação para o fato de os nativos ameríndios serem consi-derados selvagens. A chave que explica isso é simples: “cada qual chama de barbárie aqui-lo que não é de seu costume”. Ou seja, é desig-nado e considerado “bárbaro” todo aquele que não se comporta como nós.

Procure agora atentar para como Mon-taigne desenvolve essa primeira conclu-são. Note como ele acrescenta novos ele-mentos a seu argumento, conferindo ao trecho aqui citado um alcance crítico radi-cal. Ele afirma que não dispomos de “ou-tro ponto de vista sobre a verdade e a razão” a não ser o de nosso país. Ora, isso equi-vale a dizer que tanto a verdade quanto a razão admitem mais de um ponto de vista, mais de uma abordagem. E que, portan-to, o que é verdadeiro e razoável para fula-no, que nasceu e foi educado em tal lugar, pode ser falso e absurdo para um estran-geiro de terras distantes. Tudo dependerá da perspectiva a partir da qual considera-mos as coisas. E essa perspectiva é variada, depende dos costumes e hábitos do lugar em que os indivíduos se encontram.

Em seguida, Montaigne recorre a uma ironia: no país em que estamos, prosse-gue o texto, “sempre está a religião perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e

cabal de todas as coisas”. Em outras palavras, sempre acreditamos estar corretos quanto à religião, à política e aos demais assuntos. E, por conta dessa convicção, qualificamos como selvagens os outros, isto é, todos os que não praticam nossos costumes.

O último segmento do trecho citado dá uma orientação inovadora para a ar-gumentação desenvolvida até aqui. Re-leia o trecho que inicia por: “[...] sendo que, em verdade, antes deveríamos chamar de selvagens [...]”. Nele, Montaigne expõe seu juízo, o qual promove uma verdadei-ra inversão da perspectiva usual, ao dizer que “selvagens” deveriam chamar-se os frutos que, por serem modificados por nós, são desviados “da ordem comum”.

Dito de outro modo, o “selvagem”, em seu sentido pejorativo, é o que resulta da “arte”, e não o que é natural. No desfecho de seu texto, Montaigne dirige uma crí-tica severa aos costumes dos seus seme-lhantes. A civilização europeia, da qual o próprio autor faz parte, adapta a nature-za “ao prazer de nosso paladar corrompido”.

Proximidade e distância da naturezaComo se vê, o problema da diversi-

dade de culturas, que fora renovado no período das grandes descobertas, dá ocasião, no ensaio de Montaigne, a uma autocrítica da civilização europeia. Essa

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Representação de ritual tupinambá, de Théodore de Bry (1528-1598) a partir dos relatos do viajante Hans Staden (1525-1579).

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mesma civilização aparece no discurso de Montaigne como uma sofisticação inútil, que, sem que percebamos, nos afasta da “natureza”. É isto o que revela a continua-ção do texto de Montaigne, à mesma pá-gina já citada anteriormente:

“Portanto esses povos me parecem assim bárbaros por terem recebido bem pouca preparação do espírito hu-mano e estarem ainda muito próximos de sua naturalidade original. Ainda os governam as suas leis naturais, pouco abastardadas pelas nossas.” (Montaig-ne, Ensaios, op. cit., p. 308)

Repare na adjetivação: “bárbaros” são aqueles indivíduos ou povos que permane-ceram próximos da natureza, que são gover-nados por “leis naturais” e que não foram “abastardadas” pelas leis da civilização.

Mas o que devemos entender por essa proximidade com a natureza? É digno de nota que Montaigne descreva os nativos ameríndios recorrendo ao contraste com o modo de vida europeu. Trata-se de um povo, diz ele em seguida:

“[...] no qual não há nenhuma espé-cie de comércio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos núme-

ros; nenhum título de magistrado nem de autoridade política; nenhum uso de servidão, de riqueza ou de pobreza; nem contratos; nem sucessões; nem partilhas; nem ocupações, exceto as ociosas; nem consideração de parentes-co exceto o comum; nem vestimentas; nem agricultura; nem metal; nem uso de vinho ou de trigo. Mesmo as pala-vras que designam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a maledicência, o perdão são inauditas.” (Montaigne, Ensaios, op. cit., p. 309)

Todo esse passo do texto enaltece os povos “primitivos” recorrendo a uma comparação: eles são elogiados por aquilo que não são. Há, sem dúvida, certo grau de idealização dos ameríndios por par-te de Montaigne. Voltaremos a isso logo adiante. Note, agora, como o raciocínio de Montaigne revela todo seu alcance moral, quando ele diz que, na língua dos “primi-tivos”, inexistem termos para a mentira, a traição, a avareza etc. Ora, presume-se que, se não encontramos tais termos, é porque as ações ou sentimentos que eles designam tampouco existem nesse esta-do em que os seres humanos ainda vivem (como diz uma frase anterior) “muito pró-ximos de sua naturalidade original”.

Alto relevo

do sarcófago

de Ludovico,

representando os

romanos em luta

com os bárbaros

(Anônimo,

mármore, c. 250-

260 d.C.).

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Não é difícil enxergar o que Montaig-ne quer apontar a seu leitor. Estar próxi-mo da naturalidade original asseguraria certa pureza dos costumes, que os supos-tos avanços do mundo civilizado fariam desaparecer. Desse modo, Montaigne demonstra que os males que afligem a sociedade da qual faz parte – a socieda-de europeia que se afirmava como a civi-lização por excelência – têm origem no distanciamento de seus costumes, práti-cas e instituições em relação à “natureza”.

Natureza, barbárie e civilizaçãoResta, contudo, esclarecer uma questão

importante, a que nos referimos há pouco, ao falarmos da idealização dos ameríndios no texto em debate. O que, afinal, deve-mos entender pelo significado que Mon-taigne atribui à “natureza”, no ensaio analisado aqui? Uma espécie de jardim do Éden, de paraíso terrestre – em suma, de uma idealização filosófica e literária, sem

qualquer correspondência no mundo real? Tentaremos elucidar essa última ques-

tão pela leitura de mais um trecho do en-saio sobre os canibais. Trata-se, a propósi-to, do passo em que Montaigne comenta o rito de alimentar-se de seus semelhantes, tão assustador a nossos olhos. Após des-crever como os ameríndios matam e, em seguida, assam e comem seus inimigos, Montaigne conclui o seguinte:

“Não me aborrece que saliente-mos o horror barbaresco que há em tal ação, mas sim que, julgando com acerto sobre as faltas deles [dos ameríndios], sejamos tão cegos para as nossas. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tor-mentos e por torturas um corpo ain-da cheio de sensibilidade, assá-lo aos poucos, fazê-lo ser mordido e rasgado por cães e por porcos (como não ape-nas lemos mas vimos de recente me-mória, não entre inimigos antigos mas entre vizinhos e concidadãos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de reli-gião), do que assá-lo e comê-lo depois que ele morreu.” (Montaigne, Ensaios, op. cit., p. 313)

Conforme diz esse parágrafo, e como era de se esperar, Montaigne não é favorá-vel ao canibalismo. Ele, aliás, não contesta que deploremos esse ou mesmo outros ri-tos e práticas contrárias a nossas convic-ções. O que ele questiona é que sejamos complacentes com práticas e costumes que, embora nos sejam habituais, são tão ou mais atrozes quanto aqueles que rejei-tamos nos “bárbaros” ou “primitivos”.

Admita por um momento a provocação e a ironia de Montaigne e responda você mesmo o que lhe parece pior: devorar um semelhante depois de tê-lo matado e as-sado ou, como era corrente na Europa dos tempos de Montaigne, torturá-lo ou quei-má-lo vivo até matá-lo?

Leituras recomendadas

A fim de aprofundar o exame desse tipo

de consideração no século XVIII, você pode

tomar duas obras muito significativas do

Iluminismo francês: As cartas persas (1721)

de Charles L. de Montesquieu (1689-1755) e

o Discurso sobre as ciências e as artes (1750),

de Jean-Jacques Rousseau[+] (1712-1778).

Ambos os textos contam com mais de uma

edição em português. Listamos abaixo duas

edições a título de sugestão, por trazerem

excelentes traduções:

Charles L. de Montesquieu, Cartas

persas. Tradução: Renato Janine Ribeiro.

São Paulo: Nova Alexandria, 2005.

Jean-Jacques Rousseau, “Discurso sobre

as ciências e as artes”, in: Rousseau – Cole-

ção Os Pensadores. Tradução: Lourdes S.

Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978,

pp. 321-428.

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Em vista disso, o fato de que Mon-taigne enalteça o “natural” e o “primiti-vo” adquire outro sentido. Seu intuito parece ser menos o de idealizar a “natu-reza” – como quem propusesse abando-nar a civilização para retornar àquela na-tureza ideal – do que o de advertir seus semelhantes para a observação de que, na verdade, a “civilização” é atravessada por inúmeras barbáries. Pois, como nos diz Montaigne no fim do ensaio, é no mundo dito “civilizado” que prevalece a avareza, a inveja; é nele que se pratica a tortura e se queimam vivos em praça pública, to-dos aqueles que forem considerados he-reges, “bruxas”, “anormais”.

Ao recordar práticas tão atrozes e ao mesmo tempo tão familiares a seus se-melhantes europeus, Montaigne sugere--lhes que é preciso rever e alterar seus princípios. A referência aos canibais do

Novo Mundo tem por objetivo despertar a consciência crítica não dos ameríndios, mas dos próprios europeus, contempo-râneos de Montaigne. Afinal de contas, ele escreve e destina seus ensaios para leitores com os quais partilha língua, valores, práticas e princípios. Logo, a referência a outras culturas como a dos povos ameríndios, com seus costumes e práticas tão “exóticos” à primeira vista, tem por propósito relativizar as “verda-des” e “certezas” de sua própria cultura.

A filosofia se investe, desse modo, de alcance questionador e crítico. Montaigne propôs sua reflexão filosófica como um instrumento para auxiliar a compreender melhor a cultura a que pertencia. Tendo em mente o ensaio de Montaigne sobre os canibais, podemos concluir que a referên-cia ao Outro (no caso, a outra cultura, di-versa da nossa) pode ser um instrumento valioso para medir, criticar e transformar nossas próprias certezas e “verdades”.

Nessa direção, é interessante ressal-tar o uso dialético que Montaigne faz do par “natureza × cultura”. Afinal, como mostrou nossa análise de texto, Mon-taigne recorre a um significado de “na-tureza” para criticar a cultura a que ele mesmo pertence. Desse modo, ele inau-gura (ao menos nos tempos modernos) um tipo de crítica da cultura que terá desdobramentos significativos em pelo menos dois momentos do pensamen-to filosófico moderno. O primeiro é o Iluminismo do século XVIII. O segundo, na assim chamada “Escola de Frankfurt”, do século XX, a linha de pensamento crí-tico em que se inscreve o livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer, A dialética do esclarecimento, publicado originalmente em 1947 (tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985).

O ensaio de Montaigne antecipa elemen-tos decisivos da crítica ao “etnocentrismo”, como, por exemplo, o do europeu Robinson Crusoé que busca “civilizar” o nativo Sexta--Feira no romance de Daniel Defoe.

Arte... “primitiva”? Figura antropozoo-

morfa Malagan, coleção Papua, Nova

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No pensamento filosófico moderno, o par natureza/cultura é utilizado como instrumento de crítica da civilização. O ensaísta Michel de Montaigne, no século XVI, faz referência à diversidade de cul-turas a fim de chamar a atenção de seus pares eu-ropeus sobre os valores e costumes de sua própria cultura. Ele chega a afir-mar que, por estarem mais próximos da natu-reza, os “selvagens” pos-suem hábitos e costumes mais puros do que aque-les da cultura ocidental.

Montaigne não foi o único a empregar o par conceitual natureza/cul-tura com intuitos críticos. Encontramos um exem-plo semelhante na obra de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo francês muito importante do século XVII. Vamos, abaixo, nos deter sobre um discurso de Pascal, intitulado “Segundo discurso aos poderosos”, publica-do pela primeira vez em 1662. Nele, Pascal retoma o par natureza e cultura sob a di-ferença entre “grandezas naturais” e “gran-dezas estabelecidas”. Essa conceituação de Pascal proporciona à oposição natureza/cultura um alcance político. Eis o texto:

“É bom que saiba, senhor, o que lhe é devido, de modo que não queira exi-gir dos homens aquilo que não lhe é de direito; pois isto é uma evidente injus-tiça: e no entanto ela é muito comum nos homens da sua condição, porque eles ignoram sua própria natureza.

Há no mundo dois tipos de grande-za: grandezas estabelecidas e grandezas naturais. As grandezas estabelecidas dependem da vontade dos homens, que

acreditaram, com razão, ser preciso honrar certas condições e associar a elas determinados respeitos. São des-se gênero os títulos e a nobreza. Num país, honram-se os nobres; noutro, os

plebeus; neste aqui, os anciãos; naquele ou-tro, os jovens. E isso por quê? Porque assim quiseram os homens. A coisa era indiferente antes da convenção: depois dela, ela se tor-na justa, porque é in-justo transtorná-la.

As grandezas natu-rais são aquelas inde-pendentes da fantasia dos homens, porque consistem em quali-dades reais ou efetivas da alma ou do corpo, que tornam este e

aquela mais dignos de estima, como as ciências, a luz do espírito, a virtude, a saúde, a força.

Devemos algo a uma e a outra des-sas grandezas; mas, como elas são de natureza diferente, assim também lhes devemos respeitos diferentes.

Às grandezas estabelecidas, nós devemos respeitos de estabeleci-mento, ou seja, determinadas ceri-mônias exteriores que, entretanto, devem ser acompanhadas, de acordo com a razão, de um reconhecimento interior de que essa ordem é justa, sem que nos levem a conceber al-guma qualidade real naqueles que honramos dessa maneira. Aos reis, é preciso falar de joelhos; nos aposen-tos dos príncipes, é preciso manter a postura ereta. Rejeitar-lhes esses deveres é uma estupidez e uma bai-xeza de espírito.

“Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas”

“Se o senhor fosse duque sem ser

homem honesto, [...] eu não deixaria de nutrir pelo senhor o desprezo interior

devido à sua baixeza de espírito.”

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Contudo, quanto aos respeitos na-turais que consistem na estima, nós não os devemos senão às grandezas naturais; ao contrário, devemos des-prezo e aversão às qualidades opostas a essas grandezas naturais.

Não é necessário que eu o estime por ser o senhor um duque; mas é necessário que eu o reverencie. Se o senhor é duque e homem honesto, eu demonstrarei o que é devido a uma e a outra dessas qualidades. Eu não nega-ria por nada, ao senhor, as cerimônias devidas à vossa condição de duque, nem a estima merecida pela de ho-mem honesto. Mas se o senhor fosse duque sem ser homem honesto, ainda assim eu lhe renderia justiça; pois, ao lhe prestar os deveres exteriores que a ordem dos homens ligou à sua nas-cença, eu não deixaria de nutrir pelo senhor o desprezo interior devido à sua baixeza de espírito.” (Pascal, “Se-

gundo Discurso sobre a condição dos poderosos”. Tradução nossa. Edição de referência: “Discours sur la condi-tion des grands”, in: Oeuvres complètes [ed. J. Mesnard] vol. IV, 1992)

Vamos analisar e discutir esse texto passo por passo. O intuito do “Segundo Discurso”, conforme se pode averiguar logo de início, é prevenir seu destinatá-rio – o nobre ao qual Pascal se dirige – de não cometer uma injustiça. Qual? Aque-la de exigir mais dos homens do que é justo fazê-lo.

Pascal quer mostrar ao seu destina-tário, um homem poderoso – e mostrar à nobreza de que ele faz parte – que o respeito devido a ele não é ilimitado. É muito comum, diz Pascal, os nobres exi-girem mais dos homens a seu redor do que é justo fazê-lo. A razão disso é sim-ples: a nobreza ignora que, do ponto de vista da “natureza”, somos todos iguais, independentemente da condição à qual pertencemos.

A fim de demonstrar esse ponto, Pas-cal expõe a divisão entre dois tipos ou espécies de grandezas – as estabelecidas e as naturais. Não é difícil adivinhar, se prestarmos atenção à escolha dos termos utilizados por Pascal, o que está em ques-tão aqui. De um lado, há “grandezas” ar-tificiais, isto é, estabelecidas pelos huma-nos; de outro, há grandezas naturais, que, nessa medida, não dependem de nossos valores. Pascal nos diz que as “grande-zas estabelecidas” não são naturais. Elas são, como fica claro pela continuação do trecho, arbitrárias e convencionais, pois “dependem da vontade dos homens”.

Daí os exemplos: “Num país, hon-ram-se os nobres; noutro, os plebeus; neste aqui, os anciãos; naquele outro, os jovens” e assim por diante. Há uma grande variedade de valores, porque há uma grande variedade de costumes. Mas nem por isso valores instituídos pe-los homens – as assim chamadas “gran-

De acordo com Pascal, não

acreditaríamos na justiça se os juízes

não usassem paramentos.

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dezas estabelecidas” – são menos reais. A base sobre a qual se fundam as gran-dezas estabelecidas não é natural, mas humana. “E isso por quê? Porque assim quiseram os homens.”

Entretanto, uma vez que os homens te-nham estabelecido algo, “aquilo se torna justo”. Esse ponto é importante. Ele nos revela que Pascal retoma a questão da di-versidade de culturas. Aquilo que é justo em um país pode não ser justo em outro.

Mas o reconhecimento de que as cul-turas são diversas não conduz Pascal a concluir que os valores de uma cultura determinada não devam ser respeitados, pois, uma vez que uma lei ou costume tenha se estabelecido, passa a exi-gir nosso respeito e obe-diência: “torna-se justo”, como diz o texto.

Logo em seguida, Pas-cal explica o que devemos entender por “grandezas naturais”. Ele começa contrapondo as grande-zas naturais àquelas que se fundam na “fantasia dos homens”. Isso nos leva a concluir que as grandezas estabelecidas, que se contra-põem às naturais, se fundam nas conven-ções, quer dizer, na imaginação ou fanta-sia dos homens. Já as grandezas naturais “consistem em qualidades reais ou efeti-vas da alma ou do corpo”.

Note bem: qualidades “reais ou efeti-vas”... Se as grandezas naturais são reais, não deveríamos interpretar as grande-zas estabelecidas, que se opõem a elas, como grandezas irreais, superficiais, irrelevantes? Mas já observamos que as grandezas estabelecidas também são, a seu modo, “reais”; elas se fundam em convenções humanas, mas nem por isso deixam de possuir realidade, de serem efetivas. Toda a dificuldade do texto pa-

rece residir nisto: como compreender a realidade de algo que não é natural – isto é, que possui uma realidade artificial?

Os exemplos de grandeza natural talvez possam nos ajudar aqui: “as ciências, a luz do espírito, a virtude, a saúde, a força”, eis o que, conforme Pascal, constitui as “quali-dades reais ou efetivas da alma ou do cor-po”. Não é difícil imaginar o que Pascal quer dizer com isso: qualidades como essas não seriam convencionadas, nem estabelecidas. Elas exprimem diferenças existentes entre

os homens que não de-pendem dos costumes, mas da natureza.

A diferenciação en-tre esses dois tipos de grandeza é efetuada por Pascal não para re-duzir a importância de uma delas e enaltecer a da outra. Seu obje-tivo é apenas mostrar que cada um desses tipos de grandeza re-quer uma atitude es-pecífica. Grandezas estabelecidas merecem um tipo de considera-ção; grandezas naturais,

outro. Que tipo de respeito cada forma de grandeza pode esperar?

Em que consistem os “respeitos de es-tabelecimento”, devidos às “grandezas estabelecidas”? Em “cerimônias exteriores” que, embora não sejam falsas nem vazias, não devem ser tomadas como o reconhe-cimento de qualquer qualidade real nos indivíduos assim homenageados. O exem-plo é muito claro e contundente: diante de alguém “superior”, como um rei ou um príncipe, temos de ser humildes e respeito-sos. Mas isso – Pascal insiste sobre o ponto – não significa que esse rei ou esse príncipe seja naturalmente superior a nós. Afinal de contas, ser rei ou ser príncipe não é uma condição natural, mas estabelecida pelos seres humanos, com base em convenções

“As ciências, a luz do espírito, a virtude, a saúde, a força”, são exemplos de

grandeza natural, que constituem as

“qualidades reais ou efetivas da alma ou

do corpo”.

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que Pascal afirma serem arbitrárias. Logo, uma grandeza estabelecida merece apenas “respeitos de estabelecimento”. Seria tolo recusar tal respeito. Mas seria errado con-fundir essa grandeza convencionada com uma grandeza natural.

Sendo assim, pode bem acontecer que nos deparemos com alguém que respeitemos devido a seu cargo ou função, mesmo sem o mínimo respei-to quanto a suas qualidades naturais. Por exemplo, um duque tem de ser respeitado por ser duque; mas, se não for um homem honesto, não merece-rá ser respeitado segundo o critério das grandezas naturais. No entanto, se porventura, além de duque, for um homem honesto, nesse caso devere-mos honrar-lhe tanto suas grandezas estabelecidas quanto as naturais.

A política, uma realidade de convençãoHá muitas lições a extrair dessas li-

nhas de Pascal. Comecemos por uma noção que à primeira vista pode até parecer estranha, mas que é muito in-

teressante e rica, isto é, a ideia de que há uma realidade naquilo que não é na-tural. Assinalamos a ocorrência dessa ideia no trecho que acabamos de dis-cutir. Essa realidade corresponde às instituições e práticas culturais. Os costumes, ritos, instituições culturais são tão reais quanto os fatos e aconte-cimentos naturais. Mas são dois tipos de realidade ou, se se preferir: “nature-za” e “cultura” correspondem a ordens de realidade diversas entre si.

Um segundo ponto a ser observado é a relação do texto de Pascal com uma pos-tura autocrítica de pensadores modernos, para quem a “civilização” traz consigo males inexistentes em sociedades mais próximas da natureza (ver, nesta Unida-de, o módulo “Montaigne e os canibais”). Pascal confere um alcance mais político à diferença entre natureza e cultura. Ele se ocupa de assinalar que há uma diferença entre a moral e a política.

A moral corresponde, grosso modo, às “grandezas naturais”, como a vir-tude – que devem ser estimadas e res-peitadas por si mesmas. A política, por sua vez, corresponde às “grandezas estabelecidas”, que variam conforme os costumes locais. Embora Pascal afirme que devemos respeito à autoridade polí-tica, ligada às “grandezas estabelecidas”, ele também deixa claro que a autorida-de política vale pelo que ela é – uma convenção que, de resto, admite muitas formas, variando de lugar para lugar.

Já a autoridade moral, ligada às “gran-dezas naturais”, é válida por si mesma, independentemente da condição ocupa-da pelo indivíduo no corpo social.

Essa conclusão é decisiva para com-preendermos a novidade da posição de Pascal. Com base na utilização do par natureza/cultura, Pascal propõe uma diferenciação entre moral e política, de grande importância na reflexão moderna. As diferenças morais entre os indivíduos, na visão de Pascal, independem das diver-

Blaise Pascal (1623-1662) afirmava

que as grandezas naturais nada têm

que ver com a fantasia dos homens.

São naturais, porque não dependem

dos costumes.

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Direitos humanos no concerto das nações

Desenvolvimento individual por escrito

No mundo contemporâneo, assisti-mos a vários tipos de conflito entre povos e culturas diferentes. É comum nos depa-rarmos com a eclosão de guerras ou in-tervenções militares em países distantes sob a alegação de que seus governantes violam os direitos humanos.

A objeção a este tipo de conduta e de retórica consiste muitas vezes em recor-dar que a doutrina dos direitos huma-nos pertence a uma cultura determina-da, na qual surgiu e frutificou. Foi espe-cialmente no século XVIII que pela pri-meira vez foram formuladas, na Europa e no Ocidente, as declarações dos direi-tos humanos universais. Daí a questão: será que esta doutrina não é particular a uma cultura? E, neste caso, ela não se-ria válida apenas em seu interior? Como, então, pretender estender e aplicar os direitos humanos a todas as regiões do globo terrestre? Dito de outra forma, a afirmação incondicional da doutrina dos

direitos humanos não pode ameaçar a diversidade das culturas, a começar por aquelas nas quais esses direitos não são admitidos?

• Com base nessas questões e con-sultando a imprensa, desenvolva uma redação de aproximadamente duas pá-ginas. Inicie descrevendo um episódio que possua as características menciona-das acima, quando, em nome da supres-são dos direitos humanos, forças arma-das de uma nação ou das Nações Uni-das entram em conflito com um Estado ou região do planeta. (Alguns exemplos possíveis: o conflito na ex-Iugoslávia, na década de 1990; a ação humanitária da ONU na Somália, em 1991; a guerra do Golfo, em 1991.) Após a descrição, redi-ja um ou mais parágrafos expondo sua própria posição: você defende ou não a universalidade irrestrita dos direitos humanos? Sendo positiva ou negativa a sua resposta, procure justificá-la com base em argumentos que possam con-vencer seus colegas.

sas condições sociais e políticas e culturais que cada um deles exerce. São diferenças que permanecem mesmo quando a cul-tura e a forma de organização política se modificam. Além disso, Pascal afirma que não devemos confundir esses dois planos, o da moral e o da política.

Pascal viveu em meados do sécu-lo XVII. Não demoraria muito para que os iluministas, no século seguinte, aprofundassem as intuições de Pascal, proclamando que o poder político só é

legítimo quando zela por direitos univer-sais, isto é, direitos extensíveis a todos os cidadãos de um Estado, independente-mente de sua condição social, de seu cre-do, gênero ou raça. Pascal havia separado o núcleo ético da humanidade das for-mas que sua organização social e política admitem. Os iluministas, especialmente os revolucionários franceses do fim do século XVIII, tomaram essa distinção e proclamaram que a política só é legítima quando se subordina à moral.

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“Só o homem, entre todos os animais, possui razão.” Esta frase foi escrita por Aristóteles

(384-322 a.C.), filósofo que, como você já deve saber, viveu na Grécia Antiga. Vem dessa frase e outras semelhantes de Aristóteles a mais famosa e mais repetida definição do ser humano: um “animal racional”. Tal definição inclui o ser humano entre os animais, mas, ao mesmo tempo, o diferencia deles por causa de sua racionalidade.

Uma espécie que se diz racional ........... 45

Virtude e paixão ........ 53

A rejeição das paixões ...................... 59

A razão a serviço das paixões ............... 63

História, razão e paixões ........ 69

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Auguste Rodin, O pensador (1902)

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Se o ser humano destaca-se de outras espécies por ser racional, você já pode per-ceber que a razão é de enorme importân-cia. Ela define o que é essencial do ser huma-no, enquanto, de modo geral, suas demais características podem ser encontradas também em outras espécies animais.

Por outro lado, é bem provável que você também já tenha ouvido pondera-ções semelhantes a estas:

“Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve me-lhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come ou-tro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá ‘que coisa tão cruel’. Não: quem se comporta com cruel-dade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser huma-no, um ser dotado de razão, razão disci-plinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. [...] E é essa indiferença em rela-ção ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz ra-cional. Isso, de fato, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias.” (Carlos Reis, Diálogos com José Saramago. Lisboa: Editorial Caminho, 1998, p. 111)

O autor dessas reflexões é o escritor português José Saramago. Há muitas ideias nessa citação, mas somente uma nos

interessa discutir aqui. É a ideia de que o ser humano, embora seja dotado de razão, não se comporta inteiramente de acordo com sua razão, porque é cruel, é indiferente em relação ao outro ou despreza os outros seres humanos.

Vamos começar a refletir sobre essa ideia: o ser humano é racional, mas se com-porta de maneira irracional. É claro que po-demos discutir se é sempre assim, se é com frequência ou se só algumas vezes, ou ainda se isso se passa com todos, com a maioria ou só com alguns dos seres humanos. Mas há uma noção que está na base de todas es-sas possibilidades: a de que a razão, sendo uma característica do ser humano, possa não ser efetiva nele, possa não ser exercida.

Essa é uma questão interessante e já aponta para um dos significados mais fundamentais desse conceito de “razão”. Pois, se o ser humano é racional, mas se comporta de maneira irracional, então a racionalidade, essa característica de ser “racional”, não é uma característica como ser alto ou baixo, ter olhos castanhos ou verdes etc. Quer dizer, não é uma caracte-rística que é dada de uma vez por todas. O

Uma espécie que se diz racional

José Saramago (1922-2010)

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ser humano pode se comportar de maneira racional ou irracional. Isso significa que a racionalidade é no ser humano uma facul-dade, isto é, uma capacidade, e como toda capacidade, ela pode ser exercida ou não, como alguém que é capaz de fazer uma coi-sa, mas, por diversos motivos, não a faz.

E o que caracterizaria essa capacidade chamada “razão”? O que poderia impe-dir que o comportamento humano fosse racional? Para Saramago, o comporta-mento humano não é racional porque o ser humano comete ações cruéis, como a tortura. Essa é uma maneira muito fre-quente de entender a irracionalidade.

A irracionalidade se encontraria em atos considerados maus. Se for assim, po-demos entender que a racionalidade se en-contra em atos considerados bons, como ajudar quem precisa de ajuda, ser justo com os outros, respeitar os outros etc.

É possível controlar as paixões?Isso significa, então, que toda vez que

agimos de maneira má deixamos de utili-zar nossa razão? Essa pergunta pode ser substituída por outra: a racionalidade sig-nifica apenas isso: agir de maneira boa? E, de novo, por que alguém deixaria de agir de maneira boa? Vamos tentar responder essa última questão a partir de um exemplo. Tra-ta-se de uma tragédia, de uma peça de tea-tro cujo desenrolar da ação termina em atos capazes de despertar, no espectador, sen-timentos de piedade e, ao mesmo tempo, terror. Na Grécia antiga, as tragédias eram bastante apreciadas pelo público, a ponto de haver concursos para escolher a melhor peça. Entre as diversas peças trágicas con-servadas com o passar dos séculos, Medeia, escrita por Eurípedes (480-406 a.C.), tem a ver diretamente com nossas questões.

A peça Medeia põe em cena a reação da personagem-título quando vem a sa-ber que seu marido, Jasão, casou-se mais uma vez, tomando por esposa a princesa do reino de Corinto, onde eles residem. Medeia não apenas envenena mortalmen-

te a nova esposa de Jasão, como também mata os próprios filhos, frutos da união que teve com ele. O plano de Medeia é cas-tigar Jasão ao máximo e depois fugir para outras terras. O trecho a seguir é a cena em que Medeia, abraçada aos filhos, cogi-ta sua decisão de matá-los:

“Ai de mim! Ai de mim! Por que vol-tais os olhos tão expressivamente para mim, meus filhos? Por que estais sor-rindo para mim agora com este derra-deiro olhar? Ai! Que farei? Sinto faltar--me o ânimo, mulheres, vendo a face ra-diante deles... Não! Não posso! Adeus, meus desígnios de há pouco! Levarei meus filhos para fora do país comigo. Será que apenas para amargurar o pai vou desgraçá-los, duplicando a minha dor? Isso não vou fazer! Adeus, meus planos... Não! Mas que sentimentos

Andrea Mantegna (1431-1506), São

Sebastião (c. 1459. Têmpera sb/ painel).

O martírio dos santos é um caso evidente

da “paixão” no sentido do padecimento.

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são estes? Vou tornar-me alvo de es-cárnio, deixando meus inimigos impu-nes? Não! Tenho de ousar! A covardia abre-me a alma a pensamentos vacilan-tes. Ide para dentro de casa, filhos meus!  Quem não quiser presenciar o sacri-fício, mova-se! As minhas mãos te-rão bastante força! Ai! Ai! Nunca, meu coração! Não faças isso! Deves deixá-los, infeliz! Poupa as crianças! Mesmo distantes serão a tua alegria. Não, pelos deuses da vingança nos in-fernos! Jamais dirão de mim que eu entreguei meus filhos à sanha de ini-migos! Seja como for, perecerão! Ora, se a morte é inevitável, eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei! [...] Faltam-me forças para contemplar meus filhos. Sucumbo à minha des-ventura. Sim, lamento  o crime que vou praticar, porém, maior do que mi-nha vontade é o poder do ódio,  causa de enormes males para nós, mortais.” (Eurípedes, Medeia. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar Edito-res, 2001, pp. 62-64)

Medeia se atormenta por causa do conflito entre sentimentos que, nessas circunstâncias, estão em oposição: o amor materno e o desejo de vingança. Para castigar Jasão, ela quer matar os próprios filhos (que são também filhos dele, lembre-se). Porém, tal castigo tam-bém será terrível para ela mesma. Por isso hesita em executar seu plano.

Ora Medeia cogita levá-los consigo, mas isso significaria deixar de castigar ao

máximo Jasão, em seu amor de pai. Ora Medeia cogita deixá-los naquela terra, mas isso significaria expô-los à vingança do rei, cuja filha ela envenenou. Porém, como mostra a última parte do trecho citado, Medeia decide matá-los, a fim de castigar seu marido. Ela sabe que comete-rá um crime hediondo, mas expressa que a paixão é mais forte que suas reflexões. Ela se refere à paixão do ódio e da vingança.

“Paixão do ódio”? É mais comum ouvir-mos ou lermos essa palavra “paixão” rela-cionada ao sentimento de amor intenso entre duas pessoas, quando elas têm um grande prazer de estar juntas e são capa-zes de tudo para ficar juntas. É provável, no entanto, que você já tenha ouvido falar também da “Paixão de Cristo”, que designa os sofrimentos pelos quais Jesus passou até ser crucificado. A paixão é, nesse caso, sinônimo de sofrimento, dor.

Amor intenso de um lado, sofrimento intenso de outro. Como uma mesma pa-lavra pode significar coisas tão díspares? A explicação disso se encontra na origem da palavra “paixão”, que designava um es-tado de passividade, o estado de alguém passivo, que apenas sofre uma ação co-metida por outrem ou por alguma coisa. Nesse sentido, paixão se opõe a atividade.

PaixãoEm sua origem, a palavra “paixão” designava um estado de passivi-dade, o estado de alguém passivo, que apenas sofre uma ação come-tida por outrem ou por alguma coisa.

J.-A. Watteau, Uma proposta constrangedora (1715-16).

O quadro, em estilo rococó, retrata uma cena amorosa

típica do início do século XVIII.

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A “Paixão de Cristo” expressa justamente essa passividade de Jesus, que teve de su-portar sem reação sofrimentos horríveis, culminando em sua crucificação.

Os sentimentos e as emoções não po-dem ser escolhidos pelo ser humano a seu bel-prazer. Não podemos simplesmente es-colher sentir medo ou coragem, alegria ou tristeza. Por isso, os sentimentos e emoções foram e são vistos como fenômenos psicoló-gicos diante dos quais a alma humana seria passiva. Daí todos os sentimentos e emo-ções poderem ser chamados de paixões.

Com maior frequência, porém, o termo designa aqueles sentimentos e emoções que se apresentam de forma incontrolável, nos dominam por inteiro ou que temos dificuldade em refrear. Por isso é comum dizer que a ira é uma paixão, mas também o medo, o ciúme, o desejo, em geral todos os sentimentos que, por sua intensidade, afetam de algum modo o exercício da razão.

Conforme esse raciocínio, se a paixão tende a nos dominar, a razão pode, por outro lado, ser mobilizada para controlar a paixão. É o caso, quando ocorre na alma um conflito entre paixão e razão, um conflito entre o que se deseja e o que se considera certo fazer. É o caso de Medeia.

Medeia não diz que uma de suas paixões é mais forte do que a outra: a paixão da vin-gança e a paixão do amor materno. Mas sim que a paixão da vingança é mais forte que suas reflexões, mais forte do que aqui-lo que ela delibera racionalmente como o mais correto a fazer. O conflito entre razão e paixão se dá, no caso de Medeia, no mo-mento da passagem da paixão para a ação, quando resultará da paixão um determina-do ato – manter em vida os filhos ou não.

Porém o conflito já começa no embate entre sentimentos opostos. Aqui, a razão não exclui os sentimentos, ela se apresenta como uma determinada maneira de lidar com os sentimentos, escolhendo aqueles cujas ações correspondentes são aceitá-veis. Mas isso significa justamente buscar o controle sobre a paixão da vingança, que é mais imperiosa, no caso de Medeia, que o sentimento do amor materno.

O conflito de Medeia, o conflito entre paixão e razão explica por que muitas ve-zes o ser humano deixa de exercitar ou seguir sua razão. Ele deixa de fazer o que é racionalmente correto e aceitável, e a paixão leva a melhor. A própria Medeia sabe que seu ato é irracional, que vai con-tra o que ela mesma considera certo fa-

Michael Douglas em Um dia de fúria (Direção de J. Schumacker. EUA: 1993). O filme narra a história de um desempregado que perde a cabeça e dá vazão à sua raiva diante de todos que cruzam seu caminho.

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zer. Ela sabe que o que está em jogo é um crime terrível para os valores humanos, o assassinato dos próprios filhos. Medeia está consciente de que cometerá um cri-me. A paixão não a impede de perceber o significado de seu ato, e mesmo assim ela o executa. Nesse aspecto, não se pode dizer que a paixão a fez “perder a razão”, como quando se diz que muita raiva nos faz “perder a cabeça”.

Assim, a relação entre paixão e razão, na tragédia de Eurípedes, não é uma relação de exclusão total, do tipo: onde há uma, não há outra. A razão simplesmente cede à paixão por uma questão de força. Ninguém pode dizer que Medeia não estava consciente do significado de seus atos. No entanto, sua racionalidade não se exerceu por conta da potência da paixão.

“Perder a razão”Outra maneira de pensar a relação en-

tre paixão e razão é supor que, dada uma paixão extrema, a razão simplesmente se apaga, como nas expressões “perder a ca-beça” ou “perder a razão”. Mas, se a razão se apaga, como se tivesse sido “desligada”, como é possível responsabilizar alguém por seus atos “apaixonados”, os que são co-metidos por paixão? Somos responsáveis pela paixão, mesmo quando não há razão?

O código penal brasileiro, assim como o de muitos outros países, considera que a paixão não exime de culpa o crimino-so. Se um crime foi cometido por causa de uma paixão, ainda assim quem o co-meteu deve responder por ele. “Respon-der por seu crime”, do ponto de vista da lei, significa receber uma pena, que varia conforme a gravidade do ato cometido. Por outro lado, o mesmo Código Penal Brasileiro diz o seguinte:

“Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...]

III – ter o agente: [...]c) cometido o crime sob coação a

que podia resistir, ou em cumprimento

de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” (Código Penal Brasileiro <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>, acesso em 18 de feveiro de 2016. A redação do item 3 do Artigo 65 é dada pela Lei 7.209 de 11/7/1984. Grifo nosso)

Por muito tempo, esse artigo do Códi-go Penal foi utilizado nos tribunais para ate nuar a pena para os chamados “crimes passionais”, crimes que a defesa dos réus

Infelizmente, a vio-lência contra a mulher permanece sendo um fenômeno recorrente em nossa sociedade. No entanto, tornou-se bem menos comum nos depararmos com decisões judiciais que eximem de responsa-bilidade os indivíduos que as praticam sob a alegação de que agi-ram em “defesa da honra”. Houve uma mudança tanto nos costumes, quanto na interpretação dos fatos por parte do poder judiciário, levando à convic-ção de que o bem estar, a segurança e a vida são direitos que estão muito acima da “defesa da honra”.

A Lei Maria da Penha, aprovada pelo Con-gresso Nacional em 2006, exprime essas mu-danças. Na Unidade Espírito e letra, módulo “Mudar a ‘letra’ para manter o ‘espírito’”, dis-cute-se um exemplo de nova interpretação jurídica em face de mudanças nos costumes: o estatuto da união estável.

Cartaz português de

campanha contra a

violência da mulher.

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nho nessa imagem?

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alegava terem sido cometidos sob fortes paixões. Isso ocorreu, em especial, em ca-sos nos quais homens, alegando terem sido feridos em sua “honra”, cometeram crimes contra suas esposas ou companhei-ras. Graças à mobilização da sociedade ci-vil, sobretudo do movimento feminista, mostrou-se que esse tipo de interpretação dos fatos acobertava uma violência injusti-ficável contra os direitos da mulher.

Entre os juristas, ainda há muita dis-cussão sobre o que significa exatamente “violenta emoção” e “ato injusto da víti-ma”. Interessa-nos, sobretudo, o fato de que a “violenta emoção” é um elemento que atenua a pena, reduzindo-a. A explica-ção para isso é que o agente não estaria em condições de medir seus atos, não estaria em condições de exercer sua racionalidade e, por isso, não estaria inteiramente cons-ciente de seus atos.

Nesse caso – ao contrário de Medeia, em que a razão cede à paixão –, a razão como que teria sido eliminada diante da paixão, da emoção violenta. Medeia, a mulher traída, provavelmente não aceitaria tal ar-

gumento, pois, mesmo tomada por uma paixão violenta, foi bem capaz de discernir a qualidade de seu ato.

São duas maneiras diferentes de ver a relação conflituosa entre a paixão e a razão. No decorrer desta Unidade, você poderá observar que essas maneiras de entender a relação entre a paixão e a ra-zão não são nem um pouco estranhas à filosofia. Ao contrário, elas são tratadas de maneira qualificada pelos filósofos. Para al-guns, sofrer a influência de paixões é algo natural do ser humano, e isso implica uma ação da razão sobre as paixões, para que fi-quem sob controle.

Para outros filósofos, ao contrário, as paixões são como elementos estranhos presentes na alma humana e que, portan-to, devem ser enfraquecidas ao máximo ou mesmo extirpadas dela. Nesse caso, as paixões são vistas quase como uma doença. É sobre essa última concepção que se apoiam muitos advogados no processo de julgamento de atos passionais violentos por parte de seus clientes, pleiteando a re-dução das penas. Pois – argumentam eles – se a paixão é quase uma doença, como alguém poderia ser inteiramente respon-sabilizado pelos atos provocados por ela?

Paixão, virtude e loucura Mesmo admitindo-se que a paixão

seja uma espécie de patologia, de loucu-ra – apenas isso bastaria para condená-la completamente?

Essa pergunta tem endereço certo. Você provavelmente já ouviu falar de Dom Quixote, o personagem criado por Miguel de Cervantes (1547-1616). Quixote é apaixonado por livros de cavalaria a tal ponto, que passa a interpretar o mundo em que vive como se fosse um romance de cavalaria. Assim, sua paixão tem por consequência a perda do juízo. Contudo, a despeito de sua loucura, Quixote revela possuir um excelente caráter. Você dirá: sim, um louco pode ser um ótimo sujei-to. Mas a coisa é mais complicada. Lendo

O escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini (1922-

1975) foi encontrado morto numa praia perto de

Roma. A imprensa e a sociedade italianas viveram

um intenso debate: seria um crime passional? Anos

depois, considerou-se que essa hipótese visava

encobrir um crime com motivações políticas.

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o romance de Cervantes, logo nos damos conta de que, a rigor, não há como sepa-rar a nobreza de caráter de Quixote de sua loucura, de sua paixão pelos ideais de ca-valaria e, por fim, pelo seu desejo de agir como se fosse um cavaleiro.

Também no caso de Medeia, embora de modo indireto, a paixão se vincula ao prazer, o prazer de se vingar de Jasão. Antes disso, sua paixão de ódio é marcada pelo desprazer, pelo sofrimento de se ver traída. Dom Quixote, por sua vez, apesar de passar por dezenas de sofrimentos fí-sicos, vive em constante prazer. Tal é seu prazer, que a imaginação sempre é guiada para ele: tudo se torna ocasião para ser um nobre cavaleiro, todos os motivos da realidade, tal como ela é, são transfi-gurados para que o ideal persista. Nesse sentido, o mundo ideal de Dom Quixote também tem uma lógica interna, uma ló-gica da ilusão.

No entanto, independentemente do ponto a que chega Dom Quixote, sua pai-xão se vincula ao prazer como qualquer paixão. Pelo menos, essa é uma caracte-

rística muito frequentemente associada ao conceito de paixão. Para muitos filó-sofos, não é possível pensar a paixão sem os sentimentos de prazer e desprazer. Talvez seja este o motivo por que a razão, como capacidade de conhecer a verdade e de agir de maneira boa, tem dificuldades diante das paixões. Associadas com sofri-mento ou com prazer, elas se impõem a toda força, pois a dor perturba e o prazer produz bem-estar.

Vamos agora fixar alguns resultados dessas considerações sobre razão e pai-xão. Vimos que a razão é há muito tem-po classificada como uma das caracterís-ticas que definem o ser humano. Porém, dado que o ser humano pode agir e pen-sar de maneira irracional, essa caracterís-tica significa, antes de tudo, uma certa faculdade, uma certa capacidade de agir e pensar, que nem sempre está em com-pleta atividade.

Enquanto capacidade, a razão às vezes não se exerce. Vimos então que as pai-xões humanas podem ser um dos prin-cipais motivos para isso, já que suas exi-gências podem não estar de acordo com a racionalidade e que são suficientemente fortes para superar a razão.

As paixões podem afetar a razão em pelo menos dois sentidos: impedindo que ela se exerça na escolha da ação mais cor-reta, considerada boa, ou impedindo que ela exerça sua capacidade de conhecer as coisas como são, fazendo com que o ser humano crie ilusões a respeito do mundo e de si mesmo.

Dessa maneira, a razão agrupa facul-dades que podem se exercitar de maneira divergente: é possível que um indivíduo aja de maneira correta e seja, no entanto, incapaz de conhecer a realidade; como, inversamente, é possível que ele conheça a realidade ao redor de si mesmo, mas aja de maneira incorreta.

Por fim, vimos que a paixão está liga-da a sentimentos de prazer e desprazer, e talvez tire daí sua força sobre a razão.

Dom Quixote, chamado “o cavaleiro da

triste figura”, e Sancho Pança, seu fiel escu-

deiro, são célebres criações de Miguel de

Cervantes (1547-1616).

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Medeia versus Antígona

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

Formem uma equipe contendo de três a cinco membros. Discutam em aula a relação entre razão e paixão, com atenção especial ao caso de Me-deia, na tragédia de Eurípedes. Para tornar essa discussão mais qualificada, comparem a conduta de Medeia com a conduta da protagonista de outra obra muito significativa do teatro grego: An-tígona, de Sófocles (496-406 a.C.).

É uma tragédia que traz a história de outra mulher, cujo nome dá título também à peça. Antígona se recusa a acatar a ordem do rei de Tebas, seu tio Creonte, que não fosse enterrado o corpo de Polinices, irmão dela. Mor-to em combate, Polinices havia lutado ao lado dos inimigos de Tebas. Por isso, quem desacatasse a ordem, cuidando dos funerais de Polinices, seria punido com a morte.

Era uma forma horrível de desonra, pelos costumes da época, não ser se-pultado e acabar devorado pelos abu-tres. Antígona desobedece à ordem de Creonte e é descoberta. O trecho a se-guir apresenta o encontro de Antígona e Creonte, depois de ela ser capturada por um dos guardas do reino.

“Creonte: E você aí, deixando pender a cabeça para o chão, diga: não nega ter cometido isso?

Antígona: Decerto não desminto e o afirmo.

Creonte: [...] Você sabia do decreto que proibia fazê-lo?

Antígona: Sabia. Como não havia de saber? Estava claro para todos.

Creonte: E ainda assim teve a audácia de vio-lar as leis?

Antígona: Por mim, ora, com certeza não foi Zeus quem determinou isso – nem foi a Justiça, próxima dos deuses subterrâneos, quem orde-nou essas leis para os homens. Não vejo como o decreto de um mortal como você teria força para escapar às leis imutáveis, não escritas dos deu-ses. Ora, não é de hoje nem de ontem que elas vigoram, mas sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Decerto eu é que não seria condenada perante os deuses, por temer as intenções de al-gum mortal. Bem sabia que eu havia de morrer, com ou sem o seu decreto. Mas se vou tombar antes da minha hora, disso só tiro proveito. Pois, para alguém como eu que vive cercada de tantos males, como a morte não haveria de ser um be-nefício? E daí, dor nenhuma. De outro lado, se eu tivesse deixado jazer insepulto o corpo que pro-veio de minha mãe, isso é que seria doloroso. A você, eu devo parecer uma louca. Mais louco, po-rém, é quem louca me considera.” (Sófocles, An-tígona, versos 441-470. Tradução nossa. Edição de referência: Antigone. Mark Griffith [ed.]. Cambridge: Cambridge University Press, 1999)

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Virtude e paixão

É muito comum que uma ação boa, um comportamento bom seja chamado de “racional”, e que o inverso disso, uma ação má, um comportamento mau seja chamado de “irracional”. Esses valores, “bom” e “mau”, e seus comportamentos correspondentes, são um assunto im-portante da filosofia moral. Um compor-tamento bom, digno de ser louvado, é tradicionalmente chamado de “virtude”, e um comportamento sistematicamente mau é chamado, por sua vez, de “vício”. Assim, é muito comum dizer que uma pessoa virtuosa é uma pessoa racional, pois sua razão a faria agir e se comportar de maneira boa.

A seguir, você lerá a passagem do livro Ética a Nicômaco, de Aristóteles[+] (384-322 a.C.), em que se discute o que vem a ser, para esse filósofo, a virtude, e qual seria a relação desta com as paixões na alma humana. Antes de iniciar a leitu-ra, saiba que “alma”, no vocabulário de Aristóteles, corresponde ao termo grego “psykhé” e significa algo muito mais pró-ximo do que compreendemos por “men-te” do que por “espírito”.

“Consideremos então o que é a vir-tude. Uma vez que na alma se situam três tipos de coisas – paixões, faculda-des e disposições de caráter – a virtude deve pertencer a uma delas.

Entendo como sendo paixões os sentimentos que habitualmente são acompanhados de prazer ou dor: os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a rivalidade, a compaixão. Con-sidero como sendo faculdades aquilo graças a que se diz que somos capazes de sentir tudo isso, a capacidade de nos irarmos, de magoar-nos ou compade-cer-nos. E considero disposições de ca-ráter as coisas graças às quais a atitude

• Conduzam a discussão em aula a partir de duas questões:

1) Vocês diriam que a conduta de Antígona é mais razoável do que a de Medeia? Se sim, com base no que defenderiam essa afirma-ção? Definam o que seria “conduta razoável”: aquela apoiada em argumentos? Se sim, iden-tifiquem, no texto de Sófocles, os elementos que atestam que Antígona justifica seus atos.

2) Vocês classificariam a conduta de Medeia como sendo completamente irracional? Caso tomem esta direção, vocês terão de solucionar um problema. Medeia planeja sua vingança. Isso significa que ela calcula seus atos. E calcular é si-nônimo de raciocinar, de utilizar a razão. Logo, Medeia parece fazer um uso da razão, ainda que se trate (por mais estranho que isso possa pare-cer) de um uso irracional da razão! Identifiquem, na literatura ou na vida real, outros exemplos de condutas como essa. Então procurem caracteri-zar o que esses casos possuem em comum, em contraste com o caso de Antígona.

• Após o debate em equipe, exponham os resultados de forma sucinta aos demais cole-gas, em forma de seminário.

A obra teatral de Eurípedes

ganhou inúmeras adaptações e

ainda hoje é encenada nos palcos

do mundo. (Medeia. Companhia

NBP Produções, 13/05/2010.

Teatro Guaíra, Curitiba, PR).

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que assumimos diante das paixões é boa ou má. Por exemplo, diante da có-lera, nossa atitude é má, se a sentimos de forma violenta ou excessivamente fraca. Boa, porém, se a sentimos de forma moderada. E assim também no que concerne às demais paixões.

Nem as virtudes, nem os vícios são paixões, já que ninguém afirma que somos bons ou maus por causa de nos-sas paixões, mas por causa de virtudes ou vícios. Ninguém é louvado ou cen-surado devido às paixões que possui [...], mas pelas suas virtudes e vícios recebe louvores e censuras efetivas.

Em contrapartida, não está em nos-sa escolha sentir cólera ou medo. Já as virtudes são tipos de escolha, ou envol-vem escolha. Acrescente-se que com re-lação às paixões se diz que somos movi-dos, já com relação às virtudes e aos ví-cios não se diz que somos movidos, mas que possuímos tal ou tal disposição.

Por isso também, virtudes não são faculdades, já que ninguém é consi-derado bom ou mau, nem louvado ou censurado apenas por ser capaz de sentir paixões. Dispomos das facul-

dades que temos por natureza. Entre-tanto, ninguém se torna bom ou mau por natureza [...].

Logo, uma vez que as virtudes não são nem paixões, nem faculdades, só resta uma possibilidade: que sejam disposições de caráter” (Aristóteles, Éti-ca a Nicômaco. Livro II, cap. 5 [1105b]. Tradução nossa)

As paixões nos seres humanosVejamos em que esse trecho de Ética

a Nicômaco nos esclarece sobre a posição de Aristóteles a respeito do par “razão” e “paixão”. Note que Aristóteles busca dar uma primeira definição do que é virtude, aquilo que torna um ser humano bom e digno de ser elogiado em algum aspecto.

Como você pode perceber, ele conclui que a virtude, assim como seu oposto, o vício, é antes de tudo uma disposição de caráter. Para chegar a essa conclusão, ele faz uma enumeração das coisas que se apresentam no interior da alma, e em seguida busca eliminar aquelas que não podem ser chamadas de virtude.

As três coisas que se encontram na alma são as paixões, as faculdades, ou ca-

Estudiosos reconhecem na formação (paideía) o valor de base dos gregos antigos. Mus

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pacidades de sentir as paixões, e as dis-posições de caráter. Aristóteles elimina as paixões e as faculdades, restando ape-nas as disposições de caráter. Vejamos, agora, as razões por que ele elimina as paixões e as faculdades.

Primeiramente, em relação às paixões, elas são definidas, de modo geral, como sentimentos acompanhados de prazer e dor. A alegria é um sentimento que nos dá prazer, o medo, por sua vez, geral-mente é sentido com sofrimento. Quem sente medo sente também a apreensão de que poderá ser ma-chucado ou destruído. A dor ou o sofrimento pode, por outro lado, ser apenas o incômo-do, a insatisfação, a perturbação, a infeli-cidade, causados, por exemplo, pela inveja ou pelo ódio. Igual-mente, o prazer pode ser apenas um senti-mento de satisfação.

Você pode notar, desde já, que Aristó-teles entende por pai-xões um amplo conjunto de sentimentos: todos aqueles que geram prazer e dor. Não se trata, porém, de prazer e dor ime-diatamente ligados ao corpo, como aque-la dor causada por um corte no dedo ou o prazer causado por um prato suculento.

Além disso, sua concepção de paixão não corresponde à ideia, bastante comum entre nós, de que as paixões são apenas os sentimentos avassaladores, que arras-tam as pessoas de lá para cá, como é co-mum encontrar em filmes, telenovelas e letras de música. Para Aristóteles, basta que o sentimento produza na mente al-guma sensação de prazer ou de dor, para que seja chamado paixão.

Por outro lado, Aristóteles sustenta que as paixões são diferentes das facul-

dades, das capacidades de sentir paixões. Essa diferença parece um pouco estranha à primeira vista. Por que sentir paixões é diferente de ser capaz de sentir paixões? Certamente, não sentiríamos ódio ou alegria se não houvesse algo em nós ca-paz de os sentir. Porém, o fato de termos tal capacidade não significa que devemos sentir sempre essa ou aquela paixão.

É possível imaginar uma pessoa que nunca tenha sentido ódio ou in-veja, mas é muito difícil imaginar uma

pessoa que não seja capaz de sentir ódio ou inveja. Entre a ca-pacidade de sentir e o próprio sentimen-to, há uma diferença. É essa diferença que distingue as paixões e a faculdade de sentir paixões, conforme o texto de Aristóteles.

Dada a definição de paixões como sen-timentos acompanha-dos de prazer e dor, Aristóteles argumenta que as virtudes e seus opostos, os vícios, não

podem ser confundidos com as paixões. E por que não? Ele nos oferece três razões:

1. Ninguém pode ser chamado bom ou mau, ser louvado ou censurado, por causa das paixões que sente. Ao contrário, alguém é chamado bom ou mau devido às suas virtu-des ou vícios.

2. Ninguém sente paixões por escolha, de maneira deliberada, enquanto as virtudes (e também os vícios) en-volvem escolha deliberada.

3. Pode-se dizer que as paixões moti-vam os seres humanos, mas não se pode dizer que as virtudes e os vícios o façam; as paixões nos afetam, mas

Para Aristóteles, basta que o

sentimento produza na mente alguma

sensação de prazer ou de dor para

que seja chamado paixão.

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não somos afetados pelas virtudes; estas fazem com que tenhamos uma disposição, uma certa atitude.

Quanto à diferença entre “virtude” e “faculdade de sentir paixão”, Aris-tóteles repete a primeira explicação relacionada à diferença entre virtude e paixão, mas acrescenta uma outra, que é importante:

4. As faculdades são dadas por natu-reza, mas ninguém se torna bom ou mau por natureza.

Essas quatro razões estão relacionadas entre si e, juntas, nos dão uma imagem mais ampla do que Aristóteles entende por “paixão”, e, com isso, por “virtude”. Em primeiro lugar, trata-se de evitar que apliquemos, para as paixões, as qualida-des de “bom” e “mau”. Ninguém é bom ou mau porque sente essa ou aquela paixão. Isso significa que as paixões não são boas nem más nelas mesmas. E por que não? A segunda razão explica de certa forma a primeira: porque ninguém pode escolher ter essa ou aquela paixão. Ninguém pode intencionalmente querer ter essa ou aque-la paixão. Ela simplesmente se apresenta na mente humana sob determinadas cir-cunstâncias. A presença de um animal fe-

roz gera medo na mente. Ora, só podemos chamar “bom” e “mau”

aquilo que envolve uma certa escolha. As paixões, que não podem ser escolhidas pela simples vontade do ser humano, não devem ser chamadas boas e más, e nem o ser humano pode ser chamado bom e mau porque as sente. Se as paixões não são fru-tos da escolha, então é preciso dizer que elas não são provocadas pela mente ou alma humana. São as paixões que provo-cam um determinado movimento de alma (o prazer, a dor), somos movidos em nossa alma pelas paixões. Dessa maneira, as pai-xões indicam uma passividade da mente ou da alma, uma vez que elas não são provoca-das por nós mesmos; nós nos limitamos a senti-las, não as criamos.

A última observação (4) estabelece a diferença entre sentir a paixão, de um lado, e ter virtude, de outro. Paixões são naturais, assim como as faculdades em nosso poder que nos levam a sentir paixões. Mas, embora sejam naturais, as paixões não estão desde sempre presen-tes na natureza humana, como é o caso das faculdades.

Tintoretto (1518-1594) foi um dos mais conhe-

cidos pintores do estilo maneirista (Alegoria da

felicidade, óleo sb/ tela, c. 1564) .

Segundo Aristóteles, em nossa alma, só as pai-

xões nos movem (Franz Xaver Messerschmidt

[1736-1783], O arquivilão, bronze, 1770).

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As paixões dependem das circunstân-cias. Se não há motivo (real ou imaginário) para ter medo, ninguém sente medo. Mas a capacidade de sentir medo está inscrita na natureza humana, e assim o próprio medo é um fenômeno natural. Porém, se as pai xões são naturais, se não são escolhi-das, se não são causadas por nós mesmos, não se pode dizer que elas sejam boas ou más. Ninguém se torna bom ou mau por natureza.

Dessa maneira, se as virtudes e os vícios são tudo aquilo que pode ser chamado bom e mau, e se as paixões e as faculdades de senti-las não podem ser assim chamadas, então só resta dizer que as virtudes e os vícios são disposições de caráter. Mas o que sig-nifica essa expressão: “disposição de caráter”? Justamente aquilo que nos faz ter uma deter-minada atitude em rela-ção às paixões sentidas. O exemplo de Aristóte-les é claro: é mau sentir cólera de maneira vio-lenta ou muito fraca, e bom senti-la de manei-ra moderada. Não esco-lhemos ter as paixões, mas podemos, isto sim, escolher o modo de senti-las. Esse modo pode ser muito intenso, pouco intenso, ou moderadamente intenso.

Logo, as disposições de caráter são aquilo que nos permite lidar de maneira boa ou má com as paixões. As virtudes e os vícios são justamente essa maneira de lidar com as paixões. A consequência é evidente: as virtudes são o modo mode-rado, o ponto de equilíbrio entre um ex-cesso e uma falta, enquanto os vícios são os modos excessivos ou deficientes. Por exemplo, considera-se covarde alguém que sente medo e foge de tudo. Aristóte-les diria ser alguém que possui o vício da

covardia por excesso de medo. Se, por ou-tro lado, alguém, em vez de sentir medo, resolve enfrentar tudo e qualquer coisa, incorre no vício contrário: é um temerá-rio, é audacioso demais. Tem o vício da te-meridade por escassez de medo. A virtude da coragem reside no meio termo desses dois extremos. Ser corajoso exclui a covar-dia, mas também exclui a temeridade. É a maneira equilibrada de lidar com o medo.

A educação, o hábito e a virtude Porém, você pode estar se pergun-

tando: se as virtudes e vícios são bons e maus, e se ninguém é naturalmente bom ou mau, como elas, enquanto disposições

de caráter, aparecem na nossa alma? Como nos tornamos virtuo-sos? O termo “dispo-sição” significa uma certa propensão a lidar com as paixões de uma maneira ou de outra, de tal modo que ela se torne uma caracterís-tica de nossa maneira de ser. Essa propen-são, mais ou menos estável, deve ser criada e exercitada por nós mesmos, de modo que, diante de uma paixão, tendamos a lidar com

elas dessa ou daquela maneira. Assim, conforme Aristóteles, é sobretudo o hábi-to que vai permitir criar uma disposição de caráter e, portanto, uma determinada virtude ou vício.

Esse hábito, por sua vez, é desenvolvi-do pela educação e pela disciplina. Uma boa educação nos leva a querer ser corajo-sos e enfrentar os perigos de maneira pru-dente, e com isso criamos em nós mesmos a virtude da coragem, o que por sua vez nos leva de novo a lidar com o medo de maneira equilibrada. O hábito cria a virtu-de, a virtude fortalece o hábito.

Ninguém pode ser louvado ou censurado

por causa das paixões que sente.

Ao contrário, alguém é chamado bom ou mau devido às suas

virtudes ou vícios.

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No entanto, nada disso acontece se não houver escolhas, e as escolhas liga-das às virtudes são escolhas baseadas em pensamentos e reflexões. Dito de outro modo, são baseadas na razão humana. Dessa maneira, as virtudes estão intima-mente relacionadas com a racionalidade. Um homem virtuoso é um homem ra-cional: um homem que escuta sua razão. A racionalidade do homem virtuoso se

apresenta, por outro lado, na maneira como ele lida com as paixões. Ele não busca evitá-las. Isso seria impossível, diria Aristóteles. Ele busca moderá-las, agindo de maneira equilibrada.

Assim, a atitude ética racional – a virtude – não se opõe à paixão. Antes, ela é fruto da educação da mente ou alma para lidar de maneira equilibrada com as paixões.

Desenvolvimento individual por escrito

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um importante filósofo alemão, que riva-lizava com Georg W. F. Hegel (1770-1831) e exerceu influência sobre autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). Em sua obra mais im-portante, O mundo como vontade e como representação (Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005), Schopenhauer tece considerações significativas sobre a ética, que podem servir como elemento de com-paração com a posição de Aristóteles.

Segundo Schopenhauer, a ética dos gregos, com exceção de Platão, é uma éti-ca que busca uma vida feliz, ao passo que a ética dos cristãos e a ética dos hindus são em geral éticas que buscam a renún-cia aos desejos, exercitando até mesmo, em algumas práticas ascéticas, a renúncia à vontade de querer viver.

Schopenhauer prefere as duas últi-mas àquela dos gregos, em que se des-taca a aristotélica. Para Schopenhauer, a satisfação, a felicidade, é sempre algo negativo, equivalendo à ausência de so-frimento. A realização dos desejos é, no fundo, a supressão momentânea do so-frimento que causou esses desejos. Ora, se é assim, então não podemos nos dei-

xar enganar pelas alegrias e pelos praze-res. Em vez de buscar essas alegrias, é preciso renunciar à vontade de viver que está na base de todo sofrimento. Por isso, Schopenhauer valoriza as técnicas hinduístas e cristãs de ascese, isto é, de negação dos prazeres.

Ao contrário da ética aristotélica, Scho-penhauer não defende uma moderação das paixões e dos desejos. Antes, ele pro-põe agirmos de tal modo que possamos nos tornar indiferentes às alegrias (sem-pre falsas) que a realização dos desejos proporciona. O homem virtuoso, afirma Schopenhauer, “cessa de querer algo, evi-ta atar a sua vontade a alguma coisa, pro-cura estabelecer em si a grande indiferen-ça por tudo” (A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, pp. 482-483).

• Tendo em vista esses dois pontos de vista tão distintos sobre a ética, elabore uma redação de aproximadamente uma ou duas páginas, procurando desenvolver seu próprio ponto de vista sobre o assun-to: a vida feliz reside em saber ordenar as paixões pela razão (Aristóteles) ou em su-primir as paixões (Schopenhauer)? Ou nem uma, nem outra dessas opções? Ou ambas, se é que podem ser conciliadas?

Schopenhauer, crítico de Aristóteles

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A rejeição das paixões

Há muitas maneiras de se pensar a relação entre a razão e a paixão. Para Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), autor do texto a seguir, a paixão está ligada intimamente aos vícios humanos. Desse modo, ela se opõe à virtude e à razão.

“Em meu entender, o que se verifica no homem de bem não é uma atenua-ção dos defeitos, mas sim a sua comple-ta ausência; os seus defeitos não devem ser diminutos, devem ser nulos, pois se possuir alguns, eles não tardarão a au-mentar e mesmo a tomar conta dele. O mesmo sucede com a catarata: quando já completamente desenvolvida oca-siona a cegueira, mas mesmo ainda no início já basta para dificultar a visão. [...] Seria preferível a situação de um

homem que tivesse um único vício bem declarado do que a de quem os tem to-dos, embora atenuados. De resto, são irrelevantes as proporções de uma pai-xão: por pequena que seja, recusa-se à obediência aos ditames da razão. Tal como nenhum animal é capaz de obede-cer à razão – seja animal selvagem, seja doméstico e manso (já que por natureza os animais são surdos aos conselhos) – assim também as paixões não acatam nem escutam avisos, por mais reduzi-das que sejam. Os tigres e leões nunca perdem a sua ferocidade, apenas ocasio-nalmente a atenuam, e quando menos se espera a sua violência domada pode exasperar-se de novo. Os vícios não se dominam com boas maneiras. Aliás, com o auxílio da razão, as paixões nem

SchopenhauerArthur Schopenhauer (1788-

1860) possui uma biografia com

algumas curiosidades. Quando

tinha dezoito anos, perdeu o pai

e acompanhou sua mãe em Wei-

mar, cidade em que viveu du-

rante muitos anos J. W. Goethe

(1749-1832), o grande poeta do

classicismo alemão, que passou

a frequentar a casa de sua famí-

lia. Schopenhauer faz seus estu-

dos de literatura clássica e filosofia em Berlim.

Em 1819, publica sua obra mais importante,

O mundo como vontade e como representação,

na qual polemiza com a filosofia de Immanuel

Kant (1724-1804). Passa a lecionar na Universi-

dade de Berlim, tornando-se colega de Georg

W. F. Hegel (1770-1831), que atraía nessa época

todas as atenções. Schopenhauer marca suas

aulas nos mesmos horários das aulas de Hegel,

para tirar-lhe os estudantes, mas é inútil: sua

sala fica vazia, a de Hegel permanece cheia. A

obra de A. Schopenhauer tornou-se decisiva

após sua morte, para dois

pensadores atuantes no

fim do século XIX e início

do século XX, de extraor-

dinária relevância no pen-

samento contemporâneo:

Nietz sche (1844-1900) e

Freud (1856-1939).

Dispomos de boas tra-

duções das obras princi-

pais de Schopenhauer no

Brasil. Além da edição ci tada de O mundo como

vontade e como representação (Unesp, 2005),

você pode consultar:

A. Schopenhauer, Fragmentos para a his-

tória da filosofia. Tradução: Maria L. Caciolla.

São Paulo: Iluminuras, 2003.

A. Schopenhauer, A arte de se fazer respei-

tar. Tradução: Maria L. Caciolla. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

A. Schopenhauer, Sobre o fundamento da

moral. Tradução: Maria L. Caciolla. São Paulo:

Martins Fontes, 1995.

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sequer despertam; e se despertam con-trariando a razão, persistirão nas mes-mas condições. É bem mais fácil impedir que elas se originem do que dominar de-pois os seus ardores!

Consequentemente, essa atenua-ção dos vícios é não só falsa como inú-til; devemos considerá-la do mesmo

modo como se nos dissessem que se deve ter moderação na loucura ou na doença. A virtude deve ocupar toda a alma, pois os defeitos da alma não são susceptíveis de moderação; é mais fácil erradicá-los do que controlá-los. Podemos duvidar de que aqueles vícios da mente humana mais enraizados e fortes a que chamamos ‘doenças do es-pírito’ – tais como a avareza, a cruel-dade, a falta de autocontrole – sejam imoderados? Logo imoderadas são também as paixões, já que se parte sempre destas para chegar àqueles. [...] Se não estiver na nossa mão a pos-sibilidade de as paixões existirem ou não, igualmente não estará o seu grau de intensidade; se permitirmos o seu aparecimento, elas crescerão em pro-porção com as suas causas, e tornar--se-ão tão intensas quanto puderem. Acrescenta-se ainda que todos os de-feitos, por diminutos que sejam, têm tendência a aumentar; tudo quanto é nocivo ignora a justa medida; embora leves a princípio, as forças da doença vão-se insinuando em nós, até que um ligeiro acréscimo do mal abate os nossos corpos minados.” (Lúcio Aneu Sêneca, Cartas a Lucílio. Epístola 85.

Francisco Goya (1746-1828), O sono da

razão produz monstros (gravura, 1787/98.

Série “Caprichos”).

Sêneca e o estoicismo antigo

Sêneca, ao lado de Cícero

(106-43 a.C.) e Marco Aurélio

(121-180 d.C.), destaca-se como

filósofo e político dos mais pre-

eminentes no Império romano.

Sêneca foi leitor do estoicismo

grego, que aprofundou e divul-

gou na língua latina, tornando-se

uma das principais fontes dessa

vertente muito tempo depois,

na época do Renascimento. Em

seus escritos, Sêneca propõe como modelo de

virtude o indivíduo capaz de atingir a “ataraxia”,

isto é, a paz da alma ou da mente, por meio do

conhecimento de nosso lugar

na ordem universal das coisas

– que ele designa o “cosmos”.

Dentre suas obras mais conhe-

cidas, você pode consultar:

Sobre a brevidade da vida.

Tradução: Gabriel N. Macedo.

Porto Alegre: L&PM, 2006.

Da vida feliz. Tradução: João

C. Cabral Mendonça. São Paulo:

Martins Fontes, 2009.

Da tranquilidade da alma. Tradução:

Lúcia Rebello e Itanajara Neves. Porto Ale-

gre: L&PM, 2009.

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Tradução de José António Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pp. 644-646)

Sêneca, crítico de AristótelesAo ler a passagem de Sêneca, você

deve ter notado que o autor se contra-põe à ideia de que devemos moderar ou atenuar as paixões. Portanto, ele critica o conceito de virtude de Aristóteles[+] e dos seus seguidores, que eram chamados de peripatéticos.

Em vez desse conceito de virtude, ele nos propõe um outro bem diferente: o homem de bem, o homem virtuoso, é aquele que não tem nenhum defeito, isso significa dizer que ele não deve ter nenhuma paixão, pois a paixão está na origem dos vícios, e os vícios, por sua vez, são doenças da alma.

Essa crítica se baseia em uma visão bem diferente daquela de Aristóteles a respeito das paixões. Para Aristóteles, as paixões seriam naturais do ser humano, e não coincidem nem com as virtudes nem com os vícios. Elas nem mesmo po-deriam estar na origem dos vícios, já que estes são disposições de caráter que en-volvem escolhas do ser humano.

Assim, se em Aristóteles a virtude e o vício são definidos pela maneira como nos relacionamos com as paixões, em Sêne-ca há uma total separação entre virtude e paixão. Para este último, “virtude” implica a exclusão de toda paixão, porque toda pai-xão é o começo do vício. A oposição entre virtude e vício, existente em Aristóteles, é substituída, em Sêneca, por uma oposição entre virtude e paixão.

Você pode perceber, no texto citado, que Sêneca nos oferece quatro argumen-tos segundo os quais não seria possível nem desejável tentar moderar as paixões. Vamos examiná-los um a um:

1. Se aceitamos que as paixões possam ser fracas ou fortes, nem por isso elas são obedientes à razão. Elas se com-

param aos animais, que por natureza não são dotados de razão ou são in-capazes de ouvir conselhos racionais. Essa comparação entre as paixões e as feras não se dá por acaso. Segun-do Sêneca, as paixões são irracionais, não fazem parte da razão humana e, portanto, são de natureza contrária à natureza da razão. Sendo assim, se-ria impossível para a razão moderar verdadeiramente as paixões. Quando menos se espera, elas atacam e domi-nam a alma humana.

Porém, trata-se ainda de uma com-paração, uma analogia com os animais. Para provar que as paixões não podem ser moderadas, ele lança mão de um se-gundo argumento:

2. Os vícios mais fortes, chamados de “doenças do espírito”, como a ava-reza e a crueldade, são imoderados. Ora, as paixões estão na origem desses vícios. Logo, elas devem ser tão imoderadas quanto os vícios aos quais chegaram. Elas não pode-riam ter se tornado vícios imodera-dos se já não fossem elas mesmas imoderadas.

A escola peripatética

Como Aristóteles costumava lecionar caminhando, seus discí-pulos ficaram conhecidos como “peripatéticos”: em grego, “iti-

nerantes”, “caminhantes”. É por isso que, no curso posterior da história da filosofia, se tornou

comum encontrarmos referên-cias à filosofia aristotélica como

“peripatética”.

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No entanto, é possível pensar que não dominamos as causas das paixões, causas que estão fora de nós e que, portanto, são independentes da nossa vontade. Essa é uma suposição que estaria bem próxima daquela concepção de paixão defendida por Aristóteles. Sêneca a aceita, mas isso lhe permite levantar um terceiro argumento contra a tentativa de moderar as paixões:

3. Se não podemos evitar a existência das paixões, então não podemos controlar seu grau de intensida-de. Em outras palavras, se a causa da paixão não está sob nosso con-trole, então temos ainda menos controle sobre a intensidade que ela adquire. Ela pode se intensifi-car por conta própria, unicamente conforme sua causa.

Por fim, Sêneca acrescenta um último argumento:

4. Tudo que é nocivo não pode ter uma justa medida, uma medida equilibrada. Logo, por mais fracas

que sejam de início, as forças da doença acabam se desenvolvendo. Este último argumento está inti-mamente ligado ao segundo. As paixões são tomadas como “forças da doença” pois elas estão na ori-gem das “doenças do espírito”.

Porém, é mais fácil combater a doença no seu começo do que depois de desen-volvida. Assim, para combater os vícios, é preciso combater sua origem, as pai-xões. É preciso eliminar as paixões logo quando aparecem, porque, depois, já é tarde demais. E é tarde demais quando se pretende “atenuá-las”. Uma vez ins-taladas na alma, dificilmente se poderá moderá-las.

É possível que você se pergunte: como refrear e eliminar as paixões, mesmo em estado inicial, se suas causas não estão sob o nosso controle? A resposta de Sê-neca, como a de muitos outros que defen-diam essa compreensão de virtude e de paixão (os pensadores chamados estoicos) consiste justamente no desprezo pelas causas exteriores das paixões. Segundo essa linha de pensamento, seria preciso desprezar aquilo que suscita as paixões, como os bens materiais em relação à am-bição, e os perigos em relação ao medo. Se não dermos nenhum valor a essas coisas fora de nós, elas já não poderão suscitar as paixões.

Esse desprezo pelas coisas exteriores deve ser incondicional, do contrário elas podem tornar mais frequentes as pai-xões, as quais se convertem em vícios. Por sua vez, os vícios tendem a exagerar o valor atribuído à causa exterior, difi-cultando mais e mais o desprezo por ela. É dessa maneira que o vício atua como doença: faz atribuir um grande valor a coisas de pouco ou nenhum valor, levan-do o indivíduo a persistir no erro.

Sendo incondicional logo de início, o desprezo pela causa exterior da paixão faz dissipar a própria paixão, e a alma se livra de uma doença.

Cópia em bronze de estátua de Marco

Aurélio (121-180), imperador romano

que foi adepto do estoicismo.

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A razão a serviço das paixões

As noções de razão e paixão, que foram problematizadas no pensamento filosófico antigo, atravessaram a Idade Média e animaram a reflexão ética mo-derna. Como já ocorrera na Grécia, tam-bém na modernidade muitas vezes este par conceitual surgiu sob a forma de uma alternativa: razão versus paixões.

Uma contribuição decisiva para esse debate foi fornecida por David Hume[+] (1711-1776), célebre filósofo escocês, cuja obra se tornou muito debatida na segunda metade do século XVIII. Hume tornou-se conhecido por seus ensaios, foi historia-dor e manteve laços profundos com os intelectuais franceses que participaram da filosofia das Luzes (também designada como “Iluminismo” ou “Esclarecimento”).

Hume também é discutido em outras Unidades do livro que você tem em mãos, como Dúvida e certeza (módulo “Os li-mites da dúvida ao garantir a certeza”) e Princípio e temporalidade (módulo “A regularidade da experiência”). Aqui va-mos nos ater a um aspecto do pensamen-to de Hume: a abordagem que ele propõe ao tema “razão versus paixão”.

A posição de Hume é muito inovado-ra em relação a autores da Antiguidade, como Aristóteles[+] ou Sêneca[+]. A novi-dade é que, para Hume, a razão está a serviço das paixões. Vejamos, por partes, alguns trechos do Tratado da natureza hu-mana (1739-1740), em que Hume expõe suas principais ideias filosóficas.

Combate entre razão e paixão?Iniciemos pela leitura de um trecho do

Tratado, de Hume:

“Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando

se conformam a seus preceitos. Afir-ma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua con-duta, a pessoa deve se opor a ele até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princí-pio superior. A maior parte da filoso-fia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares, que essa suposta primazia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabili-dade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais van-tajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falácia de toda essa filoso-fia, procurarei provar, primeiramente, que a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca po-deria se opor à paixão na direção da vontade.” (Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: Daniela Danowski. São Paulo: Editora da Unesp, 2009, pp. 448-449)

Você pode notar, já no primeiro parágra-fo desse texto de David Hume, que ele tem dois objetivos, que concernem diretamen-te ao tema desta Unidade. Ele quer mostrar que não faz sentido falar em um combate entre razão e paixão e, por isso, que não faz sentido falar que a razão deve ser supe-rior à paixão, nem que a paixão deve obe-decer à razão. Com isso, Hume vai contra boa parte da filosofia moral, que trata das questões sobre as virtudes humanas, sobre o bem e o mal. Para alcançar seu duplo ob-jetivo, Hume adverte seu leitor de que irá

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mostrar que a razão não pode influenciar a vontade e que a razão não pode se opor à paixão na direção da vontade. Passemos, então, à continuação do texto de Hume.

A razão, instrumento das paixões

“É evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou pra-zer por causa de um objeto, sentimos, em consequência disso, uma emoção de aversão ou de propensão, e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa satisfação. Também é evidente que tal emoção não se limita a isso; ao contrário, faz que olhemos para todos os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efeito. É aqui, portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocínios variam, nossas ações sofrem uma variação subsequente. Mas é claro que, neste caso, o impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto. E essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse obje-to. Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos, se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferentes. Quando os próprios ob-jetos não nos afetam, sua conexão ja-mais pode lhes dar uma influência; e é claro que, como a razão não é senão a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio dela que os objetos são capazes de nos afetar.” (Hume, Trata-do da natureza humana. Tradução: D. Danowski, op. cit., p. 450)

Vamos contrapor essa postura de Hume a dois autores antigos. Para Aris-

Aqui, a razão detém e controla a fúria, repre-

sentada pelo leão. Para Hume, o que se passa

é bem o contrário (Jean-Baptiste Chapuy

[1760-1802], A razão. Gravura, 1793).

tóteles, a virtude era um modo de con-trolar, de moderar as paixões. Para Sêne-ca, a virtude excluía todas as paixões. Em ambos os casos, a virtude está ligada à razão, embora de modos diferentes.

Com seu objetivo duplo, a posição de Hume é claramente diferente daquela de Aris tóteles e de Sêneca. Afinal, se, como defende Hume, a razão não pode exercer nenhuma influência sobre a vontade, nem pode se opor às paixões, então ela não po-deria nem moderar as paixões, nem impe-dir que as paixões apareçam e direcionem a vontade. Hume também dispõe de um conceito bem diferente de razão, em com-paração com Aristóteles e Sêneca.

O que restaria, então, à razão em re-lação às paixões, segundo Hume? Ela é, e deve ser, uma escrava das paixões. Para Hume, um escravo não deve ser contrário ao senhor. Ele deve, em vez disso, servi--lo, ajudá-lo. E como a razão ajuda as pai-xões? Quando ela mostra as condições e os meios adequados para satisfazê-las.

Vamos examinar agora como ele pro-va que a razão não pode influenciar a vontade, ser o motivo de a vontade que-rer algo e agir. Hume também apresenta

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o que ele entende por paixões e o que ele entende por razão:

1. Paixões são, basicamente, as emo-ções de aversão e de propensão que sentimos quando temos perspec-tiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto. Sentimos repulsa por alguma coisa porque achamos que ela vai causar dor, e sentimos propensão ou atração por alguma coisa porque achamos que ela vai nos causar prazer.

2. Razão é capacidade de descobrir a conexão entre causa e efeito. A par-tir dessa descoberta, ela é também capaz de raciocinar: dado um objeto qualquer, inferimos que ele é causa de um outro, que seria seu efeito, ou, ao contrário, que ele é efeito de um outro, que seria sua causa.

Voltemos agora ao que Hume quer pro-var. Se a razão é uma faculdade de desco-brir relações causais e de raciocinar, como ela poderia ser o mo-tivo para agir? Nós agimos porque racio-cinamos ou raciocina-mos porque agimos? Se nós agimos porque raciocinamos, isso significa que a razão criou em nós o impul-so para agir. A razão criaria, nesse caso, algo próximo da paixão ou igual à paixão: uma aversão ou uma atração. Ao con-trário, se raciocinamos porque agimos, então o impulso para agir é anterior à razão. A resposta de Hume está na parte final do parágrafo:

3. Não temos interesse em saber qual objeto é causa e qual é efeito se for-

mos indiferentes aos objetos, isto é, se não tivermos interesse por eles. Se eles não nos afetam, não buscamos saber o que é causa e o que é efeito.

Ora, os objetos nos afetam, temos in-teresse por eles porque acreditamos que possam gerar dor ou prazer. Raciocina-mos porque os objetos nos afetam, e não o contrário (eles nos afetam porque ra-ciocinamos). Mas por que raciocinamos quando alguma coisa nos afeta? Porque precisamos saber quais são os meios que permitem ter a coisa ou repeli-la. Esses meios nos são informados pela razão, já que ela é capaz de estabelecer o que é a causa provável e o que é o efeito provável de alguma coisa.

A força das paixõesSigamos ainda um instante o raciocí-

nio de Hume, a fim de descortinar por que, ao seu ver, cabe à razão somente obede-cer às paixões:

“Nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá--lo, senão um impulso contrário; e para que esse im pulso contrá-rio pudesse alguma vez resultar da razão, esta última faculdade teria de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de causar, bem como de impe-

dir, qualquer ato da vontade. Mas se a razão não possui uma influência original, é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa efi-cácia, ou que possa manter a mente em suspenso por um instante sequer. Vemos, portanto, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão, sendo assim

Para Hume, a razão é, e deve ser, uma

escrava das paixões. Um escravo não

deve ser contrário ao senhor. Ele deve,

em vez disso, servi-lo, ajudá-lo.

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denominado apenas em um sentido impróprio. Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filo-sófica e rigorosa. A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas [...].

A princípio, o que se pode pensar sobre esse ponto é que, uma vez que nada pode ser contrário à verdade ou à razão exceto o que se refira a ela de alguma maneira, e, uma vez que so-mente os juízos de nosso entendimen-to o fazem, deve-se seguir que as pai-xões só podem ser contrárias à razão enquanto estiveram acompanhadas de algum juízo ou opinião. De acordo com esse princípio, que é tão evidente e natural, um afeto só pode ser dito contrário à razão em dois sentidos. Primeiro, quando uma paixão, como

a esperança ou o medo, a tristeza ou a alegria, o desespero ou a confiança, está fundada na suposição da existên-cia de objetos que não existem real-mente. Segundo, quando, ao agirmos movidos por uma paixão, escolhemos meios insuficientes para o fim pre-tendido, e nos enganamos em nossos juízos de causas e efeitos. Quando uma paixão não está fundada em fal-sas suposições, nem escolhe meios in-suficientes para sua finalidade, o en-tendimento não pode nem justificá-la, nem condená-la. Não é contrário à ra-zão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo. Não é contrário à razão que eu escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida. Tampouco é contrário à razão eu preferir aquilo que reconhe-ço ser para mim um bem menor a um bem maior, ou sentir uma afeição mais forte pelo primeiro que pelo segundo. Um bem trivial pode, graças a certas circunstâncias, produzir um desejo su-perior ao que resulta do prazer mais intenso e valioso.” (Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: D. Dano-wski. op. cit., pp. 450-452)

Agora você deve estar se perguntando, e com muita sensatez, se essa crença de que algo pode gerar dor ou prazer se baseia em uma relação de causa e efeito, e portanto em um raciocínio. Por exemplo, diante de uma fogueira, sabemos por experiência que o fogo pode causar dor, raciocinamos assim e nos afastamos. Não foi a razão que criou a aversão ao fogo, porque ela nos en-sina que o fogo pode ser a causa da dor? Mas Hume poderia responder a isso com uma pergunta: você nunca viu gente que adora o fogo, que gosta até mesmo de pas-sar a mão sobre ele constantemente?

Expectativas de dor e prazer são mui-to relativas, cada indivíduo tem as suas,

O que pode a razão diante da

paixão do amor? (Giorgione [1470-

1510], O cantor apaixonado. Óleo

sb/ tela, c. 1510)

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elas não se explicam. Simplesmente temos essa crença de que algo vai produzir dor ou prazer. Diante de um mesmo objeto ou pessoa, alguns dentre nós podem se sentir atraídos, porque acham que vão ter algum prazer com esse objeto ou pessoa, enquan-to outros podem sentir aversão, porque acham que vão ter algum desprazer. Trata--se muitas vezes de preferências que não podemos nem explicar, nem justificar. Há pessoas que se apaixonam por outras que nem conhecem de perto, que não sabem como são e por quem vivem suspirando.

Para Hume, portanto, somente as pai-xões podem impulsionar a vontade de agir desta ou daquela maneira. A razão pode ajudar, pode informar, com base em ra-ciocínios, o que nos aproxima ou afasta do objeto. A razão nos diz como fazer fogo, para quem gosta de fogo, e como apagar o fogo, para quem não gosta de fogo. Mas ela mesma não pode criar nem aversão nem atração pelo fogo. Note que, no tex-to citado há pouco, são as paixões que nos levam a olhar para todos os lados a fim de descobrir o que pode estar ligado ao ob-jeto, por relações de causa e efeito. Em suma, são elas que nos levam a raciocinar, porque nos levam a agir, e não o inverso. Isso significa que a razão não pode criar motivos para impelir a vontade nessa ou naquela direção. Somente as paixões são esses motivos.

A razão não pode se opor às paixõesHume mostra que a razão tampouco

pode se opor às paixões. Seu argumento está ligado ao primeiro. Se a razão não pode influenciar a vontade, ela não pode criar um impulso nela que seja contrário a algu-ma paixão. Ela não pode nem mesmo sus-pender ou retardar a mente para agir con-forme uma paixão. A única maneira seria combater a paixão com outra paixão, mas, como vimos, a razão é incapaz de criar algo idêntico ou similar a uma paixão. Se não há como se opor às paixões por meio da razão, não faz sentido falar em um combate entre

razão e paixões. Ela não influencia a vonta-de, a não ser de um modo.

Como a razão serve às paixõesNo restante do texto citado, Hume

quer mostrar fundamentalmente que a razão pode ser útil às paixões jus tamente quando mostra para a von tade quais são os meios suficientes para alcançar os ob-jetos delas. Nesse ponto, ela pode ser con-trária não às paixões, mas às opiniões, aos julgamentos errados que acompanham as paixões. Note que não se trata de nenhu-ma rebeldia da razão. Ela apenas informa à vontade que, se for o caso, aquilo que ela quer por causa de uma paixão não exis-te, e que, portanto, a paixão não pode ser satisfeita. Ou ela informa que os meios para atingir as finalidades da paixão não são suficientes e que, portanto, a paixão tampouco pode ser satisfeita.

Por exemplo, alguém crê que um ele-fante com asas existe e deseja vê-lo de perto. Cabe à razão mostrar que essa crença, essa opinião, é inteiramente falsa. Que nunca se viu e que não se tem notí-cia da existência de elefantes alados. Ou alguém quer comprar um carro vendendo sua bicicleta. A razão mostra que há uma desproporção entre a finalidade, o carro, e o

Segundo Hume, a razão não decide aquilo que nos dá

prazer ou desprazer. Ela só pode nos auxiliar a conse-

guir obter aquilo que buscamos por nossas paixões.

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meio, a venda da bicicleta. Esses exemplos são exagerados, mas o que importa aqui é o papel da razão. Ela não contraria as paixões, mas apenas suas suposições e seus cálculos.

Nenhuma preferência pode ser racionalmente justificadaO último passo da argumentação é

somente uma explicitação do que vinha antes. Você pode notar que Hume usa exemplos drásticos: não é contrário à ra-zão que eu prefira a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo, e assim por diante. Posso até mesmo es-colher algo que sei ser menos proveitoso para mim do que algo muito mais provei-toso. Com esses exemplos, Hume quer

enfatizar o que estava em jogo desde quando mostrou a incapacidade da razão em influenciar a vontade. Preferência é preferência, e não pode ser justificada ra-cionalmente. A única coisa que resta à ra-zão é mostrar que algumas preferências são irrealizáveis.

A razão nada decideVejamos, para terminar, a conclusão

de Hume:

“As consequências disso são evi-dentes. Como uma paixão não pode nunca, em nenhum sentido, ser dita contrária à razão, a não ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou

Eclipse da razão, de Horkheimer

Análise de texto e desenvolvimento indivi-dual por escrito

Pode-se concluir, do exame de Hume, que ele sustenta que a razão é um instrumento para as paixões: cabe-lhe calcular os meios exigidos para a realização de fins que ela não escolhe. Essa concep-ção, que foi recusada por muitos autores, também foi interpretada como um sinal dos tempos, como

se ela expressasse determinada visão so-bre como nos situamos no universo – uma concepção que, como dirão alguns filósofos, privilegia os aspectos instrumentais da razão.

É este, por exemplo, o ponto de vista de Max Horkheimer (1895-1973). Em Eclipse da razão (1947), uma de suas obras mais co-nhecidas, Horkheimer compara dois tipos de razão. Uma, subjetiva, outra, objetiva. A razão subjetiva é a faculdade de conhe-cimento e de raciocínio lógico. A objetiva

é uma racionalidade corporificada nas re-lações entre os seres humanos, no mundo social e mesmo na natureza. Para Horkhei-mer, a primeira é essencialmente uma ra-zão instrumental, que lida apenas com os meios mais eficazes para alcançar fins da-dos, não importando quais fins sejam es-ses. Já para a razão objetiva, importa antes de tudo fundamentar os fins.

Ainda segundo Horkheimer, a razão subjetiva e instrumental se impôs na épo-ca moderna como a racionalidade predo-minante. Com isso, os seres humanos aca-baram se tornando objetos, coisas, para si e para os outros, já que sua razão se limita a calcular e encontrar meios para fins que ela mesma não define.

• Articule, elaborando um texto de no máximo duas páginas, os pontos de vista de Hume e de Horkheimer. Um caminho natural é seguir esse roteiro: (1): carac-terizar a posição de Hume; (2): expor a objeção de Horkheimer; (3): exprimir sua própria posição a respeito dos problemas levantados nos pontos (1) e (2).

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que escolha meios insuficientes para o fim pretendido, é impossível que razão e paixão possam se opor mu-tuamente ou disputar o controle da vontade e das ações.” (D. Hume, Trata-do da natureza humana. Tradução: D. Danowski, op. cit., p. 452)

Como você pode perceber, Hume reitera que, no combate entre as paixões, a razão nada decide. Uma paixão é simplesmente mais forte do que a outra e se impõe em de-terminadas circunstâncias.

Mas será que somos realmente tão caprichosos ou formidáveis, a ponto de preferirmos uma coisa de pouco valor a outra de muito valor, ou mesmo a pró-pria destruição? O próprio Hume não

pensa assim. A questão, ele alega, é que confundimos a razão com algumas pai-xões que estão tão arraigadas em nós, que são tão sólidas e calmas, que mal as notamos no seu caráter de paixões.

Por exemplo, o amor à vida. Ele é uma paixão tão firmemente enraizada em nós, que não o consideramos como o que é, uma paixão, mas sim como algo próprio da razão. E por isso dizemos que é irracional desejar a própria destruição, como se isso estivesse fundado na razão, e não na paixão. Mas é um modo equi-vocado de falar, segundo Hume, porque não é a razão que está sendo prejudica-da, mas uma outra paixão bem enraiza-da em nossa natureza humana: nosso amor pela vida.

História, razão e paixões

As paixões humanas não são imutá-veis. Elas estão inscritas em um percurso histórico. Podemos dizer que a história da humanidade é também a história das nos-sas paixões. Elas, assim como a razão, evo-luem no decorrer dos tempos. Por isso, a relação entre a razão e as paixões é dinâmi-ca, ela se altera no tempo. Em um momen-to, pode haver certo equilíbrio entre elas. Em outro, esse equilíbrio pode ser rompi-do, para depois, talvez, ser recomposto.

Se as paixões possuem historicidade (isto é: se elas se alteram conforme o contexto histórico da sociedade em questão), como, então, elas se apresentam nos tempos mo-dernos? Haverá diferenças importantes entre a Antiguidade e a Modernidade? Po-demos explicar essas diferenças com base nas maneiras como cada etapa da história humana articula paixões e razão?

A consciência dividida da ModernidadeVamos discutir essas questões toman-

do como ponto de partida dois versos de um poema escrito no fim do século XVIII:

“entre prazer dos sentidos e paz de almasó resta ao homem a angustiante escolha”(Friedrich Schiller, “O ideal e a vida” , versos 7-8. Tradução nossa. Edição de referência: Sämtliche Werke. Munique: Hauser, 1962, vol. 1, p. 201)

O autor destas linhas é o famoso poeta, dramaturgo e filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805), que refletiu profun-damente sobre as questões morais levan-tadas pelo par “razão e paixões”.

Nos versos citados acima, os dois con-ceitos, como já advertimos, são confronta-dos entre si. O homem, diz o poema, vê-se muitas vezes diante da escolha entre o pra-zer sensual (os sentidos, as paixões) e a paz da alma. Esta última evoca a serenidade que o estoicismo antigo converteu em ideal de sabedoria, que equivale ao domínio da razão sobre as paixões.

Qual dos dois lados você negligencia-ria: a razão ou os sentidos? E qual caminho toma nosso poeta-filósofo: o da razão ou o da sensualidade das paixões? Ou será que

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Schiller, contrariando nossa curiosidade e recuando diante de nossa pressa por encontrar respostas, achou melhor não tomar partido nessa disputa?

Note que esta última interpretação é perfeitamente cabível e coerente com a letra dos versos citados. Pode bem ser que Schiller, ao invés de querer nos levar a aderir a um dos partidos, esteja pondo a ênfase sobre a “assustadora” ou “angus-tiante escolha” que a humanidade se vê pressionada a fazer entre os sentidos e a razão. Schiller talvez esteja lamentando o fato de que, em sua época, razão e praze-res se situem em campos opostos.

Não seria possível, quem sabe em outro tempo, encontrá-los alinhados sob as mes-mas fileiras? Se isso se confirmasse, nesse caso a humanidade não estaria irremedia-velmente condenada a escolher um dos dois lados momentaneamente em conflito.

Essa interpretação é reforçada por uma observação que nós podemos tirar de nosso dia a dia. Ter de fazer uma “an-gustiante escolha” significa ter de tomar uma decisão em um contexto de cons-trangimento e pressão. Qualquer um que já tenha passado por isso sabe que, em geral, decisões tomadas no calor da hora, de modo precipitado, costumam produ-zir resultados indesejados.

Ora, talvez seja exatamente isso o que Schiller queira nos mostrar com esses dois versos. Talvez ele esteja chamando aten-ção para o fato de que, enquanto tiver de optar pela razão ou pelos prazeres, a hu-manidade estará em apuros. Segundo essa leitura, os versos não querem nos fazer decidir entre razão ou paixões, mas sim enfatizam a situação embaraçosa que nos obriga a escolher um desses lados.

Será que tal situação é incontornável e a escolha, necessária? Ou ela depende de circunstâncias específicas, que, uma vez bem compreendidas e enfrentadas, poderiam ser superadas?

Você pode ser da opinião, por exem-plo, que a razão e as paixões sempre es-

tão em conflito, independentemente das circunstâncias em que nos encontramos, da época em que vivemos, da cultura em que nos inserimos. É essa, ao que tudo indica, a avaliação dos filósofos estoicos antigos. Paixões – diz o filósofo romano Sêneca[+] – são como doenças da alma. E, como tais, têm de ser extirpadas, hoje, ontem, sempre.

Mas você não é obrigado a seguir o ra-ciocínio de Sêneca e, menos ainda, a se tornar um estoico. E, se a ideia for reba-ter Sêneca, um bom começo para isso é assinalar exatamente o caráter histórico das paixões...

Vamos levar a comparação adiante. Ora, sabe-se que há inúmeras doenças associadas aos hábitos sedentários da sociedade contemporânea. Algumas en-fermidades do passado desapareceram, outras surgiram e outras tantas se modi-ficaram ao longo do tempo.

O mesmo vale para nossos gostos, e também no campo dos costumes e das opiniões. Pode ocorrer, por exemplo, que algo que era chique há pouco tempo tenha hoje se tornado completamente fora de moda. Se as doenças, os gostos e as ten-dências se modificam no curso do tempo, por que seria diferente com as paixões?

A história de nossos sentimentosAdmitamos, por um instante, que as

paixões e os sentimentos possuem uma história, que sofrem variações confor-me o momento e o lugar – enfim, que mudem segundo o contexto em que es-tão inseridas.

Nesse caso, já não será difícil imaginar que a oposição entre razão e paixão seja datada, momentânea e – por que não? – modificável, dinâmica.

Se for mesmo assim, o constrangi-mento a que se vê submetida a huma-nidade, ao ter de obrigatoriamente op-tar pela razão ou pelas paixões, poderá ser passageiro. A “angustiante escolha” do verso de Schiller pode ser o sintoma

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ãode uma época determinada, não de todas elas. Em outro tempo (passado ou futu-ro), marcado por outras paixões e senti-mentos, caracterizado por outra forma de vida, a humanidade talvez não tenha se visto (nem precise se ver) obrigada a escolher entre os sentidos e a razão, um excluindo o outro.

Comecemos pela Antiguidade gre-co-romana. Schiller, assim como outros

pensadores do século XVIII, elogiava a civilização da antiga Grécia exatamente por isso. Conforme Schiller, os gregos da Antiguidade viviam sob um regime no qual razão e paixões constituíam um todo harmonioso. Entre os gregos, no entender de Schiller, natureza e cultura, sensibilidade e racionalidade estavam em harmonia. É o que ele afirma neste outro escrito seu:

Schiller e “Tempestade e Ímpeto” (o pré-romantismo)Friedrich Schiller (1759-1805) teve como pai

um militar de Würtemberg, na Alemanha. Em-

bora tenha tido uma infância modesta, contou

com o apoio do Duque de Würtemberg para se-

guir em seus estudos. Forma-se em medicina e

passa a exercer a profissão, ao mesmo tempo

em que escreve peças de teatro e poesia. Co-

nhece Johann W. Goethe (1749-1832) em 1788,

ano em que obtém um cargo de professor de

história da filosofia na Universidade de Iena.

Por causa de uma doença pulmonar, morre em

Weimar, com 45 anos de idade.

Schiller ocupa um lugar decisivo na história

da literatura e da dramaturgia modernas. Ao

lado de J. W. Goethe, Schiller protagonizou o

movimento “Tempestade e Ímpeto”, que está

na origem do Romantismo alemão. São carac-

terísticas centrais dessa corrente, que incluiu

artistas, poetas, escritores e dramaturgos, a re-

beldia contra a ordem e a defesa da fantasia e

do gênio como impulsos da atividade poética.

Informar-se sobre o contexto no qual

foram escritos os versos citados no início deste

módulo é útil para examinarmos mais de perto

o que o poeta quis dizer com eles. Sabemos

que Schiller foi romântico, quando jovem. Em-

bora já tivesse questionado o Romantismo ao

redigir esses versos, seria difícil imaginar que,

diante da alternativa, Schiller optasse pela

razão e descartasse as paixões.

Por outro lado, engana-se quem pensa que

Schiller tenha sido um ferrenho defensor das

paixões e, de modo geral, dos sentidos, pouco

se importando com

a razão. A posição

final de Schiller

sobre esse assunto

é um pouco mais

complicada do que

a simples opção por

um dos partidos em

disputa (a razão, de

um lado, e as pai-

xões, de outro).

Para as obras

de Schiller em por-

tuguês, dispomos

de excelentes traduções:

F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental. Tra-

dução M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.

F. Schiller, A educação estética do homem.

Tradução R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo:

Iluminuras, 1990.

F. Schiller, Do sublime ao trágico. Tradução

P. Süssekind e V. Vieira. Belo Horizonte: Au-

têntica, 2011.

Para uma boa edição de uma tragédia de

Schiller, do período de “Tempestade e Ímpe-

to”, veja:

F. Schiller, Intriga e amor. Tradução de M.

L. Frungillo. Editora da UFPR: 2005.

Para a troca de cartas entre Schiller e

Goethe, veja:

J. W. Goethe, Goethe e Schiller – Compa-

nheiros de viagem. Tradução: C. Cavalcanti.

São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

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“Quando se recorda a bela natu-reza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete sobre quão intima-mente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz; quão mais próximos estavam da nature-za simples seu modo de representar, sua maneira de sentir, seus costu-mes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas, é de estranhar a constatação de que nesse povo se encontrem tão poucos vestígios do in-teresse sentimental com que nós ou-tros modernos podemos apegar-nos a cenas e caracteres naturais.” (Schiller, Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminu-ras, 1991, pp. 54-55)

Antes de mais nada, saiba que Schiller utiliza o termo “sentimental” em um sen-tido distinto do comum. “Sentimental”, para Schiller, significa “reflexivo” e, em alguma medida, “melancólico”.

O indivíduo sentimental, nesse caso, é aquele que possui consciência de que perdeu algo decisivo: sua relação direta com a natureza. É dessa relação direta e imediata com a natureza que, conforme Schiller, os gregos da Antiguidade dão testemunho. Por isso, para Schiller, os gregos antigos caracterizam-se por uma atitude “ingênua”.

Com isso, ele não quer dizer que os gregos fossem tolos, mas apenas que eles estariam muito mais próximos da “natureza simples” do que nós, moder-nos. O “modo de sentir” deles – o que inclui seus sentimentos e paixões – era mais espontâneo.

A Modernidade, ao ver de Schiller, complicou as coisas... A tal ponto que é muito comum sentirmos um “interesse sentimental” pela natureza, coisa que os gregos praticamente desconheciam.

O motivo disso é que os gregos usu-fruíam a natureza, viviam em harmonia com ela. Sua arte, seu sentir e seu repre-

sentar convergiam com o natural. Já nós, modernos, não; abriu-se uma grande dis-tância entre nosso modo de compreen-der, sentir as coisas e, de outro lado, a natureza. O interesse sentimental que temos pela natureza demonstra isso: nós agimos sentimentalmente porque sabe-mos que há uma grande distância a nos separar da natureza.

É por isso que Schiller afirma, na mes-ma obra, que “nosso sentimento pela natureza assemelha-se à sensação do doente em relação à saúde” (Schiller, Po-esia ingênua e sentimental, op. cit., p. 56). Desejamos a natureza porque nos torna-mos pouco naturais e até mesmo artifi-ciais. Já os gregos, não; eles eram espon-tâneos, joviais ou, como diz Schiller: os gregos eram “ingênuos”.

A divisão do ser humano modernoÉ bem possível que o retrato que

Schiller traçou dos gregos seja o resulta-do de alguma idealização. Mas não é nis-

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“– Bela dama, aceitaria meu braço?

– Sua paixão é sutil demais para que

eu possa crer nela!” (Honoré Daumier

[1808-1879], litografia, 1851)

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so que estamos interessados aqui. Mais importante é o fato de que, por meio da referência à Grécia antiga, Schiller apon-ta para as características contraditórias e conflituosas de seu próprio tempo, do qual a nossa época é uma extensão. Esse tema é importante para a filosofia: quais são, afinal, as singularidades dos tempos modernos em relação às épocas antigas e medievais?

Uma questão tão ampla quanto essa possui muitos aspectos, dos quais discu-tiremos apenas um.

Vimos que, para Schiller, a Grécia an-tiga representa uma prova de que a “an-gustiante escolha” que a humanidade tem de fazer entre sensi-bilidade e razão não vale para todas as épocas da história ou para todas as sociedades. Na Grécia antiga, ele argumenta, a humanidade não se de-parava com a tarefa de escolher pela razão ou pela sensibilidade, pois era capaz de incorporar ambas em uma única forma de vida.

Em contrapartida, a época moderna é proble-mática. Nela, a humanidade se separou de si mesma; o ser humano se dissociou de sua essência, deixou de ser o que era natu-ralmente. Ter de escolher entre dois par-tidos (as paixões ou a razão) é uma tarefa que se impôs para nós, modernos. E isso, porque foi na Modernidade que a relação entre sensibilidade e razão, anteriormen-te harmônica, se tornou conflituosa.

O que fazer, então? A primeira ati-tude a tomar, de acordo com Schiller, é ter consciência de nossa condição. Não adianta querer ser ingênuo nos tempos modernos, por exemplo. E você já sabe que este adjetivo, “ingênuo”, possui signi-ficado filosófico para Schiller. “Ingênuo” é o oposto de “sentimental”. A atitude

dos gregos, na Antigui dade, era ingênua, com isso querendo dizer: espontânea, harmoniosa, direta. Por outro lado, nós, modernos, somos todos “sentimentais”, na medida em que temos consciência de que a civilização e a cultura, por terem se desenvolvido muito, nos tornaram, em certa medida, artificiais.

O raciocínio de Schiller soa plausí-vel em nossos dias. Pode-se considerar aceitável que passemos horas na fren-te da televisão ou do computador, por exemplo, ou que concebamos projetos espaciais ou busquemos petróleo nas ca-madas profundas do oceano. Mas numa coisa Schiller parece ter razão: dificil-

mente alguém diria que isso é “natural”...

Não faltam exemplos para ilustrar que o pro-gresso da cultura – ou, se preferirmos, das ciências e das artes – modificou profundamente nosso modo de vida. Por um lado, algumas dessas mudanças vieram para melhor. Pense na des-coberta da vacina ou da anestesia, na invenção da imprensa, dentre tan-

tas outras coisas. De outro lado, também é verdade que o progresso trouxe junto consigo hábitos e costumes que mui-tos pensadores julgaram questionáveis. Mais importante que isso, o desenvol-vimento técnico e científico, ao lado da complexidade cada vez maior da vida social contemporânea, parece ter modi-ficado profundamente nossas paixões, assim como nossa própria razão.

Nesta mudança reside o problema le-vantado por Schiller. Haveria como recu-perar, no presente, a articulação harmo-niosa entre paixões e razão, característica da Antiguidade? Como reconciliar a hu-manidade consigo mesma, em uma épo-ca em que nos vemos tendo de escolher

Conforme Schiller, os gregos da

Antiguidade viviam sob um regime no

qual razão e paixões constituíam um

todo harmonioso.

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por um dos lados que constituem nosso ser – a sensibilidade ou a razão?

De acordo com Schiller, contornar essa alternativa entre razão ou sensibilidade é o grande desafio da filosofia. A tarefa fi-losófica por excelência reside, conforme Schiller, em superar a alienação que pesa sobre a condição humana moderna.

Nos dicionários, “alienação” significa: (i) “cessão de bens, venda”; (ii) “perturba-ção mental”; (iii) “indiferença em relação ao que se passa em volta; alheamento” (Dicionário Unesp do português contem-porâneo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004). Alienar-se significa também tor-nar-se estranho a si mesmo.

É neste sentido que o termo “aliena-ção” tem a ver com as questões discuti-das aqui por Schiller. O ser humano, na Modernidade, alienou-se, tornou-se es-tranho a si próprio. Já sabemos o porquê:

o desenvolvimento das ciências e das ar-tes, os avanços tecnológicos, a sofistica-ção da vida, a divisão do trabalho – todos esses fenômenos romperam a unidade, existente na Grécia antiga, entre razão e sensibilidade. A consciência moderna é uma consciência dividida, cindida, entre os dois opostos que a constituem.

A arte: ponte entre sensibilidade e razão

Que solução dar para a alienação mo-derna? Em uma obra publicada em 1795, Schiller formula explicitamente esse pro-blema, ao indagar-se o seguinte: “como reconstituiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente su-primida por esta oposição originária e fundamental?” (Schiller, Cartas sobre a educação estética do homem. Tradução de R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo: Ilumi-nuras, 1990, p. 71).

Para isso, é preciso levar em conta que o ser humano não é apenas razão e tampouco apenas paixão. Contentar-se com uma ou outra dessas duas caracte-rísticas da humanidade corresponderia, diz Schiller, a uma visão parcial do ser hu-mano. Ao contrário, é preciso considerar as duas exigências que pesam sobre o ser humano: a da sensibili dade e a da razão.

A única maneira de lidar com essa dupla exigência é promover a reaproxi-mação entre os sentidos e a razão, o que pode ocorrer pelo cultivo de sentimentos nobres. “O caminho para o intelecto pre-cisa ser aberto pelo coração”, diz Schiller (Cartas, VIII). Somente desse modo pai-xões e razão podem se ver novamente reunidas e em harmonia.

A solução para o problema da alienação moderna, conclui Schiller, está em cultivar os sentimentos estéticos. É mediante eles que os seres humanos, a meio caminho entre o ser e o dever ser, entre a natureza e a razão, poderão se tornar tudo aquilo que podem e até devem ser idealmente. Só assim poderão reaver a unidade entre na-

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Degas, um dos expoentes do impressio-

nismo, retratou a dança em inúmeros

quadros e esculturas (Edgar Degas [1834-

1917], Bailarinas em verde, 1877-79).

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tureza e razão e, desse modo, atingir uma condição equivalente ao ideal que Schiller enxergou na cultura da Grécia antiga.

Mas note: uma equivalência não é uma igualdade. Não se trata, na solução de Schiller, de adotar costumes e for-mas de vida dos gregos do passado. Isso seria impossível.

Trata-se, isso sim, de reaver a unida-de entre os elementos que compõem a

humanidade, porém conferindo a essa unidade uma nova forma, adequada aos tempos em que vivemos. Como nos diz Schiller: “Pela beleza, o homem sensível é condu zido à forma e ao pensamen-to; pela beleza, o homem espiritual é reconduzido à ma téria e entregue de vol-ta ao mundo sensível” (Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade, op. cit., p. 95).

O belo pode nos tornar melhores?

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

Agora que você já conhece a tese de Schiller, procure examiná-la por sua con-ta, no debate com seus colegas. Vamos admitir um instante, com esse pensador, que o indivíduo moderno se veja dividido entre sua razão e suas paixões. Você con-cordaria com a convicção de Schiller de que o belo e a arte podem fazer a ponte entre sensibilidade e razão, reunificando, desse modo, os dois elementos que, jun-tos, compõem nossa humanidade?

Para desenvolver essa questão, certi-fique-se, de partida, de que a arte pode realmente alterar nossas paixões. Pense no que você já sentiu, por exemplo, dian-te de um filme que o impressionou, ou de uma música que evoca sentimentos níti-dos, como a tristeza ou a alegria, tão logo você a escute. Esses são indícios claros de que a arte é capaz de alterar nossos senti-mentos ou mesmo suscitar em nós novas emoções e paixões.

• Com base nisso e trabalhando em uma equipe com mais dois colegas, pro-cure levantar os aspectos morais que uma obra de arte (um filme, um quadro, uma peça de teatro ou uma música) é ca-

paz de despertar. Como “aspec tos morais” queremos designar os aspectos relativos à nossa disposição em face dos indivíduos que nos cercam. Já ocorreu a você de se sentir pertencendo em maior grau a uma comunidade, a um grupo de pessoas, por intermédio de uma canção, por exemplo? Se sim, isso não atesta o poder da arte em transformar a maneira como compreen-demos nossa inserção na sociedade?

Uma questão interessante, que ser-virá como fio condutor da discussão em classe e depois para a apresentação aos demais em forma de seminário, é a se-guinte: será que o poder da arte em rela-ção às paixões está sempre voltado para o objetivo de nos tornar moralmente me-lhores? Pense em determinados filmes que, conforme opinião difundida hoje em dia, suscitam em nós impulsos agressi-vos e estimulam a violência. Com base no exame que fizemos das ideias de Schiller, qual posição vocês podem formular acer-ca de casos como esses, em que a arte parece despertar em nós paixões que a razão reprovaria? Ou você diria que es-ses não são exemplos de obras de arte? Lembre-se de respaldar suas conclusões em razões que possam ser expostas aos demais colegas na aula.

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unidade 3 lógica e argumentação

Argumentos estão por toda a parte. Quan-do queremos convencer alguém de alguma

coisa, quase sempre lançamos mão de um ar-gumento. Acontece nos negócios, nas relações familiares, no trabalho, na política, nos tri-bunais, nos livros, nos cultos religiosos – onde houver seres humanos reunidos, certamente haverá discordância, debate, argumentação. Mas o que vem a ser um argumento? Falando de maneira geral, poderíamos dizer que um argumento é um tipo de discurso cuja finalidade é dar razões capazes de convencer alguém a respeito de algo. No entanto, apesar de ser uma boa aproximação, essa definição talvez seja excessivamente ampla. Ela coloca num mesmo grupo coisas que talvez devêssemos distinguir.

Racionalidade e emoção ................. 77

A arte de persuadir ................. 82

Premissas e conclusões .............. 86

Falácia e argumento .............. 97

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O líder dos direitos civis Martin Luther King Jr. (1929-1968) discursa na Marcha sobre Washington (28/08/1963), no Lincoln Memorial.

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O que diferencia, por exemplo, um ar-gumento bom de um argumento ruim? Será correto dizer que um argumento é bom quando ele é convincente? Ou será que existem argumentos que, apesar de convincentes, não são bons? Um argu-mento bom é sempre convincente? Ou será que existem argumentos que, ape-sar de serem bons, falham na hora de nos convencer? Vamos pensar um pouco a respeito da mensagem veiculada neste cartaz confeccionado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial:

Como você pode ver, trata-se de um discurso que tem o objetivo de convencer o leitor de uma determinada tese, dando-lhe certas razões para tanto. Em 1943, os EUA estavam em guerra contra a Alemanha na-zista, e era preciso economizar combus-

tível. Foram criados, então, os “clubes de caroneiros” ou “clubes de carona solidária”. Esses clubes, patrocinados pelo governo norte-americano, reuniam pessoas que não se conheciam, mas moravam no mes-mo bairro e trabalhavam na mesma região. A ideia era que os membros dos clubes se comprometessem a dar carona uns aos outros, economizando gasolina. Cartazes como esse tinham o objetivo de incentivar as pessoas a ingressarem nesses clubes.

O que nos interessa, aqui, é o fato de que há um argumento implicitamente contido nesse cartaz. Você seria capaz de explicitá-lo?

Há diversas maneiras de identificar esse argumento. Eis aqui uma possibi lidade:

1) Se faltar combustível nos EUA, Hitler será favorecido.

2) Se as pessoas dirigirem sozinhas, haverá falta de combustível nos EUA.

3) Portanto, quem dirige sozinho está fazendo um favor a Hitler.

4) Quem não se associa a um clube de carona solidária dirige sozinho.

5) Portanto, quem não faz favores a Hitler associa-se a um clube de carona solidária.

Como se disse anteriormente, esta é apenas uma das maneiras possíveis de explicitar o argumento contido naquele cartaz de propaganda. Ela nos servirá, porém, para estabelecer algumas distin-ções e conceitos importantes.

Observe em primeiro lugar a ocorrên-cia da palavra “portanto” nas sentenças 3 e 5. Ela é, talvez, a palavra mais importante num argumento. É ela que marca o mo-mento em que uma determinada conclu-são é tirada a partir de determinadas pre-missas. A sentença 3 é apresentada como uma consequência das sentenças 1 e 2.

Racionalidade e emoção

Quando você dirige SOZINHO,

você dirige com Hitler!

Junte-se HOJE a um clube

de caroneiros!

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Isso quer dizer uma coisa muito simples. Uma pessoa que aceite a verdade das pre-missas deveria, em princípio, ser levada a aceitar a verdade da conclusão. Se alguém aceita que Hitler é favorecido pela falta de combustível nos EUA (primeira premis-sa), e também aceita que haverá falta de combustível caso as pessoas dirijam so-zinhas (segunda premissa), esse alguém terá boas razões para acusar aqueles que dirigem sozinhos de estarem colaborando indiretamente com o inimigo (conclusão).

Mas a história não para aí. Como vimos, a conclusão desse primeiro argumento é, por sua vez, utilizada como premissa de um outro argumento, que vem logo abaixo. Com efeito, a conclusão tirada na senten-ça 5 se baseia nas sentenças 3 e 4, sendo que, como acabamos de ver, a sentença 3 já é a conclusão de um argumento anterior. Temos, portanto, dois argumentos articu-lados entre si. Tratemos de analisá-los.

A primeira coisa que devemos com-preender é que argumentos não são nem verdadeiros nem falsos. Isto é fundamen-tal. O que pode ser verdadeira ou falsa é uma sentença tomada isoladamente. As premissas de um argumento são senten-ças. A conclusão é uma sentença. Elas po-dem ser verdadeiras ou falsas. A quarta premissa, por exemplo, afirma que toda pessoa que não se associa a um clube de carona dirige sozinha. Isso pode ser ver-dadeiro, mas pode também ser falso.

Pode acontecer, por exemplo, de muitas pessoas não se associarem a nenhum clube e, no entanto, darem e pegarem carona todos os dias, ou de simplesmente dirigirem acompanhan-do parentes ou amigos. Tome-se, ainda, o caso da conclusão: “Quem não faz fa-vores a Hitler associa-se a um clube de carona.” Podemos imaginar a existência de pessoas que não colaboraram nem direta nem indiretamente com Hitler e que, no entanto, não se associaram a nenhum clube. Neste caso, a conclusão seria falsa.

Não faz sentido, porém, dizer que um argumento é “verdadeiro”, ou que ele é “falso”. Argumentos não são nem ver-dadeiros nem falsos. Eles podem ser bons ou ruins. Quando um argumento é bom, dizemos que ele é válido. Quando é ruim, dizemos que é inválido. Mas, o que caracteriza um argumento válido? Embora possa parecer estranho, o que torna um argumento válido não é o fato de que sua conclusão é verdadeira, ou o fato de o argumento possuir premissas verdadeiras. Um argumento pode ser válido e, mesmo assim, ter tanto as pre-missas quanto a conclusão falsas. Consi-dere o seguinte exemplo:

Quem gosta de comer pipoca também gosta de ouvir música clássica.Quem não toma banhos demorados gosta de comer pipoca.Portanto, quem não gosta de ouvir música clássica toma banhos demorados.

Pode parecer estranho, mas este argu-mento está perfeitamente ordenado. É um argumento válido. Para ver isso, bas-ta examinar o seguinte gráfico:

A área vermelha representa aqui as pessoas que gostam de música clássica. Toda a área cinzenta do retângulo, exte-rior à área vermelha, representa as pes-soas que não gostam de música clássica. A área laranja representa as pessoas que gostam de comer pipoca. A inclusão da elipse laranja dentro da vermelha serve,

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neste caso, para simbolizar a primeira premissa: todos que gostam de comer pipoca gostam de ouvir música clássica. Finalmente, o losango verde representa as pessoas que não gostam de tomar ba-nhos demorados. Sua inclusão no inte-rior da área laranja representa, portan-to, a segunda premissa: pessoas que não gostam de banhos demorados gostam de comer pipoca.

Agora, repare numa coisa. Toda a área externa ao losango verde represen-ta pessoas que gostam de tomar banhos demorados. Se você recortasse o retângu-lo verde do centro da figura, tudo o que sobrasse representaria o conjunto dessas pessoas que gostam de ficar horas embai-xo do chuveiro:

É fácil verificar que a área cinzenta do retângulo está toda ela incluída nessa fi-gura com um buraco no meio, em forma de losango. Como a área cinzenta repre-senta exatamente as pessoas que não gostam de música clássica, é fácil verifi-car que, nesse mundo que estamos ima-ginando, todas as pessoas que não gos-tam de música clássica tomam banhos demorados. E é exatamente isso o que diz a conclusão de nosso argumento.

O que isso mostra? Mostra que, se vi-vêssemos num mundo no qual pessoas que gostassem de pipoca fossem todos aficionados por música clássica, e no qual pessoas que não tomassem banhos de-morados adorassem pipoca, então, nesse mundo, todos os que não gostassem de música clássica tomariam banhos demo-

rados. Ou seja, se aquilo que está dito nas premissas fosse verdadeiro, aquilo que está dito na conclusão seria verdadeiro também. É por isso que esse argumento é bom. Suas premissas são obviamente fal-sas. Sua conclusão também é falsa. Mas se as premissas fossem verdadeiras, a conclu-são também seria.

Agora, veja que interessante. Há uma correspondência perfeita entre esse argu-mento envolvendo pipoca, música clássica e banhos demorados, e aquele outro que vimos há pouco, envolvendo Hitler, mo-toristas solitários e clubes de carona. Va-mos dispor os dois argumentos lado a lado para que você perceba isso:

Como você pode ver, os dois argumen-tos possuem exatamente a mesma estru-tura. Para obter o segundo a partir do pri-meiro, basta substituir “dirigir sozinho” por “gostar de comer pipoca”, “não entrar (ou entrar) para um clube de carona” por “não tomar (ou tomar) banhos demora-dos”, e “estar (ou não estar) fazendo fa-vores a Hitler” por “gostar (ou não gos-tar) de ouvir música clássica”. O mesmo gráfico que usamos para demonstrar que o segundo argumento é válido poderia ser usado para mostrar que o primeiro também é. Ou seja, nada nos garante que as premissas do primeiro argumento se-jam verdadeiras, mas, se elas forem ver-dadeiras, a conclusão também será.

Quem dirige sozinho

está fazendo um favor a Hitler.

Quem gosta de comer pipoca gosta de ouvir

música clássica.

Quem não entra para um

clube de carona dirige sozinho.

Quem não toma banhos demorados

gosta de comer pipoca.

Quem NÃO faz favores a Hitler ENTRA para um clube de carona.

Quem NÃO gosta de ouvir música clássica

TOMA banhos demorados.

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Apelos emocionaisÉ isso o que dá força racional a um ar-

gumento. Se as pessoas que escutam meu argumento têm a tendência a considerar verdadeiras as premissas de que eu parto, e se, além disso, reconhecem como válidos os argumentos que eu uso, elas serão levadas a aceitar como verdadeiras as conclusões que eu tiro. Isso faz com que os argumen-tos possam ser usados como instrumentos de persuasão. Quem argumenta deve levar em conta determinadas crenças que são compartilhadas por seu “auditório”, isto é, pelas pessoas que ele deseja convencer de algo. Ele constrói, então, um argumen-to que toma algumas dessas crenças como premissas e procura mostrar que essas pre-missas obrigam quem as assume a tirar de-terminadas conclusões. É esse o mecanis-mo racional que está embutido no cartaz de propaganda que estamos analisando.

Será só isso, porém? Será que argumen-tos só envolvem mecanismos racionais de convencimento? De maneira alguma. Quem domina a arte de argumentar sabe fazer uso de expedientes racionais, mas deve saber utilizar também uma série de

apelos emocionais. É o que fazem os polí-ticos, os publicitários, os jornalistas, e até mesmo você, quando quer convencer al-guém de alguma coisa. Examinemos mais uma vez nosso cartaz reproduzido à pág.77.

Repare, em primeiro lugar, que as duas sentenças inscritas nele terminam com pontos de exclamação. Quem lê o cartaz deve imaginar uma voz falando alto, em tom exaltado, de comando, como se fosse um militar falando a seus subordinados.

Para reforçar esse efeito, as letras foram escritas em tons altamente contrastantes. A sentença de cima, em preto, contra um fundo ocre. A de baixo, em ocre, contra um fundo preto. Isso reforça ainda mais o “tom” impositivo da sentença. Além disso, há duas palavras em destaque, escritas com letras maiúsculas: “sozinho” (“ALONE”) e “hoje” (“TODAY”). A palavra “sozinho” nos remete à situação que se deseja combater: motoristas dirigindo seus carros sozinhos, gastando um combustível precioso em épo-ca de guerra. A palavra “hoje” nos remete àquilo que o cartaz deseja provocar: uma adesão imediata aos clubes de carona. Tudo isso envolve o argumento implícito nas

O “american way of life”: a foto, tirada em Nova York em 1952, capta os ideiais da classe média norte-americana nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.

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duas sentenças num clima altamente emo-cional, dando a ele uma força redobrada.

O principal elemento emocional desse cartaz, no entanto, não está inscrito nessas duas sentenças, mas sim na imagem que a acompanha. Reparem na figura do homem dirigindo. Ele tem um carro grande, espa-çoso, confortável. Os espaços vazios nos bancos ressaltam o desperdício de gasoli-na decorrente daquela situação. Podemos imaginar outras três pessoas confortavel-mente acomodadas nesse carro, o que faria outros três veículos não circularem naquele dia. Reparem na fisionomia do motorista. Ele dirige completamente despreocupado, tranquilo, alheio a qualquer coisa à sua vol-ta. Numa época em que milhões de cida-dãos norte-americanos estavam nos cam-pos de batalha, lutando por seu país, essa passividade e despreocupação certamente assumiam um aspecto um pouco revoltan-te. O pensamento que se procura despertar em quem vê o cartaz é mais ou menos o se-guinte: “Nossos jovens estão morrendo na Europa, e esse sujeito não se preocupa em fazer algo tão simples quanto evitar des-perdício de combustível!”.

Acima de tudo, porém, é a figura de Hi-tler, esboçada ao lado do motorista, que traz o apelo emocional mais forte. A men-sagem subliminar passada ao público é mais ou menos a seguinte: “Quando se re-cusa a aderir à campanha em prol da caro-na solidária, o que você faz é dar uma ca-rona a Adolf Hitler. Você o ajuda a atingir seus objetivos, fazendo-lhe um importan-te favor”. Isso tem por efeito estigmatizar o motorista que não aderia à campanha. Quem o visse desfilando sozinho com seu carro pela cidade era levado a vê-lo como uma espécie de traidor da pátria.

Nada disso é dito. Isso é mostrado pelo cartaz, e é perfeitamente entendido por quem o vê. Os contornos emocionais dessa mensagem é que dão a ela grande parte de sua eficácia. A argumentação racional subjacente certamente tem um papel no convencimento do cidadão, mas

sem esses outros elementos a argumen-tação seria ineficaz. Imagine o que acon-teceria se, em vez de usar esse cartaz, o governo norte-americano tivesse utiliza-do este outro:

O que você acha? A campanha teria al-guma chance de sucesso?

É claro que, em muitas situações, o apelo emocional é reduzido ao mínimo. Isso acon-tece, por exemplo, no contexto científico. Examine, digamos, o seguinte argumento:

Ninguém tem mais de 5 milhões de fios de cabelo.

O Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes.

Pelo menos 2 habitantes do Rio de Janeiro têm exatamente o mesmo

número de fios de cabelo.

Este é claramente um argumento vá-lido. Suponha que você fosse o criador do mundo, e quisesse a todo custo evitar que dois habitantes do Rio de Janeiro tivessem o mesmo número de fios de cabelo.

O GOVERNO DOS EUA PEDE

A TODOS OS CIDADÃOS

QUE CONSIDEREM

O SEGUINTE ARGUMENTO

CONTAMOS COM A

COLABORAÇÃO DE TODOS

Se faltar combustível nos EUA,Hitler será favorecido.

Se as pessoas dirigirem sozinhas, haverá falta

de combustível nos EUA. Segue-se daí que quem

dirige sozinho está fazendo um favor a Hitler.

Como questão de fato, quem não se associa a um

clube de carona solidária dirige sozinho.

Devemos concluir, portanto, que toda pessoa que

não quer fazer favores a Hitler deve se associar

a um clube de carona solidária.

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Você cria o primeiro habitante careca; cria o segundo com apenas um fio de cabe-lo; o terceiro, com apenas dois fios; o quar-to, com três; e assim por diante. Quando chegar aos 5 milhões de habitantes, fará um ser humano com 4.999.999 fios de cabelo. O seguinte terá 5 milhões de fios, que é o número máximo de fios de cabelo. Portanto, quando criar o habitante seguin-te, terá de necessariamente criá-lo com um número de fios de cabelo idêntico ao de alguém que você já criou antes. Não tem jeito, portanto. Se as premissas desse argu-mento forem verdadeiras, a conclusão tam-bém será. O argumento, portanto, é válido.

A enunciação desse argumento, no en-tanto, não lançou mão de nenhum apelo emocional. Só a conexão racional entre as premissas e a conclusão foi levada em conta. E essa conexão, em determinados contextos, é suficiente.

Não é o que acontece, porém, na maior parte das situações de nossa vida. Um ar-tigo de jornal, por exemplo, mesmo ape-lando fortemente para a nossa razão, será quase sempre escrito de modo a conquis-tar a nossa simpatia, ressaltando determi-nados aspectos da questão e pondo outros na penumbra. A mesma coisa irá acontecer com um advogado defendendo seu cliente diante de um juiz.

Pense a respeito daquilo que acontece com você mesmo, em seu cotidiano. Su-ponha que você, no fim de semana, esteja querendo sair à noite, mas seus pais não estejam gostando dessa ideia. Você terá de argumentar com eles. Irá procurar conven-cê-los. Você diria que essa argumentação é puramente racional? Ou será que ela vem envolta numa boa dose de emotividade, e busca não apenas convencer racionalmen-te, mas também seduzir?

Faça uma campanha você mesmo

Atividade em equipe e debate em sala de aula

Em dupla com um colega, bolem uma peça publicitária (cartaz, painel, anúncio em revista, ou o conjunto desses ele-mentos) com o objetivo de estimular os motoristas de automóvel a respeitar a faixa de pedestres. Em seguida, apre-sentem a “campanha” para os demais colegas de classe.

A arte de persuadirEm muitos tipos de discursos argumen-

tativos, encontramos elementos de apelo emocional ao lado de elementos racionais.

O caso extremo é aquele em que a emotividade toma conta de todo o discurso, não deixando lugar para ponderações racio-nais. Pense no caso de alguém se afogando e pedindo socorro. Ou, então, numa paquera. Nessas situações, buscamos atingir o outro emocionalmente, sem que nenhum tipo de argumento intervenha no processo. A pes-soa que está se afogando procura expressar seu desespero, na esperança de provocar compaixão naquele que o está ouvindo.

Numa paquera, buscamos atrair a pes-soa que nos interessa, usando para isso di-versos tipos de recursos: vamos bem vesti-dos a um local em que sabemos que a outra pessoa estará nos vendo, procu ramos pas-sar uma boa imagem de nós mesmos, pro-curamos falar aquilo que achamos que a outra pessoa está querendo ouvir, e assim por diante.

É comum que peças publicitárias ou de propaganda misturem a argumentação ra-cional com o apelo emocional. Considere este cartaz a seguir, confeccionado duran-te a Segunda Guerra Mundial:

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Vamos analisar o cartaz. Você não en-contrará nenhum tipo de argumento im-plícito. O apelo, aqui, é muito mais dire-to. É como se o cartaz gritasse o seguinte às pessoas: “Por favor, doem dinheiro! Mais um pouco, e a guerra estará ganha. Nossos soldados precisam mais do que nunca de sua ajuda!”.

Repare na cena retratada graficamente. Um soldado vai atirar uma granada numa casa tipicamente europeia, cheia de sol-dados inimigos. Numa das janelas, vemos o cano de um fuzil, pronto para atirar. O soldado tem que se arriscar, expondo-se a levar um tiro a qualquer momento. Ele precisa de ajuda. No entanto, os inimi-gos estão visivelmente acuados dentro da casa. Apesar do risco, vencê-los é uma questão de tempo. As janelas da casa estão quebradas. Se o soldado conseguir acertar a granada numa delas, a casa será tomada.

Note que o apelo é totalmente emo-cional. Nem por isso deixa de ser eficaz e de convencer. Muitas pessoas compra-ram os bônus de guerra motivados por cartazes como esse.

Democracia e retóricaAs relações entre argumento e emo-

ção foram estudadas pelos filósofos des-de a Antiguidade. O primeiro texto a se demorar longamente nesse assunto foi a Retórica de Aristóteles (384-322 a.C.).

Em Atenas, cidade em que ele viveu grande parte da vida, as principais deci-sões eram tomadas por assembleias. Um cidadão, para defender seus pontos de vista, deveria ser capaz de persuadir os membros da assembleia. A retórica ser-ve exatamente para isso: ela é a arte de persuadir. Devido à utilidade dessa arte na vida do cidadão, havia muitos profes-sores de retórica em Atenas.

No começo do seu livro, Aristóteles faz uma crítica dos métodos recomendados por muitos desses professores. Leia este trecho, e tente determinar que críticas são essas:

“Os estudiosos que compilaram os atuais manuais de retórica nos apresentaram apenas de uma peque-na parte dessa arte. Pois os meios de persuasão racional são os únicos ele-mentos genuínos da retórica. Tudo o

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mais é meramente acessório. Apesar disso, esses estudiosos nada dizem a respeito dos argumentos, que são o corpo da persuasão racional; eles se ocupam muito mais de coisas que não dizem respeito ao assunto.

Apelar para os preconceitos, para a compaixão, para o ódio e emoções des-se tipo nada tem a ver com aquilo que é essencial à retórica. Provocar essas emoções é só um meio de manipular a pessoa que irá decidir uma questão.

Daí que muitos professores e li-vros de retórica já não teriam mais nenhuma utilidade, se fossem sempre aplicadas as regras a esse respeito que existem em certas cidades, especial-mente nas bem governadas.

No fundo, todos acham que essas regras deveriam existir. Mas ocorre que apenas em alguns lugares essas regras são seguidas, como acontece no Areópago, onde não é permitido falar de coisas que não sejam essenciais à discussão do caso em pauta.

Esse é um decreto e um costume muito sadio. Não é correto atrapalhar o discernimento de quem julga provo-cando raiva, inveja ou compaixão. Fa-

Você é capaz de convencer um júri?

Análise de texto e debate em sala de aula

• Analise o trecho da Retórica aqui citado. Conduza sua análise procuran-do responder a essas questões: – Qual a opinião de Aristóteles a respeito do ensino da retórica em sua época? – Que críticas ele dirige aos autores de livros de retórica? – Quais são, segundo Aris-tóteles, os elementos essenciais da re-tórica? – De outro lado, quais são os elementos que não são essenciais a ela?

• Em seguida, formando um par com um(a) colega, discutam juntos a seguin-te situação: imaginem que vocês vivem em Atenas à época da democracia anti-ga, em que as audiências eram realiza-das no Tribunal, ao ar livre, congregan-do muitos cidadãos.

Suponham que um homem está sendo acusado de roubo e vocês estão tentando condená-lo. Vocês não têm provas de que ele é culpado, mas irão apelar para coisas que nada têm a ver com o roubo em si, de modo a fazer os jurados sentirem raiva desse homem. Como vocês poderiam fazer isso?

Suponham então que, inversamen-te, vocês estão tentando absolver esse homem, mas todas as provas parecem incriminá-lo. O que vocês podem fazer para que os jurados sintam compaixão desse homem, e acabem por absol vê-lo ou ao menos atenuem a sua pena?

• Apresentem aos demais colegas de classe os seus resultados.

O Aerópago era um conselho existente na Atenas antiga, formado por aristocratas que desempenhavam funções políticas. A retórica tinha papel crucial nos debates.

zer isso é como entortar a régua que será usada pelo carpinteiro.” (Aristóte-les, Retórica, 1354a. Nossa versão indi-reta a partir da tradução inglesa de J. H. Freese. Cambridge; Londres: Harvard University Press; Heinemann, 1926)

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Aristóteles

Nasceu na cidade de Estágira, na Macedônia, em

384 a.C., e morreu em Atenas em 322 a.C. Foi, du-

rante algum tempo, responsável pela educação do

jovem Alexandre, filho do rei Filipe da Macedônia,

que iniciou um domínio sobre os Gregos que seu

filho iria expandir, obtendo o mais vasto império até

então conhecido, que alcançou a Índia.

Antes disso, com cerca de dezoito anos, Aristó-

teles viajou a Atenas e logo entrou para a Academia,

escola fundada por Platão (428-348 a.C.). Nela per-

maneceu por vinte anos, deixando-a apenas após a

morte do mestre. Depois de retirar-se de Atenas por

alguns anos, retorna e funda sua própria escola, o

Liceu, no qual ensina até o fim de sua vida.

A filosofia de Aristóteles consiste numa tentati-

va de pensar questões e problemas filosóficos her-

dados do platonismo, mas por vias e por meio de

soluções que frequentemente se

distanciam desse mesmo plato-

nismo. Assim como seu mestre,

Aristóteles foi um autêntico fun-

dador de temas filosóficos, não

somente em áreas que ainda

hoje consideramos como tipica-

mente filosóficas, como metafí-

sica, lógica, ética, como também

em assuntos que posteriormente

ganharam autonomia científica,

como a física ou a biologia. Al-

guns de seu principais escritos

são: Metafísica, Ética a Nicômaco, Primeiros analíticos,

Segundos analíticos, Partes dos animais, Física.

A influência exercida por Aristóteles na Anti-

guidade tardia, na Idade Média (especialmente a

partir da recuperação de importantes livros seus,

à época desconhecidos no Ocidente, conservados

por pensadores árabes) e no início da Modernidade

foi extraordinária, provavelmente inigualada. Sua

metafísica e seu pensamento moral forneceram

elementos analíticos e conceituais para a teologia

cristã durante a Idade Média, e os principais pensa-

dores da Modernidade nele tiveram seu grande ad-

versário, no intuito de propor uma nova concepção

de ciência. Sua ética ainda é vivamente debatida por

pensadores contemporâneos.

Obras de Aristóteles e sua edição críticaPara a localização precisa de textos de Aris-

tóteles, a comunidade de pesquisadores con-

vencionou tomar como referência a edição de

August Immanuel Bekker das obras do filósofo.

O motivo é simples: o filólogo alemão Bekker

(1785-1871) foi o primeiro a realizar uma edição crítica dessas obras, a qual serviu de base para

as posteriores.

O que significa “edição crítica”? Basicamente,

que numa edição dessas são confrontadas e anota-

das todas (ou as principais) fontes documentais de

que dispomos de determinado texto. Como você

pode imaginar, pode ser bastante trabalhoso o

processo de confrontar essas fontes, para localizar

diferenças de um documento a outro (chamadas

variantes: acréscimos, supressões, discrepâncias e

variações de ortografia e gramáti-

ca etc.). Feito isso, o editor crítico

terá de decidir, com base em uma

pesquisa mais abrangente, quais

dessas variantes o texto principal

deve seguir no corpo da página;

as outras variantes são anotadas

em pé de página.

Voltando à edição de Bekker

para as obras de Aristóteles: a

numeração ali utilizada, e que

depois virou padrão nas referên-

cias às obras do filósofo, com-

põe-se de três elementos: o número da página,

a coluna (a ou b) e a linha. Assim, para o seguin-

te trecho (citado no corpo desta Unidade): “[...] é

proibido falar de coisas que não sejam essenciais à

discussão do caso em pauta. Esse é um costume e

um decreto muito sadio. Não é correto atrapalhar

o discernimento de quem julga provocando raiva,

inveja ou compaixão”, a referência é 1354a 14-18.

“1354”: essa página pertence ao livro da Retóri-

ca (aliás, é a primeira, uma vez que, na edição de

Bekker, o livro vai dessa página à página 1419);

“a” indica que o texto referido está na primeira

coluna da página.

“14-18” indica as linhas da coluna em que se

encontra o trecho citado.

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Premissas e conclusões

Há um filme norte-americano que estreou

em 1957 e que se tornou muito conhecido

na segunda metade do século XX, intitulado

Doze homens e uma sentença. (O título origi-

nal, em inglês, é um pouco diferente: Twelve angry men, que pode ser traduzido mais ou

menos assim: “Doze homens irritados”.) O

ator principal é Henry Fonda (1905-1982), o

diretor, Sidney Lumet (1924-2011). A histó-

ria é a seguinte: doze jurados examinam a

acusação de homicídio feita a um réu. Inicial-

mente, todos estão convencidos de que ele é

culpado. Entretanto, um dos jurados, repre-

sentado por Henry Fonda, decide reexaminar

os argumentos levantados pela promotoria a

fim de condenar o réu e, pouco a pouco, se

convence de que não há provas cabais de

que ele seja realmente culpado. Entretanto,

enfrenta dificuldades tremendas para con-

vencer os demais jurados de que estão rea-

lizando um julgamento precipitado sobre o

caso. O desfecho é surpreendente.

Existe uma distinção fundamental en-tre verdade e validade. Apenas sentenças podem ser verdadeiras ou falsas. Argu-mentos podem ser válidos ou não. Essa distinção é tão fundamental que merece ser aprofundada.

As sentenças de uma língua podem ser classificadas de diversas maneiras. Um dos critérios que podemos utilizar para produ-zir uma classificação é a função desempe-nhada pelas sentenças em nossas vidas.

Algumas servem para fazer pergun-tas  – “Que horas são?”. Outras servem para dar ordens ou fazer pedidos – “Pas-se-me o pão, por favor”. Há sentenças que servem para pedir socorro, fazer elogios, insultar, rezar ou simplesmente brincar. Mas há um tipo especial de sentença, que merece uma consideração à parte, pela importância que tem para a vida humana em geral. São as chamadas sentenças de-clarativas.

Uma sentença é declarativa, como o próprio nome indica, caso ela declare algu-ma coisa a respeito de algum assunto  – caso faça aquilo que chamamos de “afirmação”.

Por fazer uma afirmação, a sentença declarativa possui uma propriedade mui-to importante: ela pode ser avaliada do ponto de vista de sua verdade ou falsidade.

Compare isto com o que acontece no caso dos pedidos ou das perguntas. Não faz sentido perguntar se a sentença “Que horas são?” é verdadeira ou falsa. Temos aqui uma pergunta, e perguntas não são (nem podem ser) verdadeiras ou falsas.

Questões podem ser avaliadas, sim, mas não quanto à sua verdade ou falsi-dade. Elas podem ser convenientes ou in-convenientes, precisas ou confusas, fáceis ou complicadas, mas não podem ser ver-dadeiras ou falsas. O mesmo pode ser dito dos pedidos, das preces etc.

Só sentenças declarativas podem ser avaliadas dessa forma. Por exemplo, a sentença:

“Há 15 livros espalhados sobre a minha mesa”

pode ser avaliada do ponto de vista de sua verdade ou falsidade (basta verifi-car se existem livros espalhados sobre a

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minha mesa, e contá-los). Por isso mes-mo, é chamada de sentença declarativa.

Para começo de conversa, um argu-mento não é uma sentença, mas uma ar-ticulação de sentenças declarativas. Com isso, queremos dizer duas coisas. Em pri-meiro lugar, que um argumento sempre envolve mais de uma sentença declarativa. Uma sentença sozinha, isolada, que não en-volva nenhuma outra sentença, jamais será um argumento. Além disso, porém, quere-mos dizer algo ainda mais importante.

Um argumento não é um amontoado de sentenças. Um argumento deve apresen-tar sentenças articuladas entre si, relacio-nadas de um determinado modo. De que modo? Neste ponto, é melhor recorrermos a um exemplo típico de argumento:

Há 15 livros sobre a mesa.

Há pelo menos 50 livros na estante.

Portanto, há menos livros sobre a mesa do que na estante.

Não se pode subestimar a importân-cia que tem a palavra “portanto” nestes contextos. Ela marca a passagem das pre-missas de um argumento à sua conclusão.

As premissas são as afirmações de que partimos. A conclusão é a afirmação a que chegamos. A palavra “portanto” mar-ca explicitamente essa relação. Ela não é, aliás, a única expressão capaz de fazer isso. Em vez de “portanto”, poderíamos usar uma série de outras expressões:

Essa articulação entre as premissas e a conclusão pode inclusive vir marcada de um modo mais sutil. Poderíamos expres-sar o mesmo argumento que acabamos

de examinar enunciando a conclusão an-tes das premissas:

Há menos livros sobre a mesa do que na estante, pois sobre a mesa há 15 livros e na estante há mais de 50.

Neste caso, a palavra “pois” indica que, depois dela, serão dadas as razões que eu tenho para afirmar que há menos livros so-bre a mesa do que na estante. Essas razões não são outra coisa senão as premissas que me permitiram tirar a conclusão que tirei. E a lista não para aqui. Outras construções poderiam ser usadas, todas elas sinalizan-do essa mesma articulação entre sentenças que é característica de um argumento: a re-lação entre as premissas de que eu parto e a conclusão a que eu chego.

É essa relação que é avaliada, quando avaliamos um argumento. O que per-guntamos basicamente é se as premissas dão ou não suporte à conclusão – se elas permitem que eu conclua o que concluí. No caso que examinamos, isso claramen-te acontece: se é verdade que há 15 livros sobre a mesa, e se é verdade que há mais de 50 livros na estante, então tem de ser verdade que há mais livros na estante do que sobre a mesa. É impossível que essas premissas sejam verdadeiras e a conclu-são seja falsa. Se estou disposto a afirmar as premissas, tenho de estar disposto a afirmar a conclusão. Por isso dizemos que esse argumento é válido.

Nesse caso, a validade do argumen-to dependia completamente do uso que fazemos dos números naturais (como 15 e 50) e também de palavras como “mais” e “menos”. Se há 15 objetos de tipo A (“li-vros sobre a mesa”) e mais de 50 objetos de tipo B (“livros na estante”), então há menos objetos de tipo A do que objetos de tipo B: isso vale para quaisquer objetos que estejamos contando. A relação entre as premissas e a conclusão será sempre boa: se supusermos que as premissas são verdadeiras, seremos obrigados a supor que a conclusão também é.

Segue-se daí que...

... há menos livros sobre a mesa do que na estante

Podemos concluir daí que...

Em consequência disso, ...

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Sentenças universais, particulares e singulares

Em muitas ocasiões, porém, não uti-lizamos números para nos referirmos a objetos de um certo tipo. Veja o que acontece neste argumento:

Todo contador tem uma boa memória.Há pelo menos um atleta que não tem

uma boa memória.Há pelo menos um atleta que não é

contador.Ele é tão válido quando o argumento

dos livros sobre a mesa, que vimos mais acima. A situação descrita nessas duas premissas pode ser representada grafica-mente do seguinte modo:

A inclusão do círculo vermelho no círcu-lo verde representa aqui a sentença “Todo contador tem boa memória”, e o “X” posto na área cinzenta representa um atleta que não tem boa memória. Ora, se esse X é um atleta que não tem boa memória, então fica evidente que ele também não é um conta-dor: se existem atletas fora do círculo das pessoas de boa memória (como diz a se-gunda premissa), esses atletas têm de estar fora do círculo dos contadores (como diz a conclusão), já que (como diz a primeira pre-missa) todo contador tem boa memória.

Como você percebe, aqui não temos nú-meros organizando o nosso argumento. Em seu lugar, temos expressões como “todo”, “pelo menos um” e “não”. As premissas não dizem quantos contadores existem, ou quantas são as pessoas de boa memória. Diz apenas que (sejam elas quantas forem) todas as pessoas pertencentes ao primeiro grupo pertencem também ao segundo.

Sentenças que se referem a todos os elementos de um determinado grupo são chamadas de universais.

Sentenças que se referem a apenas al-guns desses elementos são chamadas de particulares.

Finalmente, temos sentenças que po-deríamos chamar de individuais ou singu-lares, pois se referem a um indivíduo espe-cificamente. Por exemplo:

Ludovico é contador.

Não estamos falando aqui simples-mente que “alguém” é contador, sem es-pecificar quem. Estamos nos referindo a uma pessoa específica, a um indivíduo.

Existe um número enorme de argu-mentos envolvendo sentenças univer-sais, particulares e singulares, tanto afir-mativas quanto negativas. Esta seção é dedicada ao estudo desses argumentos e do funcionamento do vocabulário lógico associado a eles.

A primeira coisa a ser notada é que existem inúmeras maneiras de expressar sentenças universais e particulares. Em vez de dizer:

Todo contador tem boa memória.

podemos dizer:Todos os contadores têm boa memória.

Contadores têm boa memória.

Não há contador que não tenha boa memória.

Os contadores têm boa memória.

E assim por diante. É bem verdade que essa equivalência não é perfeita. Cada uma dessas variantes possui conotações específicas, que variam de um contex-to para outro. Assim, é bastante comum usarmos uma sentença como a segunda e a última de nossa lista para dizer que, em geral, em sua maioria, os contadores têm boa memória. Outras vezes, a pessoa está querendo se referir a todos, sem exceção:

Tubarões são carnívoros.

Os tubarões são carnívoros.88

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Ninguém imaginaria, nesse caso, que a pessoa esteja admitindo a hipótese de que alguns tubarões sejam vegetarianos. O que se está querendo dizer, claramente, é que todos são carnívoros.

Da mesma forma, os enunciados par-ticulares podem ser expressos de muitas formas:

Alguns atletas não têm boa memória.

Há atletas que não têm boa memória.

Algum atleta não tem boa memória.

Existe pelo menos um atleta que não tem boa memória.

Novamente, existem diferenças sutis entre esses enunciados. Note que a última sen-tença menciona “pelo menos um atleta”, ao passo que as outras duas primeiras falam em “atletas” e “alguns atletas”, no plural.

Em determinados contextos, o uso do plural nesse tipo de sentença deve ser levado em conta; noutros, ele não tem maior importância. Se digo que alguns alunos serão selecionados para ganhar uma bolsa de estudo, e só um aluno for selecionado, haverá dúvidas a respeito da natureza de minha promessa. Dizendo aquilo, eu havia prometido que pelo menos dois alunos seriam selecionados; ou o uso do plural, nesse caso, não deve ser levado ao pé da letra? Novamente, só o contexto poderá dizer o que está acontecendo em cada caso.

No que diz respeito à lógica, porém, essas coisas têm de estar muito bem de-terminadas, pois dizer “pelo menos um” é muito diferente de dizer “pelo menos dois” ou “pelo menos três”. Quem tem pelo menos dois amigos, tem pelo me-nos um; mas é possível ter pelo menos um sem que se tenha pelo menos dois. É preciso distinguir cuidadosamente esses pequenos detalhes. Para isso, vamos fazer uma convenção.

Além dos casos em que estamos falan-do de um único indivíduo, estudaremos, nesta seção, casos em que nos referimos a todos os membros de um certo grupo, sem

exceção, e casos em que nos referimos a pelo menos um membro de um certo grupo.

Se estamos falando de pelo menos um membro de certo grupo, há duas possi-bilidades. Podemos afirmar alguma coi sa desse indivíduo, ou negar alguma coisa a respeito dele. Essa diferença pode ser facil-mente expressa, em português, mediante o uso da palavra “não”. Compare:

Algum contador tem boa memória.Algum contador não tem boa memória.

Da mesma forma, podemos afirmar ou negar algo a respeito de todos os membros de um grupo. No primeiro caso, usaremos a palavra “todo”:

Todo contador tem boa memória.

No segundo caso, se usarmos a palavra “todo” obteremos uma construção que não soa muito bem em português:

Todo contador não tem boa memória.

Embora não esteja errado nos expressar-mos dessa maneira, é muito mais simples e mais usual recorrermos, nesse caso, à palavra “nenhum”:

Nenhum contador tem boa memória.

A sentença tem exatamente o sentido que pretendíamos que ela tivesse. Estamos fa-lando a respeito de todos os contadores, e estamos dizendo que todos eles, sem exce-ção, são desprovidos de boa memória.

Negação de sentençasAgora, veja que coisa interessante. Nor-

malmente, a palavra “não” é utilizada para construir a negação de uma certa sentença:

Fui à feira. / Não fui à feira.

Está chovendo. / Não está chovendo.

Ludovico é contador. / Ludovico não é contador.

Uma sentença é a negação de uma outra se a verdade de uma implica a falsidade da outra e vice-versa. Se é verdade que fui à feira, é falso dizer que não fui. Se é verdade

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que não fui, é falso dizer que fui. Se é ver-dade que exatamente esse pedaço do chão está molhado, é falso dizer que não está. Se é verdade que não está molhado, é falso dizer que está. Uma sentença e sua negação sempre devem ter valores de verdade opos-tos. Não é isso o que acontece, porém, com as sentenças:

Algum contador tem boa memória.

Algum contador não tem boa memória.

Note que estas sentenças podem perfeita-mente ser verdadeiras ao mesmo tempo. Como questão de fato, aliás, é bem provável que haja contadores dos dois tipos: os que têm boa memória e os que não têm. Se é as-sim, então devemos concluir que a segunda sentença não é a negação da primeira. Nesse caso, não basta acrescentar um “não” à sen-tença para obtermos a sua negação. Temos que recorrer a algum outro meio.

Para descobrir qual é a negação das duas sentenças acima, vamos imaginar que você

vá criar o mundo novamente. Você quer criar um mundo no qual seja falso que al-gum contador tenha boa memória. Nesse mundo, nenhum contador poderia ter boa memória. Por outro lado, num mundo no qual é verdadeiro que existe pelo menos um contador dotado de boa memória, é falso que nenhum contador tenha memória boa. Isso nos mostra que a negação de:

Algum contador tem boa memória

não é

Algum contador não tem boa memória

mas sim

Nenhum contador tem boa memória

Da mesma forma, a negação de

Algum contador não tem boa memória

é

Todo contador tem boa memória;

pois a única forma de criar um mundo no qual seja falso que exista um contador com boa memória é criar um mundo no qual todos tenham.

Temos, portanto, quatro tipos de sentenças a considerar. Elas se opõem duas a duas:

Todo contador tem boa memória.

Nenhum contador tem boa memória.

xAlgum contador tem boa memória.

Algum contador não tem boa memória.

A cruz no meio desse diagrama indica as proposições que se contradizem, isto é, que são a negação uma da outra. Utilizan-do a terminologia que acabamos de ado-tar, chegaremos ao seguinte gráfico:

Exercício individual em sala de aula

Veja se consegue determinar qual é a negação das seguintes sentenças:1) Todo cantor que está iniciando sua carreira gosta de ser aplaudido.2) Algum dos convidados não estava presente.3) Há pelo menos um jogador que não irá receber a medalha.4) Ninguém gosta de ser traído.5) Alguém não trouxe os documentos que pedi.6) Carlos chegará da Inglaterra amanhã ao meio-dia.7) Todos estão ansiosos com as provas.8) Nem tudo que reluz é ouro.9) Quem desdenha quer comprar.10) Há males que vêm para o bem.90

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UNIVERSAL AFIRMATIVA

UNIVERSAL NEGATIVA

xPARTICULAR AFIRMATIVA

PARTICULAR NEGATIVA

A negação de uma sentença universal afirmativa é sempre a sentença particular negativa correspondente; e a negação de uma sentença universal negativa é sempre a sentença particular afirmativa corres-pondente.

Esse esquema com os quatro tipos prin-cipais de sentenças foi proposto pela pri-meira vez por Aristóteles[+], em seu Tratado da interpretação. Ele ficou conhecido com o nome de “quadrado da oposição”, pois nele estão representadas as principais oposições existentes entre proposições desse tipo. Nas diagonais, temos sentenças contraditó-rias entre si, isto é, sentenças que se negam umas às outras. À esquerda, temos proposi-ções afirmativas; à direita, proposições ne-gativas. Acima, temos proposições univer-sais; abaixo, proposições particulares.

Como argumentos funcionamToda essa discussão teve início com o es-

tudo de argumentos que estão baseados no uso de palavras como “algum”, “todo”, “nenhum” e “não”. Agora que estudamos em detalhe o funcionamento de sentenças nas quais essas palavras aparecem, estamos em condições de compreender melhor como é que aqueles argumentos funcionam. Para isso, precisaremos de um modo uniforme de se representar as sentenças do quadra-do da oposição. Usaremos diagramas se-melhantes ao que usamos no começo deste módulo, mas que se aplicam a um número muito maior de casos.

Sentenças universais afirmativas, da forma “Todo S é P”, serão representadas do seguinte modo:

Aqui, a área cinzenta representa a inexistência de qualquer coisa nessa re-gião do círculo S que está fora do círcu-lo P. Representa o fato, portanto, de que não existe nenhum S que não seja P, ou, como costumamos dizer, o fato de que todo S é P.

Sentenças universais negativas, do tipo “Nenhum S é P”, serão simbolizadas assim:

A região cinzenta, agora, está posta na intersecção entre S e P, mostrando que não existe nenhum elemento comum às duas regiões. Em palavras, é isso que ex-pressaríamos dizendo: “Nenhum S é P”.

Para simbolizar as sentenças particu-lares, utilizaremos um “x” posto dentro de uma certa região do círculo para in-dicar que, ali, existe pelo menos um indi-víduo. Por exemplo, para dizermos que “Algum S é P”, utilizaremos o diagrama:

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Finalmente, para dizer que “Algum S não é P”, poremos o “x” na região de S que é exterior a P, indicando que existe pelo menos um elemento que está incluí-do em S, mas não em P:

Usando esses diagramas, podemos testar um grande número de argumen-tos que estão baseados no uso das pala-vras “todo”, “algum”, “nenhum” e “não”. Vamos voltar ao argumento que estuda-mos no início deste módulo e ver como ele poderia ser simbolizado com o auxí-lio de nossos diagramas. O argumento era o seguinte:Todo contador tem uma boa memória.

Há pelo menos um atleta que não tem uma boa memória.

Portanto, há pelo menos um atleta que não é contador.

Utilizando as letras “C”, “M” e “A” para representar respectivamente as expres-sões “contador”, “pessoa com boa memó-ria” e “atleta”, teríamos um argumento com a seguinte forma:

Todo C é M.

Algum A não é M.

Portanto, algum A não é C.

Sabemos como representar a primei-ra premissa. Sabemos como representar a segunda premissa. E também sabemos como representar a conclusão. Cada uma dessas sentenças corresponde a um dos diagramas que acabamos de examinar. Como poderíamos, porém, representar as duas premissas ao mesmo tempo? Elas não envolvem dois círculos apenas. En-volvem três: o círculo dos contadores (C), o círculo das pessoas com boa memória (M), e o círculo dos atletas (A). Partire-

mos, então, de uma figura na qual exis-tem três círculos entrelaçados:

A C

M

Agora, devemos representar as premis-sas do argumento nesse diagrama. Por onde começar? Pela primeira premissa ou pela segunda? Normalmente, tanto faz. No entanto, como existe aqui uma pre-missa particular e uma universal, é sem-pre melhor (e causa menos problemas) começar pela representação da universal. Representemos, então, a primeira premis-sa, afirmando que todo contador (C) tem boa memória (M). Os círculos que nos in-teressam são apenas os círculos de C e de M. Para dizer que todo C é M, devemos pintar de cinza toda a região de C que está fora de M. O resultado será este:

A C

M

Agora, vamos representar a segunda premissa – uma sentença particular nega-tiva – nesse mesmo diagrama. Ela diz que existe pelo menos um atleta (A) que não tem boa memória (M). Tudo o que temos a fazer é ir até o círculo dos atletas e pôr uma letra “x” na região que está fora do círculo das pessoas que têm boa memória. 92

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O diagrama ficará assim:

A C

M

Pronto. Aí estão as duas premissas re-presentadas. Como saber se o argumento é válido?

Vamos lembrar o que é necessário para que um argumento seja válido. Se um argu-mento é válido, deve ser impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Quando um argumento é válido, se imaginarmos as premissas verdadeiras, somos obrigados a imaginar que a conclu-são é verdadeira também.

Estamos diante de uma “figura” daqui-lo que as duas primeiras premissas afir-mam que acontece: todos os contadores terem boa memória e existir pelo menos um atleta que não tenha boa memória.

Vejamos se é possível imaginar que a conclusão do argumento é falsa. Ela afir-ma que existe pelo menos um atleta que não é contador. Ora, é fácil ver que o dia-grama das premissas me obriga a aceitar essa conclusão como verdadeira. O mes-mo “x” que usamos para representar a existência de um atleta que não tem boa memória está ali representando a exis-tência de um atleta que não é contador. É impossível, portanto, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. O argumento é válido.

Considere, agora, um outro argumen-to muito semelhante a esse primeiro:

Todo contador tem uma boa memória.Há pelo menos um atleta que tem uma

boa memória.

Portanto, há pelo menos um atleta que é contador.

(Repare que só retiramos a palavra “não” da segunda premissa e da conclu-são.) Será que esse argumento é válido? Vamos primeiro esquematizá-lo, usando as mesmas letras que usamos antes:

Todo C é M.

Algum A é M.

Portanto, algum A é C.

Notem que o diagrama para a primeira premissa não muda. Só teremos que mu-dar a simbolização da segunda premissa. Ao invés de pormos o “x” na região de A exterior a M, devemos pôr o “x” na região comum aos atletas e aos homens que têm boa memória. No entanto, existem aqui duas possibilidades. Reparem que essa re-gião comum tem duas sub-regiões:

A C

M

E agora? Onde posicionar o nosso “x”? Na região vermelha, ou na região azul? A segunda premissa não me diz nada a res-peito. Ela só me diz que existe um atleta que tem boa memória. Não me diz se esse atleta de boa memória está fora do círculo dos contadores...

A C

M93

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... ou dentro dele:

A C

M

Como a premissa não diz nada, deve-mos adotar uma solução neutra: poremos o nosso “x” em cima da linha, indicando que não sabemos se ele está dentro ou fora do círculo dos contadores:

A C

M

Pronto. Agora, temos uma boa repre-sentação de nossas duas premissas.

A pergunta que devemos fazer é a seguinte: se isso que o gráfico represen-ta fosse verdadeiro, seria possível que a conclusão fosse falsa? A resposta é cla-ramente “sim”. A conclusão afirma que existe pelo menos um contador que tem boa memória. Nosso gráfico está afir-mando isso? É claro que não. Nosso grá-fico nos mostra exatamente o contrário: estamos em dúvida a respeito disso. As premissas não nos obrigam a posicionar o “x” no interior do círculo dos contado-res. O “x” pode tanto estar dentro daque-la região, quanto fora dela. Portanto, é perfeitamente possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja fal-sa. O argumento não é válido.

Argumentos válidos?Desenvolvimento individual por escrito.

Vamos agora testar a validade dos seguintes argumentos:

1) Não há médico competente que não seja estudioso. Nenhum mé-dico que trabalha nesse hospital é competente. Portanto, nenhum médico que trabalha nesse hos-pital é estudioso.

2) Não há médico estudioso que não seja competente. Nenhum médico que trabalha nesse hos-pital é competente. Portanto, ne-nhum médico que trabalha nes-se hospital é estudioso.

3) Todos os rios desta região estão poluídos, embora nem todos se-jam perigosos. Pode-se concluir daí que nenhum rio poluído des-ta região é perigoso.

4) Não há rio que seja seguro, em-bora alguns sejam fascinantes. Isso mostra que nem tudo que é fascinante é também seguro.

5) Todos os policiais que faziam a ronda da cidade a cavalo desper-tavam o orgulho de seus familia-res. Todo aspirante que se clas-sificava entre os dez melhores alunos do curso passava a fazer a ronda da cidade a cavalo. Pode--se concluir daí que todo policial que despertava o orgulho de seus familiares havia se classifi-cado entre os dez melhores alu-nos do curso.

6) Nem tudo que reluz é de ouro, e nem tudo que é de ouro nos traz felicidade. Portanto, nem tudo que reluz nos traz felicidade.94

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A lógica contemporânea desenvolveu-se a

partir dos trabalhos de autores como Gottlob

Frege (1848-1925) e Bertrand Russell (1872-1970),

que criaram linguagens artificiais para codificar os

processos de inferência. Sentenças da linguagem

cotidiana podem ser reescritas nessas linguagens

artificiais – adquirindo um aspecto um pouco es-

tranho para não especialistas, mas muito útil para

se testar se uma inferência é válida ou não.

Uma característica dessas linguagens artifi-

ciais é possuir símbolos especiais corresponden-

tes a palavras e expressões da linguagem coti-

diana que são fundamentais para entendermos

os processos de inferência. Abaixo estão algu-

mas das principais palavras desse tipo e alguns

dos símbolos usados nas linguagens artificiais

da lógica para representá-las. Vejamos como

funciona cada um desses símbolos.

ALGUNS PRINCÍPIOS DE LÓGICA FORMAL

Nome formal

SímboloInterpretação na

linguagem comum

Negação ¬ “não”

Conjunção ⋀ “e”

Disjunção ⋁ “ou”

Condicional ⟶ “se... então”

Bicondicional ⟷ “se e somente se”

Negação (“não”)

É a operação que inverte o valor de verdade de

uma proposição. Se p for uma proposição qualquer,

então, se p for verdadeira, ¬p será uma proposição

falsa; se p for falsa, ¬p será verdadeira. Podemos

representar o funcionamento desse símbolo lógico

por meio de uma tabela de verdade:

p ¬ p

V F

F V

A tabela nos mostra o funcionamento do

símbolo ¬, que como vimos corresponde à pa-

lavra “não” da linguagem cotidiana. Na coluna

da esquerda, listamos os dois valores de ver-

dade que a proposição p pode possuir: ou ela

é verdadeira (V), ou é falsa (F). Na coluna da

direita, você vê o valor que a negação assume

em cada caso: falsa quando p é verdadeira, e

verdadeira quando p é falsa.

Conjunção (“e”)

A a palavra “e” também é importante para a lógica.

Uma proposição na qual duas outras proposições

estão unidas pela palavra “e” é chamada na lógica de

“conjunção”. Uma conjunção só é verdadeira caso

as duas proposições conectadas pela palavra “e”

forem verdadeiras. Um dos símbolos comumente

usados pelos lógicos para simbolizar a conjunção é

⋀. Eis a tabela de verdade de uma conjunção:

p q p ⋀ qV V V

V F F

F V F

F F F

Como se vê, a conjunção “p ⋀ q” só é verda-

deira na primeira linha, quando tanto p quanto

q são verdadeiras. Em todas as outras linhas, a

conjunção é falsa.

Vamos imaginar que no lugar da letra “p” te-

nhamos a proposição “5 é um número primo”

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e que no lugar da letra “q” tenhamos a pro-

posição “9 é múltiplo de 2”. A conjunção p ⋀ q

corresponderia à sentença:

“5 é um número primo ⋀ 9 é múltiplo de 2”que é falsa, pois a proposição correspondente à

letra “q” é falsa. Temos, portanto, o caso corres-

pondente à segunda linha da tabela.

Disjunção (“ou”)

Para que uma disjunção seja verdadeira,

basta que apenas um dos elementos conectados

seja verdadeiro.

p q p ⋁ q

V V V

V F V

F V V

F F F

Colocando as mesmas proposições no lugar

das letras “p” e “q”, obteríamos agora a proposição

“5 é um número primo ⋁ 9 é múltiplo de 2”que é uma proposição verdadeira, conforme se

pode verificar na segunda linha da tabela.

Condicional (“se... então”)

Um enunciado condicional tem a forma “se p,

então q”, e é simbolizado nas linguagens artifi-

ciais da lógica por meio do símbolo ⟶. A pro-

posição que é posta antes desse símbolo é cha-

mada de “antecedente”; a que é posta depois é

chamada de “consequente”. Um condicional só

é falso caso seu antecedente seja verdadeiro e

seu consequente seja falso. Em todos os outros

casos, o condicional é verdadeiro. Vejamos isso

numa tabela de verdade:

p q p ⟶ qV V V

V F F

F V V

F F V

Recorrendo mais uma vez a nosso exemplo,

obteremos a proposição:

“5 é um número primo ⟶ 9 é múltiplo de 2” Esta é uma proposição falsa, pois “5 é um nú-

mero primo” (o antecedente) é uma proposição

verdadeira e “9 é múltiplo de 2” (o consequente)

é uma proposição falsa. Se invertermos a posição

do antecedente e do consequente, porém, tudo

muda. A proposição:

“9 é múltiplo de 2 ⟶ 5 é um número primo”é verdadeira, pois tem antecedente falso e

consequente verdadeiro, o que corresponde à

terceira linha de nossa tabela.

Note que, se tivermos duas proposições

falsas, o condicional será verdadeiro, como se

pode ver consultando a última linha da tabela.

Assim, muito embora isso pareça estranho, a

proposição:

“A Lua é de queijo ⟶ 2+3=77”é uma proposição verdadeira, pois tem antece-

dente falso e consequente falso.

Bicondicional (“se e somente se”)

Um bicondicional só será verdadeiro se

o valor das duas sentenças conectadas for o

mesmo.

x y x ⟷ y

V V V

V F F

F V F

F F V

Note que a proposição

“5 é um número primo ⟷ 9 é múltiplo de 2” é falsa, pois a primeira proposição é verdadeira e

a segunda é falsa. Já a proposição

“A Lua é de queijo ⟷ 2+3=77”é verdadeira, pois as duas proposições têm o

mesmo valor de verdade (ambas são falsas).

ALGUNS PRINCÍPIOS DE LÓGICA FORMAL

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Expressões lógicas no nosso cotidianoPesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Quando fazemos pesquisas na internet ou em outros bancos de dados, muitas ve-zes usamos expressões lógicas. Digamos que você queira lembrar o nome de uma canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiro”, ou conhecer grava-ções dela.

Se, num site de buscas ou banco de da-dos, você digitar

pandeiro OR(melodia)encontrará milhares de resultados que não lhe interessam. Isso porque o mo-tor de busca utilizou a disjunção, o ope-rador “ou” (⋁), e trará resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro ou melodia.

Você pode direcionar melhor sua pes-quisa, por exemplo digitando no campo de busca:

pandeiro AND(melodia)ou

pandeiro +melodiaO que significa essa expressão? Que

estamos interessados em todos resulta-dos que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. Não queremos registros que tragam apenas um deles, só “pandeiro” sem “melodia”, nem apenas “melodia” sem “pandeiro”.

Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não está mesmo inte-ressado no grande artista paraibano Jackson do Pandeiro (nome artístico de José Gomes Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de res-tringir ainda mais os resultados de sua bus-ca, por meio da expressão:

pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson)ou pandeiro +melodia -Jackson• No exemplo acima, que operadores

lógicos foram utilizados? Tente “traduzi-lo” para a linguagem lógica formal, utilizando os operadores e símbolos explicados no box sobre conectivos lógicos. (Um aviso: motores de busca da internet não costu-mam reconhecer esses símbolos; o objetivo é somente compreender quais são esses conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prática.)

• Em seguida, construa outras expressões de busca, mais complexas. Por exemplo: você está interessado em resultados que tenham a ver com “mangueira”, que podem ser ou não referentes à escola de samba ca-rioca, mas que não tenham a ver diretamen-te com a árvore frutífera do gênero Mangife-ra. Como deveríamos formular a expressão de busca? Há mais de um modo de fazê-lo? Experimente formular, por escrito, duas ou-tras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

Falácia e argumento

De acordo com a noção mais geral de “argumento”, toda pessoa que argu-menta está sempre tentando persuadir um determinado “auditório”. Esse audi-tório pode ter dimensões muito diferen-tes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

apenas uma pessoa – tome como exemplo um vendedor que tenta convencer você a comprar um determinado produto numa loja. O auditório de quem argumenta pode também ser composto por um pe-queno grupo de pessoas – é o que acon-tece quando o professor de matemática

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demonstra um teorema na lousa. E pode também ser composto por milhões e mi-lhões de pessoas  – pense, por exemplo, em campanhas políticas ou publicitárias.

Em todos esses casos, temos uma pes-soa (ou um grupo de pessoas) tentando convencer seus ouvintes (ou leitores) a respeito de alguma coisa, e via de regra quem procura convencer lançará mão de argumentos: tentará levar seu auditório a aceitar uma determinada conclusão tendo como base determinadas premissas.

As premissas são as sentenças de que tanto eu quanto o meu auditório partimos. A conclusão é a senten-ça a que pretendo fazer meu auditório chegar. A questão, porém, é que nem todo argumento é bom, e nem todo bom argumento tem a mesma força. Um argumento é bom caso suas premis-sas efetivamente levem à conclusão desejada.

O problema é que nem todo argumento que pare-ce bom é realmente bom. Há argumentos que nos enganam. Muitas vezes, somos levados a pensar que estamos auto-rizados pelas premissas a chegar a uma cer-ta conclusão, mas na verdade não estamos. Vejamos como isso acontece.

Considere, em primeiro lugar, o se-guinte argumento: “O saldo bancário de Carlos, embora positivo, é metade do saldo de Antônio. O saldo de Vicente é 1/3 superior ao de Carlos. É óbvio, por-tanto, que o saldo de Antônio é superior ao de Vicente.”

O argumento é irretocável. Se é verda-de que o saldo de Carlos, embora positi-vo, é metade do saldo de Antônio, então o saldo de Vicente teria de ser o dobro do saldo de Carlos para alcançar o de Antô-nio. Como é só 1/3 superior, não alcança.

Portanto, se o que as premissas dizem é verdadeiro, o que a conclusão diz deve ser verdadeiro também – o saldo de Antô-nio deve ser superior ao de Vicente.

Compare esse argumento que acaba-mos de examinar com este outro: “Todos os que foram à estreia da companhia de teatro puderam formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desempe-nho dos atores. Alguns críticos não foram à estreia. A opinião de alguns críticos, portanto, não está bem fundamentada.”

O que você acha? Este argumento é bom? É fácil mostrar que não.

Suponhamos que se-ja mesmo verdade que todos os que foram à estreia puderam formar uma opinião bem fun-damentada a respeito do desempenho dos ato-res. É claro que isto não precisa ser verdadeiro. Alguém pode ir à estreia e dormir durante todo o espetáculo, ou pode ter uma ligação afetiva tão forte com um dos atores que se mostre incapaz de formar uma opinião

minimamente isenta. Suponhamos, en-tretanto, que a premissa seja verdadei-ra  – suponhamos que todas as pessoas que foram à estreia saíram do teatro em condições de formar uma opinião fun-damentada a respeito do desempenho dos atores.

Suponhamos que a segunda premissa também seja verdadeira e que alguns crí-ticos teatrais não tenham ido à estreia da peça em questão. Novamente, é claro que isto pode ser falso. Supondo, no entanto, que as duas premissas sejam verdadeiras, será que a conclusão tem que ser verda-deira também? É claro que não. Supo-nhamos que os críticos a que se refere a conclusão sejam idênticos àqueles men-

Nem todo argumento que parece bom

realmente é. Muitas vezes pensamos poder chegar a certa conclusão pelas premissas,

mas na verdade não podemos.

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cionados na segunda premissa (o que não é de modo algum necessário).

Mesmo assim, um crítico que não ti-vesse ido à estreia poderia ter ido ao en-saio geral da peça, ou então a uma outra apresentação qualquer, no segundo ou no terceiro dia. Poderia também ter forma-do sua opinião conversando com colegas seus, nos quais confia, que foram à peça e estavam em condições de lhe dar uma des-crição detalhada do desempenho de cada um dos atores.

Para que você perceba melhor a situa-ção envolvida, compare o argumento que acabamos de analisar com este outro: “Somente os que foram à estreia da com-panhia de teatro puderam formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desempenho dos atores. Alguns críticos não foram à estreia. A opinião de alguns críticos, portanto, não está bem funda-mentada.” Repare que a única diferença em relação ao argumento anterior é o uso da palavra “somente” ao invés da palavra “todos”. A diferença pode parecer peque-na, mas, neste caso, é decisiva.

Suponha que a primeira premissa seja verdadeira: que apenas (apenas, veja bem!) as pessoas que foram à estreia es-tavam em condições de formar uma opi-nião fundamentada sobre o desempenho dos atores. Ora, se isso for verdade, e se também for verdade que alguns críticos não foram à estreia, a conclusão inevitá-vel é que esses críticos não estavam em condições de dar opiniões fundamenta-das a respeito do desempenho dos atores. Aqui, não há escapatória. O argumento é bom. Se suas premissas forem verdadei-ras, a conclusão também será verdadeira.

Existe, portanto, uma certa relação entre as premissas e a conclusão, no caso do pri-meiro argumento, que não existe no caso do segundo. No segundo caso, as premissas dão apoio à conclusão, podem ser citadas como evidências em favor dela, como razões para aceitá-la. No primeiro caso, não. As premissas não fornecem apoio para acei-

tarmos a conclusão. Se a aceitamos, é por outras razões, que não aquelas apresen-tadas nas premissas. Como você reparou, porém, os dois argumentos são muito pa-recidos. Eles só diferem no detalhe – neste caso, pela substituição da palavra “todos” pela palavra “somente”. Isso faz com que o primeiro argumento nos engane. Ele pare-ce ser bom, embora na verdade não o seja. Argumentos assim, que parecem ser bons, mas não são, nós chamaremos de falácias.

É fundamental que você aprenda a re-conhecer uma falácia. É por meio das falá-cias que somos enganados – às vezes até por nós mesmos. Em todos os contextos em que são utilizados argumentos, quem argumenta pode muito bem lançar mão de falácias, fazendo-nos tirar conclusões equivocadas que poderíamos perfeita-mente evitar. É por isso que o estudo das falácias é tão importante. Conhecendo-as, seremos capazes de identificar um mau argumento e contestá-lo (se ele nos for apresentado por outra pessoa), ou sim-plesmente não usá-lo (caso nós mesmos o estejamos querendo apresentar).

Falácia formalA falácia encontrada no argumento que

apresentamos acima envolve uma forma argumentativa que é falaciosa. Isso quer dizer que ela pertence a um grupo de argu-mentos caracterizado por uma determina-da estrutura. Essa estrutura pode ser me-lhor observada se empregarmos variáveis. Considere o seguinte esquema:

Todo(a) A é B.

Algum(a) C não é A.

Portanto, algum(a) C não é B.

Neste esquema, a letra “A” está no lugar da expressão “pessoa que foi à estreia da companhia de teatro”; a letra B, no lugar de “pessoa que podia formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desem-penho dos atores”; e a letra “C”, no lugar de “crítico”. Nenhum argumento que tenha

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essa forma é válido. Todos eles são falacio-sos, o que você pode constatar facilmente fazendo um diagrama. Simbolizemos pri-meiramente a premissa universal, afirman-do que todo A é B:

Agora, simbolizemos a segunda pre-missa, afirmando que algum C não é A. Para isso, faremos um “X” na região do círculo C que está fora do círculo A. Ora, se você observar bem, verá que há duas regiões em que esse “X” poderia ser posto: dentro da parte que é comum a C e a B, ou então dentro da parte que pertence ex-clusivamente ao círculo C. Ora, nossa pre-missa não me permite decidir entre uma região e a outra: ela me diz que algum C não é A, mas não me diz se esse C que não está incluso em A pertence a B ou não. A premissa não toma nenhuma decisão a esse respeito e, por isso, nós também não devemos tomar. Vamos posicionar o “X” em cima da linha divisória, para mostrar que não temos como saber se esse X per-tence a B ou não:

Pronto. Esse diagrama é o “retrato” das duas premissas de qualquer argumen-to que tenha a mesma forma da falácia apresentada acima. Nele, podemos ver

claramente que a conclusão não está re-presentada. A conclusão afirmava que al-gum C não é B, e o diagrama mostra que as premissas simplesmente não me per-mitem decidir se isso é verdade ou não. Todo e qualquer argumento que tenha essa forma, portanto, é falacioso, e é por isso que chamamos esse tipo de falácia de “falácia formal”.

Sentenças com termos equívocosNem toda falácia, no entanto, é for-

mal. As mais importantes e frequentes, aliás, não o são. Um exemplo simples de falácia não formal é aquela que envolve o uso de termos equívocos, ou seja, com mais de um significado. Considere a se-guinte sentença:

Todos os bancos desta praça estão quebrados.

A palavra “banco”, você sabe, pode se referir a uma instituição financeira, e também a um objeto: um assento feito de madeira, pedra ou outro material. Tanto a instituição financeira quanto o assento podem estar “quebrados”, mas em senti-dos diferentes. A instituição financeira “quebra” quando suas dívidas são irrever-sivelmente maiores que seus haveres. O assento está quebrado quando está mate-rialmente partido. Contudo, convém lem-brar que a palavra “praça” também é equí-voca. Ela pode significar uma “área pública aberta dentro de uma cidade”, como a Pra-ça do Rosário, em Caruaru; mas pode tam-bém significar a “comunidade comercial e financeira de uma cidade”, isto é, o con-junto dos estabelecimentos de comércio e serviços de uma cidade (definições base-adas no Dicionário Houaiss da Língua Por-tuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009). Neste último sentido, podemos dizer que Fulano “não tem crédito na praça”, ou seja, não consegue fazer compras a presta-ção nas lojas, nem tomar empréstimo nos bancos de uma cidade. Portanto, a sen-tença que demos acima tem dois sentidos

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A B

C

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A B

C

completamente diversos. Ela pode querer dizer que todos os assentos de uma pra-ça estão partidos, e também pode querer dizer que todas as instituições financeiras de uma cidade estão insolventes.

Considere agora o seguinte argumento:

Todos os bancos desta praça estão quebrados.

Nenhum banco estrangeiro está quebrado.

Nenhum banco desta praça é estrangeiro.

Em princípio, o argumento parece bom. Usemos as seguintes abreviações:

A: banco (instituição financeira) desta praça (localidade comercial e financeira)

B: banco que está quebrado

C: banco estrangeiro

Podemos simbolizar aquilo que está dito nas duas primeiras premissas por meio do seguinte diagrama:

É fácil ver que, ao simbolizar as duas premissas, a conclusão já fica simbolizada. Com efeito, a conclusão de nosso argu-mento (“Nenhum banco desta praça é es-trangeiro”) seria abreviada pelo esquema “Nenhum A é C”, e o diagrama exibe toda a região comum aos círculos A e C preenchi-da de vermelho e de verde, indicando que aí não existe nenhum elemento. Formal-mente, portanto, o argumento é correto.

No entanto, como os termos “ban-co” “praça” e “quebrado” são equívocos, alguém poderia ser levado a querer, por meio desse argumento, concluir algo a

respeito do sistema financeiro a partir de uma premissa afirmando que todos os assentos de uma praça pública estão da-nificados. E isso é obviamente ilegítimo.

Para que o argumento seja válido, é preciso que os termos mantenham o mesmo significado nas premissas e na conclusão.

Apelando para convencerUm outro tipo de falácia decorre de

uma característica muito importante associada aos contextos argumentati-vos. Os contextos em que os argumen-tos aparecem em nossa vida cotidiana envolvem uma mistura de elementos ra-cionais e emocionais.

Quando argumentam, as pessoas não buscam simplesmente convencer um auditório por meio de expedientes ra-cionais. A emoção é frequentemente uti-lizada. Buscamos comover, enternecer, enraivecer, divertir, seduzir nosso audi-tório ao mesmo tempo em que buscamos convencê-lo. Pense em como se comporta um vendedor, por exemplo. Ele irá usar argumentos para persuadi-lo a comprar uma mercadoria, mas ao mesmo tentará estabelecer uma relação emocional po-sitiva entre você e ele, ou entre você e a mercadoria que está sendo vendida.

Esse apelo às emoções é em grande medida inevitável. O bom argumentador sabe eleger o tom adequado a uma deter-minada circunstância. Não vai usar um palavreado erudito se estiver se dirigin-do a pessoas muito simples. O bom argu-mentador também deve ajustar seus ar-gumentos às crenças de quem irá ouvi-lo. É inútil usar premissas de caráter religio-so quando argumentamos com um ateu.

A escolha do tom e das premissas ade-quadas só pode ser feita quando refleti-mos com cuidado a respeito do contexto em que estamos inseridos. Quem são as pessoas que estamos querendo conven-cer? No que elas acreditam? Quais são suas inclinações e preferências estéticas?

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Que formação anterior elas possuem? E assim por diante. São exatamente essas perguntas que um bom publicitário faz antes de dar início a uma campanha, e que um político experiente também faz antes de participar de um comício ou de um debate. Não há nada de errado nis-so. Como já dissemos, em grande medida isto é parte integrante da arte de argu-mentar.

O problema surge quando pretende-mos usar as emoções para fazer nosso auditório tomar como bom um argu-mento que é ruim. Desde a Grécia antiga os filósofos ocuparam-se do estudo des-se tipo de situação e procuraram chegar a uma classificação geral das principais falácias cometidas (intencionalmente ou não) pelas pessoas. Durante a Idade Média, esse estudo teve continuidade. As falácias, então, passaram a ser co-nhecidas por nomes latinos que são usa-dos até hoje.

Argumento ad hominemA mais importante delas é conhecida

como argumento ad hominem, ou argu-mento “dirigido a um homem”. Como

o próprio nome está dizendo, esse tipo de falácia procura atingir a pessoa que argumenta, e não os argumentos apre-sentados por ela. É muito comum ver esse tipo de expediente ser utilizado por políticos durante campanhas eleitorais.

Imaginemos uma situação desse tipo. O candidato A sugere uma certa mudan-ça na legislação ambiental. O candidato B, então, diz o seguinte: “Aqui está um documento provando que o senhor está sendo processado por desmatar suas fazendas. O senhor não é uma pessoa confiável para propor qualquer mudança na legislação ambiental. As mudanças que o senhor propõe devem ser rejeita-das”. Esse tipo de alegação costuma ter um efeito muito forte sobre os eleitores. Se não encontrar uma boa resposta, o candidato A ficará desmoralizado. Va-mos refletir um pouco sobre a relevância desse tipo de argumento.

Em princípio, poderíamos pensar que ele é completamente irrelevante. De fato, importa considerar os argumentos apresentados pelo candidato A em favor de sua proposta. Se ele tem problemas na Justiça, isso é outra história. É per-feitamente possível que ele esteja sendo processado e que, por outro lado, suas propostas para a área ambiental sejam realmente boas. Se é assim, porém, por que esse tipo de argumento é levado em consideração e costuma mesmo ser de-cisivo em determinadas circunstâncias, como acontece num debate eleitoral?

Basicamente, porque os eleitores não têm informações suficientes para ava-liar com precisão os argumentos apre-sentados num debate. Os candidatos apresentam dados. Serão esses dados verdadeiros? Serão os únicos? Não ha-verá uma série de fatores que estão sen-do propositalmente deixados de lado? O eleitor só pode aceitar as conclusões a que os candidatos chegam caso confie nesses candidatos. Ou seja, caso não te-nha motivos para achar que está sendo

Debate eleitoral entre o candidato democrata Barack Obama e o candidato republicano Mitt Romney em outubro de 2012, na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos da América.

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enganado. Diante de uma acusação gra-ve, ele pode ser levado a reavaliar a con-fiança que deposita numa certa pessoa. É por isso que o argumento ad hominem funciona tão bem nessas circunstâncias.

É preciso, entretanto, tomar cuidado. O fato de alguém estar sendo processado por desmatar a própria fazenda não sig-nifica necessariamente que essa pessoa seja pouco confiável quando argumenta em favor de uma mudança na legislação ambiental. É possível, por exemplo, que ela seja inocente e o processo tenha sido instaurado mesmo assim. Como também é possível que, ao ser processada, ela te-nha sentido na pele um aspecto inade-quado da legislação atual e agora tenha, portanto, excelentes motivos para pro-por alterações na lei.

Conforme se pode notar, não há re-gras fixas. Não existe um “diagrama” que possamos fazer para saber se o argumen-to ad hominem é relevante ou não é. Só um exame minucioso de cada caso nos permitirá separar o joio do trigo. É pos-sível, porém, tirar algumas lições gerais do caso que estamos estudando. Exami-nemos mais uma vez o argumento apre-sentado pelo candidato B. Ele poderia ser reescrito da seguinte maneira:

1. O senhor está sendo processado por desmatar suas fazendas.

2. Portanto, o senhor não é uma pessoa confiável para propor mudanças na legislação ambiental.

3. Portanto, as mudanças que o senhor propõe devem ser rejeitadas.

Já vimos que nem sempre podemos concluir 2 a partir de 1. Pode acontecer, no entanto, que, ao examinar o caso com cuidado, cheguemos à conclusão de que o processo movido contra o candidato A seja um bom motivo para desconfiarmos

de suas intenções ao propor uma mudan-ça na legislação. Pode ser que verifique-mos, por exemplo, que ele está querendo apenas se beneficiar com a mudança na lei. O candidato B, portanto, teria ra-zão quando diz que o candidato A não é uma pessoa confiável. Será possível, no entanto, concluir a partir daí que as mudanças propostas devem ser rejeita-das? A resposta, aqui, parece ser “não”. É perfeitamente possível que, apesar de não ser uma pessoa confiável, o candida-to A esteja apresentando uma boa pro-posta. O fato de ele não ser uma pessoa confiável não significa que tudo o que ele diz a respeito da legislação ambiental seja falso. Significa apenas que devemos ficar com um pé atrás, e buscar informa-ções de outras fontes. Como, no entan-to, a acusação do candidato B provocou em nós uma aversão pelo candidato A, nós temos a tendência de transferir essa aversão do candidato para a proposta que ele fez. “Se veio dele, boa coisa não deve ser”, pensamos. A rigor, no entan-to, a rejeição da proposta não encontra apoio nas acusações que um candidato fez ao outro.

Argumento ad verecundiamUm outro tipo muito comum de argu-

mento, e que também é estudado desde a Antiguidade, é o chamado argumento ad verecundiam. Em latim, a palavra ve-recundia (com acento tônico na terceira sílaba) pode ser usada para significar o mesmo que “respeito” ou “reverência”. Podemos ter “verecundia” pelas leis, pelos pais, pelas autoridades e assim por dian-te. O argumento ad verecundiam é aquele que faz apelo ao respeito que nosso au-ditório sente por uma autoridade num determinado assunto. Para provar que o que dizemos é verdadeiro, citamos essa autoridade.

Novamente, como ocorria no caso do argumento ad hominem, há muitos usos legítimos do argumento ad verecundiam.

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Nem sempre que citamos uma autorida-de estamos querendo enganar alguém ou levá-lo a uma conclusão errônea. Quando citamos um autor consagrado num texto, estamos fazendo um uso perfeitamente legítimo desse tipo de argumento. Veja nas figuras acima um exemplo elaborado por nós mesmos:

“Conforme está demonstrado nos Elementos, de Euclides, a área de um quadrado construído sobre a hi-potenusa de um triângulo retângulo é igual à soma das áreas construídas sobre cada um dos catetos. (Figura 1) Ora, se o lado de um quadrado mede 1m, sua área mede 1m2. Portanto, se temos um triângulo retângulo isósceles com catetos medindo, cada um deles, 1m, a área do quadrado construído sobre a hipotenusa deve ter 2m2 e a hipotenusa deve medir 2m (Figura 2).”

Não há nada de errado aqui no uso do argumento ad verecundiam. Em vez de demonstrar o teorema de Pitágoras, podemos mencionar a demonstração

desse teorema existente no livro Os elementos, escrito por um matemático grego chamado Euclides por volta do ano 300  a.C. Como Euclides é uma au-toridade consagrada em geometria, o leitor tem excelentes razões para aceitar o apelo à autoridade feito nesse raciocí-nio. Não há nada de errado nisso.

É claro que a eficácia do argumento ad verecundiam depende em grande parte de meu auditório reconhecer autoridade no autor que está sendo citado. De nada adiantaria citar uma autoridade desco-nhecida do público ou, pior, uma que o público em pauta não respeitasse. Mais uma vez, é essencial sabermos de ante-mão quem é o nosso auditório, quais são suas crenças e seu modo de vida para escolhermos corretamente o argumento mais adequado em cada situação.

Muitas vezes, não encontramos no argumento ad verecundiam um autor específico sendo citado. Basta citar, por exemplo, toda uma categoria profissio-nal. Veja este exemplo:

“Qualquer engenheiro irá lhe dizer que essa coluna está mal posicionada.

c2=a2+b2

a2

c2

d2

a

b

c 12

h=√2

1

1

h

22

12

Figura 1 Figura 2

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Portanto, é recomendável que o senhor construa uma nova, para reforçar a estrutura. Podemos incluir esse serviço no orçamento?”

Quem argumenta assim não está ci-tando um livro ou uma pessoa especí-fica. Está falando dos engenheiros “em geral” e apelando para a autoridade des-ses “engenheiros” para dizer que a colu-na está fora do lugar. Este apelo é legíti-mo? Pode ser e pode não ser. Quem fala isso pode ser um pedreiro experiente, que já trabalhou com muitos engenhei-ros e aprendeu a avaliar se uma coluna está bem ou mal posicionada. Mas tam-bém pode ser um espertalhão, querendo vender um serviço desnecessário.

Como lidar com essa situação? Não há receitas prontas. Só podemos nos valer de certos dados contextuais: a ido-neidade da pessoa com quem estamos falando, a experiência que ela tem (ou que imaginamos que ela tenha), as in-formações de uma segunda opinião – eventualmente, a de um engenheiro.

Esse apelo genérico à autoridade de uma categoria profissional está muito bem representada na ópera cômica O elixir do amor, do compositor italiano Gaetano Donizetti (1797-1848). A ópe-ra conta a história de Nemorino, um camponês ingênuo que se apaixona por Adina, rica fazendeira que não lhe dá a menor atenção. Desesperado, Nemori-no recorre a um charlatão, Dr. Enciclo-pédia, que está de passagem pela cidade vendendo um elixir que teria o poder de curar qualquer doença e solucionar qualquer problema. O falso médico as-segura a Nemorino que, se ele tomar a poção, irá conquistar o amor de Adina. Pede apenas que espere um dia para que a poção faça o seu efeito (e ele tenha tempo de fugir). Nemorino acredita na autoridade do Dr. Enciclopédia: toma a garrafa toda e fica bêbado – o tal “elixir” não passava de uma bebida alcoólica ba-rata. Como sabe que tem que esperar um dia, quando se encontra com Adina, ele finge que não a vê. Tem medo de abordá--la antes de o elixir fazer efeito. Adina

“O elixir do amor”, de Gaetano Donizetti, em abril de 2007, no Metropolitan Opera House (Nova Iorque, EUA).

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toma aquilo por desprezo, fica com o orgulho ferido e, pela primeira vez, olha Nemorino com outros olhos. Após uma série de episódios engraçados, Adina fi-nalmente se apaixona pelo camponês, que acaba recebendo uma herança e se casa com sua amada. No final da ópera, todos festejam os poderes do elixir do amor fabricado pelo Dr. Enciclopédia.

Esta ópera de Donizetti ilustra duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, é um excelente exemplo do uso falacioso do argumento da autoridade. O Dr. Enciclopédia não é médico, em primeiro lugar. Investe-se, portanto, de uma autoridade que ele não tem. Sabe perfeitamente, além disso, que a poção não é capaz de produzir os efeitos pro-metidos. Há uma outra coisa a ser notada aí, no entanto. O charlatão afirma que, se Nemorino tomar a poção, irá conquistar Adina – e isso realmente acontece. Não por causa da poção, é claro, mas por uma série de acasos. O argumento não se tor-na menos falacioso por conta de aquilo que estava previsto em sua “conclusão” (o amor de Adina) acontecer. É daí exa-tamente que o enredo da ópera extrai seu caráter humorístico. Todos os persona-gens (com exceção do médico) passam a acreditar no engodo porque não se pre-ocupam em verificar aquilo que seria es-sencial nesse caso: se o Dr. Enciclopédia é de fato uma autoridade (ele não é), e se o elixir produz mesmo os efeitos prome-tidos (ele não produz).

Vamos analisar agora um anúncio de publicidade (reproduzido na página ao lado) no qual se faz um uso mais sutil do argumento ad verecundiam.

Essa campanha foi feita na década de 1950. E durante alguns anos foi muito eficiente. Grande parte das pessoas pas-sava o dia fora de casa e escovava os den-tes apenas uma, no máximo duas vezes por dia. A estratégia de comunicação da

Gleem resolveu explorar isso. Anunciou que a pasta continha um novo compo-nente, chamado “GL70”, que protegia os dentes ao longo de todo o dia. Nasceu as-sim o slogan: “Gleem... o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após cada refeição”. Anúncios foram vei-culados em revistas e na televisão explo-rando essa ideia.

A natureza desse componente miste-rioso – o GL70 – não era conhecida. Não havia evidência de que a pasta cumpris-se o prometido. Mas o anúncio tenta dar um ar “científico” às coisas que são ditas sobre esse creme dental. O nome dado à substância misteriosa sugere que ela pertence a toda uma família de com-postos químicos que foram exaustiva-mente testados, um a um, na busca dos melhores resultados. O leitor é levado a pensar que, antes do GL70, foram tes-tados o GL69, o GL68, o GL67 e assim por diante. Só no setuagésimo compos-to os cientistas envolvidos na pesquisa teriam ficado satisfeitos e incorporado o produto à pasta de dentes. Repare nas duas imagens das bactérias vistas sob a lente de um microscópio. O leitor pensa que está diante de resultados de labora-tório, comprovando a eficácia do GL70. Nada disso. As figuras foram escolhidas para impressionar o leitor e fazê-lo con-fiar nas palavras ditas no texto. Tudo isso só funciona porque a maioria dos leitores não tem formação científica, e por isso têm respeito, verecundia (como se dizia em latim) por cientistas que sa-bem lidar com microscópios e utilizam nomes técnicos obscuros como “GL70”.

Muitas vezes, aliás, não é preciso nem mesmo referir-se indiretamente à ciência. Basta citar uma frase numa lín-gua desconhecida pelo auditório para impor respeito e obter o convencimen-to. Vejam o que diz o filósofo alemão Arthur Schopenhauer[+] (1788-1860) a respeito disso:106

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“Os incultos têm um respeito todo seu diante de floreios gregos e lati-nos. Também se pode, se necessário, não apenas deturpar as autorida-des, mas até falseá-las de uma vez, ou mesmo citar outras que são com-

pletamente inventadas para a oca-sião: na maior parte das vezes, ele [o oponente] não tem o livro à mão e nem saberia manejá-lo. O melhor exemplo disso quem dá é o vigário francês que, para não pavimentar a

Aqui está por que tantas pessoas usam

SOMENTE GLEEM... o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após

cada refeição.

APENAS UMA ESCOVAÇÃO destrói as bactérias causadoras

do mau hálito e da cárie.

Se você pudesse escovar os dentes após cada refeição, qualquer bom creme dental serviria... Mas se, apesar de ser preferível sempre escovar os dentes, você não puder fazer isso, então você deve usar Gleem. Uma escovação com Gleem destrói a maioria das bactérias... oferece resistência adicional contra as cáries. Além disso, o sabor de Gleem é tão maravilhoso que mesmo as crianças gostam de usá-lo regularmente! E, para as crianças, uma escovação regular após as refeições é um modo comprovado de reduzir as cáries. Lembre-se de que existe somente um Gleem – o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após todas as refeições.

O mau hálito foi evitado o dia todo com uma escovação usando Gleem. Testes científicos comprovam que uma escovação com Gleem antes do café da manhã dá à maioria das pessoas proteção durante todo o dia contra o mau hálito. Comece o seu dia com Gleem.

“Eu não posso escovar os dentes após cada refeição e por isso EU CONFIO EM GLEEM.”

SOMENTE GLEEM tem GL70 para

combater as cáries.

PROVA

Após uma escovação com Gleem, até 90% dessas bactérias estão destruídas.

As bactérias da boca, principal causa da cárie, desenvolvem-se durante a noite deste modo.

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Uma outra lógica: Newton da CostaUm dos princípios lógicos mais impor-

tantes é o princípio de não-contradição. Ele

diz que nenhuma proposição pode ser ao

mesmo tempo verdadeira e falsa. De acordo

com ele, se tomarmos uma proposição e sua

negação, jamais pode acontecer de ambas

serem verdadeiras. A validade desse princí-

pio pode ser exibida numa tabela de verda-

de. Dizer que tanto uma proposição quanto

sua negação são verdadeiras corresponderia

a afirmar a conjunção

p ⋀ ¬p

Traduzindo: que uma sentença e sua nega-

ção, sejam juntas verdadeiras. Isso contraria

o princípio de não-contradição que, mesmo

sem o uso das tabelas de verdade, foi aceito

desde a Antiguidade. No entanto, há deter-

minadas situações que parecem oferecer

contraexemplos a ele. Suponha que você

esteja numa guerra, e um general lhe dê a

ordem para bombardear uma cidade. Supo-

nha que p seja a proposição

“Eu devo obedecer às ordens do general”

Nesse caso, ¬p será a proposição

“Eu não devo obedecer às ordens do general”

Pode acontecer de, numa situação como

essa, você ficar diante do que chamamos

de um “dilema moral”. Você não sabe o que

deve fazer. Por um lado, você reconhece que

deve obedecer às ordens de um superior;

por outro, não lhe parece correto destruir

vidas de civis ao bombardear aquela cidade.

Nessa situação, é possível argumentar que,

se você disser a proposição

p ⋀ ¬p

você estará simplesmente expressando

esse dilema, e dizendo algo que lhe parece

ser correto naquela circunstância e (mais

importante ainda) que poderia mesmo ser

correto. Pode haver obrigações morais que

são contrditórias, de tal modo que deva-

mos fazer duas coisas que não se conciliam

entre si.

O professor Newton da Costa, nascido

em 1929, é um brasileiro que criou siste-

mas de lógica nos quais as contradições são

permitidas, ou seja, sistemas nos quais as

tabelas de verdade são muito diferentes da-

quelas apresentadas em nosso boxe sobre

conectivos. Essas lógicas, chamadas de “ló-

gicas paraconsistentes”, permitem lidar com

situações como a que descrevemos acima,

estudando que tipo de consequência essas

“contradições” trariam para as teorias nas

quais elas fossem admitidas. Se utilizamos

uma lógica “clássica”, na qual vale o princípio

de não-contradição, os dilemas morais têm

de ser “negados” de algum modo. Se utiliza-

mos uma lógica paraconsistente, é possível

admiti-los e lidar com eles no interior de

uma teoria sem maiores problemas.

O professor Newton da Costa publicou

diversos livros e artigos a respeito de suas

lógicas paraconsistentes e tornou-se inter-

nacionalmente reconhecido por esse traba-

lho. Quem desejar conhecer algo da sua pro-

dução, pode consultar o livro Ensaio sobre os

fundamentos da Lógica (São Paulo: Hucitec,

1994), de sua autoria.

rua diante de sua casa como tinham de fazer todos os demais cidadãos, citou um provérbio bíblico: paveant illi, ego non pavebo [i.e., “eles te-mem, eu não temerei”]. Isto bastou para persuadir as autoridades muni-

cipais.” (Schopenhauer, “A arte de sus-tentar a razão”. Tradução nossa. Edi-ção de referência: Der handschriftliche Nachlass [O espólio manuscrito], Manus-critos de Berlim, 1818-1830. Frankfurt: Kramer, 1970, p. 689)

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Debate em sala de aula e apresentação de seminário

Para “ganhar traquejo”, como se diz, discuta em equipe os seguintes argu-mentos, procurando dizer quais são fa-laciosos, e por quê.1) Esse cachorro é seu. Esse cachorro é

pai. Portanto, esse cachorro é seu pai.2) O presidente da companhia abriu a

reunião dizendo: “Precisamos fazer alguma coisa”. Um de seus funcio-nários apontou para o plano que ele próprio havia elaborado e emendou: “Isto é alguma coisa. Portanto, preci-samos fazer isso”.

3) “É público e notório que essa mulher nunca foi fiel no casamento. Se ela não merece a confiança do próprio marido, como pode pretender ter a sua confiança, caro eleitor?”Reflita sobre esse argumento: ele pro-

cede racionalmente? Se mudarmos os gêneros de seus termos (“mulher” para “homem”; “marido” para “esposa”), ele permanece soando idêntico aos ouvidos do auditório? Por quê? Fundamente a sua resposta e discuta com os colegas.4) “Quem é você para me dizer que re-

frigerante faz mal à saúde? Você tam-bém toma um montão...”

5) “Quem é você para me dizer que refri-gerante faz mal à saúde? Você não é médico nem nutricionista...”

6) “Especialistas disseram a este telejor-nal que a única maneira de o Brasil crescer a taxas elevadas é baixando os impostos para favorecer o investi-mento privado.”

7) Minha professora de Geografia disse que o rio Indo tem a maior parte de sua extensão em território indiano.

• Forme par com um colega e anali-sem a argumentação implícita na peça publicitária fictícia abaixo.

Em seguida, apresente os resultados para os de mais alunos da classe, em forma de seminário.

Identificação de falácias

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E m nossas vidas, nas ações e acontecimentos mais comuns, todos nós, em muitos momen-

tos, temos dúvidas. Essas dúvidas são de vários ti-pos e de importância bem diferente.Às vezes, por exemplo, saímos de casa e começa a chover. E nos perguntamos: “Será que fechei a ja-nela do quarto?”. Essa é uma dúvida simples, ba-nal, que só surgiu por causa da chuva, e que talvez se dissipe quando parar de chover, mas que por al-guns instantes toma conta de nossos pensamentos e preocupações. Tentaremos resolvê-la recordando as ações que executamos antes de sair. Talvez con-sigamos lembrar que fechamos a janela e diremos a nós mesmos: “Sim, lembro-me agora, depois que coloquei os sapatos, fechei a janela, antes de sair do quarto”, ou algo assim.

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unidade 4 dúvida e certeza

E m nossas vidas, nas ações e acontecimen-tos mais comuns, todos nós, em muitos

momentos, temos dúvidas. Essas dúvidas são de vários tipos e de importância bem diferente.Às vezes, por exemplo, saímos de casa e começa a chover. E nos perguntamos: “Será que fechei a janela do quarto?”. Essa é uma dúvida simples, banal, que só surgiu por causa da chuva, e que talvez se dissipe quando parar de chover, mas que por alguns instantes toma conta de nos-sos pensamentos e preocupações. Tentaremos resolvê-la recordando as ações que executamos antes de sair. Talvez consigamos lembrar que fechamos a janela e diremos a nós mesmos: “Sim, lembro-me agora, depois que coloquei os sapatos, fechei a janela, antes de sair do quarto”, ou algo assim.

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Vivemos cercados de dúvidas .....................111

A dúvida, base da investigação ..... 117

Duvidando para atingir a certeza .................. 124

Limites da dúvida ao garantir a certeza ..................... 135

A encruzilhada representa uma dúvida e uma decisão: que rumo tomar?

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Vivemos cercados de dúvidas

Há dúvidas que podemos solucionar se lembrarmos o que fizemos, como: “Fechei a janela do quarto?”. Mas há outras que não conseguimos resolver recorrendo à nossa memória. Uma dúvida dessa poderá ter efeitos diferentes em cada um de nós. Alguns, mesmo sem concluir se fecharam ou não a janela, deixarão a dúvida de lado, ainda que saibam que a chuva poderá mo-lhar o quarto, e levarão seus pensamentos para assuntos mais importantes. Outros, porém, poderão passar o dia pensando nisso, enquanto estudam, trabalham ou se divertem, ansiosos para voltar para casa e descobrir. Outros ainda, se não estiverem muito longe de casa, chegarão a dar meia volta, entrar em casa de novo e verificar se fecharam ou não a janela (descobrindo, muitas vezes, que a tinham fechado).

Vários outros exemplos poderiam ser dados além desse para ilustrar casos co-muns e banais de dúvidas que nos ocorrem.

Há também, digamos assim, dúvidas mais sérias e importantes, que nos acom-panham durante muito tempo, às vezes durante anos, porque estão relaciona-das ao nosso futuro e à nossa felicidade. Por exemplo, é muito natural que um es-tudante que está terminando o Ensino Médio se pergunte: “Que profissão devo seguir? Aquela que meus pais gostariam que eu seguisse ou aquela de que gosto?”. Ou então: “Será que conseguirei passar no vestibular sem fazer cursinho?”. Ou mes-mo uma dúvida ainda mais geral: “Será que terei uma vida feliz?”.

Também nesses casos, as pessoas rea-gem de modos diferentes a essas dúvidas, de acordo com suas próprias personali-dades. Para certas pessoas, a dúvida é um estímulo para encarar novos desafios; para outras, pode ter um efeito paralisante, até que novas circunstâncias permitam ultra-passá-la.

Essas reações mostram que estamos agora diante de casos mais importantes de dúvidas. Nossas decisões sobre como en-frentá-las terão profundo impacto em nos-so futuro. E não podemos solucioná-las tão fácil e rapidamente como no caso da janela do quarto. Na verdade, muitas vezes pas-samos nossas vidas convivendo com elas.

Mas há também outro tipo de dúvida, talvez mais complicada, que muitos de nós podemos ter. Certamente não são todas as pessoas que formulam esse tipo de dúvida, e mesmo os que o fazem, não o fazem com frequência. Mas alguns po-dem dar muita importância a elas. Al-guns exemplos: “Deus existe?” – “O uni-verso terá fim?” – “Qual foi sua origem?” – “Por que devemos respeitar regras mo-rais e leis?”... Essas dúvidas podem ser chamadas de “filosóficas”.

Machado de Assis (1839-1908), con-

siderado um dos maiores escritores

brasileiros, é autor de romances como

Dom Casmurro e Memórias Póstumas

de Brás Cubas.

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São elas, e outras semelhantes a elas, que os filósofos vêm elaborando e ten-tando solucionar durante séculos.

Questões filosóficas, então, envolvem dúvidas e interrogações – veja que as dú-vidas foram sempre apresentadas como pensamentos sob a forma da interroga-ção. Mas existiria uma forma particular de expressar essas dúvidas filosóficas? Em certo sentido, a maneira como um filósofo enfrenta suas dúvidas e questões é seme-lhante àquela que adotamos em nossas dúvidas corriqueiras.

Quando tento me lembrar das ações que executei antes de sair de casa, para descobrir se fechei a janela, ou mesmo voltando para casa a fim de observar se o fiz, estou adotando uma espécie de “méto-do”, que escolhi antes de agir. Devo fazer uma “investigação” e preciso definir um procedimento para fazê-la. E isso também será necessário se eu quiser descobrir se existe um Deus, se o universo terá fim etc.

Vamos examinar um caso célebre envol-vendo uma dúvida e uma investigação que tenta solucioná-la. Dom Casmurro, um dos mais famosos romances de Machado de Assis, conta a história de Bentinho e Capi-

tu, namorados de infância que se casam e têm um filho, Ezequiel, e que são amigos próximos do casal Sancha e Escobar. Mas o casamento se desfaz porque Bentinho chegou à conclusão de que sua esposa e seu amigo o teriam traído e que o menino se-ria, na verdade, filho do outro. O próprio Bentinho é o narrador em primeira pessoa, já um homem idoso, nunca plenamente recuperado dos acontecimentos, transfor-mado numa pessoa fechada, o “casmurro” do título. “Casmurro” significa “teimoso”, “implicante”, mas também “triste”, “cala-do”, “ensimesmado”, e é nestes últimos sig-nificados que o termo é empregado.

O fato de ser todo o romance uma nar-rativa de alguém “ensimesmado”, isto é, “voltado para si mesmo”, é relevante aqui: todo o tempo Bentinho oferece ao leitor uma sucessão de experiências pessoais, de emoções e pensamentos próprios re-sultantes de seu contato com a realidade. É sempre nesse registro de intimidade e “interioridade” que vemos surgir e crescer nele uma dúvida, uma suspeita sobre sua esposa e seu amigo, que certos aconteci-mentos transformarão, para ele, numa ab-soluta certeza.

Um jovem diante da difícil decisão entre a vida monástica e a vida mundana

(Anônimo, A difícil escolha. Óleo sb/ madeira, século XVIII).

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Em dado momento do romance, quan-do Escobar morre afogado, Bentinho nar-ra ter visto Capitu olhar para o defunto de maneira apaixonada. Esse é o momento em que surge para ele a dúvida: teria sua Capitu o traído com seu melhor amigo? Observe que é uma dúvida totalmente inesperada e, certamente, indesejada. Agora, contra sua própria vontade, Ben-tinho tem de chegar a uma resposta que solucione sua dúvida, tem de descobrir a verdade, pois não pode mais viver sem ela.

Leia agora a seguinte passagem:

“A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse ade-quada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não, po-diam afrouxar o pas-so, parar, arrepiar ca-minho, e deixar que a cabeça cismasse à vontade. Fui andan-do e cismando... Cui-dei de recom por-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajunta-mento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a dissimu-lação, se houvesse algo que dissimular. O que vai por ordem lógica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, gra-ças aos solavancos do carro e às inter-rupções de José Dias. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.” (M. Assis, Dom Casmur-ro, in: Obra completa. org. A. Coutinho, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, cap. CXXVI, pp. 928-929)

“Cismar” é a palavra que nessa passagem expressa a reflexão de Bentinho sobre sua

dúvida, e para isso ele desce da carruagem em que se encontrava, para pensar melhor enquanto caminha. Observe-se a oposição entre “ordem lógica e dedutiva”, presente nesta série de pensamentos de Bentinho, e a “barafunda de ideias e sensações” de que era tomado há pouco, na carruagem (bara-funda: confusão, balbúrdia, baderna). Ago-ra, ele acha que pode compreender melhor os acontecimentos. Essa análise detida e ponderada que Bentinho acredita fazer du-rante a caminhada leva-o a concluir que a clareza de seu pensamento se vira atrapa-lhada pela “antiga paixão”. Por algum tem-po, ele conclui que não tem razão para du-vidar de Capitu. Mesmo assim, o resultado é incerto, ou pelo menos hesitante, pois as

dúvidas continuarão a incomodá-lo.

É bem importante essa distinção entre um esforço de pensamen-to “dedutivo”, “lógico” – pelo qual Bentinho, pensando consigo mes-mo (“concluí de mim para mim”), julga ser capaz de analisar de forma isenta os aconte-cimentos antes de che-gar a uma conclusão – e a “paixão” que estava prejudicando suas diva-gações anteriores sobre o assunto.

Quando queremos resolver a dúvida sobre se fechamos a janela do quarto, tam-bém tentamos pensar de forma “lógica” e “dedutiva”, isto é, procuramos pensar no assunto de forma objetiva, clara, sem “pai-xão”. Se queremos descobrir se fechamos ou não a janela, não devemos pensar nis-so levando em conta o fato de que deseja-mos ter fechado a janela. Esse desejo não nos ajuda em nada em nossa investigação. No caso de Bentinho, parece que ele julga possível chegar a uma certeza sobre o seu problema, ele acredita que tal certeza será

Quando queremos resolver uma dúvida,

também tentamos pensar de forma

“lógica” e “dedutiva” – procuramos pensar no assunto de forma

objetiva, clara, sem “paixão”.

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obtida sem que suas emoções se misturem e atrapalhem sua investigação. Ele se jul-ga capaz de deixar de lado seus próprios sentimentos – o ciúme, o ódio, a decep-ção – para avaliar os fatos com isenção. Ao mesmo tempo, é toda a sua felicidade que está em jogo nessa investigação, e seu re-sultado lhe mostrará se ainda poderá ser feliz como antes.

No decorrer da narrativa, Bentinho julga descobrir mais indícios de que foi traído. Conforme Ezequiel vai crescen-do, ele vê no menino mais semelhança com Escobar, e isso vai dando força à suspeita de que o menino é filho do fale-cido amigo, o que o deixa furioso.

Para ele, essa semelhança se torna uma forte evidência da traição. Sua dúvi-da se dissipa progressivamente, porque os fatos vão lhe mostrando qual seria a verdade. Isso faz com que passe a sentir repulsa pela criança, embora em alguns momentos ainda sinta ternura por ela. Seus sentimentos são conflitantes. Mas ele julga que suas conclusões são absolu-tamente corretas e objetivas.

Vejamos agora outra passagem:

“Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alu-cinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: ‘Mamãe! Ma-mãe! é hora da missa!’ restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma foto-grafia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.” (M. Assis, “Dom Casmurro”, op. cit., cap. CXXXIX, p. 938)

Aqui, a conclusão é definitiva. Se até en-tão as dúvidas de Bentinho, embora fortes, não eram ainda suficientemente intensas e fundamentadas para o levarem à certeza da traição, agora se apresenta um fato que

Bem me quer, mal me quer... Há quem despetale uma margarida para saber se a

pessoa amada corresponde ou não a esse amor. A dúvida, nesse caso, se resolve pelo

recurso ao que foge de nosso alcance: a sorte.

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julga decisivo e que desfaz para ele a pos-sibilidade de que fosse vítima de “ilusão” e “fantasmagoria”. Não há mais lugar para dúvida, a certeza se impõe como incontes-tável: ele foi traído por Capitu e Escobar.

Passa então a recordar-se de aconteci-mentos e agora vê neles novas evidências do romance dos dois: “episódios vagos e remotos, palavras, encontros e inciden-tes, tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas re-miniscências vieram vindo agora, em tal atropelo que me atordoaram” (M. Assis, Dom Casmurro, op. cit., cap. CXL, p. 939). Se antes não conseguia saber da verdade, agora ele a conhece e é capaz de desco bri-la em muitos fatos diversos.

Machado parece ter deliberadamente deixado incerta a solução do enigma: Ca-pitu realmente traiu Bentinho, ou este foi vítima de seu próprio ciúme? Não há uma resposta evidente e óbvia a essa pergunta. Há bons motivos para defender as duas posições, e parece ter sido essa a intenção do escritor. De qualquer modo, com isso se pode também destacar um aspecto im-portante relacionado ao tema. Certo ou errado, Bentinho julga ter chegado a uma

certeza incontestável, porque encontrou fatos e razões que lhe garantem essa cer-teza. Sua dúvida foi investigada e o levou a essa convicção. A dúvida, assim, é pon-to de partida para a chegada a uma certe-za. Onde ainda há dúvida, não há certeza; onde há certeza, não há mais dúvida.

Contudo, podemos nos perguntar: Bentinho interpretou adequadamente os fatos ou se deixou levar por suas paixões? Está realmente provado que Capitu o traiu com Escobar? É perfeitamente possível que a certeza de Bentinho não correspon-da à verdade dos fatos. Pode ser que Capi-tu não o tenha traído, ela sempre o negou. Estamos convencidos dessa traição? Mui-tos leitores do romance diriam que sim, muitos outros diriam que não.

Posso ter uma certeza sobre algo, cer-teza que considero bem fundamentada, que, no entanto, se revele falsa. E isso vale até mesmo para a janela de meu quarto. Pode ser que eu a tenha fechado, mas que logo depois a tenha aberto por alguma razão, e que, quando me lembrei dos fa-tos, recordei-me apenas do primeiro, não do segundo. Nesse caso, ao retornar para casa, trarei comigo a certeza de ter fechado a janela, mas a encontrarei aberta.

Assim, minha certeza pode ser fal-sa e não é necessariamente garantia da

Glenn Close em cena de Atração fatal

(direção: A. Lyne, EUA: 1987). O filme

narra a história de um advogado bem

sucedido, casado, que se envolve com

outra mulher. O caso torna-se um

inferno para ambos.

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verdade dos fatos. “Certeza” não é si-nônimo de “verdade”. A primeira é um estado individual, subjetivo, íntimo – lembre-se de que Bentinho está sempre falando de si próprio, de seus pensa-mentos –, a segunda é algo relacionado à realidade, aos fatos. A primeira é subje-tiva, a segunda é objetiva. Bentinho está

tentando o tempo todo se convencer de que essa sua certeza subjetiva é também objetiva, de que sua desconfiança é real, não apenas produto de seu ciúme. Por isso está em busca de evidências para essa certeza.

Imagine que aquelas dúvidas chama-das de “filosóficas”, apesar das grandes

A dúvida de HamletDesenvolvimento individual por escrito

Você provavelmente já escutou esta frase: “Ser ou não ser, eis a questão”. Ela é enunciada por Hamlet, o protagonista daquela que talvez seja a tragédia mais conhecida da história do teatro mundial: A trágica história de Hamlet, príncipe da Di-namarca, publicada em 1603. Seu autor, William Shakespeare (1564-1616), fez de Hamlet, seu personagem mais famoso, um indivíduo assolado pela dúvida.

Muitos estudiosos apontaram nisto uma característica do herói moderno, marcado pela reflexão, pela melancolia, pela incerteza e dúvida em relação ao papel que devemos exercer na sociedade e no mundo. A ideia desses estudiosos é que Hamlet é moderno porque extrai da dúvida a matéria de sua virtude.

Eis duas questões que merecem nossa atenção:

1) O que motiva a dúvida de Hamlet no ato III, cena 1 da obra?

2) Quais consequências essa dúvida produz sobre Hamlet e sobre os aconte-cimentos da peça?

Para responder às duas questões, você terá de se familiarizar com a tragédia de Shakespeare. Há duas maneiras de fazê-lo (e elas são complementares): ler a obra em questão ou assistir a uma das versões ci-nematográficas que dela foram realizadas.

Eis algumas referências.

O livro, em tradução brasileira:William Shakespeare, Hamlet. Tradução:

Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Edi-tores, 1997.

Há outras traduções em português, sen-do que uma delas merece menção especial. Referimo-nos à tradução de Péricles Eugê-nio da Silva Ramos (São Paulo: Abril, 1976). A tradução de Millôr Fernandes, em todo caso, também é excelente e tem a vanta-gem de ser de fácil acesso.

Versões cinematográficas:Hamlet. Direção de Laurence Olivier.

Reino Unido: 1948.Hamlet. Direção de Kenneth Branagh.

EUA: 1996.• Após ler a tragédia ou assistir a

uma das versões cinematográficas, redija um texto curto, de aproximada-mente duas páginas, procurando res-ponder às questões sugeridas acima.

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diferenças entre seus conteúdos, te-nham tudo isso em comum com as dú-vidas de Bentinho e com aquelas sobre a janela. Também elas têm que lidar

com os mesmos tipos de dificuldades, e o modo como as abordamos podem possuir consequências significativas em nossas vidas.

A dúvida, base da investigação

A primeira coisa a levar em conta, quando abandonamos as dúvidas mais comuns, aquelas que surgem diariamen-te, e passamos para o âmbito da filosofia, reside no fato de que, com isso, a dúvida adquire novo significado e valor. Por um motivo simples: em filosofia, a dúvida também pode revelar-se um importante instrumento da investigação. Há um texto que põe essa novidade bem diante de nos-sos olhos. Trata-se de uma passagem de um dos diálogos mais importantes de Pla-tão[+] (427-347 a.C.), denominado Teeteto.

Nesse diálogo, Platão coloca em cena o filósofo Sócrates e seu interlocutor, Teeteto, ambos em busca do significado do conhecimento. De início, porém, ao in-vés de fixarem sua atenção sobre o signi-ficado de conhecimento, desviam-se dele para investigar o que é a falsidade. Logo esse desvio revela-se uma má escolha. Pois como seria possível conhecer o que é a falsidade, antes de sabermos exatamen-te no que consiste... “o conhecer”? Como poderíamos conhecer algo sem previa-mente ter definido o que é conhecimento? Vejamos a passagem:

“Sócrates: Então, meu jovem, nos-so argumento com razão nos censura e mostra que investigamos erroneamen-te, quando abandonamos o conheci-mento para investigar antes a opinião falsa? Ora, é impossível que alguém a conheça antes de compreender suficien-temente o que é o conhecimento.

Teeteto: Sócrates, agora é mesmo preciso pensar como você diz.

S.: Então, para começar tudo de novo, o que alguém dirá ser o conhe-

cimento? Não vamos desistir ainda, não é?

T.: Absolutamente, a não ser que seja você quem desista.

S.: Diga então, o que diremos dele, sem que entremos nós próprios em contradição?

T.: Aquilo mesmo que tentamos há pouco, Sócrates, pois eu não sei dizer mais nada.

S.: O quê?T.: Que a opinião verdadeira é

conhecimento. Ao menos é sem erro dar opinião verdadeira, e tudo o que surge disso vem a ser belo e bom.

S.: Teeteto, diz o condutor do rio que o próprio rio mostra o caminho. Se investigarmos seguindo em frente, tal-vez aquilo que investigamos se mani-feste diante de nós, mas, se permane-cermos parados, nada se manifestará.

T.: Você está certo. Vamos em frente, ao exame.

S.: Certamente é caso de um exa-me breve, já que uma arte inteira mostra a você que o conhecimento não é aquilo.

T.: Como, e qual é essa arte?S.: Aquela dos maiores em maté-

ria de sabedoria, que são chamados de oradores e advogados. Por meio de sua arte própria persuadem, não pelo ensino, mas fazendo os outros opinarem como eles desejam. Ou você acha que existem professores tão hábeis que consigam ensinar satisfatoriamente a verdade dos fa-tos, no pouco tempo que possuem, a quem não testemunhou um roubo ou outra violência?

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T.: Acho que não ensinam, acho que persuadem.

S.: Então você afirma que persua-dir é fazer outra pessoa opinar?

T.: Sem dúvida.S.: Nesse caso, quando os juízes fo-

ram persuadidos de maneira justa so-bre fatos que só quem viu pode conhe-cer, e não de outra maneira, tomando então sua decisão depois de ouvir os relatos e de posse de uma opinião verdadeira, decidiram sem conheci-mento, ainda que, se foram bem ins-truídos, tenham sido persuadidos em favor do certo?

T.: Certamente.S.: Meu caro, se num tribunal opi-

nião verdadeira e conhecimento fos-sem a mesma coisa, um juiz compe-tente não teria opiniões corretas sem conhecimento, mas agora uma e outra parecem coisas diferentes.

T.: Sócrates, algo que ouvi dizer e havia esquecido me vem à mente ago-ra: opinião verdadeira acompanhada de justificação é conhecimento, opi-nião verdadeira sem justificação está fora do conhecimento, e aquilo de que não se tem justificação não é objeto de conhecimento – é assim que foi no-

meado –, enquanto aquilo que possui justificação é objeto de conhecimento.

[...]S.: Então, se alguém, sem uma

justificação, adquire uma opinião verdadeira sobre algo, sua alma tem a verdade sobre isso, mas não a co-nhece. Pois quem não pode dar e re-ceber uma justificação sobre algo, não tem conhecimento sobre isso. Mas se adquiriu uma justificação, possui um conhecimento perfeito.” (Platão, Teete-to, 200c-202c. Tradução nossa)Antes de mais nada, é importante ob-

servar que Sócrates e seu jovem interlocu-tor Teeteto estão tentando encontrar o que em filosofia se costuma chamar de defini-ção, e que essa definição deverá nos forne-cer uma resposta à pergunta: “o que é...”

Em nosso caso, como se pode consta-tar na fala inicial de Sócrates, busca-se a definição daquilo que é chamado pela maioria das traduções de “conhecimento” (o termo grego usado por Platão é epis-téme; daí “epistemologia” – o estudo das condições do conhecimento em geral).

O filósofo se refere à necessidade de terem uma adequada apreensão sobre “o que é o conhecimento”, e é isso que, se-gundo ele, os motiva e conduz a “investi-gar”. Temos, portanto, uma investigação, atividade típica das diversas correntes da filosofia, a respeito de uma palavra, de um conceito, de uma ideia sobre a qual paira uma dúvida: afinal, o que quere-mos dizer quando afirmamos que temos conhecimento de algo?

Mas repare também que, ao tentar responder à pergunta “O que é o conheci-mento?”, buscando então uma definição do termo, Sócrates e Teeteto precisam produzir conhecimento a respeito do próprio conhecimento.

Para esclarecer o que isso quer dizer, observe a seguinte comparação. Quando me pergunto: “Deixei a janela aberta?”, ou “Que dia do mês é hoje, mesmo?”, o con-teúdo de minhas dúvidas são fatos obje-

Antes de morrer, Sócrates pediu a um amigo que saldasse

uma dívida sua, um galo que devia a Asclépio (J.-L. David

[1748-1825], A morte de Sócrates. Óleo sb/ tela, 1787).

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tivos, acontecimentos que podem ou não ter ocorrido. Estou, nesse caso, em busca de um conhecimento sobre a realidade, sobre fatos. O mesmo se passa quando me pergunto: “Existe um deus?”, ou “Qual a origem do universo?”. Também nesses casos, as respostas que obterei me darão conhecimentos objetivos, sobre os conte-údos da realidade em que estou inserido.

Ora, quando me pergunto “O que é conhecimento?”, não estou em busca de uma verdade sobre o mundo em que me encontro, mas sim à procura de uma res-posta para uma dú vida sobre o próprio ato de conhecer.

Se é verdade que, nos exemplos anterio-res, as respostas me darão conhecimentos sobre Deus, o uni-verso, a ação de uma pessoa ou a janela, no outro caso pode--se dizer que a respos-ta me dará conheci-mento sobre o próprio conhecimento – sobre o que está presente no ato de conhecer, quais são as condições ne-cessárias para que eu diga que conheço uma coisa, qualquer coisa.

Nesse caso, o objeto de definição e de conhecimento é o próprio conhe-cimento. E o conhecimento não é um fato, uma realidade externa, é antes um fenômeno que não faz parte da reali-dade, mas que está presente no indiví-duo que conhece algo. Isso terá impor-tantes consequências, como veremos, mas já se pode aqui destacar o seguinte: é um importante tema e preocupação da filosofia saber como se pode conhecer o mundo, ao mesmo tempo ou até mesmo antes de conhecê-lo. E isso faz com que haja uma “dúvida” e uma “investigação” sobre esse assunto.

Nessa mesma passagem, Sócrates menciona também algo muito impor-tante: é preciso manter-se atento, para evitar “investigar erroneamente”, o que implica admitir que existe um modo correto de investigar (e outro não). O que, segundo ele, significaria investigar corretamente? Note que, pelo que diz a Teeteto, Sócrates não está se referindo ao resultado da investigação, mas a seu procedimento, ao modo como se conduz essa investigação: “investigamos errone-amente, quando abandonamos o conhe-cimento para investigar antes a opinião

falsa. Ora, é impossível que alguém a conheça, antes de compreender suficientemente o que é o conhecimento”.

Então, o erro que Sócrates e Teeteto co-meteram em sua inves-tigação sobre o conhe-cimento consiste em tentar responder a uma pergunta que, para ser bem respondida, exige que uma outra pergun-ta tenha sido formula-da e respondida antes. Há então certa ordem de questões que deve

ser seguida por quem quer investigar bem e corretamente. Esse é um procedimento metodológico importante.

Frequentemente, prestamos a máxi-ma atenção às respostas que temos para as nossas dúvidas e interrogações, mas nos esquecemos de nos perguntar: “Por que essa dúvida que tenho deve ser res-pondida? Qual sua importância? Para respondê-la bem, há alguma outra per-gunta que deva ser respondida antes?”. Eis o problema para o qual, ao utilizar a forma do diálogo, Platão consegue cha-mar nossa atenção.

Mas por que é preciso antes investi-gar o que é o conhecimento, para depois

É comum prestarmos atenção às respostas

que temos para as nossas interrogações, mas nos esquecemos

de nos perguntar: “Por que essa dúvida que tenho deve ser

respondida?”

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poder compreender como é possível a opinião? Pelo que vimos, não parece ser muito difícil de compreender, mas vamos tentar formular mais claramente.

Se, segundo a hipótese investigada, conhecimento é opinião verdadeira, para compreender como se dá a opinião falsa é necessário já saber o que é opinião verda-deira. Sem essa explicação – que nos dá a definição do verdadeiro e do que significa para uma opinião ser especificamente ver-dadeira – não teríamos como compreen-der o falso. Isso porque o falso é justamen-te a ausência do verdadeiro e só pode ser compreendido com referência a ele.

Para definir o que é a falsidade e, por-tanto, explicar justificadamente como pode surgir em nós uma opinião falsa, sendo ela a falta da verdade, é necessário antes saber o que é a verdade, o que ca-racteriza uma opinião como verdadeira.

Argumento e necessidadeAssim, quando Sócrates diz a Teeteto

que a investigação está seguindo um rumo

incorreto, ele não o diz simplesmente por-que é seu desejo pessoal investigar uma questão antes da outra. Ele o faz porque reconhece que há uma necessidade pre-sente na relação entre as duas questões, necessidade que o leva a adotar aquela or-dem de investigação.

Note que isto marca uma diferença im-portante em relação a quem desconfie que sua mulher o traiu, como o Bentinho do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bentinho se viu obcecado pela sua investigação não porque achasse que essa era uma questão “filosófica” indispensá-vel para qualquer investigação posterior, mas, sim, porque sua felicidade pessoal estava em jogo.

Sócrates, por sua vez, mostra a Tee-teto que é necessário, independente de nossas preferências pessoais, investigar primeiro uma questão, para então poder investigar outra, pois sem isso não se pode obter sucesso.

Para entender essa necessidade, vol-temos à fala inicial de Sócrates. Observe como ele expressa a Teeteto o erro da investigação: “nosso argumento com ra-zão nos censura e mostra que investiga-mos erroneamente...”. A expressão im-portante, agora, é “nosso argumento”.

“Argumento” traduz um dos termos mais importantes da filosofia platônica e de toda a filosofia grega clássica: lógos. A palavra tem um significado bastante am-plo (está associado ao verbo légo, que sig-nifica “dizer”) e seu emprego pode variar, conforme o contexto em que aparece. Mas podemos ter uma boa ideia de seu signifi-cado mais básico, observando palavras das línguas modernas que derivam dela. A co-meçar por lógica, que é o estudo das formas de pensamento e dos tipos de enunciados que as comunicam. A lógica busca com-preender de maneira sistemática e rigo-rosa os mecanismos fundamentais desses esquemas de pensamento. A lógica, entre outras coisas, analisa e sistematiza formas de argumentos, e, como vimos, Sócrates se

François Lemoyne (1688-1737) foi

expoente da pintura rococó, apreciada

na primeira metade do século XVIII (O

tempo salvando a verdade da falsidade

e da inveja. Óleo sb/ tela, 1737).

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refere à investigação que ele e Teeteto es-tão fazendo como “nosso argumento”.

Isso significa que a investigação de Só-crates e Teeteto a respeito do saber e do conhecimento deve procurar, digamos as-sim, obedecer ao lógos, ser racional. E esse lógos, diz Sócrates, deve impor-se às nos-sas vontades pessoais. Não escolhemos, diz Sócrates a Teeteto, investigar primei-ro o que é conhecer, para só então res-ponder à pergunta sobre a opinião falsa. A anterioridade da primeira questão em relação à segunda é inevitável em virtude de seus próprios conteúdos, porque ela é uma anterioridade “lógica”.

Platão tem uma maneira bem interes-sante de comunicar a seu leitor a força dessa necessidade: ele personifica o lógos, como vimos na fala de Sócrates. É como se o lógos, na condição de uma personagem, dirigisse uma “censura” aos dialogantes, resultando na dificuldade em que ambos se encontram. Essa personificação é a for-ma encontrada pelo filósofo para expres-sar a inevitabilidade do lógos e de suas regras. E também, para quem se dispõe a investigar a verdade e encontrar defini-ções, o quão superior ele é, se comparado a vontades individuais e interesses pró-prios daqueles que investigam.

Razão, justiça e conhecimentoA mesma forma de conceber o poder do

lógos se apresenta em alguns momentos daquele que provavelmente é o mais impor-tante e influente diálogo escrito por Platão: A república. Nele, Sócrates e seus interlocu-tores investigam e tentam responder à per-gunta “o que é a justiça”, e a investigação os levará a tentar compreender o que são um Estado justo e um indivíduo justo.

Diante de manifestações de seus jo-vens interlocutores, que se reconhecem em dificuldade para levar adiante uma in-vestigação tão difícil e importante, o ex-periente filósofo lembra-lhes de um pro-cedimento metodológico importante, em pelo menos dois trechos do diálogo, que

A palavra lógos

A palavra lógos indica um tipo de pensamento e de linguagem que aspira a ser “lógica”. Também po-demos dizer, usando outro termo muito empregado para traduzi-la, que a palavra aponta para o esfor-ço de elaboração de um discurso racional sobre determinado tema ou assunto. Lógos se traduz, muitas vezes, por razão, porque expressa o esforço de dizer as coisas segundo regras de pensamento sistemáticas e plenamente inteligíveis. Isso expli-ca também sua presença em quase todas as palavras que indicam pro-postas de compreensão sistemática e científica de diferentes objetos e temas: “psicologia” (um lógos sobre a alma, ou psiquê), “sociologia” (um lógos sobre a sociedade), “biologia” (um lógos sobre a vida), “antropolo-gia” (um lógos sobre o homem) etc.

vale a pena registrar: “Mas não deve ser assim, como nosso argumento (lógos) nos indicava há pouco, e devemos obedecê-lo, até que alguém nos convença com outro, melhor” (Platão, República, 388e, tradu-ção nossa); e “Não sei ainda, mas por onde o argumento (lógos) nos conduzir, como o vento, para lá deveremos ir” (Platão, Repú-blica, 394d, tradução nossa).

Não se engane: o fato de que o argu-mento nos conduz “como o vento” não significa que vamos para qualquer lu-gar, porque o vento sopraria de maneira sempre imprevista, resultando daí que a

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investigação não teria rumo certo. Tra ta-se de uma metáfora que indica que nós, os investigadores, somos conduzidos por caminhos que não escolhemos, definidos pela necessidade interna à argumentação.

Voltemos agora ao trecho citado do diá-logo Teeteto. Sócrates e Teeteto constatam o equívoco que haviam cometido. Tentaram descobrir o que pode ser opinião falsa, sem antes saber o que é conhecimento. O mo-tivo: passaram a investigar o que é opinião falsa, porque foi afirmado que o conheci-mento se define como opinião verdadeira; para saber o que é opinião verdadeira, a investigação julgou necessário investigar também o que seria opinião falsa. Mas como saber o que é opinião falsa, se não se sabe ainda o que seria o conhecimento? A investigação parece andar em círculo – está, portanto, condenada ao erro. Eis por que, diz Sócrates, é preciso “começar de novo”.

Observe a metáfora do rio para expres-sar a ideia de que quem nos conduz, de fato, é o caminho traçado pelo próprio rio, e não um caminho que nós vamos criar. Assim como no caso do vento na passa-gem de A república, aqui seremos conduzi-dos pela força da correnteza do rio – pela força da correnteza do lógos.

Sem saber o que mais dizer, Teeteto insiste na resposta anterior: “conheci-

mento” é “opinião verdadeira”. Sócrates então vai mostrar-lhe que essa definição não é satisfatória.

Sobre método e definiçõesSegundo Sócrates, a arte da oratória,

empregada nos tribunais, mostra que a definição de Teeteto não é boa. Por quê? Antes de tentarmos compreender como isso se dá, é necessário ter em mente algu-mas ideias que parecem pressupostas em todo esse raciocínio, que dizem respeito ao modo como Platão, neste diálogo e em alguns outros, parece compreender o que está em jogo quando nos propomos a dar uma definição de algo.

Se respondo à pergunta: “o que é conhe-cimento?”, afirmando que “conhecimento” é “opinião verdadeira” (em outras palavras, dando uma definição de “conhecimento”), então estou afirmando que “opinião ver-dadeira” contém algo sem o que “conheci-mento” não seria “conhecimento”.

Mas será correto concluir que (1) sempre que houver “conhecimento”, ha-verá “opinião verdadeira”, e (2) sempre que houver “opinião verdadeira”, haverá “conhecimento”?

A estratégia de Sócrates, com o exemplo dos oradores e advogados, consistirá em mostrar que a exigência (2) não é satisfeita: há casos em que se adquire “opinião ver-dadeira” sem com isso adquirir “conheci-mento”, o que mostra que “conhecimento” e “opinião verdadeira” não são a mesma coi-sa – e era isso que estava por trás da ideia de uma definição. Assim, se Sócrates puder mostrar que é verdade que se pode adquirir “opinião verdadeira” sem adquirir “conhe-cimento”, “opinião verdadeira” não será mais uma definição adequada para “conhe-cimento”, por não satisfazer a exigência (2).

Eis então como Sócrates argumenta:

1. No tribunal, um orador ou ad-vogado precisa, em pouco tem-po, produzir nos juízes uma opi-nião favorável ao que ele defende.

Marcantonio

Raimondi (c.

1480-1534),

A eloquência,

a filosofia e a

ciência – Será

que essas três

figuras sempre

se entendem?

Gra

vura

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Deve, segundo o termo empregado por Sócrates, persuadir. Persuadir é produzir em alguém uma opinião que deverá parecer verdadeira – no caso, aos juízes.

2. Nessas condições, o advogado pre-cisa produzir tal opinião sem que os juízes tenham conhecimento do que ocorreu, porque eles não tes-temunharam os fatos. Por isso, os juízes julgam com base apenas no que dirão esse e outros advogados e testemunhas.

3. Portanto, se ele conseguir produzir nos juízes uma opinião verdadeira, e se esses mesmos juízes admitem não ter conhecimento dos fatos, en-tão ficará claro que é possível que al-guém tenha opinião verdadeira sem conhecimento.

4. Ora, os advogados conseguem fa-zer isso.

5. Portanto, existe opinião verdadeira sem conhecimento.

Estabelecido esse ponto, Teeteto pro-põe uma nova definição possível de conhe-cimento: “opinião verdadeira acompa-nhada de justificação”. Duas observações devem ser feitas sobre essa nova tentativa de definição.

Em primeiro lugar, veja que a nova proposta de definição não abandona a an-terior, mas a enriquece e aprofunda. Ela mantém que conhecimento é “opinião ver-dadeira”, acrescentando agora: “acompa-nhada de justificação”. Afirma em seguida a importância desse acréscimo: “opinião verdadeira sem justificação está fora do conhecimento, e aquilo de que não se tem justificação não é objeto de conhecimento”.

Podemos expressar essa importância, em termos filosóficos mais precisos, dizen-do que “opinião verdadeira”, mantendo-se na definição, é uma condição necessária para a posse de conhecimento. No entanto, se pode existir, como vimos, opinião verda-deira sem conhecimento, esta não é uma

condição suficiente para possuí-lo. Algo mais deve estar presente quando temos conheci-mento, sem o qual ele não existirá.

Esse “algo a mais” é chamado de “justi-ficação” e é apresentado como aquilo sem o que “conhecimento” não seria “conheci-mento”. Pode-se dizer, então, que a defini-ção que Sócrates e Teeteto estão procuran-do em sua investigação deve conter duas características importantes. Uma, mais genérica, está presente também em outras coisas que não são o objeto da definição – em nosso caso, “opinião verdadeira” é algo presente em “conhecimento”, mas também no que não é “conhecimento” (as opiniões verdadeiras dos juízes nos tribunais). Mas há ao lado disso outra característica especí-fica de “conhecimento”, que o distingue de outros tipos possíveis de opinião verdadei-ra: “justificação”.

É fundamental saber que a palavra aqui empregada, “justificação”, também traduz aquela palavra já nossa conheci-da: lógos. Então, o conhecimento se dá quando, além de possuirmos uma opinião verdadeira sobre algo, somos capazes de fornecer justificação para isso. Em outros termos, diremos que o conhecimento con-siste em ser capaz de fornecer argumentos. Esses argumentos dão as razões que nos

John

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Até que ponto um bom advogado faz a principal

diferença em um julgamento? (John Morgan [1822-

1885], Cavalheiros do júri. Óleo sobre tela, 1861)

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permitem afirmar por que nossa opinião verdadeira é verdadeira.

Ora, o fato de que o mesmo lógos nor-teia a investigação de Sócrates e Teeteto, e é uma exigência indispensável para o conhe-cimento, sugere que a própria investigação é uma tentativa de encontrar uma “opinião verdadeira, acompanhada de justificação”.

Como vimos, trata-se de tentar conhe-cer o que é conhecer. Portanto, a investiga-ção esteve, todo o tempo, servindo-se de um procedimento que agora se apresenta claramente. O objetivo de afastar a dúvida , em favor da posse de uma certeza , é, afi-nal, a tentativa de encontrar boas razões para aceitar que algo é verdadeiro.

A investigação do filósofo será, por isso, inevitavelmente um procedimento argumentativo, uma procura por razões e justificações. Não basta “ter opiniões ver-dadeiras”, é preciso saber justificá-las. Eis o que tentam fazer Sócrates e Teeteto.

A posse de uma justificação permite, segundo o texto, dar o passo fundamental e estabelecer uma diferença importante, entre estar de posse da verdade e conhe-cê-la como verdadeira. Eis-nos de volta à distinção entre certeza e verdade. O que nosso texto considera como “posse da verdade pela alma” equivale a uma certeza subjetiva. Somente a presença de uma jus-tificação poderá conferir a essa “verdade” o sentido forte de conhecimento.

A experiência do diálogo

Atividade em equipe e debate em sala de aula

1. Em dupla com um(a) colega, esco-lha uma questão qualquer extraída do noticiário cotidiano, como um aconteci-mento político ou cultural, ou um fato que diga respeito a seu dia a dia, como, por exemplo, o comportamento de mo-toristas e pedestres nos centros urba-nos brasileiros, ou a discussão sobre o tema da segurança pública. Em segui-da, procurem montar um breve diálogo que contenha uma investigação, inspi-rada no exemplo do diálogo Teeteto, apresentando-a em sala de aula.

2. Em dois diálogos diferentes, Platão afirma que o pensamento consiste num “diálogo silencioso da alma consigo mesma” (cf. Teeteto, 189e; Sofista, 263e). Partindo disso, procure apresentar uma espécie de diálogo interior, no qual você pode pensar sobre uma questão e construir um conjunto de perguntas e respostas, também inspirados nos diá-logos platônicos estudados. Apresente os resultados em dupla, para os demais colegas da classe.

Duvidando para atingir a certeza

Há situações de investigação em que se busca responder a uma questão, como “o que é conhecimento?”. Pode-se dizer, nes-se caso, que havia uma dúvida no início da investigação, que motivava essa investiga-ção e sem a qual a investigação não acon-teceria. Toda busca de certeza consiste numa forma de eliminar uma dúvida . A dúvida, então, pode ser vista como um obstáculo a ser transposto, como algo

negativo e indesejado. À primeira vista, ninguém quer ter dúvidas e, quando as temos, todos nós queremos resolvê-las.

Contudo, é possível também consi-derar a dúvida como um caminho para a certeza, fazendo da dúvida um método para encontrar a verdade. Pode parecer es-tranho, mas, desse ponto de vista, trata-se de procurar a dúvida, de escolher duvidar, exercitando a dúvida deliberadamente.

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Nesse caso, ela passa a ser um momen-to indispensável na descoberta da verdade.

Aqui, estamos bem longe das situa-ções de dúvida e investigação de nossa vida cotidiana. Quando me pergunto, no meio da rua e debaixo de chuva, se fechei ou não a janela do meu quarto antes de sair de casa, não escolhi essa dúvida, ela se impôs a mim. Do mesmo modo, quan-do alguém se põe a investigar se foi ou não traído por sua esposa, ele tampouco escolheu essa dú vida. Muito pelo contrá-rio, a pessoa daria tudo para não viven-ciar essa experiência.

No caso da filosofia, entretanto, as coisas se passam diversamente. Como você logo irá verificar, houve filósofos que sustentaram que a dúvida seria o procedimento que nos garantiria estar-mos de posse de verdades incontestá-veis. Nesses casos, a dúvida é desenvol-vida como um caminho ou método que escolhemos para alcançar a verdade.

O filósofo que elevou o papel da dú-vida a essa condição de instrumento fi-losófico indispensável na busca da cer-teza foi René Descartes (1596-1650). Para compreender como Descartes considerou a relação entre dúvida e certeza, vejamos algumas passagens de sua obra:

“Porque fomos crianças antes de termos nos tornado adultos, e por-que julgamos ora bem, ora mal acer-ca de coisas que se apresentaram a nossos sentidos em uma época na qual não dispúnhamos ainda do in-teiro uso de nossa razão, aconteceu que muitos juízos, formados com precipitação, impedem-nos de che-gar ao conhecimento da verdade. E o fazem de modo que não há aparência de que possamos nos libertar, salvo no caso de nos dedicarmos a duvidar uma vez em nossas vidas de todas as coisas nas quais encontramos a me-nor suspeita de incerteza. [...]

E será mesmo muito útil rejeitar como falsas todas aquelas coisas nas quais pudermos imaginar a menor dúvida, de modo que, se descobrirmos algumas que, apesar dessa precau-ção, parecerem-nos manifestamente verdadeiras, consideremos então que são muito certas e as mais fáceis de conhecer.” (Descartes, Princípios da fi-losofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 107-108. Tradução nossa)

Descartes é considerado uma espécie de fundador da filosofia moderna, e uma das razões que justificam essa atribuição está justamente na nova maneira de con-ceber o papel da dúvida na filosofia.

A passagem que lemos nos dá boas indicações dessa nova concepção. Inicial-mente, o texto afirma uma característi-ca de nossa condição: desde a infância, estamos habituados a levar em conta pri-vilegiadamente o que percebemos pelos nossos sentidos. Como, nessa época da vida, estamos pouco habituados ao uso de uma razão ainda em formação, natu-ralmente adquirimos certas convicções que se alojam em nós com muita força, mas que são, na verdade, “juízos forma-dos com precipitação”.

René Descartes (1596-1650)

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Descartes, fundador da filosofia moderna

René Descartes (1596-1650) viveu na passa-

gem de uma época para outra, uma transição

para a qual ele mesmo contribuiu muito. A Fran-

ça em que cresceu se tornou, ao longo do sécu-

lo XVII, a principal monarquia católica europeia,

superando de vez a Espanha e rivalizando com

o Reino Unido na disputa política mundial.

Acompanhando o processo de afirmação da

cultura nacional, Descartes foi um dos primei-

ros pensadores a publicar textos não apenas

em latim, mas também em francês, dirigindo-se

a um público mais amplo que aquele formado

pelos teólogos e professores ligados às univer-

sidades (em especial, a da Sorbonne, em Paris).

Inovou nas ciências (aderiu às teses de Ga-

lileu Galilei) e nas matemáticas (foi o criador da

geometria analítica e do sistema de coordena-

das... cartesiano, que você deve conhecer). Mas

foi sobretudo no âmbito da filosofia que a contri-

buição de Descartes para o surgimento da filoso-

fia moderna foi decisiva. Ele é o autor do “penso,

logo existo”, o famoso cogito, que representou

uma façanha em relação ao pensamento de sua

época, ainda preso, sob muitos aspectos, ao le-

gado de Aristóteles e de Tomás de Aquino. Com

o cogito, a filosofia se torna de vez reflexiva e

subjetiva – o sujeito do pensamento ganha uma

relevância extraordinária, que iria marcar pro-

fundamente os rumos posteriores da filosofia.

A biografia de Descartes possui grande inte-

resse. Estudou em uma escola jesuíta, o Colégio

La Flèche. Em seu Discurso do método (1637), ele

nega ter aprendido ali qualquer matéria que

fosse relevante para a vida. A fim de aprender

com o mundo, pôs o pé na estrada e viajou inten-

samente pela Europa. Em 1618, alista-se nas tro-

pas de Maurício de Nassau (1567-1625), quase

vindo combater por nossas terras, por conta da

ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.

Mas, na noite de 10 de novembro de 1619,

Descartes tem um sonho que, segundo rela-

tou depois, iluminou-lhe a ideia de uma nova

ciência. Renuncia à carreira militar por volta de

1620. Munido de uma herança materna, passa

a dedicar-se aos estudos científicos e filosóficos.

No Discurso do método, que o torna conhe-

cido entre os doutos, Descartes defende um

novo estilo de pensamento, inspirado na cla-

reza, na evidência e na ordem das matemáti-

cas. Em 1641, publica as Meditações metafísicas,

em que demonstra, baseado nesse método, a

imortalidade da alma e a existência de Deus. Os

Princípios da filosofia são de 1644, e As paixões

da alma, em que expõe sua filosofia moral, de

1649. Descartes encontra-se naquele momento

em Estocolmo, na Suécia, a convite da rainha

Cristina. Obrigado a se levantar às 5h da manhã

todos os dias para instruir a rainha, contrai uma

doença pulmonar e falece.

As principais obras de Descartes estão

traduzidas para o português. Citamos apenas

algumas delas a seguir, para consulta:

R. Descartes, Obras escolhidas. Tradução: J.

Guinsburg, B. Prado Jr., N. Cunha e G. Guins-

burg. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Esse volu-

me contém Discurso do método, Meditações me-

tafísicas, Paixões da alma e a Geometria, entre

outros textos.)

R. Descartes, O mundo ou Tratado da luz (Tra-

dução: C. A. Battisti). O Homem (Tradução: M.

Donatelli). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

Para estudo introdutório, ver:

Franklin L. e Silva, Descartes – A metafísica

da modernidade. São Paulo: Moderna, 2005.

(Há, em DVD, uma aula de Franklin L. e Silva

que aborda de modo muito claro as contribui-

ções filosóficas de Descartes e Kant como mar-

cos do pensamento moderno: “Uma reflexão

sobre o pensamento moderno”. São Paulo:

Editora Abril e Fundação Padre Anchieta, 2002.)

J. Cottingham, Dicionário Descartes (Tradu-

ção: H. Martins). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1995.

Há um excelente estudo sobre a filosofia

moral cartesiana, escrito nos anos 1950 por

um dos primeiros professores brasileiros a

adotar um método rigoroso e instigante de lei-

tura de textos clássicos:

Lívio Teixeira, Ensaio sobre a moral de Des-

cartes. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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Ora, essas convicções se tornam mui-to intensas e temos muita dificuldade para perceber que podem ser obstáculos na tentativa de “chegar ao conhecimento da verdade”.

Aqui se mostra um aspecto importan-te do pensamento cartesiano e de várias outras filosofias: quando adotamos uma atitude filosófica, colocando-nos em bus-ca da verdade, deparamos com certas “verdades” que adquirimos desde cedo em nossas vidas, que nos são transmitidas também pela educação e pelos hábitos, e que tendemos a considerar como absolu-tamente óbvias e evidentes.

É essa atitude natural que deve ser re-jeitada, pois, se estivermos em busca do conhecimento, essas presumidas “ver-dades” devem ser vistas com cautela e tornar-se objeto de nosso ques-tionamento. Sendo a fi-losofia, para Descartes, aquilo que nos permite a libertação dos juízos apressados, da falsidade e da incerteza, é preciso que nosso conhecimento seja baseado em ver-dades dotadas de uma certeza absoluta. E isso não pode ser alcançado se não encontrar-mos um meio de basear nossos conhe-cimentos em alguma verdade que seja comprovadamente irrefutável.

E como Descartes acredita poder so-lucionar o problema? Sua resposta, como vimos, consiste em adotar uma atitude diante da dúvida: “nos dedicarmos a du-vidar uma vez em nossas vidas de todas as coisas nas quais encontrarmos a me-nor suspeita de incerteza.” Observe que duvidar, agora, é uma atividade delibe-rada: para bem filosofar, é preciso ten-tar colocar todas as verdades aceitas em suspenso, considerando as razões que te-mos para questioná-las e verificando se, de fato, resistem à dúvida.

A dúvida metódica de DescartesÉ costume dizer que em Descartes há

uma “dúvida metódica”. “Metódica” por-que é praticada sistematicamente, com método, voluntariamente e por inicia-tiva própria, como um meio de pôr à prova nossas convicções e opiniões. Ela não tem como objetivo tentar solucionar um problema que surge inesperadamen-te em nosso caminho, como a dú vida so-bre ter ou não fechado a janela ao sair de casa ou a do marido desconfiado quanto à fidelidade de sua esposa: o filósofo, ao contrário, cria ele próprio dúvidas, per-guntando-se se e como elas podem ser solucionadas.

Esse modo de encarar a dúvida está pre-sente nas Meditações metafísicas de Descar-

tes, o mais importante de seus tratados filosóficos. A primeira de suas seis Meditações reúne um con-junto de argumentos que põem em dúvida todas as opiniões estabelecidas, para, na sequência, des-cobrir verdades que per-mitirão a construção de um sistema sólido e rí-gido de conhecimentos. Observe, então, como o

filósofo inicia esse texto fundamental, e como nesse início encontramos aquela ati-tude metodológica:

“Já há algum tempo me dei con-ta de que, desde os meus primeiros anos, eu havia recebido muitas fal-sas opiniões como verdadeiras, e que aquilo que eu a partir daí fundei so-bre princípios tão mal fundados não podia ser senão muito duvidoso e incerto; de maneira que era preciso que eu resolvesse a sério, uma vez na vida, desfazer-me de todas as opi-niões que eu havia acolhido até en-tão em minha crença e começar tudo de novo, desde os fundamentos, se

O filósofo cria ele próprio dúvidas,

perguntando-se se e como podem ser

solucionadas.

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eu desejava estabelecer alguma coi-sa firme e constante nas ciências.” (R. Descartes. Meditações metafísicas, Tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. IX-1, p. 13)

Ao colocar a dúvida metódica e sis-temática no início do trajeto filosófico, Descartes dá significado importante à relação entre dúvida e certeza. Se é ver-dade que onde há dúvida não há certe-za, agora, com Descartes, a certeza só será absoluta se resistir à dúvida. Só poderei aceitar como verdade absoluta-mente certa algo que a dúvida não pu-der alcançar.

Continuemos a examinar a ideia da dúvida metódica e, para isso, voltemos a uma frase citada há pouco, que afirma que o filósofo deve tomar a iniciativa de “duvidar, uma vez em nossas vidas, de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza”.

Já sabemos por que é preciso tomar a iniciativa de duvidar, mas reflitamos um pouco mais sobre essa ideia. Como estamos habituados a ver na dúvida algo negativo, que pode mesmo gerar em nós angústias e apreensão, não percebemos facilmente o que isso significa. Na ver-dade, Descartes está aqui nos apresen-tando uma justificativa para uma atitu-de tipicamente filosófica: interrogar e levantar questões a respeito de tudo.

É comum ouvir dizer, de alguém que gosta de fazer perguntas e duvidar mais do que de hábito, que é um “filósofo”, e nesse caso o termo admite uma conotação meio jocosa, como uma espécie de ironia.

Mas não deixa de ser verdade que a filo-sofia se transformou, sobretudo a partir de Descartes, numa atividade de inves-tigação e reflexão que precisa começar com perguntas ou dúvidas – como já fa-zia Sócrates na Grécia antiga. Por mais estranho que possa soar a ouvidos pou-co habituados a conceitos filosóficos,

é preciso, em certo sentido, adquirir gosto por duvidar, aprender a duvidar e não evitar a dúvida. Diferentemente de nossa atitude mais corriqueira, Des-cartes e outros pensadores entendem que, sem duvidar seriamente de tudo, nunca saberemos com certeza onde se encontra a verdade.

Nossa frase diz também que é preci-so tomar a iniciativa de duvidar “uma vez na vida”. É claro, portanto, que Descartes não acha que passaremos a vida inteira a duvidar de tudo. Isso está em total concordância com o fato de que sua dúvida é “deliberada” e “metó-dica”. Nesse caso, a atitude de duvidar consiste numa escolha estratégica da-quele que quer encontrar verdades in-contestáveis e julga que só o conseguirá se puser tudo à prova. Quando botar-mos essa estratégia em ação e isso nos permitir descobrir as verdades, deixa-remos de duvidar.

Isso mostra que essa dúvida não im-plica fazer referência a nosso estado psicológico, a nossas inseguranças e hesitações individuais. Aqui a dúvida não envolve, por exemplo, o desespe-ro de um ciumento desconfiado, como o Bentinho de Machado de Assis, que

Caravaggio (1571-1610), A incredulidade de

Tomé (óleo sb/ tela, 1599. Bildergalerie, Pots-

dam). Este episódio da vida de Jesus é descrito

no Evangelho de João (24:24).

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vê ameaçada toda a sua felicidade por conta da suspeita de que foi traído por sua esposa Capitu . Se conseguirmos en-contrar verdades absolutamente certas e irrefutáveis, elas permanecerão assim para sempre, independentemente de quem as pense e investigue.

O resultado da investigação não de-pende das vontades subjetivas dos in-vestigadores. Essa necessidade presente nas descobertas da investigação tem algo a ver com o lógos – argumento, ló-gica, razão – encontrado nos diálogos de Platão[+]. Também Descartes pretende que seu método de duvidar de tudo lhe dará em troca a descoberta de verdades necessariamente certas, obtidas por um procedimento rigoroso de dúvida e in-vestigação.

Outra característica incomum da dúvida metódica de Descartes é que ela se dirige a toda e qualquer supos-ta ver dade que puder ser questionada, inclusive, como vimos, aquelas que re-cebemos desde a infância (“de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza”, diz o texto dos Princípios da filosofia).

Para compreender realmente o que isso quer dizer, nada melhor do que co-nhecer algumas dúvidas apresentadas na primeira das Meditações metafísicas. Des-cartes duvida se está, naquele momento, diante de sua lareira, vestido com seu robe de chambre, porque talvez esteja, naquele momento, apenas sonhando – e por que não? Muitas vezes sonhamos com acontecimentos que parecem reais.

Para Descartes, pode ser que eu não esteja agora fazendo o que julgo fazer, porque posso estar sonhando, ou até mesmo pode ser que tudo o que me pas-sa pela cabeça não seja mais do que uma ilusão enganosa, produzida por um deus enganador ou um gênio maligno! Parece então que podemos e devemos duvidar até mesmo da verdade das sensações ou representações mais evidentes, como a de que estou neste momento em fren-te a um computador escrevendo este texto. Assim colocada a questão, parece que podemos e devemos duvidar de tudo, contanto que exista “a menor suspeita de incerteza”. Ora, como isso é possível, como podemos aceitar que uma dúvida dessas seja razoável?

Cena de Matrix, filme dirigido pelos irmãos Wachowski (EUA/Austrália: 1999). Uma

rede de computadores criou o mundo aparente por meio de software, para explorar

os humanos. Alguns deles descobrem que nada é o que parece ser.

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Duvidoso ou incontestávelA resposta para essas questões encon-

tra-se na sequência da passagem citada. Ela nos dá importantes informações so-bre o sentido dessa dúvida, informações que poderão nos auxiliar a compreender tudo o que está em jogo com esse mé-todo: “E será mesmo muito útil rejeitar como falsas todas aquelas coisas nas quais pudermos imaginar a menor dú-vida”. O início é curioso: propõe que eu devo considerar falso aquilo de que du-vido, o que à primeira vista não parece fazer muito sentido.

Quando saio de casa e começa a chover, e me vem a dúvida se fechei mesmo a janela: se chego a duvidar que a tenha fechado, não é por isso que vou con-cluir que é falso que eu a tenha fechado. Se tenho dúvidas a res-peito, é porque não sei se minha impressão de que a fechei é ver-dadeira ou é falsa. É só isso que então está sob suspeita: fechei ou não a janela? Ora, o que nos recomenda Descartes é outra coisa. Ele nos propõe que consideremos tudo o que seja mini-mamente duvidoso como se fosse abso-lutamente falso.

Descartes quer que não aceitemos como verdadeiro o que for duvidoso – quer que nosso conhecimento seja basea-do em certezas incontestáveis. Se algo se mostrar impossível de se colocar em sus-peita – algo de que não possamos “ima-ginar a menor dúvida” – isto terá que ser considerado como verdadeiro, porque terá escapado da dúvida.

Preste atenção na expressão: “a menor dúvida”. Pense como, em nossas vidas, todos nós temos dúvidas mais ou me-

nos fortes. Eu digo que neste momento olho pela janela e “não tenho nenhuma dúvida” de que não está chovendo. Digo também que tenho dúvidas sempre que preciso escolher um prato nos cardápios de restaurantes. E digo ainda que tenho dúvidas se viverei até os oitenta anos.

No primeiro caso, estou convicto. No segundo, minha dúvida se dissipará rapi-damente, basta que eu escolha um prato. No terceiro, só saberei na hora, se é que saberei... São situações completamente distintas para mim, que expressam esta-dos psicológicos inconfundíveis entre si.

Mas Descartes está à procura de uma for-ma de encontrar ver-dades absolutamente verdadeiras e não pode separar dessa maneira seus estados de dúvi-da. Por isso, ele decide, por um ato de sua von-tade, tratar como falso, mesmo sem saber se é realmente falso, tudo que for minimamente duvidoso.

Observe ainda que Descartes diz que va-mos imaginar essa “menor dúvida”. Esta

palavra, “imaginar”, é importante e pe-rigosa: importante porque nos ajuda a compreender que essa dúvida não é uma convicção pessoal do filósofo, algo em que ele realmente necessite acreditar. Ele deve apenas ser capaz de imaginá-la. Pe-rigosa porque sempre que usamos esse verbo, “imaginar”, pensamos que se tra-ta de algo fantasioso e irracional, e isso pode parecer completamente incompa-tível com a ideia de “razão”, que, como vimos, Descartes emprega aqui. Veja, aliás, que ele não hesitou em usar outra expressão que pode nos soar estranha, para comentar seu procedimento me-todológico de duvidar: “Decidi fazer de

Para Descartes, não devemos aceitar

como verdadeiro o que for duvidoso: o conhecimento

deve partir de certezas

incontestáveis.

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conta que todas as coisas que tinham até esse momento entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos” (Descartes, Discurso do método, tradução nossa. Edição de refe-rência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 32).

“Fazer de conta” é outra expressão que requer muito cuidado. Estamos acostumados a associá-la a fantasias literárias, romances, contos de fadas, nunca a investigações filosóficas. Mas o que ela quer dizer aqui? Retomemos as dúvidas mencionadas. O fato de que às vezes eu tenha sonhos que me pa-reçam absolutamente reais me leva a “fazer de conta” que neste momento es-teja sonhando – e, de fato, posso estar sonhando o tempo todo. Não importa se creio ou não nisso, o que importa é que consigo “imaginar” essa possibili-dade como uma possibilidade razoável. Há uma razão para ela – muitas vezes, sonhamos com fatos reais –, e essa ra-zão é suficiente para que eu, metódica e deliberadamente, “faça de conta” que estou sonhando o tempo todo. Há uma

razão de duvidar, fundamentando esse “imaginar”, esse “fazer de conta”.

Assim, a investigação de Descartes vai ampliar o máximo possível essa dú-vida, procurando, diante de tudo, uma razão para duvidar, de modo a fazer de conta que tudo o que é duvidoso é tam-bém falso. A expressão “fazer de con-ta”, afinal, indica apenas que essa dú-vida não é a expressão de uma situação realmente vivida pelo indivíduo René Descartes em seu cotidiano. Trata-se, isso sim, de apenas uma estratégia de descoberta de uma ou mais verdades indubitáveis, de modo a obter um con-junto sólido e inatacável de conheci-mentos. Mas isso não retira dessa dúvi-da sua força e importância: ao baseá-la em razões, Descartes está justamente dissociando a dúvida de motivações in-dividuais, que digam respeito apenas a si mesmo. Todos nós temos que reco-nhecer que há uma “dúvida mínima”, uma possibilidade ínfima de que pos-samos estar agora sonhando. A dúvida é, então, razoável, e isso basta para os propósitos da investigação filosófica.

A mulher da direita representa o prazer; a da esquerda, a difícil via

da virtude (Annibale Caracci [1560-1609], A escolha de Hércules,

óleo sb/ tela, 1596.

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A certeza filosóficaNosso trajeto em torno das relações

entre “dúvida” e “certeza” nos mostrou que a interrogação, expressão de uma dú-vida, deve ser respondida de modo a nos dar uma “certeza” que aspira a ser uma “verdade” ou um “conhecimento”.

Os filósofos, ainda que empregando vocabulário variado, frequentemente querem que certezas individuais, isto é, crenças particulares que não estão fun-dadas em boas razões, sejam superadas e nos conduzam a verdades incontestavel-mente provadas. Platão, no diálogo Tee-teto, propunha que esse ideal só pode ser alcançado quando opiniões que se pre-tendem “verdadeiras” estejam realmente baseadas em “razões” e “justificações”. Só

dessa forma essas opiniões verdadeiras adquirem a qualidade de serem aceitas por todos, merecendo assim a denomina-ção de “conhecimento”.

Com Descartes, continua valendo esse tipo de distinção entre verdades apenas subjetivas e individuais e verdades de-monstradas como irrefutáveis para to-dos. Porém, a forma como ele lida com essa distinção é profundamente original em comparação com seus antecessores. Vejamos por quê.

Ao duvidar de tudo que é possível, Descartes conclui que a própria existên-cia do mundo externo pode ser apenas uma ilusão. É o ponto culminante do processo deliberado de considerar falso tudo aquilo que é minimamente duvido-

O pensador francês Blaise Pascal (1623-

1662) desenvolveu, de maneira esparsa,

aquilo que poderíamos chamar de contra-

-argumentações ao procedimento de dúvi-

da metódica sugerido, em Descartes, pela

indistinção inicial entre sonho e vigília. Leia

atentamente o seguinte trecho de Pascal:

“Se, todas as noites, nós sonhássemos a

mesma coisa, ela nos afetaria tanto quanto

os objetos que vemos todos os dias. E se um

artesão estiver seguro de sonhar todas as

noites durante doze horas que é rei, acredito

que ele seria quase tão feliz quanto um rei

que sonhasse todas as noites durante doze

horas que é artesão.

Se, todas as noites, nós sonhássemos que

estamos sendo perseguidos por inimigos e

perturbados por esses fantasmas angustian-

tes, e que transcorremos todos os dias em

meio a diferentes ocupações, como quan-

do viajamos, nós sofreríamos quase tanto

quanto se isso fosse verdade, e estimaríamos

o dormir como nós estimamos o acordar,

quando, com efeito, tememos ingressar em

tais desgraças. E, com efeito, isso nos causa-

O CONTRAPONTO DE PASCAL AO “SONHO” DE DESCARTES

ria mais ou menos os mesmos males que a

realidade.

Mas porque os sonhos são todos diferentes

e porque mesmo um se diversifica, aquilo que

lá vemos afeta-nos bem menos do que o que

vemos acordados, por causa da continuidade

que, contudo, não é tão contínua e uniforme a

ponto de não mudar ela também, mas menos

bruscamente, a não ser raramente, como quan-

do viajamos e então dizemos: parece-me estar

sonhando; pois a vida é um sonho um pouco

menos inconstante. (Pascal, Pensamentos,

§803. Edição de referência: Pascal, Pensées

[edição de Lafuma]. Tradução nossa.)

Você há de notar que, entre os trechos

citados de Pascal e de Descartes, há alguns

pontos em comum, mas seus desenvolvimen-

tos são bastante diferentes. A rigor, Pascal

não está preocupado em definir se estamos

ou não sonhando, nem em descobrir um cri-

tério que possibilite diferenciar com certeza o

sonho da vigília. Para Pascal, a vigília se dife-

rencia dos sonhos porque costuma ser mais

constante que eles. E isso lhe basta para con-

tornar a dificuldade levantada por Descartes.

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so. Assim termina a primeira de suas Me-ditações. Ao iniciar a segunda, ele cons-tata o seguinte: se duvido, então sou algo enquanto duvido. Só posso duvidar porque existo. Então, está fora de dúvida que eu sou, eu existo. Essa é a primeira verdade que a investigação obtém. Por que é fora de dúvida que existo? Porque se eu não existisse, não poderia duvidar. A dúvida não pode questionar essa ver-dade, porque minha existência é exigi-da para que eu duvide. Como duvidar é pensar, concluo: penso, logo existo.

Dessa primeira verdade, a investiga-ção partirá para a descoberta de novas verdades, que, aos poucos, permitirão a Descartes colocar fora de dúvida mui-tas crenças básicas que haviam sido objeto de suspeita, como, por exemplo, que não estou sonhando, que existe um Deus veraz e bondoso, que existe o mundo exterior. Descartes acreditava nisto antes de iniciar o processo dubi-tativo. Mas se viu obrigado, por decisão própria, a duvidar de tudo isso.

Com a obtenção da primeira certeza (o cogito) e, com base nela, a descober-ta de outras verdades, Descartes pode

reaver aquelas crenças iniciais, acres-cidas porém desta vantagem: agora, a certeza obtida a respeito dessas ver-dades é outra, é filosófica e científica... Você já sabe no que reside a diferença: a certeza, agora, extrai sua garantia de algo que se encontrava presente naque-la primeira verdade: “eu sou, eu exis-to”. Para compreender o que isso quer dizer, vejamos mais uma passagem car-tesiana, agora do Discurso do método:

“Considerei em geral o que é exigi-do para que uma proposição seja ver-dadeira e certa. Pois, visto ter acaba-do de encontrar uma que sabia ser as-sim, pensei que devia também saber em que consiste essa certeza. E tendo observado nada haver em tudo isto – eu penso, eu existo – que me assegure que eu diga a verdade, a não ser que eu vejo com muita clareza que, para pensar, é preciso existir, julguei que poderia erigir como regra geral que as coisas que concebemos com muita clareza e distinção são todas verda-deiras, havendo apenas alguma difi-culdade em notar quais são aquelas

Até que ponto você é capaz de resistir à dúvida?

Atividade em equipe e desenvolvimento individual por escrito

Faça, como exercício momentâneo de reflexão, a seguinte experiência. Adote a perspectiva cartesiana e procure boas razões para colocar em dúvida suas con-vicções mais fortes. Você não precisa comprometer-se com o conteúdo dessas dúvidas, e sim imaginar razões para du-vidar, e essas razões devem ser aceitá-veis a qualquer um e não apenas a você.

• Organizando-se em equipes dis-pondo de três a cinco participantes cada uma, busque então responder à seguinte questão: até onde somos ca-pazes de duvidar de nossas certezas? Sistematize os resultados em forma de redação, apresentando as razões favo-ráveis e contrárias, em primeiro lugar, à ampliação da dúvida e, em segun-do lugar, à afirmação de certezas que porventura consigam se mostrar resis-tentes a ela.

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que concebemos distintamente.” (R. Descartes. Discurso do método, IV par-te, Tradução nossa. Edição de refe-rência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 33)

A expressão fundamental aqui é regra geral. Da única verdade conhecida, isto é, da única certeza absoluta, Descartes extrai uma regra geral que vai permitir saber, de agora em diante, “o que é exigido para que uma proposição seja verdadeira e certa”. E a regra geral é: “as coisas que concebemos com muita clareza e distinção são todas verdadeiras.” Essa será a regra geral não porque o filósofo quis assim, mas porque encontrou essas características – clareza e distinção de concepção – na única verdade que possui: eu penso, logo existo.

“Clareza e distinção” são, portanto, critério de verdade. Quais pensamentos seus satisfazem esse quesito? É através dessa questão que Descartes irá prosse-guir em sua investigação. Ao examinar a ideia de Deus, ser infinito, Descartes conclui que ele mesmo seria incapaz de pensá-la, caso ela não fosse produzida por algo fora de sua consciência. Afinal, como é que um ser finito poderia dis-por, sozinho, da ideia do infinito? Por essa via, Descartes obtém a certeza da existência de Deus, uma conclusão que também satisfaz o critério de verdade e que se torna, com isso, uma verdade de-monstrada e irrefutável. Na sequência da investigação, o filósofo deve sempre se perguntar se está diante de uma con-cepção clara e distinta de algo; em caso afirmativo, terá obtido mais uma verda-de. Assim se vai recuperar, agora como um conjunto sistemático, o conjunto das verdades fundamentais.

Por que, então, é tão frequente ou-vir-se afirmar que o pensamento de Descartes inaugura a filosofia moder-na? Porque agora uma verdade “subje-tiva” – eu penso, logo existo – se tor-na ponto de partida para a descoberta

de verdades realmente objetivas, que têm valor de conhecimento em senti-do forte. Daí se dizer com frequência que, com Descartes, a filosofia se torna uma reflexão sobre o sujeito do conhe-cimento, antes de mais nada, e que tal investigação sobre o sujeito do conhe-cimento traz ganhos para conhecer o próprio mundo, além de nos permitir descobrir até onde esse conhecimento pode chegar.

Vale a pena registrar que, conforme Descartes, a atitude de duvidar de tudo serve a uma finalidade teórica, cognitiva, de “contemplação da verdade”. Logo, ela não deve ser aplicada aos negócios e pro-blemas de nossa vida diária. Veja o que Descartes diz neste passo dos Princípios da filosofia:

“Entretanto, é preciso observar que não penso que devamos nos ser-vir de uma maneira tão geral de du-vidar, a não ser quando nos aplicar-mos à contemplação da verdade. Pois é certo que, no que concerne à condu-ta de nossa vida, somos obrigados a seguir muito frequentemente as opi-niões apenas verossímeis, visto que a ocasião para agir em nossos negócios se perderia quase sempre, antes que conseguíssemos nos livrar de todas as nossas dúvidas. E, se toda vez que nos deparamos com diversas dessas ocasiões concernindo a um mesmo assunto, acontece não percebermos, talvez, mais verossimilhança numa delas que nas demais, se a ação não admite demora, a razão exige que escolhamos uma e que, após tê-la escolhido, que a sigamos constante-mente, como se a tivéssemos julgado muito certa.” (Descartes, Princípios da filosofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 108-109. Tradução nossa.)

Observe que Descartes não propõe que essa “maneira tão geral de duvidar”

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deva interferir em nossa vida diária, mas, sim, que ela serve ao propósito de nos proporcionar a adequada “contem-plação da verdade”, isto é, o verdadeiro conhecimento da realidade. Com isso, ele coloca em discussão também uma

questão que interessará a outros pensa-dores, a do papel da dúvida filosófica na vida comum.

Eis um tema filosófico de grande inte-resse, do qual pensadores posteriores a Descartes também irão se ocupar.

Descartes alistou-se nas tropas de Mauricio de Nassau e quase veio ao Brasil (H, Ambrosius Packx

[1603-c. 1658] Príncipe Maurício de Orange na batalha de Niewpoort. Óleo sb/ tela, 1623).

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Limites da dúvida ao garantir a certeza

Qual será a relação entre nossas dúvi-das filosóficas e a nossa vida comum? Há dúvidas completamente corriqueiras em nossas vidas: “fechei a janela ao sair de casa?”, e há dúvidas deliberadamente cria-das, com o objetivo de descobrir verdades fundamentais: “estou sonhando neste mo-mento?”, como fez, com grandes conse-quências, René Descartes[+] (1596-1650). Vejamos como alguns dos filósofos que o sucederam lidaram com esse assunto.

Nosso primeiro caso é o de David Hume[+] (1711-1776), filósofo escocês do século XVIII, um crítico da filosofia cartesiana que, contudo, deve muito a

um estilo de filosofar de seu anteces-sor francês. A começar porque, embora chegue a conclusões bem diferentes de Descartes, Hume também concentra seu esforço filosófico sobre a mente ou razão humana.

Basta atentar para o título de uma de suas principais obras para dar-se conta disso: Investigação sobre o entendimento hu-mano (1748). Note-se já um enfoque tipi-camente cartesiano do sujeito do conheci-mento, revelado pelo fato de que se trata, aqui também, de “nosso entendimento”.

A questão posta pelo filósofo é, em re-sumo, a seguinte: em minhas inferências

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mais comuns, como funciona minha mente, quando faz uma previsão sobre um fato? Tomemos o exemplo do próprio Hume: quando, durante meu café da ma-nhã, pego um pão e o como, fui levado a isso porque previ que aquele pão me ali-mentaria. Tra ta-se de um acontecimento banalíssimo em nossas vidas, mas, per-gunta o filósofo, o que aconteceu em mi-nha mente que me levou a dar esse passo, a fazer essa inferência, isto é, a supor que o pão iria me alimentar?

Parte da resposta é dada, natural-mente, se afirmamos que me baseio na experiência passada: os muitos pães que já comi me levam a esperar, com toda evidência, que esse pão que está diante de mim vai me alimentar. Con-tudo, diz Hume, isso não basta como resposta: minha experiência passada não me diz diretamente que esse pão diante de mim, que nunca comi, me alimentará, diz apenas que os pães que comi me alimentaram.

Então, minha mente faz uma inferên-cia que lhe permite, comparando as se-melhanças entre os pães que comi e o que

está em cima da mesa, esperar que o mes-mo efeito nutritivo e sabor agradável dos pães que comi até hoje se encontrarão no pão que tenho diante de meus olhos ago-ra. O que é esse passo, pergunta Hume, sem o qual eu não poderia comer o pão tranquilamente?

As análises de Hume o levarão a con-cluir – e nisso ele já não tem nada de car-tesiano – que não é nenhum processo ló-gico que acontece em minha mente, mas apenas a ação do hábito, e que em todos os meus pensamentos sobre fatos que consistem em previsões sobre o futuro, previsões sem as quais eu seria incapaz de tomar decisões práticas, é apenas o hábito que está presente. Observemos como Hume, em seu texto, responde a uma possível objeção, quando está ain-da apresentando sua dúvida e formulan-do o problema:

“Poder-se-ia dizer que nossa prá-tica refuta nossas dúvidas, mas isso é interpretar mal o significado de minha questão. Como agente, estou plena-mente convencido sobre esse ponto, mas, como filósofo que tem sua parce-la de curiosidade, não direi de ceticis-mo, quero compreender o fundamento dessa inferência.” (Hume, Investigações sobre o entendimento humano, IV, 2. Tradução: José O. de A. Marques. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 69)

Como se pode ver, se alguém apresen-tar ao filósofo a objeção de que sua práti-ca – o fato de que ele come pães todos os dias sem precisar saber por que – refuta suas dúvidas sobre o motivo de fazê-lo, ouvirá como resposta que não entendeu o sentido da dúvida filosófica. Hume não está propondo que enquanto não desco-brirmos por que comemos pães devemos deixar de comê-los: está afirmando que, como filósofos, como indivíduos dota-dos de curiosidade filosófica, temos todo o direito de querer saber o que acontece

Segundo Hume, nem mesmo o padeiro

pode prever quando nos alimentamos

de pão. (Job Adriaensz [1630-1693], O

padeiro. Óleo sb/ tela, 1681).

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em nosso intelecto que nos leva a comer pães, esperando que o futuro será como o passado. À sua maneira, que não é exata-mente a mesma que a cartesiana, Hume entende que dúvidas filosóficas estão su-ficientemente desvinculadas de efeitos na prática, o que torna legítimo que as levantemos sem que elas interfiram em nossa vida cotidiana.

A prova do mundo exteriorAtentemos agora para mais uma ques-

tão, formulada por outro filósofo britâni-co, George E. Moore (1873-1958). Aqui está um enfoque um tanto distinto dos de Descartes e de Hume, porque Moore parece defender a tese de que certo tipo de dúvida jamais teria lugar em nossa reflexão filosófica. Observe como esse filósofo lida com uma dúvida elaborada por Descartes e de grande repercussão: a dúvida sobre a existência do mundo exterior. Eis como, num instigante ar-tigo denominado “Prova de um mundo exterior” (publicado postumamente em 1958), Moore trata dessa questão:

“[...] posso agora dar um grande número de provas, cada uma das quais é uma prova perfeitamente rigorosa

G.E. Moore (1873-1958)

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[...] Posso provar agora, por exemplo, que existem duas mãos humanas. Como? Levantando minhas duas mãos e dizendo, enquanto faço determina-do gesto com a mão direita, ‘Aqui está uma mão’, e acrescentando, enquanto faço determinado gesto com a esquer-da, ‘e aqui está outra’. E se, ao fazê-lo, eu provei ipso facto [i.e., pela pró-pria evidência do fato] a existência de coisas exteriores, vocês verão que posso fazê-lo, então, de muitas ou-tras maneiras: não há necessidade de multiplicar os exemplos.” (G. E. Moore, “Prova de um mundo exterior”. Tradu-ção nossa. Edição de referência: “Proof of an external world”, in: Philosophical papers. Londres: Allen & Unwin, 1963, 2ª ed., p. 146)

Para Moore, essa é, como ele mesmo disse, uma “prova rigorosa”, porque sa-tisfaz às três exigências que devemos fa-zer a qualquer tentativa de prova:

1. A conclusão – “existem neste mo-mento duas mãos” ou “existem ob-jetos externos” – diz algo diferente da premissa – “aqui está uma mão e aqui está outra”.

2. O conteúdo da premissa é objeto de conhecimento seguro.

3. A conclusão realmente se segue da premissa.

A seguir, Moore mostra por que e como as três exigências foram satisfeitas. Contudo, segundo ele, muitos filósofos não aceitariam que ele conseguiu provar a existência de objetos externos porque ele não teria provado a premissa “aqui está uma mão e aqui está outra”. Moore reconhece que não a provou e acrescen-ta que não pretendeu prová-la. Segundo ele, no momento em que fez gestos com as mãos e proferiu sua premissa, ele sa-bia, e não simplesmente tinha uma cren-ça subjetiva, que ali estavam duas mãos. Portanto, segundo ele, a premissa não

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necessita ser provada. Ele não pôde pro-var que ali estavam duas mãos, mas con-sidera absurdo duvidar disso, porque isso é evidente.

Para aqueles que acham que, por causa disso, sua prova não é de fato uma prova – noutros termos, que não estabelece um conhecimento em sentido forte –, mas apenas uma crença, Moore simplesmen-te afirma, como conclusão:

“Posso saber de coisas as quais não posso provar; e, dentre as coisas que eu seguramente sabia, mesmo se (como penso) não podia prová-las, estavam as premissas de minhas duas provas. Eu diria, portanto, que quem estiver insatisfeito com aque-las provas, se é que alguém está, alegando meramente que eu não co-nhecia suas premissas, não tem uma boa razão para sua insatisfação.” (G. E. Moore, “Prova de um mundo exte-rior”. Tradução nossa, op. cit., p. 150)

Observe, antes de mais nada, que o verbo “conhecer” é empregado nesse momento no sentido rigoroso, queren-do dizer que muitos diriam que ele não tinha “conhecimento”, mas apenas uma crença subjetiva.

Note também que Moore está se co-locando frontalmente contra certa con-cepção da investigação e da dúvida filo-sóficas, segundo a qual podemos levar a dúvida às suas últimas consequên-cias, indistintamente. Para ele, isso não é verdade, e seu comentário a esse res-peito é interessante, justamente por-que nos mostra que sua crítica diz res-peito àquela atitude filosófica presente no cartesianismo. Segundo Moore, não há como provar que estamos diante de duas mãos. Fazê-lo exigiria provar, antes de mais nada, que não estamos sonhando. Ora, é evidente que estou acordado. Mas possuir essa evidência, estar certo desse fato, é uma coisa. Ou-

tra, bem diferente, é sermos capazes de prová-lo.

Para Moore, em resumo, nem tudo pode ser provado, mas isso não é um problema. Há certezas que estão acima da necessidade de prova, porque sobre elas há “razões conclusivas”, “evidências conclusivas”. Se assim for, então a refle-xão filosófica não mais será uma investi-gação que, para chegar a certezas abso-lutas, necessita colocar tudo em dúvida, porque haveria certezas que estão fora do alcance da dúvida filosófica. E talvez seja preciso, seguindo a lição de Moore, concluir que mesmo em filosofia as dú-vidas não são tão diferentes daquela que me levaria a voltar para casa num dia de chuva para verificar se fechei ou não a janela. O mesmo valeria talvez para nos-sas certezas.

A filosofia e a visão comum do mundoÉ comum ouvirmos que a filosofia

é uma prática de questionamento de nossas certezas habituais. Entretanto, até que ponto, afinal, podemos ampliar a dúvida sobre nossas crenças?

Essa questão, que vimos formulada por G. E. Moore, foi aprofundada por um filósofo brasileiro, Oswaldo Porchat

Posso provar agora, por exemplo, que existem

duas mãos humanas. Como? Levantando

minhas duas mãos e dizendo ‘Aqui está uma

mão e aqui está outra’.

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Pereira (1933 - ) em um ensaio impor-tante publicado em 1981. Nesse tex-to, Porchat defende que a filosofia nos incita a desconfiar de certezas das quais nem mesmo o filósofo, na condição de indivíduo inscrito no mundo, pode-ria seriamente duvidar. Dito de outro modo, Porchat, assumindo como válido o argumento de Moore sobre o caráter indubitável de certas crenças naturais, afirma que a dúvida filosófica se torna artificial toda vez que se aplica às evi-dências do senso comum. “Artifício” possui, aqui, um significado negativo,

designando tudo aquilo que não é ne-cessário nem decisivo. Porchat susten-ta que nem mesmo os filósofos podem levar suas dúvidas mais radicais a sério, como, por exemplo, a de que estamos em vigília ou de que a maioria dos seres humanos tem duas mãos.

Conforme Porchat, assim, a dúvida filosófica, quando se torna generalizada, exprime uma atitude arbitrária dos filó-sofos, o exercício gratuito de sua descon-fiança em relação ao mundo no qual se encontram. Os filósofos – especialmen-te aqueles pertencentes à tradição do

Atividade em equipe e debate em sala de aula

Como você já se deu conta, na história da filosofia há inúmeras “provas” – ou “de-monstrações” – sobre objetos em relação aos quais a maioria das pessoas não exi-ge prova ou demonstração. Dito de outro modo, filósofos, ou parte deles, parecem convencidos da necessidade de demons-trar, por argumentos tirados da razão, pontos que são acolhidos sem hesitação por quase todos nós. Um exemplo nos oferece a prova da realidade do mundo exterior, ou a prova de que, agora, não estamos sonhando.

• Forme um par com um(a) colega e, antes de mais nada, reflitam sobre ou-tros exemplos de prova ou demonstra-ção filosófica de temas e objetos que não despertam nenhuma sombra de dú-vida para o senso comum. Em seguida, discutam a seguinte questão: vocês di-riam que demonstrações desse tipo são necessárias? Ao discutirem esse ponto, não deixem de recordar que algo pode

ser necessário sob um aspecto e não sob outros. Por exemplo: segundo Hume, há investigações filosóficas das quais po-demos prescindir em nosso cotidiano. Nesta linha, sugere Hume, podemos até mesmo pôr em dúvida, por exemplo, a existência do mundo exterior – mas se-ria artificial e forçado supor que levemos essa dúvida a sério, quando estamos indo para casa ou voltando da escola ou ocupados no trabalho.

• Discutam, inspirados pela argumen-tação de Hume (o que não significa que precisem concordar com ele), se há exem-plos de questões sobre as quais se pode levantar dúvidas apenas do ponto de vista filosófico, não do ponto de vista prático. Quer a conclusão de vocês seja afirmativa, quer negativa, procurem fundá-la sobre argumentos, que deverão ser apresen-tados em sala para os demais colegas. Não deixem de considerar que essa dis-cussão sobre até onde vai a filosofia ao duvidar das coisas talvez já constitua um aprofundamento filosófico que defende nossas convicções cotidianas.

Até onde vamos com a filosofia?

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“idealismo”, acrescenta Porchat – fazem pouco do mundo, menosprezam as evi-dências e crenças mundanas, trocando o senso comum por uma atitude presumi-damente sofisticada.

Leiamos um parágrafo do ensaio em questão, no qual Porchat desfere sua crítica a esse comportamento especu-lativo presente em muitas correntes da filosofia:

“Em tais filosofias, na melhor das hipóteses, o Mundo é apenas o ponto de partida que se vai deixando para trás, ou o porto de embarque que se perde logo de vista, na medida em que o discurso filosófico vai tomando for-ma e a viagem filosófica se processa. Procuram-se formas de expressão, mé-todos, critérios; buscam-se certezas, verdades, intuições; tudo se empreen-de, menos recorrer ao que lá atrás se deixou e se desqualifica. Se se utilizam as verdades comuns, é a contragosto e sempre como se fora provisório. Qual verdades em trânsito, sem direitos a um visa de permanência no discurso da filosofia. Verdades cujos préstimos se tolera aproveitar como que aciden-talmente, mas a que se recusa confe-rir a cidadania filosófica.” (Porchat Pereira, “A filosofia e a visão comum do mundo”, in: Rumo ao ceticismo, São Paulo: Editora da Unesp, 2007, p. 60)

Como se vê, Porchat identifica uma postura negligente de muitas filosofias em face do mundo. O mundo, para es-sas filosofias, não passa de um ponto de embarque, uma porta de entrada para uma investigação que, logo em seguida, lhe dá as costas. Mesmo quando se uti-liza das “verdades comuns”, o discurso filosófico não reconhece nelas nenhuma digni dade própria: elas dispõem de um estatuto apenas provisório.

De seu lado, Porchat assume a defesa da visão comum do mundo, recusando

como arbitrário e artificial o incessante questionamento que muitas filosofias exercem sobre ele. O que equivale a di-zer que Porchat eleva a visão comum do mundo ao nível de um saber filosófico. Ao fazê-lo, Porchat defende um ponto de vista baseado nas certezas munda-nas, certezas que situa em um âmbito inalcançável pela dúvida filosófica:

“O mundo reconhecido, que não é um problema, será o referencial permanente para a formulação de problemas e a proposição de solu-ções. Alfa e ômega da filosofia, ori-gem e fim não questionáveis dos questionamentos filosóficos. E a fi-losofia remeterá constantemente ao Mundo para orientar, aperfeiçoar ou mesmo corrigir suas formulações. O caminhar da filosofia tem agora parâmetros bem fixos que o bali-zam.” (Porchat Pereira, “A filosofia e a visão comum do mundo”, op. cit., p. 67)

Para concluir nosso percurso, vale lembrar que Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos filósofos mais importantes do século XX, formulou reflexões de grande importância a par-tir das teses de G. E. Moore sobre o ca-

Oswaldo Porchat Pereira (1933- )

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ráter indubitável de algumas certezas, o que concerne diretamente aos con-ceitos de dúvida e certeza abordados nesta Unidade.

Estas reflexões, embora tendo sido interrompidas pela morte de Wittgens-tein, foram compiladas por dois de seus discípulos mais próximos, G. E. M. Ans-combe e G. H. Von Wright, e publicadas originalmente em 1969 em um volume intitulado Sobre a certeza. Abaixo, ci-tamos uma dessas reflexões, nas quais Wittgenstein se debruça sobre a afirma-

ção de Moore, conforme a qual não há meio de pôr em dúvida que a Terra exis-tia antes de nosso aparecimento nela:

“Pode-se no entanto perguntar: ‘Pode alguém possuir um fundamento plausível para crer que a Terra exista só há pouco, digamos, só a partir de seu nascimento?’ – Admitin do-se que isto sempre lhe teria sido dito – teria ele um bom fundamento para duvi-dar disso? Houve homens que acre-ditaram poder fazer chover; por que

É interessante observar que Porchat, nos

anos seguintes à publicação de seu ensaio

“A filosofia e a visão comum do mundo”,

modificou sua posição filosófica, assumindo

o que designou como o “neopirrosnismo”.

Com isso, Porchat propõe a retomada do

“pirronismo”, ou “ceticismo pirrônico”, surgi-

do na Antiguidade. Seu iniciador foi Pirro de

Élis (séc. IV a. C.) e pouco se sabe de seus de-

senvolvimentos posteriores. Filósofos pouco

conhecidos, como Enesidemo e Agripa, são

citados por alguns escritores antigos. Co-

nhecemos os princípios do pirronismo por

meio dos textos do filósofo e médico Sexto

Empírico (séc. II ou III d. C.), que escreveu

uma obra intitulada Esboços pirrônicos, além

de outros tratados.

O conceito fundamental do ceticismo pir-

rônico é o de suspensão de juízo: perturbado

pelas questões e dúvidas resultantes de sua

experiência, o filósofo, inicialmente, preten-

de resolvê-las encontrando a verdade. Con-

tudo, constata que, sobre qualquer questão

ou tema, sempre há afirmações conflitantes,

dotadas de um poder de persuasão seme-

lhante, o que o leva a “suspender seu juízo”

sobre elas, ou seja, a reconhecer sua incapa-

cidade, mediante recursos argumentativos e

racionais, de optar por qualquer tese como

verdadeira. Observando que tal estado de

suspensão de juízo retira suas perturbações,

diferente dos filósofos ditos dogmáticos, que

julgam ter encontrado verdades incontes-

táveis, o fi lósofo cético passa a argumentar

com esses filósofos, sempre apresentando

teses conflitantes às deles, para que, como

ele, também suspendam seus juízos e se

tornem céticos. Ao mesmo tempo, conduz

sua vida cotidiana apenas seguindo os “fe-

nômenos”, o que lhe aparece do mundo, tal

como aparece, sem afirmar sua verdade ou

falsidade.

Observe que os céticos, afinal, dizem-nos

que não temos meios estritamente racionais

de garantir que nossas certezas pessoais

e subjetivas possam ser aceitas por todos

como verdades absolutas.

Ao assumir o neopirronismo, Porchat re-

lativizou a defesa da visão comum do mundo,

sem, entretanto, abandoná-la completamen-

te. Ele apenas concluiu que, para defender a

visão comum do mundo, não é preciso afir-

mar que ela seja rigorosamente verdadeira.

As “verdades” da visão comum do mundo

permanecem sendo valorizadas pelo novo

posicionamento de Porchat, sem que, con-

tudo, este procure conferir-lhes um estatuto

filosófico privilegiado. Elas valem pelo que

são: crenças com base nas quais agimos no

mundo e nos compreendemos nele.

O NEOPIRRONISMO DE OSWALDO PORCHAT

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não se poderia criar um rei na crença de que o mundo teria começado com ele? E então, se Moore e esse rei se encontrassem e discutissem, poderia Moore efetivamente provar que sua crença é a correta? Não digo que Moore não seja capaz de converter o rei para a sua concepção, mas esta seria uma con-versão excepcional: o rei seria levado a ver o mundo de outra maneira.

Observe-se que às vezes uma con-cepção convence mediante sua simpli-cidade ou simetria, isto é: leva a que se adote esta concepção. Então diz-se simplesmente: ‘Precisa ser assim’. (Witt-genstein, Sobre a certeza. Tradução nos-sa. Edição de referência: Anscombe & Wright [eds], Über Gewissheit/ On certain-ty. Nova York: Harper Torchbooks, p. 14)

Como poderíamos situar estas refle-xões de Wittgenstein em comparação com o posicionamento de Moore e, em determinado momento de sua trajetória, de Porchat, tal como os expusemos aqui?

Note que a objeção de Wittgenstein a Moore reside, essencialmente, em ar-gumentar que toda evidência em rela-ção a um aspecto pontual da realidade se insere em um quadro de compreen-são global da realidade, fruto de práti-cas, hábitos, costumes e educação. O que para alguém parece ser de evidência inquestionável pode ser muito duvido-so para outra pessoa, inscrita em outra “forma de vida”. Isso não significa que nossas crenças não possam ser revistas, mas que, quando isso ocorre, encaramos o mundo de forma diferente.

Pirro teria apontado como modelo de indiferença o porco que se alimentava

tranquilamente em meio ao caos (Petrarca-Meister, ativo no início do século XVI,

O filósofo Pirro no mar tempestuoso, entre 1500 e 1515).

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Wittgenstein

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu

em Viena, na Áustria, mas passou boa parte

de sua vida adulta na Inglaterra, onde foi pro-

fessor na Universidade de Cambridge. Apesar

de ser um dos filósofos mais influentes do

século XX, Wittgenstein publicou apenas um

livro durante toda a sua vida – o Tractatus logi-

co-philosophicus, editado em 1921, que marca

a primeira fase de seu itinerário intelectual.

Deixou, no entanto, uma quantidade imensa

de escritos inéditos, que foram sendo publi-

cados após a sua morte. O conjunto mais in-

fluente deles provavelmente são as Investiga-

ções filosóficas, publicadas em 1953, obra em

que ele faz uma crítica frontal à filosofia que

ele mesmo expusera no Tractatus.

Tanto no Tractatus quanto nas Investigações

o principal tema de Wittgenstein foi a linguagem

e a natureza do sentido proposicional. No Trac-

tatus, ele considerava que todas as linguagens

possíveis têm que compartilhar uma mesma

estrutura básica, e que essa estrutura coincide

com a estrutura do próprio mundo. Essa ideia

é completamente abandonada na fase madura,

quando Wittgenstein passa a considerar cada

uma das linguagens criadas pelo ser humano

como uma teia aberta de jogos linguísticos em

constante modificação e cumprindo as mais di-

versas finalidades em nossas vidas.

Tanto a primeira quanto a segunda filoso-

fia de Wittgenstein exerceram uma enorme

influência sobre diversos filósofos do século

XX. O Tractatus marcou os trabalhos dos posi-

tivistas lógicos ligados ao Círculo de Viena – R.

Carnap (1891-1970), M. Schlick (1882-1936), F.

Waismann (1896-1959), etc. –, enquanto as In-

vestigações filosóficas influenciaram os traba-

lhos de autores como G. Ryle (1900-1976), P.

F. Strawson (1919-2006) e, mais recentemen-

te, John McDowell (1942- ).

As duas obras principais de L. Wittgens-

tein estão traduzidas para o português:

L. Wittgenstein, Tratactus logico-philoso-

phicus. Tradução: Luiz H. L. dos Santos. São

Paulo: Edusp, 1993 (Esta edição traz uma

“Apresentação” excelente do tradutor e es-

pecialista na obra de Wittgenstein).

L. Wittgenstein, Investigações filosóficas.

Coleção: Os Pensadores. Tradução: J. C.

Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Para introdução ao Tractatus, veja:

João V. Cutter, “Você entendeu esse títu-

lo?”, in: V. Figueiredo (org.). Filósofos na sala

de aula – Vol. 3. São Paulo: Berlendis & Ver-

tecchia, 2009, pp. 158-201.

Edgar Marques, Wittgestein & o Tractatus.

Coleção Passo-a-Passo, Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 2005.

Para uma introdução à segunda fase do

pensamento de Wittgenstein, veja:

A. Moreno, Wittgenstein e os labirintos da

linguagem. Campinas: Editora da Unicamp,

2000.

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“R ealidade e aparência”: eis uma dupla de conceitos que dá o que pensar...

Como você buscaria defini-los? Nossa primeira tendência talvez seja afirmar: “É simples, o real se diferencia da aparência porque possui realidade, enquanto a aparência, não”. Mas reflita um pouco mais. Você perceberá que as coisas não são tão simples assim. Se a aparência não é real, por que falamos tanto dela? Isso já leva a crer que, embora seja considerada muitas vezes o oposto da realidade, a aparência também deve ter alguma forma de existência. Mas de que maneira ela existe? Possuiria uma existência “menos real” do que as outras coisas?

As aparências enganam? ................145

A revolução filosófica e científica moderna ..150

Ser e parecer justo ..........................155

A realidade da aparência ............164

Esse rosto é humano – ou apenas parece sê-lo? (Giuseppe Arcimboldo

[1527-1599]. O jardineiro vegetal. Óleo sb/ painel, c.1590)

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As aparências enganam?

Todos conhecemos aquele ditado: “As aparências enganam”... Ele existe em di-versas línguas, o que dá a entender que tal opinião é muito comum e circula há mui-to tempo em nossa cultura. Veja abaixo formulações do ditado conforme o qual devemos desconfiar das aparências em cin-co línguas e procure identificar os idiomas correspondentes:

“Fallitur visus”“Las apariencias engañan”“Der Schein trügt” “Appearances are deceptive” “L’apparenza inganna”

O que é que tiramos disso? Note que esse provérbio nos faz uma advertência. A ideia é a seguinte: as aparências enganam, porque nos iludem sobre o que seja a verda-deira realidade. Logo, a aparência é como a ilusão, possui o mesmo tipo de existên-cia que ela. Nem por isso, claro, a discussão está encerrada. Falta-nos ainda explicar o que se deve compreender pela existência ou realidade de uma ilusão.

Antes, porém, vejamos os motivos pelos quais se afirma que as aparências enganam. Um deles, muito repetido, é a convicção de que as aparências nos apresentam somen-te o aspecto superficial das coisas, deixan-do ocultas suas características essenciais. As aparências permanecem na “superfície” das coisas, o que explica o engano promovi-do por elas, mesmo quando ninguém quer enganar ninguém. As coisas aparecem para nós de um jeito; só que, no “fundo”, são de outro. Captar a realidade, desse modo, exi-ge uma investigação que faça abstração das aparências, já que elas nos fazem crer em coisas que, se melhor examinadas, se reve-lam diversas do que parecem ser de início.

Há um exemplo clássico da história da filosofia que ilustra esse tipo de engano. O pedaço de pau submerso na água aparenta possuir um ângulo, ali onde toca a super-

fície. Na realidade, nós o vemos assim por causa do fenômeno óptico da refração. Ou seja, os sentidos nos enganam sobre a reali-dade, na medida em que nos fornecem apa-rências que não correspondem aos fatos.

É fácil estender essa conclusão sobre a ilusão visual para os demais sentidos: o gosto, o olfato, o tato, a audição. Quan-do estamos doentes, o doce parece amar-go; se nos encontramos indispostos, os odores se acentuam e incomodam. Essas variações já indicam que os sentidos não constituem uma base totalmente segura para descobrirmos quais são as qualidades reais das coisas “por trás” ou “abaixo” da superfície das aparências. Isto é, os senti-dos exprimem qualidades subjetivas, que nem sempre correspondem às qualidades objetivas das coisas.

E isso pode ser constatado não apenas quando adoecemos, mas também em cir-cunstâncias normais, quando estamos bem dispostos e saudáveis. Deslizo a mão sobre a mesa, ela aparenta ser lisa. Porém, sua su-perfície, quando examinada microscopica-mente, é irregular, porosa e cheia de vincos. A impressão táctil, conclui-se daí, me enga-na sobre a realidade da superfície da mesa. Os sentidos fornecem apenas uma aparên-cia que não corresponde à estrutura real da natureza.

O horizonte de Chicago: o que é céu, o que é água?

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A investigação da realidade por trás das aparências

Essa convicção é muito comum. Pense na orientação principal das disciplinas científicas atuais. As ciências da natu-reza não nos ensinam que devemos des-confiar das aparências fornecidas pelos sentidos?

De fato, o saber científico que nos é transmitido hoje em dia possui duas carac-terísticas centrais: é abstrato e também, em grande parte, se expressa matematicamente. Você alguma vez já se indagou por que há tanta matemá-tica na física?

A palavra “física” vem do termo “phýsis”, pala-vra grega que significa “natureza”. Conforme nos ensina a ciência hoje em dia, a “phýsis” ou “na-tureza” possui elementos cujas relações são funda-mentalmente quantificá-veis. Isso equivale a dizer que, a crer numa corren-te dominante da Física, as relações entre os entes naturais “no fundo” se expressam como uma ordem matemática. Logo, se a ciência da física requer o conhecimento da mate-mática, isso se deve à convicção de que a matemática descreve boa parte da estru-tura real da natureza.

Há muitos exemplos à mão para ates-tar que, de fato, fenômenos da natu-reza podem ser expressos por meio de relações matemáticas. Conceitos como “massa”, “força”, “movimento”, assim como a lei geral da queda dos corpos ou a definição do “peso” de um corpo etc., ilustram bem isso. Sua compreensão não passa pelo conhecimento sobre as qualidades sensíveis dos corpos. Para a formulação de leis, os físicos trabalham com conceitos tais como massa, força, energia, que devem poder ser expressos

em termos quantitativos. Nem por isso, entretanto, os corpos naturais deixam de aparecer para nós como entidades do-tadas de qualidade: possuem cor, textu-ra, por vezes exalam cheiros ou emitem sons que nos agradam ou desagradam etc. Mas a ciência nos instrui que as coi-sas tais como nos aparecem podem não corresponder às coisas tais como são. Aprendemos que, a fim de compreender a estrutura real das coisas, precisamos

fazer abstração daqui-lo que nossos sentidos nos apresentam. Deve-mos abstrair das apa-rências sensíveis.

Essa é uma orienta-ção muito importante para a maioria dos cien-tistas atuais, sobretudo os físicos. É isso o que em grande parte apren-demos nos bancos esco-lares. O que talvez você não saiba é que essa concepção acerca da na-tureza já havia sido de-fendida na época dos primórdios da filosofia,

na Antiguidade grega, em um período an-terior a Sócrates, Platão[+] e Aristóteles[+].

O “cosmos” de PitágorasPitágoras (c.580-495 a.C.), nascido na

ilha de Samos, foi um importante filóso-fo e matemático. Sua contribuição mais conhecida para a história da filosofia está em ter formulado uma doutrina confor-me a qual a verdadeira realidade das coisas são os números. Para Pitágoras, o princípio e a essência da realidade não residem nem no fogo, nem na água, nem no éter, como pretendiam alguns de seus antecessores. Essa essência, diz Pitágo-ras, reside nos números. Em que isso tem a ver com nosso assunto, é fácil inferir. Números exprimem relações abstratas entre as coisas. Afirmar que a realidade é

Se a ciência da física requer o

conhecimento da matemática, isso se deve à convicção de que a matemática descreve boa parte da estrutura real da

natureza.

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constituída de números equivale a dizer que a realidade está além das aparências, além do que nos apresentam imediata-mente nossos sentidos.

Vale destacar a novidade de Pitágo-ras no quadro dos primórdios do pensa-mento filosófico. Filósofos como Tales de Mileto (624-548 a.C) ou Anaxímenes (588-524 a.C) afirmavam que o princípio e essência das coisas residia na água ou no vapor, isto é, postulavam que a essên-cia do ser era sensível. Pitágoras, susten-tando que a realidade última das coisas reside em algo incorpóreo (os números), promove diante de seus contemporâneos uma inovação radical, que será retomada no período moderno por muitos cientis-tas e filósofos.

Na história do pensamento, Pitágo-ras representa o primeiro passo rumo à ideia de que a realidade das coisas não corresponde ao modo sob o qual elas se apresentam a nossos sentidos. Por isso, quando a física atual nos ensina que as leis do movimento se expressam na forma de enunciados matemáticos, ela aprofunda as intuições e o pensamento de Pitágoras.

É interessante observar que, ao defen-der essa noção sobre a “phýsis”, Pitágoras também tinha em conta questões estéti-cas. Seu ponto principal era sustentar que

o universo dispõe de ordem e que esta última pode ser apreendida pela razão humana. Dito de outro modo, Pitágoras defendia que o universo não é disforme, nem caótico; ao contrário, ele forma um “cosmos”, no sentido básico deste termo.

Um grande estudioso norte-america-no de filosofia antiga nos ajuda a com-preender o que estava aqui em jogo. Conforme assinala Francis. M. Cornford (1874-1943), “cosmos”, em grego, signifi-ca “beleza” e “ordem”. Reflita sobre as pa-lavras: “cosmético”, por exemplo, designa produtos ligados ao embelezamento, ao ornamento, às aparências. Sua origem etimológica é a palavra grega “cosmos”, que, à época de Pitágoras, estava asso-ciada a estética. Pitágoras, diz Cornford, teria sido o primeiro a empregar o termo “cosmos” para designar o universo.

O interesse dos pitagóricos pela música tem tudo a ver com isso. Pois a mú sica re-úne sons muito diferentes em harmonias que obedecem à ordem e à medida – uma harmonia, assim, que é estética e mate-mática.

Pitágoras tomou esse modelo para compreender a ordem das coisas na natu-reza, por trás do aparente caos sob o qual elas se manifestam a nós. Como diz Corn-ford, isso explica a doutrina pitagórica da física, conforme a qual não é na matéria e no ilimitado que reside o princípio das coisas, mas antes no princípio da forma e da medida. E assim Pitágoras pode com-preender a diversidade das manifestações naturais como sendo pautada pela propor-ção e pelo número. Visto que o número é mensurável, então a natureza, assimilada por Pitágoras ao número, revela ter medi-da e, assim, pode ser conhecida.

A abstração que caracteriza a ciência atual, como se vê, é uma tendência que possui origem nos primórdios da filoso-fia grega. E isso diz respeito não somen-te à física, mas abarca também outra disciplina que integra nosso currículo escolar, a química.

Os discos e duas luas de Saturno: para Pitágoras, o

“cosmos” designa o universo, belo e ordenado.

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Os discípulos de Pitágoras se dedicaram ao estudo das proporções em música, nota-damente a afinação das notas musicais, cujas relações expressaram numericamente. Tal escola teria estabelecido o método que, com alguns ajustes, ainda hoje usamos para calcular a afinação das notas da escala natural, um dos mais básicos fundamen-tos da música (e da construção de instrumentos musicais). Tome-se um corpo vibrató-rio, por exemplo, um bloco chato ou uma barra de madeira. Digamos que, ao percuti--la, ela soa a nota dó:

Ora, fazendo outra barra com o mesmo material, a mesma espessura e largura, mas com metade do comprimento da primeira, ao percuti-la, também teremos um dó, po-rém o dó acima (mais agudo em uma “oitava” em relação ao primeiro):

Os pitagóricos estabeleceram, para todas as notas da escala natural, essas relações de proporção:

Observação: metade de comprimento do corpo vibratório ou coluna de ar equivale ao

dobro da frequência; 2/3 de comprimento, a 3/2 da frequência, e assim por diante (isto

é: são inversamente proporcionais).Em notação musical, e na ordem em que costumamos tocar escalas, teríamos:

(O mesmo fenômeno pode ser experimentado com uma corda, digamos de violão, ou com a coluna de ar de um instrumento de sopro: 1/2 corda ou coluna de ar equivale a uma oitava; 2/3, a uma quinta justa etc.)

Esse sistema musical foi tão bem-sucedido que, no Ocidente, foi o sistema vigente du-rante um extenso período. Ainda Jean-Phillipe Rameau (1683-1764), o grande teórico musical francês, fundamentava os princípios de sua teoria musical e harmônica nesse cálculo. Ele só foi fundamentalmente revisto com o advento da escala temperada – que, a partir de suas formulações iniciais no séc. XVI até a completa realização no XIX, permitiu aos instrumentos tocar 12 notas no intervalo de uma oitava, e não apenas as 7 da escala natural. Mesmo assim, ainda hoje usamos proporções numéricas para calcular a altura das notas na escala temperada, embora estas não estejam mais ba-seadas na escala pitagórica.

 

 

1/2 2/3 3/4 4/5 3/5 8/15 8/9

oitava justa

quinta justa

quarta justa

terça maior

sexta maior

sétima maior

segunda maior

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tônica segunda terça quarta quinta sexta sétima oitava

O LEGADO PITAGÓRICO NA MÚSICA

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Ao se debruçar sobre a estrutura da matéria, o químico sabe que ela é cons-tituída de elementos atômicos tais como o hidrogênio, o zinco, o carbono etc. – nenhum deles podendo ser percebido pelo olhar humano. Árdua tarefa, a do professor de química: seu ensino passa por nos mostrar de início que... a natu-reza da matéria não é como vemos, como imaginamos! Por isso, quem ensina quí-mica solicita que deixemos de lado as imagens, que abandonemos as percep-ções imediatas fornecidas pelos senti-dos, já que, se permanecermos atrelados a elas, não seremos capazes de atingir a real estrutura da matéria que nos cerca e da qual também somos feitos.

Assim como os físicos de hoje em dia, os químicos contemporâneos também refizeram os passos de um caminho já trilhado por pensadores gregos, que, na linha de Pitágoras, insistiram em afirmar que os sentidos enganam sobre a natu-reza da realidade. Conforme esse argu-mento, os sentidos nos revelam apenas aparências. A verdadeira realidade das coisas (ou sua “realidade última”, como também se diz em filosofia) escapa aos sentidos e só pode ser apreendida pela razão. Logo, a fim de atingir o conheci-mento da realidade, é preciso fazer abs-tração do que ensinam os sentidos.

Graças a microscópios eletrônicos, hoje sabemos que essa antiga convicção estava certa. A tecnologia de que dispomos nos dias de hoje possibilita verificar, por exem-plo, que a matéria realmente possui uma estrutura atômica. Mas a primeira formu-lação da teoria de que a realidade da ma-téria é constituída de átomos data de uma época na qual não havia nada de semelhan-te ao mais rudimentar microscópio. Filó-sofos da Grécia antiga, na linha aberta por Pitágoras, já haviam elaborado a teoria do átomo sem qualquer recurso a instrumen-tos desse tipo. Claro que a invenção desses aparelhos representou um acontecimento decisivo no âmbito das ciências. Entretan-

to, a hipótese de que a estrutura da matéria é atômica, hipótese que terminou sendo confirmada por esses aparelhos, pôde ser estabelecida sem tal tecnologia, apenas com base na especulação filosófica sobre a natureza que nos cerca.

Com efeito, Leucipo e Demócrito, filóso-fos gregos que viveram depois de Pitágoras e antes de Sócrates, se tornaram conheci-dos na história da filosofia e das ciências como “atomistas”, isto é, como defenso-res da ideia de que tudo são átomos. Atra-vés dos tempos, e nem sempre por linhas retas, essa doutrina chegou à modernidade.

Quando mencionamos pensadores gregos como Leucipo (primeira metade do século V a.C) e De-mócrito (460-370 a.C.) – considerados os defen-sores do atomismo – é comum referi-los como filósofos pré-socráticos. Ou seria mais adequado chamá-los de cientistas? Hoje em dia, costumamos distinguir esses dois ramos de investigação: de um lado, as ciências; de outro, a filosofia. Mas nem sem-pre foi assim.

Na Grécia antiga, antes mesmo do período em que viveu Sócrates (470-399 a.C.), mestre de Pla-tão, homens dedicaram suas vidas ao pensamento sobre a natureza, o univer-so e a sociedade. Na sua visão, tratar de temas tão amplos exigia possuir, em grande medida, afinco e curiosidade, espanto e sabedoria. Não lhes passava pela cabeça, entretanto, definir suas pesquisas conforme a alternativa entre filosofia ou ciência, que se tornou habitual muito depois. Entendiam fazer as duas coisas de uma só vez, porque compreendiam o estudo da natureza como investigação pertencente ao âmbito da fi-losofia. Assim, a explicação da estrutura da na-tureza era orientada pela especulação filosófica sobre a origem e o princípio da realidade.

FILÓSOFOS OU CIENTISTAS?

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Atualmente, na comunidade científica, há consenso quanto à matéria ser estruturada em moléculas, átomos e suas partículas.

Essa história nos ensina algo sobre a re-lação entre saber e tecnologia. É frequente que descobertas e inventos tecnológicos promovam o progresso científico, tornan-do-nos capazes de “ver” o microcosmos, assim como galáxias distantes, na imensi-dão do espaço.

Só que, não fosse a orientação filosófica de buscar compreender a realidade por trás das aparências – uma orientação que, sabe-mos agora, é muito antiga –, dificilmente

os homens teriam se empenhado em in-ventar aparelhos capazes de apreender o que escapa ao olhar humano. Dito de outro modo, foi a convicção prévia de que a rea-lidade última da natureza se diferencia do que aparece sob nossos sentidos o que mo-tivou, no curso da história, a invenção de aparelhos científicos capazes de apreender o que escapa ao olhar humano, como, por exemplo, telescópios e microscópios. Esses instrumentos confirmaram uma orienta-ção geral presente na história de nosso sa-ber, caracterizada por situar a questão da verdade fora do plano das aparências.

Algas unicelulares vistas através de microscópio na Universidade de Tóquio (Japão), em maio de

2013. Imagine se os atomistas gregos tivessem instrumentos assim!

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A revolução filosófica e científica moderna

As disciplinas científicas atuais pare-cem concordar com o dito popular: “as aparências enganam.” A tal ponto, que chegam a sugerir que a natureza escapa aos nossos sentidos.

A física diz que as relações no mundo natural podem ser expressas matematica-

mente; a química, que a estrutura essencial da matéria é feita de elementos impercep-tíveis ao olhar humano. Já a cosmologia descobre novas realidades que só podemos atingir pelo pensamento, mas que, nem por isso, consideramos serem menos existentes do que os objetos que estão ao nosso redor.

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Pensadores gregos da Antiguidade, como Pitágoras, Demócrito e Leucipo, mesmo sem os recursos tecnológicos de que dispomos hoje em dia, já haviam enve-redado por esse caminho.

Seria engano, porém, concluir daí que a ciência atual é uma simples continua-ção da concepção de natureza elaborada por Pitágoras e pelos atomistas gregos. A história do pensamento científico não é como uma estrada que corta em linha reta um terreno sem acidentes. Ela se asseme-lha mais a um percurso cheio de curvas, voltas, rupturas e retomadas. No lugar de uma linearidade, o desenvolvimento cien-tífico é marcado por revoluções, como, aliás, defende um importante filósofo da ciência do século XX, Thomas Kuhn[+].

Uma verdadeira revolução na história da ciência aconteceu entre os séculos XVI e XVII. Confrontando o ensino da época, pensadores como Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes[+] (1596-1650) estabeleceram os alicerces do grande edifício que se tor-nou a ciência moderna.

O interessante nessa história é que es-ses homens tiveram de enfrentar o ensino difundido em sua época para matematizar a física e, juntamente com ela, o universo,

analogamente como, muito antes deles, já havia feito Pitágoras. A explicação para isso está no fato de que o legado de Pitágoras não foi vitorioso em comparação com as ideias que outros filósofos e cientistas da Antiguidade formaram sobre a natureza.

Embora tenha gozado de prestígio entre muitos de seus contemporâneos, Pitágoras ficou em segundo plano durante um longo período da história da ciência. A causa dis-so reside no enorme prestígio obtido pela filosofia e pela física de Aristóteles[+] (384-322 a.C.), que seguiu uma direção diversa daquela de Pitágoras. Vamos reconstruir essa história em seus momentos decisivos.

Sabe-se que a compreensão matemáti-ca da natureza inaugurada por Pitágoras influenciou profundamente Platão, no sé-culo IV a.C. Essa influência se reflete em trechos da obra platônica que conferem grande importância ao estudo da mate-mática para a compreensão da natureza e do universo. Ocorre que o ensino platôni-co foi objeto de uma profunda reinterpre-tação por parte de Aristóteles.

Após ingressar na Academia platônica e estudar com Platão, Aristóteles elabo-rou sua própria filosofia, que, sob muitos aspectos decisivos, representou uma obje-ção ao platonismo e uma ruptura com ele.

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Galileu disse ter

passado em Pádua

os anos mais felizes

de sua vida (Felix

Parra [1845-1919],

Galilei na Escola

de Pádua. Óleo sb/

tela, 1873).

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A concepção que Aristóteles elaborou acerca da natureza – isto é, da phýsis –, em especial, não dá à matemática a importân-cia que ela possuía aos olhos de Pitágoras e de Platão.

Isso não significa que Aristóteles igno-rasse o valor das matemáticas. Mas, do seu ponto de vista, as matemáticas cons-tituem uma ciência à parte, cuja aplicação ao universo natural é inadequada, porque a natureza que nos cerca não admite a pre-cisão e a certeza dos números.

A natureza, diz Aristóteles, é constitu-ída pela “matéria”, e esta última não obe-dece aos parâmetros exatos que caracteri-zam o saber matemático. Por isso, segundo Aristóteles, buscar aplicar as matemáticas à natureza é cometer um equívoco sobre o objeto investigado, é ignorar sua verda-deira característica. A física dos corpos ter-restres, segundo Aristóteles, não pode ser matemática. Querer matematizá-la equi-vale a impor à física um modelo que não corresponde à sua realidade. Veja como Aristóteles assume uma posição oposta àqueles que, na linha iniciada por Pitágo-ras, procuraram matematizar a phýsis:

“A precisão das matemáticas não deve ser exigida em todos os casos, mas apenas no caso de coisas que não pos-suem matéria. Assim, o método das ma-temáticas não coincide com o método da ciência natural; pois presumivelmente o conjunto da natureza possui matéria. Logo, temos primeiramente de pergun-

tar o que a natureza é, pois assim tam-bém veremos do que trata a ciência da natureza (e se pertence a uma ou mais ciências investigar as causas e os princí-pios das coisas).” (Aristóteles, Metafísica, Livro II, 995a. Tradução nossa)

Quem, entretanto, venceu esta disputa? Ao longo da Idade Média, a concepção

pitagórico-platônica foi muito influente por um longo período, até meados do sé-culo XII. Conheciam-se poucas obras de Aristóteles, às quais, naquele contexto, não era dado grande relevo. Foi então que universidades europeias, como a de Bo-lonha e a de Paris, tomaram contato com os pensadores árabes, que haviam redes-coberto e preservado os textos de Aristó-teles. Influenciados pelos matemáticos e cientistas árabes, os doutores das univer-sidades europeias quase abandonaram o platonismo em troca do aristotelismo re-cém redescoberto.

No século XIII, Tomás de Aquino (1225-1274) reuniu, no âmbito da espe-culação metafísica, a filosofia de Aristóte-les e a teologia cristã.

Essa concepção se tornou dominante na Europa até o momento em que pen-sadores como Nicolau Copérnico (1473-1543), Johannes Kepler, Galileu Galilei e René Descartes elaboraram novamente hipóteses matemáticas sobre a phýsis e o universo. Só então, no século XVII, a natureza foi outra vez concebida como sendo essencialmente matemática. Por

O filósofo e escritor Giordano

Bruno (1548-1600) é um caso

célebre de pensador que, por

não se retratar frente às autori-

dades, terminou pagando pela

heterodoxia de suas ideias com

a própria vida.

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isso, a ciência moderna representou uma verdadeira revolução diante do saber tradicional, uma revolução no modo de pensar a natureza que custou muitos es-forços e mesmo a vida de alguns homens, que até o fim afirmaram suas convicções científicas contra as concepções corren-tes sobre a natureza e o universo.

Esta breve remissão à história do pensa-mento científico nos ajuda a formar ideia da novidade das linhas citadas abaixo, em que Galileu Galilei, um dos principais res-ponsáveis pelo advento da moderna ciên-cia da natureza, afirma que o universo é um livro escrito em símbolos matemáticos:

“A filosofia é escrita neste enor-me livro que temos continuamente aberto diante de nossos olhos (quero dizer, o universo), mas não é possí-vel compreendê-lo, se primeiro não se com preende sua língua e os caracteres nos quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, e os caracteres são triângulos, círculos, e outras figu-ras geométricas, sem recurso às quais é impossível compreender dela uma palavra; sem isso, perdemo-nos inu-tilmente em um obscuro labirinto.” (Galileu Galilei, O ensaiador. 1ª edição: 1623. Tradução nossa. Edição de refe-rência: Il saggiatore. Coleção Ricciardi [org. F. Flora] 1953, Cap. VI, pp. 16-17)

As metamorfoses do pedaço de ceraLeia agora esta passagem escrita por

René Descartes, que compartilhou de muitas convicções de Galileu Galilei em sua filosofia:

“Consideremos, de partida, as coi-sas mais comuns, que acreditamos compreender de modo mais distinto – os corpos que tocamos e vemos. Não quero falar dos corpos em geral, já que noções gerais desse tipo são habitual-mente mais confusas, quero falar de alguns deles em particular. Tome-se

como exemplo esse pedaço de cera, que acaba de vir da colmeia. Ele nem perdeu ainda a doçura do mel que con-tinha, retém ainda alguma coisa do aroma das flores de que foi recolhido. Sua cor, figura e grandeza são aparen-tes, pois é duro, frio, quando tocado, e, caso bater nele, emitirá algum som. Em suma, encontram-se nele todas as coisas que tornam possível conhecer de modo distinto um corpo.

Só que, enquanto falo, ele é apro-ximado ao fogo. Exala-se o que nele ainda havia de sabor, o aroma desapa-rece, a cor muda, a figura some, a gran-deza aumenta, ele se torna líquido, se aquece, já é difícil tocá-lo. E, ainda que se bata nele, já não emitirá som algum. Permanece o mesmo após essa mudan-ça? É preciso admitir que permanece, ninguém pode negá-lo. Mas o que, en-tão, tanto se conhecia de forma distin-ta nesse pedaço de cera? Certamente, nada de tudo o que nele notei por meio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que caíam sob o paladar, ou o olfato, ou a visão, ou o tato, foram al-teradas, embora a mesma cera perma-neça. Talvez fosse o que penso agora: a cera não era nem a doçura do mel, nem o aprazível aroma das flores, nem a brancura, nem a figura, nem o som – mas apenas um corpo que, até há pouco, me aparecia sob essas formas, e que agora se mostra de outra maneira. Mas o que exatamente imagino, quan-do a concebo desse modo?

Consideremos isso mais cuidado-samente e, deixando de lado todas as coisas que não pertecem à cera, exami-nemos o que sobra. Certamente, não permanece nada que não seja algo de extenso, flexível e mutável. Mas o que é isso – flexível e mutável? Será que imagino que essa cera, redonda que é, pode tornar-se quadrada e passar do quadrado para uma figura triangu-lar? Não, certamente não é isso, pois

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a concebo como capaz de receber uma infinidade de mudanças semelhantes, e não poderia, contudo, seguir essa infinidade com minha imaginação, e, portanto, essa concepção que possuo da cera não é produzida pela faculdade de imaginar.” (Descartes, Meditações meta-físicas, II. Tradução nossa. Edição de re-ferência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin, 1982, vol. IX-1, pp. 23-24)

Se fizermos uma leitura conjunta do trecho de Galileu e do trecho de Descartes, observaremos que eles são complementa-res. Descartes nos diz o que a natureza corpórea não é; Galileu, aquilo que a natu-reza é. Mas ambos estão de acordo sobre o sentido geral do que seja a “natureza”.

O exemplo escolhido por Descartes para realizar sua demonstração de que os sentidos enganam é o pedaço de cera. Ora ele parece ser uma coisa, ora outra. Inicial-mente, é sólido e exala um odor. Mas, se o aproximamos do fogo, derrete e esquenta. Daí a pergunta: é o mesmo ou é outro?

Ao menos uma coisa, avança Descar-tes, pode-se concluir desse caso: o pedaço de cera “não pode ser absolutamente nada de tudo aquilo que nele observei por inter-médio dos sentidos”...

Eis-nos, desse modo, já posicionados no caminho de volta a Pitágoras, o primei-ro a sustentar que os sentidos nos apre-sentam apenas aparências. A realidade úl-tima das coisas, aponta Descartes na linha

Leitura recomendada

René Descartes, Obras escolhidas. Tra-

dução: J. Guinsburg, B. Prado Jr., N.

Cunha e G. Guinsburg. São Paulo: Pers-

pectiva, 2010.

René Descartes, Meditações metafísicas.

1ª edição: 1641. Tradução: Homero San-

tiago. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

A ciência contemporânea é… pitagórica?

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

Há inúmeros exemplos de aplica-ção desta concepção abstrata da na-tureza no ensino atual da Física. Pen-se, por exemplo, a lei geral da queda dos corpos (formulada pela primeira vez, aliás, por Galileu). Sua aplicação requer que façamos abstração da re-sistência que o ar oferece aos corpos em queda. Como você pode imaginar, Aristóteles teria sérias objeções a esse tipo de recurso...

Outro exemplo nos é dado pelo princípio da inércia (1ª lei de Newton): parece contrário à nossa percepção corriqueira que um corpo, uma vez em movimento, não vá parar senão por ação de alguma outra força. Para que possamos compreender isso, somos obrigados a abstrair o atrito, ou seja, o fato de que nenhuma superfície real é perfeitamente lisa e de que essas im-perfeições terminam por “frear” os ob-jetos que deslizam sobre ela.

• Forme uma equipe com dois ou três colegas para discutir, em sala, es-sas questões. Notem que o que está em discussão, nesses casos, é o recur-so a modelos abstratos que, aplicados à experiência, servem para explicar fenômenos naturais. Listem, utilizan-do como apoio o livro de Física, ou-tros exemplos de casos nos quais o recurso à abstração é essencial para a explicação de fenômenos naturais. Em seguida, apresentem em forma de seminário os casos levantados por vocês para o restante da sala.

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A desconfiança em relação às aparências percorreu a história das concepções sobre a ciência e a filosofia da natureza, desde a Grécia antiga até os dias de hoje. Mas as consequências desse par de noções não se resumem ao campo da investigação da na-tureza. Vamos explorar um aspecto da opo-sição entre realidade e aparência relaciona-do ao universo das nossas ações e condutas.

Também aqui, é comum depararmos com a afirmação de que as aparências en-ganam. Mas, neste caso, a ilusão não se deve ao fato de elas ocultarem a profundi-dade das coisas e dos seres, mas ao fato de simularem algo diverso do que são as coisas e os seres. No primeiro caso, o das ciên-

cias, o argumento é o de que as aparências são superficiais, enquanto a realidade é profunda. No caso das condutas humanas é diferente. As aparências são frequente-mente tomadas como sendo um artifício produzido com o intuito de esconder a realidade. É isso o que se verifica quando abandonamos o âmbito do conhecimento científico e adentramos o âmbito da mo-ral, da pedagogia e da política.

Podemos ver exemplos disso no dia a dia das relações humanas. Dizemos que fulano ou beltrano não é como parece, que disfarça o que sente, dissimula o que pensa, apresenta de si mesmo uma ima-gem diversa do que realmente é.

Nesse caso, o caráter ilusório da apa-rência se deve ao caráter artificial com o qual podemos revestir a realidade. De fato, muitas vezes os artifícios servem para esconder algo. Por isso, afirma-se que por meio deles dissimulamos nossa “essência”, o que somos de verdade.

Mas pense bem: o que, exatamente, seria essa essência? Como ela se manifes-ta, a não ser de um modo que inevitavel-mente traz consigo uma imagem ou uma impressão e, portanto, sob uma forma que sempre é aparência de algo? Será que haveria dois tipos de aparência, uma fiel, outra infiel ao original?

Sob influência de Pitágoras, Platão aprofundou a tese de que a essência da realidade se localiza para além das apa-rências. Platão fez isso tanto no que con-cerne ao saber científico, quanto ao que concerne à moral. A alegoria da caverna,

de Pitágoras, não pode ser captada pelos sentidos, mas apenas pelo intelecto.

Não é exatamente isso o que ensina o trecho de Galileu citado acima? Afir ma-se ali que a realidade do universo pode ser facilmente apreendida por nós. Basta que estejamos familiarizados com a lin-

guagem matemática. Pois, diz Galileu, o universo “está escrito em língua mate-mática”. Em oposição ao que defendia Aristóteles, Galileu afirma que temos o direito e mesmo o dever de aplicar a matemática à natureza, caso desejemos compreender o universo.

No âmbito da ética, a aparência é às

vezes tomada como falsidade (Vincenzo

Danti [1530-1576], A honra derrota a

falsidade. Mármore, 1561).

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Ser e parecer justo

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apresentada no Livro VII de A república e de que tratamos na Unidade Princípio e temporalidade é um exemplo disso. Não por acaso, em outra passagem de A repú-blica, anterior ao Livro VII, Platão utiliza o par “realidade” versus “aparência” a fim de abordar questões de ordem moral.

Recordemos por um instante o con-texto do diálogo escrito por Platão. A República se inicia com o relato de uma visita que Sócrates e Glauco fizeram, no dia anterior, ao Pireu, a cidade portuária próxima de Atenas. Como na maior par-te de suas obras, o principal personagem

Platão

Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427

a.C., e morreu nessa mesma cidade, em 348

ou 347 a.C. Filho de família importante, es-

tava destinado, como tantos outros jovens

filhos de famílias como a sua, a se tornar um

influente cidadão e político, numa cidade que

criara e celebrava o regime democrático e o

uso público da palavra

nas assembleias.

Ocorreu, contudo,

que o jovem Platão co-

nheceu Sócrates (470-

399 a. C.) e se tornou

seu seguidor. O ensino

do velho filósofo o trans-

formou profundamen-

te. Numa carta prova-

velmente escrita já em

sua velhice, lamentará a

condenação e morte de

Sócrates, o “mais justo

homem de seu tempo”,

nelas vendo um grave sintoma dos proble-

mas por que passava a democracia atenien-

se, sobretudo em virtude da derrota contra os

espartanos na chamada Guerra do Pelopone-

so, que levara a uma profunda e preocupante

crise moral e política.

Por tudo isso, conclui Platão que somente

a “Filosofia” poderia salvar a cidade de seus

problemas morais e políticos. Sua obra, escrita

em diálogos, consistiu afinal em um grande es-

forço de retomar o estilo socrático de reflexão

moral, de modo a transformá-lo numa doutri-

na capaz de reformar a vida da cidade. A tese

central dessa obra parece ser, por isso, que o

filósofo – tal como o compreende e define o

próprio Platão – é o único capaz de governar e

legislar com justiça, garantindo à cidade e seus

cidadãos uma vida realmente feliz.

Além de escrever diálogos, Platão fundou

a primeira escola filosófica conhecida, a Aca-

demia, onde ensinava e debatia seu pensa-

mento com seus discípulos.

Os diálogos de Platão formulam e desen-

volvem pela primeira vez vários temas funda-

mentais para o pensamento do Ocidente. Os

principais são: República – talvez o mais rele-

vante –, Fédon, Banquete, Fedro, Teeteto, Sofis-

ta, Timeu, Leis. Em língua portuguesa, há uma

tradução completa dos diálogos, publicada

pela Editora da Universidade Federal do Pará,

com tradução de Carlos Alberto Nunes e en-

saios introdutórios de Benedito Nunes, além

de várias outras publicações por diferentes

editoras e tradutores.

Em particular sobre A república, podem-se

mencionar duas outras traduções:

Platão, A República. Tradução Maria He-

lena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Ca-

louste Gulbenkian, 1993.

Platão, A república. Tradução Anna Lia

Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

Como leitura introdutória ao conjunto dos

diálogos, pode-se ler:

José Trindade Santos: Para ler Platão (3

vols.). São Paulo: Loyola, 2008-9.

Particularmente sobre A república, tam-

bém como texto introdutório:

R. Bolzani Filho: “Platão: verdade e justiça

na Cidade”, in: V. Figueiredo (org.), Seis filóso-

fos na sala de aula, São Paulo: Berlendis & Ver-

tecchia, 2006.

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posto em cena por Platão é Sócrates, de quem Platão foi discípulo, quando jovem. Platão escreveu a maior parte de seus diá-logos após a condenação à morte e a exe-cução de Sócrates em Atenas, em 399 a.C. E prestou-lhe homenagem ao fazer de Só-crates seu principal personagem. Muitas

vezes, Platão expõe suas próprias ideias por meio da personagem de Sócrates, sendo impossível separar o que pertence a Platão do que pertence ao Sócrates pla-tônico. É o que ocorre em A república.

Platão é o primeiro filósofo a explo-rar a forma do diálogo, através da qual

Não é sempre que o texto filosófico se apre-

senta como uma exposição de molde disser-

tativo, com uma forma, por assim dizer, aber-

tamente “não ficcional”. A tradição filosófica

contou, desde a Antiguidade, com uma diver-

sidade de soluções no modo de formular suas

questões e argumentações. A forma diálogo é

característica dos textos de Platão, que fundou

uma tradição. O diálogo filosófico é a forma

adotada, por exemplo, por Denis Diderot (1713-

1784) para tratar de questões morais e estéticas

em seu texto O sobrinho de Rameau. O esquema

segue grosso modo o modelo platônico: alguns

interlocutores (no caso, dois) debatem ideias de-

fendendo pontos de vista diferentes, podendo

ou não chegar a um consenso a respeito delas.

Antes de Platão, o pré-socrático Parmêni-

des de Eleia (séc. V a.C.) havia formulado sua

filosofia na forma de um poema, do qual pos-

suímos fragmentos. Outro poema filosófico

muito influente no Ocidente é Da natureza das

coisas (De rerum natura) do filósofo epicurista

romano Lucrécio (séc. I a.C.).

Uma forma bastante prezada no mundo

antigo é a epístola. Nela, o autor se dirige a

um amigo como se escrevesse uma carta,

mas nela desenvolve um argumento filosófi-

co endereçado ao seu interlocutor, que pode

ser real ou imaginário. Um exemplo bastante

lembrado são as Epístolas morais a Lucílio, do

filósofo, escritor e político romano Lúcio Aneu

Sêneca (séc. I d.C.).

Pode-se dizer que Michel de Montaigne

(1533-1592) foi o criador de um gênero filosó-

fico e humanista de grande repercussão: o en-

saio. Nele, uma questão central é desenvolvida

em estágios, num percurso que contempla di-

ferentes pontos de vista. Por isso, muitas vezes

essa é a forma adotada para se redigir uma

abordagem crítica a respeito de um assunto ou

de uma obra. Também é comum que o ensaio

se apresente como expressão de uma série de

vivências do autor (hipotéticas ou concretas).

Seja no assunto tratado, seja no seu desen-

volvimento, espera-se que o ensaio exiba uma

unidade razoavelmente clara.

Um estilo mais livre de redação é o de afo-

rismos, em que cada pensamento filosófico é

apresentado na forma de um pequeno texto au-

tônomo, podendo às vezes ser um pouco mais

extenso. Em obras organizadas dessa maneira,

com frequência cada aforismo, embora consista

numa unidade autônoma, dialoga com os de-

mais. Exemplos desse tipo de redação filosófica

são encontrados nas Considerações para mim

mesmo, do filósofo estoico (e imperador roma-

no) Marco Aurélio (121-180 d.C.) e, mais recente-

mente, em diversos livros de Friedrich Nietzsche

(1844-1900). Eis o exemplo de um curto aforis-

mo nietzschiano que, de tão sintético, é quase

uma máxima: “A maldade é rara – A maioria dos

homens está ocupada demais consigo mesma

para ser má.” (Humano, demasiado humano, I, nº

85, tradução nossa).

Por fim, mencionemos o simpósio, uma

forma muito característica da filosofia romântica

alemã, grupo que compreende Novalis (1772-

1801), Friedrich Schlegel (1772-1829) e outros.

Ela se originou a partir de encontros de jovens

pensadores e escritores alemães, notadamente

na cidade de Iena. Esta forma se diferencia do

diálogo na medida em que o saber se produz

não tanto pelo confronto de um interlocutor com

outro, mas por uma conversa a muitas vozes.

AS DIVERSAS FORMAS DOS TEXTOS FILOSÓFICOS

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apresenta seu pensamento. A leitura dos diálogos platônicos mostra que nem sempre a atividade filosófica se resume a apresentar teses, demonstrá-las ou aban-doná-las. Por vezes, a filosofia reside em pôr em cena um debate entre interlocu-tores – e também ocorre que esse deba-te não atinja um termo, uma conclusão satisfatória, uma verdade definitiva. A escolha de Platão pela forma do diálogo, por isso, já define uma posição filosófica do autor. Por meio das personagens pos-

tas em cena e do debate que protagoni-zam, o leitor é apresentado a questões que mobilizam divergências e pontos de vista antagônicos. Seu interesse está me-nos na solução do problema que na ex-posição de seus diferentes aspectos.

Como a opção de Platão pela forma dialógica se exprime em A república? Nessa obra, Sócrates conduz a investiga-ção sobre a natureza da justiça. Ele refu-ta seus interlocutores e, diferentemen-te de diálogos que hesitam em apontar

Praticando as diferentes formas do filosofarAtividade em equipe, elaboração conjun-ta de texto e desenvolvimento individual por escrito

A seguinte situação de aprendizagem, a ser desenvolvida em três etapas, tem antes o intuito de fomentar a atenção para a forma da argumentação do que para o tema desta Unidade. Para come-çar, divida-se a classe em quatro grupos.

Fase 1 – Cada grupo produzirá um texto de pequena extensão (de 1 a 2 páginas no máximo), desenvolvendo um tipo específi-co de argumentação a partir de um assunto dado pelo(a) professor(a). Cada grupo tem como ponto de partida um tema diferente. a. O grupo 1 o fará na forma diálogo

(dois interlocutores, um rebatendo o outro);

b. o grupo 2, um parágrafo como de um pequeno ensaio;

c. o grupo 3, um aforismo ou um pe-queno conjunto de aforismos (cada um contendo de 1 a 5 frases);

d. o grupo 4, como simpósio (4 a 5 inter-locutores com posições diferentes e complementares).

Cada grupo se reúne e discute suas ideias; em seguida, as põe por escrito. Ao

final dessa fase, cada grupo lê o resulta-do de sua produção textual para o res-tante da classe. Note: escolher uma for-ma mais sintética, como a do aforismo, não é necessariamente vantajoso – pois é muito difícil expressar ideias sofistica-das numa simples frase!

Fase 2 – Cada grupo retém o seu tema, mas muda de forma, e redige um pequeno texto sobre o mesmo assunto anteriormente proposto, mas agora ex-plorando outro gênero textual: quem co-meçou pelo ensaio, agora fará aforismo ou diálogo, assim por diante.

Fase 3 – Atividade individual. Cada es-tudante desenvolve, por escrito:

a. um breve diálogo a partir de um afo-rismo;

b. um parágrafo ensaístico a partir de um trecho de diálogo filosófico;

c. um aforismo a partir de um parágra-fo de ensaio.

Dica: especialmente nos casos do diálogo e do simpósio (mas também, defensavelmente, no do ensaio), você pode lançar mão de elementos fictícios – sempre que pertinentes ao assunto –, de forma a ajudá-lo a desenvolver a for-ma textual.

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uma conclusão, defende uma posição bem rigorosa sobre o assunto em pauta. Mas não é disso que trataremos. Quere-mos, aqui, chamar a atenção para o iní-cio do debate, no segundo dos dez livros que compõem o diálogo, ali onde Glau-co e Adimanto fazem uso da palavra, e Sócrates se contenta em responder. O tema da discussão, como dissemos, é a natureza da justiça, e, como você irá perceber, é nesta discussão que surge a oposição entre realidade e aparência. O passo é muito importante, porque gran-de parte de A república reside na respos-ta que Sócrates fornecerá às questões levantadas aqui.

Quais são as questões levantadas por Glauco no Livro II de A república? Tra ta-se de um argumento muito elabo-rado. A breve fala de Glauco contém uma tese de fôlego, difícil de refutar. Ele inicia sua argumentação distinguindo três clas-ses de coisas boas (República, 357b-358a):

1. aquelas que gostaríamos de obter pelo que possuem de bom em si mesmas (a alegria, os prazeres inocentes);

2. aquelas que são boas em si mesmas e nos resultados que produzem (a inteligência, a vista, a saúde);

3. aquelas que, embora sejam em si mesmas desagradáveis, são benéficas (o tratamento das doenças, os meios de se obter dinheiro).

A questão em jogo é clara, mesmo que a resposta seja difícil: em qual dessas classes incluir a justiça? Eis a pergunta que Glauco faz a Sócrates.

Sócrates defende a tese de que a justiça se situa entre as coisas do grupo (2), que são as coisas que proporcionam a verda-deira felicidade. Glauco, de seu lado, de-fenderá que a justiça se encontra, na ver-dade, entre as coisas do grupo (3), que são desagradáveis em si mesmas, mas úteis para nós. Segundo Glauco, se pudéssemos dispensar a justiça, não hesitaríamos em

dar as costas para ela. Esta é uma posi-ção de consequências importantes. Caso a aceitemos, aceitaremos também que a conduta justa é exercida não por seu va-lor intrínseco, mas para atender a um ou mais interesses. Assim como ingerimos um remédio amargo com o intuito de res-tabelecer a saúde, assim também, confor-me o argumento de Glauco, agimos com justiça apenas porque desejamos viver em paz com os demais. Se não fosse por isso, seríamos injustos.

A justiça: um mal necessário?Vamos reconstruir, agora, uma passagem

do texto de Platão, a fim de discutir a argu-mentação de Glauco mais detalhadamente. O primeiro momento dessa argumentação corresponde ao trecho citado a seguir:

(Glauco:) “Pelo que se diz, por na-tureza, fazer injustiça é um bem e so-frê-la, um mal. Mas sofrê-la aparece mais, pois o mal que há em sofrê-la supera o bem que há em fazê-la. Des-se modo, quando os homens, nas re-lações que mantêm, fazem injustiças e dela são vítimas, sentem o gosto de uma e outra; e, caso não sejam capa-zes de evitar uma e realizar a outra, parece-lhes útil fazer um contrato que os proíba a todos de fazer injus-tiça e sofrê-la. E foi a partir desse momento que os homens passaram a instituir suas leis e convenções e chamar legal e justo o que fosse pres-crito pela lei. Eis a origem e essência da justiça, situada entre o ótimo, que é fazer injustiça e não ser punido, e o péssimo, que é ser vítima da injus-tiça e não poder vingar-se. A justiça está entre esses dois extremos e é es-timada não como um bem, mas como algo que é reconhecido por falta de ânimo de fazer injustiça, pois quem o pudesse fazer e fosse realmente um homem não firmaria com ninguém convenção alguma que o proibisse

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de fazer injustiça e de sofrê-la. Isso seria loucura. Pois bem, Sócrates, eis a natureza da justiça e sua origem, pelo que se diz.” (Platão, República, II, 358e-359b. Tradução nossa.)

Como se vê, logo de início Glauco evoca o que diz ser a opinião geral sobre a natu-reza e a origem da justiça. É comum, afir-ma Glauco, definir a justiça como o meio termo entre dois extremos: de um lado, o bem máximo, que reside em praticar impu-nemente a injustiça; de outro, o pior dos males, que equivale a sofrer injustiças sem poder fazer nada.

Se Glauco estiver correto, então a justiça é fruto de um cálculo. Entre o que desejo fa-zer (a injustiça) e o que posso sofrer (nova-mente, a injustiça), é melhor ser prudente e adotar... um meio termo. O raciocínio é, es-sencialmente, o seguinte: não exercerei de modo absoluto minha vontade e com isso, em troca, não correrei o risco de ser expos-to aos mandos e desmandos dos outros.

Assim, Glauco também aponta qual se-ria o fundamento da ordem social: cada um de nós, que vivemos juntos num Estado, calcularia os prós e contras e concluiria ser mais vantajoso abrir mão de obter o bem máximo (= praticar impunemente a injusti-ça), a fim de não se expor ao pior dos males (= sofrer injustiças sem nada poder fazer).

O anel de Giges Logo após expor desse modo a tese de

que a justiça seria apenas um mal neces-sário, não um bem em si mesmo, Glauco recorre à fábula, a fim de corroborar, com ela, seu argumento. Trata-se da história de Giges, um pastor que servia ao então governante da Lídia.

Descendo por uma fenda que fora aber-ta por um terremoto, Giges encontra um cavalo de bronze, oco por dentro. Através de uma porta, enxerga, em seu interior, um cadáver, que possuía um anel de ouro. Leva consigo o anel e pouco depois desco-bre, sem querer, seus poderes: ao girar o

A justiça – um bem?

Atividade em equipe e debate em sala de aula

• Em dupla com um colega, reflitam sobre o argumento de Glauco e pro-curem elementos que corroborem ou refutem sua tese – conforme a qual, se cada um de nós se atém à justiça, não é porque a consideramos um “bem em si mesmo”, mas apenas devido à impossi-bilidade de cometer a injustiça impune-mente. Pense sobre as consequências sociais e políticas dessa tese. Caso ela seja verdadeira, o que se pode concluir a partir dela sobre nossa vida em so-ciedade? Estamos pensando no seguin-te: se Glauco estiver correto, por que respeitamos regras sociais, ao invés de simplesmente fazer o que bem en-tendermos? Glauco tem uma resposta para isso. Procurem compreendê-la, desenvolvendo por conta própria o ar-gumento proposto por ele.

anel para um lado, torna-se invisível; ao voltá-lo para sua posição inicial, visível. Daí em diante, a vida de Giges muda comple-tamente. Invisível, Giges entra no palácio, mata o rei, casa-se com a rainha, torna-se o governante. Eis a conclusão de Glauco:

“Se existissem dois anéis como esse, e o homem justo colocasse em seu dedo um deles, o injusto o outro, não haveria quem fosse tão resoluto a ponto de per-severar na justiça e tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e deles não se apropriasse, estando livre para, sem temor algum, pegar no co-mércio o que quisesse, adentrar nas ca-sas e aí conviver com quem entendesse, matar e libertar quem quisesse e fazer

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tudo o mais. Pois, entre os homens, se-ria como um deus.” (Platão, República II, 360b-c, tradução nossa.)

A história de Giges evocada por Glau-co tem por fim comprovar a conclusão exposta no primeiro momento de sua argumentação. O que caracteriza a figura de Giges? Tornando-se invisível, ele pode fazer o que bem entender.

Graças ao anel mágico, Giges se tor-na impune: nenhuma censura o alcança, nenhuma reprimenda ou condenação pode atingi-lo. Conforme as premissas de Glauco, ele já não precisa temer a prática da injustiça. E, tão logo o cálculo do qual se obtém normalmente a justiça se torna dispensável para Giges, ater-se a ela se torna inútil. Giges se torna injusto por-que não precisa mais ser justo.

Estamos, com isso, no coração da con-trovérsia entre Glauco e Sócrates. Trans-porte-se para o diálogo e responda por si mesmo: se você pudesse ser injusto tendo a certeza de estar isento de toda censura ou punição, abriria mão desse poder? Se pudesse agir “como um deus”, o que fa-ria? Responda a isso sem perder de vista o texto. A lição a tirar da alegoria do anel de Giges é clara: a justiça seria um simples ins-trumento, necessário para todos aqueles que não podem fazer o que bem entendem.

Isso implica uma conclusão radical: se as coisas se passam como diz Glauco, então a justiça revela uma fraqueza dos homens, visto ser-lhes útil apenas na me-dida em que cada um, nas relações que mantém com os demais, não pode fazer o que bem entende. A justiça, sob esse as-pecto, aparece como um remédio contra nossa fraqueza de não poder fazer tudo o que desejamos. É por isso que Glauco a si-tua entre as coisas boas da terceira classe (os remédios, a ginástica etc.), conforme a classificação com que inicia seu argumen-to e que examinamos anteriormente.

Para terminar sua ofensiva argumenta-tiva, Glauco, após narrar a fábula de Giges,

acrescenta ainda um terceiro elemento em favor da tese de que a justiça é apenas um mal necessário. Ele propõe a Sócrates uma comparação entre dois tipos opostos en-tre si: o homem perfeitamente justo e o homem perfeitamente injusto. Este últi-mo, o “injusto perfeito”, é tão bom em sua injustiça, que a executa sem que pareça ser injusto: ele é capaz de dissimular suas ações. Aparenta agir com justiça, embora cometa injustiças o tempo todo. Já o seu oposto, o homem perfeitamente justo, “é um homem simples e generoso que [...] não quer parecer justo, mas sê-lo” (Repú-blica, II, 361b, tradução nossa).

É assim, aliás, que Glauco nos propõe imaginá-lo: como alguém que é justo, mas que possui a reputação de injusto, pois ape-nas desse modo poderemos determinar se ele age unicamente movido pela jus tiça, ou por aquilo que a reputação da justiça lhe assegura. “Que ele, sem praticar injustiça, possua a reputação de completa injustiça, para que, não se deixando abater pela má fama e suas consequências, fique confir-mada a autenticidade de sua justiça” (Re-publica, II, 361c-d, tradução nossa).

Alegoria da Justiça – Sócrates

indaga, no Livro II da República:

Seria ela apenas um remédio?

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Após a caracterização desses dois ti-pos, Glauco lança-nos a questão decisiva: qual deles você diria ser o mais feliz – o injusto que aparenta ser justo, ou o justo que aparenta ser injusto?

Não é difícil notar que essa questão e a argumentação que a prepara constituem uma variante da narrativa do anel de Gi-ges, apresentada por Glauco pouco an-tes. Só que, em lugar da fábula de Giges descobrindo o anel mágico que o torna invisível, Glauco agora nos propõe ima-ginarmos uma oposição de tipos cujas características são definidas sem recurso à fabulação e ao mito.

Você bem pode indagar se, na vida real, existe alguém que seja tão perfeitamente injusto que pareça a todos o mais justo dos homens. Mas o essencial, aqui, é a caracte-rização de um tipo, o do homem injusto que sabe fazer com que suas ações tenham a aparência enganosa da virtude.

Note que a apresentação desse tipo possui uma função conceitual. É pen-sando no fato de que os exageros podem auxiliar na abordagem e compreensão de um problema que Glauco, persona-gem de Platão em A república, lança mão desses dois homens fictícios: o perfeita-mente justo e o perfeitamente injusto.

A crítica da aparência por Sócrates Vimos a questão levantada por Glau-

co no Livro II de República: quem é mais feliz, o justo que parece injusto, ou o in-justo que parece justo? Na verdade, essa é uma pergunta retórica, pois Glauco já direciona a resposta conforme a manei-ra que formulou a questão. Bastará ima-ginar o destino reservado a ambos para responder que o injusto será mais feliz que o justo. Como acrescenta o próprio Glauco, aquele que aparenta ser virtuo-so será recoberto de glória e admiração, embora, na verdade, seja injusto; o ver-dadeiramente justo, ao contrário, sofrerá “açoites e torturas”, e só ao fim da vida “compreenderá que não importa ser jus-

to, mas apenas aparentar sê-lo” (A repú-blica, II, 361e -362a, tradução nossa).

Essa última conclusão de Glauco con-firma a lição que ele havia extraído da história do anel de Giges. Trata-se de um elemento complementar, coerente com a argumentação sustentada por Glauco, e que podemos resumir assim: caso pos-samos ser injustos sem parecê-lo, seremos felizes. Ou seja, só somos justos, porque

Os tipos e seu exagero característico

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

A literatura, o cinema e o teatro es-tão cheios de tipos, de personagens que encarnam de maneira exagerada determinadas características. E o que dizer, então, das telenovelas? Você cer-tamente já viu, na tevê, tipos semelhan-tes ao homem injusto que parece ser justo, apresentado dialeticamente por Glauco. A personagem de Flora, repre-sentada por Patrícia Pillar em A favorita (2008-2009), telenovela criada por João Emanuel Carneiro, é apenas um exem-plo dentre tantos outros.

• Em uma equipe de três a quatro in-tegrantes, pesquisem, em sala de aula ou em casa, exemplos de tipos como aquele proposto por Glauco. Após sua caracterização, examinem se persona-gens assim são de fato possíveis na vida real. Caso a resposta seja positiva, apre-sentem exemplos que comprovem suas conclusões. Caso seja negativa, exami-nem esta última questão: por que, então, as novelas, os romances, o cinema e o teatro sempre recorrem a essas caracte-rizações exacerbadas?

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não conseguimos todo o tempo ser in-justos aparentando ser justos. Podemos concluir da fala de Glauco que só é feliz... aquele que parece ser justo.

O que poderá retrucar Sócrates dian-te disso?

Como você pode imaginar, Sócra-tes discorda completamente da posição apresentada por Glauco. Segundo Sócra-tes, seu amigo e interlocutor se equivoca ao dar prioridade à reputação pública de que gozam os cidadãos na cidade-Estado. Se formos nos ater à reputação, vá lá, nesse caso, Glauco até teria certa razão.

Mas por que deveríamos nos ater a coi-sas tais como “fama”, “reputação”, etc.? Será esse tipo de critério para ser feliz que Sócrates irá desqualificar, propondo

em seu lugar outra medida para conceber a distinção entre realidade e aparência. No entender de Sócrates, a aparência corresponde a uma realidade inferior, de-rivada da realidade propriamente dita. A realidade, argumentará Sócrates, se situa no mundo transcendente das Formas ou Ideias, no qual o simulacro, as aparên-cias, não têm lugar.

Na refutação dos argumentos de Glauco, Sócrates lança mão do que se tornou conhecido como a doutrina das Ideias, também apresentada na Unidade Princípio e temporalidade (módulo “Platão e o tempo”), ao comentar a ale-goria da caverna. Só vale a pena ser in-justo e parecer justo em um contexto em que prevalece o simulacro, o engano, a

Um episódio da vida do

líder romano Caio Júlio César

(100-44 a.C.) deu origem a uma

máxima muito repetida quan-

do se trata de julgar e valorizar

as aparências.

Em 62 a.C., César ocupava,

havia aproximadamente um

ano, o cargo de máxima auto-

ridade religiosa de Roma (pon-

tifex maximus). No calendário

sagrado romano, um festejo

de grande importância era o

dedicado à Bona Dea (“a boa

deusa”), que sempre devia ser rea lizado na re-

sidência do pontífice, sendo proibida a presen-

ça de todo e qualquer homem, inclusive a do

senhor da casa.

Naquele ano, porém, deu-se um escândalo:

durante a festa ritual, um homem foi descober-

to na casa do pontífice, travestido de mulher.

Uma criada teria arranjado um encontro amo-

roso entre esse homem, Clódio, e a então espo-

sa de César, Pompeia (filha de outro grande po-

lítico romano). César imediatamente repudiou

a esposa (isto é: separou-se legalmente dela).

Foi instaurado um proces-

so judiciário para deliberar

sobre o sacrilégio que pertur-

bara a festividade. Durante

esse processo, os juízes per-

guntam a César por que ele

não denunciara Clódio. César

declara nada ter contra ele. In-

terrogado então por que repu-

diara Pompeia, ele argumenta

que nem sequer uma suspeita

poderia pairar sobre a esposa

de um pontífice. Daí se origi-

nou a máxima: “Não basta à

mulher de César ser honesta; ela também tem

de parecer honesta”.

O dito realça o papel da fama (ou das apa-

rências) na vida prática, especialmente na vida

política. (Na realidade, César tinha outras mo-

tivações para fazê-lo. Estava defendendo seus

próprios interesses políticos: não queria se

pronunciar pública e oficialmente contra Cló-

dio, que era muito prestigiado pelas camadas

populares; além disso, César se aproveitou da

ocasião para selar um novo acordo político

mediante outro matrimônio.)

“NÃO BASTA SER HONESTO, É PRECISO APARENTAR SÊ-LO”

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Se a realidade nem sempre é aparente, mas pode estar oculta, devemos perma-necer atentos para não sermos enganados pelas ilusões criadas pelas aparências? Não é preciso sempre tomar as coisas por esse lado. Há quem defenda que somente as aparências revelam a verdade. Como dizia o escritor Oscar Wilde (1854-1900), “ape-nas os superficiais não julgam pelas apa-rências”.

De fato, pode-se conceber a natureza e o estatuto da aparência sem condená-la por completo e de uma vez por todas. Ar-riscaríamos até dizer que a atenção que

a maioria de nós dedica às aparências é um reconhecimento de que elas são parte importante de nossas vidas. Pode até ser que as aparências enganem, como quer o ditado. Mas então também é verdade que passamos bastante tempo ocupados enganando aos outros e a nós mesmos. Vamos seguir essa pista um momento.

Comecemos examinando um hábito diário e generalizado. Arrumar-se para sair é cuidar da própria aparência. E não é incomum descobrir que quem é contra a maquiagem e critica quem se pinta se preocupa em parecer natural. Às vezes, desarrumar os cabelos e assu-mir um estilo casual exige passar mais tempo na frente do espelho do que quem só passa uma maquiagem básica. E isso sugere que, exceções à parte, em alguma medida todos nós nos preocu-pamos em parecer ser alguma coisa. Ze-lar por nossa imagem diante dos outros é valorizar o modo como aparecemos para eles. Valorizar, portanto, nossa aparência.

Aproximamo-nos, assim, da questão da beleza e do ornamento, o que já re-quer examinarmos nossa questão sob outro enfoque. O cuidado de si e com a própria imagem está presente em to-das as culturas e, em muitas delas, se associa à prática de embelezar-se. Cui-damos da “aparência”, e isso não é, em si, negativo.

O hábito de se ornamentar faz com que a questão da aparência ganhe um

ilusão. E esse contexto é caracterizado por Sócrates como a caverna de que fala a alegoria do Livro VII de A república. Em seu interior, prevalecem a ilusão e as aparências. Mas o indivíduo que sair da caverna descobrirá esse engano, en-xergará as coisas como elas são, à luz do sol. E quem tiver feito isso já não poderá

se contentar com uma vida afastada da verdade, como, a crer no Sócrates pla-tônico, ocorre com o filósofo. Vê-se em que medida a condenação e execução do Sócrates histórico foi importante para a solução apresentada em A república, por meio da personagem de Sócrates elabo-rada por Platão.

Você é do tipo que dispensa um bom

tempo cuidando de sua aparência ou,

ao contrário, simplesmente não liga

para isso?

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ek/S

hutt

erst

ock

A realidade da aparência

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sentido novo, diferente daquele que já examinamos quando consideramos que muitos filósofos buscaram a realidade por trás das aparências. Se, no caso do ornamento ou do embelezamento, a “aparência” sequer se opõe à “realidade”, por que deveríamos considerá-la como algo irreal, superficial ou ilusório?

Um exercício com o significado usual de nossas palavras pode esclarecer me-lhor esse ponto. Aprofundemos um ins-tante o caso da maquiagem. Dizemos que quem se pinta, usa corretivo, batom etc., “se produz”. Ora, nenhum dicionário de-fine “produzir” como equivalendo a “ilu-dir” ou “enganar”.

“Produzir” é criar algo novo, transformar a realidade atual ou fabri-car uma realidade nova, bem diferente dela. Você pode não aprovar quem “se produz” demais, mas seria estranho afirmar que seu rosto ou seu as-pecto geral não seja real. A pintura – e agora, pen-samos na arte da pintu-ra, não da maquiagem – se encaixa muito bem nessa explicação. Pintar é produzir aparências, criar novas realidades. Ao pintar seus qua-dros, na maioria das vezes o intuito do pintor é muito mais o de ter sua obra ad-mirada do que o de nos enganar.

Há um outro contexto no qual as apa-rências, longe de serem recusadas, são bem vindas e até mesmo tidas como in-dispensáveis. Dissemos acima, ao envere-dar pela questão cosmética e estética, que cuidar de nossa imagem diante dos outros é valorizar o modo como aparecemos para eles. Pois bem: esse cuidado com as apa-rências não corresponde, em boa parte, ao que chamamos de educação?

Tente caracterizar uma pessoa edu-cada. Para começo de conversa, ela é al-

guém que não diz o que pensa em todas as circunstâncias. Imagine que desastre, se sempre falássemos o que nos vem à cabeça... Um jesuíta italiano que andou pelo Brasil no século XVIII, Gabriel Ma-lagrida (1689-1761), dizia que “ao ho-mem foi dada a palavra para esconder seu pensamento”. Ele queria dizer com isso que a linguagem é importante não apenas para comunicarmos o que sen-timos, exprimir o que desejamos, mas também para fazer exatamente o oposto disso, isto é, para dissimular o que senti-mos e pensamos. Afinal, e para recordar outro ditado bem a propósito, “quem diz

o que quer, ouve o que não quer”...

Imagine se, como exercício em aula, você se reunisse em gru-po e contasse tudo o que passa por sua ca-beça! Ser educado im-plica não dizer a todo momento o que se está pensando. Outro exemplo de dissimu-lação que parece bem vinda: você nunca se pegou rindo de uma piada que achou sem graça, apenas para ser

gentil com quem está com dificuldades para entrar na conversa? Quando fez isso, agiu de forma falsa e hipócrita ou simplesmente foi gentil?

Considere mais um exemplo, também extraído de nosso cotidiano – o nosso comportamento à mesa. Por que você come de boca fechada, e não de boca aberta, se não por consideração por quem está almoçando ao seu lado? Você pode retrucar que isso é relativo, recordando que isso faz parte da etiqueta desta cultu-ra, não de outra, e sempre haverá alguém para lembrar que, em algum lugar do planeta, valoriza-se um comportamento contrário ao que consideramos em nossa

A linguagem é usada não apenas

para comunicar o que sentimos,

mas também para dissimular o que

pensamos.

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cultura como sendo de boa educação. Na Unidade Natureza e cultura, uma das questões mais discutidas reside, exata-mente, na diversidade das culturas, no fato de que pode bem ocorrer de consi-derarmos uma grosseria tremenda aquilo

que, para outro grupo diverso do nosso, não possui nenhum significado especial, e vice-versa.

No caso que estamos discutindo ago-ra, não é este o ponto; ninguém quer ignorar que as culturas sejam diversas umas das outras. A discussão é outra. To-das as culturas se apoiam em códigos de comportamento, valorizam certas con-dutas, recusam outras. Viver em qual-quer sociedade exige dos indivíduos que

usem seus corpos de uma de-terminada maneira, vistam-se assim ou assado, alimentem-se seguindo um grupo de regras, e assim por diante. E tudo isso tem de ser bem visível. Ou seja, tem de aparecer, manifestar-se. Eis-nos assim, outra vez, às vol-tas com as aparências. Parece inegável que elas são parte de-cisiva de nosso comportamento cotidiano e que, por isso, nem sempre é o caso de buscar uma “realidade” por trás delas.

Nem toda aparência é falseamentoNo contexto ligado ao comportamento ,

assim como no caso dos cosméticos e da beleza, as aparências revelam dispor de uma realidade própria, a ponto de deter-minarem o modo como supostamente de-vemos nos comportar no dia a dia.

Podemos nos rebelar e contestar esse tipo de regulamento não escrito, que exprime valores do grupo social a que pertencemos. Mas, exatamente porque vamos contra eles e os questionamos, atestamos que as aparências são tangíveis e efetivas, que possuem uma realidade bem palpável. Tão palpável que se torna difícil conseguir desembaraçar-se delas.

Pode-se argumentar que a força das apa-rências sobre nós é tanto um fenômeno positivo quanto negativo. Nos dois casos, entretanto, concede-se que as aparências possuem uma eficácia real e que dispõem, nesse sentido, de uma realidade própria.

RousseauJean-Jacques Rousseau (1712-1778) nas-

ceu em Genebra, na Suíça, mas fez fama

como escritor e filóso-

fo na França. Chegou

a Paris em 1742 para

tentar a carreira de

músico. Logo se apro-

xima de Denis Diderot

(1713-1784), que lhe

encomenda verbetes

para a Enciclopédia

(1750-1762). Entretan-

to, devido a seu gênio

difícil, Rousseau pole-

miza fortemente com

Voltaire (1694-1778),

em seguida se desentende com Diderot e,

finalmente, se indispõe com David Hume

(1711-1776), que o havia acolhido no Reino

Unido, sensibilizado pelas dificuldades pelas

quais Jean-Jacques passava.

Rousseau tem uma obra ampla, profun-

da e diversificada, com contribuições signi-

ficativas para a filosofia política (Do contrato

social, 1762), para a educação (Emílio ou da

educação, 1762) e no domínio da literatura.

Seu romance Júlia ou a Nova Heloísa (1761)

foi um dos maiores sucessos de público do

século XVIII, tendo forte influência sobre o

romantismo emergente no fim do século

XVIII e início do século XIX.

Além de boas traduções de seus livros

mais importantes, há excelentes estudos

sobre a obra de Rousseau no Brasil. Men-

cionamos apenas um deles, de autoria de

Bento Prado Jr., um de nossos maiores en-

saístas: A retórica de Rousseau e outros en-

saios. São Paulo: Cosacnaify, 2008.

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Um importante autor do século XVIII se deu conta disso logo cedo em sua vida. Referimo-nos a Jean-Jacques Rous-seau (1712-1778). Nascido em Genebra, Rousseau se tornou conhecido em Paris, onde chegou aos 30 anos.

Na segunda metade do século XVIII, Paris se tornara a capital da cultura e da civilização europeias: música, teatro, ar-tes, o espírito de conversação, as festas nos grandes salões, tudo isso chama a atenção de todos que podem afluir para lá. Rousseau tampouco fica indiferente aos brilhos e à pompa dos costumes pari-sienses. Só que, ao invés de aderir a eles, torna-se pouco a pouco seu crítico ferre-nho. A crer em Rousseau, a sofisticação dos costumes, o brilho da civilização, o decoro e os bons modos não apenas são dissociados da virtude, como também, muitas vezes, são adversários dela.

Rousseau apresenta essas ideias em uma obra publicada em 1750, o Dis-curso sobre as ciências e as artes. O texto responde a uma questão levantada pela Academia de Dijon (França), que indaga-va se, tudo somado, o desenvolvimento das ciências e das artes promove ou não o aperfeiçoamento moral da humanidade.

Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “ ‘Perfectibilidade’ e ‘desenvolvi-mento’”), você é apresentado ao conceito de “perfectibilidade”, tal como entendido por J.-J. Rousseau. Se quiser aprofundar sua compreensão de como Rousseau con-cebe a mudança histórica, recorra àquele trecho, articulando-o com a presente dis-cussão sobre realidade e aparência. O que agora examinaremos é um ponto mais específico. Interessa-nos a avaliação ne-gativa feita por Rousseau quanto ao de-senvolvimento da civilização.

Por que negativa? Porque, como ele escreve, o desenvolvimento das ciências e das artes, a sofisticação de nossos cos-tumes, a busca pelo luxo e o requinte dos modos modernos – tudo isso fez com que uma distância insuperável se interpuses-

se entre o que somos realmente e nossa aparência exterior. Com isso, a sociedade atual criou um abismo entre ser e parecer. A aparência se tornou estranha à virtude, diz Rousseau.

Nem sempre foi assim, ele acrescen-ta em seguida. Nos tempos primitivos, quando não havia a preocupação em pa-recer ser o que não se é, os indivíduos exi-biam sua natureza mais íntima:

“Antes que a arte tivesse polido nos-sas maneiras e ensinado a nossas pai-xões a falar uma linguagem artificial, nossos costumes eram rústicos, porém naturais. E a diferença no compor-tamento anunciava, imediatamente, a di ferença dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor. Mas os homens encontravam sua se-gurança na facilidade de se percebe-rem reciprocamente, e essa vantagem, da qual não conhecemos mais o preço, lhes economizava muitos vícios.” (J.-J. Rous seau, Discurso sobre as ciências e

John Malkovich encarna o sedutor

Visconde de Valmont em Ligações peri-

gosas (Direção de S. Frears. EUA:1988),

filme baseado no romance homônimo

de P. C. de Laclos (1741-1803).

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as artes. Tradução nossa. Edição de re-ferência: Oeuvres complètes – vol. III [ed. Pléiade]. Paris: Gallimard: 1996, p. 8)

Você acha que Rousseau idealizava os tempos primitivos? Talvez sim. Mas se o fez, não estava sozinho. Na Unidade Razão e paixão, examina-se como F. Schiller[+] (1759-1805), autor influenciado por Rous-seau, traçou um retrato da Grécia antiga conforme o qual os gregos viviam em har-monia com o universo que os circundava.

Para Pitágoras e os gregos antigos (ver módulo “As aparências enganam?” nesta mesma Unidade), o “cosmos” significava um universo dotado de medida e ordem.

Embora algo dessa ideia tenha permaneci-do até os dias de hoje, ela não chegou a nós sem sofrer abalos. Um deles foi causado pela difusão da ideia cristã de que o universo de-pende de um princípio infinito (Deus). Como compreender através de uma medida humana – e, por isso mesmo, fini-ta – um universo que se funda em um princípio infinito? (Veja, a propó-sito, a exposição de todo esse problema na Unidade Finito e infinito.)

Mas retornemos ao Discurso sobre as ciências e as artes, o texto que estamos examinando aqui. Segundo Rousseau, foi a partir do desenvolvimento econômico, da sofisticação da vida em sociedade, do aprimoramento dos costumes, do floresci-mento das ciências e das artes que aquele equilíbrio original entre o ser e o parecer se rompeu. Como conclui Rousseau:

“Ninguém ousa mais parecer o que de fato é. E, submetidos a essa coerção perpétua, os homens, formando esse rebanho chamado sociedade, realizarão

todos, diante das mesmas circunstân-cias, as mesmas coisas, a não ser que motivos mais poderosos não os des-viem.” (J.-J. Rousseau. Discurso sobre as ciências e as artes, op. cit. Tradução nossa)

É fácil perceber que Rousseau é crítico das aparências. Conforme o texto citado acima, o aprimoramento dos costumes e o desenvolvimento da civilização causam prejuízos à virtude. E isso, porque pessoas civilizadas são capazes de dissimular o que sentem, esconder o que pensam, aparentar ser o que, na realidade, não são.

Note que Rousseau, na passagem cita-da, esclarece que, antigamente, “a natureza

humana não era melhor”. Entretanto, acrescenta, nada havia que impedisse os indivíduos de perceber a essência íntima uns dos outros.

A sofisticação dos cos-tumes, as maneiras refi-nadas, as boas aparências, tudo isso, conforme Rous-seau, representa obstácu-lo para as virtudes morais. Por duas razões: primeiro, porque torna possível pa-recer honesto e virtuoso sem sê-lo de fato. Eis um

ponto no qual Rousseau retoma um de-bate travado entre Glauco e Sócrates em A república de Platão (ver módulo “Ser e parecer justo”, nesta mesma Unidade). Em segundo lugar, as aparências são per-niciosas às virtudes morais na medida em que, segundo Rousseau, hoje em dia é ine-vitável moldarmos nosso comportamento com base no que é considerado polido e decoroso – isto é, procurarmos ser o que esperam de nós e, assim, nos transfor-marmos em uma simples “aparência”, vol-tada para satisfazer os outros.

Mas o ponto mais importante disso tudo é outro. Para Rousseau, as aparên-cias são reais. Muito embora ele possa não

A sofisticação dos costumes, as maneiras

refinadas, as boas aparências, tudo isso, conforme Rousseau, representa obstáculo

para as virtudes morais.

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gostar delas, Rousseau sabe que nos en-contramos em um caminho sem volta, no sentido de que não há meio de suprimir completamente as aparências.

Não vá concluir disso que Rousseau fos-se um partidário da selvageria ou da com-pleta falta de polidez. Basta ler seus textos para se dar conta de que ele dominava com maestria a arte de bem escrever – seu es-tilo é carregado de floreios, inversões, iro-nias, etc., revelando a mesma sofisticação que não cansou de criticar.

Paradoxo? Antes de simplesmente acu-sarmos Rousseau de incoerência (de um lado, criticar o aprimoramento das artes e, de outro, fazê-lo exibindo o domínio que possuía delas), percebamos que sua posição é a expressão bem acabada do fato de que as aparências possuem eficácia e poder no mundo que habitamos. Pode bem ser que Rousseau, lá no fundo (mas qual fundo, se a essência jamais se revela a nossos olhos?), estivesse querendo nos dizer que a única forma de combater as ilusões das aparên-

cias consiste em produzir... novas apa-rências, melhores que aquelas do presente.

A produção artística da aparênciaA disputa em torno do par realidade

e aparência atravessa toda a história da filosofia. Há quem diga que, goste-se ou não das aparências, temos de conviver com elas. Como vimos, esse parece ser o posicionamento de Rousseau. Mas há também quem veja nisto algo essencial-mente positivo. Já se disse que as apa-rências ocultam a essência de nosso ca-ráter. Mas seus simpatizantes retrucam com esta pergunta: como, porém, nosso caráter se dá a conhecer, se não através de atos, palavras, discursos, bons ou maus modos, através da linguagem cor-poral, da maneira como nos vestimos – enfim, do modo como aparecemos aos outros? Talvez, em um universo sem aparências, não houvesse tampouco ilu-sões. Mas pense bem: o que seria da hu-manidade sem ilusões?

Você sabe que isso é um quadro – ou melhor, a reprodução de um quadro. Você

acreditaria estar nesse momento no local pintado? (Nicolau Antonio Faccinetti [1824-

1900], Vista do Morro Pão de Açúcar, Rio de Janeiro. Óleo sb/ tela, 1868)

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Isso parece incontestável no que se re-fere a um âmbito essencial de nossa expe-riência: o da arte. Admitir que as aparên-cias não correspondem adequadamente ao real não muda as coisas quando o assunto é arte. Pois a arte não possui o compromis-so de representar a realidade tal como ela é. Imagine-se diante de um quadro que re-presenta, por exemplo, a baía da Guana-bara, no Rio de Janeiro. Por mais exata que seja a paisagem pintada ali, nem por isso você imagina, por um segundo, estar diante da própria baía da Guanabara. Você sabe perfeitamente que está diante de um quadro, que retrata uma realidade.

Dito de outro modo, um quadro é um quadro mesmo quando se trata de uma pin-tura figurativa, na qual o pintor busca imitar a natureza de forma realista. Não é porque a maçã pintada no quadro aparenta ser igual a uma maçã real que você vai abocanhar a tela. E isso é ainda mais verdadeiro para a pintura moderna, que, em muitas de suas vertentes, abandonou o ideal figurativo em favor da exploração de volumes, cores e for-mas sem qualquer intuito mimético (= imi-tativo). Diante dessas pinturas, somos con-frontados com cores e figuras formalizadas sem qualquer pretensão de imitar formas naturais determinadas. Nessa atividade de dar forma ao sensível, o pintor estabele-ce relações estéticas entre cores, espaços e figuras, criando um universo que expande nossa compreensão sobre as possibilidades que a realidade pode assumir.

Vai nessa direção a forma como se posiciona quanto à pintura abstrata um importante historiador da arte do sécu-lo XX, o norte-americano Meyer Schapi-ro (1904-1996).

“Pintura abstrata” significa a arte pictó-rica que se despojou de todo intuito realis-ta, ainda presente na assim chamada arte “figurativa”. Meyer Schapiro afirma que, na pintura abstrata, da qual o século XX e o século XXI fornecem inúmeros exemplos, o “abstrato” é, na verdade, muito concreto. Vejamos o que quer dizer com isso.

É interessante observar que Schapiro faz referência a um elemento importan-te para o nosso par de conceitos: a “abs-tração” característica da linguagem da ciência. Só que ele o faz para em seguida nos recordar que a pintura, e mesmo a pintura abstrata (seu tema de maior in-teresse), tem pouco ou nada que ver com a abstração científica.

Como dissemos, seu ponto reside em assinalar que a pintura abstrata é concreta, o que poderia soar paradoxal, mas não é.

Pense bem. Se essa forma de pintura é “concreta”, é porque, apenas ao cortar toda referência ao mundo exterior ao quadro, a pintura pode se tornar comple-tamente pintura.

Difícil? Schapiro quer dizer que, no “abstracionismo”, o artista se concentra somente na atividade de pintar, despreo-cupando-se em reproduzir o que quer que exista fora do quadro. Por isso, o artista formaliza as aparências e, desse modo, exprime seu ponto de vista mais subjetivo: “aqui o subjetivo torna-se pal-pável”... Afinal de contas, a subjetividade do artista pode se exprimir sem que ele se preocupe em retratar a realidade.

“A pintura abstrata de hoje tem pouco a ver com abstração lógica ou matemática. Ela é inteiramente con-creta, sem simular um universo de objetos ou conceitos que existam fora da moldura. Na maioria dos casos, o que vemos na tela pertence a ela e a nenhum outro lugar. Mas a abstração em pintura evoca, mais intensamente do que nunca, o artista durante o ato de pintar – seu toque, sua vitalidade e estado de espírito, o drama da de-cisão no processo de feitura da arte. Aqui o subjetivo torna-se palpável. [...] Se há, na arte abstrata, a utiliza-ção de formas matemáticas, elas são, como as marcas materiais, elementos da mesma ordem de realidade que a própria tela visível. E se um pintor se

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arrisca a colar sobre a superfície do suporte pedaços de objetos externos – trechos de jornal ou tecido –, esses ob-jetos não são imitados, mas transpos-tos materialmente para a tela, como a tinta propriamente dita.” (Schapiro, “A pintura abstrata”. Tradução: Betina Bischof, in: Mondrian – A dimensão hu-mana da arte abstrata. São Paulo: Co-sacnaify, 2001, pp. 10-11)

Desse modo, Schapiro torna a ativida-de artística uma produção da realidade… sob a forma de aparência.

Como você pode perceber, Schapiro não concordaria com a tese defendida

por J.-J. Rousseau, conforme a qual as aparências representam um obstáculo intransponível para penetrarmos no ín-timo das pessoas.

Ao contrário, no entender do historia-dor da arte norte-americano, apenas ao li-dar com as aparências poderemos transpor o isolamento de nossas paixões, sentimen-tos e juízos, compartilhando-os com nossos semelhantes. Vimos, todavia, que talvez Rousseau termine sua abordagem a esse problema admitindo que, já que temos de lidar com as aparências, o melhor a fazer é cuidar de torná-las melhores. Sob esse últi-mo aspecto, Rousseau e Schapiro parecem mais próximos um do outro.

O abstracionismo na pintura modernaAtividade em equipe e debate em sala de aula

Em equipes de três ou quatro inte-grantes, realize pesquisa na internet ou em biblioteca, buscando artistas que podemos classificar como “abstratos”. Há inúmeros exemplos de pintores no Brasil que, embora tenham também re-alizado uma obra figurativa, exploraram com profundidade aspectos ligados à pintura abstrata. O caso de Alfredo Vol-pi (Lucca, Itália, 1896 - São Paulo, 1988) é, a propósito, de grande interesse. Vol-pi possui um conjunto de pinturas que o público costuma identificar como a representação de pequenas bandeiras. Ele mesmo não apreciava esta designa-ção, pois o essencial, nesses quadros, não é a imitação das figuras, mas o fato de que a referência às formas trian-gulares possibilita explorar composi-ções cromáticas especiais. Outro caso de grande interesse para um debate

deste tipo é apresentado pela pintu-ra de Alberto da Veiga Guignard (Nova Friburgo, 1896 - Belo Horizonte, 1962), cujas paisagens são propositadamente não realistas. Da mesma maneira, a tra-jetória artística de Lasar Segall (Vilnius, Lituânia, 1891 - São Paulo, 1957), Iberê Camargo (Restinga Seca, 1914 - Porto Alegre, 1994), Milton Dacosta (Nitéroi, 1915 - Rio de Janeiro, 1988) e Arcange-lo Ianelli (São Paulo, 1922 - São Paulo, 2009), dentre outros, ilustram a ruptura com elementos figurativos, presentes de início em suas pinturas, em favor de poéticas influenciadas pelo construtivis-mo e tendências afins.

• Após o levantamento de artistas abstratos (construtivistas, neoexpres-sionistas ou minimalistas), apresentem os resultados obtidos sob a forma de seminário em classe. Procurem mos-trar reproduções das obras seleciona-das, discutindo os aspectos abordados nesse módulo.

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unidade 6 espírito e letra

G oste ou não de futebol, você já deve ter ouvido uma frase célebre de um

ex-árbitro desse esporte, hoje comentarista de televisão: “A regra é clara...”. Não parece difícil compreender o que ele quer dizer com isso. O futebol, como todo esporte, possui um conjunto instituído de regras que normalizam a partida, regras que o árbitro deve aplicar durante o jogo. A primeira delas, a mais fundamental, é a de que o futebol é jogado com os pés. Dos onze jogadores de um time, só o goleiro pode pegar a bola com as mãos. Basta que o árbitro esteja atento para aplicar esta regra fundamental.

Interpretar as regras do jogo ..........173

Mudar a “letra” para manter o “espírito” ...............177

Traduzir e interpretar ...............182

Questões de interpretação...........188

Gol de mão do argentino Diego Maradona contra a

Inglaterra, nas quartas-de-final da Copa do Mundo de 1986

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Interpretar as regras do jogo

O futebol é regido por regras bem cla-ras. Elas estabelecem, por exemplo, em quais situações a falta sofrida por um jogador deve ser punida com um cartão amarelo ou até com um cartão vermelho. Para que a regra seja aplicada nesses ca-sos, não basta que o árbitro veja o ocorri-do. Ele terá de interpretar a situação, de-terminar se o jogador que cometeu a falta teve a intenção de ser maldoso com seu adversário ou se a falta resultou de um lance natural do jogo. Além de possuir boa visão, o árbitro precisa julgar bem, a fim de tomar a boa decisão.

Pensando melhor, isso vale até mes-mo para um caso que envolve a regra fundamental do futebol, que estabele-ce que os jogadores de linha não podem usar as mãos. A regra é claríssima, mas sua aplicação nem sempre é fácil como pode parecer à primeira vista. Suponha que, no lance de um cruzamento para a área, o árbitro vê “mão na bola” por parte do zagueiro. Mas a bola tocou na mão dele sem querer ou foi ele quem quis interceptar o cruzamento, pondo a mão na bola de propósito? A inter-pretação do árbitro, como você já deve ter percebido, será decisiva. Se ele en-tender que não houve intenção do za-gueiro em parar o jogo, marcará apenas a falta, e ponto final. Mas, se interpre-tar que o zagueiro quis pôr a mão na bola, as coisas mudam de figura. Além de marcar a falta, o árbitro punirá o za-gueiro com cartão amarelo ou verme-lho, por atitude antidesportiva.

A Regra 12 do Manual de Regras do Futebol, elaborado pelo International Football Association Board e seguido por todas as confederações de futebol associadas à FIFA mundo afora, esta-belece as condições vigentes do uso do cartão amarelo e do cartão vermelho. Vejamos o texto:

“Um jogador será advertido com cartão amarelo se cometer uma das seguintes sete infrações:

1. for culpado de conduta antidesportiva;

2. desaprovar com palavras ou gestos as decisões da arbitragem;

3. infringir persistentemente as regras do jogo;

4. retardar o reinício do jogo;5. não respeitar a distância

regulamentar em um tiro de canto, tiro livre ou arremesso lateral;

6. entrar ou retornar ao campo de jogo sem a permissão do árbitro;

7. abandonar intencionalmente o campo de jogo sem a permissão do árbitro.

Um substituto ou um jogador substituído será advertido com cartão amarelo se cometer uma das três infrações:

1. for culpado de conduta antidesportiva;

2. protestar com palavras ou gestos as decisões da arbitragem;

3. retardar o reinício do jogo.

Um jogador, um substituto ou um jogador substituído será expulso e receberá o cartão vermelho se cometer uma das seguintes sete infrações:

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1. for culpado de jogo brusco grave; 2. for culpado de conduta violenta; 3. cuspir em um adversário ou em

qualquer outra pessoa; 4. impedir um gol ou acabar com

uma oportunidade clara de gol, com uso intencional de mão na bola (isso não vale para o goleiro dentro de sua própria área penal)

5. acabar ou impedir uma oportunidade clara de gol de um adversário, que se movimenta em direção à meta adversária, mediante uma infração punível com um tiro livre ou penal;

6. empregar linguagem e/ou gesticular de maneira ofensiva, grosseira ou abusiva;

7. receber uma segunda advertência com cartão amarelo na mesma partida;

Um jogador, um substituto ou um jogador substituído que for expulso e receber o cartão vermelho deverá deixar os arredores do campo de jogo e a área técnica.”

(“Regras de futebol 2012-2013 – Confe-rederação Brasileira de Futebol”, publi-

cado in: <http://www.slideshare.net/afa-pp/livro-de-regras-futebol-2012-2013>, julho de 2012, acesso 18 de fevereiro de 2016, p. 83, pontua ção adaptada aos propósitos desta diagramação)

Agora que lemos a “Regra 12”, volte-mos à nossa conversa. Podemos qualificar melhor nossas primeiras considerações à luz do texto. Dizíamos que, para aplicar bem uma regra, não basta que esta seja clara, nem que o árbitro que a aplica te-nha um bom ângulo de visão; nem basta que ele seja imparcial, nem que não se in-timide com a pressão da torcida...

Além dessas condições preliminares, o bom árbitro é aquele que interpreta bem os acontecimentos da partida com base no regulamento do jogo. Na maior par-te das vezes, isso requer experiência. O “conhecimen to”, nesse caso, é um conhe-cimento de experiência. Não basta deco-rar as regras, nem basta que as regras se-jam claras. É preciso saber interpretar os casos particulares que elas preveem, para saber como aplicá-las.

Regras e capacidade de julgarPerceba que essa conclusão vale não

apenas para o futebol, mas para todas

Os jogos de tabuleiro, como o gamão, damas, ludo, xadrez etc., mesmo quando

mais simples, envolvem regras que organizam a competição entre os participantes.

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as situações envolvendo a aplicação de um conjunto de regras. Foi o que perce-beram filósofos como Immanuel Kant[+] (1724-1804). Há uma nota de rodapé na Crítica da razão pura (1787) em que Kant comenta um ponto muito seme-lhante ao que estamos discutindo. Nes-tas linhas reproduzidas a seguir, Kant não está pensando em esporte algum, ele apenas faz considerações gerais so-bre o que é necessário para uma pessoa servir-se de regras. Eis o texto:

“A falta da faculdade de julgar é o que se chama tolice, e em relação a esse defeito, não há o que fazer. Uma cabeça obtusa ou limitada, à qual apenas falte o grau conveniente de entendimento e de conceitos que lhe são próprios, é sim capaz de ganhar com o estudo e mesmo alcançar a erudição. Mas, como há ain-da, habitualmente, falha na faculdade de julgar [...], não é raro encontrar ho-mens muito instruídos que habitual-mente deixam ver, no uso de sua ciência, essa falta irreparável.” (Kant, Crítica da razão pura, B 172/173. Tradução nossa)

O que designamos acima como a expe-riência necessária para interpretar bem, Kant define como o bom uso da faculda-de de julgar. Diante do exemplo do fute-bol, Kant diria que não basta ao árbitro conhecer de cor as regras do jogo; ele tem de ter juízo para saber como aplicá-las durante o jogo.

Na nota acima, entretanto, Kant vai um pouco mais longe. Releia o texto. Po-de-se depreender daí que há pessoas que simplesmente são incapazes de aplicar bem regras a casos, mesmo que tenham muita familiaridade com a matéria em pauta. A capacidade de servir-se bem das regras e, desse modo, evitar sua má aplicação, é considerada por Kant como “um dom da natureza”.

Com isso, ele não entende que a natu-reza tenha reservado esse dom a poucas

Desenvolvimento individual por escrito

• Em um texto de aproximadamente três parágrafos a ser discutido em clas-se, procure refletir acerca da passagem citada de Immanuel Kant. Você con-cordaria com a avaliação deste autor, quando ele afirma que a capacidade de julgar, necessária para aplicar regras a casos, é uma espécie de talento natural, inexistente em algumas pessoas? Ou, ao contrário, você acredita que todos nós, sem exceção, podemos aprender a julgar bem, que é apenas uma questão de tempo e exercício?

Se você defende a segunda posi-ção, procure então responder a mais uma pergunta: como é que apren-demos isso? Certamente, não há um manual de regras que, uma vez con-sultado, nos ensine a como aplicar re-gras. Talvez possamos aprender a jul-gar, isto é, aprender a aplicar regras a casos. Mas o curioso é que se este aprendizado for mesmo possível, ele não residirá em decorar novas regras. Pois não bastaria decorar essas novas regras, o problema principal perma-neceria intocado: como, afinal, aplicar as regras?

Como se aprende a aplicar regras?

pessoas, mas apenas que, caso alguns de nós sejamos desprovidos dele, não haverá o que fazer. Quem não for capaz de fazer bom uso da faculdade de julgar jamais será capaz de interpretar bem a aplicação das regras aos casos.

Vamos reter, do que falamos até aqui, alguns pontos:

1. Uma coisa é o enunciado da regra; outra, sua aplicação.

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2. Por isso, a boa aplicação de uma regra requer, em primeiro lugar, que a regra seja clara, isto é, que o texto em que ela é formulada seja compreensível. Dizer que “a regra é clara” significa dizer que a letra da regra não contém nenhuma ambi-guidade, que ela está bem redigida.

3. Além disso, a boa aplicação de uma regra requer também que o árbitro ou juiz seja capaz de interpretar com bom senso os casos sobre os quais a regra se aplica.

4. Dito de outro modo, a aplicação de um conjunto de regras é uma atividade de interpretação que en-

Adolf Eichmann (1906-1962) foi um cri-

minoso de guerra nazista, julgado em Israel

pela sua atuação durante o período do

nazismo na Alemanha. Eichmann era um

alto funcionário da SS e o principal respon-

sável pela identificação e transporte das víti-

mas de extermínio racial para os campos de

concentração, nos quais foram assassinados

milhões de pessoas, em sua grande maioria

de origem judaica. Tendo fugido da Alema-

nha para a América do Sul após o fim da

Segunda Guerra Mundial (1945), Eichmann

foi localizado em Buenos Aires pelo serviço

secreto israelense, o Mossad, e levado para

Israel em maio de 1960. Foi julgado na cidade

de Jerusalém em 1961.

Durante o processo que findou condenan­

do-o à morte, a linha de defesa de Eichmann

foi declarar ao tribunal que, durante a

guerra, nada fizera senão “cumprir ordens”.

Sua argumentação era a de que, como bom

funcionário do Terceiro Reich, havia apenas

cumprido com esmero a tarefa que lhe fora

designada: a de não medir esforços para

exterminar o povo judeu.

Hannah Arendt (1906-1975), uma das mais

importantes filósofas do século XX, foi a Israel

e acompanhou o julgamento de Eichmann. Ela

publicou suas conclusões acerca da conduta

de Eichmann em uma obra intitulada Eich-

mann em Jerusalém – Um relato sobre a banali-

dade do mal (Tradução José Rubens Siqueira.

São Paulo: Companhia das Letras, 2001).

Nesta obra, H. Arendt relata sua perplexidade

com o fato de Eichmann não demonstrar sen-

timentos de ódio contra o povo judeu, nem

tampouco qualquer sentimento de culpa por

ter cometido atos tão terríveis. A partir disso,

Arendt conclui que o pior mal que pode afligir

a humanidade reside na completa recusa que

um ser humano pode demonstrar em avaliar

as regras que supostamente deveria cumprir.

Arendt conclui, portanto, que a “monstruo­

sidade” de Eichmann corresponde à sua

total indiferença quanto ao teor das regras

e das ordens que obedecia. Como alegava

Eichmann, ele apenas as seguia; entretanto,

argumenta H. Arendt, por essa mesma razão

Eichmann terminou personificando, com seus

atos durante a guerra e seu relato no tribu-

nal, o mal em sua total banalidade. Eis o que

devemos nos perguntar: como é possível

seguir regras e ordens sem, em momento

algum, questionar a natureza dessas regras e

ordens? Ao que tudo indica, Eichmann despo-

jou-se completamente da faculdade de julgar,

tornando­se, desse modo, um “funcionário

das regras” incapaz de refletir sobre as conse-

quências de seus atos.

O CASO EICHMANN: SEGUIR REGRAS SEM SABER SEU SIGNIFICADO

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volve a compreensão tanto da regra, quanto da circunstância em que ela é aplicável.

5. Mesmo se admitirmos que aplicar

regras é algo que todos nós ou quase todos nós podemos aprender, isso não muda o fato de que este apren-dizado não repousa sobre regras.

Mudar a “letra” para manter o “espírito”

A “letra” quase sempre implica uma noção complementar, que é o “espíri-to”. O que essa palavra quer dizer aqui? Vamos tomar o caso das mudanças in-troduzidas nas regras de um jogo. Como um esporte já antigo, o futebol tem uma história. As regras do jogo foram modifi-cando-se ao longo dos anos. Apenas a partir de 1958, por exemplo, um goleiro que se contundisse passou a poder ser substituído. Entretanto, até 1967, por exemplo, somente o goleiro podia ser substituído.

Se outro jogador se machucasse, não havia o que fazer: ou ele permanecia jo-gando contundido ou, se a contusão fos-se mais grave, saía de campo e seu time jogava com um jogador a menos. Isso só mudou em 1967, quando as equipes fo-ram autorizadas a realizar duas substi-tuições no andamento da partida.

Outro exemplo também diz respeito ao goleiro. Antigamente, o goleiro po-dia receber a bola de seu companheiro e apanhá-la com as mãos. A FIFA entendeu que isso retardava muito o jogo e, a partir de 1992, o goleiro ficou proibido de pegar a bola com as mãos, se recebida dos pés de um atleta de sua equipe. Com essa no-vidade, o jogo tornou-se muito mais rá-pido. A decisão foi bem recebida pelo pú-blico, pois ela incorporava o fato de que a preparação física dos jogadores, cada vez mais intensa, já permitia um jogo bem mais veloz do que antes.

Quando introduziu essas mudan-ças, a FIFA entendeu estar melhorando o futebol. Não passou pela cabeça de ninguém que as novas regras, embora modificassem a forma do jogo, estives-

sem criando um novo jogo, diferente do futebol. Entretanto, imagine: o que aconteceria se a FIFA determinasse que todos os jogadores em campo pudessem conduzir a bola com as mãos? Você con-cordaria em continuar chamando uma competição que seguisse esta nova regra de “futebol”? É pouco provável.

Imaginar uma mudança dessas, que autorizaria todos os jogadores a empre-gar as mãos para pegar a bola no jogo, ajuda a esclarecer o que devemos enten-der pelo “espírito” de uma lei.

Quando surgem regras novas no fu-tebol, as mudanças que elas promovem têm de ser fiéis ao “espírito” desse es-porte. Ao longo de sua história, o fu-tebol mudou muito, mas a maioria das pessoas concorda que o esporte perma-neceu o mesmo. Quando dizemos isso, queremos dizer que o “espírito” do jogo permanece idêntico, apesar das mu-danças por que passaram suas regras. Eis o que se entende quando se fala que a letra do regulamento deve se pautar pelo espírito do jogo. A letra do regu-lamento, como vimos, admite muitas mudanças, mas essas mudanças não devem ferir o espírito daquilo que as regras normalizam (no caso do exem-plo, o espírito do futebol).

Leitura recomendada

Para a história das regras do futebol, vale a pena consultar a obra de Arnal-do Cézar Coelho, A regra é clara. São Paulo: Globo, 2002.

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A letra e o espírito da leiVimos que mudar as regras de um jogo

significa mudar a letra de seu regulamen-to. Vimos também que as modificações só são introduzidas e acatadas se estiverem de acordo com o espírito do jogo. Dito de outro modo, altera-se a letra da lei, perma-necendo-se fiel ao espírito daquilo que o regulamento normaliza.

Até 1988, ano da promulgação da Constituição Federal hoje em vigor, re-lações duradouras entre um homem e uma mulher só eram consideradas como casamento quando ambos compareciam diante de um juiz de paz que celebrasse a união. Mesmo casais vivendo juntos por toda a vida, com filhos reconhecidos, se não tivessem feito um registro civil do casamento, não eram considerados pela lei como cônjuges.

Por isso, quando um dos dois falecia, o outro não possuía base legal alguma para reivindicar, por exemplo, a mesma pensão assegurada aos casais reconhecidos pelo Estado. Pois bem: em 1988, os deputados constituintes decidiram que o Estado brasi-leiro deveria estender os direitos assegura-dos pelo casamento civil a todos aqueles que vivem em família, mesmo não dispondo do registro oficial do casamento.

Vejamos como esta decisão está formu-lada na letra da lei. Siga com atenção o artigo 226 da Constituição brasileira, pro-mulgada em 1988:

“Art. 226. A família, base da socieda-de, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Esta-do, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade fami-liar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade for-

Mudar as regras ou mudar o jogo?

Debate em aula e elaboração individual por escrito

Atualmente, há um intenso debate sobre a utilização da tecnologia pela arbitragem do futebol. Há muitos de-fensores da ideia de que o juiz poderia consultar as imagens televisivas antes de decidir sobre sua interpretação de um lance duvidoso. Outra novidade, que vai na mesma direção, é a insta-lação de um chip eletrônico na bola, de modo a eliminar qualquer dúvida quanto à sua posição em um lance de gol. Entretanto, há quem diga que a uti-lização da tecnologia pelo árbitro pode ir contra o “espírito” do futebol. E quem argumenta assim defende que certa margem de erro é parte essencial do jogo, parte de sua “magia”.

• Discuta em grupo se essas e ou-tras eventuais mudanças nas regras alteram ou não a identidade do fute-bol, tomando o cuidado de justificar suas afirmações. Além disso, pesqui-se com o grupo a introdução de re-gras novas em outras modalidades esportivas, sempre examinando se elas porventura ferem ou não o “espí-rito” da competição em foco.

• Após o debate e a pesquisa, que pode ser feita também fora da sala de aula, redija um pequeno texto, no qual, após uma apresentação intro-dutória da questão, você apresenta sua posição sobre o tema em pauta e expõe os elementos que a justificam. Tenha em mente que o mais impor-tante, nisto tudo, é apresentar, com clareza, as razões que o conduziram a esta ou aquela tese.

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mada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referen-tes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou compro-vada separação de fato por mais de dois anos.

§ 7º Fundado nos princípios da dig-nidade da pessoa humana e da pater-nidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, com-petindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercí-cio desse direito, vedada qualquer for-ma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas .

§ 8º O Estado assegurará a assis-tência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanis-mos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

(Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Extraído do site oficial

da Presidência da República: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/

constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acesso em 18 de fevereiro de 2016)

Examine o texto, procurando iden-tificar, nos parágrafos do Artigo 226 transcrito acima, o que é dito sobre a “união estável” entre duas pessoas. Se você se ateve aos três primeiros pará-grafos, acertou. Dentre eles, o parágra-fo 3 é de longe o mais importante para nosso debate. Pois aí são conferidos à “união estável” os mesmos direitos e obrigações de que gozam as pessoas ca-sadas oficialmente. Ora, como vimos há pouco, as coisas não se passavam assim antes de 1988. Muitos homens e mu-lheres viviam em regime de união está-vel, constituindo, na prática, um núcleo familiar, mas tiveram de esperar pela Constituição de 1988 para serem reco-nhecidos pela lei como legítimos casais.

Em 2002, o novo Código Civil, em con-formidade com a Constituição Federal, também passou a estabelecer direitos aos casais que vivem em união estável. Hoje

O que “normalização” quer dizer?

“Normalizar”, assim como “nor-malização”, remete à “norma” e à “normalidade”. Em sentido amplo, “normalização” designa um processo ao término do qual observamos que fenômenos sociais ou naturais exi-bem um ou mais índices de padroni-zação. Entretanto, basta aprofundar-mos um pouco a investigação acerca do conceito de “normalização” para atestarmos que ele possui sentidos diferentes, quando não irredutíveis entre si. Por vezes, “normal” é sinô-nimo de “regular”, “habitual”; por vezes, designa o ideal de um com-portamento, exprimindo não o que

costuma acontecer, mas, sim, um va-lor acerca do que deveria acontecer. Esses dois sentidos são não apenas diferentes, como também pode ocor-rer de serem opostos entre si. Basta considerar que o que é “normal”, no sentido de habitual ou frequente, pode representar uma “anomalia” ou “anormalidade” do ponto de vista de nossos valores. Nos casos examina-dos nesta Unidade, “normalização” significa, de modo geral, o conjunto de medidas tomadas para regula-mentar práticas sociais, envolvendo a observação de códigos e regula-mentos instituídos com esse fim.

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em dia, no Brasil, quem vive sob o regime de união estável possui os mesmos direi-tos e obrigações de quem é casado com registro civil.

Aprofundemos, com base nisso, nosso debate sobre o espírito e a letra. O novo Código Civil, de 2002, foi redigido em con-formidade com a nova “Lei Maior”, como é chamada a Constituição Federal, promul-gada em 1988. Dito de outro modo, a letra do Código Civil foi formulada conforme os parâmetros mais amplos da Constituição. Porém, quais foram os motivos que leva-ram os autores da Constituição Federal de 1988 a instituir a equivalência entre o “ca-samento civil” e a “união estável”?

A resposta é mais simples do que pa-rece. Os deputados constituintes verifica-ram que muitos casais viviam de maneira estável, constituindo uma unidade fami-liar, mesmo sem terem formalizado essa relação perante o Estado pelo casamento civil. Mas o ponto que nos interessa aqui, a questão filosófica que está presente nes-te debate, é: como, afinal, transcorreu essa “verificação”? Por certo, isso não foi veri-ficado do mesmo modo como olhar para o relógio e verificar que horas são, nem olhar para fora da janela e constatar que está chovendo.

Nosso caso é mais complicado do que isso. A própria verificação depende de uma atividade interpretativa. Para enten-dermos isso, basta pensar que, antes de 1988, já se podia verificar, com base em estatísticas, que muitos homens e mulhe-res viviam como marido e esposa, embora não fossem casados oficialmente. Embora esses casais vivessem como se fossem ma-rido e esposa, aos olhos da lei não possu-íam os direitos e deveres dos casais com registro civil. A partir de 1988, porém, a situação se altera: a união estável entre o homem e a mulher passa a ser equivalen-te a uma entidade familiar, com todas as consequências legais que isso traz.

Ora, instituir uma relação de equiva-lência entre duas coisas diferentes re-quer interpretar que elas sejam iguais sob aspectos decisivos. Como acabamos de dizer, este é um ato diverso daquele de verificar que está chovendo lá fora.

A vida dos casais em união estável pas-sou a ser considerada como detentora, sob aspectos essenciais, das mesmas ca-racterísticas que a dos casais com registro civil. Foi isso o que fez com que juristas e deputados elaborassem a proposta de mo-dificação da letra da lei, estendendo os mesmos direitos e deveres do casamento

No Brasil, foi estabelecido que, do ponto de vista legal, a união estável equivale ao

casamento: ambos implicam os mesmos direitos e deveres.

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Discussão em classe e desenvolvimento indi-vidual por escrito

A relação entre a letra e o espírito da lei está em permanente mudança. Prova-o o fato de que, de 1988 para cá, a discussão sobre a “união estável” adquiriu novos contornos. Va-mos examinar essas mudanças, recorrendo a uma questão atual que tem alimentado o debate jurídico e, com frequência, aparece no noticiário. Trata-se do que os juristas cha-mam as “relações homoafetivas”, isto é, as re-lações entre indivíduos do mesmo sexo.

Com esse intuito, releia, antes de prosse-guir, o parágrafo 3 do artigo 226 da Consti-tuição Brasileira, citado acima. Verifique o se-guinte: a letra desse parágrafo 3 reconhece que apenas constitui uma entidade familiar que seja equivalente ao casamento a união estável entre um homem e uma mulher. Em outras palavras, a letra do artigo 226 da Constituição Brasileira não reconhece a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo. Por isso, conforme o texto constitucio-nal, casais homossexuais que, na prática, vi-vem de modo estável, como ocorre com um casal heterossexual, não possuem os direi-tos e deveres que o artigo 226 assegura ao regime de união estável entre um homem e uma mulher. O fato de que a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo não seja reconhecida pelo artigo 226 da Constituição Federal torna este tipo de união inexistente do ponto de vista legal. Por isso, quando, por exemplo, um dos membros de uma união estável homoafetiva falece, o outro não po-

deria reivindicar o direito de herança assegu-rado aos casais heterossexuais, protegidos pela lei.

Entretanto, em 2008 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que um fundo de pensões deveria incluir como seu beneficiário o par-ceiro de um homem falecido, com quem ele vivera em “união estável” por 15 anos. O ar-gumento apresentado na justificativa dessa decisão inédita da justiça brasileira foi a de que a Constituição Federal institui direitos e deveres para todos os cidadãos, independen-temente de raça ou sexo. Assim, argumenta-va-se que uma relação estável com parceiros do mesmo sexo deveria ser considerada pela lei como equivalente a uma relação estável com parceiros de sexos diferentes.

Por isso, hoje em dia, aqueles que defen-dem que homossexuais devem ter os mes-mos direitos de que gozam os casais hete-rossexuais brigam para modificar a letra do parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição Federal.

• Forme uma dupla com um(a) colega e discuta esse assunto, pesquisando, por meio de consultas ao noticiário, o debate em torno das “relações homoafetivas”. Como trabalho fora da sala de aula, consulte a biblioteca ou a internet a fim de examinar qual o estatuto das relações homoafetivas em outros paí-ses, como a Argentina, os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo. Em seguida, for-mule em uma redação de aproximadamente duas páginas os resultados de sua pesquisa, levando sempre em conta a correlação aqui examinada entre letra e espírito da lei.

O estatuto jurídico das relações homoafetivas

oficial à união estável entre um homem e uma mulher. Afinal, se “união estável” e “casamento civil” são equivalentes, é na-tural que se apliquem a ambos os mesmos direitos e atribuições.

Essa equivalência não é o resultado de uma simples constatação, mas, sim, de uma interpretação conforme a qual as duas coisas comparadas – a “união está-vel” e o “casamento com registro civil”

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– são tomadas como instituições que possuem, ambas, o mesmo espírito: o de uma entidade familiar.

Texto e significadoPara concluir esta aproximação ao tema

de nossa Unidade, vamos considerar agora conjuntamente nossos dois exemplos, o do futebol e o da união estável. Como você já deve ter notado, a relação entre o espíri-to e a letra é muito dinâmica. Por exemplo: as regras do futebol foram modificando-se ao longo do tempo. A letra do regulamento foi sendo adaptada às novas circunstâncias da prática esportiva; as regras foram mu-dando, mas sempre procurando respeitar o espírito do jogo do futebol.

Do mesmo modo, de tempos em tem-pos também no direito a letra é modifi-cada em nome do espírito da lei. Vamos, então, arriscar formular uma definição do espírito, em sua oposição à letra?

O espírito do futebol consiste em uma ideia do que seja a essência desse espor-

te. O espírito da lei também é uma ideia, no caso da Constituição Brasileira, a ideia de que todos dispomos de direitos e deveres iguais. Desse modo, enquanto a letra sempre se reporta a um texto, o espírito se reporta à ideia que dá sentido a esse texto.

De fato, é por referência ao espí rito que novas regras que normalizam o fu-tebol ou qualquer outro esporte são in-troduzidas e adotadas no regulamento do jogo. “Letra” e “espírito”, pode-se con-cluir, são sempre relativos um ao outro. A letra pretende traduzir, em termos claros, o espírito. Por sua vez, o espírito força a letra a modificar-se, a se adaptar a novas circunstâncias. Em determinados mo-mentos, tudo se passa como se o espírito dissesse que a letra que o traduzia até ali envelheceu, que ela precisa renovar-se, reformular-se. Talvez a razão disso seja simples: é que estamos constantemente interpretando o mundo que nos cerca, e esta interpretação é dinâmica.

Traduzir e interpretar

A interpretação é uma atividade dinâmi-ca. Vamos explorar um caso ligado a uma prática com a qual você já deve ter tido al-gum contato: a tradução de textos literários.

Você já conhece a Ilíada, de Homero? Trata-se de um enorme poema épico, cons-tituído por 24 cantos, que narram o último ano da guerra de dez anos entre os gregos e os troianos. Muitas dúvidas cercam a com-posição desta obra, que constitui um dos marcos fundadores da literatura ocidental. Por exemplo, há quem questione que um único poeta, Homero, tenha concebido todo o vasto material reunido na Ilíada, sobretudo porque, como diz a tradição, Homero declamava partes do poema, sem, todavia, ter chegado a escrevê-lo. A com-pilação escrita da narrativa transmitida oralmente através dos anos foi feita muito

depois da data presumida de sua morte. Mas o que nos interessa reter da Ilíada

não concerne à vida de Homero. Para nos-sos propósitos nesta Unidade, basta-nos o texto. Vamos nos ater a questões rela-cionadas com esse famoso poema, tra-duzido em centenas de línguas e que há muito tempo e ainda hoje suscita admi-ração por sua força expressiva e poética.

Há muitos episódios famosos na Ilíada. Um deles, de que faremos uso logo abai-xo, retrata uma cena comovente, quase no final do poema. Aquiles, o herói grego, tem um duelo mortal com Heitor, filho de Príamo, rei de Troia. Heitor é derrotado e morre. Aquiles, entretanto, não se sa-tisfaz com ter tirado a vida do principal guerreiro de Troia. A fim de vingar Pátro-clo, seu querido amigo morto por Heitor

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na batalha, Aquiles, irado, prende o corpo de Heitor a seus cavalos e dá voltas em torno dos muros de Troia, exibindo cruel-mente seu feito.

A atitude de Aquiles é tanto mais ter-rível na medida em que, para os gregos, assim como para os troianos, não velar os mortos constituía ofensa aos deuses. Por isso, todos em Troia, a começar pe-los pais de Heitor, desesperam-se diante do espetáculo cruel proporcionado por Aquiles. Aconselhado por um mensa-geiro dos deuses do Olimpo, que tam-bém desaprovam os excessos de Aquiles, Príamo toma uma decisão temerária. Re-solve abandonar os muros de Troia e ir ao acampamento dos gregos pedir a Aquiles o resgate do corpo do filho.

O que se passa, então, é surpreenden-te. Príamo alcança a tenda de Aquiles, que se espanta ao vê-lo diante de si, em pleno acampamento inimigo. O velho pai lança--se aos pés de Aquiles e lhe implora que aceite presentes em troca do corpo de Hei-tor. Aquiles escuta Príamo e também se põe a chorar, lembrando-se de seu próprio

pai, que o espera, sem saber se voltará a vê-lo, em sua terra natal. Ambos se abra-çam, confraternizam e, ao fim, Príamo retorna a Troia com o corpo de Heitor, para prestar-lhe as justas homenagens e realizar seu funeral.

Tradução e interpretaçãoAgora que você já sabe o que se passa

no encontro entre Príamo e Aquiles, va-mos ao texto. Mas qual texto, exatamen-te? Vimos que a Ilíada foi fixada em livro apenas após a morte de Homero. E isso foi feito na própria Grécia: não por acaso, a Ilíada é considerada uma obra fundamen-tal para a difusão não apenas da poesia, como dos ideais de educação, da religião e da cultura grega de modo geral.

Se, portanto, quiséssemos ir ao texto original, teríamos que saber o idioma gre-go. Claro que isso não é necessário: dis-pomos de diversas traduções da obra de Homero para o português. Não é preciso saber grego para ler a Ilíada.

Façamos então a leitura de duas versões do mesmo passo do poema de Homero. É

Não apenas em textos a lendária guerra de Troia foi repetidamente interpretada na

tradição do Ocidente. Nesta xilogravura alemã de 1493, vemos a cidade da Antigui-

dade clássica retratada com edifícios tipicamente medievais.

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um trecho pequeno, no qual é narrada a chegada de Príamo, pai de Heitor, à tenda de Aquiles. São uns poucos versos, mas, como você logo irá perceber, sua leitura será suficiente para nos conduzir ao coração da questão anunciada anteriormente. Ques-tão que podemos formular também da se-guinte maneira: o que exatamente se passa quando lemos a tradução de um texto que foi escrito originalmente noutra língua?

Note que estamos às voltas com o par que dá nome a esta Unidade. O texto ori-ginal de Homero representa, de um lado, a letra do poema épico intitulado Ilíada; de outro, seus tradutores, que conhecem o idioma grego, buscam verter o espírito do poema em seus idiomas, ou seja, bus-cam traduzir o espírito homérico em outra letra – o idioma português, por exemplo – que nem mesmo existia na época em que a obra foi criada.

Aos textos, então! Por precaução, te-nha um dicionário a seu alcance. Após a leitura, voltaremos a nossas considera-ções sobre o espírito e a letra.

O primeiro dos textos é extraído da tradução da Ilíada por Odorico Mendes (1799-1864), intelectual e literato mara-nhense muito ativo na metade do século XIX. O primeiro verso transcrito abaixo fala da chegada de Príamo no acampa-mento dos inimigos gregos:

“Seguiu direito; achou de Jove o alunoDentro sentado, à parte os sócios, menosAlcimo e Automedon, ramos de Marte,Que a mesa diligentes o serviam,Onde satisfizera a sede e a fome.Não visto passa o corajoso velho,Até que prosternado, humilde beijaA mão terrível que imolou seus filhos”

(Homero, Ilíada. Tradução de Odorico Mendes, publicada postumamente em 1874. Reedição com prefácio e notas de Sálvio Nienkötter. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campi-nas: Editora da Unicamp, 2008, pp. 855-857)

Agora leia a descrição do mesmo epi-sódio, noutra versão, contemporânea a

nós, feita pelo poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003), um dos pioneiros da poesia concretista no Brasil:

“O ancião rumou direto para a morada onde Aquiles, caro a Zeus, sentava-se habitualmente. Estava ele no interno desta.À parte, os companheiros se sentavam. Dois somente, Automedonte e Alcimo, raça-de-Ares,se apressuravam junto dele: terminara,há pouco, de comer e beber, mas a mesaseguia posta. Esquivando-se dos outros, Príamo acerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terríveis mãos, mãos assassinas,que lhes mataram tantos filhos.”

(Homero, Ilíada, XXIV, versos 471-481. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002, p. 467)

Comparemos as duas traduções, a fim de identificar quais diferenças existem entre elas. A versão de Odorico Mendes é mais circunspecta e com uma sinta-xe mais rebuscada que a de Haroldo de Campos. Esta última, por sua vez, soa mais adjetivada e parece querer realçar a dramaticidade da cena. Compare, es-pecialmente, os últimos versos, quando Príamo beija as mãos de Aquiles, o assas-sino de seu filho Heitor.

Enquanto Haroldo de Campos escreve

“Esquivando-se dos outros, Príamoacerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terríveis mãos, mãos assassinas,que lhes mataram tantos filhos”

Odorico Mendes se contenta com o seguinte:

“Não visto passa o corajoso velho, Até que prosternado, humilde beijaA mão terrível que imolou seus filhos”

Como explicar essas diferenças, se os dois textos são traduções do mesmo origi-nal? Você dirá: mas são traduções diferen-tes do mesmo original... Só que isso não é

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solucionar o problema, e sim apenas expli-cá-lo, isto é, apresentá-lo e desenvolvê-lo em toda sua complexidade, sem, entretan-to, resolvê-lo. Pois a questão é exatamente esta: como devemos compreender a dife-rença existente entre duas traduções de um mesmo texto, redigido noutra língua?

Note que traduções não divergem entre si como soluções divergentes de um mesmo exercício de matemática, por exemplo. As resoluções de uma equação de segundo grau podem ser reconduzidas a uma só, unívoca. Boa parte das vezes, em matemática, há apenas um resultado correto; os outros, não. Pode até acontecer de nos depararmos com soluções erradas que sejam pedago-gicamente interessantes. Mas, interesse à parte, permanecem soluções erradas do ponto de vista estritamente matemático.

Releia, porém, as duas traduções do trecho da Ilíada, citadas acima. Ambas foram feitas por conhecedores do idioma grego da Antiguidade (a “língua de parti-da”, como dizem os estudiosos) e do por-tuguês (“a língua de chegada”). Nenhum dos dois traduziu, por exemplo, a palavra que em grego significa “idoso” por “meni-no”, ou algo do gênero. Fazê-lo seria um erro. Porém, enquanto Odorico Mendes optou por traduzir a palavra grega que revela a idade avançada de Príamo por “velho”, Haroldo de Campos optou por “ancião”. São opções diferentes de tradu-ção, ambas igualmente válidas.

Como você sabe, “idoso”, “ancião” e “velho” são sinônimos. Não por acaso, em alguns dicionários, estão associados no mesmo verbete. Por outro lado, devi-do ao uso cotidiano da língua, a escolha por um desses termos ao invés dos ou-tros pode fazer toda a diferença, confor-me o contexto em que são usados.

Por exemplo, dizer que “idosos” pos-suem preferência para assentos em trans-portes públicos, ao invés de utilizar o si-nônimo “velhos”, confere um tratamento mais respeitoso a homens e mulheres com idade de 60 anos ou mais. O que di-

zer, então, de “ancião” ou “anciã”? A pala-vra não evoca a você um senhor ou senho-ra experientes, capazes de dar conselhos e revelar certa sabedoria? O fato de que palavras são sinônimas não quer dizer que possuem exatamente o mesmo sen-tido; se fosse assim, substituir um sinôni-mo por outro jamais modificaria em nada que fosse o sentido do enunciado. Ora, o exemplo da sinalização utilizada nos ôni-bus para reservar assentos a pessoas com 60 anos ou mais mostra que nem sempre um termo pode ser substituído por seu sinônimo, sem que, com isso, modifi-quemos o sentido do enunciado. É o que mostra a tentativa de substituir “idosos” por “velhos”: a mensagem da placa soa ria deseducada, não?

Isso nos faz perceber que a tradução de um poema de uma língua para outra é um processo complexo, que envolve mui-to mais do que conhecer o significado das palavras no idioma de partida (no caso da Ilíada, o grego) e transpô-lo diretamente no idioma de chegada (o português). É

Por trazer o mesmo texto em hieróglifos,

na escrita demótica e em grego, a Pedra

de Roseta foi fundamental para a deci-

fração das escritas egípcias.

Briti

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preciso também e principalmente inter-pretar o sentido do poema, a fim de recriar este mesmo sentido na língua de chegada.

O significado filosófico da traduçãoUma das contribuições mais decisivas

para a reflexão sobre a atividade da tradu-ção foi dada por Friedrich Schleiermacher (1768-1834; pronúncia aproximada: “ch-láiermaher”, com “h” aspirado).

Schleiermacher não apenas traduziu as obras de Platão[+] para o alemão, como também ampliou o campo da hermenêu-tica, que até então designava a teoria e a prática da interpretação dos textos bíbli-cos, conferindo-lhe o significado de uma arte geral da interpretação.

A atividade de interpretar tornou-se um ramo da filosofia hoje muito amplo, que teve seu ponto de partida moderno nas con-tribuições de Schleierma-cher. Ora, como vimos, traduzir consiste numa atividade de interpreta-ção do texto original e, a partir daí, numa ativida-de de relacionar culturas diferentes entre si, a da “língua de partida” e a da “língua de chegada”.

As linhas que exami-naremos abaixo perten-cem a um texto que Sch-leiermacher redigiu para sua conferência na Aca-demia Real de Ciências de Berlim, proferida em 24 de junho de 1813. Na passagem em ques-tão, o autor aponta dois meios ao alcance de todo tradutor ao exercer seu ofício:

“Que caminho pode tomar o ver-dadeiro tradutor que deseje aproxi-mar esses dois homens tão distantes um do outro, o escritor que irá tradu-zir e o leitor que irá ler sua tradução? Como pode fazê-lo, a fim de propor-cionar a compreensão e o prazer com

o autor de forma mais exata e com-pleta, sem, para isso, forçar o leitor a abandonar o círculo de sua língua materna? A meu ver, há apenas dois caminhos. Ou o tradutor deixa tanto quanto possível em paz o escritor e leva o leitor a seu encontro; ou dei-xa tanto quanto possível em paz o leitor, e leva o escritor até ele. Os dois caminhos são tão diversos que se deve seguir apenas um deles com o máximo rigor. Pois da mistura en-tre eles resultará algo insatisfatório, pondo em risco o encontro entre o escritor e o leitor.” (Friedrich Schleier-macher, “Dos diferentes metodos de traduzir”. Tradução nossa. Edição de referência: Friedrich Schleiermachers sämmtliche Werke, III. Berlim: Reimer, 1838, pp. 207-245, p. 218)

O que reter desse tex-to? Primeiro, perceba que Schleiermacher con-cebe a tarefa do tradutor como sendo equivalente a de alguém que aproxi-ma pessoas. O tradutor lança uma ponte entre o escritor que será traduzi-do e o leitor dessa tradu-ção. Dito de outra forma, a ativi dade de traduzir aproxima universos dis-tintos. Considere o que já vimos: as traduções da Ilíada por Odorico Men-

des e, tempos depois, por Haroldo de Cam-pos proporcionaram e ainda proporcionam ao universo de leitores da língua portugue-sa a oportunidade de travar contato com a cultura da Grécia antiga.

A representação que nós, leitores, for-mamos dessa cultura, especialmente da poesia homérica, irá variar de acordo com as traduções disponíveis da Ilíada. Daí a importância de boas traduções para a formação da cultura nacional: somente

O tradutor lança uma ponte entre o escritor

que será traduzido e o leitor dessa

tradução. Assim, a ativi dade de traduzir aproxima universos

distintos.

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por meio delas poderemos situar nossa literatura em relação a tradições literárias diversas, buscando estabelecer, assim, influências, continuidades e rupturas. O tradutor, enfim, é um elemento essencial para o sistema cultural em seu conjunto. Eis o primeiro ponto que se pode depreen-der do trecho citado acima.

O segundo ponto diz respeito ao mé-todo utilizado no traduzir. Conforme Schleier macher, há duas maneiras me-diante as quais o tradutor pode promover o contato entre o escritor e o leitor. Ele pode verter o texto de partida para sua língua mantendo-se próximo da estrutura sintática e semântica do original. Uma vez que a escrita se altera conforme o tempo e o lugar, muitas vezes existe uma verda-deira distância entre nós, leitores de hoje, e a forma de que se serviu em sua época o escritor para escrever aquilo que escreveu.

Por isso, quando o tradutor de um tex-to da Antiguidade seguir muito de perto a forma sintática utilizada pelo escritor, essa opção muito provavelmente irá pro-duzir sobre o leitor da tradução algum estranhamento, como se o texto estivesse escrito em outro português, diferente da-quele com que estamos habituados. Essa é a razão pela qual Schleier macher diz que, nesse caso, é o leitor quem tem de esfor-çar-se para ser conduzido até o escritor.

Na segunda opção, ao contrário, o tra-dutor adapta o discurso original ao uso contemporâneo de sua língua. É o escritor, portanto, quem é conduzido até o leitor, que permanece em um universo que lhe é familiar, o uso habitual de sua língua. Isso quer dizer também que a tradução não é uma atividade mecânica, pois envolve refle-xão, interpretação, escolhas. As diferenças existentes entre duas traduções do mesmo trecho da Ilíada citadas acima explicam-se por esta razão. Elas exprimem as escolhas feitas por cada um dos dois tradutores, conforme o modo como cada um deles leu o original. Odorico Mendes optou por ressaltar determinados aspectos do texto

homérico, em detrimento de outros; Ha-roldo de Campos, de seu lado, fez a mesma coisa, seguindo sua interpretação pessoal, e igualmente legítima, da Ilíada.

É por conta disso que podemos dispor de duas traduções do mesmo texto que, embora sendo divergentes, são igualmen-te válidas. Isso porque cada uma delas interpretou o sentido do texto original de um modo e recriou esse sentido na língua de chegada. Eis o que liga aspectos relacio-nados à tradução de textos com o assunto

Schleiermacher

Friedrich Daniel Ernst Schleier macher

nasceu em Breslau, em 21 de novembro de

1768. Seu pai era um capelão protestante, o

que teve grande influên-

cia sobre seu destino.

Após iniciar seus estu-

dos em uma instituição

de orientação pietista,

Schleimacher, descon-

tente, ingressou na Uni-

versidade de Halle, na

qual se aprofunda em

teologia. Após terminar

seus estudos, torna-se

capelão em Berlim, em 1796. Nesse período,

aproxima­se do círculo dos filósofos românti-

cos alemães, em especial de Friedrich Schle-

gel (1772-1829).

Em 1807, assume um posto na Universi-

dade de Halle e, em 1809, torna-se pastor

de uma igreja em Berlim. De 1810 ate sua

morte, em 12 de fevereiro de 1834, Sch-

leiermacher exercerá atividades como pas-

tor e também como professor da Universi-

dade de Berlim, fundada por Wilhelm von

Humboldt (1767-1835).

Em português, há uma obra que reúne

três contribuições importantes de Schleier-

macher sobre o assunto tratado aqui:

F. Schleiermacher, Hermenêutica: arte e

técnica da interpretação. Tradução: Celso R.

Braida. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. An

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desta Unidade: o sentido do original não é outra coisa senão o seu espírito, que as traduções buscam verter para a língua de chegada. Toda atividade de tradução con-siste em recriar o espírito do texto origi-nal noutra letra, representada pela língua para a qual é feita a tradução.

Podemos concluir disso que traduzir é criar novamente, recriar algo já constitu-ído, com base na letra que nos precede e nas escolhas que realizamos diante dela. Toda vez que algo do passado tem seu es-pírito reinterpretado, torna-se, com isso, atual e presente.

Questões de interpretação

O espírito e a letra de um discurso se encontram em uma relação dinâmica. É comum acontecer de alterarmos a letra de um texto, enunciado ou proposição sob o pretexto de que essas mudanças são importantes para permanecermos fiéis a seu espírito. É o que ocorre nas alterações das regras do futebol pela FIFA, assim como nas leis introduzidas na Constituição Federal sobre união estável. No caso das traduções, po-dem existir diferentes versões (ou seja, letras) igualmente válidas de um certo texto para o português.

O que, entretanto, motiva essas variações? Noutras palavras, o que é que cria todo esse dina-mismo nas relações en-tre o espírito e a letra? A fim de começarmos a responder a essas ques-tões, examinemos dois novos exemplos.

O primeiro deles é tirado dos céus. O que os astrônomos de hoje interpretam, por meio de teorias e instrumentos de observação, como sendo corpos físicos si-tuados no espaço sideral, certos povos da Antiguidade liam no próprio céu como sendo formas sobrenaturais divinas. Na passagem entre essas épocas da cultura ocidental, a configuração dos astros celes-tes, a maneira como eles aparecem a nós, sua letra, digamos assim, permaneceu pra-

ticamente a mesma. Mas o sentido do céu, isto é, o modo como ele é compreendido e experimentado – seu “espírito” – alterou--se substan ci almente.

O segundo exemplo, vamos tomá-lo da própria disciplina da filosofia. Platão[+] e Aristóteles[+], estudados em outras Uni-dades deste livro, são pensadores cujas obras têm sido lidas e interpretadas há

mais de dois milênios, sob perspectivas (filosó-fica, religiosa, científica etc.), épocas (antiga, medieval, moderna) e culturas (grega, roma-na, cristã, árabe etc.) muito diferentes. Suas obras suscitaram as mais variadas interpre-tações, que por vezes chegam a ser conflitan-tes e irredutíveis umas às outras. Não há con-senso sobre o significa-do principal das obras

de Platão e Aristóteles, e nada garante que haverá consenso algum dia.

Você poderia pensar que toda a contro-vérsia em torno das obras desses filósofos nada mais faz do que provar que, até hoje, Platão e Aristóteles não encontraram um intérprete à sua altura, que fosse capaz de dar a interpretação definitiva de suas filo-sofias. Mas a questão é outra: será que po-derá haver algum dia uma tal interpretação definitiva? Pode bem ser que, ao contrário, seja natural esperar que, de época para épo-

A interpretação da tradição está sempre

ligada ao contexto

histórico de uma dada época.

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ca, de cultura para cultura e mesmo de in-divíduo para indivíduo, o espírito das obras desses filósofos se modifique. Pode bem acontecer, enfim, que o sentido das obras de Platão e Aristóteles dependa sobretudo do ponto de vista adotado pelo leitor que trava contato com elas. Como este leitor va-ria, assim também varia o sentido do texto em questão. De certo modo, o mesmo vale para o céu, no qual a ciência moderna já não reconhece aquelas divindades que cer-tas culturas antigas enxergavam nele.

Isso nos ensina duas coisas importan-tes sobre o nosso tema. Primeiro, que o espírito de um “texto” (seja uma obra fi-losófica, seja o mapa celeste) jamais se encontra dissociado de uma interpretação determinada. Segundo, que a diferença entre essas interpretações aparentemente se explica pela relação que cada cultura e cada época instituem com a tradição a que pertencem tais textos.

Deixando agora o céu de lado e consi-derando apenas o caso das obras de Platão e Aristóteles, podemos afirmar que são “clássicos” da filosofia, na medida em que permanecem sempre atuais – bastando, para isso, que sejam lidos por nós. Já sabe-mos no que reside essa atualidade: no fato de que continuam possibilitando leituras as mais diversas, conforme a situação his-tórica e cultural de seus intérpretes.

A essa altura, você já deve ter se dado conta do fato de que os problemas le-vantados pela tradução e interpretação de textos – e ligados, portanto, àquilo que se convencionou designar a partir de Schleiermacher [+] (1718-1834) por her-menêutica – conduzem a um tema filosó-fico de primeira grandeza: a questão da temporalidade. Se traduzir é relacionar pessoas de épocas diferentes, depreende--se daí que toda atividade de tradução en-volve aspectos históricos.

Toda tradução realiza escolhas diante do texto a ser traduzido e, com base nelas, reanima e atualiza o espírito do que per-tence ao passado. Através da atividade de

tradução e das questões de interpretação que essa prática revela, nossa relação com a tradição e a história ganha destaque e ocupa o primeiro plano da reflexão filosófica.

Não por acaso, a partir da segunda me-tade do século XIX e especialmente no cur-so do século XX, autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1889-1976) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002) enfatizaram a articulação existente entre interpretação e consciência histórica. Examinaremos agora três momentos desse tipo de reflexão, cada um deles correspon-dendo aos autores mencionados.

Apropriar-se da tradição: Nietzsche Iniciaremos com um trecho de A gaia

ciência, obra que Nietzsche publicou em 1882, em uma fase muito produtiva de sua trajetória filosófica. O livro é todo ele

Muito antes da invenção e difusão do papel

(no Ocidente, por volta do séc. VIII), os egípcios

usavam as fibras entrelaçadas da haste de

uma planta aquática (Cyperus papyrus)

para escrever e desenhar.

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escrito em aforismos e, cinco anos após sua aparição, Nietzsche acrescentou um novo capítulo. Leia o trecho:

“Traduções – O grau do senso his-tórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado. No tempo de Corneille, e ainda no da Revolução, os france-ses se apropriaram da Antiguidade romana de uma forma de que já não teríamos coragem – graças ao nosso elevado senso histórico. E a própria Antiguidade romana: de que modo si-multaneamente impetuoso e ingênuo ela pôs a mão em tudo o que era bom e elevado da anterior Antiguidade gre-ga! Como traduziram as coisas para a atualidade romana! De que modo intencional e desenvolto tiraram o pó das asas da borboleta que é o instan-te! Assim Horácio traduziu, de vez em quando, Alceu e Arquíloco, assim fez Propércio com Calímaco e Filetas [...]: que lhes importava se o verdadeiro criador experimentara isso e aquilo e inscrevera no poema os sinais do que vivera! – como poetas eram avessos ao espírito antiquário inquisidor, que precede o senso histórico; como poetas não admitiam todas essas coisas e no-mes pessoais, tudo o que era próprio de uma cidade, uma costa, um século, como sua roupagem e marca, e rapi-damente punham no seu lugar o que era romano e atual. Eles parecem nos perguntar: ‘Não devemos tornar o an-tigo novo para nós e nos arrumarmos e imaginarmos nele? Não devemos poder insuflar nossa alma nesse corpo sem vida? Pois ele está morto, afinal; e como é feio tudo o que está morto!’. – Eles não conheciam o prazer do senso histórico; o que era passado e alheio os incomodava e, sendo romanos, esti-mulava a conquista romana. De fato, traduzir era conquistar – não apenas

ao se omitir o dado histórico: mais do que isso, acrescentavam alusões à atualidade, apagavam o nome do poe-ta e punham o próprio nome no lugar – não com o sentimento de um roubo, mas com a perfeita e boa consciência do Imperium Romanum.” (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Pau-lo: Companhia das Letras, 2002, pp. 103-104)

Observe como nessa passagem Nietz-sche faz elogios ao modo como os fran-ceses dos séculos XVII e XVIII (de Pierre Corneille até a Revolução de 1789) se apropriaram da cultura romana, de seu imaginário. De fato, tanto nas tragédias de Corneille (1606-1684), quanto nas te-las de Jacques-Louis David (1748-1825), contemporâneo da Revolução Francesa, encontramos personagens da época mo-derna descritos ou pintados como ro-manos da antiguidade. Outro exemplo desta atitude é uma célebre estátua de Voltaire[+], no Museu do Louvre, em Paris, que nos apresenta o filósofo francês do século XVIII com vestes e atitude típicas de um senhor romano. Como revela o pas-so analisado, Nietzsche entende que esse processo de livre apropriação do passado é positivo. A apropriação de uma cultura por outra restitui-lhe vida e atualidade.

É essa atitude de apropriação intensa do passado o que, conforme Nietzsche, termina sendo inibida pelo excesso de “senso histórico”.

Os romanos, por exemplo, se apropria-ram da cultura e da poesia gregas a partir de seus próprios interesses. Atualizaram o antigo com o propósito de servirem-se dele, para se arrumarem e se imaginarem nele. Já o “senso histórico” mencionado por Nietzsche é cheio de cautela e hesita em renovar o antigo. Ao invés disso, insis-te em preservá-lo intacto, como algo “mor-to”. Com isso, o “senso histórico” criticado por Nietzsche perde de vista que o passado

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se torna atual a cada vez que nos apropria-mos dele com base em nossos interesses teóricos, práticos e morais.

Modos de vivência: HeideggerA fim de aprofundarmos nosso assun-

to, vejamos agora uma ideia apresentada por Martin Heidegger em uma conferência intitulada “A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo”, que ele minis-trou na Universidade de Friburgo em 1919. A certa altura, ele compara duas perspecti-vas – ou, como ele diz: duas “vivências” – bastante diversas sobre uma mesma coisa, uma científica e outra, digamos, pré-cientí-fica, “apenas” interpretativa.

A primeira dessas vivências corresponde àquela dos cientistas da atualidade. Pense em um astrônomo, por exemplo, que anali-sa o nascer do sol como sendo um processo

de ordem simplesmente natural. Para fazê--lo, ele tem de se tornar indiferente ao que percebe com seus sentidos, ao que enxerga com seus olhos, para ater-se a uma descri-ção abstrata do fenômeno observado.

Ora, essa vivência nada tem que ver com aquela experimentada por indivídu-os que endeusam o astro solar. Heidegger dá como exemplo dessa segunda vivência o que experimentam os anciãos de Tebas que representam o coro na tragédia An-tígona, de Sófocles (496-406 a.C.). Obser-vando o céu logo no início da manhã, os anciãos, comemorando o êxito dos teba-nos em defender sua cidade do ataque do exército de Argos, exprimem-se assim:

“Ó raio de sol, que para Tebas dassete portas luziu/

enfim o mais belo esplendor”

Nietzsche

Friedrich Nietzsche nasceu em Röcken, Ale-

manha, em 15 de outubro de 1844. Sob influên-

cia da família luterana, Nietzsche inicialmente

cogitou ser pastor. Seu contato com a filosofia,

entretanto, o afastou da teologia. Fez estudos

de filologia clássica na Universidade de Bonn e,

em seguida, na Universidade de Leipzig. Nesse

período, toma contato com a obra de Arthur

Schopenhauer (1788-1860), que o impressiona e

o influencia muito.

Com apenas 24 anos, Nietz sche torna-se pro-

fessor na Universidade da Basileia (Suíça), onde

leciona até 1879, quando problemas de saúde o

obrigam a renunciar à carreira acadêmica. Esses

problemas marcarão, daí em diante, a vida de

Nietzsche, a ponto de que, a partir 1889 até sua

morte, ter de ficar aos cuidados de sua mãe e sua

irmã, em um estado de grande desequilíbrio psí-

quico. Nietzsche falece em Weimar, Alemanha,

em 25 de agosto de 1900.

A obra de Nietzsche, pouco reconhecida du-

rante sua vida, obteve enorme prestígio após sua

morte. Suas posições sempre polêmicas produzi-

ram reações violentas, em especial por parte de

intelectuais ligados ao

cristianismo. Nietz sche

propôs uma interpreta-

ção muito original dos

filósofos pré­socráticos

e de Sócrates e Platão,

na qual as investigaçòes

morais são articuladas

com a atenção de um

filólogo. No século XX,

sua obra influenciou

diversos autores, em

especial Michel Foucault

(1926-1884).

Há inúmeras obras de Nietz sche traduzidas

para o português. Duas traduções são especial-

mente recomendadas:

F. Nietzsche, Obras incompletas – Coleção Os

Pensadores. Tradução: Rubens R. Torres Filho.

São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Mais recentemente, a editora Companhia das

Letras publicou uma série de obras de Nietz sche

traduzidas por Paulo César L. de Souza. O con-

junto também está disponível em livros de bolso.

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(Sófocles. Antígona, versos 100-101. Tradução nossa; edição de referência: The Antigone of Sophocles. Richard Jebb [ed.]. Cambridge: Cambridge University Press, 1900)

Para Heidegger, a comparação entre o conhecimento astronômico e a expe-riência religiosa introduz a questão sobre a diversidade entre os “modos de vivên-cia”. Pois onde o sol é mais sol: no estudo objetivo do astrônomo ou na saudação solene dos tebanos?

Vimos que toda letra envolve inter-pretações, e que estas podem variar en-tre si. Temos agora, no caso apontado por Heidegger, um exemplo de conflito entre interpretações. Poderíamos ser tentados a supor que a primeira, em que o sol é considerado independentemente da relação afetiva do observador com ele, é objetiva, e a segunda, em que o sol é experimentado do ponto de vista do que sente o observador, é meramen-te subjetiva. Mas essa saída se expõe a críticas importantes. Pois, quando su-

Heidegger

Martin Heidegger

(pronuncia­se com “h”

aspirado: “háideguer”)

nasceu em Messkirch,

na Alemanha, em 26 de

setembro de 1889. De

início, Heidegger cogitou

ser pastor, tendo estu-

dado teologia na Univer-

sidade de Friburgo. Sob

influência da fenome-

nologia de Edmund Hus-

serl (1859-1938), porém,

decidiu-se por trocar os

estudos teológicos pela filosofia. Logo tornou­

-se assistente de Husserl em Friburgo, suceden-

do-o como professor em 1929. Nessa altura,

Heidegger já se tornara conhecido com a publi-

cação de sua prin cipal obra, Ser e tempo (1927).

Em 1933 dá-se o acontecimento que tor-

naria sua trajetória muita polêmica: Heideg-

ger filia­se ao partido nazista, que então

chegara ao poder. Torna-se reitor da Uni-

versidade de Friburgo por pouco mais de

um ano, em meio às turbulências politicas

provocadas pelo intensificação do nazismo

na Alemanha. Com o fim da segunda Guer-

ra mundial (1945), Heidegger é impedido de

ensinar na universidade pelos ocupantes das

forças aliadas na Alemanha. A proibição dura

até 1951, quando retoma suas atividades até

aposentar-se, em 1958. Falece em 23 de maio

de 1976, em sua cidade natal, Messkirch.

A obra de Heidegger é considerada uma

das mais importantes do século XX. Ela in-

fluenciou inúmeros pensadores, de con-

cepções muito diversas, tais como Herbert

Marcuse (1898-1979), Hannah Arendt (1906-

1975), Jean-Paul Sartre (1905-1980), pai do

existencialismo; e Jac ques Lacan (1901-

1981), que renovou a psicanálise na França.

As investigações de Heidegger concernem à

metafísica, à linguagem, à poesia e às ciên-

cias. Seus estudiosos costumam classificar

seus escritos em dois períodos, o primeiro

em torno de Ser e tempo, o segundo, como

tendo início após 1933.

Você encontra em português a tradução

de várias obras de Heidegger. Eis a principal:

M. Heidegger, Ser e tempo. Tradução Fausto

Castilho. Campinas: Editora da Unicamp/

Vozes, 2012.

Se quiser aprofundar seus conhecimentos

sobre Heidegger, você pode consultar duas

obras de introdução:

Benedito Nunes, Heidegger & Ser e Tempo.

(Coleção Passo-a-Passo). Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 2002.

Zelyko Loparic, Heidegger (Coleção Passo-

-a-Passo). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.

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pomos que a interpretação científica é objetiva, baseamo-nos no critério cien-tífico de rigor e exatidão, isto é, estri-tamente no interesse da ciência. Mas a ciência, como vimos, é apenas uma es-pécie de vivência ao lado de outras pos-síveis. Da mesma forma, também seria parcial assumir como verdadeiro um ponto de vista religioso e, a partir daí, acusar a ciência astrofísica de cometer blasfêmias, por manter-se alheia e indi-ferente à “divindade” solar.

Mas, então, será inevitável o con-flito entre essas formas de vivenciar a presença do sol? De certo modo, essas

vivências são mesmo inconciliáveis. As-sumir previamente o sol como um deus que é preciso louvar significa, sim, estar impedido de conhecê-lo com exatidão. Afinal, como se poderia medir um deus?

Por sua vez, interpretar o sol como corpo situado no sistema gravitacional do espaço físico significa pôr em suspenso, ao menos enquanto o consi-deramos assim, toda possível relação (religiosa, estética e mesmo cotidiana) que possamos manter com ele, como se pudéssemos fingir não ver nem sentir (nem, muito menos, admirar e louvar) a luz do sol enquanto distinguimos em

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Atividade em equipe e desenvolvimento por escrito

Em um grupo de dois ou três colegas de sala, escolham algumas canções do repertó-rio popular, brasileiro ou internacional, que sejam regravações de canções anteriormen-te lançadas. Há inúmeras canções que foram regravadas por artistas diferen-tes. Cada regravação envolve, de hábito, uma nova interpre-tação da canção original.

• Uma vez que o grupo te-nha definido uma ou mais canções para a pesquisa, cada membro da equipe deve pes-quisar, em casa ou na escola, uma versão da canção (ou das canções) escolhida(s). Utilizan-do-se de recursos informáticos, reúna-se novamente em classe e compare, com os colegas da equipe, as diferentes versões.

• Procurem então, em grupo, identificar com suas palavras o que é característico de

cada versão, de modo a formular um peque-no texto descrevendo as “vivências” origina-das pela mesma letra, pela sua melodia ou pelo arranjo.

Há inúmeros exemplos de canções que se tornaram objeto de reinterpretação, como boa parte do repertório da banda inglesa The Beatles (só para falar em artis-

tas brasileiros: Rita Lee lançou um CD cujas músicas são todas reinterpretações de canções dos Beatles, intitulado Bossa ’n’ Bea-tles, de 2002. Vale lem-brar também a conhe-cida reinterpretação de “Help”, de John Len-non e Paul McCartney, por Caetano Veloso, no álbum Jóia, de 1975).

Novas versões para velhas canções

Frank Sinatra (1915-1998) , cantor americano, apeli-

dado “a Voz”, reinterpretou canções de Tom Jobim.

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espí

rito

e le

tra pensamento, abstratamente, as suas

propriedades físicas. A atitude científica requer do investigador que ele procure se isentar de toda relação pessoal com o que investiga (o que, evidentemente, não significa que ele não possa afirmar que “ame” o que faz).

Todavia, não é necessário avaliar esse conflito de maneira apenas negativa, como se tivéssemos que escolher uma

Gadamer

Hans-Georg Gadamer

nasceu em 11 de feve-

reiro de 1900, em Mar-

burgo, na Alemanha.

Seu pai era professor

catedrático de química.

Estudou filosofia, filo-

logia clássica, história

da arte, literatura e teo-

logia nas universidades

de Breslau, Munique,

Friburgo e Marburgo,

onde foi aluno de M.

Heidegger, cujo pen-

samento se tornou uma influência decisi-

va para ele. Em 1933, tornou-se professor

de estética e de ética na Universidade de

Marburgo.

Depois, ensinou em várias universi-

dades na Alemanha, tendo sido reitor da

Universi dade de Leipzig logo após o fim da

Segunda Guerra Mundial. Faleceu em 13

de março de 2002.

Sua obra mais importante é Verdade e

método – Traços fundamentais de uma her-

menêutica filosófica (1960), na qual se vê a

dívida de Gadamer com as ideias de Hei-

degger. Dispomos da obra em portugês:

H.-G. Gadamer, Verdade e método – Tra-

ços fundamentais de uma hermenêutica filo-

sófica. Tradução: Flávio P. Meurer. Petrópo-

lis: Vozes: 1998.

AFP

vivência em detrimento da outra. Isso seria o mesmo que declarar impossíveis a coexistência entre culturas distintas e até mesmo as tensões internas a uma mesma época ou cultura. Seria o mesmo que ignorar que o sentido de alguma coi-sa ou o espírito de um discurso podem variar – enquanto a sua imagem ou a sua letra permanecem as mesmas – con-forme as diferentes épocas e culturas, bem como entre sociedades e indivíduos dentro de uma mesma época ou cultura.

A distância do passado: GadamerExaminaremos agora a posição de

Hans-Georg Gadamer, que, apropriando--se das reflexões de Schleiermacher e de Heidegger, sistematizou e aprofundou o campo filosófico da hermenêutica. Seu livro mais conhecido, Verdade e método, publicado em 1960 na Alemanha, é uma obra de grande importância para os estu-dos hermenêuticos.

Gadamer alinha-se a teses que já exa-minamos anteriormente, como, por exemplo, a ideia de que a interpretação do passado sempre finca raízes no presente. O “historicismo”, contra o qual já se levan-tara Nietzsche, será criticado por Gada-mer exatamente porque os “historicistas” creem que a distância temporal que nos separa do passado deve ser suprimida, como se ela pudesse desaparecer.

Mas, dirá Gadamer, não podemos su-primir o tempo que nos separa do pas-sado; nem, tampouco, deveríamos nos esforçar por fazê-lo, uma vez que só há sentido no passado a partir das leituras que o presente efetua sobre ele. Nesse aspecto, Gadamer se aproxima bastante da posição defendida por Nietzsche, dis-cutida acima.

Com efeito, as objeções que Nietz-sche levantara à “consciência histórica” reaparecem em Verdade e método. Gada-mer dirige uma crítica a quem pretende ser neutro diante do passado e da tra-dição. Pois essa suposta “neutralidade”

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rito

e le

tra

conduz a um resultado inesperado e contrário: ela ignora que qualquer apro-priação do passado é sempre marcada pela perspectiva atual do historiador. Embora possua motivos que Gadamer reconhece serem bem intencionados, a tentativa de neutralidade por parte do historicismo termina por conduzir a uma ideia equivocada sobre nossa rela-ção com a tradição.

Por que o historicismo é tão difundi-do e arraigado? Por exprimir uma ideia muito familiar. Conforme essa ideia, apenas o distanciamento aberto pela passagem de tempo confere isenção a nossos juízos. E uma coisa é verdade: apenas o tempo, reconhece Gadamer, pode nos fazer abandonar certos pre-conceitos, que distorcem as avaliações que efetuamos acerca de tudo o que é recente ou atual.

Gadamer fornece como exemplo disso nossa avaliação da arte moderna e con-temporânea. Você sabia, por exemplo, que os pintores impressionistas e, depois deles, os pintores do cubismo, que hoje em dia são muito reconhecidos e cujas te-las passaram a valer uma fortuna, foram mal compreendidos e mesmo despre-zados em sua época? Gadamer é ciente disso, e reconhece que os preconceitos da moda, por exemplo, muitas vezes comprometem a formação de um juízo adequado sobre o objeto em questão. Por isso também Gadamer compreende (em-bora critique) a atitude “historicista”, conforme a qual apenas a distância con-fere objetividade a nossos juízos.

Ocorre que o sentido verdadeiro de um texto ou obra de arte, diz Gadamer, jamais se esgota, sendo, antes, um pro-cesso infinito. Com isso, Gadamer se con-trapõe à tendência do “historicismo”. Seu argumento é o de que nossa relação com a tradição, com o passado, jamais chega

a um ponto fixo determinado, jamais atinge uma forma definitiva. E isso, sim-plesmente pela razão de que recriamos o passado, toda vez que nos debruçamos sobre ele. Eis o que significa dizer, como faz Gadamer em Verdade e método, que a “distância do tempo... se movimenta e se expande sem cessar”.

O passado vai se alterando, conforme se altera o presente. Eis algo que se pode constatar olhando para si mesmo. Nossa trajetória pessoal não é avaliada por nós de modos distintos, a depender do mo-mento em que nos encontramos? Isso, que já vale para o indivíduo, é tanto mais válido quando o assunto é o conjunto de relações existentes entre culturas e épo-cas diferentes.

Também no interior de nossa cultu-ra há maneiras diversas de interpretar os fenômenos. Pense, por exemplo, no enfoque oferecido a nós pelas ciências. Dificilmente você dirá que, por exemplo, a matemática e a história se orientam se-gundo a mesma compreensão dos fenô-menos que abordam.

A matemática, assim como outras ciências não por acaso denominadas ciências exatas, busca uma exatidão e objetividade que seria vão esperar das investigações históricas. Mas isso não significa que a história seja menos rigo-rosa do que a matemática. Há uma dife-rença entre elas, já que a ideia de rigor das ciências exatas não se aplica às as-sim chamadas ciências humanas. Como observou Heidegger, a matemática não é mais rigorosa do que a história, e sim apenas mais estreita do que ela. E note que a matemática é “mais estreita” não por ser deficiente, mas porque para en-contrar acesso aos seus objetos precisa deixar fora de jogo “o ponto de vista do observador”, sob o qual as coisas podem mudar de sentido e fazer história.

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unidade 7 eu e o outro

N ão há palavra que mais utilizemos na vida do que o pronome “eu”. Eu quero, eu

posso, eu faço. Na palavrinha “eu” parece caber um mundo inteiro: um mundo de sentimentos, pensamentos, desejos, lembranças, sonhos, vivências que cada um experimenta em si mesmo e que expressa ou não para os outros. Esse mundo interior do Eu parece imenso e mesmo infinito: cada um de nós pode imaginar realidades incríveis em sua mente.

O enigma do Eu e do Outro ..........197

O “Eu penso”: Descartes ................ 204

O Eu com o Outro .................... 207

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento ..... 212

A defesa da tolerância ................ 218

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Diego Velázquez (1599-1660), As Meninas (óleo sb/ tela, 1656)

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Uma cidade da região alemã em que

Kaspar Hauser foi encontrado, há dois

séculos, decidiu criar um monumento

ao ar livre em sua homenagem

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O “eu” é como um mundo interior, ao qual cada um tem acesso exclusivo. Caso eu assim decida, ninguém mais além de mim poderá saber o que penso ou sinto de verdade – pelo menos até inventarem uma máquina de ler pensamentos. Mas o “eu” também representa um limite desse mun-do interior, como se fosse a fronteira de um país. Ele só é interior e meu, porque me re-firo a mim mesmo como “eu”. Quer dizer, só posso dizer “meu sentimento”, “meu sonho”, porque sei diferenciar o mundo interno do mundo externo, o mundo das coisas que vemos e tocamos, assim como sei diferenciar o meu mundo interno dos mundos internos dos outros. O “eu” é o que marca essa diferença. Mas como eu apren-do a fazer isso? Eu sempre tive esse “eu”, com o qual eu distingo um mundo interno da realidade exterior?

E se eu não soubesse dizer “eu”? Quer dizer, se eu não soubesse o que significa “eu”? Você pode se perguntar: “Como é que

O enigma do Eu e do Outro

alguém não vai saber o que significa ‘eu’?”. Mas, reflita: os bebês não nascem dizendo “eu”. Normalmente eles falam “mamãe” e “papai”, e isso depois de algum tempo. Só mais tarde aprendem a dizer “eu”, e daí para frente não param mais. Isso é só por-que eles são bebês, porque eles ainda não se desenvolveram?

Vamos supor que alguém tenha cresci-do desde criancinha sem nenhum contato com outras pessoas. Esse indivíduo não viu ninguém por muito, muito tempo. Há casos assim na história da Humanidade. Você provavelmente já ouviu fábulas ou contos que também retratam essa situa-ção – a de uma criança abandonada e que cresce em completo isolamento.

Um dos casos mais famosos é narrado em um filme de Werner Herzog, intitulado O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha: 1974). O personagem principal, Kaspar Hauser, realmente existiu. Com aproxima-damente quinze anos, ele foi encontrado em uma praça, na cidade de Nuremberg, sem que ninguém soubesse dizer qual era sua origem. Tudo que se conseguiu desco-brir dele é que, até aquele momento, vive-ra preso em uma masmorra, praticamente sem contato com humanos.

O diretor Werner Herzog tomou esse fato real como base para o seu filme, mas exagerou na situação, criando uma per-sonagem fictícia de grande interesse para nossa questão sobre o eu e o outro. Veja-mos o que nos conta o filme.

Quando foi encontrado, Kaspar sabia falar pouquíssimas palavras, como: “ca-valo” e “Eu quero ser um cavaleiro como meu pai”. No quase completo isolamento em que viveu até os quinze anos, Kaspar alimentava-se de pão e água, que eram deixados em sua cela enquanto dormia. Não falava, tampouco andava. Nunca ha-via ficado de pé. Ele só tinha como com-panheiro um pequeno cavalo de pau. Um

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dia, um homem entrou na cela e o ensi-nou à força a escrever seu nome no papel.

Ele evidentemente não sabia o que es-crevia, não sabia que era seu suposto nome. Apenas imitava o que o homem escrevia no papel, assim como imitava aqueles sons: “cavalo” e “Eu quero ser um cavaleiro como meu pai”. Apenas “cavalo” ele entendia que era o brinquedo. Logo depois, aquele ho-mem o ensinou a ficar em pé e a andar. Em seguida, deixou-o sozinho na praça de Nu-remberg, com uma carta na mão.

A carta não contava o passado de Kas-par Hauser. Era uma justificativa por ter sido abandonado. Os habitantes da cidade só conheceram seu passado à medida que ele aprendia a falar. Ele se desenvolvia ra-pidamente, mas nunca conseguia se ajus-tar às convenções sociais, aos padrões de comportamento considerados normais. Um dia, Kaspar apareceu ferido no peito. E morreu algum tempo depois. Segundo os relatos oficiais, ninguém soube a origem do ferimento, nem seu autor. Curiosidade: chegou-se a supor que ele era neto de Na-poleão Bonaparte, imperador da França.

No filme de Herzog, há algumas coisas bastante interessantes para o nosso as-sunto. A primeira é que Kaspar não sabia quem era ele próprio. Além disso, o filme mostra que, nos seus primeiros contatos com os habitantes da cidade, Kaspar pas-

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Cena de O enigma de Kaspar Hauser, filme

de Werner Herzog realizado em 1974.

sava o tempo dormindo, como se não ti-vesse vontade de fazer coisa alguma. Ele era totalmente passivo.

Esse isolamento total havia privado Kaspar da capacidade de falar e, com isso, de se referir a si mesmo. É como se ele não tivesse um “eu”, justamente porque não havia um outro, um “você”, do qual ele po-deria se distinguir e com o qual ele poderia aprender a se referir a si mesmo. Somente quando aprendeu a falar, pôde contar sua história diferenciando-se dos demais.

Sem os outros, ele tampouco saberia diferenciar sonho e realidade, pois, se não havia um “eu” construído na experiência com o outro, o mundo interior não podia ser distinguido da realidade exterior. E como não havia esse “eu”, tampouco ele poderia se ver como um ser dotado de vontade, capaz de agir sobre as coisas. Ao contrário, ele acreditava que as coisas ti-nham vontade própria.

Outra coisa importante, conforme re-trata o filme, é o fato de que Kaspar en-contrava dificuldade em se ajustar às nor-mas da sociedade da época. Muitas vezes esse desajuste demonstrava o quanto es-sas normas, crenças e comportamentos eram absurdas, inexplicáveis, quando não hipócritas. No fim do filme, após a morte de Kaspar, os cientistas da cidade abrem seu cérebro e acreditam ter descoberto uma deformidade que explicaria a anor-malidade dele.

De um lado, a experiência de Kaspar da-ria a entender que, sem o contato com ou-tros seres humanos, não seríamos capazes de constituir nosso “eu”, base do desenvol-vimento de todas as nossas capacidades e condição para diferenciar o mundo interior da realidade exterior. De outro lado, essa experiência revela também como a relação com os outros pode ser marcada por vio-lência. Ao querer integrar Kaspar na vida social, os habitantes da cidade lhe impõem uma série de regras cuja razão de ser eles mesmos não sabem explicar muito bem. Kaspar percebe que o que os outros valo-

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nós mesmos conforme as maneiras pelas quais somos vistos pelos outros.

Isso significa que nossa visão de nós mesmos é bastante influenciada pela dos outros. Podemos rejeitar a imagem que os outros têm de nós, porém, mesmo assim, ela incide sobre a imagem que formamos de nós mesmos. Muitas vezes queremos ser como os outros, com os quais nos identificamos a partir de características que apreciamos de maneira especial. No entanto, frequentemente descobrimos que não somos como eles, e também que eles, eventualmente tomados como mo-delos, não são exatamente o que imaginá-vamos. Tudo se passa como se, de certo modo, nós tivéssemos inventado, em nós mesmos, a personalidade do outro.

Tudo indica que nossa personalidade, nossa identidade pessoal, não está, assim, desvinculada da relação com os outros. Essa personalidade é bastante influen-ciada por eles. É difícil estar bem conosco

A imagem que cada um faz de si mesmo

é influenciada pelo que os demais dizem

dele. Mesmo sozinho, o eu não existe sem

o outro.

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rizavam nele era ou a sua vida estranha ou seu aprendizado para ser “normal”. Em cer-to momento, porém, ele quer mostrar aos outros que é especial independentemente de sua vida estranha: ele toca piano.

A experiência de Kaspar é certamente rara e extrema. Sem o outro, ele não teria constituído seu “eu”, por isso não diferen-ciaria mundo interior e realidade exterior, deixando de desenvolver suas potenciali-dades físicas e intelectuais num momento decisivo da vida humana, a infância.

É ao longo da infância que o “eu”, em presença do outro, se constitui enquan-to indivíduo consciente de sua própria existência, em face dos padrões sociais vigentes. Ele constrói, assim, sua per-sonalidade: porém, conforme ele é inte-grado à sociedade e seu próprio eu vai se desenvolvendo, deve também passar a entender o comportamento dos outros e a assumir posturas autônomas e críticas.

A experiência de Kaspar nos ensina, assim, três lições importantes quando falamos do “eu” e do “outro”:

1. O “eu” surge em face do outro (o “tu”) e, por meio disso, estabelece uma distinção entre o mundo inte-rior e o exterior;

2. O “eu” é também uma maneira de ser. Isto é, o “eu” de cada um se re-fere também à personalidade, cons-truída sob a pressão da sociedade;

3. Uma vez que o “eu” se desenvolve, ele também se torna capaz de ques-tionar e criticar os outros.

O que é mais fácil: o saber de si ou a opinião sobre os outros?

Saber o que cada um é em sua perso-nalidade, em sua individualidade, não é fácil. É mais fácil dizer o que os outros são, pelo menos aparentemente, do que o que cada um é para si mesmo. Assim, dizemos que fulano é tímido, sicrana é orgulhosa, beltrana é corajosa, mas te-mos dificuldade em dizer de nós o que somos. Frequentemente, referimo-nos a

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o sem a aprovação dos outros, no que tange a nossas qualidades.

Às vezes, a busca dessa aprovação pode causar transtornos. Podemos ser identificados por aquilo que nos difere dos outros, mas também podemos bus-car identificação com outros a partir de traços comuns. Assim, igualamo-nos a outros indivíduos a partir de algumas características. Nesse caso, o eu e o ou-

tro formam um “nós”, um grupo cuja identidade se estabelece a partir de tra-ços comuns.

O “nós” de um grupo parece às vezes ser um “eu” formado de muitos “eus”. E assim como o eu individual marca uma diferença em relação a outros eus indivi-duais, o “nós” coletivo marca uma dife-rença em relação aos outros “nós” coleti-vos. Por exemplo, os torcedores de uma

Pedinte ou príncipe por um dia

Desenvolvimento individual por escrito

Na Unidade Realidade e aparência, módulo “A realidade da aparência”, comenta--se a importância que as aparências possuem na vida social. As imagens que fazemos dos outros e que apresentamos de nós mesmos decidem muitas coisas em nosso cotidiano. Esse tema é largamente explorado em nar-rativas em que há troca de papéis, como no romance de Mark Twain (1835-1910), O prín-cipe e o mendigo (Tradução: R. Eichehnberg. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007). A história é sobre um príncipe que toma o lugar de um garoto muito pobre, e viceversa – e ambos se veem, de um momento para outro, em si-tuações completamente diferentes daquela habi tual, embora permaneçam sendo cada qual a mesma pessoa, o mesmo indivíduo.

Imagine, porém, que os papéis permane-çam trocados por um longo período e não apenas um dia. Os dois indivíduos – o men-digo transformado em príncipe e o príncipe, em mendigo – terminariam por se transfor-mar interiormente ou não?

• Em dupla com um colega, discuta essa situação imaginária da troca de papéis so-ciais, e, com base em razões debatidas por vocês, respondam se a troca de papéis alte-

ra ou não o que somos “interiormente”. Para enriquecer o debate, busque, na biblioteca ou na internet, casos nos quais repórteres simularam ser pedintes por algum tempo, colocando-se no lugar deles. São relatos dramáticos que põem em primeiro plano as questões que estamos examinando.

• Ao fim, redija uma redação de no má-ximo duas páginas, na qual você irá apre-sentar o problema da relação entre “eu in-terior” e “imagem exterior” para, em segui-da, exprimir sua posição sobre o assunto: o “eu” é ou não determinado pela imagem que produz sobre os outros? Em caso posi-tivo, em que medida?

Ilustração de Frank T. Merrill (1848-1923) para a

primeira edição do romance

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equipe esportiva em face dos torcedores de outras equipes; ou os brasileiros em face de outros povos.

A vida em grupo é praticamente inevi-tável. É a maneira pela qual a humanida-de se socializa. Mas a vida em sociedade traz consigo um conjunto de questões. Um dos problemas reside em saber até que ponto a pertença ao grupo não fere a individualidade e a capacidade crítica de cada um, o que resultaria em homo-geneidades grupais opressoras; outro problema é saber discernir até que ponto diferenças identitárias legítimas não são convertidas em pretexto para manifesta-ções de intolerância.

Certa vez, um professor de história nos Estados Unidos foi questionado por seus alunos a respeito da adesão do povo alemão ao nazismo e às ideias de Hitler – responsável pelo extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e opositores políticos em geral.

Os alunos não acreditavam que todo um povo, com uma cultura tão rica como a alemã, tivesse podido concordar com um dos maiores horrores da histó-ria da humanidade. O professor resol-veu, então, fazer um experimento com

seus alunos. Essa história é contada no filme A onda, de Alexander Grasshof, realizado em 1981 nos Estados Unidos (há também, com o mesmo título, uma refilmagem alemã de 2008 dirigida por Dennis Gansel).

O primeiro passo do professor foi en-sinar aos alunos que eles se tornariam “especiais”, “fortes”, desde que tivessem disciplina e dedicação ao grupo, à “co-munidade”. Todos, na esfera do grupo, deveriam buscar igualar-se e, na esfera da comunidade, conquistar respeito por participar do grupo, que ele denominou de “A onda”.

Com isso, aqueles que se sentiam me-nos valorizados no colégio logo aderiram ao grupo. Em seguida ele criou um em-blema para o grupo e um gesto de sauda-ção – e todos os alunos envolvidos se em-polgaram com esses sinais identitários, que os tornavam especiais aos olhos de si e da comunidade.

Aqueles que discordavam do professor ou do grupo passaram a ser tratados como inimigos e a ser perseguidos. O profes-sor passou a ser tratado como um líder, a quem os membros do grupo deveriam oferecer a mais completa obediência. Por

Juventude hitlerista em Berlim, 1943 (fotógrafo desconhecido). O filme A onda reconstitui o fenô-

meno semelhante ao representado pelo nazismo na Alemanha.

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fim, o professor marcou uma reunião de todo o grupo para que fosse anunciado o verdadeiro líder, o líder nacional, daquele movimento. Ele iria aparecer em um fil-me. Você já deve ter adivinhado quem apareceu na tela: o próprio Hitler. Esta foi a resposta do professor à questão de como todo um povo pode ser cúmplice do exter-mínio de milhões de pessoas.

Essa experiência do professor, bastan-te radical, ilustra como é possível que, em casos extremos, cada um sacrifique sua in-dividualidade em favor do grupo, ao mes-mo tempo em que o grupo se forma na di-ferenciação em face de outros grupos.

Cada um passa a ser valorizado porque é igual aos demais membros do grupo, e o grupo inteiro é valorizado internamente porque difere dos outros.

O que há de comum ao “eu” e ao “outro”

Igualdade ou identidade de um lado, diferença ou alteridade de outro. Observe,

porém, que a diferença, no caso do filme A onda, é pensada em termos de hierar-quia social: o grupo arroga-se superiori-dade e a impõe pela força, beneficiando--se da passividade e da não-organização da comunidade em que se encontra ins-crito. Visto que resistências individuais a um grupo organizado e violento costu-mam ser ineficazes, a ideologia violenta do grupo termina prevalecendo sobre os demais, tanto no filme quanto, às vezes, na vida real.

Porém, é possível ser igual e diferente dos outros ao mesmo tempo, e sem a pre-valência de hierarquias? A pergunta tam-bém pode ser colocada a partir da pers-pectiva do outro: o outro pode ser igual e diferente de mim ao mesmo tempo, sem que esteja em jogo quem é melhor?

Em que sentido podemos ser iguais aos outros? Podemos ser iguais em di-versos aspectos. Se o outro é um mem-bro da mesma família, é evidente que há aí uma igualdade ou uma comuni dade

Arendt

Hannah Arendt (1906-1975)

foi uma das filósofas mais

importantes do século XX. Foi

aluna de Martin Heidegger na

Universidade de Marburgo e

de Karls Jaspers na Universi-

dade de Heidelberg.

Com a ascensão do nazismo,

Arendt, assim como tantos

intelectuais alemães de ori-

gem judaica, viu-se obrigada

a fugir para proteger a pró-

pria vida. Emigrou primeiro

para a França, depois para

os Estados Unidos, onde viveu e lecionou a

partir de então.

Arendt refletiu profundamente sobre o fe-

nômeno do totalitarismo. O totalitarismo,

conforme a autora, é o fenômeno mais

radical e violento dentre os casos em que

o indivíduo desaparece no

grupo social que o envolve.

Arendt assinala que o nacio-

nal-socialismo, que imperou

na Alemanha entre 1933 e

o fim da Segunda Guerra

Mundial, buscou aniquilar a

individualidade característi-

ca dos seres humanos.

Em última análise, é essa

ideologia o que, segundo

Arendt, explica por que os

prisioneiros (em sua gran-

de maioria, judeus) dos

campos de extermínio nazistas quase não

reagiam a seus algozes, mesmo sabendo

que nada tinham a perder: eles já haviam

sido destituídos de sua personalidade in-

dividual, sem a qual nenhuma ação ou re-

ação humana é possível.

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de família. Se o outro é um brasileiro, há uma igualdade ou uma comunidade de cidadania, de cultura, de língua etc. Se o outro é um ser humano, há uma igual-dade na humanidade comum a ambos.

Você já pôde perceber pelos seus livros de História que nem sempre os seres huma-nos se entenderam como iguais, possuido-res dos mesmos direitos e deveres. Na Ida-

de Média, por exemplo, as sociedades eram fortemente estratificadas. Um nobre não podia ser tratado da mesma maneira que um camponês ou um trabalhador da cidade.

Os direitos de cada um eram bem dife-rentes. A ideia de que todos os seres hu-manos são pessoas dotadas dos mesmos direitos demorou para surgir na História, e isso só se deu com muitos conflitos.

A desaparição do eu na coletividade

Desenvolvimento individual por escrito

A relação entre o indivíduo e o grupo do qual ele é parte pode assumir uma forma negativa, ameaçando aquilo que singulariza uma pessoa em comparação com as demais. De fato, um grupo habi-tualmente exige que nos comportemos como todos os indivíduos que participam dele, contrariando nossas vontades par-ticulares em favor de um comportamen-to coletivo, de “massa”. Até certo grau, isso é aceitável e constitui um elemento da vida em sociedade. Entretanto, há situações extremas, em que as pessoas se sentem destituídas de sua individua-lidade por se encontrarem no interior de uma massa de indivíduos.

• Produza um texto de pequena ex-tensão comentando essas situações ex-tremas, em que o eu “desaparece”, por assim dizer, no grupo. O trecho abaixo trata diretamente deste assunto, investi-gando o que certamente representa a si-tuação mais radical do desaparecimento do eu em uma coletividade. Trata-se de um trecho de As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt (1906-1975). Uma alternativa na elaboração da reda-ção consiste em tomar o caso dos cam-pos de extermínio nazistas, analisado por Arendt, e apontar o conjunto de práticas ali instituídas que conduziram, na visão

da autora, à destruição da personalidade individual dos prisioneiros.

Eis o texto de Hannah Arendt:“É possível que se descubram leis da psi-

cologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carras-cos, de que raramente havia uma revolta séria e de que, mesmo no momento da li-bertação [pelos aliados que derrotaram a Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em 1945], houve poucos massacres es-pontâneos de homens da SS [o comando de elite nazista, que dirigia os campos de extermínio]. Porque destruir a indivi-dualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base da reação ao ambiente e aos fatos. Morta a individu-alidade, nada resta senão horríveis mario-netes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte.” (Arendt, As origens do totalitarismo. Tradu-ção: Roberto Raposo. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2007, p. 506)

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Junto com essa ideia de pessoa, surgiu também a noção de que cada indivíduo poderia ter a vida que quisesse, desde que não afetasse a vida e os direitos dos outros. Assim, tornou-se possível que as pessoas desenvolvessem no interior de uma mesma sociedade formas de vida bastante diferen-tes. Isso também ocorreu (e ocorre ainda hoje) de maneira conflituosa. Ser igual em direitos possibilita, assim, ter o direito à diferença. Portanto, essa é uma maneira de ser igual e diferente ao mesmo tempo, e sem prevalência de hierarquias.

Voltemos a Kaspar Hauser. Vimos que à medida que se desenvolve e forma um “eu”, ele também se torna capaz de ques-tionar os padrões de comportamento dos outros e de realizar escolhas diferentes das que lhe são impostas. A recusa de pensar o que os outros pensam é muito importante – e também muito difícil. Se o eu surge em contradição com o outro, se ele aprende a diferenciar o mundo inte-rior do mundo exterior, ele pode também refletir distanciadamente sobre o mundo exterior, dos outros, e julgá-lo com maior liberdade. Se em face do outro há a possi-

bilidade do desenvolvimento do eu, com sua respectiva constituição, há a possibi-lidade de se criticar o outro.

Vamos retomar brevemente o que discutimos até aqui:

O “eu” é um mundo interior que cada um aprende, na relação com o outro, a di-ferenciar do mundo exterior.

O “eu” se refere à personalidade, à in-dividualidade de cada um. E o desenvolvi-mento dessa personalidade também de-pende da relação entre o “eu” e os outros. A maneira como o “eu” é visto pelos ou-tros, por exemplo, é um fator importante de seu próprio desenvolvimento.

Na relação entre o “eu” e o “outro”, é possível estabelecer relações de igualda-de e diferença, marcadas pelo reconheci-mento de equivalências e de contrastes entre os indivíduos.

Tais identidades e diferenças podem ser criticadas pelo “eu”, na medida em que ele é capaz de se distanciar dos ou-tros e de suas maneiras de pensar. A pos-sibilidade de crítica e de reflexão é dada com a diferenciação do eu em relação ao outro e ao mundo exterior.

O “Eu penso”: Descartes

“Penso, logo existo.” Essa é uma ideia muito conhecida de René Descartes[+] (1596-1650), que admite muitas abor-dagens devido à sua relevância filosófica. Por isso, deparamos com ela noutra parte desse livro, na Unidade Dúvida e certe-za (módulo: “Duvidando para atingir a certeza”). A seguir, discutiremos a mesma ideia, mas destacando aspectos um pouco diferentes. Interessa-nos aqui examinar a relação entre o “eu penso” de Descartes com a questão da alteridade, do “outro” que se distingue do “si mesmo”.

Você pode talvez achar estranho que alguém diga que exista porque pensa. Não seria antes o contrário: eu existo, logo eu penso? Basta você refletir um pouco e no-

tar que, para dizer “eu existo”, eu preciso pensar que eu existo. O pensamento tem de vir antes se você quiser provar que existe . Para provar qualquer coisa, diria Descartes, você tem de partir de você mes-mo, de seus próprios pensamentos. Isso significa que você tem de partir do seu “eu”.

A expressão de Descartes é: eu penso, logo eu existo. Não se trata de dizer “Deus me criou, logo eu existo”; “Meu corpo exis-te, logo eu existo”. Ou seja, não se trata de dizer que há alguém e algo, logo eu existo. Pois, para dizer essas coisas, eu preciso pen-sar que há alguém ou há algo – e de novo o eu e seus pensamentos se mostrariam an-teriores na ordem da prova, na ordem da demonstração de minha existência.

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Além disso, para dizer que “Deus” ou “corpo”, ou ainda “natureza”, “mundo”, ou qualquer outro ser seja a razão de mi-nha existência, eu precisaria provar que esse outro ser existe. E para provar isso, primeiramente só posso recorrer aos meus próprios pensamentos.

Com isso, Descartes estabelece, antes de tudo, um caminho para refletir sobre qualquer coisa. Esse caminho é dado por esse “eu”. E o começo desse caminho tem de ser a certeza de que o “eu” existe, quer dizer, que “eu existo”. Conforme Descartes, é apenas provando minha existência, antes de tudo, que posso, em um segundo mo-mento, provar a existência de outras coisas e outros seres.

Vejamos agora como ele chega a essa primeira certeza, essa primeira verdade. No início da Quarta Parte do Discurso do método, lemos:

“Decidi fazer de conta que todas as coisas que tinham até esse momento entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus so-nhos. Mas, imediatamente em seguida, percebi que, enquanto queria pensar que tudo era falso, era necessário que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. E,

notando que essa verdade – eu penso, logo eu existo – era tão firme e assegu-rada que nem as mais extravagantes su-posições dos céticos poderiam abalá-la, julguei que podia aceitá-la sem receios como sendo o primeiro princípio da fi-losofia por mim buscado.” (Descartes, Discurso do método. Tradução nossa. Edição de referência: Pairs: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. VI, p. 32)

A exclusão provisória do “outro” por parte do “eu”

Eis aqui o contexto do famoso “penso, logo existo”. Em latim, diz-se: cogito ergo sum. Com o “cogito”, com o “eu penso”, Des-cartes demonstra a impossibilidade, para alguém que duvida de todas as coisas, de colocar em dúvida a sua própria existência.

Usando o pronome pessoal da primei-ra pessoa singular, “eu”, Descartes afirma aqui três coisas importantes:

1. sua decisão em duvidar de toda rea-lidade, que ele considera não sendo “mais verdadeira” que o sonho;

2. ao fazê-lo, porém, Descartes se dá conta de que a convicção de que “tudo era falso” supõe pelo menos uma ver-dade: a de que eu, enquanto penso que tudo é falso, existo ao pensá-lo;

3. assim, minha existência enquanto pensamento equivale ao “primei-ro princípio da Filosofia”, expresso pelo enunciado “eu penso, logo exis-to”. Pois é verdadeiro que existe algo que pensa (= eu), mesmo se for ape-nas para pensar que tudo é falso.

Na consideração de Descartes, o “eu” significa, portanto, a coisa que é primei-ramente conhecida, quando se tenta co-nhecer algo “com firmeza e certeza”.

Há um ponto interessante nesse argu-mento. A crer em Descartes, a primeira verdade só pode ser obtida na ocasião em que se duvida de todas as coisas. A única exceção reside no próprio eu, que não pode colocar a si mesmo em dúvida.

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Ilustração do Tratado do homem

(1664), de Descartes. Além do eu como

pensamento, Descartes também refletiu

sobre o eu como alma unida a um corpo.

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Nessa experiência de pensamento, o eu é para si mesmo o mais indubitável e certo. Mais ainda, a conquista dessa primeira verdade, que é a da existência do próprio eu, exige como uma de suas condições a dúvida dirigida contra tudo que não é o “eu”, ou seja, a exclusão (ao menos provisória) de todo outro possí-vel. Não que Descartes vá duvidar sem-pre que esse outro (ou todo outro ser) exista. O importante é que só posso ter certeza primeiramente da minha pró-pria existência. Posso duvidar, de início, que tudo mais não exista – Deus, mun-do, todos os outros seres humanos. Mas não posso duvidar de que eu exista, pois como poderia duvidar disso, se para du-vidar é necessário que eu exista? Como duvidar significa pensar, então só resta afirmar: “penso, logo existo”.

Sob essa perspectiva, a descoberta da primeira verdade é uma experiência soli-tária. Esse “eu” que prova sua existência é absolutamente solitário. Tudo que se pos-

tulava existir antes – Deus, mundo, todos os outros seres humanos – pôde ser afas-tado do pensamento como mera ilusão, como sonhos, pois posso perfeitamente duvidar da existência deles. Isso significa dizer que eu não preciso de nenhum ou-tro, semelhante a mim (um outro ser hu-mano) ou diferente de mim (Deus), para provar minha existência. Além disso, eu não preciso deles para saber o que eu sou. Pois se tenho certeza de minha existência na medida em que penso, então, antes de tudo sou uma coisa pensante, um ser cuja essência é o próprio pensamento.

Assim, a primeira verdade da filosofia cartesiana e o primeiro conhecimento que o eu tem de si mesmo estão intima-mente ligados à experiência de um eu absolu tamente solitário, que independe dos outros para comprovar sua existên-cia. O eu está sozinho – e nem podemos dizer que es tá sozinho no mundo, pois a existência do mundo não foi ainda de-monstrada.

A crítica de Pascal ao eu cartesianoDesenvolvimento individual por escrito

Leia a seguir uma passagem de Blaise Pascal (1623-1662) a respeito do “eu” e sua relação com os outros:

“O eu é detestável. Ele possui duas características: é em si injusto, por se co-locar no centro de tudo; é incômodo aos outros, por querer subjugá-los, pois cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros” (Blaise Pascal. Pensa-mentos. Tradução nossa. Edição de refe-rência: Pascal, Oeuvres complètes [ed. La-fuma] Paris: Seuil, L’Intégral, 1963, § 597)

• Com base nessa passagem e naquilo que examinamos acerca do “eu” de Des-cartes, redija um texto de no máximo duas

páginas propondo uma comparação entre Pascal e Descartes em relação a esse tema. Atente para o fato de que Pascal critica o desejo do “eu” de ser o centro de tudo. Ao fazê-lo, Pascal volta-se contra o “penso, logo existo” cartesiano. Considere, entre-tanto, as razões de Descartes: se o “eu” não corresponde ao primeiro princípio do saber, o que mais – isto é, qual “alteridade” – poderia substituí-lo neste papel?

• Examine alternativas, tome uma posi-ção pessoal sobre o assunto. Leve também em conta a seguinte questão: se o primeiro princípio do saber reside em um “outro”, o que poderia ser dele, caso não fosse reco-nhecido pelo “eu”? E, se o “outro” depende do “eu” para ser reconhecido, qual dos dois possui, de fato, primazia?

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O Eu com o Outro

Ao buscar um princípio de conheci-mento seguro, René Descartes[+] (1596-1650) foi levado a duvidar de tudo. Mas não podia duvidar de sua própria existên-cia enquanto um ser pensante. A certeza da própria existência constitui a primeira verdade cartesiana – um eu que se afirma quando tudo mais parece incerto. Mas: será mesmo possível um pensamento comple-tamente isolado do mundo, como queria Descartes? Afinal de contas, é possível um “eu” sem um “tu”, sem um “nós”? Quando digo “eu penso, eu quero, eu afirmo”, não estou dizendo isso para um outro, um “tu” ou “você”? O próprio livro de Descartes o demonstra: pelo seu texto, o autor se dirige a um leitor possível, a nós mesmos.

Em meados do século XX, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) pensou a re-lação entre o eu e o outro a partir de no-vas bases, bem diferentes daquelas pre-sentes na meditação de Descartes.

Vejamos um texto em que Mer leau- -Ponty apresenta essa relação:

“Não vivemos a princípio na cons-ciência de nós mesmos, mas na expe-riência do outro. Só sentimos que existi-mos depois de já ter entrado em contato com os outros, e nossa reflexão é sempre um retorno a nós mesmos que deve mui-to à nossa frequentação do outro. Um bebê de poucos meses já tem habilidade suficiente para distinguir a simpatia, a raiva e o medo no rosto do outro, num momento em que ainda não poderia ter aprendido, pelo exame de seu próprio corpo, os sinais físicos dessas emoções. E o adulto descobre na sua própria vida o que a sua cultura, o ensino, os livros, a tradição lhe ensinaram a ver nela. Nosso contato conosco sempre se faz por meio de uma cultura, pelo menos por meio de uma linguagem que recebemos de fora e que nos orienta para o conhecimento

de nós mesmos. De modo que, afinal, o puro si-mesmo, o espírito, sem instru-mentos e sem história, só se realiza, em liberdade de fato, por meio da lingua-gem e participando da vida do mundo.” (Merleau-Ponty. Conversas – 1948. Orga-nização e notas Stéphanie Ménasé. Tra-dução de F. Landa e E. Landa. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 48-49)

De forma concisa, a tese defendida por Merleau-Ponty é a seguinte: a relação de cada um consigo mesmo é mediada pela “experiência do outro”, a relação com ou-trem é constitutiva do conhecimento que cada um tem de si mesmo.

Perceba agora como ele explica essa tese, recorrendo aos comportamentos do bebê e do adulto como exemplos da experiência de si mesmo tornada possível pela relação de le com outrem. O bebê rea ge às emoções de sua mãe antes de ter consciência de suas próprias emoções; o adulto descobre em sua própria vida aquilo que já lhe fora trans-mitido e ensinado por outros. Ninguém se encontra consigo mesmo senão a partir do que percebe no rosto e na palavra de outrem. Isso significa que há uma história do eu, que este se desenvolve ao longo de idades, em constante referência (“frequen-tação”) ao outro, próximo ou distante, que vem ao seu encontro no mundo.

Segundo Merleau-Ponty, isso deve va-ler sobretudo para o “puro si-mesmo”, aquele mesmo eu puro com que Descartes se identifica ao duvidar de todas as coisas e, assim, pretender suspender em pensa-mento a vinculação dele com o mundo e os outros. Para Merleau-Ponty, até mesmo o eu que, por meio da dúvida mais radi-cal, se tornou “sem história”, rompendo com seus antepassados e seus contem-porâneos, constitui-se como tal apenas historicamente, na coexistência com aque-les de quem ele se aparta na reflexão.

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Ele tem a “vida do mundo” como ponto de partida insuperável de seu desenvolvi-mento. Quer dizer, é um ponto de partida que não pode simplesmente ser deixado para trás, pois possibilita e condiciona, em cada eu, a tentativa de abandonar o mundo na direção de si mesmo. Por isso, em refe-rência explícita a Descartes, Merleau-Ponty afirma numa de suas obras mais importan-tes, a Fenomenologia da percepção (1945):

“Mesmo a meditação universal que corta o filósofo de sua nação, de suas amizades, de seus preconceitos, de seu ser empírico, em uma palavra, do mundo, e que parece deixá-lo abso-lutamente só, na realidade é ato, fala, por conseguinte diálogo. Em seu reti-ro reflexivo, o filósofo não pode dei-xar de arrastar os outros porque, na obscuridade do mundo, ele aprendeu para sempre a tratá-los como com-panheiros de sorte, e porque toda a sua ciência está construída sobre este dado de opinião.” (Merleau-Ponty, Fe-

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Caspar David Friedrich (1774-1840) é o mais

conhecido pintor do Romantismo alemão,

que exaltou a solidão humana diante do

universo (O viajante sobre o mar de névoa,

detalhe, óleo sb/ tela, 1818).

nomenologia da percepção. Tradução de C. A. Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 484-485)

O que faz com que, ao retirar-se do mundo para si mesmo, o filósofo inevi-tavelmente “arraste os outros”? Se, como pensa Merleau-Ponty, a sua solidão não é possível sem a companhia dos outros homens, como estes poderiam estar presentes à reflexão solitária do filósofo sobre si, dado que, nessa reflexão, este pretende ter suspendido os vínculos que o prendiam a todos os demais?

O “eu penso” supõe um diálogoSe notarmos bem, as linhas que aca-

bamos de ler indicam uma resposta mui-to interessante para essa difícil questão.

Por meio dos exemplos propostos por Merleau-Ponty, já vimos que a coe-xistência com os outros constitui o pon-to de partida de todo possível encontro do eu consigo mesmo: é somente a par-tir da “experiência do outro” que posso voltar-me para mim, a fim de reconhe-cer, com certeza, que eu mesmo existo.

Resta, porém, esclarecer como é possível que essa relação entre o “eu”e o “outro” permaneça ativa na reflexão pretensamente mais isolada, no cogito de Descartes.

De que modo o outro está “entra-nhado” no eu que pretende se isolar de todos? Retomemos alguns pontos do trecho citado de Merleau-Ponty: “Nosso contato conosco sempre se faz por meio de uma linguagem que recebemos de fora e que nos orienta para o conhecimento de nós mesmos”. E também: “Mesmo a meditação universal que corta o filósofo do mundo, e que parece deixá-lo absolu-tamente só, na realidade é ato, fala, por conseguinte diálogo” (grifo nosso).

A linguagem que se usa e a fala que se pratica testemunham a presença do outro no pensamento por meio do qual o filóso-fo procura separar-se do mundo.

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Aos olhos de Merleau-Ponty, Descar-tes não poderia compreender-se a si mes-mo sem falar, e falar implica pelo menos duas coisas:

1. retomar as palavras legadas por ou-tros para construir um discurso pró-prio, uma fala própria;

2. dirigir-se a outrem como destina--tário desse discurso, dessa fala.

Do ponto de vista de Merleau-Ponty, Descartes pode pretender estar isolado do mundo, mas ele ainda fala a alguém, e o faz com palavras “que recebe de fora”. Essa dupla referência ao outro é parte essencial do discurso cartesiano – como, aliás, de todo discurso.

Por isso, é apenas em aparência que a reflexão radical sobre si deixa o filósofo

absolutamente só. Ao pôr em dúvida a existência de tudo e de todos por meio de um pensamento que fala, isto é, mediante um discurso, o filósofo “arrasta os outros” consigo mesmo para a sua solidão.

Assim, o fato de que o pensamento de-pende do discurso impede a possibilidade de uma reflexão em que o eu esteja com-pletamente isolado dos demais. Para con-seguir retirar-se numa solidão absoluta, rompendo todo possível vínculo com ou-trem, o filósofo precisaria não fazer nada e, principalmente, permanecer calado e, pior, deveria (se isso fosse possível) deixar de ter pensamentos.

No fundo, a solidão experimentada pelo eu na reflexão filosófica constitui mais um modo de relação ou coexistência

Get

ty Im

ages

Merleau-PontyMaurice Merleau-Ponty (1908-

1961) nasceu em Rochefort-sur-

-Mer, na França. Formou-se na

Escola Normal Superior de Paris,

foi professor de liceu, serviu no

exército francês durante a Segunda

Guerra Mundial. Em 1949, tor nou-

se professor na Sorbonne e, em

1952, ingressou no Colégio de Fran-

ça, a instituição mais prestigiada do

universo acadêmico daquele país.

Merleau-Ponty iniciou sua carreira filosófica

sob influência da fenomenologia de Edmund Hus-

serl (1859-1938), mas criou uma versão própria

dela ao sublinhar a importância da percepção.

Suas obras são decisivas para a compreensão da

trajetória da filosofia na França ao longo do século

XX. Merleau-Ponty foi muito próximo de grandes

figuras do universo científico e cultural de sua

geração. Atuou com Jean-Paul Sartre na revista

Temps modernes entre 1945 e 1952 (tendo porém

rompido com ele adiante, por divergências políti-

cas). Era muito próximo de Jacques Lacan (1901-

1981) e de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Eis duas das obras mais importantes de Merleau

Ponty traduzidas para o português:

• M. Merleau-Ponty, O olho e o es-

pírito. Tradução: P. Neves e M. Er-

mantina G. G. Pereira. São Paulo:

Cosacnaify, 2004.

• M. Merleau-Ponty, Fenomenolo-

gia da percepção. Tradução: C.

A. Ribeiro de Moura. São Paulo:

Martins Fontes, 1999.

Sobre Merleau-Ponty, vale con-

sultar:

• Marliena Chauí, Experiência do pensamento.

Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São

Paulo: Martins Fontes, 2002.

Como apresentação da obra do filósofo, veja,

também de M. Chauí, seu artigo publicado na

Revista Cult (número 123) “Merleau-Ponty: a

obra fecunda”, disponível em: http://revistacult.

uol.com.br/home/2010/03/merleau-ponty-a-

-obra-fecunda.

Confira também o capítulo redigido por Luiz

Damon Moutinho, “Merleau-Ponty: entre o corpo

e a alma”, na Antologia dos textos filosóficos (org.

Jairo Marçal, Curitiba: SEED-PR, 2009, pp. 490-515.

A obra está disponível na internet).

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A linguagem privadaDebate em sala de aula

Um aspecto decisivo da crítica que Mer leau-Ponty dirige ao isolamento do cogito cartesiano está no fato de que, para Merleau-Ponty, os indivíduos coexistem unidos pela linguagem e por um mundo comum. A linguagem, conforme Merleau--Ponty, é essencialmente intersubjetiva, o que significa que, através dela, cada um de nós está sempre em relação com os demais, sem que se possa, por isso, en-contrar uma experiência completamente individual e subjetiva, na qual o “eu” es-teja destituído de toda relação com o ex-terior e, assim, com o “tu” e o “ele” que o atravessam.

Vejamos, então, este ponto mais de per-to. Você já tentou alguma vez escrever em um código secreto, de modo que ninguém mais pudesse entender o que você escre-veu? Por exemplo, um diário cuja escrita ninguém mais entenderia além de você. Nesse caso, você teria inventado uma lin-guagem própria. Mas é provável que você tenha apenas inventado novas palavras ou utilizado de modo diverso as palavras da sua língua. Aí, você apenas traduziu a sua língua materna, o português, para seu có-digo pessoal. Por exemplo: em vez de “es-tou em casa”, você escreve no diário “toues me saca”.

Porém e se em vez desse código de tradução você realmente inventou pala-vras novas, por exemplo, para todos os ti-

pos de dores que já sentiu? As sensações são normalmente difíceis de comunicar porque elas não são tão identificáveis quanto os objetos exteriores, como uma caneta, um caderno etc. Suponha, então, que para cada tipo de dor você inventa uma palavra inteiramente nova. Nesse caso, você teria inventado uma lingua-gem privada, absolutamente pessoal, desde que não fosse compartilhada com absolutamente ninguém.

Mas é mesmo possível usar uma lin-guagem privada? Os registros dessa lin-guagem, caso descobertos, poderiam ser decifrados? Em caso afirmativo, o que isso implicaria? E em caso negativo?

• Debata a hipótese do uso de uma linguagem privada com seus colegas. Investigue com eles, por exemplo, se os parâmetros aplicados à linguagem habi-tual poderiam ser transpostos para essa linguagem privada hipotética. Como, por exemplo, saberíamos apontar para o uso adequado ou não dos termos nessa lin-guagem?

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O escritor húngaro Géza Gárdonyi (1863-1922)

tomava notas criptografadas em seu diário, que

só foi decifrado em 1965, por ocasião de um

concurso organizado com esse fim

com o outro. Contra ou a favor da intenção mais própria de Descartes, o cogito seria, portanto, um diálogo.

Podemos agora formular com mais cla-reza a diferença entre a posição de Mer-leau-Pon ty e a de Descartes quanto ao

modo de pensar a relação entre o eu e o outro. Para Merleau-Ponty, o eu sempre se dirige a outrem, ele se constitui na relação com o outro. Diferentemente de Descar-tes, que pensa a partir de uma oposição ra-dical entre o eu e o outro, Merleau-Ponty

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UMA LINGUAGEM PARA ALIENÍGENAS?

Na vertente oposta à de uma linguagem privada,

o ser humano concebeu, nas últimas décadas, al-

gumas mensagens para que fossem decifradas...

por alienígenas. Pense bem: não é fácil formular

uma mensagem a ser comunicada entre espécies

que mutuamente se desconhecem por completo

– incluindo aí um grande problema a resolver: que

língua deve ser usada para levar a mensagem?

Na década de 1970, cientistas buscaram resol-

ver essa questão de diversos modos. As sondas

Pioneer 10 e 11, lançadas para a exploração dos

planetas do Sistema Solar respectivamente em

1972 e 1973, levam uma placa metálica cada, em

que são representados pictoricamente a própria

sonda ao lado de uma mulher e de um homem,

além de algumas informações sobre o planeta

Terra. A ideia é que, terminadas suas missões

principais, as sondas (que já saíram do Sistema

Solar) eventualmente poderiam ser intercepta-

das por outra espécie de vida.

Outro projeto envolveu enviar, num compartimen-

to especial das sondas Voyager 1 e 2 (lançadas em

1977), um disco metálico que funciona como um

tipo muito sofisticado de LP: gravadas em sua su-

perfície – codificadas em som, com as respectivas

instruções para decodificação – há dezenas de

imagens que caracterizam nosso sistema planetá-

rio, nosso planeta e nossa vida aqui; além disso, o

disco contém sons típicos do planeta Terra, sauda-

ções humanas em 59 línguas, ondas cerebrais de

um ser humano e 27 músicas, do folclórico ao clás-

sico e ao rock ’n’ roll (os cientistas, é claro, tiveram o

bom senso de enviar uma vitrola junto).

O problema dessas mensagens é que a proba-

bilidade de que um dia sejam encontradas é

muito próxima de zero: de fato, esgotadas as

suas fontes de energia, as sondas já não emiti-

rão qualquer sinal eletromagnético, o que torna

sua descoberta e localização quase impossível,

na imensidão do espaço.

Um esforço diferente foi o de conceber e enviar

uma mensagem justamente por meio de ondas

eletromagnéticas. Cientistas norte-americanos

usaram o radiotelescópio de Arecibo (em Porto

Rico) para transmiti-la para o espaço em ondas

de FM, em 1974. A ideia por trás é a de que,

sendo este um sinal radicalmente diferente das

informações que normalmente são “escutadas”

do espaço sideral, uma inteligência extraterrestre

possa aí reconhecer se tratar de uma mensagem

em código binário. Devidamente decodificada,

ela traz informações sobre o sistema numérico

decimal; sobre a química de nosso planeta e da

base de suas formas de vida; sobre o ser huma-

no; sobre o nosso sistema planetário e o radiote-

lescópio utilizado para enviar a mensagem.

Caso algum dia, em algum milênio, um ser alieníge-

na receba uma dessas mensagens e seja capaz de

decodificá-la, o ser humano terá reali zado o maior

passo jamais imaginado em direção ao Outro.

Acima, detalhe da placa acoplada à Pioneer 10 (nasa);

abaixo à esquerda, a mensagem de Arecibo em

código binário e à direita, a decodificação visual da

mesma mensagem (Arne Nordmann, CC-by-sa-2.5).

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entende que o encontro é anterior à se-paração entre eles e que essa separação, pressupondo sempre o encontro, jamais poderia extremar-se na forma do isola-mento total.

Por essa razão, não há, segundo Merleau-Ponty, conhecimento de si mes-mo fora da coexistência com o outro. Experimen-tar a própria existência individual já é uma forma de posicionar-se em face de outrem, de coexistir socialmente. O eu e o ou-tro são os polos de uma relação que é anterior a cada um deles em separa-do. O outro não é objeto que gravita em torno de um eu, situado no centro de tudo. Há, pelo contrário, um equilíbrio básico entre os polos, que vem da impossibilidade de o eu e o outro sub-sistirem cada qual em separado, já que são essencialmente recíprocos.

Merleau-Ponty sabe que nem sempre se verifica, na prática, esse equilíbrio. Ele sabe

que, ao contrário, a relação entre o eu e o outro frequentemente deriva para formas assimétricas, desequilibradas, de relação in-terindividual. No âmbito do conhecimento, há lugar para o livre exercício da dúvida;

mas também há casos de submissão a formas de autoritarismo. E isso ocorre tanto no mundo do saber, quanto na vida em sociedade.

Em todo caso, a con-cepção de Merleau-Pon-ty ao menos demonstra que a alternativa entre o conhecimento de si e a vida em comum não é necessária. Adotando o ponto de vista desse fi-

lósofo, pode-se dizer, contrariando Descar-tes, que não é preciso isolar-se dos outros para encontrar-se consigo. Para conhecer--se a si mesmo, cada homem deve ir ao en-contro dos outros homens, pois uma indi-vidualidade não consiste senão num modo de coexistência. Como diria Merleau-Pon-ty, o eu é com o outro.

Para Merleau-Ponty, o encontro é anterior

à separação entre Eu e Outro; por isso, ela nunca leva a um

isolamento total.

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento

Para Descartes[+] (1596-1650), o eu pode ter certeza sobre sua existência e sobre o mundo independentemente dos demais. Esta existência é atestada pelo “eu penso”, de modo que Descartes con-clui que a essência do “eu” é o pensamen-to. Para Merleau-Ponty[+] (1908-1961), ao contrário, ele só pode relacionar-se consigo mesmo, ter uma consciência de si e um conhecimento de si porque está desde o início em contato com os outros. Ele tem uma história, vive em um mun-do, pensa segundo uma linguagem que não poderia existir independentemente dos outros.

Porém, é possível perguntar: o que se passaria se não existisse essa histó-ria comum, se não existisse esse mundo comum, se não existir nem mesmo uma linguagem comum, como se o outro fa-lasse uma língua nunca ouvida antes? Enfim, e se outro não for nada próximo de mim, qual seria a relação que eu teria com ele? Esse cenário é um tanto impro-vável, mas assim mesmo ele serve como ponto de partida para Georg Wilhelm Friedrich Hegel[+] (1770-1831), um dos maiores filósofos da Era Moderna, exa-minar como dois indivíduos absoluta-mente certos de si mesmos e totalmente

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estranhos entre si entram em relação um com o outro.

Antes de examinarmos o desenvol-vimento que Hegel confere a esse pro-blema, note que o filósofo o interpreta como sendo também um problema ético e político. Isso porque a certeza sobre si mesmo não se refere somente à existên-cia do eu. Ela se refere também à liber-dade, à certeza de se ser totalmente in-dependente. A questão examinada por Hegel, assim, é a seguinte: como dois seres humanos que se julgam absoluta-mente independentes e livres se relacio-nariam entre si?

Você, com razão, se pergunta por que tudo isso, já que é tão improvável uma situação assim. Como Merleau-Ponty, Hegel quer demonstrar que o indivíduo só pode ter uma relação consigo mesmo a partir do outro, mas, ao mesmo tempo, quer assinalar que a relação com o outro é conflituosa desde o início, e que esse conflito vai estabelecer as primeiras rela-ções humanas, que são relações de domi-nação. O mais importante, para Hegel, é que os indivíduos lutam entre si porque eles querem o “reconhecimento” do ou-tro a respeito de sua existência livre.

A certeza de si mesmo vem do desejoProcuremos então analisar os prin-

cipais momentos dessa luta pelo reco-nhecimento, a partir de trechos de dois livros de Hegel: Fenomenologia do espírito (1807) e Enciclopédia das ciências filosófi-cas (1817). Como você irá logo perceber, Hegel utiliza um vocabulário difícil, um dos mais difíceis da história da filosofia. Tome fôlego, portanto.

“A consciência de si é certa de si mes-ma, somente porque suprime o outro que se lhe apresenta como ser vivo in-dependente: ela é desejo. Certa da nu-lidade desse outro, […] ela aniquila o ser vivo independente e dá a si mesma, com isso, a certeza de si mesma como

verdadeira certeza, como uma certeza que veio a ser para ela de maneira obje-tiva.” (Hegel, Fenomenologia do espírito. Tradução nossa. Título original: Phä-nomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 143)

Ao contrário de Descartes, Hegel pensa que o indivíduo consciente de si mesmo só está certo de si mesmo porque ele é, antes de tudo, um ser que deseja, que não chega à certeza de si mesmo porque ele pensa, mas porque deseja e busca sa tisfazer seu desejo. Isso significa que o indivíduo é compreen-dido de início como um ser vivo, que se de-para com outros seres vivos, objetos de seu desejo. Esses se res vivos não são, ainda, ou-tros indivíduos e outras consciências, mas entes (animais e vegetais) que ele consome para satisfazer seu desejo.

Desse modo, é somente ao aniquilar o outro para a satisfação do desejo que o indi-víduo consciente de si mesmo tem uma cer-teza objetiva a respeito de sua existência, de sua liberdade e de sua indepen dência. Trata-se, portanto, não de uma certeza subjetiva (como, por exemplo, no caso de uma mera crença a respeito de si mesmo). Porque o indivíduo aniquila outros seres vi-vos, ele se mostra independente e podero-so. Vejamos o que diz Hegel sobre este mo-mento da relação do eu com o que o cerca:

“A relação do desejo com o objeto é ainda completamente a relação do destruir egoísta. […] Como o objeto do desejo e o próprio desejo, a satisfação do desejo é também necessariamente algo pontual, transitório, que cede ao desejo que sempre desperta de novo.” (Hegel, Enciclopédia das ciências filosófi-cas. Tradução nossa. Título original: En-zyklopädie der philosophi schen Wissen-schaften im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 428, adendo)

O desejo, conforme a análise de Hegel, é destrutivo, egoísta e, pior, insistente:

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reaparece o tempo todo. Ele se repete sem cessar. E daí a armadilha que envolve o indivíduo, sujeito do desejo. Pois, se ele se sente livre e poderoso porque satisfaz seu desejo, ele jamais conquistará uma certeza absoluta a respeito de si mesmo, de uma vez por todas. Isso porque a sa-tisfação do desejo não leva a uma certeza constante sobre a independência e o po-der do indivíduo.

É pela satisfação do desejo que o indi-víduo tem a primeira certeza de si mes-mo, de sua independência e poder. Mas o indivíduo só terá essa certeza de manei-ra transitória. Afinal, tão logo um desejo seja satisfeito, um novo surgirá, colocan-do a independência e o poder do indiví-duo novamente em xeque, até que ele seja satisfeito, e assim por diante.

A necessidade do reconhecimento recíproco

Antes de seguirmos adiante, uma ob-servação merece ser feita. Já sabemos que a linguagem utilizada por Hegel é muito incomum e soa, por vezes, incompreensí-vel, especialmente numa primeira leitu-ra. Mas queremos insistir em decifrá-la. Isso poderá nos conduzir a identificar, sob suas formulações, experiências fami-liares a todos nós, quando o assunto é a relação de cada um de nós com os demais. Vejamos, então, como segue o desenvol-vimento dado por Hegel a esse problema. Leia o parágrafo abaixo:

“A consciência de si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma outra consciência de si, isto é, ela só é quando é reconhecida.” (Hegel, Fe-nomenologia do espírito, op. cit., p. 145. Tradução nossa)

Eis agora a explicação. O indivíduo consciente de si mesmo não pode obter certeza absoluta, permanente, sobre sua independência a partir da satisfação do desejo. Mas ele pode obter essa certeza

se um outro indivíduo o reconhecer des-sa maneira. Não adianta apenas eu ter certeza de que sou independente, livre e poderoso. É preciso que um outro, seme-lhante a mim, me reconheça dessa forma. Só assim a certeza deixa de ser subjetiva ou momentânea e se torna objetiva e per-manente. Ela se torna absoluta. É isso que Hegel quer dizer com “em si e para si”: ab-solutamente.

Mas, para que haja reconhecimento, é preciso que os indivíduos se reconheçam de maneira recíproca, é preciso que cada um expresse ao outro o seu reconhecimen-to mútuo. O reconhecimento tem de ser re-cíproco. Como afirma Hegel em seu modo característico, as consciências “se reconhe-cem ao se reconhecerem reciprocamente” (Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., p. 147. Tradução nossa).

Porém, o que garante que esses dois in-divíduos, que querem ser reconhecidos em sua independência e que aprenderam de iní-cio que são independentes porque são capa-zes de aniquilar um outro ser vivo, estejam dispostos a reconhecer o outro como tal? Uma coisa é querer ser reconhecido pelo outro, outra é estar disposto a reconhecê-lo.

A essa questão junta-se uma outra: de que forma esses dois indivíduos aparecem um para o outro em seu primeiro encon-tro? Recorde-se que ambos são também seres vivos, semelhantes a todos os seres vivos que até ali cada um deles aniquilava para a satisfação do seu próprio desejo.

Reconhecimento é uma luta de vida ou morte

Vejamos, então, como Hegel reponde a esses dois problemas:

“Para a consciência de si, sua essên-cia e objeto absoluto é o Eu […] O que é o outro para ela é como um objeto sem importância […]. O outro, porém, é também uma consciência de si; um in-divíduo a se confrontar com outro indi-víduo. Surgindo assim imediatamente,

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A virulência de Max Stirner

Discussão e desenvolvimento por escrito

Leia o trecho abaixo, extraído de um livro do filósofo Max Stirner (1806-1856). Nele, Stirner reflete sobre o que é o “eu” e sua relação com o “outro”.

• Após lê-lo com aten-ção, comece escrevendo individualmente um co-mentário de poucas li-nhas sobre a posição de Stirner.

• Depois, reúna-se em um grupo de 3 a 4 inte-grantes e discutam os co-mentários individuais de cada um. Após a leitura e discussão de todos os comentários do grupo, façam uma redação em conjunto para ser apresentada às demais equipes. Procure ressaltar a relação existente en-tre o “eu” e o “outro”, conforme o autor citado, sem deixar de exprimir também a sua própria posição sobre o assunto.

No trecho a seguir, Max Stirner reto-ma, a seu modo, os elementos da posi-ção de Hegel acerca do reconhecimento. Note as semelhanças, mas também as diferenças em relação a Hegel. Max Stir-ner adota uma posição mais radical, que poderíamos classificar como anarquista:

“ ‘O que sou eu?’ – assim pergunta cada um de vocês a si mesmo. Um abismo de im-pulsos sem regra ou lei, sanhas, desejos, pai-xões, um caos sem luz ou estrela guia! […]

Milênios de cultura obscureceram para vocês aquilo que são, fez-lhes acre-ditar que não sejam egoístas coisa nenhu-ma, mas, ao contrário, dignos de serem chamados idealistas (‘homens de bem’).

Li vrem-se disso! Não busquem a liberda-de, que os leva bem a vagar ao entorno, em ‘auto-renegação’, mas busquem, em vez disso, a si próprios, tornem-se egoís-tas, que cada um de vocês se torne um

Eu to do-po deroso. Ou melhor: voltem a re-conhecer apenas a si mesmos, reconheçam somente aquilo que vocês realmente são, e deixem para lá seus esforços dissimulados, seu tolo anseio de ser algo diferente do que são. […]

Só de saber que não posso impor mi-nha vontade a um

Outro (seja este Outro algo destituído de vontade, como um rochedo, ou bem um sujeito do querer, como um governo, um indivíduo etc.), já admito que a minha liberdade seja reduzida; renego mi - nha particularidade quando eu – em face do outro – renuncio a mim mesmo, isto é, cedo, desisto, me entrego portanto em obséquio e submissão.

Pois o que está em jogo é um Outro, quando eu renuncio ao meu procedimen-to anterior porque este não leva ao desti-no, assim desviando de um falso caminho; um Outro, quando eu me deixo apanhar. Um rochedo que esteja no meio do meu caminho, circundo-o até possuir pólvora suficiente para detoná-lo; as leis de um povo, circundo-as até ter reunido forças para derrubá-las.” (Max Stirner, O único e a sua propriedade. Tradução nossa. Edi-ção de referência: Der Einzige und sein Ei-gentum. Leipzig: Reclam, 1972)

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consumidos por outros para a satisfação do desejo, sob uma condição na qual os seres vivos não são realmente livres.

Assim, os indivíduos precisam de-monstrar reciprocamente não serem pri-sioneiros da condição puramente animal, que são livres, superiores aos imperativos biológicos. Vejamos como Hegel caracteri-za esta condição:

“A relação entre as duas consciên-cias de si é determinada de tal manei-ra que elas se provam a si mesmas e uma para a outra mediante uma luta de vida ou morte. […] Só com o risco de perder a vida a liberdade se com-prova. […] Cada um tem de buscar a morte do outro, tanto quanto arrisca a sua própria vida; pois para ele o outro não vale mais que ele próprio.” (Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., pp. 148-149. Tradução nossa)

O processo de reconhecimento se torna uma luta de vida e morte porque cada indivíduo consciente de si conside-ra que seu “eu” é o mais importante, e portanto tende a buscar ser reconheci-do, negando-se a reconhecer o eu do ou-tro. Por outro lado, assim como cada um

eles são, um em relação ao outro, como objetos comuns, formas objetivas, consciências imersas no ser da vida.” (Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., p. 148. Tradução nossa)

Os dois indivíduos que se deparam consideram que o mais importante (sua “essência” e seu “objeto absoluto”) é o próprio Eu. O outro, por sua vez, não tem importância. Porém, como acabamos de ver, cada um precisa do outro, porque é o reconhecimento do outro que vai tra-zer uma certeza absoluta sobre sua liber-dade. Você pode perceber aí que há uma contradição entre o que o reconhecimen-to exige – a reciprocidade – e o que cada indivíduo quer: unicamente ser reconhe-cido, sem reconhecer o outro, pois ele dá importância somente a si mesmo.

E um dos motivos pelos quais o outro não é importante deve-se ao fato de que ele se apresenta apenas enquanto um ser vivo, em sua condição animal. Isso significa que cada um sabe que o outro também o vê des-sa maneira. Ambos, o eu e o outro, querem ser reconhecidos em sua liberdade, mas o que veem um no outro é, de início, uma animalidade, uma naturalidade comum a todos os seres vivos – e na natureza uns são

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As duas consciências, diz Hegel, medem-se uma com a outra, numa luta

de vida e morte. Desse conflito surge a intersubjetividade, que se desen-

volve até o mútuo reconhecimento.

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vê inicialmente o outro enquanto ani-mal, cada um considera que é também visto assim, em primeira instância, pelo outro, o que limita a liberdade absoluta de seu próprio “eu”.

É preciso, portanto, arrogar superiori-dade em relação à própria vida, arriscando--a em uma luta com o outro. Cada um pre-cisa se mostrar superior a ela, e é isso que passa a estar em jogo na luta por reconhe-cimento. O outro deve reconhecer em mim que sou superior, que não temo nada. Mas disso surge uma outra dificuldade, que re-presenta uma contradição: se a luta resulta em morte, não há reconhecimento:

“Se, dos dois que com-batem entre si por seu reconhecimento mútuo, apenas um perece, ne-nhum reconhecimento ocorre. O sobrevivente existe tão pouco quanto o morto como um ser re-conhecido. Consequen-temente, por meio da morte sucede essa con-tradição nova e maior: aqueles que pela luta provaram sua liberdade interior não chegaram, porém, a nenhuma existência reconhe-cida de sua liberdade.” (Hegel, Enciclopé-dia das ciências filosóficas, op. cit., § 432, adendo. Tradução nossa)

O morto não reconhece ninguém; o vencedor não conseguiu assim obter o reconhecimento de que é superior à vida e merecedor de ser reconhecido como um ser livre. Disso resulta que a luta não pode terminar em morte. Ela tampouco pode ter minar “empatada”, pois os indi-víduos aqui não estão dispostos a reco-nhecer a liber dade do outro, mas somen-te a sua própria.

Resta, então, uma terceira possibili-dade: há um vencedor e um derrotado. O

derrotado é aquele que preferiu viver, ao invés de morrer. Ele reconhece o vence-dor como superior à vida e a si mesmo, como um indivíduo absolutamente livre. O derrotado, afirma Hegel, reconhece aquele que o venceu como seu senhor. E então torna-se o seu escravo.

Reconhecimento desigual e o começo da vida em comum

“Uma vez que a vida é tão essencial quanto a liberdade, a luta se encerra antes de tudo […] com a desigualdade. Um dos lutadores prefere a vida, con-

serva-se como consciên-cia de si individual, mas renuncia ao reconheci-mento. O outro lutador, porém, se afirma em sua relação consigo mesmo e é reconhecido pelo pri-meiro, na medida em que este é o subjugado: é a relação entre senhor e escravo.” (Hegel, Enciclo-pédia das ciências filosófi-cas, op. cit., § 433. Tradu-ção nossa)

A luta por reconhe-cimento resulta assim em um reconheci-mento desigual, unilateral. A relação entre os dois indivíduos passa a ser uma relação de senhor e de escravo. Mas esse reconhe-cimento desigual é problemático e frágil. Ao rebaixar o outro indivíduo à situação de escravo, o senhor é reconhecido de ago-ra em diante por um ser que não é livre. É como se ele fosse reconhecido por uma coi-sa. O verdadeiro reconhecimento não foi ainda alcançado. Mas o resultado desigual da luta tem uma importância histórica:

“A luta pelo reconhecimento e a sub-missão a um senhor é o fenômeno do qual proveio a convivência entre os ho-mens, como um começar dos Estados.”

Se a liberdade consiste na

identidade de mim com o outro, então eu só sou

verdadeiramente livre quando o outro

também é livre.

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(Hegel, Enciclopédia das ciências filosófi-cas, op. cit., § 433. Tradução nossa)

Assim, para Hegel, a vida comum entre os homens surge de uma luta por reconhecimento, cujo resultado inicial é a relação de dominação. Mas se trata so-mente de um começo violento do Estado e da vida política. Como o resultado al-cançado não é um reconhecimento recí-proco, o Estado e a sociedade vão evoluir

no sentido de que todos os indivíduos sejam reconhecidos em sua liberdade. Dessa maneira, sempre conforme He-gel, a história humana será marcada por uma contínua luta por reconhecimento. Nesse processo longo e conflituoso, os indivíduos vão aprendendo aos poucos a se respeitarem e a se reconhecerem; eles apren dem, sobretudo, a reciprocidade do reconhecimento:

“Só assim a verdadeira liberdade se realiza. Uma vez que a liberdade con-siste na identidade de mim com o ou-tro, então eu só sou verdadeiramente livre quando o outro também é livre, e é reconhecido por mim como tal.” (He-gel, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 431. Tradução nossa)

A verdadeira liberdade só é alcançada com o reconhecimento recíproco: só sou livre se sou reconhecido por um outro como livre. E o outro só é livre quando ele é reconhecido por mim como livre. Cada um se relaciona consigo mesmo a partir do outro. Mas, como foi dito, essa reci-procidade não é alcançada logo de início, ela é obtida por uma história marcada por lutas em busca do reconhecimento.

A defesa da tolerância

Georg W. F. Hegel[+] (1770-1831) con-siderava que um indivíduo só poderia ter certeza a respeito de si mesmo, de suas qualidades, se um outro o reconhecesse como possuidor delas. Cada um luta, as-sim, pela conquista do reconhecimento do outro. Mas há conflitos entre indivíduos, grupos e mesmo entre nações inteiras, em que o outro representa uma diferença de opinião e de crença que é percebida como intolerável pelas partes envolvidas. Apa-

rentemente, nesses casos as partes não pretendem obter reconhecimento umas das outras, mas antes reprimir, expulsar ou mesmo aniquilar a parte supostamente contrária. Ou ainda, fazer com que a par-te contrária abandone suas convicções, o que significa abandonar suas diferenças.

Conflitos dessa índole foram e são muito comuns nas sociedades de todo o mundo. Eles motivaram alguns pensadores a rea-lizar defesas da tolerância entre os seres

Na arte egípcia, uma convenção

bastante utilizada era retratar o

retorno bem sucedido de expedições

militares com um cortejo de populações

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humanos, entre as culturas e as religiões diferentes. Tais pensadores defendem que a intolerância é injustificável e que seja pre-ciso respeitar as diferenças mesmo quando não se concorda com elas.

A tolerância é, assim, um respeito pelas diferenças dos outros, ainda que não pre-cisemos reconhecê-las como válidas. Os defensores da tolerância argumentam que o simples fato de que julgamos as crenças dos outros como erradas não justifica que se deva limitar de algum modo o direito deles a suas crenças e à expressão delas.

Uma das mais admiráveis defesas da tolerância foi feita por Voltaire em 1762.

Seu Tratado sobre a tolerância teve como motivo imediato a morte de Jean Calas (1698-1762), acusado injustamente da morte de seu filho. Como Calas era protes-tante, as autoridades católicas da cidade francesa de Toulouse – o catolicismo era a religião oficial na França da época – supuse-ram, seguindo os boatos da população, que Calas havia assassinado seu próprio filho, porque este iria se converter ao catolicismo, o que também era uma mera suposição, ba-seada no simples fato de que um outro filho de Calas havia se convertido a essa religião.

Calas foi condenado a uma morte atroz, lenta e repleta de torturas. Ele morreu re-clamando sua inocência. Voltaire se inte-ressou pelo processo e realizou uma investi-gação do caso que comprovaria a inocência de Calas. A seguir, você lerá uma passagem desse tratado, em que Voltaire argumenta que o suposto direito à intolerância é com-pletamente infundado:

“O direito natural é aquele que a na-tureza indica a todos os homens. Edu-castes vosso filho, ele vos deve respeito como a seu pai, reconhecimento como a seu benfeitor. Tendes direito aos fru-tos da terra que cultivastes com vossas mãos. Fizestes ou recebestes uma pro-messa: ela deve ser cumprida.

Em todos os casos, o direito humano só pode se fundar nesse direito da na-

tureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é, em toda a terra: ‘Não faças o que não gostarias que te fizessem’. Ora, não se percebe como, de acordo com esse princípio, um homem poderia dizer a outro: ‘Acredita no que acredito, ou morrerás’. É o que dizem, porém, em Portugal, na Espanha, em Goa. Atualmente, limitam-se a dizer, em alguns países: ‘Crê, ou te abomino; crê, ou te farei todo o mal que puder; monstro, não tens minha religião: logo não tens religião nenhuma; cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província’.

Se fosse de direito humano condu-zir-se dessa forma, caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; este perseguiria os gancares, que cairiam sobre os habi-tantes do Indo; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que en-contrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e, todos juntos, se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo já se de-voram mesmo uns aos outros.

O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos ti-gres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto que nós exterminamo-nos por parágra-fos.” (Voltaire, Tratado sobre a tolerân-cia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 33-34)

O argumento de Voltaire consiste ba-sicamente em defender que a intolerância não se funda nem no direito natural nem no direito humano. Ele entende por direito natural o que é indicado pela natureza, in-dependentemente das leis e dos costumes das sociedades existentes. O direito natural expressa, desse modo, o que todos os seres humanos devem e podem saber imediata-mente, com base unicamente em sua razão, a respeito de suas relações com os outros. Voltaire elenca nessa passagem três regras

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simples: os filhos devem respeitar os pais, porque estes os educaram e criaram; os seres humanos podem ter o direito de pro-priedade sobre os resultados de seu traba-lho; as promessas devem ser cumpridas.

VoltaireFrançois Marie Arou-

et, conhecido como

Voltaire (1694-1778),

foi possivelmente o

filósofo mais lido na

Europa no século

XVIII, tendo sido, ao

lado de Denis Dide-

rot (1713-1784), Jean

Le Rond D’Alembert

(1717-1783) e Jean-

-Jacques Rousseau

(1712-1778), um dos

maiores expoentes do Iluminismo.

Este movimento, também chamado de Fi-

losofia das Luzes ou Esclarecimento, carac-

terizou-se por combater formas de supers-

tição, despotismo e de opressão vigentes

no Antigo Regime. No âmbito da filosofia,

este clamor pela liberdade se expressou

na grande diversidade de formas utilizadas

pelos iluministas para difundir suas ideias.

Diferentemente da maioria dos filósofos do

século precedente, que escreveram suas

obras na forma de tratados sistemáticos, os

iluministas recorreram a expedientes literá-

rios tais como a fábula, o conto, o roman-

ce e o drama, ampliando as possibilidades

formais da reflexão filosófica. Voltaire, por

exemplo, redigiu tragédias com forte apelo

moral, além de narrativas que se tornaram

mundialmente conhecidas, como Zadig ou

o destino (1748) e Cândido ou o otimismo

(1759). Também empreendeu a redação e

publicação de um Dicionário filosófico (1764),

com o qual buscou popularizar a filosofia.

Eis uma boa edição de seus contos filosófi-

cos: Voltaire, Micromegas e outros contos. Tra-

dução: G. Marcolin. São Paulo: Hedra, 2007.

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Para Voltaire, o “direito humano”, o di-

reito feito pelos seres humanos, deve se fundar no direito natural. Isso significa que eles possuem o mesmo princípio, aquele segundo o qual cada um não deve fazer ao outro o que não deseja para si mesmo.

Observe que se trata de uma obriga-ção, de um dever, um imperativo: “não faças…”. O direito natural, assim como o direito criado pelos homens, envolve não apenas a liberdade de fazer isso ou aqui-lo, mas também a lei que restringe essa liberdade, de modo que cada um limita a sua liberdade para não prejudicar o outro. Cada um sabe naturalmente o que pode prejudicar o outro, pois cada um sabe o que poderia prejudicar a si mesmo.

Em seguida, Voltaire indica que todos os princípios da intolerância são incompa-tíveis com esse grande princípio, que é o mesmo no direito natural como no direito criado pelos homens. Voltaire não está di-zendo que não há leis opostas àquele prin-cípio, pois as leis podem ser intolerantes. Trata-se de apontar que, se elas são into-lerantes, vão contra o princípio do direito natural e, com isso, do direito humano, que se funda naquele e tem em seu cerne o mesmo princípio.

Se uma lei exige que alguém morra – ou se torne alvo de abominação – por não co-mungar da mesma religião da maioria, é evidente que tal lei contraria aquele prin-cípio, uma vez que o eventual defensor de semelhante lei certamente não concorda-ria em ser assassinado ou vilipendiado em razão de suas próprias crenças.

A intolerância poderia ser direito de alguns?

Voltaire acrescenta um segundo argu-mento, que consiste em aceitar a hipótese de que a intolerância é um direito humano, que os seres humanos poderiam adotá-la legitimamente, para então verificar quais seriam suas consequências. Observe que se trata de uma mera hipótese, descolada do argumento anterior, já que este funda

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todo o direito criado pelos homens no di-reito natural, e no princípio de não fazer ao outro o que não se quer para si mesmo.

As consequências do suposto direito à intolerância, enquanto direito que os homens poderiam adotar em toda par-te, levaria a uma barbárie sem fim. Uma

barbárie que acontece, constata o filósofo, entre os cristãos, pois eles se agrediam uns aos outros havia muito tempo. Nesse pon-to, Voltaire se refere a conflitos entre pro-testantes e católicos, que perduraram por séculos e arrastaram as nações europeias a guerras longas e terríveis.

GUERRAS ENTRE CRISTÃOS

É preciso compreender o cenário a partir

do qual Voltaire formula seu libelo de tolerân-

cia religiosa. Esse contexto não é exclusivo de

seu tempo, mas nutre-se da maneira como se

articularam as mentalidades e acontecimentos

dos séculos passados. A história europeia da

segunda metade do séc. XVI foi especialmente

marcada por intensos conflitos entre grupos

cristãos de diversa confissão e suas respec-

tivas forças políticas. A França, dentre outras

regiões, foi palco de desentendimentos que

desembocaram em francas guerras civis (1562,

1567-68, 1572…). Como isso chegou a ocorrer?

A partir de 1555, o país começara a receber

muitos pregadores calvinistas, que aos poucos

foram capazes de reunir um grupo relevante

no plano social e político, opondo-se à orien-

tação religiosa do governo central, que era

católica. Esses grupos calvinistas, que incluíam

membros da alta aristocracia francesa, foram

apelidados (pejorativamente) de Huguenotes.

Durante certo tempo, esperava-se que

uma solução teológica pudesse conformar

os cristãos católicos e reformados sob uma

mesma égide, num desejado cenário de paz.

Mas o Concílio de Trento (1545-1563) pôs essa

possibilidade por água abaixo, ao promulgar

uma política de combate à expansão protes-

tante (no movimento que passou a ser conhe-

cido como Contra-Reforma), terminando por

radicalizar a oposição entre uns e outros.

Um acontecimento notório, que de certo

modo simboliza o ápice da violência e da into-

lerância entre cristãos católicos e protestantes,

deu-se em Paris na noite de 23 de agosto de 1572

e nos dias que se seguiram. Catarina de Medici

(mãe de Carlos IX, rei de França) dera sinais de

que buscava uma reconciliação entre as mais

poderosas famílias da aristocracia francesa, ao

propor o matrimônio entre sua filha Margarida

e Henrique de Navarra. O acordo buscava con-

solidar a paz também com o reino da Espanha.

Mas, tendo-se reunido em Paris uma multidão

de pessoas – inclusive milhares de calvinistas –

para acompanhar a celebração do casamento,

Catarina vê aí uma oportunidade sem igual para

eliminar as lideranças huguenotes.

A ideia inicial era assassinar apenas alguns

líderes-chave. A situação, porém, lhe escapa

do controle, e o que se vê nessa noite (conhe-

cida como noite de São Bartolomeu) e nos

dias seguintes é um massacre de grandes pro-

porções. Os eventos foram romanceados por

Alexandre Dumas em seu célebre livro A rainha

Margot (1845), por sua vez base de numerosas

adaptações para o palco, o cinema e a tevê,

entre eles o filme homônimo de produção

francesa (1994, direção de Patrice Chéreau).

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Gravura de Franz Hogenberg (1535-1590)

publicada em 1576 que retrata atrocidades

cometidas na noite de São Bartolomeu.

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Conclusão de Voltaire: o direito à in-tolerância é absurdo, o que significa dizer que ele não é um direito, pois vai contra o princípio que está na base de todo direito (tanto do direito natural quanto no di-reito criado pelos seres humanos). Mais uma vez é preciso observar que, com isso, ele não quer dizer que os seres humanos não criam leis intolerantes.

Ele quer dizer somente que essas leis contrariam o direito – e por isso não de-vem ser consideradas como próprias do direito. E que esse “direito à intolerân-cia” é bárbaro, situando-se em um nível abaixo da animalidade, pois as feras ata-cam por comida, enquanto os seres hu-manos se matam por conta dos textos que consideram sagrados.

No entanto, há uma outra conclusão que também podemos extrair desse ar-gumento. Se Voltaire defende que a in-tolerância é incompatível com o direito, tanto o natural quanto o humano, então resta concluir que a tolerância (conceito oposto ao de intolerância) e o direito são compatíveis entre si. Nesse caso, a tole-rância significa não fazer contra o outro o que não se deseja para si mesmo.

O respeito pelas opiniões e crenças dos outros é o mesmo que se almeja para as próprias opiniões e crenças. Cabe acrescentar que para Voltaire esse respei-to não equivale necessariamente a con-cordância: pode-se respeitar as opiniões alheias, mesmo considerando-as erradas.

Mas você pode se perguntar: deve-mos ser tolerantes até mesmo com os intolerantes? Não haveria limites para a pró pria tolerância, quando ela, aplican-do--se aos intolerantes, corre o risco de ser destruída por eles? Não haveria ca-sos em que deveríamos ser intolerantes

Tolerância e intolerância nos dias de hoje

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

• Faça com colegas um painel de discussão sobre a questão da tolerân-cia hoje. Busque primeiro identificar mediante consulta à imprensa eventos ligados ao tema da tolerância. Em se-guida, elabore uma apresentação em grupo para os demais alunos da sala, enfatizando pontos como o reconheci-mento das diferenças e o convívio – pa-cífico ou não – entre crenças religiosas diversas; por fim, reflita, de preferência tendo em vista um caso concreto tira-do da imprensa ou da história, sobre a questão: devemos ser tolerantes com os intolerantes? Apresentem os resul-tados na forma de seminário para os demais colegas de classe.

Calvin & Hobbes, Bill Watterson © 1995 Watterson / Dist. by Universal Uclick

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para com os intolerantes em nome da própria tolerância? Voltaire considera que sim, que há casos em que a into-lerância é razoável, na medida em que combate os intolerantes:

“Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos ho-mens, é necessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes quando perturbam a sociedade; per-turbam a sociedade a partir do mo-mento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens come-cem por não ser fanáticos para me-

recer a tolerância.” (Voltaire, Tratado sobre a tolerância, op. cit., p. 105)

O governo não deve punir os “erros”, isto é, certas doutrinas e crenças, a não ser que elas fomentem o fanatismo, e, com isso, os crimes. Como o fanatismo leva ao crime, é preciso ser intolerante com ele. Os limites da tolerância coin-cidem assim com aquilo que protege os tolerantes da ação dos intolerantes. Dito de outro modo, a aceitação das diferen-ças pressupõe recusar aqueles que não aceitam as diferenças, os quais Voltaire designa como “fanáticos”.

Você sabia que os nazistas chega-

ram ao poder na Alemanha sem

que, para isso, tivessem promovido

qualquer ruptura da ordem cons-

titucional? De modo paradoxal, o

sistema democrático alemão, exis-

tente após a Primeira Guerra Mun-

dial (1914-1918) e conhecido com

o nome de “República de Weimar”,

possibilitou que um movimento

político contrário à democracia che-

gasse pacificamente ao poder.

O movimento nazista, liderado por

Adolf Hitler (1889-1945), surgiu

como um partido político – o Par-

tido Nacional-Socialista, fundado

em 1920. Hitler e seus correligio-

nários tentaram tomar o poder

através da força em novembro de

1923, mas a iniciativa fracassou

e Hitler foi julgado e condenado

à prisão, onde permaneceu por

pouco mais de um ano. Em segui-

da, Hitler voltou às atividades polí-

ticas e buscou ampliar a populari-

dade do partido nazista, que, toda-

via, obteve resultados medíocres

nas eleições de 1928 na Alemanha,

com menos de 3% de apoio do

eleitorado. Mas esse quadro iria

se alterar rapidamente.

Em novembro de 1932, o partido

nazista obteve apoio de 37% do

eleitorado. Isso fez com que Hitler

se tornasse chanceler da Alemanha

em janeiro de 1933. Daí em diante,

os nazistas, sob a liderança de Hi-

tler, suprimiram todo tipo de mani-

festação que não professasse sua

ideologia. Naquele mesmo ano de

1933, foram reprimidas reuniões do

Partido Comunista da Alemanha e

do Partido Social-Democrata da Ale-

manha, e em apenas duas semanas

foram presos 10 mil comunistas ale-

mães, assim como líderes dos social-

-democratas.

Diversos intelectuais e cientistas

de renome, como Thomas Mann

(1875-1955), Bertold Brecht (1898-

1956) e Albert Einstein (1879-1955),

pressentindo que a ditadura iria

recrudescer, deixaram o país no

ano de 1933. Os nazistas só foram

desalojados do poder em maio

de 1945, com a vitória dos aliados

sobre a Alemanha, no término da

Segunda Guerra Mundial.

A ORIGEM DO PODER NAZISTA

Thomas Mann

Bertold Brecht

Albert Einstein

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unidade 8 liberdade e necessidade

A ideia de que um destino inflexível governa certos aspectos de nossas vidas é mais

comum do que pode parecer à primeira vista. Pense, por exemplo, na reação que muitas pessoas têm quando estão diante de situações trágicas ou catastróficas, como terremotos, inundações etc.: “estava escrito que isso iria acontecer”... Como se, confrontados com aquele acontecimento terrível, não tivéssemos nenhuma capacidade de escolha, nenhuma liberdade de ação. Dizer que um evento estava “destinado a acontecer” equivale dizer que ele seria necessário.

A tragédia de Édipo ........................ 225

Estoicismo e a necessidade do universo .................. 227

A origem da ideia de necessidade ........... 235

Necessidade natural e liberdade humana ................... 238

Eduardo de Sá (1866-1940), Leitura da Sentença (óleo sb/ tela, s.d.). A obra retrata

o momento em que Tiradentes (1746-1792) recebe sua sentença de morte.

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A tragédia de Édipo

Talvez você já tenha assistido à apre-sentação teatral de uma tragédia grega – ou lido seu roteiro em livro – como as que eram encenadas na cidade de Atenas há muitos séculos, mais preci samente no século V a.C. Infelizmente, das mui-tas dezenas de obras escritas por alguns tragediógrafos (poetas que elaboravam as tragédias), restaram-nos apenas cer-ca de trinta. Uma delas se chama Édipo rei, composta por Sófocles (496-406 a.C). Nela, rei e rainha de uma importante ci-dade, Tebas, ficam sabendo de uma mal-dição que os envolve: se tiverem um filho, ele estará destinado a matar o pai. Essa maldição é comunicada por adivinhos e é uma determinação dos deuses (os gregos antigos eram politeístas, isto é, acredita-vam em vários deuses).

Apesar da profecia, o rei e a rainha de Tebas geram um filho. Então, para evitar a maldição, o rei amarra os pés do bebê e ordena que sua mulher o mate. Ela, po-rém, é incapaz de destruir o fruto de seu ventre e o entrega a um criado, para que ele o faça. Mas o criado encarregado da tarefa também não consegue cumprir as ordens à risca. Tendo levado o bebê até o alto de uma montanha, para que lá morresse sozinho, acaba entregando-o a um pastor, que o leva para a cidade de Corinto. Lá, o bebê é dado ao rei Políbio, que não tinha herdeiros e passa a criá-lo como se fosse seu filho.

Essa criança, Édipo (que quer dizer “o que tem pés inchados”), crescerá pensan-do ser filho de Políbio. Um dia, vindo a saber que está destinado a matar o pró-prio pai e desposar a mãe, vai embora, para evitar que a profecia se realize.

Durante sua viagem, numa encru-zilhada, encontra um homem já idoso, acompanhado de seus servidores. Desen-tendendo-se com eles, mata esse homem e segue seu caminho. Chegando às por-

Ao decifrar o enigma lançado pela esfinge,

Édipo libertou Tebas de sua maldição.

(Gustave Moreau [1826–1898]. Édipo e a

esfinge. Óleo sb/ tela, 1864)

tas da cidade de Tebas, vai de encontro a um monstro, a esfinge, que mata todos os que se aproximam, propondo-lhes um enigma dificílimo. Mas Édipo soluciona o enigma e livra a cidade da terrível es-finge. Como recompensa, torna-se rei de Tebas, casando-se com a rainha, cujo ma-rido tinha sido assassinado.

Tempos depois, a cidade é tomada pela peste, causada por um deus, Apolo. Essa peste só será interrompida pelo deus quando se descobrir quem matou o antigo rei. Édipo passa então a investigar. E des-cobrirá que seu verdadeiro pai era esse rei, Laio. Descobrirá também que o velho que ele matou naquela encruzilhada era Laio,

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seu pai, e que a esposa dele, Jocasta, com quem Édipo depois se casou e teve filhos, é sua mãe. A maldição foi cumprida. Diante da desgraça, Édipo fura os próprios olhos e deixa a cidade, exilado.

Vale a pena focar um trecho da peça, logo após a funesta revelação. Nele, o co ro (grupo de atores que representa os anciãos da cidade de Tebas) e Édipo la-mentam os acon tecimentos:

“Coro: Que coisas terríveis você fez, que ousadia destruir seus olhos assim? Qual dos deuses o moveu?

Édipo: Amigos, é obra de Apolo, é Apolo o executor destes meus males, destes meus sofrimentos. Mas só eu e ninguém mais, com minhas mãos, ou-sei fazê-lo, infeliz que sou. Por que eu deveria ver, se nada agradável havia aos olhos para ver?” (Sófocles. Édipo rei, versos 1327-1334. Tradução nos-sa. Edição de referência: Sophoclis fa-bulae. Oxford Classical Texts. Oxford University Press, 1987)

Observe que o coro acredita que Édi-po só pode ter se cegado por ordem de algum deus. Há aqui uma importante relação entre as ordens divinas e uma es-pécie de necessidade: para o coro, Édipo não teria furado seus olhos se não tives-se sido obrigado, forçado por uma ordem divina. Sendo os deuses superiores aos homens, o que eles determinam deverá necessariamente acontecer.

De fato, lembre-se que aquela maldi-ção lançada sobre a família de Édipo ha-via sido determinada pelos deuses e que, por mais que Édipo e seus pais tenham tentado fugir dela, ela se cumpriu. Quan-do Édipo abandonou a cidade de Corinto pensando assim escapar ao seu destino, na verdade ele corria em direção a ele.

Já estava então determinado de ante-mão que Édipo mataria o pai e teria filhos com a mãe? Uma coisa é certa: todos os seus esforços para evitar que isso acon-tecesse foram inúteis. Édipo estava, di-

gamos assim, destinado à desgraça e era impotente para evitá-la, embora não sou-besse disso.

Essa ideia de destino é muito impor-tante na cultura dos gregos antigos, pois eles entendiam que os acontecimentos estavam, de algum modo, anteriormente determinados. Até mesmo os deuses es-tavam sujeitos ao destino. Isso levava os gregos a interpretar os grandes fatos com base nessa ideia.

Voltemos um instante ao trecho de Sófocles citado há pouco. Observe bem a resposta de Édipo ao coro. Chama a aten-ção que Édipo reconheça que sua desgra-ça foi causada pela vontade de um deus e que, por isso, ele não tinha nem teria poder para evitá-la. Mas Édipo também afirma que a decisão de se cegar foi, essa sim, de sua inteira responsabilidade. En-tão, podemos concluir que dependeu ex-clusivamente dele a decisão de furar seus olhos, embora ele não fosse livre para desfazer aquela maldição a que foi des-tinado. De início, ele acreditava ser livre também para isso. Mas vem depois a des-cobrir que nunca possuíra outra opção além dessa.

Aí está o que torna essa tragédia tão poderosa: durante a maior parte de sua trajetória, Édipo se julgava capaz de fa-zer o que quisesse – para então descobrir que suas tentativas de escapar da maldi-ção estavam fadadas ao fracasso, inde-pendentemente de sua vontade. Édipo se sentia livre quando fugia de seus falsos pais e achava que estava evitando a mal-dição, assim como se sentiu livre ao se ce-gar. Mas descobriu que só foi realmente livre nessa última escolha...

Talvez essa diferença esteja presente também em situações corriqueiras, ex-perimentadas por nós. Quando digo a mim mesmo: “sou livre para fazer o que quiser, até mesmo abandonar meus com-promissos e sair viajando pelo mundo”, expresso um sentimento de liberdade, uma espécie de desejo de ser livre. Mas

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o que garante que eu realmente possa fa-zer isso? Não estarei, muitas vezes, em situação semelhante à de Édipo? É cla-ro que posso abandonar tudo que estive fazendo até agora e fazer algo diferente (mesmo que não consiga sair viajando pelo mundo), enquanto, na peça, Édipo não podia evitar sua desgraça.

Mas é frequente que nossos sentimen-tos ou desejos de liberdade encontrem uma série de obstáculos, que muitas vezes terminam nos fazendo deixá-los de lado. E isso aponta para uma conclusão impor-tante. Não é por que me sinto livre que sou livre. O caso de Édipo ilustra bem a distância que pode haver entre uma coisa e outra. Sentir-se livre foi, para ele, uma grandiosa ilusão, porque algo mais pode-roso do que esse sentimento se impôs à sua existência, como uma necessidade.

Isso nos conduz então a uma pergunta: nesse sentido de liberdade, que não é nem jurídico, nem político, mas que está tão

presente em nossas vidas, pode haver real-mente uma liberdade de fato, que não seja apenas uma sensação que tenho em mim?

Édipo: responsável ou não? Debate em sala de aula

Aprofunde seu conhecimento sobre a tragédia de Sófocles. Há mais de uma tradu-ção da obra para o português e você pode encontrar algumas delas na internet, com livre acesso (procure, por exemplo, no site www.dominiopublico.gov.br, mantido pelo Ministério da Educação).

• Depois disso, e em colaboração com um(a) colega, discuta na sala de aula essa questão: Édipo, em sua opinião, é ou não responsável pelos atos que cometeu, assas-sinar seu pai e casar-se com sua mãe?

Estoicismo e a necessidade do universo

Diante de uma catástrofe natural de grandes proporções, é comum que as pes-soas tenham reações como essa: “Era mes-mo para acontecer, não havia nada a fazer quanto a isso.”

A convicção de que o acontecimento se deveu a uma vontade alheia a nós, superior e inquestionável, ajuda-nos a suportá-lo. “Estava escrito, era mesmo para acontecer”, isso, de algum modo, consola e conforta, dando uma respos-ta à pergunta: “Por que isso aconteceu comigo?”.

Esse tipo de raciocínio possui inclusi-ve um alcance mais amplo. Uma vez que, de antemão, considero essas razões su-periores a mim e mais poderosas do que qualquer atitude que eu pudesse tomar para alterá-las, posso até mesmo ignorar as causas dos acontecimentos em pauta. Nesse caso, não me vejo como sendo o

principal responsável pelo que ocorre ao redor de mim e até comigo.

Só que, ao mesmo tempo, percebo que os acontecimentos ocorrem de uma for-ma sistemática, com mais ou menos or-dem, o que sugere a presença de algum tipo de organização neles. Em vista da aceitação dessas premissas, uma pergun-ta irá se colocar de forma quase espon-tânea: quem, afinal, organiza o universo, de modo que as coisas aconteçam assim e não assado? Se não sou eu, é quem?

Na história da filosofia, a primeira grande tentativa de atribuir a todos os acontecimentos uma inevitável neces-sidade, com base na existência de uma racionalidade divina que administra o mundo, foi feita pelo pensamento estoico .

Os estoicos – assim chamados porque o fundador da escola, um certo Zenão, originário da ilha de Chipre, estabeleceu

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como lugar da escola uma região próxima a um dos pórticos (stoá, em grego) de Atenas – foram os primeiros pensadores a defenderem a tese de que o mundo é um grande sistema de coisas e eventos.

Ao sustentarem que o mundo é um sistema de seres e acontecimentos, um todo que é ordenado por uma razão divina ine-rente à natureza, a filosofia estoica teve de lidar em profundidade com o tema das relações entre liberdade e necessidade.

Os estoicos, por causa de alguns prin-cípios que fundavam seu pensamento, vi-ram-se diante da tarefa de tentar conciliar essas duas ideias. Eles o fizeram de forma muito interessante, com grandes conse-quências para os rumos posteriores da filo-sofia. Observemos, então, esses princípios característicos, reconhecíveis em algumas passagens de textos. Leia o trecho abaixo:

“Os estoicos dizem que o mundo é uma unidade que contém em si todos os seres; dizem que ele é governado por uma natureza viva, racional e inteligente, e que esse governo dos se-res que possui é eterno e procede por certa sequência e ordem, já que coisas anteriores se tornam causas para as que ocorrem depois.

Desse modo, tudo está ligado e não há nenhum evento no mundo do qual não se siga outro, como sua consequência; e um evento posterior não pode estar desassociado de even-tos anteriores, a ponto de não ser uma consequência de um deles. Mas de tudo que acontece se segue alguma outra coisa, que dela necessariamente depende como de uma causa, e tudo que acontece tem algo anterior de que depende, como de uma causa.

Pois nada no mundo existe e acon-tece sem uma causa, porque nada nele está desvinculado e separado de tudo o que aconteceu antes. Pois o mundo, eles dizem, seria desarticulado e divi-dido, e não mais permaneceria uma

unidade, governado sempre conforme uma única ordem e organização, se nele fosse introduzida uma mudança sem causa [...]

Eles dizem, com efeito, que ocorrer algo sem uma causa é tão impossível quanto algo ocorrer a partir do que não existe. Sendo de tal forma, o go-verno da totalidade dos seres ocorre infinitamente, de modo evidente e sem cessar [...]

Eles dizem que o próprio destino, a natureza e a razão de acordo com o qual o todo é governado, é deus, e que está em todos os seres e acontecimentos,

O estoicismo foi uma das mais influentes

correntes filosóficas da Antiguidade. Infeliz-

mente, restaram-nos poucas obras escritas

pelos estoicos. Costuma-se dividir em três pe-

ríodos diferentes a história do estoicismo. O

“estoicismo antigo”, nos séculos IV-III a.C, cujos

principais representantes foram o fundador

Zenão (334-262 a.C.), seu discípulo Cleantes

(c. 330-230 a.C.) e o discípulo deste, Crisipo

(280-207 a.C.). O “estoicismo médio”, nos sé-

culos II-I a.C., com Panécio (185-10 a.C.) e Po-

sidônio (135-51 a.C.). E o “estoicismo romano”,

com Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Epiteto (55-135) e

Marco Aurélio (121-180), nos séculos I-II d.C.

Possuímos os escritos dos estoicos romanos

(a Unidade Razão e paixão aborda um deles,

no módulo “A rejeição das paixões”), mas,

dos escritores dos outros períodos, apenas

fragmentos. Essa corrente filosófica se man-

teve bastante uniforme durante cerca de qui-

nhentos anos. No entanto, muitas vezes o que

conhecemos da filosofia estoica provém de

autores que a expuseram para poder criticá-

-la, dificultando, para nós, uma compreensão

segura dessa filosofia. – Uma observação útil:

cuidado para não confundir Zenão (334-262

a.C.), o fundador da escola estoica, com outro

Zenão, o de Eleia (489-431 a.C.), discutido na

Unidade Finito e infinito.

O ESTOICISMO ANTIGO

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assim utilizando a natureza própria de todos os seres para o governo do todo.” (Alexandre de Afrodísia, Sobre o destino, 191, 30 – 192, 28. Tradução nossa)

Observe quais são, nessa passagem, as principais afirmações atribuídas pelo au-tor do trecho citado aos estoicos: a exis-tência de uma “natureza viva, racional e inteligente”, que governa o mundo. A isso chamam também de “destino” e “deus”. A associação entre termos como “razão” e “destino” ou “natureza” e “deus” não é tão comum. Mas os estoicos identificam tudo isso. Para eles, afinal, essas palavras dizem a mesma coisa, têm o mesmo sig-nificado. O que os leva a essa conclusão?

Parece que eles a extraem de algo que se apresenta e que se explica quando fa-lamos nessa “unidade” ou “ser vivo” que é o mundo: o fato de que existem mudan-ças, de que acontecimentos se seguem uns aos outros, só pode ser explicado por meio de uma compreensão sistemática e coerente das coisas.

É inegável que os acontecimentos se sucedem, isto é, que ocorrem numa certa sequência. Afirmar que eles com-põem uma unidade significa pretender que estão concatenados rigorosamente. Os acontecimentos se relacionam como “causas” e “efeitos”. Ora, segundo os es-toicos, todos os acontecimentos devem es-tar relacionados assim. A razão para isso é que nenhum acontecimento pode se dar sem uma causa. Então, as causas de cada evento devem ser ligadas entre si, uma após a outra, numa cadeia incessan-te. Por isso, pode-se concluir que o mun-do, como um grande conjunto de seres e eventos, está todo ele constituído como uma grande unidade, um ser vivo, um or-ganismo, com partes que se associam.

Os estoicos não parecem considerar a possibilidade de que a causa para que algo aconteça possa ser indeterminada, ou seja, que possa haver uma causa imprevis-ta para algo. E eles parecem se basear no

fato de que realmente o mundo se apre-senta a nós como um gigantesco conjunto de fatos dotados de necessidade. Pense-mos em um exemplo banal como o da pe-dra solta no ar, que então cai. Ela não cai à toa, por acaso, mas, dirão os estoicos, é seu “destino” comportar-se assim, e é “ra-cional” e “necessário” que assim seja.

Virtude e necessidadeEssa tese é bastante polêmica e for-

te, tendo provocado objeções. Mas vale a pena tomar conhecimento da forma como os estoicos a estabeleceram. Para os estoi-cos, o próprio mundo se comporta como um ser vivo, e isso não deve ser entendido como uma imagem poética ou uma metá-fora. O mundo, para eles, é de fato um ente, que contém em si uma “alma”. Seu com-portamento obedece às determinações dessa racionalidade que está presente nele. Como argumentaram em favor dis-so? Observemos a passagem a seguir:

“[...] o que pode ser tão manifesto e evidente, quando olhamos para o céu e contemplamos os corpos celestes, quanto a existência de uma divindade de intelecto superior que os governa?... Assim como, se um homem vai a uma casa, ginásio ou fórum, quando vê a

Alexandre de Afrodísia

Alexandre de Afrodísia (sécs. II-III d.C.)

viveu em Atenas e foi um estudioso de Aris-

tóteles. Comentou e divulgou diversas obras

aristotélicas em Atenas e Alexandria. Seus

escritos se tornaram uma importante fonte

para os estudos sobre o aristotelismo. O

texto de sua autoria citado nesta Unidade,

Sobre o destino, foi editado na coletânea de

A. A. Long & D. N. Sedley (orgs.), The Hellenis-

tic philosophers, vol. 2, Cambrigde University

Press, 1997, com textos originais em grego

e latim, além de sua tradução para o inglês.

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proporção, método e ordem de todas as coisas, não pode julgar que foram feitas sem causa, mas sim compreende que existe alguém que as dirige e sub-mete, ainda mais, a respeito dos mo-numentais movimentos, dos muitos procedimentos ordenados de tantas coisas gigantescas, nas quais nunca o mais remoto e incontável passado em nada foi desmentido, é necessário que ele conclua que tamanhos movimentos naturais são governados por algum intelecto” (Cícero, Sobre a natureza dos deuses, II, 4-15. Tradução nossa)

O argumento parece ser o seguinte: nós sabemos, com base em nossas próprias criações artificiais (como uma construção, por exemplo), que há nas pro-duções humanas um plano inte-ligente, uma finalidade preesta-belecida. Uma construção bem feita, com proporção e ordem, é sinal de um criador dotado de inteligência e racionalidade.

Ora, diz o argumento, se olharmos para os eventos na-turais – por exemplo, os movi-mentos e fenômenos celestes –, notaremos que eles apresen-tam ordem e proporção. Por-tanto, deve haver um ser inte-ligente que é sua causa e que os torna possíveis e reais.

Para os estoicos, somente somos capa-zes de compreender a natureza quando tomamos a nós mesmos como ponto de partida, justamente porque somos uma parte da natureza, ou seja, porque não po-deríamos nos compreender a nós mesmos senão como seres naturais.

Os estoicos defendiam o lema “viver de acordo com a natureza”, que enten-diam como idêntico a “viver de acor-do com a virtude”. As ações humanas também estão associadas a essa grande racionalidade divina que governa o mun-do, elas são também uma parte de um

Cícero

Marco Túlio Cícero

(103-43 a.C.) foi um dos

homens mais notáveis do

período que marcou o fim

da República Romana. Ad-

vogado, orador, homem

político e filósofo: é até

difícil defi ni-lo de acordo

com suas tantas (e tão in-

fluentes) atividades na vida

pública de Roma. Tendo

chegado ao mais alto cargo

da república (cônsul, em

63 a.C.), em muitos mo-

mentos críticos da democracia romana tomou

para si o papel de seu defensor. Sua relação

com Caio Júlio César – que viria a se tornar di-

tador vitalício de Roma, abrindo caminho para

o futuro sistema de governo do império – foi

marcada por atitudes ambíguas, aproxima-

ções e rivalidades. Da extensa obra de Cícero,

são muito lidos e estudados o seu livro sobre a

retórica, suas cartas (além de documentos his-

tóricos, também apreciadas enquanto literatu-

ra), os discursos políticos e os livros filosóficos,

em que expressa o pensamento estoico roma-

no. Dentre estes, encontramos os livros Sobre

os deveres, Sobre o destino, Sobre a natureza dos

deuses e diversos outros.

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todo mais amplo. Se há um “destino” pre-sente em todos os eventos naturais, e o homem é componente da natureza, seus atos também estão, digamos assim, “des-tinados” a ocorrer de certo modo.

Assim, para os estoicos, há uma ética a ser seguida pelo homem que conhece a na-tureza, o “sábio”, que nada mais é do que uma conduta natural, que obedece ao pró-prio modo como a natureza se comporta.

Na linguagem técnica da filosofia, essa concepção do estoicismo antigo dá origem a uma “metafísica da natureza” – a noção de uma ordem de base, anterior

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à própria ordenação da natureza. Para os estoicos, é essa ordem mais elevada que fundamenta a moralidade humana, o modo como devemos agir no mundo. Mas isso também coloca o estoicismo diante de um problema – pois em filo-sofia, como você provavelmente já per-cebeu, uma solução quase sempre abre novas questões, cada resposta engendra um novo questionamento, requerendo que todas as vias da reflexão sejam per-corridas e bem mapeadas.

O mesmo problema é vivido por Édi-po, personagem de Sófocles (496-406 a.C.). Desde antes que nascesse, uma terrível maldição rondava sua exis-tência. Édipo era ou não livre em seus atos? Se tudo está destinado a aconte-cer de um certo modo, isso não torna impossível a liberdade na ação huma-na? Então, tudo o que fazemos – sobre-tudo nossos atos de valor moral – não depende em nada de nós? Os estoicos logo se deram conta de que uma visão radicalmente sistemática do mundo, da natureza e do homem, conduziria a uma possível objeção de caráter moral: se tudo está preestabelecido e determi-nado, não há lugar para avaliações e jul-gamentos morais – o que poderia levar

à negação da responsabilidade de cada um ao executar uma dada ação.

Para compreender o problema, obser-vemos a seguinte passagem de Cícero. Nela, este pensador estoico apresenta uma objeção levantada contra o posicio-namento estoico por ele mesmo defendi-do – uma objeção que se tornou conhe-cida sob uma denominação curiosa, a do “argumento preguiçoso”:

“[...] que não nos impeça o ‘argu-mento preguiçoso’ [...] se o aceitarmos, nada mais faremos na vida. Formu lam--no assim: ‘se é seu destino recuperar--se desta doença, chamando um médico ou não chamando um médico, você vai se recuperar. Do mesmo modo, se é seu destino não se recuperar, chamando um médico ou não chamando um médi-co, você não vai se recuperar. Portanto, não adianta nada chamar um médico’.” (Cícero, Sobre o destino, 28-30. Tradu-ção nossa. Edição de referência: De fato, Paris: Les Belles Lettres, 1973)

Os adversários dos estoicos, ao formular tal argumento, querem extrair a indesejada consequência de que fazer seja o que for de nada adianta, de que, portanto, “nada mais

Fatalidade, sina,

fado: essas palavras

exprimem a ideia de

que não escolhemos o

destino. (Jan Theodore

Toorop [1858-1928],

Fatalidade (giz e lápis

sobre papel, 1893)

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faremos na vida”. Apontam, portanto, para a indiferença moral da ação. Se tudo já está destinado a acontecer de um modo ou de outro, não importa o que fazemos.

Embora o argumento pareça apenas concluir que “não adianta nada” fazer qualquer coisa – daí sua denominação de “preguiçoso” –, ele tem consequências mais graves: ninguém poderia me cen-surar, se, por exemplo, eu cometesse um ato bárbaro, porque tudo estava “destina-do” a acontecer assim.

A presença da necessidade, do destino, nesse caso, significa a total supressão e ausência de liberdade, e isso faz com que não haja mais nenhuma distinção moral a

ser feita. Assim como posso deixar de fa-zer qualquer coisa, se tudo estiver prede-terminado, assim também posso fazer o que quiser, sem que se possa me censurar e punir, porque também isso estava pre-determinado. A relação de exclusão entre necessidade e liberdade se torna, agora, uma ameaça à própria ideia de moral.

Destino e responsabilidade moralNote que a ideia de liberdade aparece

como uma espécie de condição para que se possa julgar uma ação como moralmente boa ou má: se executo um ato reprovável, só posso ser recriminado moralmente se o tiver executado de livre e espontânea von-

A responsabilidade das açõesPesquisa individual e discussão em grupo

Na Unidade Razão e paixão (módulo “Uma espécie que se diz racional”), são discutidos aspectos ligados a casos nos quais réus de ações criminais têm sua pena atenuada quando sua defesa ale-ga que eles fizeram o que fizeram “sob influência de violenta emoção”. O argu-mento jurídico examinado ali pode ser aproximado de nosso debate sobre a liberdade, pois a responsabilidade do agente para com sua ação é relativizada. Portanto, até certo ponto, sua ação não é “imputável” (isto é, não se pode atribuir à pessoa a responsabilidade por seus atos).

Em casos assim, a defesa pode alegar que o acusado não agiu conforme sua razão, não sabia o que estava fazendo e que, por isso, sua ação não proviria de uma decisão livre. Como se o seu agir fosse baseado unicamente na necessi-dade das emoções, logo, sem liberdade. Por aí argumenta-se que o agente estaria total ou parcialmente isento de respon-

sabilidade, “inimputável”. • Em uma equipe contendo entre três

e cinco integrantes, discutam situações concretas envolvendo as noções de li-berdade e necessidade no âmbito moral e jurídico. Para ordenar o debate, vocês podem seguir esses passos:

1) Pesquisem individualmente, fora da aula, um acontecimento em que se alega que um ou mais indivíduos agiram sem estarem completamente em posse de seu livre-arbítrio.

2) Em seguida, em grupo, exponham os casos selecionados entre os membros da equipe e discutam o que é comum a eles do ponto de vista argumentativo: em to-dos eles alega-se que a liberdade do agen-te estava comprometida ou temporaria-mente suspensa pelas circunstâncias?

3) Apresentem aos demais colegas os resultados obtidos, formulando também uma conclusão qualificada, isto é, fundada em argumentos, sobre a validade ou não do “argumento do preguiçoso”, que vimos ser recusado por Cícero no texto citado.

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tade, sem ter sido coagido ou ignorando suas possíveis consequências.

Crisipo (280-207 a.C.), talvez o mais importante filósofo estoico, procurou for-necer uma solução para essa dificuldade, segundo se lê na seguinte passagem, de um autor que apresenta a posição daquele importante filósofo:

“Contra isso, Crisipo argumen-ta com argúcia e variedade, mas, de tudo que escreveu sobre o assunto, eis o ponto: ‘ainda que seja certo que tudo está conectado e ligado pelo destino, por meio de uma razão necessária e primeira, contudo, a própria submis-são de nossos intelectos ao destino tem a ver com o que é específico e próprio de cada um deles. Pois se são feitos por natureza de modo saudável e be-néfico, toda aquela força externa que o destino externamente exerce, eles a transmitem de modo suave e desimpe-dido. Mas se são ásperos, ignorantes, ineptos, crentes do mínimo da boa

instrução, mesmo se pouco ou nada pressionados pelos incômodos do des-tino, mergulham em erros e frequen-tes transgressões, em virtude de sua inaptidão e ímpeto voluntário. E isso se dá justamente por causa daquela articulação natural e necessária das coisas, chamada destino. Pois se se-gue de uma regra por assim dizer fatí-dica, que maus intelectos não estejam desprovidos de malefícios e erros’. Ele usa então um exemplo bem apropria-do e espirituoso: ‘assim como, se você empurra uma pedra cilíndrica sobre uma superfície inclinada, você produz a causa e início do seu movimento, mas a seguir ela rola não porque você ainda a empurra, mas porque assim determina sua forma, assim também a ordem, razão e necessidade do des-tino atuam sobre os tipos e princípios de causas, mas os impulsos deliberati-vos de nossos intelectos e nossas ações são controlados por nossas próprias vontades e intelectos particulares’ [...] Por isso, ele nega que se deva tolerar e dar ouvidos àqueles que, por preguiça ou maldade, sendo nocivos e maldo-sos, quando apanhados em culpa ou má ação, refugiam-se na necessidade do destino e dizem que agiram muito mal não por vício seu, mas que isso se deve atribuir ao destino.” (Aulo Gélio, Noites áticas, 7, 2, 6-13. Tradução nos-sa. Edição de referência: Noctes atticae. Oxford Classical Texts. Oxford Univer-sity Press, 1968)

A passagem não afirma que Crisipo defendesse ser possível desculpar atos maus de quem alega ter agido “por força do destino”. É ao chamado “argumento preguiçoso” que ele está tentando res-ponder: a ordem que estrutura o uni-verso não exime a responsabilidade de nossas ações.

A maneira para fazê-lo consiste em propor uma distinção entre o destino

A liberdade foi frequentemente

representada como uma mulher

combativa, que supera toda sorte de

dificuldades. (Nanine Vallain [1767-1815],

Alegoria da liberdade. Óleo sb/ tela, 1794)

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como uma necessidade que controla to-dos os acontecimentos, de um lado, e, de outro, “nossas próprias vontades e inte-lectos particulares”, que, aparentemente, estão sob nosso controle.

Entre os indivíduos, há diferenças que os fazem submeter-se de modo dis-tinto ao destino. Assim, sou responsá-vel pela forma como me relaciono com a natureza.

Cada um de nós é dotado de um inte-lecto naturalmente diferente, que per-mitirá aderir mais ou menos à natureza e seus acontecimentos sistemáticos. Isso significa que essa adesão cabe a mim.

Para Crisipo, contudo, após essa deci são, o que se seguirá é a inevitável consequência de uma necessidade pre-sente nas coisas. Se empurro uma pedra cilíndrica, não decido se ela vai rolar ou não, porque isso está contido necessa-riamente em seu formato – embora te-nha sido minha a escolha de empurrá-la ou não. Com isso, haveria uma esfera de “liberdade” presente em nossas vi-das que está, no entanto, subordinada a uma “necessidade” maior, que seríamos obrigados a obedecer.

Note que admitir essas diferenças en-tre os indivíduos e as escolhas que elas

acarretam não significa, para o filósofo estoico, que haja “liberdade”. Ao menos, não no sentido de uma “transgressão da necessidade”. Um intelecto capaz de alcançar o pleno conhecimento das ver-dades do mundo não tem dificuldade em reconhecer que a esfera de suas ações voluntárias é limitada, e até mesmo que, em certo sentido, também essas ações voluntárias estão submetidas a uma ne-cessidade natural.

Minhas escolhas por agir deste ou daquele modo são consequência neces-sária de minha disposição intelectual, que é sempre natural e, nesse sentido, determinada. Lembre-se do exemplo da pedra: está muito acima de meu poder determinar se a pedra cilíndrica que deci-di empurrar vai ou não rolar ladeira abai-xo – isso é tão naturalmente necessário quanto a queda de um corpo solto no ar.

Teria o estoico Crisipo realmente conseguido resolver a questão? O que realmente lhe interessava era conciliar aquela concepção profundamente har-mônica e sistemática da natureza, da qual também o homem é parte, com a possibilidade de distinguir atos morais como bons ou maus. Pelo que podemos conhecer de seu pensamento, restrito a

Peças de dominó caindo uma após a outra: um símbolo da ausência da liberdade,

da necessidade natural, representada pelas leis do movimento. E quanto a quem

enfileirou as peças?

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comentários de outros autores, Crisipo parece ter defendido que mesmo quan-do agimos por livre e espontânea vonta-de seguimos uma necessidade inevitá-vel. Isso lhe basta para garantir que não estamos autorizados a fazer qualquer coisa ou a dizer que não faz diferença agir bem ou mal.

O ponto não é concordar ou não com o fi-lósofo, e sim observar que ele introduz uma questão filosófica de máxima importância: pode-se garantir a liberdade humana, com tudo o que há de positivo ou negativo nisso, se a pensamos com base na necessidade presente na natureza? Filósofos posterio-res dedicarão muita atenção a esse tema.

A origem da ideia de necessidade

Há uma série de elementos que per-mitem determinar o problema da relação entre necessidade e liberdade, trans-formando-o de dificuldade pontual em um autêntico problema filosófico. E quando dizemos isso, pensamos não só na filoso-fia antiga (especialmente no estoicismo), mas também no pensamento filosófico moderno e contemporâneo.

“Parece evidente que, se todas as cenas da natureza alterassem-se continuamente de tal maneira que jamais dois acontecimentos tivessem qualquer semelhança um com o outro, e cada objeto fosse sempre inteira-mente novo, sem nenhuma similari-dade com qualquer coisa que se tivesse visto antes, jamais teríamos chegado, nesse caso, a formar a menor ideia de necessidade, ou de uma conexão entre esses objetos [...] A relação de causa e efeito teria de ser absolutamente desconhecida pela humanidade [...] Portanto, nossa ideia de necessidade e causação provém inteiramente da uniformidade que se observa nas ope-rações da natureza, nas quais objetos semelhantes estão constantemente conjugados, e a mente é levada pelo hábito a inferir um deles a partir do aparecimento do outro. Nessas duas circunstâncias esgota-se toda a ne-cessidade que atribuímos à matéria. Fora da conjunção constante de obje-

tos semelhantes, e da consequente in-ferência de um ao outro, não temos a menor ideia de qualquer necessidade ou conexão.” (Hume, Investigação sobre o entendimento humano, seção 8: “Da liberdade e necessidade”. Tradução J. O. de Almeida Marques. São Paulo: Editora da UNESP, 2004, pp. 121-122)

Nessa passagem, David Hume[+] (1711-1776) pretende responder a uma questão muito clara: como chegamos a formar a ideia de necessidade? Dito de outro modo, e para usar um vocabulário típico de Hume e de filósofos modernos, qual é a origem da ideia de necessidade? Para Hume, qualquer questão de nature-za filosófica só pode ser bem pensada e resolvida se partimos dessa pergunta.

Isso porque, para ele, a resposta a essa pergunta é fundamental e prévia a todas as outras. Dela extraímos consequên-cias importantes sobre o tipo e alcance do conhecimento que podemos obter a respeito de qualquer assunto. O caso das noções de liberdade e necessidade, como veremos, é ilustrativo dessa ideia.

Note como já essa forma de abordar o tema distancia Hume do estoicismo (ver box à pág. 228). Para os estoicos, há uma verdade metafísica incontestável, que deve nos orientar em nossa investigação: a realidade, o mundo em que vivemos, tudo está subordinado a uma razão superior e divina , presente no próprio mundo, como

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uma alma está presente em um corpo. A regularidade dos acontecimentos e o fato de que tudo deve ter uma causa levou os estoicos a defenderem a tese de que exis-te uma racionalidade interna à natureza, conferindo-lhe um comportamento sis-temático e infalível. Tão infalível que determina inclusive nossas próprias ações, já que fazemos parte da natureza. Um exemplo? Se você está lendo isso agora, é por-que estava determinado que seria assim.

Hume chegará a con-clusões bem diferentes. Mas isso porque o ponto de partida tomado por ele nada tem a ver com o ponto do qual partiam os estoicos. A aborda-gem se altera radical-mente. Quando se per-gunta: “como chegamos a formar a ideia de necessidade”, “qual a origem em nossa mente da ideia de necessidade”, Hume não está falando diretamente sobre a rea-lidade, mas sobre o que acontece em nos-sa mente. Seu enfoque é, digamos assim, “subjetivo”, voltado para o sujeito do co-nhecimento, e não “objetivo”, como nos estoicos, que tiram conclusões a respeito de como as coisas realmente são, inde-pendentemente de como as percebemos.

Os estoicos chegaram à sua conclusão sobre a necessidade universal obser vando que os eventos naturais se dão sempre or-denadamente e numa sequência repeti-da. Daí tiraram sua conclusão metafísica. Ora, Hume também observa essa mesma ordem e regularidade nos eventos, mas, ao colocar a questão do ponto de vista es-tritamente mental, do ponto de vista do sujeito do conhecimento, ele só admite que há uma conjunção constante e regu-lar dos eventos. E nada mais. Porém, visto que nos habituamos a isso, terminamos

por concluir que os eventos se repetirão sempre assim.

Regularidade e uniformidadeEis o que, segundo Hume, explica que

possamos pensar a ideia de necessida-de. É fácil perceber que isso é bem diferente de dizer que essa necessida-de está presente nas coi-sas, como poderes secre-tos que as comandam. Esse passo, não estamos autorizados a dar, diz Hume. Podemos imagi-nar, e de fato imagina-mos que a regularidade entre os fenômenos ex-prime uma necessida-de objetiva. Só que, de verdade, nada pode nos assegurar sobre isso, ar-gumenta Hume.

Quais as consequên-cias dessa constatação, para pensar a relação entre liberdade e necessidade? Após algumas análises sobre o compor-tamento dos homens em geral, Hume concluirá:

“Reconhecemos, assim, uma uni-formidade nas ações e motivações hu-manas de forma tão pronta e univer-sal como o fizemos no caso das opera-ções dos corpos [...] Parece, então, não apenas que a conjunção entre motivos e ações voluntárias é tão regular e uniforme como a que existe entre cau-sa e efeito em qualquer parte da natu-reza, mas também que essa conjunção regular tem sido universalmente reco-nhecida pela humanidade, e nunca foi objeto de disputa, seja na filosofia, seja na vida ordinária.” (Hume, Inves-tigação sobre o entendimento humano, seção 8: “Da liberdade e necessidade”. Tradução J. O. de Almeida Marques. op. cit., pp. 124; 128-129)

Podemos imaginar que a regularidade

entre os fenômenos exprime uma

necessidade objetiva. Só que, de verdade,

nada pode nos assegurar sobre isso,

argumenta Hume.

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Agora, Hume afirma que, assim como observamos uniformidade e regularida-de na natureza e seus eventos, também constatamos, em grande medida, que as ações humanas – “ações voluntárias” – também apresentam constância. Pode-mos prever como seres humanos agirão, com base em seu comportamento, pois os homens, em diversas épocas e cultu-ras, e apesar de inegáveis diferenças, se mostram profundamente semelhantes. E quando essas previsões não se confir-mam, é porque algo inusitado ocorreu, fora do padrão costumeiro de ação. Veja bem, Hume não nega que os seres huma-nos agem por livre e espontânea vonta-de, como causadores livres de seus atos, sendo por isso capazes de agir de forma inesperada. Ele apenas observa que as

ações humanas são, na grande maioria das vezes, dotadas de tanta constância e regularidade quantos os acontecimentos naturais.

Se é assim, então a ideia de necessida-de que temos em nossa mente resulta da observação de uma conjunção constan-te tanto entre eventos naturais, quanto entre ações humanas voluntárias. O do-mínio da natureza e o domínio humano têm em comum serem pensados segundo uma mesma ideia de necessidade, que se origina da observação de ambos.

Ora, diferentemente dos estoicos, que explicavam a necessidade das ações humanas por meio de uma necessidade realmente presente na natureza, Hume apenas diz que nos dois domínios, o na-tural e o humano, somos capazes de ter

A regularidade estatísticaTrabalho em equipe e apresentação de seminário

A estatística procura determinar a frequência com que determinados eventos ocorrem. Para fazê-lo, é pre-ciso estabelecer o âmbito da pesquisa e determinar as possibilidades de va-riação dos fenômenos observados. Em grupos de dois ou três colegas, reali-zem consulta a jornais ou à internet e selecionem pesquisas estatísticas sobre três assuntos diferentes. Vale política, economia, demografia, pes-quisas sobre o número de acidentes automobilísticos etc. Procurem iden-tificar e destacar esses elementos nas pesquisas estatísticas consultadas por vocês. Em seguida, passem à prática, experimentando realizar, vocês mes-mos, uma pesquisa estatística. Formu-lem um objeto a ser investigado na sua unidade escolar. Pode ser qualquer

coisa pesquisável por essa metodo-logia: prática de esportes (quais, com que frequência etc.), hábitos culturais (frequenta museus/ cinema/ teatro? etc.) e assim por diante. Procurem sistematizar os resultados para então apresentá-los aos demais colegas na forma de seminário. A questão filosó-fica de fundo é a seguinte: se, como in-divíduos, cada um de nós é livre para fazer o que bem entende, como expli-car que façamos coisas tão parecidas com tanta frequência? Ou o fato de sermos livres não tem nada que ver com o fato de que há muita regulari-dade nos comportamentos que assu-mimos diante do mundo?

• Apresentem a posição de vocês a esse respeito, procurando respaldá-la em bons argumentos e boas razões.

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Assim como tantas outras questões de relevo, o par necessidade e liberdade foi abordado das mais distintas maneiras pelos autores de filosofia.

Há quem defenda que todos os acon-tecimentos, humanos ou não, são even-tos que se encontram igualmente sub-metidos a uma ordem necessária. Essa posição corresponde à filosofia do estoi-cismo, por exemplo (ver box à pág. 228). Conforme os estoicos, tudo se encontra determinado e segue uma única necessi-dade, que eles interpretam como sendo ordem divina do cosmos. Cabe ao sábio submeter-se a ela e admirá-la.

Mas há autores que pensam de ma-neira diversa. Conforme David Hume[+] (1711-1776), por exemplo, necessidade e liberdade são ideias que somente pos-suem um estatuto subjetivo. São apenas representações que formamos em nossas mentes com base no modo como inter-pretamos a experiência. Hume conclui que é impossível decidir se algo exterior e objetivo realmente corresponde a elas.

Ciências da natureza e ciências humanas

A despeito das diferenças significati-vas entre essas duas posições, note que há algo que ambas admitem e compar-

tilham. Tanto os estoicos quanto Hume não estabelecem qualquer diferença rele-vante entre eventos humanos e não hu-manos. Nenhum deles reconhece a exis-tência de marcas específicas que separem as ações humanas dos acontecimentos do mundo natural. Para os estoicos, toda

uma ideia de necessidade, baseada, nos dois casos, nas mesmas razões. E isso lhe parece suficiente para concluir que não há motivo para imaginar qualquer sentido em que se excluam liberdade e necessidade. Por isso, ele entende que o tema tem sido objeto de equívocos, e que é perfeitamente possível reconciliar liberdade e necessidade.

E como se daria essa reconciliação? Ao invés de afirmar que a necessidade dos acontecimentos naturais e das ações humanas são diversas uma da outra, Hume

toma outra direção. Ele descarta que seja-mos capazes de conhecer as causas pelas quais os eventos são realmente portadores de causas necessárias, que os fazem ser como são. Aqui, o que faz toda a diferença são os limites do conhecimento humano, uma característica muito importante de seu pensamento. Para esse filósofo, não conhecemos as causas metafísicas da rea-lidade e devemos nos conformar com isso.

Mas não precisamos nos preocupar com a liberdade e a necessidade de nos-sos atos, pois estão ambos garantidos.

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“New School For Social Research”,

instituição famosa por acolher

investigadores voltados para as ciências

humanas e sociais.

Necessidade natural e liberdade humana

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a realidade é igualmente determinada; para Hume, ao contrário, “liberdade” e “necessidade” são sempre representações subjetivas, digam respeito aos aconteci-mentos naturais ou aos acontecimentos culturais. Note que nem estoicos nem Hume se viram obrigados a diferenciar o âmbito natural do cultural na abordagem a essas questões.

No século XIX surgiu um debate que mudou essa história. O seu tema consiste no surgimento das “ciên-cias humanas”. Trata-se de um debate com con-sequências bem atuais, como é fácil perceber. Quer ver? Reflita sobre a classificação e divisão existente entre as dis-ciplinas do ensino uni-versitário. Você já parou para pensar na maneira como os cursos (direito, filosofia, biologia, mate-mática, física, engenha-rias etc.) estão organiza-dos no interior de uma universidade?

Uma repartição semelhante pode ser observada no Ensino Médio. Compare algumas das disciplinas que você tem na escola: matemática, física, biologia, de um lado; história, sociologia, língua e li-teratura, de outro. Em muitos países – e também durante muito tempo no Brasil –, a etapa final da Educação Básica era ou permanece sendo dividida conforme duas ênfases, a das disciplinas científicas e a das disciplinas humanísticas. A ên-fase em “ciência” privilegia matemática, física, biologia e química; a ênfase em estudos humanísticos dá maior peso a história, filosofia, língua e literatura. Até a década de 1960, no Brasil, esse direcio-namento curricular refletia-se nos cursos denominados “Clássico” e “Científico”.

Qual a origem dessas divisões, que hoje em dia foram atenuadas no Ensino

Médio, mas que permanecem válidas nas universidades? Qual o princípio ou o cri-tério utilizado para aproximar a física da matemática, por exemplo, ou a história dos estudos literários? Em resumo: o que explica esses agrupamentos?

Os nomes podem nos ajudar nisso. Muito provavelmente, você já se deparou com a expressão “ciências humanas”. Tra-ta-se de um termo que designa o conjunto de disciplinas voltadas para o universo hu-

mano, que abarca reali-zações e acontecimentos pertencentes ao âmbito da cultura. “Cultura” sig-nifica, nesse contexto, o que se diferencia da “natureza”. Não por aca-so, ao lado das “ciências humanas”, deparamos com outro grande agru-pamento, o das “ciências da natureza”.

Claro que a reparti-ção das disciplinas ou matérias nesses dois grandes grupos – “ciên-cias humanas” e “ciên-

cias da natureza” – não é rígida, muito menos definitiva. O saber e a prática das ciências são fenômenos dinâmicos. Por isso, não é surpresa que novos do-mínios sejam descobertos e explorados, e também acontece que domínios mais tradicionais sejam reinterpretados e re-definidos. Uma classificação muito usual, um pouco diferente dessa que estamos mencionando, não trabalha com dois, mas três grandes agrupamentos de dis-ciplinas: as ciências humanas, as ciências exatas e as ciências da vida. A classifica-ção, portanto, varia.

Há também disciplinas “híbridas”, que não admitem ser listadas somente em um ou outro desses grandes grupos, como é o caso, por exemplo, da geografia. É comum encontrarmos o estudo dessa disciplina dividido em “geografia física” e

A crer nas divisões atuais, existem ao

menos dois grandes agrupamentos

de discipinas: as “ciências humanas”

e as “ciências da natureza”.

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“geografia humana”. O motivo reside em que a geografia é uma disciplina que con-cerne tanto ao universo da cultura, quan-to ao da natureza.

Toda essa discussão sugere que temos mais de um tipo de ciência. Nosso desafio é compreender como essa diferença en-tre as ciências foi estabelecida. Para isso, examinemos alguns conceitos envolvi-dos nesse debate.

A ciência, em sua acepção geral, é um tipo de discurso que formula leis sobre um conjunto determinado de fenômenos. Mas será que a noção de “lei científica” é empre-gada da mesma forma em toda a extensão do saber? Isto é, será que a “lei” possui o mesmo significado em todas as disciplinas científicas? Ou, ao contrário, a lei científica opera de maneira diversa nas “ciências hu-manas” e nas “ciências da natureza”?

No âmbito dos fenômenos naturais, é usual compreender a lei científica como sendo a expressão de uma necessidade uni-versal, que em princípio não admite exce-ções. Nesse âmbito, é comum supor que a

lei preveja o que ocorrerá sob certas condi-ções, porque, sob tais condições, é inevitá-vel que ocorram tais e tais eventos. Quer ver um exemplo tirado do dia a dia? Se a água atingir a temperatura de 100º Cel-sius em um ambiente sob pressão = 1 atm, ela necessariamente entrará em ebulição.

O investigador da natureza não hesita-rá em afirmar que esse fenômeno obedece a uma necessidade inflexível, assim como, quando eu solto uma pedra dentro de um determinado campo gravitacional, ela “cai”. Por isso se afirma que, nessas circunstân-cias, a água está necessariamente determina-da a se transformar em vapor, e a pedra, a cair. Essa constatação está na base do que é conhecido como determinismo natural, que se apoia na solidez das leis físicas, biológi-cas etc. Mas o mesmo raciocínio é válido para fenômenos concernindo a cultura?

O determinismo nas ciências humanasSuponhamos que nas ciências hu-

manas nos deparássemos com fenô-menos submetidos ao mesmo tipo de

Divisões disciplinares no saber universitário de hojeDesenvolvimento individual por escrito

Recorrendo à internet, acesse duas ou mais instituições universitárias de sua escolha, de preferência uma perto e uma outra afastada de onde você mora. Nave-gue pelas páginas das universidades es-colhidas e verifique como estão agrupa-dos os cursos nelas oferecidos. A nomen-clatura varia de uma universidade para outra, mas o princípio de classificação dos cursos costuma ser o mesmo: ciências exatas, ciências humanas, ciências biomé-dicas. É também muito comum, ao lado desses três agrupamentos, encontrarmos uma “faculdade” ou um “setor” voltado

especificamente para as disciplinas jurí-dicas, assim como outra unidade voltada para diversas áreas da medicina.

• Faça a pesquisa em duas ou mais universidades. Em seguida, elabore um pequeno texto relatando os resultados obtidos. Nele, procure estabelecer como os cursos estão agrupados nas universi-dades escolhidas por você. (Por exemplo: na universidade A, os cursos ligados ao estudo e à prática do Direito estão reuni-dos em uma unidade chamada “Instituto de ciências jurídicas”; enquanto, na uni-versidade B eles estão reunidos em uma unidade chamada “Faculdade de Direito”, e assim por diante.)

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necessidade que prevalece nas ciências exatas. Fosse assim, os fenômenos ob-servados pelos historiadores ou pelos economistas, por exemplo, seguiriam um comportamento rígido e inflexível, como o que ocorre com a água, que necessa-riamente entra em ebulição ao atingir a temperatura de 100º Celsius em um am-biente sob pressão = 1 atm. O determinis-mo das ciências naturais também estaria presente nas ciências humanas.

Só que, como talvez você já tenha adi-vinhado, isso levanta um problema filo-sófico de peso. Afinal, caso defendamos que as ações humanas admitem a mesma necessidade que os fenômenos naturais, como poderemos afirmar que essas ações são livres?

Veja onde fomos parar. Se aplicarmos a noção rígida de lei, tal como presente nas ciências da natureza, no campo das ações humanas, não ameaçaremos a li-berdade que reivindicamos para nos-sos atos? Suponha que nossos desejos e vontades sejam tão previsíveis quanto

os fenômenos naturais, como ocorre no exemplo da ebulição da água. Nesse caso, não pesaria sobre nós a mesma necessi-dade inflexível a que obedecem os even-tos estudados pelas ciências naturais?

Há boas razões para admitir que o ser humano é capaz de escolhas e reações di-versas e até inesperadas diante do mundo. Nem por isso, é claro, o ser humano deixa de participar do mundo natural. O ser hu-mano possui uma realidade dupla: de um lado, produz o universo da cultura; de ou-tro, permanece um ser vivo, um organismo natural, um corpo que se encontra, junta-mente com os demais corpos, submetido a um conjunto de determinações que as ciências naturais procuram desvendar. Há, portanto, uma dupla condição que caracte-riza a humanidade: a natureza e a cultura.

O que concluir disso? Não é difícil no-tar que existe uma correspondência entre essa primeira divisão, entre natureza e o da cultura, e uma outra, entre o âmbito da necessidade e o âmbito da liberdade. De fato, a natureza parece caracterizar-se por

Wilhelm von Humboldt (1767-1835) foi o fundador da Universidade de Berlim, hoje chamada

pelo seu nome. A pedagogia de Humboldt está na base da estrutura universitária moderna. De

inspiração humanista, Humboldt defendia a união entre ensino e pesquisa.

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não admitir escolha por parte dos seres na-turais. Já o universo cultural, de seu lado, mostra-se muito diversificado, exatamen-te porque os indivíduos são capazes de elaborar reações e produzir criações dife-rentes umas das outras, em circunstâncias semelhantes. A coexistência de culturas as mais diversas entre si – tema que é abor-dado na Unidade Natureza e cultura, no módulo “A diversidade das culturas”– dá provas de que nós, seres humanos, forne-cemos respostas diferentes a problemas que dizem respeito a toda humanidade.

Talvez você possa considerar que uma forma de vida é “pior” que outra, que há tipos de cultura que exprimem valores e práticas que você dificilmente admitiria. Tudo isso é objeto de debate. Mas há algo sobre o que não resta dúvida. A discus-são sobre a melhor forma de vida envol-ve comparar culturas diferentes, o que já demonstra existir mais do que uma única forma de vida ao alcance dos seres huma-nos – simplesmente porque somos capazes de criar formas diferentes de vida social.

Essa diversidade de respostas, o fato de que podemos transformar nosso com-portamento, nossa ordem social e nossos esquemas de pensamento – isso prova que

o ser humano dispõe de liberdade para en-gendrar o novo, para criar algo que não es-tava predeterminado. Eis uma excelente razão para diferenciar fenômenos ligados às ciências humanas dos fenômenos que pertencem às ciências naturais.

Determinismo econômico e liberdade política

Vamos admitir que a característica es-pecífica da condição humana é a criação do novo, a capacidade de realizar ideais e perseguir objetivos simbólicos; de encon-trar respostas originais e inéditas para os desafios que nos cercam. É uma admissão bem vinda, para dizer o mínimo. Afinal, ao contrário dos fenômenos naturais, sempre podemos improvisar, o que torna sensato diferenciarmos os fenômenos da cultura dos eventos naturais. Por isso, a diferença entre ciências da natureza e ciências hu-manas é uma distinção pertinente.

Agora que admitimos isso, surge um novo problema, mais avançado. Será que, só porque assumimos o caráter “espontâ-neo” de boa parte de nossos atos, desapa-rece com um passe de mágica toda neces-sidade ligada aos fenômenos históricos, sociais e culturais? Ou aqui opera um tipo particular de necessidade, que também li-mita o raio de ação de nossas condutas?

Reflita um pouco sobre a sua trajetó-ria individual, sobre a sua condição pre-sente, sobre os planos que você possui para o futuro. Você seria capaz de afirmar que sua vida está acima de todo tipo de determinação ou condicionamento so-cial, cultural, histórico?

A fim de aprofundar essa questão, pen-se um pouco em como nós, indivíduos, nos inserimos nas relações complexas que constituem a sociedade. Dificilmente al-guém poderá afirmar que o lugar que ocu-pamos e os papéis que desempenhamos socialmente não condicionam de alguma maneira nossa forma de vida e, mais im-portante que isso, não condicionam tam-bém as escolhas que fazemos durante a

Podemos crer que nossa escolha é

completamente livre. Mas até que ponto

ela não é predeterminada por fatores que

ignoramos?

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vida. Alguém poderia até dizer, avançando nesta direção, que o próprio repertório de escolhas varia conforme a posição de parti-da que o indivíduo ocupa no corpo social...

Liberdade e seus limitesPor aí você já pode perceber que seria in-

gênuo imaginar que nossa liberdade ope-ra de forma ilimitada, como se estivesse sempre a nosso alcance pensar ou mesmo desejar uma coisa qualquer. Curiosamen-te, queremos certas coisas, não outras – e, dentre as coisas que queremos, muitas

constituem também os objetivos de pes-soas próximas a nós, que se encontram sob circunstâncias semelhantes às nossas. Talvez isso não seja mera coincidência. Pode acontecer que aquilo que queremos, assim como as alternativas com que nos defrontamos na vida, estejam em alguma medida predeterminadas pelo que somos socialmente.

Procuremos formular essas dúvidas de modo mais qualificado. Vamos supor que nossa faculdade de querer é livre, e assim exerçamos nossa liberdade. Por um lado,

Instinto versus espontaneidadeSeminário em duplas

O universo da cultura abarca as ar-tes, as ciências, a tecnologia. Tudo isso nos torna capazes de modificar a na-tureza. Mesmo assim, permanecemos integrando o mundo natural. Os seres humanos dispõem de uma dupla con-dição: por um lado, somos parte da natureza; por outro, nossa condição racional nos permite modificar o curso da natureza de acordo com objetivos que transcendem nossas necessidades biológicas.

Uma ocasião de comentar essa du-pla condição surge pela diferença en-tre as reações instintivas aos estímulos externos e nossas criações espontâne-as. Há um conjunto de reações que são “automáticas”, isto é, que não depen-dem de nossa vontade ou consciência. Tome como exemplo o caso da água que ela entra em ebulição a 100º C sob a pressão de 1 atm: assim também, se qualquer um de nós em condições fi-siológicas normais tocar com a mão a chaleira onde há água fervendo, ime-

diatamente recolherá a mão, evitando queimar-se. Ao lado de reações instin-tivas, todavia, há também um conjunto de atitudes que são “espontâneas”, no sentido de que sua realização pode ou não transcorrer, a depender de nossa vontade ou consciência. Essas atitudes espontâneas parecem assinalar que so-mos seres dotados de liberdade. Pois, embora sob condições normais não sejamos livres para nos afastar de algo que produz uma dor intensa, somos li-vres para, por exemplo, reagir desse ou daquele modo a uma agressão física ou verbal. Podemos inclusive ignorá-la.

• Forme uma dupla com um colega e, juntos, procurem separar o âmbito das questões relacionadas com a “es-pontaneidade” daquelas realizadas por “instinto”. Primeiro, demarquem essas duas classes de atuação dos seres hu-manos. Em seguida, procurem fundar essa diferença em uma explicação que singularize cada uma das classes de atuação diante da outra. Apresentem os resultados aos demais colegas em forma de seminário.

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o ser humano é capaz de inovar, de ser espontâneo e livre, especialmente quan-do consideramos o âmbito da vida social, simbólica e cultural de nossas existências.

Por outro lado, essa liberdade é exer-cida dentro de certos limites, parâmetros que estão fora do alcance de nossa vontade individual. Isso não significa que não haja liberdade; significa apenas que ela não é absoluta. Tudo leva a crer que as formas de nosso pensar, nossa “mentalidade”, como se costuma dizer, fixam balizas ou parâmetros que, ao exercermos nossa liber-dade, dificilmente conseguimos contornar.

Se é assim, o que, afinal, determina nossa mentalidade, antes mesmo que pensemos aquilo que pensamos? Veja-mos, com esse intuito, o que nos dizem dois importantes autores que refletiram a fundo sobre esse problema no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels:

“Podemos diferenciar os seres hu-manos dos animais pela consciência, pela religião, pelo que bem entender-mos. Eles próprios começam a diferen-ciar-se dos animais tão logo começam a produzir seus meios vitais, passo esse que é condicionado pela sua organiza-ção corporal. Na medida em que os se-res humanos produzem seus meios vi-tais, eles indiretamente produzem sua própria vida material.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tradução nossa. Edi-ção de referência: “Deutsche Ideolo-gie”, in: Marx-Engels Werke. Berlim: Dietz Verlag, 1978, vol. 3, p. 21)

Essas linhas retomam a divisão entre os seres humanos e o reino da natureza. Mas note que, segundo os autores, Marx e Engels, o que instaura essa diferença é algo muito peculiar. Para eles, o que nos singulariza face ao reino animal é o fato de que nós, humanos, produzimos nos-sos meios vitais, os meios que asseguram nossa sobrevivência. Ao fazê-lo, produ-zimos nossa “vida material”. E essa é a

razão pela qual nossa vida em sociedade pôde assumir formas por vezes tão “ar-tificiais”, tão distantes das condições em que se encontravam nossos ancestrais.

Mas isso não é tudo. A exposição de Marx e Engels prossegue com uma afir-mação contundente: somos aquilo que fazemos, dizem eles. Com isso, querem deixar claro que os seres humanos en-contraram, no decorrer da história, for-mas diferentes de assegurar os meios vi-tais. De acordo com Marx e Engels, cada uma dessas formas corresponde ao que eles designam um modo de produção dos meios de existência. E cada modo de pro-dução é uma forma de vida determinada, manifestando uma maneira particular de existência. Nas palavras dos filósofos:

“Os indivíduos são de acordo com o modo como manifestam sua vida. Logo, aquilo que são coincide com sua produção, tanto com o que produzem, quanto com como produzem. O que, portanto, os indivíduos são depende das condições materiais de sua produ-ção.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tradução nossa. Op. cit., p. 21)

Vamos entender por que Marx e Engels afirmam ter adotado um enfoque “mate-rialista” para abordar a realidade social. Repare no texto. A ênfase da passagem citada aqui (e também da obra de onde ela foi extraída) recai sobre as condições materiais da existência dos seres huma-nos. Estas podem variar, claro – e Marx e Engels, logo após esse trecho, repassam os diversos momentos da história social da humanidade, marcando as diferentes formas através das quais os seres huma-nos cuidaram de assegurar e reproduzir seus meios de existência.

Só que, diversidade à parte, Marx e Engels afirmam haver uma coisa que abran-ge todas essas formas, algo que é comum a todas elas. O que há de comum a todas as formas de produção – como a economia

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feudal ou a economia burguesa moderna – é que elas condicionam o conjunto de repre-sentações que os indivíduos de cada época possuem: representações sobre si mesmos, sobre os outros, sobre o mundo.

“Condicionar” equivale em certo senti-do a “determinar”. A tese sustentada por Marx e Engels, portanto, é a de que o con-junto de representações, ideais e valores que os indivíduos de uma dada época ou sociedade possuem é ditado pelas condi-ções materiais, pela forma de produção de riqueza daquela época ou sociedade. Veja a conclusão que eles então extraem daí:

“A moral, a religião, a metafísica e demais ideologias, tanto quanto as formas de consciência que lhes correspondem, perdem, assim, sua aparência de auto-nomia. Elas não pos-suem história, nem tampouco desenvolvi-mento; mas são os ho-mens que, modificando sua produção material e seu comércio mate-rial, modificam com sua realidade tam-bém seu pensamento e os produtos de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a cons ciência.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tra-dução nossa. op. cit., p. 27)

Note que esta “vida” que determina a “consciência” – isto é, nossas represen-tações, ideias e valores – não consiste de condicionamentos fisiológicos. Trata-se, isso sim, da vida já modificada pelos se-res humanos, a maneira como os indiví-duos de uma sociedade asseguram suas condições de existência.

Eis aí um ponto importante para nossa discussão. Pois, como você já viu, segun-

do Marx e Engels, a “consciência” é sem-pre determinada por condicionamentos materiais, relativos a um certo modo de produção de riquezas. Se é assim, como um indivíduo ou uma classe de indivídu-os podem agir livremente sobre o mundo ao seu redor?

Se aceitarmos o argumento de Marx e Engels, veremos a noção de liberdade res-tringir-se de maneira radical. Você pode até imaginar que, como indivíduo que age aqui e agora, é livre, fazendo escolhas de acordo com seus parâmetros de men-talidade, suas representações da vida e do mundo. Entretanto, a crer nesses dois fi-lósofos, o leque de representações de que você dispõe para optar por isso ou aquilo

já se encontra condi-cionado pela realidade material que pesa sobre você e sobre o meio em que você se insere.

Quem contestaria que ser livre não é igual a poder fazer qualquer coisa a qualquer momen-to? Até aqui, o raciocínio de Marx e Engels limita o alcance da liberdade sem chegar a ameaçá-la. Mas isso não é tudo.

Essa é apenas a pri-meira consequência da

análise materialista de Marx e Engels. O argumento desses filósofos possui uma implicação mais profunda para as relações entre necessidade e liberdade. Para compreendê-la, devemos atentar para o que já anunciamos antes: a história huma-na engendra formas de produção de rique-za diferentes umas das outras.

Além disso, as formas de produção sob as quais a sociedade se organiza evoluem, transformam-se (pense, por exemplo, em sociedades de coletores; caçadores; agri-cultores: as formas de produção influem sobre a própria conformação social). A argumentação materialista de Marx e

Para Marx e Engels, o que diferencia os seres humanos dos animais é o fato de

produzirem uma “vida material”, na busca de meios que garantam

sua sobrevivência.

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Engels leva a entender essas mudanças no modo de produção como fatores que modificam as formas de pensamento.

Sob a perspectiva do materialismo de Marx e Engels, o moderno desenvolvi-mento da forma de produção capitalista cria uma nova divisão social do trabalho – trabalhadores de um lado, proprietá-rios dos meios de produção de outro – e intensifica as trocas comerciais em um nível que abarca todo o globo terrestre. Diante disso, os autores apontam o que lhes parece uma consequência esperada do desenvolvimento do capitalismo:

“O comércio, que nada mais é do que a troca dos produtos de diferentes indivíduos e países por meio da rela-ção da oferta e da procura, domina o mundo inteiro – uma relação que [...] paira sobre a terra como o destino an-tigo, e com mão invisível distribui a fe-licidade e a desgraça entre os homens, que faz povos surgirem e outros desa-parecerem.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tradução nossa. Op. cit., p. 35)

Veja que o trecho citado retoma um ponto central explorado em outro módulo desta Unidade. Pois o “destino antigo” mencionado aí nada mais é do que a neces-

sidade universal de que falavam os filósofos estoicos! Mas claro que, ao constatarem a presença do “destino antigo” no modo de produção capitalista, Marx e Engels não es-tão querendo dizer que tudo seja necessário e que a liberdade humana seja ilusória.

Não é isso que eles afirmam, a começar porque dizem apenas que a lógica do mer-cado funciona como se fosse o destino anti-go, com sua necessidade inflexível – suge-rindo, por outro lado, que isso não precisa ser sempre assim. A conclusão que Marx e Engels tiram daí é a seguinte: enquanto não for ultrapassada a etapa do capitalis-mo, os seres humanos não poderão ser efe-tivamente livres, pois esse sistema econô-mico-social se caracteriza pela dominação de uma classe – a burguesia – sobre todos os demais grupos da sociedade.

Para os dois filósofos materialistas, mesmo que o Estado moderno possa as-sumir a forma da democracia representa-tiva, fazendo crer que um povo soberano decide os rumos a serem tomados por sua nação – isso, concluem os autores, não pas-sa de ilusão. O Estado, a organização polí-tica é somente a expressão da dominação da burguesia sobre a classe operária. Pois o capitalismo corresponde, segundo esse argumento, ao estágio histórico no qual a política é determinada pelos capitalistas.

Como superar essa situação? Marx e Engels só enxergavam uma saída: a revo-lução proletária, isto é, a tomada do poder pelo classe trabalhadora. De acordo com seu pensamento, somente desse modo o comércio e a acumulação de riquezas ca-pitalistas seriam eliminados, dando oca-sião ao surgimento de uma sociedade na qual todos os seres humanos poderiam exercer sua liberdade de fato.

Marximos para além de MarxDurante sua vida, Karl Marx e Friedrich

Engels viram sua obra adquirir um alcance não apenas no meio intelectual, mas tam-bém fora dele. Suas investigações se torna-ram um destacado instrumento analítico da

Greve de operários em São Paulo em 1907. Muitos

deles eram imigrantes italianos em busca de um futuro

melhor nas Américas.

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Marx e Engels

Karl Marx foi um importante pensa-

dor da filosofia política e da economia no

século XIX. Nascido em 1818 em Trier, na

Prússia, atual Alemanha, integrou o movi-

mento denominado esquerda hegeliana,

que sustentava posições críticas ao regime

político vigente. Como editor do jornal “Ga-

zeta Renana”, Marx publicou diversos arti-

gos de oposição à monarquia prussiana, o

que lhe rendeu a expulsão da terra natal,

perseguições políticas por toda a Europa e

a impossibilidade de ingressar na carreira

acadêmica.

Friedrich Engels, também alemão, nas-

ceu em 1820. Membro de uma família rica,

seu pai era um industrial importante, e foi

o contato com a miséria dos operários que

trabalhavam em suas fábricas o que des-

pertou em Engels o interesse pelas ideias

socialistas. Engels foi para a Inglaterra e,

em uma viagem à França, conheceu Marx,

em 1844. Os dois se tornaram coautores de

diversas obras e amigos muito próximos,

além de aliados políticos que desempe-

nharam juntos papel importante na orga-

nização do movimento operário europeu.

Entre os principais temas do pensamen-

to de Marx e Engels destacam-se, como

determinantes do processo histórico, a

democracia radical, a alienação religiosa e

econômica, a ideologia e as forças produti-

vas do capital, além da tese da supressão

da propriedade privada como fundamen-

to da emancipação humana. Marx morreu

em 1883 em Londres. Engels também mor-

reu em Londres, em 1895.

I -  Principais obras de Marx e Engels

traduzidas para a língua portuguesa:

K. Marx, Sobre a questão judaica. Tradução

de Nélio Schneider, Daniel Bensaïd e

Wanda Caldeira Brandt. São Paulo: Boi-

tempo, 2010.

K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã. Su-

pervisão editorial de Leandro Konder.

Tradução de Rubens Ederle, Nélio Sch-

neider, Luciano Cavini Martorano. São

Paulo: Boitempo, 2007.

K. Marx e F. Engels,  Manifesto comunista.

Tradução de Álvaro Pina. São Paulo:

Boitempo, 1998.

K. Marx, O capital. Tradução de Rubens En-

derle. São Paulo: Boitempo, 2013.

 II - Obras introdutórias sobre Marx:

J. A. Giannotti, Marx: vida & obra. Porto Ale-

gre: L& PM, 2001.

L. Konder, Marx: vida e obra. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1999.

A. Codato, “Marx: a política, o poder e o Es-

tado capitalista, in: V. Figueiredo (org.).

Filósofos na sala de aula – Vol. 2. São

Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2007,

pp. 110-154.

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Estátua em bronze de Karl Marx e Friedrich

Engels na cidade de Chemnitz, antiga Karl

Marx-Stadt. Escultor: Walter Howart (1957).

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produção social da riqueza, como também um elemento ideológico importante no palco das lutas políticas pelo mundo todo.

A Revolução Russa de outubro de 1917 é o exemplo mais conhecido da tomada do poder político por um partido orientado por ideias marxistas, o partido bolchevi-que. Mas a tomada de poder pelo partido bolchevique, que deu origem à União Sovi-ética, terminou assumindo formas de do-minação política que negaram a liberdade dos indivíduos. Josef Stalin (1878-1953) assumiu a direção do Partido Comunista Soviético em 1922 e comandou a União Soviética com mãos de ferro até sua mor-te, em 1953.

Algo semelhante ocorreu na China, dirigida há décadas pelo Partido Comunis-ta Chinês, que tomou o poder em 1949, sob a liderança de Mao Tse-Tung (1893-1976).

Seria precipitado pretender avaliar a teoria marxista pelos resultados da via socialista, orientação política tomada por diversos países na história moderna e contemporânea. A começar porque as experiências socialistas do século XX não se basearam apenas no marxismo, combi-

nando com ele outras formas de reflexão política, como o leninismo e o maoísmo.

O século XX assistiu a reinterpretações e aplicações concretas do legado de Marx e Engels que eles dificilmente teriam ima-ginado. Em muitos países sob a ordem ca-pitalista, o marxismo foi e ainda hoje é um instrumento para a reflexão crítica sobre o presente. Seu interesse teórico não pres-supõe a subversão efetiva da estrutura so-cial existente por meio de uma revolução.

Necessidade e liberdade na políticaQue conclusões podemos extrair dessa

etapa de nosso percurso? Você aceitaria a ideia de que, no plano da política, neces-sidade e liberdade não precisam se opor inevitavelmente? Pode-se, por exemplo, dizer que a prática da política é necessá-ria e, ainda assim, atribuir essa atividade à nossa liberdade. Por sermos livres, deve-mos enfrentar tarefas políticas, por meio das quais nos tornamos sujeitos políticos.

É isso, entre outras coisas, que as de-mocracias modernas reconhecem sob o conceito de “cidadania”. Se, por um lado, a cidadania é um direito, possuir cida-

Pregão de bolsa de valores. O mercado financeiro tornou-se uma força econômica

e política considerável no mundo contemporâneo, suscitando críticas por parte de

pensadores que falam em “determinismo econômico”.

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dania envolve também ter deveres. En-tretanto, o fato de a cidadania envolver deveres não impede que, nas democra-cias modernas, ela seja concebida como expressão da liberdade.

A falta de liberdade parece ocorrer nos momentos em que a possibilidade de ações com sentido político é bloqueada. O que confere sentido político a uma ação é a liberdade política. A instauração de uma ditatura de qualquer orientação ideológi-ca, o abuso do poder por parte do Estado, a cristalização de uma burocracia intran-sigente, o bloqueio das instituições de-

mocráticas, o descontrole econômico, a intolerância de certas doutrinas ideológi-cas, tudo isso coloca em risco a possibili-dade de fazer política, de participar dela.

A dissolução da política, desse ponto de vista, pode ser caracterizada como um retorno à condição da natureza, compre-endida como reino da necessidade. Pois, quando nos faltam as condições para exercer efetivamente nossa liberdade po-lítica, os rumos da sociedade adquirem características de uma necessidade cega, diante da qual as escolhas dos indivíduos é completamente irrelevante.

O determinismo econômico como ameaça para o ambiente

Atividade em equipe, apresentação de seminário e desenvolvimento individual por escrito

Conforme Marx e Engels, a economia é um forte fator de condicionamento da política. Pode-se divergir deles quanto ao grau desse condicionamento. Mas mesmo economistas que não são mar-xistas estão de acordo que, em algum grau, a economia fixa limites para as de-cisões políticas.

Um exemplo: você realmente acredi-ta que um governo possa, por exemplo, implementar medidas que modifiquem radicalmente a ordem econômica atual? Não estamos indagando se isso é ou não desejável. Queremos refletir apenas sobre se isso é ou não possível. Em que medida a política é capaz de regular a economia?

Encontramos uma ilustração disso no debate sobre os riscos que a produ-ção e a acumulação de riqueza na eco-nomia capitalista trazem para o equilí-

brio ecológico. O ritmo do crescimento econômico e a exploração concomitante dos cada vez mais escassos recursos na-turais dão sinais de que podem alterar radicalmente as condições climáticas, causar a degradação dos mares e, des-se modo, afetar a vida na terra. Isso fez da ecologia um ponto importante para o debate político contemporâneo. Essa agenda e os desafios que ela impõe às gerações de hoje e do futuro põem em evidência um aspecto do problema que estamos discutindo.

• Em dupla, pesquise o assunto recor-rendo a revistas, jornais e internet: As instâncias de decisão política em diver-sos níveis (municipal, estadual, nacional e internacional) têm ou não se mostrado capazes de regular a exploração preda-tória das fontes naturais pelos agentes econômicos? Apresente os resultados para os demais colegas em forma de se-minário. Ao fim, produza uma redação expondo o seu ponto de vista sobre o assunto.

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unidade 9 ordem e caos

Por mais que às vezes nos pareçam opres-sivas, o que seria de nossa vida e de nos-

so mundo se todas as leis, regras e normas, tomadas como instrumentos de instituição e manutenção da ordem, subitamente deixas-sem de valer? Seria o fim da civilização, a cha-mada barbárie?

A bagunça do meu quarto ..................... 251

A origem do mundo ..................... 256

A ordem política ..... 259

Da ordem do irracional ........... 267

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A Guerra civil norte-americana, ou Guerra de Secessão, ocorreu entre 1861 e

1865, e opôs onze Estados Confederados, do Sul, contra os Estados do Norte

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A bagunça do meu quarto

“Vá arrumar o seu quarto, ele está uma bagunça!” Você já deve ter ouvido isso mui-tas vezes. Em algumas delas, é possível que você tenha se sentido injustiçado, por achar que a tal “bagunça” não era desordem, mas um arranjo particular das coisas, determi-nado por suas próprias escolhas e hábitos. O fato, porém, é que o que está arrumado do seu jeito pode parecer desordenado a outras pessoas.

Em meio a essa situação tão cotidiana, você pode se perguntar: O que torna uma ordem, estabelecida por mim ou por outra pessoa, indispensável? Para refletir sobre essa pergunta, imagine se toda ordem fos-se eliminada, não só a de seu quarto e a da casa em que você mora, mas também a da própria sociedade da qual você é parte, e até mesmo do universo que habitamos.

Digamos que seria o caos. Porém, agora, um novo problema se coloca. O que deve-mos entender por essa palavra? Podemos chegar a imaginar o caos? Se levarmos em conta que nossa imaginação e, sobretudo, a linguagem que praticamos já são ordenado­ras (pense, por exemplo, nas técnicas artís-ticas e nas regras gramaticais), é duvidoso que possamos descrever, representar ou mesmo nomear um estado de completa au-sência de ordem.

Santo Agostinho[+], filósofo e teólogo medieval, definiu ordem (ordo) nos seguin-tes termos: “disposição de coisas iguais ou desiguais atribuindo-se a cada uma o seu lu-gar” (A cidade de Deus 19, 13, 1, apud Fonta-nier, Vocabulário latino da filosofia: de Cícero a Heidegger. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 100-101).

Se, com base nessa definição de ordem, perguntamos o que é o caos, esbarramos numa grave dificuldade: como compreen-der um elemento que rejeita lugar na ordem, não se subordina à hierarquia estabelecida ou não se relaciona com nenhum outro ele-mento do conjunto em que está inserido?

Todavia, é esse “irrelacionável” o que, por vezes, encontramos naquilo que cha-mamos “desordem”.

Ordem civil, controle e sociedadePense em uma guerra civil, por exem-

plo. À primeira vista, trata-se de um esta-do de completa desordem, em que os gru-pos em conflito buscam impor aos demais a sua própria ordem. Tudo se passa como se o conflito deflagrador do caos fosse uma etapa da instituição de uma nova ordem. O caos, nesse caso, é o que antecede ao surgimento de uma nova ordem, como se a preparasse. Por isso, também, é um caos transitório, muito mais fácil de compreen-der do que a ideia de um caos mais dura-douro e aparentemente definitivo.

Em certo sentido, a vida humana asse-melha-se a uma contínua luta com o caos. A vida seria possível sem ordem? Numa passagem do livro I da República, Platão[+]

(427-347 a.C.) faz a principal personagem de seus diálogos, Sócrates, argumentar em

A geometria fractal, fruto das pesquisas do mate-

mático Benoit Mandelbrot (1924-2010) é um

complexíssimo modelo matemático que busca

esclarecer comportamentos aleatórios. Seu traba-

lho foi central para o que veio a ser chamado de

“teoria do caos”.

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ção:

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favor da necessidade da justiça como prin-cípio de ordem: mesmo em uma quadrilha, os ladrões precisam ser justos uns para com os outros, proceder com ordem, caso contrário não poderiam ser bem sucedidos em seus intentos. A desordem entre eles impediria a própria ação conjunta em rela-ção à ordem contra a qual se voltam.

Mas nosso exemplo inicial não vai tão longe, pois seria exagero enxergar quem deixa o quarto bagunçado como se fosse um contraventor... O que interessa é que, se alguma vez ocorreu de lhe dizerem para arrumar o quarto e você retrucou que ele já estava arrumado, você também assumiu para si o princípio da ordem. Uma ordem que talvez só você consiga compreender, é verdade, mas ainda as-sim uma ordem. Logo, quando contesta-mos a imposição de uma ordem alheia e estranha a nós, quase sempre é para ver reconhe cido nosso próprio princípio de ordenação. E isso, é fácil perceber, é bem diferente de tomar o partido do caos.

Não por acaso, o filósofo Edmund Hus-serl (1859-1938) disse: “a verdadeira ciên-cia deve ordenar o caos em um cosmos, em

uma ordem simples, completamente clara e desenvolvida” (Husserl. A filosofia como ciência rigorosa. Tradução nossa. Edição de referência: Philosophie als strenge Wissen­schaft. Frankfurt am Main: Vittorio Klos-termann, 1965, p. 69). Desse ponto de vista, a própria verdade depende de orde-nação, entendida como procedimento de eliminação do caos.

Por outro lado, não é fácil instituir e conservar uma ordem, seja ela qual for. O motivo talvez resida em que a total eli-minação do caos, por meio da instaura-ção de uma ordem definitiva, seja um fim irrealizável.

Voltemos ao exemplo da vida em socie-dade. Se já não é fácil manter o quarto ar-rumado ou simplesmente convencer os ou-tros de que ele está em ordem... o que dizer então da complexa tarefa de se administrar uma sociedade composta por grupos dife-rentes, cada qual com interesses particu-lares, cujas ações são ordenadas em senti-dos ora convergentes, ora divergentes, ora francamente opostos? Pense nas grandes cidades do Brasil e do mundo: elas não são, ao mesmo tempo, ordem e caos?

Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), Torre de Babel (1563, óleo sb/ madeira).

Conforme o relato bíblico, Deus dispersou os povos pela diferença de suas línguas.

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O PLANEJAMENTO URBANÍSTICO DE BRASÍLIA

Como você deve saber, nossa capital fe-

deral, Brasília, nasceu antes no papel do que

na realidade. Ou melhor, numa prancheta, a

do arquiteto e urbanista Lúcio Costa (Tou-

lon, França, 1902 – Rio de Janeiro, 1998).

Tudo começou com a decisão do presidente

Juscelino Kubitscheck (1902-1976).

Lúcio Costa venceu o concurso nacional

que selecionou o projeto urbanístico da nova

capital federal, até então situada na cidade do

Rio de Janeiro. Sua concepção da nova capital

foi inspirada nos ideais da arquitetura e do ur-

banismo modernos. Não por acaso, o grande

parceiro de Lúcio Costa na elaboração dos es-

paços e edifícios públicos na nova capital foi

Oscar Niemeyer (1907-2012).

Leia, abaixo, um trecho do memorial do

plano piloto de Brasília, de autoria de Lúcio

Costa, que lhe valeu a premiação do projeto

com base no qual a capital federal foi edifi-

cada. Nesta passagem, em que Lúcio Costa

apresenta a solução que havia idealizado para

a questão da moradia na nova cidade, você

perceberá o aspecto do planejamento, da or-

denação ideal do espaço urbano:

“Quanto ao problema residencial, ocorreu a

solução de criar-se uma sequência contínua de

grandes quadras dispostas em ordem dupla ou

singela, de ambos os lados da faixa rodoviária,

e emolduradas por uma larga cinta densamente

arborizada, árvores de porte, prevalecendo em

cada quadra determinada espécie vegetal, com

chão gramado e uma cortina suplementar inter-

minente de arbustos e folhagens, a fim de res-

guardar melhor, qualquer que seja a posição do

observador, o conteúdo das quadras visto sem-

pre num segundo plano e como que amortecido

na paisagem. Disposição que apresenta a dupla

vantagem de garantir a ordenação urbanística

mesmo quando varie a densidade, categoria,

padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios

e de oferecer aos moradores extensas faixas

sombreadas para passeio e lazer, independente-

mente das áreas livres previstas no interior das

próprias quadras.” (Lúcio Costa, Brasília, cidade

que inventei. Relatório do Plano Piloto de Brasília.

Brasília: Governo do Distrito Federal, 1991, p. 30)

No oposto da origem planejada de Brasí-

lia, há inúmeras cidades na Europa que man-

têm ainda intacto o desenho antigo de suas

ruas centrais. Cidades como Spoleto, na re-

gião da Umbria, ou Barga, na região da Tos-

cana, ambas na Itália; a aldeia de Piódão, em

Portugal, ou a cidade de Chartres na França,

são exemplos de uma ocupação urbana não

planificada, ao menos não nos moldes mo-

dernos, quando a cidade passou a poder ser

pensada antes mesmo de vir a existir, como é

o caso de Brasília.

Plano piloto de Brasília

Aprofundemos este aspecto de nossa questão. Observamos anteriormente as di-ficuldades que cercam a noção de caos. Isso porque não é fácil definir precisamente o conceito que corresponde a essa palavra .

Mas vejamos o outro lado do proble-ma. Será que a nossa vida pode se desen-volver em uma ordem simples, comple-tamente clara e lógica, imune a qualquer adversidade caótica?

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A ordenação plena da vida talvez não seja possível e nem desejável, pois a com-pleta subordinação a uma ordem, caso isso fosse mesmo possível, atingiria nos-sa liberdade. Desse ponto de vista, bus-car submeter os homens a uma ordem imposta a todo custo leva, mais cedo ou mais tarde, ao conflito, à violência e eventualmente à desordem. Assim, o desejo de imposição da ordem pode pro-duzir seu contrário, o caos! Não por aca-so, no curso do século XX, houve muitos pensadores que, impressionados com o avanço formidável da tecnologia, lança-ram uma advertência sobre os riscos que isso poderia trazer. Aproximando o ideal de realização de uma ordem absoluta à noção de controle, eles protestaram con-tra a tendência de fazer da ordem total um objetivo que devêssemos perseguir.

A complexa conformação social brasileiraEssas observações mostram que a

multiplicidade, a complexidade parece inseparável da existência da ordem. Veja-mos a esse respeito um caso emblemático, o da formação da nossa própria sociedade.

Recorrendo à nossa História, é fácil constatar que a chegada dos colonizadores ao território depois batizado de Brasil não foi, a rigor, uma “descoberta”, de acordo os estudos mais aceitos nos dias atuais. As-sumir esse termo significaria, para esses estudos, desprezar os povos que já viviam aqui, cuja terra foi, do ponto de vista dos habitantes locais, invadida.

O processo fundador do Brasil foi inega-velmente marcado pela imposição violenta de uma ordem, de um sistema econômico--social e de uma cultura completamente es-tranhos à vida dos povos nativos, e também à das populações trazidas à força da África. A submissão de indígenas e africanos aos valores europeus, à sua religião, ao trabalho forçado, bem como o extermínio de popula-ções inteiras pelas guerras ou por doenças testemunham abundantemente esse fato.

Aldous Huxley e O admirável mundo novo

Desenvolvimento individual por escrito

“As pessoas que governam o Admi-rável Mundo Novo podem não ser sãs de espírito (no sentido absoluto desta palavra), mas não são loucas, e o seu fim não é a anarquia, mas a estabilida-de social.” Essas são palavras do “Pre-fácio” de 1946 da obra O admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley (1894-1963), um dos romances mais lidos do século XX. O livro conta a his-tória de uma era no futuro, em que os seres humanos são adestrados e trei-nados para viver socialmente em total harmonia. Não há, nem pode haver conflito, desordem ou caos no futuro do admirável mundo novo.

Huxley deixa claro que essa visão do futuro é sombria, exatamente por-que nessa sociedade todas as ativida-des e desejos estão constrangidos a promover “a estabilidade social”. Há uma versão cinematográfica de Admi-rável mundo novo, dirigida por Leslie Libman e Larry Willians (EUA, 1998).

• Tendo em vista as questões en-volvidas na fábula de um planejamen-to social total, procure, em um texto de aproximadamente duas páginas, posicionar-se sobre a seguinte inda-gação: a seu ver, a tecnologia está sendo utilizada como meio para cria-ção de uma ordem social que termina se confundindo com o controle sobre os indivíduos? Ou, ao contrário, o pro-gresso da tecnologia não põe em ris-co a nossa liberdade individual?

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Contudo, a imposição da ordem eco-nômica e social europeia às populações ameríndias e africanas não explica por si só a formação da nossa sociedade, bas-tante singular se comparada à de outras nações colonizadas por outros países europeus.

Como se sabe, foi característica da co-lonização portuguesa a miscigenação dos povos (que deu origem, no pensamento social brasileiro dos séculos XIX-XX, ao assim chamado “mito das três raças”: o português, o indígena e o africano ).

O impacto da confrontação entre povos bastante diferentes, porém en-volvidos num mesmo processo (o da colonização do Brasil) terminou sendo decisivo para a formação da sociedade brasileira. De fato, o tecido social nacio-nal é feito de muitos agentes diferentes,

oriundos de diversas tradições e cultu-ras. Aos portugueses, indígenas e africa-nos, juntaram-se depois tantos outros, como os imigrantes vindos da Europa e da Ásia. A constituição da sociedade brasileira não remonta a nenhuma or-dem ou unidade cultural tomada em se-parado, mas ao encontro conflitante de ordens de início diferentes entre si.

Retomemos, agora, as considera-ções gerais com que começamos nossa discussão. Quando falamos em caos, tendemos a nos referir à desordem, compreendida no sentido da desestru-turação de uma ordem preestabelecida: por exemplo, a queda do Império Roma-no, a decadência do Absolutismo, a que-bra de um sistema econômico, a falência de uma empresa ou mesmo uma doença degenerativa.

Em dezembro de 1933, foi publicada uma

obra que se tornaria por muito tempo refe-

rência para a compreensão da formação da

sociedade brasileira: Casa-grande e senzala,

escrita pelo pernambucano Gilberto Freyre

(1900-1987).

No mesmo período, foram publicados ou-

tros dois marcos para a compreensão de nosso

país, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque

de Holanda (1902-1982), e Formação do Brasil

contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr. (1907-

1990). Mas a obra de Gilberto Freyre é, dentre

essas, a que dedica mais atenção à miscigena-

ção e às consequências que a mistura das po-

pulações branca, índia e negra produziu sobre

a sociedade brasileira.

Freyre discute no livro de que forma a

vida colonial, que encontrou sua expressão

nas propriedades fundiárias dos senhores de

engenho (a casa-grande ao lado da senzala),

não apenas conformou relações de hierarquia

como também de proximidade entre os agru-

pamentos característicos da colônia, sobretu-

do entre brancos e negros. Ao longo do livro,

Freyre examina diversos aspectos da miscige-

nação, que se tornou uma prática bastante ge-

neralizada, dando forma ao que terminou se

tornando a identidade nacional brasileira.

A obra de Freyre representou uma rup-

tura com modelos teóricos antecedentes,

que, baseadas em concepções naturalistas e

deterministas, preconizavam que a mistura

de raças seria prejudicial à formação da civi-

lização no Brasil. De outro lado, Casa-grande

e senzala foi frequentemente criticada como a

obra responsável pela criação do mito da “de-

mocracia racial” brasileira, o que, na visão de

diversos intérpretes, travou o reconhecimen-

to da existência do racismo no Brasil. O deba-

te em torno disso envolveu o próprio Freyre,

que, em mais de uma ocasião, procurou reba-

ter tais críticas.

GILBERTO FREYRE E A MISCIGENAÇÃO NO BRASIL

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Em todos esses casos, tomados como eventos caóticos, tende-se a ressaltar o aspecto negativo do caos, a indicar que, em nossa compreensão usual da relação entre ordem e caos, subentendemos a ordem como mais valiosa. No entan-to, no exemplo anterior sobre a forma-ção da identidade nacional, destaca-se a ideia de que, em boa medida, o caos também pode ser a ocasião da ordem.

De um lado, há situações em que a tentativa de impor uma ordem a qual-quer custo termina produzindo desor-dem e caos. De outro, há situações em que da desordem surge uma ordem.

Extraímos disso uma conclusão im-portante: a de que ordem e caos são noções correlatas, imbricadas uma na ou-tra. Seria possível separá-las completa-mente?

Johann Moritz Rugendas

permaneceu no Brasil entre

1822 e 1825 e publicou

em 1835 suas imagens em

Viagem pitoresca através do

Brasil (1835).

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A origem do mundo

À pergunta sobre a origem do mundo os homens respondem de inumeráveis formas, diversas e antagônicas: a ordem do mundo tem origem exterior ao mundo; a ordem do mundo é autossuficiente; o mundo é ordenado e racional; e, até mes-mo, o mundo é caos e acaso. Todas essas, e outras mais, são respostas possíveis a questões de caráter cosmológico.

Particularmente interessante, pelo de-safio que abre para a nossa compreensão, é a “resposta” que encontramos em um dos textos mais antigos do pensamento ocidental, a Teogonia (“O nascimento dos deuses”) de Hesíodo, poeta grego que vi-veu entre os os séculos VIII e VII a.C.

O poema de Hesíodo pretende narrar “desde o princípio” (ex arkhês) a geração dos

primeiros elementos, dos primeiros deuses e dos homens a partir dos deuses. Os deu-ses olímpicos (Zeus, Apolo, Ares, Hermes etc.) formam apenas uma das gerações narradas no mito. Após um preâmbulo de-dicado a louvar as Musas, o poeta começa a narrativa da gênese dos deuses assim:

E quem primeiro surgiu foi Kháos, mas logo a seguir /

Terra de amplo peito, sempre firme assento de todos /

os imortais que habitam os picos do nevado Olimpo; /

[então] sombrio Tártaro no âmago do solo de largos caminhos, /

e Amor, o mais belo dentre os deuses imortais,/

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que afrouxa os membros, a todos os deuses e a todos humanos /

vencendo­lhes, no peito, [qualquer] propósito e ponderada determinação. /

E de Kháos geraram­se tanto Érebo quanto a negra Noite, /

também por sua vez da Noite nasceram o Éter e o Dia, /

aos quais concebeu e pariu ao misturar­se ao Érebo em afeição.

(Hesíodo, Teogonia, versos 116-125. Tradução nossa.)

Hesíodo considera o Caos (Kháos) o primeiro dos deuses, do qual todos os de-mais descendem. Principalmente, depois do Caos nasceu Eros (o Amor), aquele que torna possível a geração dos que se suce-dem (Éter e Dia, diz o poema, foram gera-dos através do amor entre Noite e Érebo). Não é espantoso?

Afinal de contas, em Hesíodo o “caos” é indicado como princípio da teogonia, da ordem dos deuses e dos homens.

O próprio Zeus, instaurador e mante-nedor do Olimpo, é um descendente dis-tante de Caos. O caos, nesse caso, é ori-gem da ordem do mundo (kósmos).

Esse sentido por assim dizer “positi-vo” do caos exprime-se, aliás, na própria

língua grega. O vocábulo Kháos procede de um termo comum aos verbos gregos khaíno, que significa “abrir-se” ou “en-treabrir-se”, “abrir a boca”, “ficar boquia-berto de espanto, espera ou admiração”, “abrir a boca para falar”, “falar” (khános: “boca”); e khásko: “abrir-se”, “bocejar”, “ficar boquiaberto” (cf. A. Bailly, Diction­naire grec­français. Paris: Hachette, 2000, pp. 2113, 2127).

Assim, na origem da palavra Kháos, confluem duas atitudes opostas: a do espanto diante de algo que nos deixa boquiaberto e a da articulação dos sons conforme o propósito de se comuni-car com os outros. No mito de Hesíodo, “Caos”, o primeiro dos deuses, dá origem a um mundo organizado no qual os deu-ses e os homens são gerados por atração mútua. De modo semelhante, abrimos a boca para falar, para produzir mediante sons palavras encadeadas em uma ordem e possuindo um sentido.

Nesse contexto, o caos não desagrega, mas articula e organiza, embora a ordem nele constituída seja muito diversa da relativa a um sistema de razões, cujos elementos se deixam deduzir uns dos ou-tros segundo regras universalmente váli-das de explicação.

Vênus (Afrodite, na

mitologia grega) é

a deusa do amor

e da beleza. Mas,

para os romanos,

é também mãe de

Cupido, cujas fle-

chas trazem desor-

dem (Sandro Bot-

ticelli [1445-1510],

O nascimento de

Vênus, óleo sb/

tela, 1485).

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O Caos se opõe à ordem?O que há de tão significativo para nós

nesse mito? É que, no contexto do pen-samento grego de Hesíodo, entre caos e cosmos parece não existir uma oposição radical, mas, sim, uma complementação. Ora, em nossa linguagem cotidiana, “caos” não é frequentemente oposto a “cosmos”? Quando nos referimos a “cosmos”, geral-mente pensamos na apreciação de uma disposição harmônica das coisas. E essa ideia é antiga. De fato, na Unidade Reali-dade e aparência (módulo “As aparências enganam?”), examina-se como, a partir de Pitágoras, a ideia de cosmos exprime a es-trutura harmônica do universo.

Por mais instigante que seja o pensa-mento veiculado na poesia de Hesíodo, o pensamento filosófico moderno, especial-mente em sua vertente racionalista, assu-me uma direção divergente da dele.

As vertentes do pensamento racio-nalista postulam como verdade inques-tionável que tudo exige uma causa como razão de origem, razão essa que pode-ria ser entendida enquanto inteligência, seja ela humana ou divina. Os modernos – a exemplo de René Descartes[+] (1596-1650), Gottfried Leibniz (1646-1716) e Baruch Espinosa (1632-1677) – expri-mem tal posição dizendo, por exemplo: Ex nihilo nihil fit, “Do nada nada se faz”; Nihil est sine ratione, “Nada é sem razão”.

Na linguagem da filosofia moderna, essas teses são enunciadas no princípio de razão suficiente. Do ponto de vista desse princípio, seria absurdo pensar uma ori-gem caótica da ordem, porque isso seria contrário à razão, na medida em que esta toma como princípio universal de explica-ção da realidade justamente... a impossibi-lidade de algo nascer da desordem.

Logo, aos olhos de um defensor do racionalismo, seria impossível explicar a razão de algo que faz exceção à ordem. O que está fora da ordem é interpretado como não sendo nada, até mesmo como “o Nada”, porque contraria o princípio de ex-

A pergunta metafísica pela ordem

tornou-se indagação pelo princípio de

ordenação da vida social – uma questão

recorrente entre os antigos.

Albu

m/P

rism

a/La

tinst

ock

plicação de tudo o que verdadeiramente é, para essa corrente de pensamento.

Diferentemente, no mito arcaico de He-síodo, em lugar do princípio que exige uma causa racional para todo acontecimento, inclusive o do próprio mundo tomado em sua totalidade, encontramos o Caos como um elemento primordial e Eros, o amor, como princípio de geração.

Mas não se engane. Hesíodo não nos apresenta uma explicação rudimentar da realidade, mas um discurso poético cuja maneira de “encontrar” o real difere de uma explicação baseada em causas ou razões .

A realidade não é racionalmente expli-cada na mitologia de Hesíodo, mas, diga-mos, apresentada de uma certa maneira. Podemos, de forma muito geral, chamá-la poética. Nela algo nos é contado, mas não necessariamente explicado, no sentido de uma ordenação de razões consequentes. Será, então, que a forma poética do discur-so de Hesiodo é uma maneira efetiva de abordar a “realidade” enquanto esta resis-te à explicação racional?

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É bem fácil constatar que algum tipo de ordem se faz necessária na vida coti-diana. Da arrumação da casa ao ordena-mento jurídico da sociedade, passando pelas regras do jogo que cada um con-sidera o seu preferido, deparamo-nos com ordenações, regulamentos e normas por todo lado. Placas nas ruas assinalam as leis que regulam o trânsito. Relógios de ponto controlam a hora de entrada e

Hoje em dia, é verdade, uma poética como a Teogonia nos soa fantasiosa, emi-nentemente imaginativa, como um discur-so sobre “coisas que não existem”. E isso é algo muito diferente de uma descrição objetiva ou de uma explicação científica de fatos. Mas você deve refletir se a impressão que o poema de Hesíodo produz sobre nós não tem a ver com a nossa necessidade de sempre identificar, em nosso contato com a realidade, uma “razão suficiente”.

Dito de outro modo, pode ser que veja-mos a poética de Hesíodo como fantasiosa

porque somos demasiadamente modernos. Como seria possível crer em mitos, se sem-pre estamos à espera de uma explicação? Se essa for uma boa pergunta, então vale a pena você refletir também sobre o fato de que, quando preferimos uma explicação a um mito, estamos também preferindo, no limite, a ordem ao caos, ao que nos pare-ce sem explicação e caótico. Não há nada de errado nisso. Mas é sempre importante examinar o compromisso que essa escolha representa para a compreensão que possuí-mos da realidade.

“Cultura”, “cultivo”

O significado originário da palavra

“cultura” vem do “cultivo” da ter-

ra, como a nos lembrar que o uni-

verso cultural próprio dos seres

humanos nasceu da articulação

entre duas ordens: a da natureza

(ciclo das estações) e a fabricada

pelos humanos a fim de tirar pro-

veito do meio que habitam.

A ordem política

saída do trabalho. Comissários de bordo demonstram aos passageiros do avião as normas de segurança que devem ser se-guidas durante o voo e o que é preciso ser feito em casos de emergência.

Mesmo quando damos asas à imagi-nação, seguimos ou mesmo criamos uma ordem de relações entre os elementos que utilizamos. A execução de uma música, por mais espontânea que seja, é pautada por um ritmo, que não pode ser “atravessado” por nenhum dos integrantes do conjunto. No âmbito das relações entre natureza e cultura, tema de outra Unidade deste li-vro, o ciclo das estações possibilitou aos humanos organizarem uma intervenção or­denada sobre a natureza, da qual passaram a extrair seu sustento. O cultivo do solo, é sempre oportuno recordar, está na origem da palavra e do conceito de “cultura”.

Seja natural ou humana, a ordem, como foi dito, parece encontrar-se por todo lado. Ao percebermos que a vida cotidiana é per-meada de ordem, surge a suspeita de que algum tipo de ordenamento esteja sempre presente em nossas vidas. De fato, muitos filósofos dedicaram-se a discutir a origem da ordem por contraposição ao caos, in-vestigando o princípio a partir do qual a ordem é produzida ou o princípio com base no qual a ordem vigente é justificável.

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No caso da reflexão sobre a política, não há como evitar esta questão. Pois a política, em seu sentido mais imediato, é o conjunto de códigos e regras com base nos quais indivíduos interagem socialmen-te. É com base em re-gras, normas e leis que os indivíduos consti-tuem uma coletivida-de mais ampla do que, por exemplo, a unida-de familiar.

Qual a natureza desses códigos e des-sas regras? Sobre que bases as normas da vida política se encon-tram fundadas? São com indagações como essas que nos depa-ramos quando nos pomos a pensar acerca da nossa própria existência na sociedade.

Isso explica por que parte importan-te da filosofia política tenha se dedicado a refletir sobre a origem da vida civil ou política. Indagar pela origem ou princípio da vida política equivale a indagar pelas razões do ordenamento político sob o qual vivem os indivíduos e, por extensão, pela finalidade da vida civil. A pergunta pelo princípio, na política, é a pergunta pela origem da ordem política e dos fins reali-zados por ela.

E qual seria a resposta a essa per-gunta? Melhor dizendo, quais seriam as respostas? Como se verifica em outras áreas da filosofia, também neste caso há mais de uma resposta para a mesma pergunta. A história da filosofia política apresenta mais de uma solução para a per-gunta pela origem ou princípio da ordem social. Mas esta diversidade não deve nos assustar. Afinal, as formas de organiza-ção política da sociedade se modificaram profundamente no curso do tempo. Era mesmo de esperar, por isso, que a refle-

xão política também se alterasse em fun-ção das modificações por que passaram os fenômenos políticos ao longo da história.

Selecionamos para exame duas res-postas à pergunta pela origem e finalidade da ordem política. A pri-meira delas é a solução, por assim dizer, “clás-sica” formulada por Aristóteles[+] (384-322 a.C.) na Grécia antiga e que permaneceu váli-da, em grandes linhas, durante a Idade Média. A segunda é a resposta fornecida por Thomas Hobbes (1588-1679), cuja obra constitui o ponto de partida prin-cipal da filosofia polí-tica moderna. Como

será fácil perceber, estas duas respostas diferem substancialmente uma da outra. A diferença entre elas nos instrui sobre o que separa os antigos dos modernos.

O animal políticoLeiamos com atenção o trecho abaixo:

“Que o homem seja um animal polí­tico em grau superior que uma abelha qualquer ou de todo outro vivente em estado gregário, isso é evidente. A na­tureza, com efeito, segundo pensamos, nada faz em vão: e somente o homem, dentre todos os animais, possui a pala­vra. Ora, enquanto a voz só serve para indicar a felicidade e a dor, e pertence por conta disso igualmente aos outros animais (pois sua natureza experi­menta as sensações do prazer e da dor e chega a significá­los uns aos outros), o discurso serve para exprimir o útil e o nocivo e, por consequência, o justo e o injusto. Pois é o caráter próprio do homem, em comparação com os outros animais, de ser o único a possuir o sen­

Para Aristóteles, o ser humano é o mais

político de todos os animais, porém é o discurso ou a

linguagem o que o diferencia dos outros

animais.

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timento do bem e do mal, do justo e do injusto, e das outras noções morais; e é a comunidade desses sentimentos que engendra a família e a cidade.” (Aristó-teles, Política. Tradução nossa. Livro I, capítulo 2, 1253a)

Com base na análise desse passo, vamos procurar apontar a orientação geral da con-cepção de Aristóteles sobre a política.

A primeira coisa a reter é a afirmação de que o ser humano é o mais político de todos os animais. Como você sabe, há animais que vivem em grupo e dispõem de uma organização social complexa, que pode chegar a incluir até a divisão de trabalho. As abelhas, por exemplo, espe-cializam-se conforme funções e tarefas a cumprir no interior da colmeia: algumas são “operárias”, outras, “guardiãs”, e uma única dentre todas elas, a “rainha”. Em certa medida, portanto, abelhas também são “políticas”.

Mas Aristóteles chama a atenção para o fato de que “somente o homem, dentre todos os animais, possui a palavra”. É, por-tanto, a palavra – ou seja, o discurso ou a linguagem – o que diferencia o ser humano dos outros animais. Se muitos dentre eles possuem a capacidade de emitir sons e por meio deles comunicar prazer e dor, só os humanos aparentam ser capazes de ir além disso – e, com o discurso, “exprimir o útil e o nocivo e, por consequência, o justo e o injusto”. Fazê-lo é ultrapassar o instinto, é praticar a política em sentido próprio.

Conforme Aristóteles, portanto, a po-lítica está profundamente articulada com o discurso. Pois de um lado o discurso possibilita compartilhar noções morais, tais como o bem, o mal, o justo e o injusto; de outro, tanto a família, quanto a cidade, têm origem quando os homens comparti-lham esses sentimentos – o que só é pos-sível graças ao discurso. Na língua grega, “discurso” é lógos, que também significa “razão”, “pensamento”. Assim, é porque são capazes de pensamento e linguagem

que os humanos são naturalmente “ani-mais políticos”, conforme Aristóteles.

O que define a humanidade é a racionalidade. E isso quer dizer que, a fim de realizarem sua essência, os seres hu-manos têm de organizar-se em sociedades políticas (a pólis, isto é: a Cidade, como fa-lava Aristóteles). Só no interior da Cidade o ser humano se realiza plenamente, já que, se estiver apartado da vida política,

Entre os gregos da Antiguidade, pólis era o

nome da “Cidade-Estado”, isto é, da unidade

política que reunia um conjunto de indivíduos

sob leis, normas, uma armada e uma adminis-

tração comuns. A Grécia antiga reunia diversas

Cidades-Estado, cada uma delas com caracterís-

ticas próprias. As mais conhecidas foram Atenas

e Esparta. É a palavra grega pólis que dá origem

aos termos “política” (português), politics (in-

glês), Politik (alemão), politique (francês) etc.

Há muita polêmica em torno do momento

exato em que se originou a pólis. Para alguns

estudiosos, ela remonta aos regimes oligárqui-

cos dos séculos VIII a.C.-VI a.C. Para outros, é

mais característica dos regimes democráticos,

que surgiram a partir do século VI a.C. De todo

modo, há um ponto consensual entre os estu-

diosos da Cidade-Estado: todos estão de acordo

com o fato de que o tipo de organização políti-

ca representada por ela consolidou uma forma

de mentalidade, para a qual o uso da palavra se

torna o principal instrumento de poder. Por isso,

é frequente associarmos ao surgimento da pólis

o aparecimento da retórica e da oratória, da ló-

gica e da argumentação, como também, em úl-

tima análise, a consolidação da filosofia. Há um

livro que examina o vínculo entre o surgimento

da pólis e o nascimento da filosofia que vale a

pena ler:

Jean-Pierre Vernant, As origens do pensamento

grego. Tradução: Ísis B. da Fonseca. Rio de Janeiro:

DIFEL, 2010.

PÓLIS, A CIDADE-ESTADO DA GRÉCIA ANTIGA

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ele se verá impedido de compartilhar a ra-zão e de servir-se do discurso.

O lobo do homemPassemos, agora, ao exame do pen-

samento de Thomas Hobbes, filósofo, político, autor de uma obra considerada tão importante para a filosofia política quanto a Política de Aristóteles. Trata-se do livro intitulado Leviatã, publicado na Inglaterra, em 1651.

Examinar um trecho desta obra irá nos transportar para uma concepção da política muito distinta daquela que exa-minamos acima. Hobbes diverge de Aris-tóteles sob muitos aspectos. Mas quere-mos enfatizar aqui sobretudo um deles. Vimos que, conforme Aristóteles, a po-lítica é, fundamentalmente, o exercício conjunto das faculdades morais e inte-lectuais dos indivíduos. Para Aristóteles, política e discurso estão profundamente ligados. Pois bem, o que verificamos em Hobbes é algo diverso.

A linguagem, segundo Hobbes, até é importante para a política, mas está longe de ser o que a define. Embora Hobbes ad-mita que a linguagem e o discurso são es-senciais aos humanos, não é sobre isso que

ele insiste, ao explicar-nos o que é preciso para que se estabeleça a vida política.

Leia o trecho abaixo, procurando atentar para a novidade introduzida por Hobbes em relação a Aristóteles:

“Mesmo que haja uma grande mul­tidão, se as ações de cada um que a compõe forem determinadas pelo jul­gamento e pelos apetites individuais de cada um, não se poderá esperar que ela seja capaz de dar defesa e prote­ção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra os danos causa­dos uns aos outros. Pois, se suas opi­niões divergem quanto ao melhor uso e aplicação da sua força, em vez de se ajudarem só se atrapalham uns aos outros, e essa oposição mútua faz re­duzir a nada a sua força. Assim, não apenas facilmente serão subjugados por uns poucos que tenham en trado em acordo, mas além disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns contra os outros, por causa dos seus interesses particula­res. Pois se conseguíssemos imaginar uma grande multidão capaz de con­sentir na observância da justiça e das

A revolução

inglesa opôs o

rei Carlos I, da

Inglaterra, aos

seguidores do líder

revolucionário

Oliver Crommwel

(1599-1658).

Carlos I foi

executado em

1649.

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outras leis da natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente conseguiríamos imaginar a humanidade inteira capaz de fazer o mesmo. Nesse caso não ha­veria, nem seria necessário, nenhum governo civil ou república, pois have­ria paz sem sujeição.” (Hobbes, Levia-tã ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008, Capítulo XVII [“Das causas de uma república”], pp. 144-145)

Agora, passemos à análise do trecho. Vamos realizá-la em três etapas.

“Uma grande multidão” significa, aqui, uma comunidade de indivíduos bem mais ampla do que, por exemplo, uma unidade familiar. Hobbes está nos dizendo que não basta haver uma grande multidão para as-

segurar aos indivíduos nela reunidos defe-sa e proteção contra inimigos externos – ou seja, contra um “inimigo comum”. Mas isso não é tudo.

Essa multidão, continua Hobbes, não é capaz sequer de assegurar a paz interna en-tre os indivíduos que a compõem. A apoiar--se somente sobre os julgamentos e incli-nações de cada um dos seus integrantes, o grupo que forma essa “grande multidão” poderá facilmente autodestruir-se. Contra o que defendia Aristóteles, assim, Hobbes afirma que, para constituir e manter uma ordem política, não basta aos indivíduos comunicarem-se uns com os outros.

Em segundo lugar, Hobbes apresenta as razões que apoiam as conclusões que ele havia avançado na primeira parte de nosso trecho. Isso é sinalizado pelo recurso à con-junção explicativa “pois”, que inicia o pe-ríodo. Releia com atenção o passo, e procu-re, assim, identificar a razão apontada por

Hobbes

Thomas Hobbes nasceu

em West port, na Inglater-

ra, no ano de 1588. Como

ele mesmo conta, seu nas-

cimento transcorreu sob

o signo do medo. Quando

sua mãe estava grávida, a

Espanha travava uma guer-

ra com a Inglaterra. Hobbes

veio à luz precocemente,

quando sua mãe soube, te-

merosa, que a Invencível

Armada, isto é, as forças ma-

rítimas da Espanha, estavam preparando-se

para o ataque aos ingleses.

Desde cedo, Hobbes revelou seus dotes

intelectuais. Aos seis anos, já sabia grego e

latim. Aos 14, traduziu a tragédia grega de

Eurípedes, Medeia, para o latim. Após se for-

mar (1608), Hobbes tornou-se tutor de um

aristocrata e com ele viajou pela França, Ale-

manha e Itália. Mais tarde,

em 1637, Hobbes retorna

à França e estabelece boas

relações com o padre Marin

Mersenne (1588-1648), muito

próximo de René Descartes.

A crise política e social

atravessada pela Inglaterra a

partir de 1640, que resultou

numa guerra civil e na deca-

pitação do rei Carlos I (1600-

1649), marcou profundamen-

te a vida e a obra de Hobbes,

a começar porque, tendo tomado partido

do rei contra o parlamento, viu-se obrigado

a exilar-se por onze anos em Paris. Quando

retorna à Inglaterra, em 1651, publica seu livro

mais famoso, Leviatã. As ideias expostas na

obra garantem fama, mas também inúmeros

adversários a Hobbes, acusado de imoralis-

mo, ateísmo etc. Hobbes falece em 1679.

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Hobbes para o fato de que uma multidão de indivíduos reunidos possa fracassar em promover sua defesa e a segurança mútua.

Você perceberá que a principal razão desse provável fracasso reside na diver-gência de opiniões dos indivíduos sobre o melhor uso a fazer de sua força. É o desacordo mútuo o que enfraquece es-ses indivíduos e os expõe tanto ao risco de serem domi nados por algum grupo coeso, quanto ao risco de se indisporem internamente uns com os outros, a pon-to de guerrearem entre si, devido a seus “interesses particulares”.

O que leva os homens a se associarem?Se agora voltarmos à comparação com

Aristóteles, poderemos identificar qual o principal motivo que conduz Hobbes a contrariá-lo. Conforme Hobbes, os ho-mens dificilmente se entendem uns com os outros, simplesmente porque cada qual busca fins próprios, que divergem dos fins alheios. Nada, segundo Hobbes, favorece uma convergência espontânea entre os indivíduos.

Em terceiro e último lugar, no trecho citado Hobbes afirma que “uma grande

O gênero cinematográfico do faroeste explora

uma típica convenção narrativa: o vácuo

de poder político cria oportunidade para

o banditismo e todo tipo de abusos – e o

“mocinho” busca restaurar a ordem.

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DE QUE FILME?

multidão” não age espontaneamente com base na justiça, nem com base em outras leis da natureza. Com isso, Hobbes aponta que os indivíduos podem até saber o que seja a justiça; só que coisa bem diferente de saber no que ela consiste é agir obser­vando – isto é, respeitando – a justiça. Isso eles não fazem, a não ser sob a condição de que exista “um poder comum” que mantenha “a todos em respeito”. Se fos-se possível prescindir dessa condição; se, portanto, os indivíduos agrupados em uma grande multidão fossem capazes de agir juntos observando a justiça, sem se-rem forçados a isso por um “poder comum que mantivesse a todos em respeito”, nes-te caso, conclui Hobbes, o “governo civil ou república” não seriam necessários.

Eis o ponto para o qual está orienta-do todo o raciocínio de Hobbes em nosso trecho. Visto que os indivíduos não ob-servam espontaneamente a justiça, só há paz com sujeição. Sujeição a que? A “um poder comum que mantenha a todos em respeito”... Esta é a grande novidade da concepção política hobbesiana em relação à concepção aristotélica. Segundo Hobbes, só há ordenamento político onde há uma instância cuja força é capaz de manter uni-dos todos os indivíduos do corpo político.

Afirmar que não há paz sem sujeição equivale a dizer que uma multidão de indivíduos reunidos só se torna uma unidade política ordenada na medida em que estes indivíduos aceitam submeter--se a um poder comum, dotado de força para obrigar a todos aí reunidos a agirem conforme a justiça. Ou seja, a existência do governo civil (ou “república”) depen-de diretamente da presença de uma ins-tância de coerção, munida de força para normalizar as relações interindividuais. Na ausência dessa instância coercitiva, a divergência de interesses termina por in-dispor os indivíduos entre si e impossibi-litar a ordem política: é o caos. Sem uma autoridade reconhecida por todos e do-tada de força dissuasiva, conclui Hobbes,

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não há vida política possível, é a guerra de todos contra todos.

Ao contrário do que você pode ter sido levado a pensar, a tese de Hobbes, embo-ra tenha sido formulada no século XVII à época do Antigo Regime, não vale apenas para uma monarquia absoluta, mas tam-bém para as formas atuais da democra-cia. Pois também na ordem democrática percebe-se claramente a presença do que Hobbes designava “um poder comum capaz de manter a todos em respeito”. Há formas bem concretas para atestá--lo. Basta um cidadão pretender sonegar seus impostos, por exemplo, para sentir concretamente o poder do Leviatã. E isso é tão sabido de todos, que no Brasil o im-posto de renda é chamado coloquialmen-te de... “leão”!

Assim também, mesmo se de forma mais sutil, o Estado (o Leviatã hobbesia-no) mostra todo seu poder ao configurar--se como a única instância de reconheci-mento legal da união matrimonial entre indivíduos. É o Estado quem outorga o direito de propriedade da terra; também é o Estado quem define quais são os bene-ficiários de suas políticas de inclusão so-cial e assim por diante. Mesmo ali onde a soberania emana do povo (ou seja, numa democracia), é o Estado soberano quem, em última instância, reconhece os indiví-duos como cidadãos, dotados de direitos e deveres.

Conforme Hobbes, é a busca de pro-teção e segurança o que faz com que os homens ingressem na sociedade política. Contrariamente ao que pensava Aristó-teles, Hobbes defende que a vida política responde principalmente ao desejo dos indivíduos de se assegurarem frente aos interesses abusivos dos outros. A união faz a força e dá segurança a cada um dos indivíduos reunidos em um corpo político.

Mas note que essa união só é realizá-vel na medida em que todos os indivíduos reconhecem um indivíduo ou um grupo de indivíduos como seu(s) governante(s).

É difícil dizer quando exatamente surgiu o ide-

ário do anarquismo. Os anarquistas viram com

muita simpatia J.-J. Rousseau, que defendia que o

ser humano é naturalmente bom e que a socieda-

de o corrompe. Certo é que o primeiro a declarar-

-se “anarquista” foi Pierre-Joseph Proudhon (1808-

1865), filósofo e político francês. Ele afirmava que

o Estado era um mal desnecessário e que os tra-

balhadores deveriam associar-se em comunidades

livres de propriedade privada. Seu livro mais im-

portante chama-se O que é a propriedade? Pesquisa

sobre o princípio do direito e do governo, de 1840. Ao

lado dele, o principal teórico anarquista é o russo

Mikhail A. Bakunin (1814-1876), que se tornou co-

nhecido por sua oposição à ideia de ditadura do

proletariado, defendida por Karl Marx.

Por acreditarem que os governantes de modo

geral querem exercer um controle total sobre os

indivíduos, muitos anarquistas defenderam a

desobediência civil. Nos Estados Unidos, alguns

anarquistas se recusaram a pagar impostos para o

governo, alegando que, com isso, estariam contri-

buindo para fortalecer algo contrário à liberdade.

Alguns anarquistas chegaram a se auto-exilar em

regiões desabitadas, construindo suas próprias

casas e vivendo em um regime de subsistência.

Outros lutaram para introduzir na constituição

norte-americana uma emenda que permitisse ao

contribuinte assinalar o destino de seus impostos.

No Brasil, o anarquismo foi difundido a partir

de imigrantes italianos que aqui chegaram no fim

do século XIX e início do século XX. No Paraná, no

município de Palmeira, foi fundada em 1890 a Co-

lônia Cecília, sob a liderança do anarquista italiano

Giovanni Rossi (1859-1943). A Colônia chegou a con-

tar com 250 indivíduos, que viviam da lavoura de

milho. Diante de inúmeras dificuldades, entretan-

to, os membros se dispersaram e a Colônia Cecília

findou em 1894.

Alguns livros sobre anarquismo em português:

Proudhon, A propriedade é um roubo e outros

escritos anarquistas. Tradução: Suely Bastos. Porto

Alegre: L&PM Pocket, 1998. Disponível em e-book.

Bakunin, O princípio do Estado e outros ensaios.

Tradução: Plínio A. Coelho. São Paulo: Hedra, 2008.

O PENSAMENTO ANARQUISTA

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A tragédia do Haiti

Discussão em grupo e desenvolvimento individual por escrito

Abaixo, você encontrará um possível desenvolvimento dos tópicos abordados até aqui, para discussão com seus colegas de classe e redação de aproximadamente duas páginas.

Apresentamos a seguir um caso real para discutirmos uma questão conceitual. Ela concerne à discussão sobre a questão da ordem política segundo Hobbes. Trata--se de um fato tirado da história contem-porânea, envolvendo a política internacio-nal, a crise político-social do Haiti. O exame desse caso possibilitará compararmos a tese de Hobbes, segundo o qual só há paz em sociedade se o Estado for um poder coercitivo “que mantém a todos em res-peito”, e aqueles que defendem o oposto, os anarquistas (ver box à pág. 267). Para o anarquismo, o Estado é uma invenção dos governantes para exercerem um controle excessivo sobre os indivíduos.

Em dezembro de 1990, Jean-Bertrand Aristide foi eleito presidente do Haiti. Em setembro de 1991, ele foi deposto por um golpe de Estado promovido por militares. Organizações internacionais como a Or-ganização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) protestaram e pediram sua recondução ao poder. Após breves negociações fra-cassadas, os militares empossaram Émile Jonassaint, marcando eleições para feve-reiro de 1995. Sob liderança dos Estados Unidos da América, a ONU não apenas contestou a legitimidade do poder de Jo-nassaint, como autorizou uma interven-ção militar no país, que teve início em setembro de 1994. Entre 1994 e 2000, o Haiti mergulhou em uma profunda crise

política, a despeito de dois presidentes terem sido eleitos. A crise prosseguiu até 2004, motivando nova resolução do Con-selho de Segurança da ONU, determinan-do o envio de uma Força Multinacional Interina, liderada pelo Brasil. Em junho de 2004, as forças internacionais assumiram o poder por longo tempo, visto que à crise política somaram-se todos os infortúnios trazidos pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010, que arrasou o país, tirando a vida de mais de 200 mil pessoas.

Ao discutir a história recente do Haiti, atente para a seguinte questão: até que ponto a noção de “normalidade” equi-vale à vigência de uma ordem? É possível alcançar uma necessária estabilidade do corpo social sem que haja um poder reconhecido como tal? A crise política e a tragédia causada pelo terremoto no Haiti é um caso extremo, mas represen-ta uma situação que poderia abater-se sobre qualquer povo.

Note, por outro lado, que um simpati-zante do anarquismo poderia protestar e dizer que o caso do Haiti não é adequado para esse debate, já que a situação que mergulhou o povo haitiano na crise já possuía causas ligadas ao mal represen-tado pelo Estado e os governantes.

• Em grupos de três, realize uma pes-quisa (internet, jornais, revistas) e con-sulte bibliografia sobre os fatos transcor-ridos. Procure apontar a origem da crise, seu aprofundamento conforme as etapas que os observadores identificaram nes-se processo, até o momento em que as forças armadas de outros países foram convocadas para integrar uma missão da ONU. Com essas informações em mãos, faça uma reflexão sobre as ideias de or-dem e caos no âmbito da filosofia política.

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O pacto que funda a sociedade civil, por isso, é um pacto de sujeição à instância que irá monopolizar o uso legítimo da força. E isso é indispensável para que cada in-divíduo persiga seus próprios objetivos.

Assim, enquanto Aristóteles defendia que a vida política é o fim último dos ho-mens e que, portanto, a Cidade-Estado realiza a essência da humanidade, na me-

dida em que só na vida política os indiví-duos convergem em torno de valores co-muns, Hobbes, de seu lado, sustenta que o Estado é o único modo seguro para que os homens possam satisfazer seus fins par-ticulares com segurança e tranquilidade. Fora da vida civil, somos condenados a vi-ver na condição da guerra de todos contra todos. O caos, ao invés da ordem.

Um esquema da melancolia

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Mic

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n Em seu livro A anato-

mia da melancolia, o

inglês Robert Burton

(1577-1640) “dissecou”

as patologias da psiquê

humana segundo um

esquema de categorias.

Ele dividiu os assuntos,

por exemplo, de acordo

com suas causas, seus

sintomas, suas possíveis

curas. Seu esquema

busca compreender

o caos das paixões

humanas segundo uma

ordem racional.

Da ordem do irracional

O filósofo político Thomas Hobbes[+] (1588-1679) concebeu a reunião dos humanos em sociedade como um confli-to permanente, remediável apenas por meio do estabelecimento do Estado, instituição que detém poder e que pode fazer uso legítimo da força, a fim de assegurar a paz civil. Abandonada a si mesma, a sociedade dos seres humanos seria um eterno conflito de interesses e de paixões. O Estado hobbesiano, ao conter e ordenar esses interesses e pai-xões conflitantes, promove a ordem po-lítica, a ordem civil. Por isso, segundo

Hobbes, o Estado é expressão da razão. Mas e se, diferentemente do que pen-

sou Hobbes, as paixões resistissem com sucesso à função ordenadora da razão? Nesse caso, só restaria à razão impor-se às paixões pela força. Mas isso não con-tradiria a própria noção de razão, compre-endida por oposição ao que é arbitrário? Além disso, talvez as paixões disponham, nelas mesmas, de uma ordem... Se essa suposição for válida, teríamos de nos ver com o que parece ser um paradoxo: uma “ordem do caos”. Vamos examinar mais de perto essa alternativa?

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A ordem das paixõesA ideia de que há uma ordem das pai-

xões se generalizou na modernidade, no mesmo período em que Hobbes escreveu sua obra. Mas ela surgiu no âmbito da re-flexão ética. Para aproximar-se dela, faça-mos um recurso à literatura. Madame de La Fayette foi uma importante escritora francesa do século XVII, atuante no pe-ríodo que se seguiu à divulgação da filo-sofia de René Descartes[+] (1596-1650).

Madame La Fayette foi muito próxi-ma de pensadores e escritores ligados ao jansenismo, um movimento de caráter religioso, moral e político, inspirado na obra de Santo Agostinho[+] (354-430). Examinemos o seguinte trecho de um dos romances de La Fayette, Zaíde, pu-blicado em duas etapas: 1769 e 1771. É a história de dom Alfonso, o narrador

do livro, que conta suas desventuras amorosas.

Ao romance, portanto. dom Alfonso é um espanhol de meia-idade, que, por conta de suas experiências anteriores na vida, decidira não voltar a envolver-se nunca mais em um relacionamento amo-roso. A razão disso, segundo ele revela, seria a inconstância e a infidelidade das mulheres. Mas ele trava conhecimento com uma jovem e linda viúva que acaba de chegar à corte, Belasira.

Descobre que ela tampouco possui in-tenções de casar-se de novo, pois sofrera muito com a perda do esposo, morto em uma batalha. dom Alfonso, movido pelo orgulho de vencer o desafio representa-do pela resistência de Belasira, termina cortejando-a, até que ela cede a seus en-cantos e se apaixona por ele. Como dom

Madame de La Fayette e o jansenismo na França

Marie-Madeleine Pioche de La Vergne, Con-

dessa de La Fayette (1634-1693), nasceu em

uma família nobre que era próxima do Cardeal

de Richelieu (1585-1642), o todo-poderoso mi-

nistro do rei francês Luís XIII (1601-1643). Ver-

sada em letras clássicas,

ela passa a frequentar os

salões literários da França

absolutista. Casa-se aos

21 anos com o conde de

La Fayette. Seu primeiro

romance, A princesa de

Montpensier, foi publica-

do anonimamente em

Paris, em 1662. Nos anos

seguintes, ela se torna

muito próxima de La Ro-

chefoucauld (1613-1680),

um nobre de grande pres-

tígio, muito conhecido até

nossos dias devido à publicação de Reflexões

ou sentenças e máximas morais (1664). Madame

de La Fayette publica em 1678 sua obra mais

famosa, que lhe trouxe enorme prestígio: A

princesa de Clèves (há uma tradução brasileira

de Léo Schlafman, pela Editora Record, 2004).

Além do seu interesse literário, a obra de

Madame de La Fayette é reveladora das ideias

associadas ao jansenismo,

que inspirou também Blaise

Pascal (1623-1662) e o dra-

maturgo Jean Racine (1639-

1699). A ênfase comum a

esses autores é a impor-

tância conferida ao dogma

cristão do pecado original

e da queda, com suas con-

sequências para a condi-

ção humana, compreendi-

da como sendo a miséria.

A única salvação possível

residiria na graça divina. A

desordem moral provocada

pela ordem das paixões, retratada pelos ro-

mances de Madame de Lafayette, seguem

nessa direção.

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Alfonso também sucumbe ao amor, am-bos decidem casar-se.

Mas, quando ambos tornam-se noivos, Alfonso começa a ser possuído pelo mais violento ciúme. Tudo o que Belasira faz ins-tiga sua alucinada desconfiança. E o pior de tudo é que dom Alfonso sabe que seu ciúme não possui qualquer fundamento real. A certo momento, ele diz: “Percebia muito bem que tinha errado; mas não depen-dia de mim ser razoável” (Madame de La Fayette, “Zaïde”, in: La Princesse de Clèves et autres romans. Paris: Gallimard, 1995, p. 88. Tradução nossa).

Logo em seguida, acrescenta: “Percebia muito bem que violava as fronteiras da ra-zão; mas tampouco acre-ditava merecer ser in-teiramente condenado, senão por estar aman-do Belasira” (Madame de La Fayette, op. cit., p. 89. Tradução nossa). Mas, embora perceben-do muito bem que esta-va sendo enganado pela paixão do ciúme, dom Alfonso simplesmente não conseguia evi tá-la. Começa então a inferni-zar de tal modo a vida de Belasira, que ela desiste do casamento. Isso seria apenas dramáti-co, mas o romance acaba em tragédia, pois dom Alfonso, tomado de paixão e ciúme, segue até onde Belasira se encontra no início de uma noite escura, depara com um homem que saía de sua casa e termina assassinando-o. Descobre, depois, que era seu melhor amigo, que buscava convencer Belasira a reatar com Alfonso. Ela então parte para um convento, decidida a jamais revê-lo, e ele sucumbe ao arrependimento.

Madade de La Fayette, assim como ou-tros escritores e pensadores do período, como La Rochefoucauld e Blaise Pascal, apontaram para o fato de que nossas pai-xões por vezes assumem a direção de

nossas ações, como se ditassem o que de-vemos fazer. É este evidentemente o caso de dom Alfonso, protagonista do roman-ce Zaíde. O mesmo assunto é discutido ao longo da Unidade Razão e paixão. Você logo se dará conta do motivo para o abor-darmos aqui.

Não há mistério. A reflexão promovida por esses pensadores franceses da segunda metade do século XVII traz à luz que nem toda ordem assumida por nós na vida prá-tica é pautada pela razão. Frequentemente, aliás, ocorre o contrário. No romance de Madame de La Fayette, por exemplo, dom Alfonso sabe que está cego pelo ciúme. No entanto, não é capaz de resistir a ele. Toda

sua ação, do início ao fim do caso de amor com Belasira, é deter-minada por uma úni-ca coisa: a paixão do ciúme. Eis uma forma de ilustrar que a or-dem de nossas ações, de nossa conduta nos assuntos mais impor-tantes, pode assumir e muitas vezes assume um princípio passional. E isso, a ponto de ser mais apropriado con-cluir que, por vezes, as

paixões organizam nossas ações e nelas se situa o princípio de ordenação de nossa con-duta – por mais que, aos olhos da razão, o resultado beire o caos.

Em vista disso, não é muito adequado dizer simplesmente que as paixões, que geralmente são vistas como arbitrárias e impetuosas, promovem a desordem. O fenômeno aqui é diverso e merece outra formulação, mais adequada. Na verdade, o que ocorre no romance de Madame de La Fayette é que a ordem das pai-xões se sobrepõe à ordem da razão, desorganizan do-a, promovendo condu-tas que a razão vê co mo caos. Mas o que a razão interpreta como caótico é o fato

Às vezes, as paixões organizam

nossas ações e ordenam nossa

conduta – por mais que, aos olhos da razão, o resultado

beire o caos.

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de que o princípio que ordena e conduz nossos atos não está sob seu domínio, e sim sob o das paixões. A conclusão a tirar daí, todavia, é a de que deparamos com duas ordens distintas e conflituosas, e não com uma única ordem – a da razão, aba-lada pela desordem das paixões.

O princípio da ordem práticaHá, entretanto, outro aspecto no ro-

mance de Madame de La Fayette para o qual vale a pena atentar. O protagonis-ta, dom Alfonso, sabe a todo momento o que está ocorrendo com ele. É verdade que esse conhecimento não o ajuda muito, pois ele permanece incapaz de fazer fren-te ao ciúme e tudo termina como termina, de forma trágica. Por outro lado, é porque sabe o que sabe que dom Alfonso pode es-crever sua história, narrar seu infortúnio. O que é mais curioso na personagem é que o saber da razão só lhe serve para des crever a própria derrota diante das paixões.

Comparemos o caso de dom Alfonso por exemplo com aquele de Édipo, posto em cena na tragédia Édipo rei, de Sófocles

(496-406 a.C.), discutida também na Uni-dade Liberdade e necessidade. Édipo ignorava completamente a ordem a que estavam sujeitos os acontecimentos de sua vida. Fez tudo o que fez sem saber o que fazia. Encontrou-se com um homem no caminho para Tebas, desentendeu-se com ele, partiram para um combate vio-lento e Édipo terminou por matá-lo.

Chegando a Tebas, casa-se com a rainha, cujo esposo, Laio, desaparecera de forma misteriosa. Édipo ignorava completamen-te que o homem que havia matado era seu pai e que a rainha de Tebas, Jocasta, com quem terminou por se casar, era sua mãe. Tratava-se de uma ordem dos céus que ele desconhecia, mas que havia determinado que esse seria o seu destino.

A comparação entre a tragédia de Sófo-cles e o romance de Madame de La Fayette nos ajudará quanto ao tema que discuti-remos na última seção deste módulo. Por isso, vamos buscar estabelecer a partir dela algumas conclusões.

Pondo as coisas de modo simplificado, estamos diante de uma oposição. De um lado, Édipo, que nada sabe. De outro, dom Alfonso, que sabe de tudo. Dois persona-gens em situações opostas, portanto; mas igualmente infelizes. Édipo encontra-se nessa situação porque a ordem que dirige os atos no curso de sua vida é exterior a ele, ultrapassa e transcende (isto é: supera, está além de) sua consciência.

Trata-se da ordem divina, que coman-da todos os acontecimentos mundanos. Não é esse o caso de dom Alfonso. Ele sabe de tudo o que ocorre, pois as duas ordens que lutam entre si lhe pertencem: a ordem de sua razão e a ordem de suas paixões. Dentre os motivos que o levam a fazer o que faz, nenhum situa-se além dele ou é exterior a ele. Tudo lhe é “interno”: seu entendimento (incapaz de decidir) e suas paixões (que tudo decidem).

Observe que, por conta disso que aca-bamos de apontar, podemos comentar a diferença entre as duas personagens em

O quadro atesta a difusão da leitura

solitária no século XVIII, uma prática

que acompanhou o advento da interio-

ridade moderna.

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termos mais globais, que concernem a mu-danças transcorridas em uma escala mais ampla. Note que o personagem de Madame de La Fayette revela possuir os traços do in­divíduo moderno, que, como se discute em outras Unidades deste livro, é profunda-mente marcado pela “interioridade”.

Na Unidade Eu e o Outro, por exem-plo, esse traço da “interioridade” é apon-tado como um elemento essencial da filo-sofia de René Descartes, que se funda na certeza de si mesmo, na certeza do “penso, logo existo” (chamado, em filosofia, o “co­gito”, a partir do verbo latino cogitare: pen-sar). E essa observação é muito útil para compreendermos melhor o drama de dom Alfonso, cujo conflito interior termina sen-do decidido pela vitória arrasadora das pai-xões sobre a razão. Em certa medida, dom Alfonso representa uma viravolta do que havia formulado Descartes, uma mano-bra que põe o cogito de cabeça para baixo. Afinal, dom Alfonso está muito mais para

“sinto, logo existo” do que para o “penso, logo existo” cartesiano. Mas há, além dis-so, outro ponto, como já assinalamos. dom Alfonso sabe de tudo o que se passa com ele. Então, é como se seu lema fosse: “sinto – e sei o que sinto –, logo existo”.

Sem dúvida, essa formulação revela uma inversão diante de Descartes, cujo princípio é o pensamento. E também uma diferença maior ainda, de dom Alfonso diante de Édipo, que ignora completamen-te o que seu destino lhe determinou. En-quanto Descartes dizia saber uma única coisa com certeza: “eu penso”, dom Alfon-so sabe mais que isso. Sabe exatamente o que pensa e sabe exatamente o que sente (o ciúme devastador em relação a Belasi-ra). Sabe inclusive que o ciúme que sente não possui fundamento objetivo.

Tudo se passa como se o romance de Madame de La Fayette ampliasse os domí-nios da consciência em relação aos limites que lhe haviam sido assinalados por Descar-tes. O tipo de indivíduo representado pela personagem de dom Alfonso corresponde a alguém que lamenta sinceramente o que faz consigo mesmo, porque sabe ser ele mesmo (ou uma parte dele, suas paixões) o respon-sável pelos atos que terminam em desgraça.

Entretanto... e se alguém nos afirmas-se que não temos consciência nem do que acontece dentro de nós mesmos?

A novidade de Freud: a ordem do inconsciente

Essa suspeita está na base das investi-gações feitas por Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da psicanálise. Segundo Freud, a contribuição decisiva da psicaná-lise foi a de ter mostrado que nossa vida psíquica – isto é, o conjunto das represen-tações que circulam em nossa mente – é mais ampla do que tradicionalmente havia sido admitido, mesmo por Madame de La Fayette. Pense em dom Alfonso e em Édi-po. Este último ignorava completamente o princípio que dirigia sua vida, a vontade divina, transcendente a ele. Em contraste,

Paixões avassaladorasDesenvolvimeno individual por escrito

Com o auxílio de seu professor de literatura, identifique um romance ou um conto (pode ser nacional ou estran-geiro), no qual as paixões são apresen-tadas como as forças determinantes da ação dos protagonistas.

• Elabore uma redação, dividin do-a em duas partes: primeiro, exponha, em termos gerais, a trama da narrativa que você escolheu. Em seguida, bus-que enunciar um juízo pessoal e críti-co sobre o desfecho da história: o que poderia resultar em outro final? Você entende que são comuns, na vida real, casos nos quais as paixões assumem o comando de nossas condutas?

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dom Alfonso, o personagem de Madame de La Fayette, sabe perfeitamente por que se desentendeu com Belasira e acabou na infelicidade: seu ciúme. O ciúme é uma paixão que lhe pertence e da qual ele é per-feitamente consciente.

Ora, segundo Freud, há representações que são nossas e das quais não somos cons­cientes. Vamos agora assinalar, em linhas gerais, o que essa concepção implica para a compreensão de nossa vida psicológica. Veremos que, com ela, a concepção moder-na do ser humano é ultrapassada para dar vez à sua compreensão contemporânea.

Em primeiro lugar, se a admissão da existência do inconsciente for correta, resulta que nem sempre está ao nosso alcance saber por que fazemos o que fa- zemos, ou por que sentimos o que senti-mos. Sem dúvida, podemos justificar por que agimos de tal maneira – e quase sempre o fazemos – com base em motivos que acre-ditamos serem reais e objetivos. Você pode acreditar sinceramente que, por exemplo, tem um comportamento violento porque o mundo não é nada fácil. Logo, se você não tratasse de se defender, iria terminar sendo uma vítima dos outros. E, como o ataque é a melhor defesa, você vive mostrando dure-za e desconfiança para com os outros.

Certa pessoa, digamos, é autoritária e costuma mandar nos outros, mas não, se-gundo afirma, porque goste de ser assim. Ela diz que age dessa maneira porque as pessoas, em geral, precisariam mesmo de alguém que assuma a liderança e diga qual o caminho a tomar, qual a melhor manei-ra de fazer as coisas. Sem isso, diz ela a si mesma, nada chegaria a bom termo.

O ponto aqui não é legitimar condutas que, por vezes, podem tornar-se agressi-vas. É compreender que ordem de justifica-tivas são essas, nos exemplos hipotéticos acima. Observe: todas elas são justifica-tivas conscientes. E a questão trazida por Freud é exatamente a de saber se as justifi-cativas conscientes que damos a nós mes-mos são satisfatórias.

Digamos: estou dirigindo no trânsito, vejo um sujeito “cortando” todo mundo, o sinal fecha, ele encosta ao meu lado e me olha com a cara amarrada, avança a faixa de pedestres e logo arranca. Ele mostra ter uma conduta desequilibrada, não resta dúvida. Isso é objetivo. Mas: se eu arranco com meu carro no seu encalço e o ajudo a pôr todo mundo em risco, até que eu, ao alcançá-lo, o faça ver que ele é um estúpi-do – há qualquer justificação objetiva para isso? Ou na verdade isso mostra apenas que eu me tornei como ele, por razões que eu mesmo ignoro?

Começa a ficar claro, então, que o prin-cípio que muitas vezes guia nossos atos e reações pode permanecer ignorado por nós. Não era isso o que também ocorria na tragédia de Sófocles, na qual Édipo ig-norava que o que fazia seguia os desígnios dos deuses? Mas há uma diferença crucial: segundo Freud, isso que ignoramos é in­terior à nossa vida psíquica, e não, como retratatava o mito grego, transcedente e exterior a ela. De acordo com a psicanálise freudiana, não temos consciência de uma parte essencial de nós mesmos.

A importância disso você mesmo pode avaliar, se considerar que, a crer na psica-nálise, as representações que ignoramos (as representações inconscientes) fre-quentemente assumem as rédeas de nos-sas ações, funcionando como princípio de ordenação oculto e ignorado de nosso com-portamento.

E como foi que Freud chegou a essa ideia? O que a tornou necessária para ele?

No início de sua carreira médica, Freud acompanhou o tratamento que Josef Breu-er tinha começado a aplicar a casos de his-teria. Breuer hipnotizava seus pacientes e recriava as situações traumáticas que esta-vam na origem de sintomas como paralisia etc. Surpreendentemente, Breuer conse-guiu obter êxito com alguns pacientes.

O que ele e Freud concluíram disso foi que existem distúrbios corporais – não conseguir mexer a perna, não enxergar a

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luz – cuja origem ou princípio é psicológico, mental: fisiologicamente, aqueles pacientes não apresentavam qualquer disfunção motora ou oftalmológica. Esse princípio era desconhecido pelos próprios pacientes, isto é: agia no seu insconsciente. A hipnose mostrou-se um método parcialmente efi-caz para trazer à tona a causa inconsciente dos distúrbios que se manifestavam fisi-camente. Uma vez descoberta essa causa psíquica inconsciente, em alguns casos o paciente se via livre do sintoma.

Restava, entretanto, explicar por que razão causas poderosas assim, capazes até mesmo de paralisar nossos movimentos, permaneceriam ignoradas por nós.

Freud procurou responder a essa per-gunta por meio de outra: por que certas representações psíquicas são excluídas do consciente, se algum dia estiveram em sua superfície? Convencido de que nos-sa vida psíquica não é constituída apenas de representações conscientes, procurou

descobrir por que certas representações são conscientes, outras, inconscientes. O conceito de “repressão” lhe deu uma cha-ve para a resposta. Leiamos o seguinte trecho de uma importante obra de Freud, publicada em 1923:

“[...] Chegamos ao termo e ao con­ceito de inconsciente [...] pela elabo­ração de experiências nas quais a di­nâmica mental é significativa. Desco­brimos, isto é, tivemos de admitir que existem processos ou representações mentais muito fortes, [...] as quais po­dem implicar, para a vida mental, to­das as consequências que possuem as representações ordinárias – até mes­mo consequências que podem se tor­nar conscientes, novamente na qua­lidade de representações –, as quais, entretanto, permanecem elas mesmas não conscientes. Não é necessário re­petir detalhadamente aqui o que já foi

Freud

Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Prí-

bor, uma cidade que à época pertencia ao Impé-

rio Austríaco. Quando tinha quatro anos, sua fa-

mília mudou-se para a capital, Viena, onde per-

maneceu até 1938 – ocasião em que fugiu dos

nazistas para a Inglaterra. (Quatro de suas irmãs

não tiveram a mesma sorte e foram assassina-

das nos campos de concentração nazistas.)

Tendo se formado em medicina na Univer-

sidade de Viena em 1881, Freud foi trabalhar

no Hospital Geral da capital imperial. Graças

a uma licença, Freud segue para Paris, onde

acompanha os trabalhos de Jean-Martin Char-

cot (1825-1893), importante psiquiatra francês

dedicado ao estudo da histeria. De retorno a

Viena, Freud aprofunda o tratamento de pa-

cientes histéricos – isto é, vítimas de perturba-

ções de ordem psicológica que se manifesta-

vam em sintomas como paralisia, descontrole

motor, surdez, cegueira etc. A etapa seguinte é

a colaboração com o amigo e neurofisiologista

Josef Breuer (1842-1925), que adotava a prática

da hipnose e dava importância à fala dos pa-

cientes histéricos, a fim de curá-los.

Após algum tempo,

Freud distanciou-se de

Breuer, que não concor-

dava com a tese de que,

na origem dos sintomas

histéricos, haveria sempre

um trauma de natureza

sexual. Com a publica-

ção de A interpretação dos

sonhos (1899) e com sua

atua ção na primeira déca-

da do século XX, Freud tor-

na-se conhecido pela sua

teoria sobre o inconsciente.

As obras de Freud compõem mais de vinte

volumes. No Brasil, são encontradas em edi-

ções da editora Imago e, mais recentemente,

da editora Companhia das Letras.

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exposto tantas vezes. Basta dizer que aí se instaura a teoria psicanalítica, e afirmar que essas representações não podem ser conscientes porque uma de­terminada força se contrapõe a isso; que, não fosse por isso, elas se torna­riam conscientes e que então nos da­ríamos conta de que diferem pouco de outros elementos psíquicos reconheci­dos. Essa teoria torna­se irrefutável na medida que foram encontrados, na técnica psicanalítica, os meios com o auxílio dos quais é possível suspen­der a força contraposta e tornar cons­cientes as representações em questão. Chamamos de repressão o estado em que essas representações se encontra­vam antes de se tornarem conscientes, e a força que mobilizou e manteve a repressão, defendemos tê­la percebi­do durante o trabalho analítico como resistência.” (Freud, O ego e o id. Tra-

Durante a Idade Média, difundiu-se a ideia de

que a loucura era causada por uma pedra

localizada na cabeça. (Hyeronimus Bosh

[1450-1516], A extração da pedra da

loucura, c. 1475-1480).

dução nossa. Edição de referência: Das Ich und das Es. Leipzig; Viena; Zurique: Internationaler Psychoanalyti scher Ver-lag, 1923, pp. 11-12)

Note que Freud sublinha o caráter di­nâmico de nossa vida mental. Assumir esse aspecto dinâmico o fez concluir que há um conflito interno entre nossas re-presentações. Embora todas elas produ-zam efeitos sobre o que pensamos, mui-tas permanecem ocultas sob a superfície da consciência, porque são reprimidas por forças psíquicas. Elas são, por assim dizer, impedidas de se manifestar cons-cientemente. A técnica psicanalítica de-senvolvida por Freud busca trazer à luz essas representações submergidas, exclu-ídas da nossa consciência.

Uma prova disso são os “atos falhos”, aos quais Freud com frequência recorria quando confrontado por aqueles que du-vidavam de sua teoria. É comum que nos enganemos com as palavras. Um exemplo pode tornar a hipótese de Freud mais cla-ra. Digamos que um colega seu, Hugo, está encarregado de coordenar um seminário. Nele, várias pessoas apresentam suas co-laborações, entre elas, Maria, de quem Hugo gosta em segredo. Ao fim, abre-se espaço para perguntas e, logo em segui-da, Hugo toma a palavra para encerrar o debate. Só que, ao invés de dizer: “Para concluir, gostaria de agradecer a Maria”, ele diz, diante de toda a turma: “Para con-cluir, gostaria de agradar à Maria”.

Eis o inconsciente em ação... Alguém poderia retrucar: mas foi um simples en-gano, uma bobagem! Não aos olhos da teoria freudiana. Para a psicanálise, esse “ato falho” tem um significado. Os atos falhos representam uma forma do in-consciente dizer o que quer. Com a troca de palavras, Hugo disse algo que no fundo desejava dizer, mas que, evidentemente, jamais diria numa situação como aque-la, pois tem consciência de que algo as-sim soaria completamente fora de lugar.

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Ocorre que nem sempre a vigilância exer-cida pela consciência é eficaz, e o incons-ciente então irrompe, seja na forma de atos falhos, seja nos sonhos, seja na for-ma de comportamentos neuróticos etc. No exemplo, Hugo desejava muito ser re-conhecido pela sua colega, pois nutria por ela uma paixão. Além disso, vamos dizer que algo nela lembrasse o temperamento da mãe de Hugo, cujo reconhecimento ele sempre buscou, sem jamais tê-lo recebido satisfatoriamente.

O conceito de “repressão”, assim, deu a Freud uma explicação dos motivos que levam certas representações a mergulha-rem no inconsciente e lá permanecerem, até reaparecem sem aviso, a qualquer mo-mento. No exemplo hipotético do semi-

nário e do ato falho envolvendo “Maria”, se Hugo fosse submeter-se a uma terapia analítica, ele possivelmente descobriria, em algum momento, por que disse o que disse no encerramento do debate. E se tor-naria consciente das dificuldades que cer-cam as relações com sua mãe, dificuldades que fazem parte de sua história individual.

Por isso, na psicanálise, a aplicação da teoria para fins de cura precisa atentar para a individualidade de cada pacien-te. Pense, por exemplo, no tratamento de uma doença infecciosa. O protocolo, como dizem os médicos, é essencial-mente o mesmo para todos os pacien-tes. No caso da psicanálise, não. Pois o objetivo de tornar o paciente conscien-te de suas representações inconscientes

Para compreendermos como a novi dade

de Freud é radical, vamos aumentar mais

ainda o contraste, regressando um momen-

to a Aristóteles[+]. Numa obra de pequena ex-

tensão, intitulada Sobre o sono e a vigília, Aris-

tóteles se pergunta: o que é o sono e o que é

a vigília? Parecem ser propriedades diferen-

tes do mesmo “órgão”, ligado à percepção

dos sentidos, uma vez que “vemos” e “ouvi-

mos” coisas quando sonhamos. No entanto,

quando estamos dormindo não recebemos

percepções exteriores através de nossos

cinco sentidos. Além disso, se o sonho e a

percepção exterior são propriedades do

mesmo “órgão”, por que às vezes lembramos

dos nossos sonhos e outras vezes, não? Aris-

tóteles desenvolve seu raciocínio de maneira

estritamente lógica – a mais explícita expres-

são de uma ordem, portanto. Se a um dado

momento existe percepção sensorial, isto

implica que quem percebe esteja acordado e

não dormindo. O sono é então definido como

ausência da percepção dos sentidos. Os so-

nhos – dirá Aristóteles noutra obra ligada a

essa, chamada justamente Sobre os sonhos

– são uma resposta residual aos estímulos

antes recebidos pelos sentidos. Assim como

um objeto impulsionado por outro continua

a se mover mesmo quando não está mais em

contato com aquele objeto que originou seu

movimento; ou como a imagem brilhante

que continuamos a enxergar depois de mirar

o sol, em seguida desviando o olhar dele.

Voltando a Freud, veremos que sua

teoria explica tudo isso de uma maneira

comple tamente diversa. Para ele, não é so-

mente um “órgão” (para usar a linguagem

aristotélica) que governa nossa vida mental

na vigília e no sono, mas pelo menos dois:

o consciente e o inconsciente. Então, já não

se pode descrever esses diferentes regimes

como um caos contraposto a uma ordem,

mas antes como duas ordens diferentes (ainda

que tantas vezes conflitantes). Por meio de

sua teoria e prática psicanalítica, Freud foi

capaz de responder àquela velha pergunta

de Aristóteles: por que às vezes lembramos

de nossos sonhos, outras vezes, não?

O MUNDO DOS SONHOS: ARISTÓTELES E A PSICANÁLISE

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depende do que ele mesmo contar sobre sua história. Ao analista – isto é, ao te-rapeuta formado no método psicanalí-tico – cabe apenas ouvir o que diz o pa-ciente, promovendo intervenções com o intuito de que ele, o paciente, “escave” mais em si mesmo.

A novidade dessa abordagem pode ser percebida, se a compararmos com as po-sições que discutimos há pouco. Classifi-camos a tragédia de Sófocles como ilus-tração da concepção clássica; o romance de Madame de La Fayette, ilustração da concepção moderna. Em relação a elas,

a de Freud representa a concepção con-temporânea, inovadora na medida que o indivíduo, a crer na teoria da psicaná-lise, ao mesmo tempo sabe e não sabe o que determina seus comportamentos. Se muitos dos motivos que o fazem ser como ele é estão fora de sua consciência, estes não estão, todavia, fora dele. Estão nele mesmo, em seu inconsciente. Con-forme Freud, basta deixar o inconsciente à vontade (como nos sonhos, por exem-plo) para reavê-los. Basta deixar o in-consciente falar para, assim, o indivíduo começar a fazer as pazes consigo mesmo.

Em vários de seus textos, Freud conta

como abandonou o método da hipnose,

substituindo-o pelo da “livre associação”. Este

método consiste em fazer o paciente falar

tudo o que lhe vem à mente, comunicando

sem nenhuma censura as associações entre

suas ideias. A regra fundamental reside em

não omitir nada que lhe passe pela cabeça.

A hipótese freudiana do inconsciente foi

vista de início com muita desconfiança por

vários médicos e psicólogos. (Isto é retra-

tado dramaticamente no filme Freud, além

da alma, de 1962, cujo roteiro foi de início

encomendado ao filósofo Jean-Paul Sartre,

mas que nessa versão acabou não sendo

utilizado pelo diretor John Huston.) No en-

tanto, também ganhou inúmeros adeptos, a

ponto de tornar-se difundida em vários paí-

ses. Com isso, a psicanálise recebeu novas

contribuições. O movimento inaugurado

por Freud adquiriu vertentes diversas e,

como costuma ocorrer, passou por divisões

internas, polêmicas, revisões e divergências

que levaram a novas técnicas de terapia. A

ruptura mais conhecida foi a ocorrida entre

Freud e Carl G. Jung (1875-1961). No início do

século XX, ambos entraram em intensa cola-

boração, pois Jung também foi pioneiro na

aplicação do método da livre associação de

ideias. Nas décadas seguintes, porém, surgi-

ram fortes divergências teóricas entre eles,

e cada qual seguiu seu caminho. Jung fun-

dou a “psicologia analítica”, que dá grande

importância à noção de “inconsciente cole-

tivo”, não admitida por Freud.

Nos Estados Unidos, a psicanálise encon-

trou grande recepção e, também por isso,

adquiriu, especialmente após a morte de

Freud, feições contestadas por freudianos

mais ortodoxos. A psicologia do ego consti-

tui a vertente mais conhecida. Na França, o

legado freudiano foi retomado e amplamen-

te aprofundado por Jacques Lacan (1901-

1981), que trouxe para o primeiro plano da

teoria e da prática psicanalíticas as inova-

ções da linguística moderna, de Ferdinand

de Saussure (1857-1913).

No Brasil, encontram-se seguidores de

praticamente todas essas correntes meto-

dológicas, reunidos em escolas e grupos

de trabalho que visam tratar pessoas com

os mais variados tipos de patologia men-

tal, desde psicóticos e esquizofrênicos até

neuróticos, histéricos e pacientes acometi-

dos de distúrbios como síndrome de pânico

ou de perseguição.

DESDOBRAMENTOS DA HIPÓTESE FREUDIANA

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A escrita automáticaDesenvolvimento escrito em equipeComo afirmava Freud nos textos em que

divulgou sua teoria e seu método clínico, a psicanálise ganhou prestígio e foi aplicada em domínios diversos da psicologia, como a história da arte, a mitologia, o estudo da sociedade etc. Um campo que tirou muito proveito da teoria freudiana foi o da pro-dução artística, especialmente no contexto das vanguardas modernas do início do sé-culo XX.

O surrealismo foi um dentre esses movi-mentos vanguardistas. Agrupando artistas ligados ao dadaísmo, o surrealismo surgiu em Paris na década de 1920, sob a liderança de André Breton (1896-1966) e Paul Éluard (1895-1952). O Manifesto surrealista, de 1924, reivindicava maior valor para a linguagem do sonho do que para a da vigília, e decre-tava que a lógica seria dispensável em rela-ção ao autêntico valor da existência, contra-ditório, desconhecido e caótico. No prefácio do primeiro número da revista Revolução surrealista, a influência de Freud é evidente: “o sonho restitui ao homem todos os seus direitos à liberdade” (J. A. Boiffard, P. Éluard e R. Vitrac, A revolução surrealista, número 1, dezembro de 1924). Expoentes do surre-alismo que exploraram a noção freudiana do inconsciente são o cineasta Luis Buñuel (1900-1983) e os pintores René Magritte (1898-1967) e Salvador Dali (1904-1989).

Uma das mais conhecidas técnicas cria-das pelo surrealismo é a “escrita automáti-ca”. A intenção era, por meio dela, romper com o sentido habitual e consagrado da linguagem, produzindo novos sentidos e associações entre ideias, que estivessem livres da censura que a consciência exerce sobre elas. A atividade que você irá realizar agora é uma variante da escrita automática.

• Forme um grupo de quatro integrantes e peguem uma única folha em branco. De-

finam entre vocês uma sequência, na qual cada um de vocês irá escrever um único verso nessa folha: de preferência, a primei-ra coisa que lhe vier à cabeça. Agora vem a parte principal: ninguém deve saber o que os outros escreveram antes que todos o tenham feito. É fácil: após o primeiro verso ter sido escrito no topo da página, dobrem--na para trás, de modo que o segundo inte-grante escreva seu verso na parte superior da página dobrada, sem ver o que foi escri-to pelo primeiro. O mesmo deve ser feito para o terceiro e, finalmente, para o quarto integrante. Após todos terem escrito, leiam o resultado, como se se tratasse de um úni-co poema, uma unidade.

• Em seguida, reúnam os poemas dos demais grupos da classe, juntando-os em uma ordem qualquer, como se todas as fo-lhas reunidas compusessem um único poe-ma. Façam uma leitura coletiva.

• Por fim, vocês podem fazer ainda um terceiro experimento: separem, recortan-do-os, cada verso de todas as folhas da classe, e misturem. Em seguida, sorteiem--nos num determinado número (4, 8, 11...), naturalmente ainda sem lê-los, e montem dessa maneira novos poemas. Será que, procendendo assim, o resultado será ainda mais “absurdo” do que nos experimentos anteriores? Ou – se por exemplo muitos participantes escreveram versos de amor – ao contrário, assim o resultado tende a se tornar mais previsível?

Esses experimentos darão a vocês uma ideia dos sentidos aleatórios produzidos quando, por meio de artifícios como esses, a ordem habitual do discurso é transgredi-da. O resultado, sem dúvida, difere de uma escrita consciente elaborada por um único indivíduo. Mas tampouco equivale à lingua-gem do inconsciente que se exprime nos sonhos, nos atos falhos etc.

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continuidade e ruptura

C ertamente você tem alguma noção do que significam as expressões “continuidade”

e “ruptura”, assim como tantas outras que são sinônimas delas. “Permanência”, “conserva-ção”, “prolongamento”, “linearidade” são pala-vras que têm afinidade com o que é contínuo. Há continuidade de estado, de qualidade, de movimento, de direção etc. Por sua vez, “que-bra”, “cisão”, “corte” e “reviravolta” são alguns poucos exemplos de palavras que se associam à ideia de ruptura. Muitas outras noções podem, no entanto, se ligar a esses termos.

Como e quando algo muda ................ 279

O “movimento” segundo Aristóteles ................ 288

Perfectibilidade e desenvolvimento .... 293

As revoluções científicas ................. 302

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No que a curva faz você pensar? Em mudança, surpresa, ou

apenas o prosseguimento do caminho?

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Como e quando algo muda?

Reflita sobre um fenômeno tomado da história universal, que você já estudou ou irá estudar: o Renascimento. Trata-se de um vasto movimento intelectual e artísti-co, que teve origem na Itália no século XIV e que se expandiu por boa parte da Europa durante os séculos XV e XVI. Repare nesse nome: “renascimento” evoca a ideia de um novo nascimento, do ressurgimento de algo do passado, que, após um período de inexistência, reaparece no curso do tempo, assinalando o começo de uma nova era.

No caso, o que existia antes, e que os pensadores e artistas do século XIV deci-diram fazer renascer, foi a arte da Anti-guidade. A grande maioria dos primeiros “renascentistas” viveu em Roma e Floren-ça. Entusiasmados com o que descobri-ram observando as ruínas dos edifícios, as esculturas e pinturas da Antiguidade greco-romana, condenaram a produção ar-tística feita na Idade Média. Foi esse juízo negativo sobre o período medieval o que os levou a designá-lo como “idade das trevas”.

Note que o fenômeno do Renascimen-to propõe a necessidade de a cultura artís-tica romper com o passado que a precede imediatamente, a arte da Idade Média, para, em lugar dela, promover uma arte que tem por modelo as concepções da Antiguidade. De fato, os autores e artis-tas do Renascimento proclamaram uma ruptura (com a Idade Média) que, ao mesmo tempo, retomasse uma tradição, a aprofundasse, desse a ela continuidade (a arte antiga). O principal motivo para isso residia, no entender dos partidários do Renascimento, na necessidade de uma arte baseada na natureza. A ideia princi-pal era portanto retomar o modelo clássi-co, para, com isso, conseguir uma repre-sentação realista na pintura e nas artes.

O Renascimento, assim, foi concebido como ruptura, ressurgimento e novida-de. Afinal, embora tivessem como mode-

lo os antigos, os artistas do Renascimen-to sabiam perfeitamente que não eram mais antigos. Decidiram reatar com uma tradição perdida e, nessa medida, torna-ram-se modernos.

Como afirma um

importante historia-

dor da arte do século

XX, Ernst H. Gombrich,

se alguém quisesse

elogiar um artista no

fim do século XIV ou

início do século XV,

bastava dizer que sua obra se igualava à dos an-

tigos. O primeiro pintor a ser considerado sob

esse ângulo foi Giotto di Bondone (1267-1337),

que viveu e trabalhou em Florença, na Itália. A

principal inovação de Giotto foi a de tratar temas

habituais da pintura – a vida dos santos e dos

mártires, assim como a paixão de Cristo – de uma

forma naturalista, em contraste com a pintura

medieval ou “gótica”, como também era chama-

da. Para isso, Giotto situava as figuras retratadas

em seus quadros em um novo espaço – um espa-

ço que, à semelhança do que já haviam realizado

os pintores da Antiguidade, era tridimensional e

muito próximo do que os pintores do século XV,

na trilha redescoberta por Giotto, consagrariam

com a descoberta das leis da perspectiva.

A história da pintura italiana do século XV e

XVI é a trajetória de pintores extraordinários

– como, dentre outros, Massacio (1401-1428),

Paolo Uccello (1397-1475) Andrea Mantegna

(1431-1506) e Pietro della Francesca (1416?-

-1492) – na investigação do novo espaço natu-

ralista inaugurado com a pintura de Giotto. Os

três maiores artistas desse período, Leonardo da

Vinci (1452-1519), Michelangelo (1475-1564) e Ra-

fael (1483-1520), representam a realização bem

acabada desse ideal.

O RENASCIMENTO: ALGUMAS REFERÊNCIAS GERAIS

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Aqui já temos, portanto, algumas ou-tras expressões ligadas às ideias de con-tinuidade e ruptura. “Tradição” signifi-ca o ato de transmitir, de passar para o presente e para o futuro o que foi criado e formado no passado.

O novo, ou o moderno, por sua vez, sublinha o que é atual, o que se diferencia de algum modo do passado, e, por isso, se vincula à ideia de ruptura. Ainda que, no caso do Renascimento, o novo envolvesse justamente uma volta ao passado remoto, que fora interrompido pela Idade Média.

Noções semelhantes também apare-cem no campo da ciência. Confira, por exemplo, a seguinte situação, extraída de uma peça teatral de Bertolt Brecht (1898-1956), um dos mais criativos dramaturgos alemães do século passado. A peça trata da vida de Galileu Galilei (1564-1642), astrô-nomo, matemático e físico que apoiou, no século XVII, a teoria segundo a qual Ter-ra girava em torno do sol (conhecida pelo nome de heliocentrismo), e não o contrá-rio (segundo a teoria geocêntrica). A te-oria heliocêntrica não foi uma criação de Galileu. Tal mérito coube, um século an-tes, ao astrônomo e matemático Nicolau Copérnico (1473-1543). Porém Galileu contribuiu decisivamente para fortalecer

a teoria heliocêntrica, a qual era rejeitada oficialmente pela Igreja católica.

Em certo momento da peça, Gali-leu conversa com Andrea, filho de sua governanta. Ambos observam um arte-fato, um astrolábio mostrando como, se-gundo a opinião dos antigos, as estrelas e o sol se moveriam em torno da Terra, a concepção geocêntrica. Andrea admite que a imagem produzida pelo astrolábio é cheia de beleza, mas afirma também que ela representa os seres humanos e a Terra fechados no meio de tudo. Ao que Galileu retruca: sim, já faz muito tempo que a humanidade acredita que tudo – o Sol, as estrelas – giram em torno dela. E, continua Galileu, agora é hora de “sair”, de partir para uma fantástica viagem – a nova concepção do universo, baseada na revolução feita por Copérnico. Há um novo tempo, diz Galileu, que se abre para eles, que irá substituir “o tempo antigo”.

Pelo menos na visão de Brecht, por-tanto, um grande cientista como Galileu se viu diante da questão: o novo contra o antigo. A nova teoria defendida por Gali-leu é representada como uma grande via-gem de descoberta, pois o que até então se acreditava verdadeiro começou a ser questionado. O conhecimento, o saber

IDADE MÉDIA, IDADE DAS TREVAS?

O poeta e literato italiano Francesco Petrarca (1304-1374) foi um dos primeiros huma-nistas a formular a ideia de que era preciso voltar à Antiguidade clássica. Em seu enten-der, esta havia sido esquecida durante todo o período entre o início da era cristã e sua própria época, o século XIV. Após visitar a cidade de Roma e tomar contato com vestígios da arte clássica, escreveu em latim um poema intitulado Africa. Nele, Petrarca deseja que as gerações futuras possam reaver a claridade dos antigos, ocultada pela Idade Média:

Mas a ti, quem sabe – pois a mente espera e deseja –,se hás de viver ainda muito depois de mim, restam tempos melhores: futuramente, não a todosalcançará este torpor desmemoriante! Os descendentes, talvez,poderão voltar das dissipadas trevas à pura claridade de outrora.

(Petrarca, Africa, IX, 453-457. Tradução nossa.)

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sobre o mundo, enfim, a ciência também conheceu (e conhece ainda) o dilema en-tre a continuidade e a ruptura, aqui apresentadas na oposição entre tempo antigo e tempo novo. O tempo novo sig-nifica, nesse texto, uma total ruptura com uma tradição que durou dois mil anos.

A revolução como ruptura histórica Agora repare nesse belo quadro, de

um pintor francês chamado Eugène De-lacroix, que recebe o título de A liberda-de guiando o povo. Esse quadro se tornou símbolo da Revolução de Julho de 1830, durante a qual o rei Carlos X foi deposto na França.

Na realidade, a Revolução de Julho su-cedeu a uma série de reviravoltas políticas na França, iniciada em 1789 com a chama-da Revolução Francesa. Esta é considerada uma das revoluções mais importantes da

história do Ocidente, já que promoveu, en-tre muitas coisas, o fim da monarquia e o começo da república como forma de gover-no, e também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual proclamava a igualdade e a liberdade como direitos de todos os seres humanos. Porém, a partir de 1815 começa um período conhecido pelo nome de Restauração, caracterizado pela volta da monarquia e pelas tentativas de restaurar a ordem social e política ante-rior à Revolução Francesa.

Em 1830 eclode a Revolução de Ju-lho pintada por Delacroix, a qual procla-mava, por sua vez, a volta da República. Não por acaso, a mulher representando a liberdade ergue a bandeira tricolor, que havia sido adotada durante a Revo-lução Francesa e depois substituída por uma bandeira branca pelos monarcas da Restauração. Na pintura de Delacroix, a

Esta é provavelmente uma das imagens mais emblemáticas dos tempos modernos. Foi repetidamente

apropriada por pessoas e movimentos sociais em contextos bem diversos daquele que motivou Dela-

croix a pintá-la. (Eugène Delacroix [1798-1863], A liberdade guiando os povos. Óleo sb/ tela, 1830)

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Revolução de Julho de 1830 é apresen-tada, então, como uma retomada dos ideais da Revolução Francesa de 1789.

“Revolução”, como você pode ver no seu livro de história, é um dos termos que mais aparecem para caracterizar trans-formações radicais. O termo significa exatamente isso: uma transformação ra-dical, que altera inteiramente a organiza-

ção política e social de um povo. A histó-ria da humanidade seria uma sequência de revoluções... Mas também, como no caso da França, de tentativas de restau-rar o que foi abandonado ou conservar o que surgiu da revolução. E há também as tentativas de reformar (reformar as leis, as instituições).

“Reformar” é buscar formar outra vez o que se tinha antes, sem rupturas radi-cais, mas com diferenças consideráveis em relação à forma anterior. Tanto “re-volução” como “reforma” são conceitos muito próximos da ideia de progresso, já que revoluções ou reformas buscam alte-rar para melhor o que havia antes.

Por esses breves exemplos você pode perceber que as noções de continuidade e ruptura, e também as que lhes são pró-ximas, admitem e implicam termos di-versos: “tradição”, “conservação”, “novo”, “moderno”, “revolução”, “reforma”... Além disso, as noções de continuidade e ruptu-ra se apresentam em diversos campos da vida humana: na arte, na ciência, na polí-tica, no direito etc.

É claro que, dependendo de cada cam-po, essas noções ganham um sentido es-pecífico, pois entram em jogo motivos di-ferentes para continuar um determinado conjunto de princípios, ideias, compor-tamentos – ou romper com ele e tentar algo radicalmente novo. Por exemplo, os motivos para mudar e inovar uma forma artística como a pintura podem ser bas-tante diferentes das razões que levam cientistas a debater uma nova teoria.

No caso da teoria do heliocentrismo, de-fendida por Galileu, talvez importasse mui-to mais saber se ela é verdadeira ou falsa, se ela descreve corretamente a realidade ou se simplesmente explica mais coisas que a teoria do geocentrismo. Por sua vez, em revoluções políticas o que se questiona frequentemente é se a organização da sociedade, suas instituições e hierarquias satisfazem os interesses de determina-dos grupos.

ARTE, FORMA, TRADIÇÃO E RUPTURA

A música é uma arte estreitamente ligada a

um conjunto de convenções. Ela é, assim como

o texto, também um discurso, que é feito de

partes. O conjunto das partes e maneira de li-

gá-las é a forma musical. No período chamado

em música de Classicismo – a partir da segun-

da metade do século XVIII – uma dessas con-

venções era que o primeiro movimento, isto

é, a parte inicial de sinfonias, sonatas e peças

para quarteto de cordas devia sempre ser

conformada em um mesmo tipo de estrutura.

Essa ordem dos elementos musicais é conhe-

cida como “forma sonata”, justamente por ser

tão característica desse tipo de composição.

No entanto, um dos maiores gênios do

Classicismo, Ludwig van Beethoven (1770-

1827), dedi cou-se, especialmente na fase final

de sua carreira, a ampliar as fronteiras estilís-

ticas e formais até então vigentes. Assim, em

seu quarteto de cordas opus 133, intitulado

Grande fuga, ele volta – e dá nova dimensão

– a uma forma musical menos apreciada em

seu tempo, a fuga, que fora muito explorada

em um período anterior, o Barroco. Mesmo

assim, o quarteto op. 133 de Beethoven está

longe de uma fuga barroca. Quando foi divul-

gado, os críticos musicais disseram que aqui-

lo já não era um quarteto de cordas. Para

esses seus contemporâneos, o abandono da

convencionada “forma sonata” resultava, por

parte do compositor, em uma ruptura na mú-

sica clássica. Mas nem por isso a obra de Bee-

thoven deixou de se inserir numa tradição.

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Transformação e permanênciaTrata-se aqui apenas de exemplos de

como as noções de continuidade e ruptura podem se inserir em contextos bastante diversos de significados. A pintura, a mú-sica, a teoria heliocêntrica e a Revolução de Julho de 1830 podem ser estudados e discutidos de muitas outras maneiras.

Entretanto, apesar dessa diversidade de contextos e significados, apesar da di-versidade de palavras que expressam as noções de continuidade ou ruptura, es-tas apresentam o mesmo sentido básico: continuar o que já existe ou romper com isso e dar início a outra coisa. A pintura já existia, já tinha um passado e uma his-tória antes de o Renascimento pretender defender sua continuidade de uma certa maneira, sem repeti-la tal e qual.

Galileu, por sua vez, quis romper com o que já existia, uma teoria que já durava cerca de dois mil anos, e dar início a algo in-teiramente novo. E os revolucionários pin-tados por Delacroix quiseram romper com o que já existia, mas para retomar a Revolu-

ção Francesa, que havia sido interrompida pela Restauração. A Revolução Francesa re-presentava, por sua vez, uma ruptura com séculos de domínio de reis e aristocratas.

Em todos esses casos, as noções de con-tinuidade e ruptura se referem a algo que já existe ou existia, que, portanto, já tinha um certo tempo de existência. Continuidade e ruptura se referem, nesses casos e em tantos outros, a algo que se dá no tempo e que, portanto, possui um passado, um pre-sente e... um futuro? Bem, depende se esse algo continuará a existir ou não.

Mas há outro ponto em comum entre nossos exemplos iniciais. Tal artista quis defender a continuidade da pintura, um cientista quis começar algo inteiramen-te novo, os revolucionários quiseram, de novo, instaurar a república. Esses três exemplos mostram a atitude daqueles que participam dos acontecimentos, a atitude de quem julga, avalia e quer in-fluenciar os acontecimentos, seja para dar continuidade a algo, seja para come-çar algo diferente do que havia antes.

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A história da arte dá muitos exemplos de continuidade e ruptura, como é o caso

aqui: Marcel Duchamp (1887-1968) fez sua L.H.O.O.Q baseando-se na Mona Lisa

de Leonardo da Vinci (1452-1519).

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Parâmetros para constatar rupturas e permanências

Vamos agora deixar esses exemplos de lado e nos ater a uma única questão: o que significa dizer que algo continua a ser o que já era ou que algo deixa de sê-lo?

Vamos supor que uma coisa se mantém contínua no tempo. O que significa dizer que algo se mantém contínuo no tempo? Que a coisa é a mesma em vários instan-tes seguidos do tempo, não é? Por exem-plo, uma árvore. Nós a observamos por uma hora e ela aparenta ser exa tamente a mesma. De repente, cai uma folha. Ela é a mesma ou é já outra coisa? Quem vai dar importância para uma folha, afinal? Uma árvore adulta pode ter mais de mil folhas. Uma só não faz diferença.

Depois de algum tempo, voltamos a nos deparar com a árvore. Agora, os ga-lhos estão podados. Ainda assim é a mes-ma árvore? Você poderá responder: claro que é, ela sofreu algumas mudanças, mas continua, no essencial, a ser o que era. As coisas podem ser ditas as mesmas, apesar de algumas modificações que não seriam essenciais. Já pensou se tudo o que muda um pouco deixasse de ser o que era?

No entanto, pela resposta, você já pode perceber que continuidade não é uma noção tão simples. Ao dizer que

uma coisa continua a ser o que era, você prova velmen te não está supondo que ela continua a ser exatamente a mesma, com todos os detalhes, mas que algo nela permanece, independentemente de certas alterações.

Vamos chamar isso que permanece de “o essencial da coisa”. Não é necessário que isso seja algo oculto e difícil de per-ceber. Trata-se somente das caracterís-ticas essenciais que permitem dizer que tal coisa é tal coisa. É essa essência que permite dizer que ela é a mesma, e que, portanto, continua a existir. Entretanto, a questão se torna bem mais complicada se alguém pedir que você defina essa “es-sência da coisa”. Dependendo de como ela é defi nida, o que se compreende por sua continuidade pode variar bastante.

Ainda assim, pode-se dizer que a con-tinuidade no tempo depende de certas características que definem o essencial da coisa. São elas que supostamente per-manecem as mesmas, possibilitando di-zer que se trata sempre da mesma coisa. Assim, a continuidade de algo poderia ser descrita como uma sequência de ins-tantes no tempo, em que ele é sempre o mesmo no seu essencial. Esses instantes podem ser segundos, horas, dias, anos ou mesmo séculos.

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Quando uma árvore torna-se diferente do que é? Quando perde suas folhas ou quando tem seus

galhos podados? Ou ainda é a mesma árvore e só deixa de sê-lo, quando é feita lenha para os

humanos? Mesmo assim, algo dela não permanece?

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“SE QUEREMOS QUE TUDO FIQUE COMO ESTÁ, É PRECISO QUE TUDO MUDE”

E a ruptura? Concluímos que estamos diante de uma ruptura quando não identificamos mais o que assegura-va que a coisa fosse considerada a “mes-ma”, por não estarem mais presentes as suas características essenciais. Por exemplo, a árvore foi extraída do solo e foi transformada em lenha ou carvão.

Nesse caso, a ruptura é uma quebra da sequência de instantes em que a árvore era árvore porque tinha como caracte-rísticas essenciais isto ou aquilo. Surgiu uma nova sequência: a lenha ou o car-vão, dotados de certas características, serão os mesmos por um determinado período de tempo.

O livro O leopardo, escrito por Giusep pe

Tomasi di Lampedusa (1896-1957) é um dos

grandes romances da literatura italiana do sé-

culo XX. Em certo momento, o romance fala di-

retamente do assunto desta Unidade. Tancredi

Falconeri, um jovem aristocrata que decidiu

participar da guerra pela unificação da Itália,

despede-se de seu tio, Don Fabrício Salina, um

príncipe da Sicília, que tem muito carinho e ad-

miração pelo sobrinho.

Na época em que se passa o romance, cerca

de 1860, a Itália ainda era dividida em muitos

Estados, entre os quais a Sicília e Nápoles, que

juntas formavam o Reino das Duas Sicílias,

governado então pelo Rei Francisco II (1836-

1894). Os que lutavam pela unificação da Itália

se dividiam entre os seguidores de Vitor Ema-

nuel II (1820-1878), rei de Piemonte-Sardenha,

favoráveis à unificação por meio da monarquia,

e os favoráveis à unificação por meio da repú-

blica. Entre estes se destaca Giuseppe Garibaldi

(1807-1882), cujo exército desembarcou na Sicí-

lia para combater o Rei Francisco II. É para essa

batalha que Tancredi decide partir.

No momento em que se despede do tio,

Tancredi é advertido por ele para se manter

longe dos inimigos do rei. Mas Tancredi retruca

que será preciso aliar-se com aqueles que o tio

tem como adversários, aqueles que querem a

revolução, exatamente para impedir que a mu-

dança seja tão brusca. E enuncia a frase que

tornou esse romance tão conhecido:

“Se quisermos que tudo permaneça como

está, é preciso que tudo mude”.

Como é possível que tudo mude e, no entan-

to, fique como está? Como é possível que uma

“revolução” resulte na mesma coisa que havia

antes? Tudo vai depender de como se decide o

“essencial da coisa”.

De início, o príncipe, tio de Tancredi, consi-

dera que a decisão do sobrinho, de se juntar

aos revolucionários, vai contra seus próprios

interesses de aristocrata. Para o tio, o essen-

cial é conservar o que existe, manter as coisas

como são, tais e quais. Mas, diante da pressão

por uma revolução radical, o sobrinho calcu-

la que o essencial não é a defesa do estado

de coisas existente – no caso, a defesa do rei

Francisco II e de tudo que havia antes. O mais

importante é outra coisa. Para ele, tudo pode

mudar de aspecto, o rei pode ser outro, a Itália

pode se unificar e, ao mesmo tempo, o essen-

cial pode ser preservado, pode continuar como

antes. O tio acaba concordando com ele, pois

compreende que o essencial é manter um cria-

do para vesti-lo e uma grande casa que conti-

nue a ser sua.

O que as duas personagens querem garan-

tir, e nisso ambas concordam no final, é uma

determinada posição social. O resto se torna

aspecto secundário. Para elas, a mudança na

organização política da Sicília e da Itália se torna

uma mudança aparente, se não afetar o que há

de essencial na ordem da sociedade italiana.

O romance de Tomasi di Lampedusa rece-

beu uma versão cinematográfica que se tornou

muito famosa: O leopardo (Itália, França, 1963),

dirigido por Luchino Visconti (1906-1976).

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Mas quando começa essa nova se-quência? Quando a árvore é extraída do solo, quando é transformada em lenha ou quando é queimada? Tudo vai depen-der de como você define as características essenciais da árvore. Se o fato de a árvore ter raízes no solo é algo necessário para a árvore ser árvore, nesse caso concluiremos que a nova sequência tem início quando a árvore começa a ser extraída do solo. Para estabelecer se uma sequência permanece contínua ou se é interrom pida, é preciso antes saber como foram definidas as ca-racterísticas que permitem dizer se a coisa ainda é a mesma ou não.

A continuidade de uma coisa no tempo pode ser pensada, então, como uma linha reta, em que cada ponto re-presenta um instante. A coisa, no seu essencial, é a mesma em cada ponto. De repente, a linha é quebrada, virada para um lado ou para o outro, ou simplesmen-te tem um fim. Eis o instante de ruptu-ra. A essência da coisa deixou de existir. Surge em seu lugar algo diferente, novo em comparação com o que vinha antes. Este algo novo pode ou não iniciar uma nova sequência no tempo.

O instante em que ocorre a ruptura supõe uma diferença entre o que vinha antes e o que vem depois. É importan-te que essa diferença não seja qualquer diferença. As coisas podem ser muito diferentes entre si e nem por isso esta-rem sob uma relação de ruptura. Pense, por exemplo, na relação entre o pássaro pousado na árvore e a própria árvore. Pássaro e árvore são diferentes entre si, mas dificilmente diríamos que há qualquer tipo de ruptura entre eles. É preciso que a diferença, pressuposta na noção de ruptura, seja a diferença entre duas coisas que tem alguma relação en-tre si, como a árvore e o carvão, e que estejam em relação no tempo, em um antes e um depois.

Você pode pensar: “Pois é, mas sem árvore não há carvão. Algo da árvore não

passou para o carvão? Ela simplesmente não mudou de forma, não se transfor-mou em carvão? Talvez haja continui-dade nessas mudanças de forma”. Esse raciocínio também é bom, mas lembre-mos que tudo vai depender de como foi definido o que é essencial à árvore. Se nele a “forma” era importante, então a continuidade da árvore foi interrompi-da. E o fato de que algo da árvore passou para o carvão não equivale a dizer que o essencial da árvore, em seu todo, passou para o carvão, permanecendo intacto. Do contrário, como seria possível distin-guir árvore e carvão?

O raciocínio é válido porque ele des-cortina outras maneiras de apresentar continuidades e também rupturas. Na história da filosofia, encontramos mui-tos pensadores que desenvolveram for-mas diversas de pensar continuidades e rupturas.

Já sabemos que juízos sobre continui-dades e rupturas podem variar bastante, conforme o que se considera mais impor-tante na identidade das coisas. O nosso artista, o nosso cientista e os nossos re-volucionários quiseram dar continuida-de ou romper com algo que já existia. To-dos participam dos processos históricos e culturais, julgam e tomam posição em relação a eles. E têm em vista também o “essencial da coisa” que defendem ou re-jeitam. Outros podem ter juízos e avalia-ções bem diferentes deles, com base em outras concepções sobre o que, de fato, é essencial naquilo que está em pauta. As continuidades e rupturas vão depender dessas concepções em jogo.

Note que diferenças sobre o que con-tinua ou muda radicalmente podem sur-gir também entre aqueles que não par-ticipam dos acontecimentos, mas que se contentam em apenas observá-los e descrevê-los, a fim de explicá-los. Por exemplo, historiadores da arte podem divergir sobre o que é essencial na pintu-ra, e, portanto, podem nos contar histó-

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Pesquisa em grupo e desenvolvimento individual por escrito

No início deste módulo, menciona-mos o movimento intelectual e artístico denominado Renascimento, que se ori-ginou em cidades italianas como Roma e Florença e, pouco a pouco, se estendeu para outros países da Europa ao longo dos séculos XV e XVI. Esse movimento, que foi de importância crucial na histó-ria da pintura no Ocidente, durou mais de cem anos. Passou por transforma-ções, comportou tentativas diferentes e sucessivas para obter uma represen-tação realista na pintura. Mas o que é comum a essas tentativas é a referência à pintura e à escultura da Antiguidade romana, cujo caráter realista os pinto-res do século XV procuraram retomar e aprofundar.

• Forme uma equipe de dois ou três colegas, e juntos façam uma pesquisa na biblioteca da escola ou na internet, pro-curando por pinturas da Antiguidade ro-mana. Em seguida, busquem resultados que envolvam pintores do Renascimen-to italiano, tais como Giotto di Bondone (1267-1337), Massacio (1401-1428), Pao-lo Ucello (1397-1475), Andrea Mantegna (1431-1506), Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo Buonarroti (1475-1564) e Rafael Sanzio (1483-1520). Com base nesse material, procurem levantar as semelhanças entre os dois períodos:

o da Antiguidade romana e o do Renas-cimento. Para que essas semelhanças se tornem mais evidentes, realizem uma outra pesquisa, agora sobre a pintura medieval. Para obter uma comparação que seja explicativa das diferentes for-mas de representação pictórica, façam o seguinte: selecionem, na busca, pinturas do período medieval e do Renascimen-to que abordem o mesmo tema. Isso é simples: basta que vocês procurem por temas ligados à vida de Cristo, um tema que foi exaustivamente representado tanto pelos pintores da Idade Média, quanto pelos pintores do Renascimento.

• Comparem as duas formas de repre-sentação (a medieval e a renascentista) de um mesmo tema escolhido por vocês (por exemplo, a Anunciação da Virgem, a Crucificação, a Deposição da Cruz ou De-posição de Cristo etc.). Em seguida, pro-curem caracterizar com suas palavras as diferenças existentes entre elas para os demais alunos. Enfatizem as rupturas existentes no modo de representar as figuras, na disposição delas no espaço, etc. Procurem apontar, na análise das imagens dos quadros escolhidos, em que medida os pintores do Renascimen-to romperam com a pintura medieval, re-tomando a inspiração realista da pintura da Antiguidade romana. A ruptura, nes-se contexto, foi considerada pelos seus protagonistas como retomada, reínicio, “renascimento”.

Investigações na história da arte

rias muitos diferentes sobre essa forma artística. O mesmo vale para os histo-riadores da ciência e dos sistemas polí-ticos. Algumas dessas histórias podem ser apresentadas como contínuas, ou-

tras como contendo inúmeras rupturas. A história, de modo geral, é um campo em que continuidades e rupturas não são apenas constatadas, mas também objeto de muito debate e disputa.

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O “movimento” segundo Aristóteles

A semente traz a árvore em potência: a

capacidade de tornar-se árvore... em ato.

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O tema da continuidade e da ruptura está sempre ligado à questão da mudança: se alguma coisa muda em algum aspecto – como de uma árvore se fazem outras coisas: lenha, carvão, mobília –, ela continua a ser o que era antes ou deu lugar a outra coisa, radicalmente diferente? Para aprofundar essa questão, vamos ler duas passagens de um dos mais importantes tratados da his-tória da filosofia, a Metafísica, do filósofo grego Aristóteles[+] (384-322 a.C.):

“[...] é evidente que, de algum modo, tudo vem a ser a partir de algo de mesmo nome, assim como os seres naturais, ou de uma parte de mesmo nome (por exemplo, a casa a partir de uma casa, enquanto casa no intelecto; pois a arte é forma). E os seres naturais se comportam de maneira semelhante a essas coisas, pois a semente produz tal como os produtos da arte, visto que possui em potência a forma e aquilo de que surge a semente é, de certo modo, de mesmo nome.” (Aristóteles, Metafísi-ca, Livro VII, capítulo 9. Tradução nossa)

“[...] a matéria e a forma são uma única coisa e a mesma, uma em potên-cia, outra em ato... cada coisa é uma unidade, e o que é em potência e o que é em ato são, de certo modo, uma coi-sa una, de modo que há somente uma causa, que movimenta da potência para o ato.” (Aristóteles, Metafísica, Li-vro VIII, capítulo 6. Tradução nossa)

Nessas passagens, há aspectos inte-ressantes que precisamos destacar. Ob-serve que se trata de falar sobre como a natureza se comporta; que esse compor-tamento conduz a uma afirmação sobre a unidade dos objetos naturais; que a res-posta à questão envolve uma compara-ção com a arte e que se fala, para isso, de “ato” e “potência”, “forma” e “matéria”.

Vamos comentar esses aspectos.Por que há um problema sobre a na-

tureza que é preciso resolver? Porque a natureza se caracteriza pela presença do movimento. Esse termo é empregado por Aristóteles com um significado bem mais amplo do que aquele que se encontra nor-malmente nos textos contemporâneos de filosofia e, principalmente, de física. Para nós, o mais comum é que a palavra “mo-vimento” seja sinônimo de “mudança de lugar”, de “deslocamento”.

A investigação moderna sobre os princí-pios do movimento, das leis que podemos descobrir a seu respeito, enfoca a mudança de lugar efetuada por um objeto qualquer. É por isso, aliás, que se pode tratar do mo-vimento em termos de quantidade, for-mulando suas leis por meio da linguagem matemática, procedimento que certamen-te teve em Isaac Newton (1643-1727) seu maior representante, mas que já se apre-sentava, entre outros, em Galileu (1564-

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1642), em Evangelista Torricelli (1608- 1647), em Johannes Kepler (1571-1630).

Para Aristóteles, a palavra “movimen-to” (em grego, kínesis, palavra presente em termos modernos, como “cinema”) se refere a alguns tipos distintos de mudança, de alteração.

Nos textos de Aris-tóteles, a geração de um objeto, seu nascimento e surgimento, seu “vir a ser”, é um tipo de mo-vimento. A mudança de lugar também o é. As alterações em ge-ral por que passam os seres naturais, como o envelhecimento, são também movimento. E o aumento ou diminui-ção de algo também são chamados de movimento por Aristóteles. Veja como o emprego da palavra é bem mais amplo do que aquele que se tornou comum entre nós.

De modo geral, essas distintas formas de movimento, de transformação e mu-dança, se articulam de forma unificada, fa-zendo parte de uma explicação sistemática.

Para Aristóteles, o deslocamento do fogo, para cima e não para baixo, se explica porque o “lugar natural” do fogo é o alto. Uma pedra cai porque seu “lugar natural” é a terra. Como explicar que um ser na-tural, como uma árvore, passe por tantas transformações, desde sua existência ini-cial como simples semente? Ou que uma criança recém-nascida, gerada também a partir de um tipo de semente, se transfor-me em um indivíduo adulto?

A resposta de Aristóteles é, basicamen-te, que a semente é uma árvore “em potên-cia”, assim como a criança é um adulto “em potência”. No caso da semente vegetal, ela traz em si algo que a torna potencialmen-te uma planta, e as transformações que sofre – não todas, mas uma parte impor-

tante delas – são a passagem dessa potên-cia para uma nova situação, que o filósofo denomina “ato”.

Uma semente vira árvore, portanto, porque deixa de ser uma “árvore em potên-

cia” para se tornar uma “árvore em ato”, e essas alterações podem então ser consideradas como um processo de “atuali-zação” dessa potência.

O termo “potência” (em grego, dýnamis) significa “capacidade”, “poder”. A semente é capaz de se tornar ár-vore, traz em si esse poder. E quando olhar-mos para uma árvore, diremos, conforme o vocabulário de Aristó-teles, que ali está uma

árvore “atual”, que “atualizou” as poten-cialidades que continha, quando era se-mente, para ser uma árvore.

“Forma” e “matéria”, segundo Aristóteles

Ao conceitualizar vários tipos distintos de mudança, Aristóteles está procurando uma saída para um impasse que seu mes-tre Platão[+] havia formulado. Para este, o conhecimento deve ser imutável, deve ser sempre o mesmo.

Ora, justamente por isso, raciocinava Platão, o conhecimento não pode ter por objetos os seres da natureza, que estão sempre mudando. Isso levou Platão, em alguns de seus diálogos, a afirmar que o conhecimento diz respeito a realidades que não se apresentam na natureza e que não estão sujeitas a nenhum tipo de mu-dança, denominando-as de “ideias” ou “formas”, que seriam seres dotados de existência, conhecidos apenas pelo pensa-mento – sem o auxílio dos sentidos – e que existem fora da natureza, numa espécie de “lugar suprassensível” (fora do alcance da

Em Aristóteles, a palavra

“movimento” se refere a vários tipos

de mudança – o “vir a ser” de um

objeto é um tipo de movimento.

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percepção pelos sentidos). Aristóteles, que foi aluno da escola de Platão (a Academia) durante vinte anos, herdou de seu mes-tre o ideal de um conhecimento imutável e eterno, mas não podia admitir que esse conhecimento não se referisse de nenhum modo aos seres naturais. Como, porém, conciliar um conhecimento idealmente imutável com o fato incontestável de que os seres naturais estão em mudança per-manente e contínua?

A solução de Aristóteles é complexa e sofisticada, mas pode ser resumida em algumas proposições:

1. O objeto do conhecimento são as “ideias” ou “formas”, como que-ria Platão. Mas essas formas estão presentes nos objetos da natureza, não sendo separadas deles a não ser abstratamente, pelo pensamento.

2. Cada ser natural, humano, ani-mal, vegetal, é um composto de matéria e forma. De um lado, a forma permite que cada ser seja exatamente o que ele deve ser. De outro, a matéria torna possível que essa forma possa se desenvolver. No caso de uma criança, por exemplo, sua matéria – carne, ossos, nervos – recebe uma série de determinações. Uma série delas é variável, como cor, peso ou altura. Ao lado des sas, po-rém, há determinações essenciais: todo ser humano será um animal e um ser racional. Isso é sua forma.

3. Uma parte das mudanças de um ser natural será, portanto, o processo pelo qual a forma se atualiza na ma-téria. É isto que permite a esse ser tornar-se em ato o que, de início, ele é apenas em potência.

Voltemos ao exemplo da árvore. Uma semente é um composto de uma matéria e de uma forma, que está ali em potência. Quando essa semente germina, disso se segue seu crescimento, o surgimento de raízes, caule, folhas, tronco, flores e frutos.

Essas transformações ocorrem porque na semente estava, como diz Aristóteles, a “forma da árvore em potência”, que está se atualizando na matéria, que é madeira, seiva, folhas, flores e frutos.

Ao dispor a questão desse modo, Aris-tóteles dá conta de alguns problemas. Pode explicar por que, se tiver condições de se desenvolver plenamente, toda se-mente vira árvore ou toda criança vira adulto. A mudança não é completamente caótica, aleatória, não é um aglomerado incompreensível de rupturas: é, na ver-dade, um processo contínuo de trans-formação, previamente estabelecido, no qual determinada matéria, contendo em si uma forma (em potência), é alterada por causa da presença dessa forma, e esse conjunto de alterações é a atualização da forma na matéria.

O significado de “forma” em Aristóteles

É importante esclarecer que Aris-

tóteles não entende por “forma” o

sentido que nos é mais familiar, em

que é sinônimo de “formato”, do

contorno de algo. As traduções mo-

dernas dos termos empregados por

Aristóteles consagraram a palavra

“forma”, mas, na filosofia aristotéli-

ca, forma não é formato. A “forma”

da árvore, por exemplo, não é seu

formato: comprido ou chato, altura,

largura e espessura. Em Aristóteles,

a palavra se refere a uma espécie de

estrutura interna do objeto, que tor-

na possível, inclusive, que ele tenha

determinado formato.

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É verdade que nem todas as mudanças que a árvore sofre são explicadas por esse processo. Uma árvore pode ter, por exem-plo, 1000 folhas, ou 1001, 1002 e assim por diante... Seu tronco pode medir dois metros, ou dois metros e dez centímetros, ou dois metros e vinte, e assim por dian-te... Mas todas as árvores necessariamente serão dotadas de algumas características, sem as quais não seriam árvores – por exemplo, ter raízes e tronco –, e isso se ex-plica pela presença da “forma da árvore”. Já as outras mudanças, que não interferem nessas características, são para Aristóteles contingências devidas ao fato de que a ma-téria da árvore pode ser alterada de diver-sas maneiras, nem sempre previsíveis.

No vocabulário aristotélico, todo ser na-tural contém atributos essenciais, aqueles sem os quais um ser não poderia ser o que é – como ter um tronco, para uma árvore –, e atributos acidentais, que poderiam ser diferentes, sem que o ser deixasse de ser o que ele é essencialmente – como ter 1000 ou 1001 folhas, para uma árvore.

Os atributos essenciais só são possíveis por causa da ação da forma na matéria, por causa da atualização de um modo necessá-

rio de ser que a matéria já traz em potência, enquanto os atributos acidentais são resul-tado de efeitos não necessários na matéria, sem a atuação da forma. É por isso também que admitir que todos os humanos são ra-cionais não significa ignorar que alguns são mais altos do que outros, que diferem em tantos aspectos: peso, altura, sexo etc.

“Arte” ou “técnica”em AristótelesPara explicar esse comportamento ob-

servado nos eventos naturais, Aristóteles faz uma comparação com os produtos da arte, ou técnica. Essa duas palavras, “arte” e “técnica”, são tomadas aqui em sentido equivalente, para fazer referência à palavra grega tékhne. Em grego, e particularmente em Aristóteles, tékhne (arte, técnica) é o termo pelo qual se descreve a capacidade criadora, digamos, seja de um poeta, seja de um carpinteiro. Cada um deles, à sua maneira, produz alguma coisa.

Ora, Aristóteles compara os produtos da natureza com os da arte, porque isso lhe permite exprimir de maneira fami-liar a ideia de que há um mesmo tipo de processo em situações diferentes. Assim como um carpinteiro inicia seu trabalho de

Certos fenômenos parecem evidenciar, a nossos olhos, que a natureza está em

constante movimento.

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transformação de certas peças de madeira visando um objetivo previamente estabe-lecido – por exemplo, construir uma mesa –, a semente também inicia seu próprio processo de alteração com uma finalidade já presente nela: tornar-se árvore.

Tanto na construção da mesa quanto no crescimento da árvore, há uma finalidade já definida, que vai nortear todo o proces-so de transformação. O carpinteiro, diante de um tronco, sabe o que deve fazer para torná-lo uma mesa, e aplica esse conheci-mento no seu trabalho.

E a semente se torna espontaneamente uma árvore de forma natural, sem procedi-mentos artificiais como os do carpinteiro.

Por causa dessa doutrina, Aristóte-les costuma ser considerado o fundador da teleologia natural (a palavra contém o termo télos, que significa “fim” ou “finali-dade”). O termo “teleologia” significa, de modo geral, um discurso sobre os fins (do universo, da criação, da humanidade).

A explicação aristotélica para o movimen-to e a mudança passa por uma teleologia, cujas linhas gerais foram aqui apresenta-das. Eis uma das várias ideias importantes que esse pensador introduziu na filosofia.

“Em tudo o que há finalidade, é em vista disso que se executa o que vem an-tes e o que vem depois. Então, o modo como se produz algo é o mesmo em que

surgem os seres naturais, e o modo como esses seres naturalmente vêm a ser é o mesmo em que se produz algo, se não houver impedimento. E se produz ten-do uma finalidade; portanto, é também com uma finalidade que se dão os pro-cessos naturais. Por exemplo, se uma casa surgisse naturalmente, surgiria tal como agora é feita pela arte. Geralmen-te, a arte aperfeiçoa o que a natureza é incapaz de completar e a imita. Se, en-tão, os produtos da arte têm finalidade, evidentemente também têm finalidade os seres naturais.” (Aristóteles, Física, Li-vro II, capítulo 8. Tradução nossa)

Aristóteles desenvolve aqui uma postu-ra característica, de grandes consequências. Uma coisa é o ser como ocorre no mundo; outra, tendo em vista a compreensão desta, é o conhecimento que podemos alcançar.

“O caminho da investigação começa naturalmente com o que é mais cognos-cível e claro para nós, na direção do mais claro e cognoscível por natureza – pois não é a mesma coisa o mais cognoscível para nós e o mais cognoscível em abso-luto. Por isso, é necessário partir do que é mais claro para nós, para chegar ao que é mais claro e cognoscível por natu-reza.” (Aristóteles, Física, Livro I, capítulo 1. Tradução nossa)

Para o pensamento

aristotélico, a

atividade do

artesão pode ser

comparada aos

processos naturais

de mudança e

movimento.

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“Perfectibilidade” e “desenvolvimento”

Poucas perspectivas podem contrastar tanto quanto a sociedade egípcia da Antiguidade e aquela

contemporânea – aí incluídos os respectivos universos culturais.

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O tema da continuidade e da ruptura é muito discutido no que se refere aos grandes acontecimentos da história, como revoluções, reformas, contrarrevoluções etc. Lemos nos livros de história que civi-lizações inteiras desapareceram, dando lu-gar a outras com características diferentes. A Grécia e o Egito antigos são bons exem-plos disso. Encontramos hoje na Grécia e no Egito culturas muito diferentes daque-las que existiram na Grécia e no Egito an-tigos. Os deuses dos gregos e dos egípcios já não são cultuados há muitos séculos. Os faraós e suas leis já não existem mais.

Essas mudanças na história do mundo provocam a questão de saber se há conti-nuidade nela ou se há apenas rupturas, períodos históricos que não têm nada ou muito pouco a ver entre si. Na filosofia, essa questão é tratada, sobretudo, pela filosofia da história, que consiste na tentativa de fi-losofar sobre o sentido da história, sobre a unidade e as transformações da história.

Georg W. F. Hegel, filósofo alemão do começo do século XIX, é sem dúvida um dos mais importantes pensadores que se dedicaram ao estudo filosófico da histó-ria. Hegel trata de uma questão que tem a ver diretamente com o tema da conti-nuidade e ruptura. Trata-se, como em Aristóteles, da questão das mudanças, porém mudanças ocorridas na história. Vamos examinar algumas de suas ideias, comparando-as com outras importantes filosofias da história.

Dois modos de compreender a históriaLeiamos, a seguir, dois trechos de Pre-

leções sobre a filosofia da história, de Hegel:

“Há muito, a transformação que ocorre na história foi de uma maneira geral compreendida como se ela conti-vesse ao mesmo tempo um progresso para o melhor, para o mais perfeito. As transformações na natureza , por mais

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infinitas e diversas que sejam, mostram apenas um ciclo que se repete sem-pre. Na natureza nada de novo acontece sob o sol. [...] Apenas nas transformações que ocorrem no campo espiritual sobrevém o novo. Esse fenômeno do espiritu-al torna visível que no homem há uma determinação diferente da que existe nas coisas meramente naturais [...], a saber, uma ca-pacidade real de transformação, mais exatamente, um impulso para a perfectibilidade. [...]

O princípio do desenvolvi-mento contém algo mais amplo [...]. O organismo natural produz a si mes-mo: ele faz de si mesmo o que ele é em si. Igualmente, o espírito é apenas o que ele faz de si mesmo, e ele faz de si mesmo o que ele é em si. O desenvolvi-mento na natureza se dá de maneira imediata, sem oposição nem obstá-culo. [...] No espírito, porém, tudo se passa diferentemente. [...] O desen-volvimento, que na natureza é uma produção calma, é no espírito uma luta infinita e árdua contra si mesmo. [...] Além disso, o desenvolvimento do espírito tem uma finalidade: a liber-dade.” (Hegel, Preleções sobre a filosofia da história. Tradução nossa. Edição de referência: Vorlesungen über die Phi-losophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, pp. 75-76)

Segundo Hegel, pode-se pensar as mu-danças históricas de mais de uma maneira. Uma delas vê as mudanças a partir do prin-cípio da perfectibilidade (capacidade de aper-feiçoamento); outra, a partir do princípio do desenvolvimento. Esses princípios podem ser pensados a partir de duas comparações entre a “natureza” e o que ele chama de cam-po espiritual ou “espírito”, que corresponde ao universo simbólico da cultura.

O princípio da perfectibilidade é visto como uma maneira de explicar uma dife-

rença fundamental entre natureza e espí-rito: o novo. E ele explica o novo porque o homem, incluído no terreno espiritual, tem uma capacidade real de mudar, e de mudar para melhor. Haveria no homem um impulso para se aperfeiçoar, para me-lhorar constantemente.

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HegelA obra filosófica de

Georg Wilhelm Friedrich

Hegel (1770-1831) é en-

ciclopédica. Hegel pre-

tendeu erigir um sistema

filosófico em que prati-

camente todo saber hu-

mano acumulado até a

sua época encontrasse

uma posição adequa-

da: a ética, o direito, a

política, a estética, a reli-

gião e toda a história do

mundo. Além disso, tentou unificar todo esse

saber por meio de um método, a dialética.

Para ele, a dialética não é um método dialó-

gico, como era nos filósofos antigos e medie-

vais, mas a exposição do desenvolvimento do

saber e dos objetos do saber, desenvolvimen-

to esse que se dá na forma de contradições.

Atualmente, sua filosofia é retomada em

grande parte por causa do seu conceito de

reconhecimento recíproco, o qual é inserido

na discussão sobre os movimentos sociais e

sobre os conflitos culturais. Eis algumas das

obras de G. W. Hegel em português:

Cursos de estética. Tradução: M. A. Werle.

São Paulo: Edusp, 2000-2005. 5 vols.

Discursos sobre a educação. Lisboa: Coli-

bri, 1994.

Enciclopédia das ciências filosóficas em

compêndio. Tradução: Paulo Meneses. São

Paulo: Loyola, 1995-1997. 3 vols.

Fé e saber. Tradução: O. Tolle. São Paulo:

Hedra, 2007.

Fenomenologia do espírito. Tradução:

Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.

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Desenvolvimento individual por escrito

Como você pode ter percebido, a filosofia dá grande importância ao significado das palavras. Além disso, ocorre também de os filósofos, quando buscam introduzir novos conceitos, se servirem de palavras de um modo que por vezes foge de seu sentido consagra-do. Por exemplo: o conceito de “forma”, tal como empregado por Aristóteles, não corresponde ao significado habitual que essa palavra possui hoje (ver segundo módulo desta Unidade). Outro exemplo é a palavra “técnica”, que em Aristóte-les abarca parte do que hoje entende-mos por técnica (carpintaria, sapataria etc.), mas que também inclui atividades que atualmente distinguimos da técnica, como é o caso da arte.

Assim também sucede com a pala-vra “espírito”, muito empregada em fi-losofia, a ponto de figurar no título de uma das Unidades deste livro: Espírito e letra. O mesmo termo também apa-rece nos textos de Hegel. Em nenhum desses casos, “espírito” corresponde ao significado mais difuso entre nós hoje em dia, em que é sinônimo de “alma após a morte” (eis a primeira definição de “espírito”, no Dicionário Unesp do por-tuguês contemporâneo).

Na obra de Hegel, a palavra alemã correspondente a “espirito” é “Geist” (que se pronuncia: “gáist”). Se você abrisse um dicionário de língua alemã, observaria que Geist possui mais de um significado, como, aliás, acontece com quase todas as palavras em todos os idiomas. Um desses dicionários de alemão – o Wahrig Deut­sches Wörterbuch, de 1986 – lista vários

sentidos para Geist. Um dos mais antigos, que encabeça a lista, equivale a “ar” (em alemão: Atem, que corresponde à palavra grega “pneuma”, também conhecida da língua portuguesa: “pneumologia”, por exemplo, é a parte da medicina que estu-da as doenças das vias aéreas inferiores: traqueia, brônquios etc.). E o dicionário alemão Wahrig também fornece, no fim da lista de significados para Geist, um dos sentidos mais difundidos entre nós: “apa-rição de um morto que voltou à vida” (tra-dução nossa), como vemos nos filmes de terror. No meio da lista de significados, entretanto, há outros muito próximos do que Hegel entende por Geist.

Agora passemos para o português. Também nossa língua possui significa-dos diferentes para o termo “espírito”. Dentre eles, encontram-se correspon-dências com aquilo que Hegel quis dizer com Geist. Basta você abrir um dicioná-rio da nossa língua para verificá-lo. Por exemplo: “espírito” = “conjunto de ideias, opiniões e disposições que predominam em uma época ou instituição” (Dicionário Unesp do português contemporâneo). Se não é exatamente o que Hegel tem em mente, já é bem mais próximo do que, por exemplo, o sentido que “espírito” possui para os espiritualistas, como Alan Kardec (1804-1869).

• Consulte bons dicionários da língua portuguesa, relacione os sentidos admiti-dos por “espírito” e aponte, em um texto breve, com no máximo uma página, qual desses significados mais parece se apro-ximar da ideia presente no uso que Hegel confere a esse termo. Você terá assim co-meçado a descobrir o significado hegelia-no de “espírito”.

O “espírito” que não aparece em filmes de terror

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Enfim, seria isso que explicaria a visão de que as mudanças históricas formariam um progresso para o melhor, para o mais perfeito. Ou seja, porque é um ser perfec-tível, porque é capaz de mudar e de se tor-nar melhor do que antes, o homem produz mudanças históricas que são passos pro-gressivos de melhora do próprio homem.

Note que, para Hegel, há uma diferen-ça entre mudanças históricas e mudan-ças naturais. As mudanças naturais são na verdade repetições. Isto é, os eventos naturais são sempre os mesmos, como as estações do ano: a primavera é uma mudança em relação ao inverno, mas todo ano ela se repete, assim como o inverno. As mudanças históricas, ao contrário, não são repetições, mas novi-dades em relação ao que vinha antes. Se as mudanças naturais são sempre repe-tições do “mesmo”, as mudanças histó-ricas seriam o surgimento do “novo”.

Uma outra coisa importante a ob-servar diz respeito ao conceito de “es-pírito”, de que Hegel lança mão. Na medida em que só no campo espiritual há o novo, e o novo é o que caracteriza

as mudanças históricas, então o campo do espírito abrange a própria história. Além disso, o homem é também incluí-do no campo espiritual: ele seria o res-ponsável pelas mudanças, já que possui a capacidade de mudar para melhor. Assim, sabemos um pouco mais sobre o conceito de espírito: ele se refere à his-tória e ao próprio homem.

Por fim, se as mudanças históricas se diferenciam das mudanças naturais por apresentarem o “novo”, este novo não está em total descontinuidade com o que vinha antes, pois isso também era um passo para a melhora dos seres humanos. As mudanças novas têm algo em comum: são sempre graus de aperfeiçoamento.

É por isso que o princípio de perfec-tibilidade, tal como analisado por He-gel, pode ser visto como um princípio que explica a continuidade das mudan-ças, ao mesmo tempo em que as pensa como “novas”. Essa é uma maneira de pensar o progresso: ele seria uma linha estendida para o futuro em que cada momento representa um aperfeiçoa-mento da humanidade.

Jean-Pierre Houel (1735-1813). Tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1789 (óleo sb/ tela, 1789).

A Bastilha era uma prisão que simbolizava o poder monárquico aos olhos do povo de Paris.

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Atividade em equipe e debate em sala de aula

Hegel não cita especificamente nenhum autor que faça uso do conceito de perfecti-bilidade. Porém, antes dele, pelo menos dois importantes filósofos do século XVIII pen-saram a perfectibilidade como condição do progresso: Jean-Jacques Rousseau [+] (1712-1778) e Nicolas de Caritat, marquês de Con-dorcet (1743-1794), sendo mais conhecido por esse último nome. Para Rousseau, como para Condorcet, a perfectibilidade é uma das particularidades mais importantes que dis-tinguem o homem e o animal.

• Em grupos de dois ou três, leiam com atenção os dois trechos a seguir e procurem destacar as diferenças entre eles quanto ao tema da perfectibilidade e do progresso. Com base nessa comparação, exponham para a classe os resultados de sua reflexão, posicio-nando-se sobre qual das duas concepções corresponde mais ao conceito de perfectibili-dade com que começamos essa discussão.

Eis os dois empregos do princípio da per-fectibilidade:

“Mas, mesmo que as dificuldades que cercam todas essas questões em torno da diferença entre o homem e o animal deixas-sem lugar para a polêmica, haveria ainda uma outra qualidade muito específica que os diferencia entre si, e sobre a qual nenhu-ma contestação pode ser levantada. É a fa-culdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e que, em nosso caso, existe tanto na espécie, quanto no indivíduo. Já um animal permanece sen-do, após mil anos, o que ele era no primeiro desses mil anos. Por que somente o homem é capaz de tornar-se imbecil? [...] Seria tris-te para nós sermos obrigados a admitir que

essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as infelicidades do homem. Que é ela que, no decorrer do tempo, o tira dessa condição originária, na qual ele viveria dias tranquilos e inocentes; que é ela que, fa-zendo que surjam com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o tor-ne, ao fim e ao cabo, o tirano de si mesmo e da natureza.” (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Parte I. Tradução nossa. Edição de referência: J. J. Rousseau, Contrat social ou Principes de droit politique, précedé de Discours sur les sciences. Paris: Librairie Garniers Frères, 1926, p 48)

Agora, o segundo trecho, extraído da obra de Condorcet:

“Tal é a meta da obra que empreendi, e cujo resultado será mostrar pelos fatos, assim como pelo raciocínio, que a natureza não in-dicou nenhum termo ao aperfeiçoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é realmente indeterminada: que os progressos desta perfectibilidade, doravante independentes da vontade daqueles que de-sejariam detê-los, não têm outros termos se-não a duração do globo onde a natureza nos lançou. Sem dúvida, estes progressos poderão seguir uma marcha mais ou menos rápida, mas ela deve ser contínua e nunca retrógrada enquanto a Terra ocupar o mesmo lugar no sistema do universo, e enquanto as leis gerais deste sistema não produzirem nem uma de-sordem geral, nem mudanças que não per-mitiriam mais à espécie humana conservar aqui as mesmas faculdades, desdobrá-las, encontrar aqui os mesmos recursos.” (Nicolas de Condorcet, Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução: Carlos A. R. de Moura. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, pp. 20-21)

Perfectibilidade e progresso em Rousseau e Condorcet

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Objeções à perfectibilidadeÉ mesmo razoável defender inteira-

mente o princípio de perfectibilidade para entender as mudanças históricas? Ou, ao invés disso, a ideia de perfectibilidade se expõe a objeções e críticas?

Note que o princípio da perfectibili-dade faz da mudança uma lei, como se houvesse uma lei na história da humani-dade que submete tudo à mudança para o melhor. É uma posição defensável. Porém, assumi-la gera alguns problemas, que exa-minaremos a seguir.

Para começo de conversa, muitas mu-danças ocorrem para pior, como, aliás, não deixa de observar J.-J. Rousseau[+] (1712-1778). Além disso, como saber se uma coisa é melhor ou pior que outra, se, como nos indica a experiência, a avaliação

sobre melhoras e pioras difere muito, de acordo com a perspectiva e as circunstân-cias? Voltemos a Hegel um instante. A ob-jeção que ele faz à “perfectibilidade” reside exatamente no fato de que, a seus olhos, ela é um princípio indefinido. E para He-gel, sem definir o que é o “perfeito”, o ob-jetivo, as mudanças acabam valendo por si mesmas, sem nenhum critério de avalia-ção. Desse modo, Hegel, que foi leitor de Rousseau e Condorcet, tenta resolver esse problema de falta de finalidade lançando mão do princípio de desenvolvimento.

Com esse objetivo, Hegel recorre nova-mente a uma comparação entre natureza e espírito. Desta vez, porém, trata-se não de toda a natureza, mas apenas da natureza orgânica, isto é, do campo dos seres vivos, dos organismos biológicos. Por que essa

Kant

Immanuel Kant (1724-

1804) nasceu em Königsberg,

uma cidade importante da

Prússia Oriental, à época um

reinado que teve, como seu

monarca mais famoso, Frede-

rico II, o Grande (1712-1786).

Kant teve uma infância rela-

tivamente modesta e desde

cedo lecionou na Universida-

de de Königs berg, onde in-

gressou como professor regular em 1770. Já era

conhecido do universo cultural alemão quando

publicou a Crítica da razão pura (1781), com que

promoveu “a revolução copernicana em filoso-

fia”. A ela, seguiram-se a Crítica da razão prática

(1788), a Crítica da faculdade de julgar (1790) e a

Metafísica dos costumes (1797), além de outras

obras que se tornaram centrais na trajetória do

pensamento ocidental em áreas como o direi-

to, a política, a epistemologia, a moral e a es-

tética. Não por acaso, Kant é, nos dias de hoje,

um dos autores mais estudados da história da

filosofia. Dispomos de boas traduções de suas

obras no Brasil. Eis uma relação das principais.

Note-se que possuímos duas

boas traduções brasileiras da

Crítica da razão pura:

Crítica da razão pura. Tra-

dução: V. Rohden e U. Moos-

burguer. São Paulo: Abril Cul-

tural, 1983.

Crítica da razão pura.

Tradução: F. C. Mattos. São

Paulo; Petrópolis; Bragança

Paulista: Vozes & Ed. Univer-

sitária São Francisco, 2012.

Há uma outra boa tradução de M. P. dos

Santos e A. F. Morujão, pela Fundação Calouste

Gulbenkian (1994).

Ademais, você também pode consultar as

seguintes obras de Kant em português:

Crítica da razão prática. Tradução: V. Roh den.

São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Crítica da faculdade do juízo. Tradução: V. Ro-

hden e A. Marques. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-

leiro, 1993.

Fundamentação da metafísica dos costumes.

Tradução: G. de Almeida. São Paulo: Discurso

Editorial; Barcarolla, 2009.

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comparação? Porque também os organis-mos biológicos se desenvolvem, evoluem. E se desenvolvem a partir de um princípio, que no começo tem a forma de um germe, mas depois abandona essa forma, muda, e por fim retorna ao início, conservando sempre o mesmo princípio orgânico. Po-demos pensar no exemplo da árvore, que é também utilizada por Hegel em outros con-textos. A semente, o germe, se desenvolve, constitui-se como árvore, que por sua vez gera novas sementes etc. O ciclo se repete.

Mas o que interessa não é a diferen-ça entre a repetição e o novo. Pois inicial-mente Hegel trata de aproximar a natu-reza orgânica e o espírito. E isso porque o espírito se desenvolve também a partir de um “germe”, de uma determinação que está nele desde o início e é a finalidade a ser alcançada, o que define o próprio con-ceito de espírito. Se o organismo produz a si mesmo, o que ele produz já está contido no que ele era em si. Igualmente, o que o espírito faz de si mesmo é o que ele era em si. Essa ideia é muito importante para com-preender o conceito de desenvolvimento proposto por Hegel: algo só pode se desen-volver porque desde o início ele tem em si, como potencialidade, as transformações posteriores. É um tipo de explicação pró-xima da que Aristóteles dá para a questão geral da mudança. Ora, segundo Hegel, esse desenvolvimento vale para os seres orgâni-cos em geral e também para o espírito, isto é, para a história e para a humanidade.

Desenvolvimento e liberdadeHegel não tem dúvida de que o que ca-

racteriza o espírito é a liberdade e a cons-ciência da liberdade. A finalidade a ser alcançada já está inscrita no espírito des-de o início. Como o espírito abarca a his-tória e a humanidade, pode-se dizer que a finalidade da história é alcançar a época histórica em que todos os seres humanos, sem exceção, seriam livres e conscientes de sua liberdade. Assim, a história universal seria a marcha em etapas, por graus, do

Marquês de CondorcetNascido em 1743,

Jean-Antoine-Nicolas

de Caritat, Marquês de

Condorcet, foi um in-

telectual muito atuan-

te entre os iluministas

franceses do século

XVIII. Defensor das

Luzes, ou Esclarecimen-

to, como também é

denominado esse mo-

vimento, Condorcet era

muito próximo de Jean

Le Rond D’Alembert (1713-1783), o qual, juntamen-

te com Denis Diderot (1713-1784), organizou a En-

ciclopédia (1750-1765). Condorcet exerceu ativida-

des políticas e administrativas no reinado de Luís

XVI, quando este monarca nomeou Anne R. J. Tur-

got (1727-1781), um importante progressista, para

dirigir os negócios públicos. Com a Revolução de

1789 e, em seguida, com a tomada do poder pelos

jacobinos, Condorcet foi perseguido e terminou

capturado, sendo executado em 1794.

Jean

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desenvolvimento desse princípio, dessa finalidade fundamental que é a liberdade e a consciência da liberdade. A realização da liberdade é o objetivo final, por meio do qual cada mudança histórica recebe seu sentido e sua importância.

Apesar da aproximação entre natureza orgânica e cultura, você pode notar que há também diferenças importantes que ex-plicariam o caráter conflituoso e contra-ditório do desenvolvimento histórico dos seres humanos. Sob condições normais, nada que seja próprio ao organismo o des-via do desenvolvimento que vai do germe ao último grau de crescimento. Logo, se depender apenas dele, o desenvolvimento estará assegurado. Do lado do espírito e da cultura, no entanto, o desenvolvimen-to não ocorre sem a consciência e a vonta-de, capacidades que não existem nos or-ganismos biológicos, afora o ser humano. Pode ocorrer de o ser humano não querer

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se desenvolver, ele pode mesmo se alie-nar e pode se satisfazer com algo que não corresponde à sua finalidade, a liberdade.

Para usar um exemplo sempre citado por Hegel, houve povos na história que não conheceram a ideia de que todos os indivíduos são livres, mas apenas um de-les (como os povos asiáticos antigos que aceitavam um déspota como governante) ou apenas alguns (exemplos disso são os gregos antigos, que admitiam a escravi-dão, assim como no Brasil durante qua-se todo o período imperial). Por isso, o desenvolvimento do espírito é marcado

por sua luta contra si mesmo, e, como diz Hegel, pela contradição interna a tudo aquilo que ainda é imperfeito, vale dizer, tudo aquilo que não realizou inteiramen-te a liberdade.

Dessa maneira, se Hegel conclui que o desenvolvimento é um progresso que vai do imperfeito para o mais perfeito, esse progresso só se dá porque há contradição e conflito do espírito consigo mesmo. A contradição é a forma por meio da qual se realiza o progresso. Sempre que o espíri-to não é ainda livre, sempre que a história não apresenta a liberdade de todos os ho-

O antagonismo gerando progresso: Kant e MarxAnálise de texto e desenvolvimento individual por escrito

Hegel não foi o primeiro filósofo a ver no conflito um aspecto determinante do progres-so histórico. Antes dele, o filósofo alemão Im-manuel Kant (1724-1804) já havia proposto a ideia de que, se o ser humano deve progredir continuamente e desenvolver todas as faculda-des de que foi dotado por natureza, esse pro-gresso só pode se efetuar por um antagonismo entre os indivíduos. Depois de Kant e Hegel, a ideia do antagonismo como gerador de pro-gresso foi desenvolvida também por Karl Marx (1818-1883).

• Faça uma pequena análise dos textos de Kant e Marx reproduzidos na sequência, tendo em vista principalmente o que afirmam a res-peito da noção de antagonismo. Em seguida, exponha em uma redação de duas páginas os pontos mais importantes para cada um desses autores, destacando suas diferenças. Eis o tre-cho de Kant:

“O meio de que a natureza se serve para rea-lizar o desenvolvimento de todas as suas disposi-ções é o antagonismo delas na sociedade, na me-dida em que ela se torna, ao fim, causa de uma or-

dem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em so-ciedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Esta disposição é evidente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para associar­se por-que se sente mais como homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições natu-rais. Mas ele tem também uma forte tendência a isolar-se, porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer con-duzir tudo simplesmente em seu proveito, esperan-do oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta oposição é a que, des-pertando todas as forças do homem, o leva a supe-rar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção, pela ânsia de dominação ou pela co-biça, a proporcionar-se uma posição entre com-panheiros que ele não atura mas dos quais não pode prescindir. Dão­se então os primeiros verda-deiros passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem [...]. Agradeçamos, pois, à natureza a intratabili-dade, a vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de

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dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem de-senvolvimento num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é me-lhor para a espécie: ela quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e o conten-tamento ocioso e lance­se ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que conduzem a isto, as fontes da insociabilidade e da oposição geral, de que advêm tantos males, mas que também impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior desenvolvimento das dispo-sições naturais, revelam também a disposição de um criador sábio.” (Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução: Ricardo Terra e Rodrigo Naves. São Pau-lo: Martins Fontes, 2004, pp. 8-9)

Agora, o trecho de Marx: “Assim como não se julga o que um indivíduo é

a partir do que ele pensa a respeito de si mesmo, tampouco se pode julgar uma época revolucioná-ria como essa a partir de sua consciência, mas é preciso, ao contrário, explicá­la a partir das con-tradições da vida material, do conflito presente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma conformação social nunca desa-

parece antes que todas as forças produtivas este-jam desenvolvidas, para as quais ela é mais do que suficiente, e relações de produção mais novas e elevadas nunca surgem em seu lugar antes que as condições materiais de existência destas tenham sido incubadas por si próprias no seio da velha so-ciedade. É por isso que a humanidade só se lança a tarefas que possa resolver, pois, a um exame mais atento, sempre se descobrirá que a tarefa só vem à tona ali onde as condições materiais de sua re-solução já se encontrem presentes ou, pelo menos, sejam apreensíveis no processo de seu devir. Em linhas gerais, os modos de produção asiáticos, an-tigos, feudais ou burgueses modernos podem ser descritos como épocas progressivas da conforma-ção social econômica. As relações de produção bur-guesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido do antagonismo individual, mas de um antagonismo alimentado pelas condições de vida dos indivíduos. Entretanto, as forças produtivas desenvolvidas no seio da sociedade burguesa criam também as con-dições materiais para a solução desse antagonis-mo. Portanto, é com essa conformação social que se encerra a pré­história da sociedade humana.” (Karl Marx, Para a crítica da economia política. Pre-fácio. Tradução nossa. Edição de referência: Zur Kritik der politischen Ökonomie, in: Marx & Engels. Werke. Berlim: Dietz, 1971, vol. 13, 7ª ed., p. 9)

mens, há contradição com aquilo que ele é segundo sua finalidade, o seu “germe”, e as tentativas de resolver essa contradição impulsionam o progresso.

Assim, o conceito de desenvolvimento de Hegel apresenta as mudanças históricas como progresso para o mais perfeito, mas, ao contrário do princípio de perfectibilida-de, esse progresso tem uma finalidade, um estágio último de realização da liberdade. Além disso, o desenvolvimento histórico se realiza por meio de conflitos e contradi-ções, e não por um impulso humano para se aperfeiçoar indefinidamente.

Hegel entende que o desenvolvimento histórico tem começo, meio e fim. O fim é a realização do que estava contido no co-meço, só que de maneira não desenvolvida. Assim, se o princípio de perfectibilidade explica e une as mudanças pela ideia de aperfeiçoamento, formando uma série con-tínua, progressiva e indefinida de eventos, o princípio hegeliano de desenvolvimento explica as mudanças por meio de rupturas (conflitos e contradições) e as une como etapas de realização da finalidade, forman-do uma série de desenvolvimento conflitu-osamente contínuo, progressivo e definido.

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Retrato de Ginevra Benci

Retrato de Marilyn Monroe

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Observe o retrato (1) no quadro abaixo. Ele foi pintado por Leonardo da Vinci no final do séc. XV (pouco antes de o Brasil ser descoberto, portanto) sobre um pedaço de madeira. É um quadro pequeno, de pouco mais de 40 cm de altura. É fácil perceber que Leonardo da Vinci está tentando dar destaque à beleza de Ginevra Benci, a mu-lher que lhe serviu de modelo. Note que, embora ainda seja dia, a cena está marcada pela sombra de uma árvore cheia de espi-nhos, logo atrás da moça. Isso faz com que grande parte da pintura tenha tons bem escuros – a árvore, o chão e algumas partes do vestido. A luz só está batendo suave-mente sobre o rosto e o peito da modelo.

As revoluções científicas

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Isso dá destaque à brancura e à suavidade de sua pele. Ginevra está usando uma es-pécie de blusa branca, por baixo do vesti-do, e quase não se vê a separação entre o tecido e a pele. Há também um contraste entre a dureza dos espinhos da árvore e a suavidade dos cachinhos loiros caindo pelo lado do rosto. Essas duas ideias – brancu-ra e suavidade  – são também realçadas pela echarpe marrom. Por contraste, a cor da echarpe realça a brancura da pele. Mas note como Leonardo consegue transmitir também a ideia de leveza. Parece que qual-quer brisa, por mais suave que fosse, seria capaz de fazer a echarpe se mover sobre o ombro da moça.

Observe agora o outro retrato (2). Trata-se da atriz norte-americana Ma-rilyn Monroe (1926-1962), retratada por Andy War hol (1928-1987) em 1964. Marilyn tinha morrido dois anos antes e era considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo. Repare que Warhol transmite uma ideia de beleza, como Leo-nardo, mas de outra forma. Em primeiro lugar, Marilyn não está num ambiente determinado. Há apenas uma massa de cor laranja emoldurando o seu rosto. Não sabemos se é noite ou se é dia, se ela está em casa ou no trabalho, se está posando para uma fotografia ou representando. Cores berrantes dão destaque à boca, aos cabelos e à expressão sensual dos olhos. Ela é, sem dúvida, um modelo de beleza. Só que a Marilyn de Andy Warhol não é uma pessoa – é uma figura, é uma ilustra-ção. Parece ter saído de uma história em quadrinhos e só existir no universo de fantasia de seus admiradores. É apresen-tada como um objeto de consumo, como uma garrafa de refrigerante ou uma lata de sopa (objetos também retratados por Warhol, em obras que executou com a mesma técnica da serigrafia).

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O gosto é relativo ao contextoQual das duas mulheres você achou

mais bonita? De qual das duas pinturas você gostou mais? A beleza de Marilyn Monroe está, sem dúvida, mais próxima de nossos padrões do que a de Ginevra Benci. A brancura da pele, por exemplo, já não é uma exigência de beleza. Pelo con-trário. Homens e mulheres passam horas debaixo do sol para ficar com a pele bron-zeada. É bem provável que, num concur-so de beleza, os lábios carnudos e bem pintados de Marilyn levassem vantagem, hoje, sobre os lábios suaves de Ginevra. Mas o contrário também não deixa de ser verdade. Se Marilyn aparecesse com os lábios, cabelos e olhos pintados no meio de uma praça de Florença no final do sé-culo  XV, provavelmente faria as pessoas fugirem de medo. Se fizesse um olhar sensual, como esse da pintura de Warhol, seria muito mal vista pelos que ali esti-vessem, para dizer o mínimo. O que vale para as modelos vale também para os pin-tores. Andy Warhol provavelmente não conseguiria emprego nem como pintor de paredes na Florença do Renascimento, e alguém que pintasse como Leonardo, hoje, seria visto como um artista antiqua-do e sem imaginação.

Você acha que o nosso gosto melho-rou ou piorou ao longo dos séculos? As mulheres que hoje consideramos bonitas são mais bonitas do que as que eram con-sideradas bonitas antigamente? E a pin-tura? Foi piorando ao longo dos tempos? Qualquer que seja a sua resposta a essas questões, é interessante que você medite a respeito da seguinte resposta que alguém poderia dar:

“Cada época elabora seus pró-prios padrões de gosto. A pintura de Leonardo da Vinci não é nem mais bonita, nem mais feia do que a pin-tura de Andy Warhol. Cada uma se-gue um padrão diferente de beleza e só pode ser julgada por meio desses

padrões. O mesmo vale para todos os tipos de arte e também para os padrões de beleza feminina ou mas-culina. Os padrões variam de época para época, de cultura para cultura. Quando seguem um mesmo padrão, podemos comparar as obras de arte entre si. Mas se os padrões segui-dos são completamente diferentes, a comparação fica impossível. Os padrões estéticos foram mudando ao longo do tempo, mas não foram ‘melhorando’, nem ‘piorando’. Uns vão sendo abandonados, enquanto outros vão se tornando aceitos, e isso é tudo.”

Você pode concordar ou não com o ra-ciocínio acima, mas há de convir que ele expressa uma opinião razoável, partilha-da por muitas pessoas. É mais ou menos isso, salvo engano, que se quer dizer com a frase: “gosto não se discute”. O que fi-zemos foi apenas refinar um pouco essa afirmação. Dissemos que apenas pessoas que compartilham o mesmo padrão esté-tico podem discutir suas preferências. Se elas discordam até mesmo quanto àquilo que é feio ou que é bonito, dificilmente chegarão a um acordo acerca do valor ar-tístico de uma obra de arte.

Como julgar ciências diferentes?Imagine agora que alguém lhe diga o

seguinte:

“Ciência não se discute. Cada um tem a sua ciência. Ptolomeu tinha a dele, Copérnico tinha outra, e Ein-stein tinha outra, mais diferente ainda. Nenhuma é melhor do que a outra. São apenas diferentes. Não houve ‘progresso’ na ciência desde a Antiguidade até hoje. Houve ape-nas mudança de padrões. Aceitou--se um padrão na Antiguidade, aceitou-se outro padrão na Idade Moderna, e agora adotamos um terceiro padrão para julgar aquilo

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que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. A rigor, portanto, verdade e falsidade não existem. Exis-tem apenas diferentes modos de julgar se uma determinada afirmação é verdadeira ou é fal-sa, e nenhum desses modos é melhor ou superior aos outros.”

E agora? Você acha que esta opinião é tão razoável quanto a que examinamos há pouco, sobre o gosto? Será que as coisas, na ci-ência, se passam mais ou menos da mesma forma que na arte? Ou será que os padrões daquilo que é verdadeiro ou falso são universais e válidos para toda e qualquer época? Ao contrário do que acontece no caso dos valores estéticos, a maioria das pessoas tende a pensar que, quando o assunto é ciência, os padrões são absolutos. Ouvimos coisas do tipo: “Ptolomeu achava que a Terra estava pa-rada no centro do universo, e que o Sol se movia ao redor dela. Copérnico afirmava o oposto: a Terra gira ao redor do Sol, e não o contrário. Ptolomeu certamente acha-va que estava correto, mas estava errado. Numa discussão com um cientista moder-no, ele certamente levaria a pior”.

Será mesmo? Um filósofo estaduni-dense chamado Thomas Kuhn (1922-1996) diria que não. Em 1962, ele publicou um livro chamado A estrutura das revolu-ções científicas, que procurava mostrar que a história da ciência não é tão diferente assim da história da arte, e que a noção de progresso científico, na medida em que é sustentável, tem que ser submetida a uma profunda revisão. Um dos casos que ele analisou é exatamente esse que acabamos de citar: o da astronomia copernicana em oposição à astronomia ptolomaica.

Todos os dias vemos o Sol nascer num determinado ponto do horizonte, traçar uma curva no céu ao longo do dia e se pôr no outro lado daquele em que nasceu. O que vemos, portanto, é o Sol

Kuhn

Thomas Kuhn (1922-

1996) nasceu em Cincin-

nati, EUA. Lecionou na

Universidade de Princeton

e no MIT (Massachusetts

Institute of Technology). É

reconhecido como um dos

precursores da teoria do

conhecimento e da episte-

mologia contemporâneas.

Sua obra modificou signifi-

cativamente o modo como concebemos a

produção e os rumos da ciência.

Obras publicadas em língua portuguesa: 

A estrutura das revoluções científicas. Tradu-

ção: B. V. Boeira e N. Boeira. São Paulo: Pers-

pectiva, 2006.

A revolução copernicana. Lisboa: Edições

70, 1990.

O caminho desde a estrutura. Tradução: C.

Mortari. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

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girando em torno da Terra, e não a Ter-ra girando em torno do Sol. Além disso, a Terra parece estar realmente parada. Em seu livro Almagesto, Ptolomeu (90-168) propõe que façamos um teste. Se você não acredita que a Terra esteja pa-rada, ele dizia, basta ir até uma muralha, ficar de frente para ela e dar um pulo. Se a Terra estiver se movendo a muralha deve vir de encontro ao nosso nariz. Se não vier, é porque está parada. Como re-sistir a um argumento como esse?

Na verdade, a teoria de Ptolomeu en-contrava algumas dificuldades  – algumas “anomalias” de que não conseguia dar conta. A principal delas dizia respeito ao movimento dos planetas. Se observarmos o céu todas as noites a uma determinada hora (digamos, à meia-noite) e anotarmos a posição em que está o planeta Marte, ou o planeta Júpiter, ao final de um ano nós teremos uma surpresa. Ao contrário do Sol e das estrelas, que têm um movimento ra-

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zoavelmente simples, os planetas apresen-tam um movimento mais complexo. Vão mudando de posição a cada dia. Depois de muita observação, os cientistas da Anti-guidade até sabiam onde cada planeta iria aparecer. O caminho descrito por eles no céu não era linear, como o das estrelas, mas se repetia de tempos em tempos. Mas eles definitivamente não pareciam estar apenas “girando em torno da Terra”, como o Sol.

O que fazer diante dessa anomalia? Pto-lomeu enfrentou o problema. Sem questio-nar sua ideia mais básica (ou seja, de que a Terra está parada no centro do universo, e os outros astros é que giram em torno dela), ele deu um jeito de explicar o mo-vimento errante dos planetas. E ele o fez supondo que as órbitas dos planetas não fossem simplesmente circulares, mas con-tivessem uma série de círculos menores.

Além de girarem em ciclos em volta da Terra, eles girariam também em epiciclos – ciclos menores dentro do ciclo maior. Só que um único epiciclo não resolvia o problema. Era preciso postular vários epiciclos, cada um com um tamanho e uma velocidade di-ferentes, até se aproximar mais ou menos daquilo que era observado no céu.

Copérnico propôs inverter completa-mente a ordem das coisas. Ao invés de

considerar que a Terra está parada, com o Sol e os planetas girando ao redor dela, ele propôs o modelo com o qual hoje estamos acostumados: a Terra gira ao redor de si mesma ao longo de um dia (movimento de rotação), e ao redor do Sol ao longo de um ano (movimento de translação). No começo, enfrentou fortes resistências, as-sim como Galileu, que o apoiou e foi criti-cado por isso. Tempos depois de Copérni-co ter formulado suas teorias, porém, este passou a ser o sistema aceito. Hoje, nin-guém mais diria que a Terra está parada no centro do universo, e que o Sol é que gira em torno dela.

Progredimos? Segundo Kuhn, antes de responder a isso, é preciso olhar de perto o que realmente aconteceu. Você pode achar que o sistema de Ptolomeu era muito com-plicado, por causa dos epiciclos. A verdade, porém, é que de início o sistema de Copérni-co era ainda mais complicado. Copérnico não abandonou, por exemplo, a ideia de que a órbita dos planetas tivesse epiciclos. Pelo contrário. Seu sistema pressupunha a exis-tência de mais epiciclos que o sistema de Ptolomeu. Para piorar as coisas, o sistema anterior permitia calcular a posição de um planeta no céu com muito maior precisão.

Neste ponto, você deve estar pergun-tando: “E por que o sistema de Copérni-co foi aceito?”. Bem, a verdade é que ele não foi aceito de imediato. Durante muito tempo, as pessoas continuaram a utilizar o sistema grego. A simplicidade nas contas e um argumento como o da muralha pare-ciam razões decisivas em favor do sistema antigo, apesar de todas as deficiências que ele pudesse ter. Ruim com Ptolomeu, pior com Copérnico – foi assim que as pessoas pensaram por muito tempo.

A situação só começou a mudar quando outro cientista, chamado Johannes Kepler (1571-1630), propôs uma alteração fun-damental no sistema de Copérnico. Kepler percebeu que, se as órbitas dos planetas fossem elípticas, e não circulares, nós po-deríamos adotar o sistema de Copérnico

Johannes Kepler (1571-1630)

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sem ter que pressupor nenhum epiciclo. Isso foi decisivo. Sem os epiciclos, o siste-ma ficava mais simples. Os cálculos ficam imensamente mais fáceis. Além disso, com os trabalhos de Galileu e a aceitação do princípio da inércia, o argumento da mu-ralha pôde ser refutado.

Uma trajetória de percalçosO que o filósofo da ciência Thomas

Kuhn conclui a partir de casos como esse? Basicamente, ele afirma que a história da ciência realiza uma trajetória muito dife-rente daquela que costumamos imaginar. Segundo Kuhn, ela não é um empreen-dimento linear, em que o conhecimento vai se acumulando aos poucos e os erros vão sendo afastados. A história da ciência, segundo Kuhn, envolve dois tipos de mo-mentos muito distintos.

O primeiro momento pode ser cha-mado de “ciência normal”. Durante mil e quinhentos anos, os astrônomos segui-ram o modelo proposto por Ptolomeu. Aceitar esse modelo não quer dizer con-cordar com tudo o que foi dito por Ptolo-meu, muito menos achar que tudo já foi

dito por ele. Se fosse assim, não haveria necessidade nenhuma do trabalho dos astrônomos.

Aceitavam-se determinados postula-dos básicos do sistema ptolomaico, por exemplo: “A Terra está parada no centro do universo”, e determinados procedimentos adotados por Ptolomeu, tais como a pos-tulação de epiciclos. Mas havia discordân-cia – e muita – a respeito de detalhes.

Havia inúmeros problemas para os quais os cientistas ptolomaicos não ti-nham respostas, e todos eles procuravam resolver esses problemas da melhor for-ma possível.

O mesmo acontece com o sistema co-pernicano. Quando as órbitas elípticas de Kepler permitiram dispensar os epici-clos, ainda restavam muitos problemas a resolver. Qual a distância entre a Terra e o Sol? A que velocidade a Terra está gi-rando? Se a Terra gira, por que não so-mos atirados para o espaço? E assim por diante. Todos esses problemas eram re-solvidos adotando-se o novo modelo de investigação estabelecido por Copérnico, Kepler e Galileu.

A explicação de Ptolomeu para o movimento dos planetasDebate em sala de aula e elaboração de diagrama

Imagine uma roda gigante com uma úni-ca cadeira. Olhando de fora, você verá essa cadeira descrevendo um círculo, e voltando sempre ao mesmo lugar. Imagine, porém, que no lugar dessa cadeira nós pusésse-mos uma outra roda, menor que a primei-ra, e que essa outra roda também só tives-se uma cadeira. Imagine que as luzes do parque se apaguem, e que só essa cadeira fique iluminada. O que você acha que verá? Bem, isso depende muito da velocidade em que essas rodas estiverem girando, e do ta-manho de cada uma delas. Em condições normais, você verá uma série de “loopings”.

No entanto, se as rodas estiverem gi-rando com velocidades muito diferentes, outros desenhos poderão surgir. Supo-nha, por exemplo, que a roda menor só complete uma volta depois que a roda grande completar duas. O que acontece?

• Desenhe no caderno o movimento que será visto. Desenhe em seguida o mo-vimento caso a relação seja de uma volta da roda menor para cada três voltas da maior. Compare seus desenhos com o dos colegas e discuta-os com o seu professor de matemática ou de física. Eles concor-dam com sua representação gráfica?

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Em épocas de “ciência normal”, se-gundo Kuhn, um determinado paradigma (modelo) é aceito e trabalhado no sentido de fazê-lo ficar cada vez mais eficiente. Há progresso, e muito. As pessoas acei-tam as mesmas verdades básicas, e por isso compartilham os mesmos critérios para decidir o que é um avanço e o que não é. É mais ou menos isso o que acon-tece na arte. Cada período tem seus pró-prios parâmetros de julgamento. Aceitos os parâmetros de um Leonardo da Vinci, podemos julgar se os resultados obtidos por um certo pintor são satisfatórios ou não. Mas não podemos julgar uma obra de Leonardo utilizando o paradigma de beleza (ou de inventividade) de um Andy Warhol, e vice-versa.

Em determinadas épocas, os paradig-mas aceitos podem enfrentar uma série de problemas. Na ciência, esses problemas envolvem quase sempre (mas nunca ex-clusivamente) a presença de um número excessivamente grande de anomalias – de casos que a ciência não consegue resolver satisfatoriamente. Isso pode determinar o surgimento de uma crise. Algumas pessoas começam a propor teorias alternativas  – novos paradigmas, como o que foi proposto por Copérnico. Isso quer dizer que elas têm todas as respostas? De jeito nenhum. Ja-mais surge alguém que tenha todas as res-postas. Mas outras pessoas, como Kepler, podem ver nessas propostas revolucioná-rias um bom começo, introduzindo modifi-cações que tornam aquela nova maneira de ver as coisas cada vez mais sedutora.

É por isso que Kuhn chama seu prin-cipal livro de A estrutura das revoluções científicas (1962). Para ele, há épocas em que ocorrem transformações radicais na ciência  – o abandono completo de uma maneira de pensar e de ver o mundo, e sua substituição por outra. Esse processo de mudança, segundo Kuhn, não é cumulati-vo, nem gradual.

Há uma completa reviravolta, uma mudança tão completa que não é pos-

Até o século XV, era comum a crença de que

o mundo terminava em um abismo e os

mares, em terríveis quedas d’água. Atribui-se

a Fernão Magalhães (1480-1521) a primeira

circunavegação do globo terrestre, no início do

século XVI.

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sível nem mesmo falar em “progresso”. Mudam os critérios daquilo que é aceitá-vel ou não, daquilo que é certo ou errado. Ninguém fez viagens interplanetárias para aceitar que a Terra gira em torno de si mesma. As pessoas passaram a ver o mundo dessa maneira porque era mais simples e mais conveniente olhar para o mundo assim. No fundo, segundo Kuhn, ocorre um processo de “conversão” da comunidade científica a um novo para-digma, a uma nova visão de mundo. Os cientistas começam a fazer “ciência nor-mal” novamente, só que agora obedecen-do a outros critérios, adotando um novo paradigma. No interior desse novo pa-radigma, o progresso é possível. Mais e mais problemas serão solucionados, uma exatidão cada vez maior será obtida, e as-sim por diante. Mas, na passagem de um paradigma para outro, ao invés de falar-mos em progresso, será mais prudente e mais exato falarmos apenas em mudan-ça. Isso, claro, se adotarmos o modelo de explicação de Kuhn.

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princípio e temporalidade

A diferença entre fundamento e início .................... 309

Platão e o tempo ... 317

O tempo em Agostinho ................321

Elogio de Kant a Platão .................. 329

Regularidade da experiência ............ 333

A noção de progresso científico................. 336

unidade 11

N ão há dúvida: você se encontra no começo de uma das doze Unidades que compõem

este livro. Outra coisa de que você também pode ter certeza é que esse livro possui princípios, dentre os quais figura, por exemplo, o de que a educação é um direito de todos, e que o ensino da filosofia deve contribuir para sua boa realização. Qual seria a diferença entre estas duas noções? Uma primeira resposta está em dizer que “começo” remete a uma sequência que transcorre no tempo (o começo, o meio, o fim). Já “princípio”, por sua vez, conduz a ideias como “norma” ou “fundamento”, ou à ideia de alguma coisa da qual se seguem consequências.

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Gustav Klimt (1862-1918), As três idades da mulher (óleo sb/ tela, 1905).

Nessa obra, o artista representou a passagem do tempo na figura feminina

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A diferença entre fundamento e início

Quando dizemos: “Maria é uma pessoa de princípios” ou “João segue princípios muito rígidos”, queremos dizer, com isso, que eles agem de determinada maneira, por causa dos princípios com base nos quais orientam suas condutas. Muitas vezes, o termo “princípio” exprime o fundamento de uma atitude – como no famoso ditado: “o importante não é vencer, mas competir”. Apesar dessa diferença de fácil compreen-são, em muitos casos “começo” e “princí-pio” se confundem. Isso costuma ocorrer porque em alguns contextos os dois termos são sinônimos. Leia, abaixo, um texto no qual uma palavra vale pela outra:

“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.” (“O primeiro

livro de Moisés, chamado Gênesis”, 1, 1-4, in: A Bíblia Sagrada – Almeida Corrigida Fiel [ACF]. 1994, 1995, 2007. Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil)

Essas são as primeiras linhas do An-tigo Testamento da Bíblia. Para nossa investigação, interessa-nos aí a palavra “princípio”. Vejamos o sentido que essa palavra, que figura no primeiro verso (no texto citado, a primeira oração), as-sume no conjunto desse trecho. Releia-o e confirme: “princípio” não é utilizado aqui como sinônimo de “começo”? Tanto é assim, que podemos substituir um ter-mo por outro, sem alterar o sentido da frase. Experimente: “No começo criou Deus o céu e a terra”. O termo “princí-pio”, no primeiro verso de “Gênesis”, remete à sequência do “antes” e do “de-pois”. Logo, remete à temporalidade.

O mesmo fenômeno você observa-rá no texto a seguir, que é um peque-no trecho de um dos clássicos de nossa

Flavio de Barros, “Canudos”. Essa imagem mostra o povoado dirigido por

Antonio Conselheiro após sua invasão pelas tropas da República.

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mobílias toscas, as canastras e os ora-tórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canu-dos.” (Euclides da Cunha, Os sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, p. 183. Atualizamos a grafia)

Não é difícil perceber que “isoladas a princípio” significa aqui “inicialmen-te isoladas”. Com efeito, “a princípio” é uma locução adverbial que indica o tem-po da ação – em boa gramática, uma lo-cução adverbial temporal. Euclides da Cunha relata que agrupamentos huma-nos vindos de todas essas aldeias e vi-las se mesclavam uns com os outros, até chegarem, juntos, a Canudos. Também aqui, como na passagem do “Gênesis,” que lemos há pouco, “princípio” vale como sinônimo de “começo” ou “início”.

Princípio como fundamentoEntretanto, como já advertimos, nem

sempre as coisas se passam assim. Há muitos contextos nos quais a noção de “princípio” se diferencia de um momen-to inscrito no curso do tempo. Nem sem-pre “princípio” é sinônimo de “início” ou “começo”. Para fornecer um exemplo, leiamos mais uma vez uma passagem da Bíblia, mas agora extraída de outro den-tre os livros que a compõem. Examine o passo abaixo, sempre tendo em mente nossa tarefa de entender a diferença en-tre “princípio”, de um lado, e “começo” ou “início”, de outro:

“Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram cria-dos; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente.” (“Hebreus”, 11, 3, in: A Bíblia Sagrada – Almeida Corrigida Fiel [ACF]. op. cit.)

Ora, dirá você: “Mas aqui nem mes-mo aparecem as palavras que estamos

literatura nacional. Trata-se de uma passagem de Os sertões (1902), na qual Euclides da Cunha (1866-1909) descre-ve a formação do povoado de Canudos, no nordeste da Bahia. Conforme relata neste trecho, Canudos foi o resultado da afluência de grupos de pessoas de diferentes proveniências, que possuí-am em comum o fato de que se encon-travam no sertão em busca da aldeia fundada por Antonio Conselheiro:

“Inhambupe, Tucano, Cumbe, Ita-pucurú, Bom Conselho, Natuba, Mas-sacará, Monte-Santo, Geremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; En-tre-Rios, Mundo Novo, Jacobina, Ita-bayana, e outros sítios remotos, for-neciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão, topavam gru-pos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as

Na língua portuguesa, a palavra “prin-

cípio” compõe duas locuções adverbiais

à primeira vista bastante parecidas, mas

com sentidos diferentes. Consultando um

dicionário ou gramática de nossa língua,

vemos que “a princípio” assinala um deter-

minado momento no início de um proces-

so ou de um intervalo de tempo (como na

frase: “A princípio, sentiu frio, depois vestiu

um casaco”). Já “em princípio” implica uma

consideração geral, abstraída deste ou da-

quele caso concreto: “Em princípio, prefiro

ler livros na língua original a traduzidos”.

A diferença entre as duas locuções adver-

biais corresponde grosso modo aos dois

conceitos com os quais estamos às voltas:

de um lado, a temporalidade; de outro, o

princípio, compreendido como fundamen-

to, norma ou razão de alguma coisa.

“A PRINCÍPIO” ≠ “EM PRINCÍPIO”

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investigando!”. E você tem razão. De fato aí não há ocorrência de nenhum dos termos que estamos discutindo – nem “princípio” nem “início” ou “começo”... Mas agora estamos procurando ideias ou noções que admitam ser identificadas em um discurso oral ou escrito, mesmo que os termos que geralmente são utili-zados para designá-las não apareçam.

Como saber se as noções ou ideias es-tão mesmo presentes, se as palavras que habitualmente funcionam como seus signos não estão aí para confirmar sua ocorrência? Não há outra saída, senão in-terpretar o texto. Somente sua interpre-tação possibilitará identificar, na mensa-gem que nos é exposta, se as noções que estamos buscando aparecem aí ou não. E não se preocupe, isso é mais fácil do que você pode imaginar. Quer ver? Na passa-gem acima, por exemplo, a ideia de “prin-cípio” está presente, embora a palavra que a designa não apareça. Vamos tirar a prova? Releia essas linhas e responda à seguinte questão: segundo a Bíblia, o que foi que criou os mundos?

O trecho de “Hebreus” responde que foi a palavra de Deus. A crer na Bíblia, nada havia antes da palavra divina.

Logo, aqui também há a noção de um “antes” e um “depois”. De forma que, além de apresentar a noção de princípio, o trecho de “Hebreus” também contém a noção de uma ordem de acontecimentos que se desenrolam no tempo. Eis, assim, confirmada a presença de nossas duas noções (princípio e temporalidade) no trecho citado, embora os termos que correspondem a elas não tenham sido utilizados.

Agora voltemos os olhos outra vez para o passo inicial do “Gênesis”:

“No princípio criou Deus o céu e a terra”

Discutimos essa oração e estabelece-mos que nela a palavra “princípio” possui o significado de “início” ou “começo”... Se, porém, você novamente empreender aqui o trabalho de intérprete, de identi-ficar o sentido de um discurso a partir do seu contexto e das ideias que nos são propostas em seu conjunto, certamente descobrirá a complexidade e a riqueza do texto. Fizemos isso com o trecho de “Hebreus” e, para nossa surpresa, iden-tificamos operando nele as noções de princípio e temporalidade desacompa-nhadas de seus termos habituais. Será que o mesmo não se verifica com o verso inicial do “Gênesis”?

De uma coisa você pode estar certo. Supondo que o início de “Gênesis” expõe a ideia de que Deus é a origem do univer-so, seu princípio, isso não é indicado pela ocorrência do termo “princípio”. Pois vimos que “no princípio” assinala aqui somente um instante na ordem temporal em que transcorreram os acontecimen-tos: antes de criar as outras coisas, Deus criou os céus e a terra. Assim, nessa sen-tença é inútil esperar da expressão “em princípio” a explicação bíblica sobre o princípio ou origem do universo.

Mas então o que mais pode nos infor-mar sobre isso? Releia uma última vez a sentença analisada aqui. Aquilo que as-sinala o princípio da criação é... o verbo

Euclides da Cunha (1866-1909) foi adepto

do positivismo e republicano convicto. Sua

obra Os sertões (1902) contém uma inter-

pretação da formação do povo brasileiro.

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“criar”. De fato, fôssemos reescrever para fins de análise a primeira sentença do “Gênesis”, poderíamos muito bem fazê--lo assim:

“No início criou Deus os céus e a terra”

Esta reescritura ou paráfrase (isto é, a reformulação das ideias de um discurso por meio de outras palavras) da primeira sentença do livro de “Gênesis” tem um intuito determinado. Através dela, su-blinhamos com toda clareza possível a presença das duas noções que aparecem aí, tornando ambas passíveis de imedia-ta identificação por parte do leitor. Tan-to a ideia de um início temporal, quanto a de um princípio criador, encontram--se agora bem evidentes. É interessante observar que a ação criadora não é evo-cada pela palavra “princípio”, mas pelo verbo da frase. É o verbo “criar” o que aproxima muito o conjunto do texto ini-cial do “Gênesis” da passagem tirada de “Hebreus”, que, como apontamos, esta-belece ter sido a palavra de Deus o que criou os mundos.

Compreensão e interpretaçãoA primeira lição a tirar daí é bem

trivial: compreender o sentido das pa-lavras em um texto é condição para en-tender as ideias que este texto expõe. Só que nem sempre isso é o suficiente. Embora seja fundamental compreender exatamente em que sentido as palavras estão sendo utilizadas em um texto, por vezes isso não resolve todos os proble-mas, mas apenas revela... como o texto é difícil. Pois uma coisa é resolver as di-ficuldades trazidas pelo uso das palavras (dificuldade terminológica), outra, su-perar as dificuldades conceituais impos-tas pela articulação entre as noções e as ideias de um determinado discurso (di-ficuldade interpretativa). No primeiro caso, um dicionário é de grande auxílio. No segundo, recorrer a ele não basta, é preciso interpretar o texto.

Tome nosso caso. Já sabemos, a esta altura, o que dizem as primeiras linhas do “Gênesis”. Mas isso não refresca mui-to a situação, pois, tudo somado, não é tão simples assim explicar, para si mes-

Ilustração do Livro de “Gênesis” (Bíblia Sagrada 1631, Robert Barker/John Bill: Londres. King James. Coleção particular). “E disse Deus: haja luz, e houve luz”. J. W. Goethe (1749-1832) irá retomar esse tema, modificando-o: “No início, era a ação”.

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Esta é uma região

da Via Láctea onde

a matéria dispersa

no espaço sideral

se condensa,

formando estrelas: o

nascimento de novos

sóis... quem sabe, de

novos mundos?

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mo ou para alguém, textos que envol-vem ideias filosóficas difíceis.

No caso que estamos examinando, como explicar que, antes mesmo de o mundo existir, Deus decidiu criá-lo? Você se sente capaz de explicar o que afirma o texto do “Gênesis”, conforme o qual a palavra divina, como princípio de toda criação, criou também o próprio tempo?

Análise como etapa prévia ao debateNossa intenção aqui, veja bem, não

é concordar ou não com a Bíblia. Não é decisivo para nossos propósitos abordar um assunto que opôs recentemente inte-lectuais leigos e cristãos, a polêmica em torno das doutrinas do criacionismo e do evolucionismo. Estamos ocupados com um plano prévio às polêmicas que um texto pode suscitar.

Queremos simplesmente estabelecer uma importante base para o debate das ideias, sem a qual nenhuma argumentação atingirá sua desejada consistência. Estamos fazendo uma simples análise de texto, in-correndo em exercícios de interpretação, a fim de entender termos e conceitos. E o que nos ensina a análise conjunta desses textos?

A leitura do trecho de “Gênesis”, es-pecialmente em conjunto com a citação de “Hebreus”, confirma haver um signi-ficado para o conceito de princípio dife-rente daquele de “começo” ou “início” de algo no tempo. Com efeito, diversas passagens da Bíblia dizem que a palavra divina é a “origem”, a “causa” do mundo. É isso o que torna explícito o passo de “Hebreus” que citamos há pouco:

“aquilo que se vê não foi feito do que é aparente”

Logo, aquilo de que foi feito o visível é invisível, aquilo que vemos tem por ori-gem o que não podemos ver. O resultado da discussão pode, desse modo, ser resu-mido pela diferenciação de duas ideias que estão articuladas na Bíblia: (1) antes mesmo de o mundo existir, Deus deci-diu criá-lo (o enunciado da razão de ser do mundo, ou seja, de seu princípio: a vontade divina); (2) a primeira coisa que fez foi criar os céus e a terra (ordem da temporalidade).

Como você pode ver, tanto o tex-to de “Gênesis” quanto a passagem de “Hebreus” descrevem a criação do mundo

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Como é evidente, as questões de interpre-

tação são muito frequentes e decisivas na tarefa

de tradução de textos. O caso que aqui examina-

mos, o início do livro do “Gênesis”, não é exceção.

Basta comparar algumas traduções diferen-

tes para constatarmos como o emprego de um

termo ou outro pode levar a interpretações por

vezes divergentes. Lembre-se ainda que, tor-

nando as coisas ainda mais complexas, a Bíblia

é um dos livros mais discutidos nos últimos dois

milênios – assim como as leituras que se fazem

dela, em geral sancionadas por uma autoridade

(o rabinato, a Igreja Católica Romana, as diversas

tradições do Protestantismo, o Islã etc.).

“Gênesis” é o título com que comumente nos

referimos ao primeiro dos cinco livros ditos “de

Moisés”, também conhecidos no seu conjunto

como “Torá” (em hebraico, “o Ensinamento ”; re-

ferido ainda como “a Lei”) ou “Pentateuco” (do

grego, “Os cinco livros”).

O texto do “Gênesis” foi escrito primeira-

mente em hebraico. O livro se abre com a ex-

pressão be rê’yshîyth, que tem uma denotação

mais acentuadamente temporal, mas também

admite a noção de “proeminência” (“No come-

ço...” / “Em primeiro lugar...”). Aliás, essa é jus-

tamente a expressão que dá nome ao primei-

ro livro de Moisés: assim se chama o livro do

“Gênesis” na tradição hebraica.

Entre os séculos II a.C. e I d.C., a comunidade

judaica estava espalhada por diversas regiões

do Mediterrâneo. Muitos judeus leigos não do-

minavam o idioma hebraico. Produziu-se então

uma cuidadosa tradução da Torá para o idioma

grego. Legendariamente, essa tradução teria

sido empreendida por setenta (ou 72) sábios do

mundo helenístico, e é por isso conhecida como

“Tradução dos Setenta” ou “Septuagésima ”.

Nela, a tradução do “Gênesis” inicia-se com a

expressão en arkhê. A palavra grega arkhé (de

pronúncia aproximada “arqué”) comporta, efe-

tivamente, os dois sentidos de princípio discu-

tidos ao longo dessa Unidade: um temporal e

outro causal. (É dessa palavra grega que deri-

vam termos como “arcaico” e “arqueologia” – a

ciência que estuda indícios materiais de civiliza-

ções antigas.) A Tradução dos Setenta foi tam-

bém muito utilizada entre os cristãos.

Entre o fim da Antiguidade e a Idade Média,

na Europa cristã, a versão mais difundida do An-

tigo Testamento foi a tradução para o latim re-

alizada por Sofrônio Eusébio Jerônimo (347-420

d.C.), depois conhecido pelos católicos como

São Jerônimo. Essa versão, de enorme impor-

tância histórica, é chamada “Vulgata latina” ou

simplesmente “Vulgata” (que significa “comum”,

“popular”, “disseminado”). Na Vulgata, o livro

do “Gênesis” começa com a expressão latina

in principio, muito próxima à portuguesa e que

comporta no mínimo dois sentidos diversos,

seja o temporal, seja o causal.

Examinemos por fim a locução em duas

outras traduções importantíssimas: a alemã de

Martinho Lutero (1483-1546), o iniciador da Re-

forma Protestante; e a inglesa, encomendada a

um grupo de religiosos e eruditos no século XVII

pelo rei da Inglaterra e que por isso costuma ser

referida pelo seu nome (“King James”):

• Lutero: Am Anfang (“No começo...”)

• King James: In the beginning ... (“No começo...”)

Vemos que, nessas duas versões, o sentido

de causa, origem, não é nem mesmo sugerido,

como ocorre na Vulgata ou na tradução portu-

guesa de João Ferreira de Almeida citada neste

módulo. Você encontra uma discussão mais

geral sobre esse tipo de problema, levanta-

do pela interpretação dos textos, na Unidade

Espírito e letra deste livro.

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OS NOMES QUE SE DÃO AO PRINCÍPIO

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pelo Deus judaico-cristão. Os dois textos dizem a razão dessa criação: segundo a Bíblia, foi porque Deus quis, que o mun-do passou a existir. Foi através de suas palavras que o mundo ganhou existên-cia. Conforme a análise global dos dois passos citados acima, portanto, podemos concluir que a Bíblia afirma que a razão de ser do mundo reside na palavra divi-na. Daí ela ser considerada, na concepção judaico-cristã, princípio do mundo.

Já o texto sobre Canudos extraído de Os sertões não contém nada de seme-lhante a esse significado de “princípio”. Euclides da Cunha afirma apenas que agrupamentos de indivíduos, que inicial-mente estavam isolados, se encontravam a caminho de Canudos, e terminavam chegando lá juntos. Não há nenhuma explicação sobre a “causa” ou “princí-pio” que levou à formação de Canudos, diferentemente do que vimos acontecer na Bíblia, que sustenta que a vontade e a

palavra divinas são a origem, o princípio do mundo.

Vamos sistematizar essas considera-ções?

1. Primeiro, vimos que a palavra “princípio” possui ao menos dois signi-ficados bem distintos:

a. “princípio” = “começo”, “início”.b. “ princípio” = “origem”, “fundamen-

to”, “causa”. 2. Segundo, que há um sentido ex-

plícito e outro implícito nos textos. Vejamos o trecho citado do “Gênesis”. Embora a palavra “princípio” apareça na primeira oração como sinônimo de “começo”, a continuação do passo e sua leitura em conjunto com a citação de “Hebreus” revela que a Bíblia atribui à palavra divina o estatuto de princípio do mundo, entendido como sua “origem”, sua “causa” ou “razão de ser”. O mes-mo texto de “Gênesis”, portanto, abriga

O princípio da explicação nos estudos de História

Desenvolvimento individual por escrito e debate em sala de aula

Realize em bibliotecas ou na internet pesquisa acerca da história de Antonio Conselheiro (1830-1897) e da comunida-de liderada por ele, Canudos (BA), que foi duramente atacada pelo exército brasilei-ro no episódio que se tornou conhecido como a “Guerra de Canudos” (1896-1897).

• Após enumerar os principais acon-tecimentos que cercam esse episódio, redija um texto de uma ou duas páginas relacionando as principais razões ou cau-sas que, segundo os historiadores, expli-cam a origem da comunidade liderada por Antonio Conselheiro. Observe que,

desse modo, você estará apresentando princípios explicativos para um fenôme-no histórico, o que é bem diferente de contentar-se em localizá-lo na ordem dos acontecimentos (cronologia). A explica-ção da origem de um fenômeno remete ao princípio de algo, que podemos dife-renciar do seu começo no tempo.

• Compare, em aula, as razões levanta-das em sua pesquisa para o surgimento de Canudos com as razões pesquisadas pelos seus colegas. Note que, embora os historiadores concordem com a datação da maior parte dos acontecimentos que cercam Canudos, eles costumam diver-gir bastante sobre as causas ou princí-pios que explicam sua existência.

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o significado de “princípio” = “começo” (sentido explícito) e de “princípio” = “origem” (sentido implícito). Esse se-gundo significado torna-se apreensível tanto pela referência à criação, que na-turalmente requer um princípio, quanto pela oração intermediária, em que se lê:

“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”

Embora aí não apareça a palavra “princípio”, percebe-se a presença do seu significado como “origem”, “causa” da luz: bastou que Deus dissesse “haja luz”, para que o mundo se iluminasse.

3. A terceira conclusão é mais geral e diz respeito aos textos, aos discursos, às palavras. Visto que as palavras abrigam mais de um significado, a compreensão de uma frase, de um texto ou de um dis-curso exige análise para que se esclare-çam os sentidos em que elas são empre-gadas. Nem sempre a análise conduz a uma resposta exata e definitiva, e isso por duas razões. Primeiro, porque as palavras nem sempre admitem ser tra-tadas como corpos a serem dissecados pelos leitores; uma análise de texto não é apenas uma anatomia da linguagem.

Em segundo lugar, há o fato de que quem realiza a análise de um discurso,

Uma paráfrase de ‘Gênesis’

Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito

• Procure reescrever o texto citado do “Gênesis” com as suas próprias pa-lavras. Você realizará, assim, um exer-cício de paráfrase de texto. Busque marcar bem, pela escolha dos termos, a diferença existente entre os dois sig-nificados da palavra “princípio”.

• Pesquise diferentes concepções sobre a criação do universo. Dicas: hinduísmo, Corão, Antiguidade greco-ro-mana etc. Produza um breve texto (entre um e três parágrafos) comentando se es-tas apresentam ou não o mesmo tipo de ambiguidade entre “princípio” e “início” que observamos no “Gênesis”.

buscando identificar o sentido das pa-lavras nele empregadas, sempre o faz de uma perspectiva particular, de um ponto de vista determinado. O mesmo texto pode evocar ideias diferentes para seus diferentes leitores, a depender da perspectiva adotada. Daí porque a aná-lise, por mais criteriosa que seja, sempre possui um viés, jamais é completamente neutra. A análise já traz consigo uma in-terpretação.

Isso também explica por que o senti-do que damos por meio das palavras às coisas que nos cercam pode ser revisto, questionado e atravessado por novas indagações. Sob esse aspecto, deter--se sobre as ideias e noções presentes nos discursos – políticos, éticos, esté-ticos e científicos – é uma maneira de se posicionar diante do senso comum, como também das ideias legadas pela tradição a que pertencemos.

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O tema do princípio e da origem, como indica

o passo examinado de Hebreus, articula-se

com a oposição entre realidade e aparência.

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Platão e o tempo

Você talvez já tenha ouvido falar da alegoria da caverna, de Platão[+]. É uma das narrativas mais conhecidas da filo-sofia, sempre evocada quando se quer abordar a relação entre o filósofo e os indivíduos que o cercam no dia a dia. Va-mos examinar esta famosa história, que é apresentada por Platão no Livro VII de uma de suas obras mais conhecidas, A república.

A alegoria da cavernaMuito resumidamente, o texto de Pla-

tão diz o seguinte: um grupo de indiví-duos encontra-se preso em uma caverna, todos com os rostos voltados para uma parede. Atrás deles há uma abertura da caverna, dando para a luz; mas os prisio-neiros não conseguem vê-la. Como não podem tirar os olhos da parede, veem apenas, projetadas nela, as sombras de pessoas e objetos que passam por trás deles. Esses prisioneiros sempre estive-ram nesta situação, de modo que creem que as sombras que veem projetadas na parede correspondem à realidade.

Um deles, porém, consegue se liber-tar e escapa da caverna. Quando des-cobre a luz do dia, mal consegue, num primeiro momento, abrir os olhos. Mas, aos poucos, vai acostumando sua visão e passa a contemplar tudo como realmen-te é. As árvores, a montanha e até a sua própria imagem, refletida na superfície límpida de um lago – os seres e os obje-tos até ali ignorados por ele, que sempre estivera recluso na caverna, assistindo a sombras que lhe apareciam como se fossem as próprias coisas. Finalmente, nosso personagem olha para o céu e, de vislumbre e com dificul dade, mira o sol, cuja luz tudo ilumina.

Sabendo agora como de fato é a reali-dade, que contempla diante de si, nosso personagem decide voltar à caverna, para

desfazer a ilusão em que vivem ainda seus companheiros. Ele então procura convencê-los de que aquilo que acreditam ser verdadeiro não passa de sombras e ilu-sões. Para sua surpresa, estes se recusam a ouvi-lo. Pois simplesmente não conse-guem admitir que o que acreditam ser real seja, de fato, ilusório. O desenlace da história é previsível: nosso personagem termina sendo escorraçado por seus anti-gos camaradas de cativeiro, que passam a vê-lo como um trapaceiro que só quer lu-dibriá-los quanto ao que é a verdade. É o que diz Sócrates a Glauco, os dois perso-nagens principais do diálogo criado por Platão, descrevendo o momento em que o “filósofo” volta à escuridão da caverna e mal consegue enxergar o que encontra diante de si:

“E se ele, a respeito da significação daquelas sombras, precisasse com-petir com os que continuavam como prisioneiros, no momento em que sua

Jan Pieterszoon Saenredam (1565-1607),

A caverna de Platão (1604). Essa alegoria

define a relação do filósofo com os outros

homens, ao ver de Platão: ele sabe que o que

os demais creem ser a verdade é ilusão.

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visão estivesse fraca e antes que seus olhos estivessem bem – e esse tempo de acomodação seria muito curto –, será que não seria motivo de riso? Não diriam dele que, tendo ido lá para cima, tinha voltado com os olhos lesa-dos e que não valia a pena nem mes-mo tentar ir lá? E a quem tentasse libertá-los e conduzi-los lá para cima, se de alguma forma pudessem segurá--lo com suas mãos e matá-lo, eles não o matariam?” (Platão, A república, Li-vro VII, 516e-517a. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 270)

Há inúmeros sentidos nessa famosa alegoria inventada por Platão. Um deles, talvez o mais óbvio, tem a ver com o par realidade e aparência, que discutimos em outra Unidade deste livro. Pois a alegoria da caverna é, em primeiro lugar, uma alegoria sobre a confusão entre o real e o aparente. O protagonista da história, o homem que escapa da caverna, desco-bre que o que acreditara até ali ser real era aparente. Tenta convencer disso seus companheiros, sem ter sucesso.

Aprendemos, pela continuação do tex-to, que o homem que saiu da caverna re-presenta o filósofo. Ou seja, a alegoria da caverna fala tanto da relação do filósofo

com o saber, quanto da relação do saber fi-losófico com a opinião comum, que anima as convicções da maior parte dos homens. Conforme a alegoria, é por ter descoberto a verdade e graças ao fato de que esta ver-dade se choca com o que pensa a maioria das pessoas, que o filósofo corre o risco de terminar sendo excluído da vida comum. Segundo Platão, a maior parte da huma-nidade se habituou a viver na ignorância da verdade e, por isso, se recusa a crer no que tem a lhe dizer o filósofo.

O temporal como domínio do erroComo observamos, porém, há outros

sentidos além desse, presentes na alego-ria da caverna e no contexto que a cer-ca. A imagem do sol que tudo ilumina é utilizada por Platão como uma metáfora do princípio que torna compreensível toda a realidade, além de torná-la exis-tente. Esse princípio, diz Sócrates, é a ideia do bem. Por isso, a alegoria da ca-verna também admite ser lida e discuti-da a partir da distinção entre princípio e temporalidade. Numa passagem da mesma obra, situada um pouco antes da apresentação da alegoria da caverna, Platão põe em destaque essa noção de princípio. Leia o trecho abaixo, no qual Sócrates dialoga com Glauco. O narrador é o próprio Sócrates:

O significado de “alegoria”

“Alegoria” é uma figura de lin-

guagem que apresenta uma coi-

sa para fornecer a ideia de outra.

Quem já viu ao vivo ou na televisão

um desfile de carnaval pode for-

mar uma ideia de como isso fun-

ciona: as “alegorias” das escolas

são figuras concretas, que expri-

mem ideias ou concepções gerais,

ligadas ao tema que é apresenta-

do no desfile por aquela escola de

samba. No caso que nos interessa

discutir aqui, Platão se serve de

uma alegoria ou mito para expli-

car como Sócrates, o personagem

principal de A república, compreen-

de o papel do filósofo e sua relação

com aqueles que o cercam.

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“– Sabes bem, disse eu, que quando não se voltam mais para os objetos em cujas cores a luz do dia se fixa, mas sim para as centelhas noturnas, os olhos ficam embaçados e parecem quase cegos, como se neles não hou-vesse acuidade de visão.

– É bem assim que acontece, disse [Glauco].

– Mas, creio eu, aquilo que o sol ilu-mina eles veem nitidamente, e parece que naqueles mesmos olhos há acuida-de de visão.

– Sem dúvida. – Pois bem! Pensa assim também a

respeito da alma. Quando ela se apoia no que a verdade e o ser iluminam, ela o concebe, conhece e parece ter inteli-gência. Quando, porém, se apoia em algo que se mistura com a escuridão, aquilo que vem a ser e perece, ela emi-te opiniões e a visão turva porque vai mudando suas opiniões numa e noutra direção, e então se assemelha a alguém que não tem inteligência.

– É isso mesmo.– Pois bem! Eis o que deves afir-

mar… É a ideia do bem que confere verdade ao que está sendo conhecido e capacidade ao que conhece. Deves pen-sá-la como causa da ciência e da verda-

de, na medida em que esta é conheci-da.” (Platão, A república, Livro VI, 508c-e. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 259-260)

Analisemos a passagem transcrita aci-ma. Você terá notado que Sócrates institui uma analogia entre a luz do sol e a ideia do bem. Assim como o sol ilumina tudo e nos possibilita ver as coisas com acuidade, do mesmo modo a ideia do bem “confere verdade ao que está sendo conhecido e ca-pacidade ao que conhece”. A alegoria da ca-verna, cuja apresentação se segue ao texto que acabamos de ler, é preparada por essa analogia. E essa analogia ressalta o fato de que, assim como o sol é o princípio da vi-sibilidade, assim também a ideia do bem é o princípio das coisas inteligíveis, isto é, de tudo o que podemos inteligir e conhecer.

Estamos diante de um momento no qual o Sócrates apresentado por Platão faz uma escolha significativa. Pois pense bem: nada nos obrigaria a articularmos a dimensão da temporalidade, assinalada pela expressão “o que vem a ser e pere-ce”, com a escuridão e a falta de conhe-cimento que é representada pelas trevas. Não é verdade que à luz do dia contem-plamos muitas coisas, especialmente

Sócrates debate em grupo no

qual se encontra Glauco, que

era um primo de Platão. Os

Diálogos platônicos estão cheios

de personagens de sua época que

praticavam a filosofia. (Rafael

[1483-1520], Escola de Atenas.

Afresco, 1510-11. Detalhe).

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organismos, virem a ser e perecerem? Vir a ser, transformar-se, perecer são processos orgânicos que transcorrem tanto no clarão da luz, quanto na escuri-dão. Por que, então, o Sócrates posto em cena por Platão associa o “vir a ser e o perecer”, dimensões da temporalidade, apenas à sombra e à escuridão?

Pense nisto: o que signi-fica afirmar, como aqui faz Sócrates, que “o que vem a ser e perece” mistura-se com a “escuridão”? A não ser que Sócrates associe a ausência de luz e a falta de clareza no

O tempo: obstáculo ao conhecimento da verdade?Análise de texto e desenvolvimento indivi-dual por escrito

Procuremos compreender melhor o que exatamente Sócrates contrapõe à luz e ao saber. Releia o texto reproduzi-do à página 319 e identifique os elemen-tos que Sócrates associa à “escuridão” e à “falta de clareza”. Note que encontra-remos a questão dessa Unidade, o par princípio e temporalidade, sob a forma de uma oposição entre esses conceitos.

De fato, a primeira coisa mencionada nessa direção são as “centelhas notur-nas”. Contemplá-las é quase não enxer-gar nada, posto que a luz está ausente. Mas, logo em seguida, ao passar para a analogia do “ver” com o “conhecer”, Só-crates afirma que, na ausência da luz (quando a alma se apoia “em algo que se mistura com a escuridão”), nossa visão se embaça e se turva. Como a visão é a metáfora do conhecimento, isso significa que, na falta de luz, nosso saber se torna instável, cambiante. Como diz o texto, va-mos mudando de opinião “numa e nou-tra direção”.

Juntamente com isso, o texto acres-centa outro elemento, que também é imediatamente associado à ausência de luz e à deficiência do conhecimento:

“aquilo que vem a ser e perece”…Ora, tudo aquilo que “vem a ser e pere-

ce” pertence à ordem temporal, situa-se sob o regime da temporalidade. Logo, podemos afirmar sem hesitação que, nessa passa-gem de A república, o Sócrates de Platão interpreta a temporalidade como fator que nos afasta do conhecimento da verdade.

• Em um texto de aproximadamente uma página, procure relacionar quais moti-vos poderiam ter levado Platão a associar o que transcorre no tempo com o erro. Lem-bre-se de que você pode apresentar razões que expliquem a posição de Sócrates sem, para fazê-lo, ter de concordar com essas ra-zões. Por isso, se entender oportuno, após apresentar aquelas que poderiam ser as razões que motivam Sócrates a dizer o que diz, redija também um parágrafo expondo seu próprio ponto de vista sobre o assun-to. Guie-se pela questão: o tempo é neces-sariamente um obstáculo para o conheci-mento, ou seria sua condição?

luz,sol

contemplação da ideia do

bem

inteligência, conhecimento

princípio do conhecimento

e do ser

sombras, escuridão

ignorância sobre a ideia

do bem

opinião cambiante

temporalidade, o que vem a ser e perece

conhecimento a tudo o que transcorre no tempo? Sim, no tempo: afinal, “o que vem a ser e perece” é o que está submetido à ação do tempo, é o que se situa no regime da temporalidade. Logo, o conjunto do pas-so de A república que estamos discutindo admite ser analisado conforme duas linhas em oposição, conforme este diagrama:

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A difusão do cristianismo no Ocidente provocou grandes mudanças nos rumos de sua história. No plano do pensamento fi-losófico, isso também é perceptível. Entre-tanto, existem muitos pontos de contato entre doutrina cristã e certas concepções da filosofia antiga, particularmente aque-las que se desenvolveram a partir da obra de Platão[+] (428/7-348/7 a.C.). Adotando uma perspectiva comparativa, o que po-deríamos apontar como semelhanças e di-ferenças entre o platonismo e a concepção judaico-cristã sobre a origem do mundo?

Para Platão, o princípio de inteligibi-lidade e realidade se situa em um plano atemporal. Mas isso não quer dizer que esse princípio não atue sobre as coisas temporais. Pelo contrário: tudo o que ocor-re no curso do tempo tem seu princípio de realidade e de inteligibilidade no reino das ideias e, especialmente, na ideia do bem.

Há aqui um ponto de convergência: platonismo e cristianismo instituem, cada qual a seu modo, uma diferença entre eter-nidade e temporalidade. O princípio dos seres temporais se situa fora do tempo; logo, é eterno.

Essa convergência, aliás, foi o que favo-receu a assimilação da filosofia platônica pelos primeiros pensadores do cristianis-

mo. Do ponto de vista da história do cris-tianismo, a assimilação de elementos da doutrina platônica das ideias foi precoce, sendo atestada pelos pensadores cristãos dos primeiros séculos de nossa era. É o que observamos, por exemplo, nas obras de Justino (início do século II); de Cle-mente de Alexandria (c. 150-215); e de Orígenes de Alexandria (c. 185-c. 255).

Se quisermos, podemos sistematizar assim os resultados de nossa análise do trecho de Platão: o princípio do conhe-cimento da realidade, já o sabemos, é a ideia do bem. Como a luz do sol que, no mundo físico, torna as coisas visíveis, a ideia do bem torna as coisas inteligíveis (por referência a ela, podemos conhecer a realidade, para além das aparências). Pla-tão considera estável esse princípio: ele não oscila, como oscilam as nossas opi-niões. Toda vez que a alma se distancia desse princípio estável (a ideia do bem) e faz recurso “a algo que se mistura com a

escuridão”, termina por se assemelhar “a alguém que não tem inteligência”.

Em terceiro lugar, vimos que esta instabilidade da opinião, característica da ignorância e da escuridão, associa-se com o que transcorre no tempo. O texto o afirma, sem, contudo, fornecer maio-res explicações a respeito. Deixe de lado, por um instante, a questão de saber se você assinaria ou não embaixo dessa tese. Tomando-a tal e qual, note que ela implica o seguinte: o princípio do conhecimento deve estar fora do regime do tempo – ou seja, deve ser atemporal.

Orígenes de Alexandria é um dos

primeiros teólogos a formular a doutrina

cristã. Foi fortemente influenciado pelo

platonismo.

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O tempo em Agostinho

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Isso é o que explica por que certas noções fundamentais da filosofia e do pensamento grego, presentes no pla-tonismo, permaneceram tendo grande prestígio à medida que se expandia o cristianismo – o qual, por sua vez, teve um papel central nos rumos históricos e simbólicos do Ocidente.

Contudo, tais tendências de pensa-mento também guardam as suas diver-gências. E a diferença entre o pensa-mento grego, que encontra em Platão um de seus expoentes, e, de outro lado, a religião cristã, pode ser assinalada nos textos. Sua leitura permite iden-tificar os pontos de aproximação e de distanciamento entre o Deus bíblico e a ideia do bem concebida por Platão.

Vejamos, com este intuito, o que diz um dos mais importantes pensadores do cris-tianismo, Aurélio Agostinho, bispo de Hi-pona, conhecido como Santo Agostinho.

No trecho escolhido para análise, Agostinho interpreta o livro de “Gênesis”, mencionado em outro módulo desta Uni-dade. Repare, ao longo da leitura, como há elementos comuns e elementos heterogê-neos em relação à posição platônica:

“E assim, senhor – tu que não és às vezes uma coisa e outras vezes algo di-ferente, mas este mesmo, o mesmo e o mesmo: santo, santo, santo, Deus oni-potente –, no princípio, isto é, de ti, em tua sabedoria nascida de tua substân-cia, foste tu que fizeste algo, e o fizeste a partir do nada. Com efeito, fizeste céu e terra; não extraídos de ti, porque não há nada que seja igual ao teu filho único, portanto igual a ti. Não se admi-te de modo algum que algo seja igual a ti se não é feito de ti. E não havia outra coisa antes de ti da qual o terias feito, Deus, una trindade e tripla unidade:

Eternidade e mortalidadeEstudo dirigido

Observe que, ao menos sob o as-pecto analisado aqui, o platonismo se aproxima não apenas do cristianismo, como também das outras duas gran-des religiões monoteístas – o judaísmo e o islamismo. O ponto comum resi-de neste elemento que acabamos de comentar: a ideia de que é legítimo e mesmo necessário diferenciar eternida-de e temporalidade. Essa diferenciação é a premissa sem a qual não se pode discernir dois tipos de ser ou duas for-mas de existência, a cada uma delas correspondendo um registro (eterni-dade ou temporalidade). Por haver tal diferença, a separação entre divindade

e seres mundanos se torna vigente no interior desses discursos. Os seres eter-nos não estão submetidos às mudanças de que padecem todos os outros seres, cuja existência se dá no tempo. Além disso, o que se passa no tempo – “o que vem a ser e perece”, como diz o texto de A república – tem seu princípio de ser e de conhecimento no que está fora do tempo, na eternidade.

• Pesquise na biblio teca e na internet os princípios e dogmas centrais de uma determinada religião. Identifique, na doutrina em que essa religião se ba-seia, como é elaborada a relação en-tre o plano da divindade e o plano em que transcorre a existência dos seres humanos.

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Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho

Aurélio Agostinho nasceu em 354 d.C.,

na cidade de Tagaste, situada na atual Ar-

gélia. Tagaste pertencia ao Império Romano

no norte da África. O pai de Agostinho era

cidadão romano. Ainda menino, Agostinho

travou contato com a literatura latina e

com a religião cristã (sua mãe, sem sucesso,

procurou convertê-lo ao cristianismo). Aos

dezessete anos, foi para Cartago, onde se

tornou professor de retórica.

Agostinho seguia, então, o maniqueísmo,

doutrina conforme a qual há dois princípios

que governam o mundo: o bem e o mal. Em

383, foi lecionar em Roma. De lá, seguiu para

Milão, em um período marcado pelo aban-

dono do maniqueísmo em favor da aproxi-

mação da tradição cética. Foi o contato com

o neoplatonismo que terminou levando

Agostinho a se converter ao cristianismo, em

386. Em 388, retornou à África, despojou-se

de seus bens e fez de sua casa um centro

monástico para si e seus próximos.

Em 391, tornou-se sacerdote em Hipona

e, logo depois, bispo coadjutor (daí ter-se tor-

nado conhecido como Agostinho de Hipona).

Permaneceu nessa cidade até sua morte, em

430. Agostinho foi canonizado e considerado

doutor da Igreja.

Principais obras de Agostinho traduzidas

para o português:

Agostinho, Confissões. Tradução: J. Oli-

veira Santos e A. Ambrósio de Pina; São

Paulo: Vozes de Bolso, 2011.

A cidade de Deus. Parte I. Tradução: Oscar

Paes Leme. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012.

A cidade de Deus. Parte II. Tradução:

Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes de

Bolso, 2012.

Sobre Agostinho, veja:

Cristiane Abbud Ayoub e Moacyr Nova-

es, “Agostinho: a razão e progresso perma-

nente”, in: Jairo Marçal (org.), Antologia dos

Textos Filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009,

pp. 18-25 (acesso aberto na internet).

por isso criaste do nada céu e terra, o grande e o pequeno, visto seres onipo-tente e bom em criar todas as coisas boas, seja o grande céu como a peque-na terra. Tu existias e mais nada, do qual criaste céu e terra, essas duas coi-sas: uma próxima a ti, outra perto do nada. Quanto à primeira, só tu és su-perior; quanto à outra, só o nada pode ser inferior.” (Agostinho, Confissões, XII, 7. Tradução nossa. Edição de referên-cia: Corpus Christianorum, Series latina

vol. XXVII. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1990, pp. 219-220)

No que a posição de Agostinho se asse-melha à eternidade das ideias platônicas? No que se distingue dela?

Comecemos por observar o seguinte. No início do trecho citado, Agostinho afirma a “mesmidade” de Deus: “não és às vezes uma coisa e outras vezes algo diferente, mas este mesmo, o mesmo e o mesmo”... Encontra-mos algo assim no platonismo: a ideia do

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bem, assim como o Deus judaico-cristão, é estável, única, idêntica a si mesma.

Esse trecho também nos diz que o princípio de tudo está em Deus. E essa afirmação também revela haver conver-gência entre a posição agostiniana e a doutrina platônica das ideias, tal como exposta em A república. Pois, conforme Platão, a ideia do bem também é princí-pio de todas as coisas.

O Deus cristão não é redutível ao Bem platônico

Porém, nesse mesmo trecho das Confis-sões, a presença de um terceiro elemento singulariza o Deus cristão em relação à ideia platônica do bem. Esse elemento re-side na ideia de criação e no lugar central que esta ideia ocupa no pensamento agos-tiniano. Nisso se revela a novidade do pen-samento cristão não apenas em relação ao platonismo, como também, e de modo ge-ral, em relação às filosofias da Antiguidade

grega. Agostinho afirma que Deus fez algo, e o fez “a partir do nada”. (Confira você mesmo: não há qualquer noção correspon-dente a isso nos trechos de Platão discu-tidos no segundo módulo desta Unidade.)

Para Agostinho, o conceito de criação é central. Note que a sequência do trecho dis-cutido acima nada mais faz do que explicar a relação existente entre Deus, que criou o universo, e o universo criado por ele. A esse propósito, Agostinho assinala que aquilo que foi criado por Deus não é feito dele, mas difere de sua substância. Mais para o fim do trecho citado, lê-se que, nesta cria-ção, Deus procedeu do nada: “criaste do nada céu e terra, o grande e o pequeno”. E conclui assinalando a hierarquia existente entre as coisas criadas (o céu, a terra) e seu criador, que coexiste com sua criação: o céu está mais próximo dele do que a terra etc.

A ênfase sobre a criação, portanto, é um elemento decisivo para diferenciar entre pensamento cristão (do Antigo

Rafael Sanzio (1483-1520), Deus criando o mundo. Para o cristianismo, o

princípio do mundo e de tudo que transcorre no tempo está fora dele, na

eternidade.

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Testamento a Agostinho) e filosofia pla-tônica. Tanto a divindade judai co-cris-tã, quanto a ideia de bem platônica são atemporais, origem e princípio de tudo o que se encontra no tempo. Porém, dentre essas duas concepções somente o pensamento judaico-cristão conce-be Deus como um ser que, por sua li-vre vontade, cria o universo a partir do nada. Neste ponto, os cristãos seguem o judaísmo: o texto de “Gênesis” é comum a essas duas religiões.

Veja, nessa direção, que a interpreta-ção que Agostinho efetua do “Gênesis” faz do poder criador de Deus algo tão decisivo e tão ilimitado, que até o tempo possui nele sua origem. É o que consta-tamos no trecho abaixo, no qual Agos-tinho responde àqueles que indagam o que fazia Deus nos séculos que antece-deram a criação do mundo:

“Que tempos poderiam ter existido, sem que fossem fundados por ti? Ou como seriam mais antigos, se nunca tinham existido? Daí, portanto, que sejas o artífice de todos os tempos. Se

Col

eção

par

ticul

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Ouroboros realizado a partir de um

manuscrito de alquimia da Grécia bizantina

tardia. Eis por que os pensadores cristãos

recusaram a doutrina do eterno retorno: nela,

não há passagem do tempo para o eterno.

houve algum tempo antes que tivesses criado o céu e a terra, como dizem, por que razão te abstinhas da obra? De fato, a esse mesmo tempo que tu ha-vias criado, não poderiam preceder ou-tros, antes que tu houvesses criado os tempos. Além disso, se o tempo existia antes do céu e da terra, como alguns pretendem, o que estavas então a fa-zer? Com efeito, não podia haver algo quando o tempo não existia. Nem é no tempo que tu precedes os tempos: de outro modo não precederias todos os tempos.” (Agostinho, Confissões, XI, 13. Tradução nossa. op. cit., p. 202)

Tempo e imortalidadeEis, então, o ponto em que nos encon-

tramos: segundo Agostinho, Deus, como princípio atemporal do universo, criou o próprio tempo. Ao criá-lo, conferiu ao tempo a unidade de uma narrativa com começo, meio e fim. O tempo passou a ser visto como um processo que sempre segue para frente, sem voltar jamais a um momento antecedente. Agostinho o concebe como algo que passa, mas não se repete. Isso pode parecer óbvio para nós, mas estava longe de ser a única forma de compreender a temporalidade na Anti-guidade. Ao sustentar essa ideia, Agos-tinho polemizava com uma doutrina muito difundida entre os gregos da Anti-guidade, especialmente entre os adeptos do estoicismo – conhecida como a dou-trina do “eterno retorno”.

Antes de prosseguirmos, duas palavras sobre isso. Pelo nome, o que você arrisca-ria dizer sobre o “eterno retorno”? Sim, algo que retorna sempre, a toda vez, infi-nitamente... Algo, portanto, que tem a ver com uma eterna repetição. De fato, o “eter-no retorno” é uma ideia que corresponde a uma concepção filosófica da natureza do tempo. Nela, o tempo é pensado como ciclo natural em que todas as coisas vêm a ser, desaparecem e voltam a ser como eram antes. Isto é, elas se repetem.

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Contra os defensores do

eterno retorno, Agostinho

afirma que Cristo morreu

uma única vez e então

deixou de morrer.

(Masaccio [1401-1428],

Crucificação. Óleo sb/

madeira, 1426)

Mas

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Compreendendo não só os proces-sos que interpretamos hoje como estri-tamente naturais, mas também tudo o que sucede à alma humana e que cos-tumamos ligar à cultura, a “ordem da natureza” seria composta, em sua tota-lidade, de ciclos de tempo. Seguindo o tempo cíclico da natureza, que se divi-de nas quatro estações, todas as coisas surgiriam, se desenvolveriam e se cor-romperiam para tornar a fazê-lo repe-tidamente (por exemplo, à maneira do processo de geração e corrupção que se constata nos seres vivos de uma mesma espécie natural).

Pois bem, a que ideia de princípio corresponde essa concepção filosófica do tempo como “ordem da natureza”, susten-tada pelos partidários antigos do “eterno retorno”? Se tudo na natureza se repe-te desde sempre, nascendo e perecendo e ressurgindo incessantemente, não se pode dizer que as coisas tenham começa-do originalmente em algum momento do tempo, pois elas já teriam surgido e desa-parecido incontáveis vezes. Sendo pensa-do como circular e cíclico, o tempo não ad-

mite um começo absoluto das coisas, nem um fim definitivo para as mesmas.

Podemos assim perceber por que os pensadores cristãos rejeitaram a dou-trina do “eterno retorno”. Não há lugar, nesta concepção, para a ideia de criação, nem tampouco para a ideia de Juízo final.

Mas não é só isso. Como observa Agos-tinho, a ideia de que tudo sempre retorna traz consigo a ideia de que nada começa ou acaba de uma vez por todas. Se admitirmos a ideia do eterno retorno, teremos de ad-mitir também que todas as conquistas da alma humana, por exemplo, são relativas a um determinado momento no curso do tempo, momento esse que adiante irá dar vez ao momento que o antecedeu. Digamos que a alma era ignorante, mas adquiriu sa-bedoria e beatitude. Conforme a doutrina do eterno retorno, observa Agostinho, a alma se tornará novamente ignorante e deixará de ser beata, tão logo o ciclo do tempo se complete e volte a se repetir.

Em resumo, a ideia de que tudo sempre retorna, sem jamais começar ou acabar de uma vez só, valeria também para a “alma imortal” que aprendeu a sabedoria. Como

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tudo o que nasce está destinado a perecer e a retornar eternamente, nenhuma coisa, nem mesmo a alma humana, seria capaz de se furtar ao ciclo natural. E isso Agostinho não pode admitir. Pois nesse caso não ha-veria permanência nem salvação possíveis para a alma do homem. Tendo experimen-tado a felicidade, ela estaria fadada, con-forme a ordem da natureza, a reincidir na desgraça; tendo se tornado sábia, voltaria, em virtude do tempo cíclico, a cair na igno-rância. Condenado a sempre transmigrar entre os estados mais diversos e opostos, o ser humano nunca conseguiria interrom-per o ciclo da natureza, o assim chamado destino. Todas as coisas nasceriam e pere-ceriam para retornar incontáveis vezes, ex-cluindo a possibilidade da morte única de cada homem e, principalmente, a de uma vida humana sobre a qual a morte não já não possui mais domínio.

É fácil perceber, agora, por que Agosti-nho polemiza com os defensores do eter-no retorno. É que essa doutrina contraria um dos dogmas centrais do cristianismo, representado pela ressureição de Cristo. Afinal, como afirma Agostinho, “só uma vez Cristo morreu pelos nossos pecados; ao surgir dos mortos deixa de morrer, e a mor-te já não tem mais poder sobre ele” (Agosti-nho, A cidade de Deus [De civitate dei], livro XII, capítulo 14. Tradução nossa. Edição de referência: Corpus Christianorum, Series latina vol. XLVIII parte XIV, 2. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1955, p. 369).

A concepção cíclica do eterno retorno, assim, põe em questão dois dogmas funda-mentais do cristianismo: a ideia de criação e a ideia da imortalidade da alma humana, tal com concebida pelos cristãos. Com efei-to, se a alma participa da ordem da natu-reza, que não foi criada uma primeira vez, mas sempre se repete, neste caso a alma já nasceu e morreu e voltará a nascer e morrer infinitas vezes, necessariamente.

Se é verdade que, em seu “eterno retor-no”, ela nunca se extingue de todo e por isso se torna, em certo sentido, imortal, é

verdade também que essa sua imortalidade consiste em viver, desaparecer e ressurgir, como o restante dos seres e coisas sub-metidos ao ciclo temporal. Conforme essa concepção, portanto, a alma sobrevive, desaparece e ressurge no tempo, e assim por diante, indefinidamente. Mas há uma grande diferença entre, de um lado, durar, perecer e retornar no tempo (concepção do “eterno retorno”) e, de outro, atravessá-lo para, então, existir definitivamente fora dele, na eternidade (concepção cristã).

Duração ≠ atemporalidadeNote que estamos às voltas aqui com

dois sentidos de imortalidade, dos quais apenas um é aceito por Agostinho. Há (i) a imortalidade da alma que sempre retorna temporalmente e (ii) a imorta-lidade da alma que ultrapassa o próprio

Fab

io C

olom

bini

Borboleta-monarca - Danaus plexippus

- saindo do casulo. Pantanal-MT, 2009.

Agostinho, pensador cristão, afirma que

tomar o ciclo da natureza como modelo

do universo é ignorar aquilo que o

transcende, seu princípio criador: Deus.

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tempo. Entram em jogo também dois sentidos de eternidade: (i’) é eterna a alma que constantemente retorna se-gundo ordem natural; e (ii’) é eterna, em um sentido muito diferente, a alma que, rompendo com o ciclo da natureza, escapa à temporalidade. No primeiro

sentido, admitido pela doutrina do eter-no retorno, a alma é imortal e eterna porque está destinada a nascer e morrer ciclicamente; no segundo, característico do cristianismo, ela é imortal e eterna porque pode vencer a morte de uma vez por todas.

É importante perceber como se torna

complexa, no pensamento de Agostinho, a

relação entre filosofia e religião (ou, se qui-

sermos, entre razão e fé). Observe que com

frequência Agostinho critica o discurso filosó-

fico em nome de uma interpretação da pala-

vra religiosa baseada na “reta fé”. É isso o que

ocorre na polêmica de Agostinho com a dou-

trina do eterno retorno. De acordo com isso,

a filosofia é uma forma de pensamento que

nem sempre está comprometida (ou, pelo

menos, não diretamente) com a possibilidade

da salvação da alma humana, conforme deixa

ver a concepção filosófica do tempo que

Agostinho questiona. Por outro lado, é inegá-

vel o fato de que o pensamento agostiniano

se refere constantemente à filosofia, che-

gando mesmo a incorporá-la e desenvolvê-la

em sua explicação das questões da fé, como

pudemos constatar através da leitura do

texto selecionado.

Apesar de tudo, não poderíamos dizer, a

partir do texto, que Agostinho reconheça a

si mesmo como um filósofo, nem que pre-

tenda sê-lo, muito embora nós hoje o consi-

deremos assim. Isso evidencia que há uma

flutuação do conceito da filosofia ao longo

da história do pensamento ocidental: os

pensadores que pertencem a essa história

não só compreendem a natureza da filoso-

fia diversamente, mas também se posicio-

nam em relação ao discurso filosófico de

maneiras bastante diferentes (realizando-o

e defendendo-o, mas também criticando e

contestando esse discurso). Junto com isso,

é preciso reconhecer também que o fato de

Agostinho se posicionar criticamente em rela-

ção à filosofia não torna o seu pensamento

menos importante para o entendimento da

natureza do discurso filosófico, nem menos

decisivo quanto ao seu destino na história.

Afinal, não é apenas graças às obras

daqueles pensadores que se assumem cla-

ramente como filósofos que a filosofia se

constitui como uma forma eminente do pen-

samento humano: ela também surge e se

nutre das contribuições, contrárias ou não,

de outros discursos (como, por exemplo, o

religioso). Para formar uma compreensão

introdutória das relações entre filosofia e

teologia ao longo da Idade Média, indicamos

que você consulte a seguinte obra:

Alfredo Storck, Filosofia medieval. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

TEOLOGIA OU FILOSOFIA?

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my/

Glo

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ages

Interior da Catedral de Reims, França.

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Elogio de Kant a Platão

Agostinho sustenta existir um conflito entre esses dois sentidos de imortalidade e eternidade e afirma que apenas um deles é correto. A verdadeira imortalidade e eter-nidade, conforme Agostinho, representa a possibilidade de superar de uma vez por todas a miséria, iminente conforme o ciclo natural. Não poderia haver autêntica salva-ção, caso a alma jamais pudesse estar segura de ter vencido, em definitivo, a sua miséria. Pois, conforme o cristianismo, a salvação exige a ruptura com o ciclo da natureza.

Visto que Agostinho é um pensador cristão, ele tem de encontrar uma alter-nativa à doutrina do eterno retorno. Sua solução é apresentada em duas frentes: de um lado, Agostinho afirma haver uma dife-rença entre eternidade (Deus como princí-pio atemporal) e temporalidade (o ciclo da natureza); de outro, sustenta a possibilida-de do aparecimento do novo em relação ao que já ocorreu (a salvação do homem por meio da ruptura com a ordem natural).

De nosso comentário a Agostinho pode-mos tirar duas conclusões relevantes:

1. A possibilidade do novo, do aparecimento de algo que jamais aconteceu anteriormente, não tem lugar em uma concepção do tempo como processo cíclico, tal como a que é criticada por Agostinho. Ele mostra que o novo só pode ocorrer em um tempo finito, que começa e acaba (a vida terrena), sendo limitado por um princípio atemporal (Deus).

Para Agostinho, a eternidade torna possível a novidade.

2. No pensamento de Agostinho sobre a relação entre eternidade e tempo, há uma ligação estreita entre três elementos principais: a natureza, Deus e o homem. A diferença entre a ordem da natureza, que é tempo-ral, e a existência divina, que é eter-na, garante a salvação humana, isto é, a possibilidade de o homem rom-per com a ordem natural e entrar em relação com a eternidade, atin-gindo a beatitude. Para Agostinho, a diferença entre Deus e natureza dá lugar, assim, à história humana.

A filosofia torna-se forma eminente do pensamento não só

por pensadores que se declaram “filósofos”,

mas se nutre de contribuições de outros

discursos, como o religioso.

Com o advento dos tempos moder-nos, a discussão em torno dos conceitos de princípio e temporalidade recebeu novas orientações no Ocidente. O debate deixou de se concentrar sobre a relação entre a divindade atemporal e eterna, de um lado, e os “seres que vêm a ser e perecem”, de outro. Não que os filósofos modernos tenham ignorado, em suas in-

vestigações, a herança da filosofia grega e do pensamento judaico-cristão. Mas as ideias e os conceitos destas duas tra-dições foram reinterpretados e, mui-tas vezes, fundidos. E, muitas vezes, suas implicações religiosas foram rela-tivizadas, para dar lugar a uma reflexão sobre outros aspectos do par princípio e temporalidade. É algo assim o que ocorre

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A retomada do platonismo por Kant

Atividade em equipe e debate em sala de aula

• Trabalhando em equipe de no má-ximo três integrantes, relacione, no tex-to de Kant aqui citado, as noções que indicam que o trecho em questão fala de filosofia moral.

• Em seguida, discuta com os de-mais membros de sua equipe por que a posição apresentada por que a posição de Kant pode ser aproximada de Pla-tão. Dica: Kant fala da ideia de virtude como algo que não pode ser desmen-tido pela experiência, pelo motivo de que essa ideia está fora da experiên-cia... Ora, a experiência corresponde ao domínio da temporalidade. Você pode, com base nisso, relacionar a argumen-tação de Kant nesse trecho com o que é discutido no módulo “Platão e o tempo” da presente Unidade.

com Immanuel Kant[+] (1724-1804), filó-sofo muito importante da segunda meta-de do século XVIII.

Em um passo de sua principal obra, a Crítica da razão pura (primeira edição: 1781; segunda edição: 1787), Kant faz um eloquente elogio a Platão[+]. Tra ta-se de um elogio que tem tudo o que ver com a concepção platônica do mundo das ideias e, especialmente, da ideia do bem. Só que o contexto agora é outro, muito diverso daquele do próprio Platão.

Kant o elogia porque ele teria sido o primeiro a compreender que, na filoso-fia moral, o aspecto mais importante é a ideia ou princípio que possuímos acer-ca do que devemos fazer, ainda que, na realidade, muito raramente os seres hu-manos realizem essa ideia em suas exis-tências concretas. Leiamos o texto:

“Platão encontrava suas ideias principalmente em tudo o que é práti-co, isto é, que se assenta na liberdade […]. Quem quisesse extrair da expe-riência os conceitos de virtude ou qui-sesse converter em modelo de fonte de conhecimento […] o que apenas pode servir de exemplo para um esclareci-mento imperfeito, teria convertido a virtude num fantasma equívoco, va-riável consoante o tempo e as circuns-tâncias e inutilizável como regra. Em contrapartida, qualquer um se aperce-be de que, se alguém lhe é apresentado como um modelo de virtude, só na sua própria cabeça possui sempre o ver-dadeiro original com o qual compara o pretenso modelo e pelo qual unica-mente o julga. Assim é a ideia de vir-tude […]. Que ninguém jamais possa agir em adequação com o que contém a ideia pura da virtude, não prova que haja qualquer coisa de quimérico nes-te pensamento. Com efeito, todo juízo acerca do valor ou desvalor moral só é possível mediante esta ideia; por con-seguinte, ela serve de fundamento,

necessariamente, a qualquer aproxi-mação à perfeição moral, por muito que dela nos mantenham afastados impedimentos da natureza humana.” (Kant, Crítica da razão pura, A 314-315/B 371-372. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mo-rujão. Lisboa: Fundação Calouste Gul-benkian, 2008, pp. 309-310)

Como se vê, nessas linhas Kant afirma que Platão tomou a via correta, quando decidiu abordar matérias ligadas “a tudo o que é prático”, ou seja, “que se funda sobre a liberdade”. E isso, porque Platão abordou questões relativas à liberdade (ou seja, questões morais) a partir de

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Georges de La Tour (1593-1652), O trapaceiro (óleo sb/ tela c.1635-40).

Segundo Kant, o fato de que grande parte dos seres humanos cometa, na

prática, atos contrários à virtude não é decisivo. O que importa é que todos

sabem bem o que é a virtude, mesmo quando a transgridem.

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“ideias”. Talvez isso pareça estranho à primeira vista. Mas, você verá, é mais comum do que se imagina.

Partir de ideias, diz nosso trecho, é o oposto de “extrair da experiência os con-ceitos de virtude”. Assim, conforme Kant, ideia e experiência são dois caminhos di-versos e opostos para abordar as questões morais. Negligenciar as ideias e abordar questões morais a partir da experiência é o mesmo que se contentar com um exem-plo, ao invés de chegar à regra da qual este ou aquele exemplo são, na melhor das hipóteses, ilustrações determinadas. Negligenciar a regra, acrescenta o texto, equivaleria a fazer da virtude um “fantas-ma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias”... E isso, conclui Kant, equivaleria a destruir a própria virtude.

Logo depois disso, o trecho evoca algo que presumidamente todos sabemos. Ao designar alguém como virtuoso, consi-deramos este alguém como um exemplo

de uma regra da virtude, que paira aci-ma deste ou daquele indivíduo: “o ver-dadeiro original” está em nossa cabeça, diz Kant. Este “original” é válido mesmo se jamais alguém estiver à sua altura. O “pensamento da virtude” permanece legítimo, a despeito do fato de que “os obstáculos presentes na natureza huma-na” impeçam que um de nós realize ple-namente o ideal que este pensamento exprime. Conforme o texto, embora ne-nhum de nós seja moralmente perfeito, o ideal moral permanece legítimo.

Moralidade e inconstânciaSe, agora quisermos identificar o que

esse texto tem que ver com o par princí-pio × temporalidade, teremos de fazer uma última releitura, procurando identi-ficar os passos nos quais um desses dois conceitos ou ambos aparecem mencio-nados. A resposta é muito simples, pois o texto menciona com todas as letras o

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A virtude é, como quer Kant, um princípio normativo atemporal? Ou uma ideia que

formamos no curso da experiência? Quem é experiente não merece nossa atenção?

(Giorgio Vasari [1511-1564], Alegoria da virtude. Afresco, c. 1556-1558)

Gio

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“tempo”. Vamos então reescrever o tre-cho, suprimindo tudo que nele não seja essencial para nosso propósito:

“Quem quisesse extrair da experiên-cia os conceitos de virtude [...] teria convertido a virtude num fantasma equívoco, variável consoante o tem-po e as circunstâncias e inutilizável como regra.” (Kant, Crítica da razão pura, A 315/B 372. op. cit., p. 309)

Como se vê, o tempo entra aí como fator de instabilidade. Apoiar nossos “conceitos de virtude” na experiência é torná-los sujeitos às variações tempo-rais, às “circunstâncias”. Ora, o termo “circunstância” está associado a “impre-visto”, “acaso”, “vicissitude”, “episódio”. Se continuarmos nossa lista, acrescenta-remos também: “conjuntura”, “acidente”, “contingência” etc.

Por essas razões, a temporalidade, ao menos conforme o passo citado e discu-tido aqui, representa um impedimento decisivo quando o assunto é a moral. Pois

é o fato de variar no tempo o que torna a experiência instável. E é isso o que impe-de de fixar os conceitos de virtude a partir dos casos advindos da experiência: a cada momento, nossa avaliação e nosso juízo oscilam, conforme as circunstâncias; ora indicam uma direção, ora outra...

O texto de Kant postula outra via para determinar os conceitos de virtude. Uma dessas vias, que o texto descarta pelas razões que acabamos de levantar, é a ex-periência. A outra, que o texto apoia, é o caminho tomado por Platão, a via das ideias. É fácil perceber que as ideias de que o texto fala ao mencionar Platão se encontram, por assim dizer, “fora do tempo”. Como noções que fazem as ve-zes de originais e que servem como re-gra, as ideias são atemporais. Conclusão: Kant elogia Platão porque ele concebeu as ideias como normas atemporais a par-tir das quais julgamos o que se passa ao nosso redor, quando o assunto é o valor moral desta ou daquela ação.

Observe que o fato de Kant elogiar Platão nesse passo não significa que Kant

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O elogio de Kant a Platão exprime

uma concordância parcial. Só que é

muito importante: o que está em jogo é

a noção de princípio e sua relação com a

temporalidade.

seja um adepto do platonismo. Há, aliás, outras passagens da mesma Crítica da ra-zão pura (a obra da qual extraímos o tre-cho analisado) em que Platão é criticado. O elogio que Kant faz a Platão exprime, assim, uma concordância pontual com ele. Só que é um ponto muito importan-te: o que está em jogo é nada menos que a noção de princípio e sua relação com a temporalidade.

Assim como já o fizera Platão, Kant afirma que o conceito de virtude é uma norma ou princípio atemporal, do qual nos servimos para julgar as condutas que se inscrevem no tempo. Mesmo nós, considerados como seres que agem neste mundo, temos de nos pautar por este ideal, ainda que saibamos ser im-possível realizá-lo plenamente na vida. E isso porque a vida se desenvolve no tempo. Como, então, esperar realizar

Regularidade da experiência

Em diversos contextos da história da filosofia, da Antiguidade grega ao sécu-lo XVIII passando pelos primórdios da era cristã, a ideia de que há um princípio atemporal que explica a ordem do tempo e das coisas temporais recebeu formula-ções importantes.

Mas não haveria outro modo de pensar a relação entre o princípio e a temporalidade, diverso da posição pla-tônica e cristã – que é apropriada, na época moderna, por Immanuel Kant[+]? Ou, na falta de alternativa, só nos res-taria adotar a solução que, de Platão[+] a Kant e passando pelo advento da filoso-fia cristã, faz recurso a um princípio ex-tratemporal para explicar os seres tem-poralizados? Será que, abandonado a si mesmo, o regime da temporalidade real-mente nos conduz, como eles afirmam, a uma base incerta sobre a qual não pode-ríamos jamais formar um juízo razoável

nem, muito menos, construir qualquer saber? Dito de outro modo, o tempo ne-cessariamente remete à “instabilidade”, à “variação”, à “incerteza”, não podendo, por isso, contribuir para a elaboração de normas que sirvam como princípios, seja da moral, seja da ciência?

A história da filosofia não cessa de nos revelar um horizonte de respostas muito diversificadas. Difícil não encon-trar, na leitura de grandes autores, solu-ções diferentes para problemas e ques-tões comuns. E isso, mesmo quando se trata de uma tese bem estabelecida e cuja história acaba por se mesclar com convicções arraigadas no senso comum, como tantas vezes é o caso quando o as-sunto é princípio e temporalidade.

Não há tese que não tenha sua an-títese, nem filósofo que não encontre adversários, que discordarão dele e se-guirão um caminho próprio. Isso parece

plenamente no curso temporal da vida um princípio de natureza atemporal?

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fazer parte do jogo do pensamento. Por isso, é de se esperar que também a con-cepção platônica de princípio, elogiada por Kant na época moderna, tenha sido questionada por outros filósofos, dentre os quais um que foi praticamente con-temporâneo de Kant.

Leia o texto abaixo, que integra uma obra muito conhecida de David Hume[+] (1711-1756), filósofo escocês que vi-veu no século XVIII, um pouco antes de Kant. E procure, no curso desta pri-meira leitura, assinalar em que Hume se opõe à posição platônica (que é retoma-da por Kant, como discutido no módulo preceden te desta Unidade):

“Não há ninguém tão jovem e inex-periente que não tenha formado, a partir da observação, muitas máximas gerais e corretas relativas aos assun-tos humanos e à conduta da vida; mas deve-se confessar que, quando chega a hora de pô-las em prática, um homem estará extremamente propenso a erros até que o tempo e experiências adicio-nais venham a expandir essas máxi-mas e ensi nar-lhe seu adequado uso e aplicação. Há em todas as situações ou ocorrências, um grande número de cis-cunstâncias peculiares e aparentemen-te minúsculas que tendem a ser de iní-cio ignoradas mesmo pelo homem mais

talentoso, embora delas dependa por completo a justeza de suas conclusões e, em consequência, a prudência de sua conduta. Para não mencionar que, no caso de um jovem principiante, as má-ximas e observações gerais nem sem-pre lhe vêm à mente nas ocasiões apro-priadas, nem podem ser aplicadas de

Willian Blake (1757-1827), Frontispício

de Canções de experiência (Gravura

e tinta, prancha 28, c. 1815-26). A

experiência leva a inocência nos ombros,

como se procurasse protegê-la no

caminho da vida.

Mus

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Hume foi muitas vezes classificado como

representante do empirismo. “Empirismo”

é um termo classificatório que agrupa es-

colas filosóficas que dão valor central à

experiência. Etimologicamente, “empiris-

mo” remete a “empiria” que, por sua vez,

tem origem no termo grego ”empeiría”

(= experiência). É comum encontrarmos o

conceito de “empirismo” designando filosofias

que questionam o papel preponderante dado

à razão pelos assim chamados “racionalistas”

ou “noologistas”.

É assim que Immanuel Kan classifica como

filósofos empiristas Aristóteles (384-322 a.C.),

a quem opõe Platão (c.427-c.347 a.C.). Nos

tempos modernos, Kant denomina empirista

John Locke (1632-1704), em oposição ao “noo-

logismo” de Gottfried Leibniz (1646-1716).

AS FILOSOFIAS EMPIRISTAS

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O aprendizado de normas, assim

como das regras, depende da expe-

riência, argumenta Hume. Só através

de experiências repetidas, diz ele,

podemos aprender coisas simples

tais como o sentido de uma seta.

Ivan

Aki

ra

imediato com a devida tranquilidade e discernimento. A verdade é que um raciocinador inexperiente não pode-ria de forma alguma raciocinar se lhe faltasse por completo a experiência; e, quando dizemos que alguém é inexpe-riente estamos aplicando essa denomi-nação num sentido apenas comparati-vo e supondo que ele possui experiência em um grau menor e mias imperfeito.” (Hume, Investigações sobre o entendi-mento humano e sobre os princípios da moral, seção V, Parte 1. Tradução: José O. De Almeida Marques. São Paulo: Editora da UNESP, 2004, p. 77)

Esse trecho corresponde a uma nota da obra em que Hume questiona o ra-cionalismo clássico, isto é, questiona os filósofos que, de forma geral, sustentam que a razão é capaz de conhecer verda-des independentemente da experiência. É nesse contexto que Hume desenvolve a argumentação transcrita acima. Exa-minemos o texto propriamente dito.

A primeira coisa a fazer para com-preender nosso trecho no aspecto que

nos interessa é indagar o estatuto que ele atribui à temporalidade. Esse estatuto é positivo ou negativo? Releia o início da citação. Hume começa recordando que qualquer um de nós, mesmo “jovem e inexperiente” (isto é, com menos “expe-riência”, o que é uma noção importante nessa argumentação), é capaz de formar regras, “máximas gerais e corretas”, acer-ca dos assuntos humanos e das nossas condutas. Entretanto, diz em seguida, apenas “o tempo e experiências adicio-nais” podem assegurar melhor uma boa aplicação dessas regras.

O tempo como condição das regras práticas

Pense um instante nisso que acaba-mos de destacar. Já não dispomos de elementos para dar uma resposta provi-sória à nossa questão sobre o estatuto, positivo ou negativo, que Hume atribui ao tempo na passagem citada?

Pois essa primeira parte do texto afir-ma que o tempo nos instrui a aplicar bem a regra relativa à prática, isto é, à moral. Platão e Kant excluem a mora-lidade do domínio temporal. Hume se opõe frontalmente a ambos, na medida em que sustenta que o tempo, ao invés de ser elemento dispersivo e anárquico, constitui, ao contrário, condição para o “adequado uso e aplicação” das regras.

Note que Hume assume essa tese sem, por isso, negar que haja algo de circuns-tancial no agir e no julgar a partir da ex-periência. Ele inclusive admite que o ca-ráter circunstancial e particular que cerca toda e qualquer situação concreta altera de modo decisivo as conclusões que se ti-ram dela.

Mas, na opinião desse filósofo, isso não é motivo para buscar a regra ou princípio fora da experiência – como fez antes dele, Platão, e irá fazer logo depois dele, Kant. Para Hume, quanto mais am-pla for a experiência, quanto mais longo for o período em que experimentamos

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situações concretas di-versas entre si, maior será nossa capacidade de discernir o que é relevante ou não para a boa aplicação da regra nes te ou naquele caso. Conclusão: a formação da regra ou do princí-pio para o bom uso do juízo supõe a experiên-cia e, portanto, tem no tempo um aliado necessário, não um ad-versário perigoso.

Essa mesma conclu-são pode ser extraída pelo avesso, como faz Hume no fim do passo citado acima. Com efeito, Hume afirma que, a rigor, “um raciocinador inexperiente não poderia de forma algu-ma raciocinar se lhe faltasse por completo a experiência”. Portanto, se nós não tivés-semos contato algum com a experiência, nem tivéssemos jamais experimentado a diversidade de circunstâncias que cercam as situações concretas em que agimos, não seríamos sequer capazes de racioci-nar. Isso significa que o “raciocínio”, a ra-zão, requer alguma experiência e em boa medida dependem dela.

É fácil notar que essa conclusão su-põe que a experiência exiba regularidade.

Segundo Hume, pode-mos formar regras gerais a partir da observação dos casos particulares. E, se acrescentarmos a isso mais experiência, chegaremos a saber apli-car essas regras a casos futuros, prevendo cir-cunstâncias e aprenden-do com elas. Contraria-mente a Platão e a Kant, Hume enfatiza o caráter regular, isto é, a cons-tância, a previsibilidade da experiência.

Hume parte desta constatação: há regularidade – e portan-to, alguma ordem – no modo sob o qual transcorrem os eventos naturais e as ações humanas. O decurso do tempo, por isso, não é visto como algo que nos con-dena ao “não ser”. Ao contrário, constitui condição da formação das regras gerais – isto é, de princípios – que balizam nossa conduta prática.

E poderia ser de outro modo? Certa-mente não, segundo Hume. Pois, como ele diz, sem experiência, sem observação do que se passa no tempo, não há como for-mar princípios para nosso julgamento, nem como encontrar parâmetros para conhecer o mundo e nele agir.

Para Hume, sem experiência, não há como formar

princípios para nosso julgamento nem como encontrar parâmetros para

conhecer o mundo e nele e agir.

A noção de progresso científico

De maneira muito geral, podemos dizer que há, de um lado, filósofos que negam existir no tempo um princípio que fundamenta as situações concretas do mundo; de outro, filósofos “partidá-rios do tempo”. Exemplos do primeiro tipo de posição são Platão[+] e Kant[+]; do segundo, Hume[+]. No século XVIII, toda uma polêmica foi desenvoldida em tor-no do par princípio e temporalidade.

Vamos agora examinar uma aborda-gem notável dessa controvérsia no século XX. Iremos nos deter um instante sobre as concepções de Karl Popper (1902-1994), uma referência essencial para a filosofia da ciência contemporânea.

Conforme Popper, a pesquisa cien-tífica possui uma lógica da qual a expe-riência e a temporalidade são dimensões essenciais. É este aspecto que iremos

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Popper e a descoberta científica

Karl Popper nasceu em Viena (1902) no

seio de uma família abastada. Defendeu seu

doutoramento na Universidade de Viena,

em 1928. Em seguida, lecionou no Ensino

Médio até que, diante da

ascensão do nazismo,

Popper, de origem judai-

ca, emigrou para a Nova

Zelândia (1937) até se

fixar em Londres (1946),

onde se tornou profes-

sor da Escola Econômica

de Londres (1949).

Formou um círculo

de grande prestígio com

Friedrich Hayek (1899-

1992) e Milton Fried man

(1912-2006), dentre outros, ligados pela defe-

sa e difusão do ideário liberal. Pop per produ-

ziu textos voltados para a filosofia da ciência

e para a filosofia política. Morreu em Londres

em 1994. Dentre suas obras traduzidas para

o português, destacam-se:

K. Popper, A lógica da pesquisa científi-

ca. Tradução de Leonidas Hegenberg e Oc-

tanny S. da Mota São Paulo: Cultrix, 2011.

A sociedade aberta e seus inimigos. Tra-

dução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1998.

O racionalismo crítico na política. Tradu-

ção de M. C. Côrte Real. Brasília: Editora da

UnB, 1994.

A lógica da pesquisa científica, publicada

originalmente em 1934, é uma obra de

grande originalidade, dedicada ao exame

dos processos envolvidos nas descobertas

científicas e na progressão da ciência em

desvendar as leis da natureza.

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examinar, através da análise de alguns passos de seus textos. Começamos pelo trecho de uma conferência publicada ori-ginalmente em 1945:

“Em ciência, tomamos cuidado para que nossas afirmações nunca dependam do significado dos ter-mos. Mesmo quando os termos são bem definidos, nunca tentamos de-rivar qualquer informação da defini-ção nem basear nela um argumento. Por isso os termos criam tão pouca dificuldade. Não os sobrecarrega-mos. Procuramos fazer com que carreguem o mínimo peso possível. Não levamos muito a sério o seu ‘significado’. Estamos sempre cons-cientes de que são meio vagos (pois só aprendemos a usá-los em aplica-ções práticas) e atingimos a perfei-ção não por diminuir sua penumbra de incertezas, mas por nos manter bem dentro dela, enunciando cuida-dosamente as frases, de modo que as possíveis penumbras de significa-do não tenham muita importância. Evitamos assim as disputas em tor-no de palavras.” (Popper, “Dois tipos de definições”, in: Popper – Textos es-colhidos. Org.: David Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra-ponto; Ed. PUC-Rio, 2010, pp. 87-99. Aqui citadas: pp. 96-97)

Nessa passagem, Popper fala direta-mente da utilização dos termos na ci-ência. Ou seja, fala da terminologia que julga apropriada para o bom andamento da pesquisa científica.

Popper defende que, mesmo ali onde nossos termos são bem definidos, o cien-tista não deve apoiar suas conjecturas e investigações sobre eles. E afirma: “Não levamos muito a sério o seu ‘significa-do’”. Isso nos faz presumir que a inves-tigação científica, aos olhos de Popper, pouco ou nada ganha com uma grande

precisão linguística. O avanço nas ciên-cias depende de outros fatores. Insistir sobre a clareza dos termos, conclui o passo citado acima, seria sobrecarregar a ciência com um problema secundário

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As zonas de penumbra do saber científico

Desenvolvimento individual por escrito

Naturalmente somos levados a acre-ditar que o saber, em suas diversas ramificações, é tanto mais qualificado, quanto mais for exato. Isso significa que nossa ideia habitual do saber supõe ha-ver uma proporção entre a validade das conclusões e a exatidão dos resultados. O máximo de saber corresponderia, nessa direção, a um resultado inequívo-co, absolutamente determinado, exato.

Essa interpretação está na base da classificação usual dos ramos do conhe-cimento em “ciências exatas” e “ciências humanas”. As ciências humanas, pre-

sume-se nesse raciocínio, são inexatas. Entretanto, até que ponto a exatidão é uma condição necessária e indispensá-vel do conhecimento de forma geral?

• Empreenda uma pesquisa e com base nela, redija um texto de aproxi-madamente uma página, procurando identificar exemplos de ramos científi-cos nos quais a incerteza ou indetermi-nação dos enunciados é parte constitu-tiva do saber. Aponte por que motivos, no campo pesquisado por você, algum grau de incerteza e indeterminação não pode ser eliminado. Uma boa ideia é incluir, na pesquisa, a abordagem às “ciências exatas”.

e até mesmo inútil, a saber, “as disputas em torno de palavras”.

O que nos interessa nesse passo, mais do que a questão dos termos, é algo que se articula com ela: é a ques-tão da “imprecisão”... Sim, pode parecer estranho à primeira vista, mas o fato é que Popper faz uma espécie de elogio da “imprecisão”, ao dizer que ela pode ser benéfica para as ciências. No texto exa-minado, não se trata de qualquer impre-cisão, mas daquela relativa à terminolo-gia. Em todo caso, esse trecho já nos põe em alerta no que diz respeito ao fato de que, bem possivelmente, Pop per irá con-frontar a posição platônica, examinada em outro módulo desta Unidade. Para se certificar disso, basta atentar ao que Popper nos diz no trecho citado acima: o ideal do conhecimento é plenamente realizado quando, ao invés de procurar diminuir a “penumbra das incertezas”, mantemo-nos em seu interior.

À vontade no escuroO cientista concebido por Popper,

então, sente-se à vontade no interior de uma penumbra de incertezas... É pos-sível imaginar algo mais antiplatônico? Na alegoria da caverna que é desenvolvi-da em A república, Platão associa o saber à luz, à exatidão, à clareza. Popper, em-bora falando sobre os termos utilizados pelos cientistas, defende que a ciência e o saber podem, sim, conviver com a pe-numbra. Logo em seguida ao trecho ci-tado, ele acrescenta:

“Nas medições físicas, por exemplo, sempre tomamos o cuidado de conside-rar a margem de erro. A exatidão não consiste em tentar reduzir essa margem a zero nem em fingir que ela não existe, mas sim em reconhecê-la explicitamen-te.” (Karl Popper, “Dois tipos de defini-ções”, in: Popper – Textos escolhidos. Tra-dução de Vera Ribeiro, op. cit., p. 97)

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O sistema copernicano

ou Planisphaerium

Copernicanum

(c.1543), extraído

do Atlas Celestial,

ou a Harmonia

do Universo (Atlas

coelestis seu harmonia

macrocosmica)

Amsterdam, c.1660.

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.

Note que o assunto passa a ser, ago-ra, o da mensuração nas ciências exatas. Já ultrapassamos assim o território ini-cial, agora se trata de algo mais do que, simplesmente, uma questão de termino-logia. E Popper faz uma afirmação que aprofunda o espírito antiplatônico do trecho antecedente, que acabamos de ver. Sim, pois ele afirma que a exatidão científica exige assumir a “margem de erro” de nossas teorias. Ou seja, ser bom cientista é saber que, em alguma medida, as teorias falham em apreender comple-tamente o real. De modo aparentemente paradoxal, Popper conclui que uma atitu-de orien tada pela exatidão inclui o reco-nhecimento e a convivência com... o erro!

Uma última passagem, retirada dessa mesma conferência de Popper, não deixa dúvida de que ele compreende o saber e as ciências de modo muito distante da-quele representado pelo ideal platônico:

“Primeiro: na ciência, fazemos o melhor possível para descobrir a ver-dade, mas sabemos que nunca pode-mos ter certeza de havê-la alcançado.

Aprendemos no passado, à custa de muitas decepções, que não devemos esperar atingir algo definitivo. E aprendemos a não ficar decepciona-dos quando nossas teorias científicas são superadas. Entre duas teorias, na maioria dos casos somos capazes de determinar com grande confiança qual é a melhor. Assim, podemos sa-ber que estamos progredindo. Para a maioria de nós, isso compensa a perda da ilusão de termos chegado a algo definitivo ou certo. Em outras palavras, sabemos que nossas teorias científicas devem manter-se como hipóteses, mas que, em muitos casos importantes, podemos descobrir se uma nova hipótese é ou não superior à antiga. Se elas forem diferentes, le-varão a previsões diferentes, as quais amiúde poderão ser testadas; com base em experimentos cruciais, po-demos verificar se a nova teoria leva a resultados satisfatórios onde a an-tiga falhava. Substituímos a certeza científica pelo progresso científico na busca da verdade.” (Karl Popper, “Dois

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e “Deu no New York Times” : “A teoria

de Einsteim triunfa!”. A manchete de

10 de novembro de 1919 se referia à

confirmação oficial da teoria einstei-

niana da relatividade pela Sociedade

Real e pela Sociedade Astronômica

Real do Reino Unido

Cole

ção

part

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ar.

tipos de definições”, in: Popper – Textos escolhidos. Tradução de Vera Ribeiro, op. cit., p. 97)

Vamos analisar esse trecho parte a parte. De início, Popper afirma que ja-mais teremos certeza de ter atingido a verdade. Em ciência, não há como “atin-gir algo definitivo”. Popper justifica esta conclusão recorrendo à história: “apren-demos no passado”... Ele quer dizer com isso que o passado nos mostrou que teorias consideradas verdadeiras foram refutadas por novas descobertas, asso-ciadas a novas teorias. Foi assim que, por exemplo, a teoria de Ptolomeu deu vez à teoria de Copérnico para explicar o siste-ma solar. Assim também, a teoria física de Newton foi em parte substituída, no século XX, pela teoria da relatividade e pela teoria quântica, para compreender a dinâmica de nosso universo.

Conforme Popper, portanto, a histó-ria da ciência é a história da substitui-ção de teorias científicas consagradas durante um período por novas teorias científicas, que contradizem alguns as-pectos das teorias precedentes.

É com base nisto que, na segun-da parte do texto, Popper declara que, embora jamais possamos dizer que te-nhamos chegado à verdade definitiva, po-demos ao menos adotar teorias cada vez melhores para compreender o universo. Nisso reside o progresso da ciência.

Mas esse progresso, como podemos adivinhar, não chega a um término. É o que conclui Popper na terceira parte do trecho acima: jamais chegaremos “a algo definitivo ou certo”. E isso equi-vale a dizer que a ciência é hipotética: “nossas teorias científicas devem man-ter-se como hipóteses”. As hipóteses concorrem entre si para explicar me-lhor os fenômenos, e quanto maior for o número de fenômenos que uma teo-ria possibilita prever e compreender,

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A exatidão não consiste em tentar

reduzir a margem de erro nas medições físicas a zero nem em fingir que ela

não existe, mas sim em reconhecê-la explicitamente.

melhor será esta teoria e a hipótese em torno da qual ela é formulada. Mas, por melhor que seja uma teoria, ela sempre poderá ser superada por outra. Esta é a ideia de “progresso” que Pop per privile-gia diante da ideia de “certeza”.

Só no tempo há progressoOra, o progresso só se dá na ordem

do tempo, sendo ele mesmo um proces-so temporal. O princípio do desenvolvi-mento do saber cien-tífico não é estranho ao tempo e à expe-riência. Ao contrário, esse princípio é es-sencialmente ligado à temporalidade.

Você se dá conta da oposição entre as conclusões de Popper e do platonismo?

Platão lança mão da alegoria da caver-na para ilustrar o que é o conhecimento. Por meio dela, opera uma diferenciação rígida entre o saber e o não--saber. Para Platão, ambos se opõem entre si como a luz solar se opõe à escuridão da caverna. De fato, conforme essa alego-ria, o filósofo termina em apuros, porque descobre a verdade e tenta, sem sucesso, transmi ti-la a seus companheiros. Isso supõe que a verdade seja algo apreensível, algo que possamos atingir de uma vez por todas e depois transmitir aos demais (ou tentar fazê-lo). Para Platão, a essência ou ideia do bem é o princípio do qual emana todo ser e todo saber. E essa essência é bem real, a crer em Platão.

Popper, ao contrário, recusa que o saber possa consistir de verdades de-finitivas, baseadas na apreensão inte-lectual de essências. Ao invés disso, ele aposta na ideia de progresso.

O progresso, como vimos, passa por substituir teorias vigentes por outras teorias melhores. Mas qualquer teo-ria, enquanto tal, pode ser refutada por uma nova hipótese. O que define a noção de “teoria científica”, aos olhos

de Popper, está exata-mente no fato de que ela pode ser refuta-da. Como ele mesmo o diz, toda teoria é um corpo de enun-ciados que podem ser falseados por novos experimentos e no-vas descobertas. Os princípios que tor-nam a natureza com-preensível jamais são definitivos, embora progridam ao longo da história da ciên-cia – e, portanto, no decurso do tempo.

Eis como tanto a ideia de “falsea-bilidade” das teorias, quanto a noção de progresso científico, ligada a ela, articu lam-se de modo direto com a valorização da ideia de tempo. Só há progresso no tempo e apenas o tempo poderá dizer se esta ou aquela teoria científica permanece válida. Assim, en-quanto Platão fundava o princípio do ser e do saber das coisas em uma reali-dade atemporal, Popper defende que a temporalidade constitui um elemen-to essencial do saber.

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unidade 12 finito e infinito

P ense num número grande. Grande mesmo. Por exemplo: uma pesquisa publicada em

2013 estimou que o corpo humano tem uma média de 37 trilhões de células. Multiplique isso pelo número de habitantes em nosso planeta (6 bilhões). É até difícil imaginarmos uma grandeza como essa, não é? No entanto, esse número gigantesco está tão longe de uma grandeza infinita quanto o número 1. O conceito de infinito propõe questões tão interessantes quanto complexas – não é à toa que os mais diversos filósofos e cientistas se ocuparam dele. Desde a Antiguidade, o conceito de infinito vem propondo uma série de problemas interessantíssimos, e os mais diversos filósofos e cientistas se ocuparam deles.

A biblioteca de Borges ................ 343

Filosofia grega e infinito .................. 347

O infinito divino .... 352

Quem é finito não pode conceber o sem-fim ................ 357

O infinito atual das matemáticas ........... 361

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Livros por todos os lados, numa biblioteca sem fim: eis a Biblioteca de Babel

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A biblioteca de Borges

O escritor argentino Jorge Luis Bor-ges (1899-1986) imaginou, num de seus contos, que o universo todo fosse uma biblioteca aparentemente sem fim. Cada um dos andares do prédio dessa biblioteca seria composto por galerias hexagonais, dispostas lado a lado, como favos de uma colmeia. Quatro das seis paredes de cada hexágono estariam ocupadas por cinco prateleiras cheias de livros. Portanto, ha-veria vinte prateleiras em cada hexágono. Até aqui, fácil: 4 × 5 = 20, certo? Mas pre-pare-se, porque Borges gostava de brincar com raciocínios lógicos e matemáticos. Deste, a seguir, você vai gostar. Além dis-so, ele ajudará a entendermos melhor a oposição entre o finito e o infinito.

Então vamos lá. Nas duas paredes sem estantes, o visitante encontraria duas pas-sagens para hexágonos vizinhos. No meio de cada galeria, debruçado sobre uma mu-reta baixa, ele veria um fosso escuro que parece não ter fim – nem para cima, nem para baixo. Na passagem de uma galeria a outra, uma escada muito estreita dá acesso ao andar de cima e ao andar de baixo. Seja pelos corredores, seja pelas escadas, pode-mos andar o quanto quisermos, passando de um hexágono para o outro da biblioteca, sem jamais chegarmos ao fim. Bem... pelo menos não há notícia de ninguém que te-nha chegado, ou sequer avistado o fim des-sa biblioteca.

Cada prateleira da biblioteca contém exatamente 32 livros de formato uniforme. Cada livro tem 410 páginas; cada página, 40 linhas; cada linha, aproximadamente 80 caracteres. Dê uma olhada no box ao lado para ver o resultado: um número impressio-nante! Os únicos sinais usados nesses livros são as 22 letras do alfabeto (Borges refere-se ao alfabeto oficial utilizado na Argentina em sua época), mais o espaço, a vírgula e o pon-to final – não há numerais, letras maiúscu-las, sinais de interrogação ou de exclamação.

O principal detalhe vem agora.A maioria absoluta dos livros dessa

biblioteca contém uma mistura comple-tamente incompreensível de sinais, sem nenhuma ordem aparente. A maioria de-les não parece estar escrito em nenhuma língua. No entanto, como os livros da bi-blioteca contêm todas as combinações possíveis dos 25 caracteres (22 letras mais 1 espaço, 1 vírgula e 1 ponto final, con-fere?) distribuídos pelas 410 páginas de cada livro, é sempre possível encontrar, no meio de um livro, uma palavra, ou mesmo uma sentença que conseguimos entender. Imagine, por exemplo, que você abra um livro e não encontre nenhuma palavra co-nhecida, com exceção de três, perdidas no meio de uma linha da página 327:

crfttt h erddf s s rrteeeed louco amor azul drtg hy hy hy uioihdrtya frtse ree

A bilhões e bilhões de quilômetros dali (andando para o alto, para baixo ou para o lado), você talvez encontre um livro conten-do uma página inteira perfeitamente com-preensível. Mais raramente ainda, outro

Caracteres “babélicos”De acordo com a descrição da “Bi-blioteca de Babel”, confira quantos caracteres estariam contidos numa única sala hexagonal (imagine quantas combinações são possíveis entre eles):

1 linha = 80 caracteres;1 página = 40 linhas = 3.200

caracteres;1 livro = 410 páginas = 1.312.000

caracteres;1 prateleira = 32 livros = 41.984.000

caracteres;1 estante = 5 prateleiras = 209.920.000

caracteres;Numa única sala (= 4 estantes), have-ria quase um bilhão de caracteres!

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com 200 páginas legíveis. É difi cílimo en-contrar um livro assim numa das estantes – muito mais difícil do que ganhar na loteria. Mesmo assim, é possível. Concorda?

Na verdade, é mais do que possível. Se imaginarmos que a biblioteca contém to-das  – absolutamente todas  – as combina-ções possíveis de 25 caracteres distribuídos por 410 páginas, então não apenas é “pos-sível” que encontremos dentro dela qual-quer livro que possamos imaginar, como também é necessário que isso aconteça. Cedo ou tarde, toparemos com qualquer livro  – desde que esse livro tenha menos que 411 páginas. Como narra Borges, a Bi-blioteca conteria uma história detalhada do futuro, o catálogo descrevendo os livros da própria Bilioteca, também catálogos falsos, comentários sobre textos bíblicos, e ainda comentários a esses comentários... Mais: a Biblioteca imaginada por Borges conteria também relatos sobre nossas vidas, como, por exemplo, o registro exato de como você nasceu, viveu e morreu.

O mais interessante, porém, é que a Biblioteca possui todas as gramáticas e di-cionários que você possa imaginar. Tanto gramáticas e dicionários de línguas exis-

A criptografia (técnica para codificar e decodi-

ficar informações) é usada militarmente desde

a Antiguidade. Na Segunda Guerra Mundial,

utilizaram-se máquinas criadas para esse fim.

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rtentes, como o português, o inglês e o taga-log (uma das línguas faladas nas Filipinas), quanto gramáticas e dicionários de línguas que jamais foram faladas por ninguém.

Assim, livros que aparentemente não têm sentido nenhum, quando “lidos” se-gundo as regras de certas gramáticas da Biblioteca ficam perfeitamente compre-ensíveis. Mais ainda: haverá sistemas de códigos muito complicados capazes de mudar completamente o sentido de uma men sagem.

Este livro que você está lendo, por exemplo, estaria numa das estantes da Bi-blioteca. Em outras estantes, no entanto, você encontraria livros que o ensi nariam a “ler” este livro como se ele estivesse es-crito em código. Quando “decifrado” se-gundo um código complicadíssimo, este livro poderia ser, por exemplo, a autobio-grafia de um monge budista que viveu no século XVIII numa aldeia do Japão.

Isso quer dizer uma coisa muito sim-ples. Você lê as sentenças deste livro aplicando a elas as regras do português. À palavra “livro” você associa um deter-minado objeto, ao verbo “ler” você asso-cia uma determinada atividade, e assim por diante. Se as lesse, porém, aplicando as regras de um código muito diferente, poderia enxergar nestes mesmos sinais de tinta sentidos muito diferentes desses que você está apreendendo neste exato instante. Leria um outro livro, embora estivesse diante dos mesmos sinais...

Como todos os livros possíveis e imaginá veis estão contidos na Biblio-teca imaginada por Borges, ela conteria livros que nos ensinam a interpretar qualquer livro de qualquer maneira que você consiga imaginar. Mais ainda: to-dos os livros da biblioteca fariam senti-do – mesmo aqueles que aparentemente não fazem sentido nenhum. Vamos re-cordar aquela linha inserida na página 327 de um certo livro:

crfttt h erddf s s rrteeeed louco amor azul drtg hy hy hy uioihdrtya frtse ree

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Para nós, isso não quer dizer absoluta-mente nada. A única coisa que consegui-mos entender (e olhe lá...) é a expressão “louco amor azul”, no meio dessa sopa de letras. Mas, se adotarmos um dos in-finitos códigos de interpretação conti-dos na biblioteca, poderíamos ver essa sequência de sinais como uma sentença de uma língua imaginária, querendo dizer

A fundamentação teórica e bibliográfica do projeto é satisfatória

Adotando um outro código, leríamos uma outra sentença. E assim por diante. Infinitamente. Conseguiu compreender?

É possível contar o que não tem fim?Utilizaremos essa biblioteca imagina-

da por Jorge Luis Borges para pensar a respeito de diversas questões envolven-do a oposição entre o finito e o infinito. Em primeiro lugar, imagine-se na pele de alguém que sempre viveu dentro da biblioteca. Você acha que seria capaz de descobrir se ela é finita ou infinita? Exis-te alguma coisa que você pudesse fazer para tentar descobrir isso?

Há basicamente duas coisas que você pode fazer: caminhar – e tomar nota (num papel ou na memória) das salas pelas quais você já passou. É importante tomar notas, para ter certeza de que não está andando em círculos.

Será também necessário planejar uma estratégia de busca. Você irá partir de um dos hexágonos e, como todos os hexágo-nos da biblioteca, ele tem duas passagens e uma escada. Cada passagem dá acesso a um hexágono vizinho no mesmo andar; a escada leva ao andar de cima e ao de baixo. A primeira decisão a ser tomada, portanto, é em que direção procurar: para cima, para baixo ou para o lado?

Digamos que você resolva descobrir, em primeiro lugar, se a biblioteca é infi-nita “para baixo”. Para isso, você terá que escolher uma das escadas e ir descendo

por ela. Veja agora que situação curiosa. É fácil imaginar uma situação na qual você diria que a biblioteca tem um andar “térreo”, digamos assim. Você começa a descer as escadas e, depois de algum tempo (dez anos, digamos), chega num hexágono no qual a escada simplesmen-te acaba. Se isso acontecer, você já terá cumprido uma parte de sua tarefa: des-cobriu que a biblioteca tem um “primeiro andar”. Pronto. Pelo menos naquele pon-to, você descobriu, após dez anos descen-do escadas todos os dias o dia todo, que a biblioteca é finita para baixo. Resta saber, agora, se ela é finita para cima e para os lados. Outra busca deverá ter início.

Suponha, no entanto, que depois de dez, vinte anos descendo pelas escadas da biblioteca, você não tenha chegado ao fim. Em que ponto da descida você pode-rá ter certeza absoluta de que a biblioteca é infinita naquela direção? Depois de 30 anos? De 50 anos? De 200 anos de busca?

A resposta é  simples  – você nunca poderá ter certeza de que ela é infinita. Aconteça o que acontecer, desça o quanto descer, você nunca poderá estar absoluta-mente seguro de que não poderia continu-ar descendo para sempre. Mas, se é assim, o que queremos dizer quando afirmamos que a biblioteca é “infinita para baixo”? Que tipo de coisa poderia nos indicar que ela é infinita? E, se nada puder nos indi-car que ela é infinita, o que poderia nos indicar que ela é finita, enquanto não che-garmos ao seu fim? Como saber se um dia chegaremos ao “fim” da biblioteca?

Sempre mais umAparentemente, há um sentido muito

simples contido na afirmação de que a biblioteca é “infinita para baixo”. Quem diz isso está afirmando que não impor-ta quantos andares já tivermos descido, sempre será possível descer mais um.

Mas, aqui, é preciso ter muito cuida-do. É possível que esse tipo de sentença não nos tenha tirado do lugar. De fato,

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alguém poderia nos perguntar o que nós queremos dizer com a palavra “sempre”.

Como é que podemos saber que uma coisa sempre irá acontecer? Como saber se será “sempre” possível descer mais um lance de escada? Nossa vida, afinal de contas, é finita. Como é que pode-mos afirmar algo a respeito de qualquer tempo futuro? E como sabemos que o tem po é infinito na direção do futuro? O tempo, como a escada da biblioteca, não poderia um dia acabar?

O problema, na verdade, é ainda mais complicado. Nossa vida é finita, e por isso não temos “tempo” de verificar se a biblioteca é infinita ou não. Suponha, no entanto, que nossa vida fosse infinita, e que o tempo também fosse. Suponha que tivéssemos todo o tempo que quisésse-mos para fazer a nossa investigação. Será que, se fôssemos imortais, conseguiría-mos algum dia decidir essa questão?

É fácil ver que nem assim a situação se altera muito. De nada adiantaria ficar-mos descendo as escadarias “para sem-pre”, pois a cada manhã a dúvida seria exatamente a mesma que tivemos na ma-nhã anterior: será que a descida um dia chegará ao fim?

Vamos refinar um pouco mais o proble-ma. Não apenas nossa vida é finita, como nossas energias também o são. Por mais que nos esforcemos, há sempre um limite para a velocidade com que conseguimos descer uma escada. Suponhamos que, sem me esforçar muito, eu consiga descer de um andar para o outro em 1 minuto. Se eu descer correndo, poderei chegar em 30 segundos. Mas haverá sempre um li-mite que eu não conseguirei ultrapassar. Muito bem. Suponhamos, então, que eu só tenha mais dois minutos de vida, mas que me sejam dados superpoderes para descer escadas. Não importa o quão rá-pido eu desça de um andar para o outro, meus novos poderes irão permitir que eu desça para o andar seguinte na metade do tempo gasto para descer o andar anterior.

É fácil ver que, se eu tiver mesmo esse poder de dobrar a minha velocidade a cada andar, poderei chegar a qualquer andar que eu quiser antes de se passarem dois minutos. (Tente calcular, por exem-plo, quanto tempo você levaria para des-cer 50, 500 ou 5 mil andares.) Quando chegasse o momento de minha morte, no segundo e último minuto de minha vida, bastaria eu verificar se houve um último andar que eu atingi. Se houve, é porque a biblioteca é “finita para baixo”. Se não houve, é porque ela não tem fim.

Fácil? Nem tanto. Pois suponha, ago-ra, que você vá morrer não depois de dois, mas sim depois de três minutos após o iní-cio da descida. Você continuará fazendo a mesma coisa: se levou um certo tempo para chegar num dos andares, levará a me-tade do tempo para chegar no próximo. Por mais andares que você tenha descido, você só irá parar se não houver mais esca-da – ou seja, se a biblioteca for finita.

Suponha, agora, que a biblioteca seja infinita. Ao final do segundo minuto, gra-ças a seus superpoderes, você já terá desci-do infinitos degraus. Parece fazer sentido? Tente, então, responder a uma pergunta muito simples: em que lugar você estará no terceiro e último minuto da sua vida?

©Ilu

stra

ção:

Tom

B

1 min 30 s 15 s 7,5 s

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finito

Se, durante os dois primeiros minutos, você desceu todos os infinitos degraus, acho que você concordará que, no tercei-ro minuto, já não haverá degrau nenhum para você descer. Você estará parado, por-tanto. Mas, em que degrau? No último? Se estiver parado no último degrau, você deve concordar que a escada não era infi-nita. Se ainda estiver descendo degraus,

concordará que ainda não havia (apesar de seus superpoderes) descido todos os de-graus. E agora? Como sair dessa situação? O infinito, como você pode ver, é mais complicado do que parece.

Esse exercício de raciocínio pode ser comparado com um problema que já era conhecido na Grécia Antiga: o argumen-to de Aquiles.

Aquiles, um veloz guerreiro da Grécia, é de-

safiado por uma tartaruga para uma corrida.

A tartaruga pede a Aquiles que lhe dê dez

metros de vantagem.

Aquiles corre a dez metros por segundo. A

tartaruga anda dez centímetros por segundo.

Após um segundo, Aquiles terá chegado

ao lugar de que a tartaruga partiu. A tartaruga,

porém, terá andado um centímetro.

Aquiles, portanto, ainda não alcançou a tar-

taruga. Para alcançá-la, deverá percorrer mais

um centímetro, o que fará numa fração minús-

cula de tempo. Imaginemos essa fração minús-

cula de tempo sendo exibida em câmera lenta,

para podermos acompanhar seus passos.

Nessa fração minúscula de tempo, porém,

a tartaruga terá percorrido uma distância tam-

bém minúscula. Ponhamos uma lupa sobre a

pista, para percebermos a distância que a tar-

taruga percorreu.

Aquiles, portanto, ainda não alcançou a

tartaruga. Para alcançá-la, terá que percorrer

aquela distância minúscula que observávamos

com uma lupa. Isso tomará uma fração mais

minúscula ainda de seu tempo.

Nessa fração ainda mais minúscula de

tempo, a tartaruga terá percorrido uma dis-

tância ainda mais minúscula que a distância

anterior.

Aquiles, portanto, ainda não terá alcançado

a tartaruga.

Quantas vezes Aquiles terá que chegar ao

lugar em que a tartaruga “estava”, antes de

alcançá-la? Qual foi o último lugar em que ele

“esteve” antes de ultrapassar a tartaruga?

Este raciocínio foi chamado de “argumento

de Aquiles” porque o guerreiro Aquiles, prota-

gonista da Ilíada de Homero, era conhecido por

sua grande velocidade.

AQUILES E A TARTARUGA

©Ilu

stra

ção:

Tom

B

A dificuldade oferecida por raciocínios envolvendo o infinito é notável. Vejamos um exemplo de como a noção foi desen-volvida filosoficamente na Grécia antiga. Este exemplo tem mais de dois mil anos, mas guarda enorme atualidade. Seu autor

é Zenão de Eleia (489-431 a.C.), que foi discípulo de Parmênides. Ao que parece, o filósofo Sócrates chegou a conhecê-lo, quando, ainda muito jovem, teve a opor-tunidade de ouvir Zenão por ocasião de uma visita que este fez a Atenas.

Filosofia grega e infinito

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finito

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finito

Já dizia o pré-socrático Protágoras (c. 490-420

a.C.): “O homem é a medida de todas as coisas”...

É partindo da relação de escala entre o homem,

o infimamente micro e o gigantescamente

macro que Cary e Michael Huang desenvolve-

ram um recurso interessantíssimo, disponível

na internet (http://scaleofuniverse.com – aces-

so em 15 de março de 2016). Com ele, pode-se

deslizar um botão como se fosse uma lente de

aumento, e explorar objetos e seres dos mais di-

versos tamanhos imagináveis (do que é menor

que um neutrino ao que é bem maior que o

Aglomerado Local de Galáxias).

A ESCALA DO UNIVERSO

Algumas imagens do projeto.

A animação da htwins é de Cary Huang.

Para Parmênides, mestre de Zenão, todo o ser é uno e imutável: as mudanças e a multiplicidade são ilusórias e não próprias do ser. Zenão defendia os prin-cípios de seu mestre Parmênides contra aqueles que sustentavam a existência da mudança e do movimento. A fim de de-monstrar a tese de que o movimento não passa de aparência, Zenão apresentou ar-gumentos que se tornaram conhecidos, na história da filosofia e da matemática, como os “paradoxos de Zenão”.

Existe um tipo de argumento que de-monstra de forma indireta aquilo que se quer provar: a demonstração é efetuada através da refutação do oposto do que se quer provar. (Por exemplo, se quero pro-var x, demonstro que o seu oposto, não-x, é absurdo.)

Os paradoxos de Zenão são considera-dos os primeiros exemplos de “refutação por absurdo” (reductio ad absurdum) na his-tória da filosofia. E o que Zenão demonstra ser absurdo? A “mudança” e, mais especial-mente, o “movimento”. Este é o contexto no qual a noção de infinito ganha relevância no âmbito do pensamento filosófico grego.

Vamos examinar apenas o mais famo-so dos quatro paradoxos de Zenão, o de

Aquiles e o da tartaruga (isto é, o segun-do). Quem o expõe é Aristóteles[+], pois os textos de Zenão de Eleia infelizmente se perderam. Eis o trecho de Aristóteles no qual ele relata o paradoxo da corrida entre Aquiles e a tartaruga:

“O segundo argumento é chamado ‘Aquiles’. Conforme esse argumento, o mais lento nunca será alcançado pelo mais veloz, porque é necessário que o perseguidor chegue antes ao ponto do qual saiu o perseguido, de modo que o mais lento, necessariamente, terá sem­pre alguma vantagem.” (Aristóteles, Física, VI, 9, 239b. Tradução nossa. Ed-ição de referência: Physica. W. D. Ross [ed.]. Oxford: Clarendon, 1950)

Não há como evitar a sensação de que Zenão está brincando conosco ou pensando de forma absurda. Mas não se esque ça de que a intenção dele é mostrar que o movimento e a mudança em geral são ilusórios, e que devemos adotar a posição de seu mestre Parmênides, para quem apenas o ser é realmente, e é único, uma coisa só; a multiplicidade de coisas em mudança não passa de aparência.

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Para Parmênides e Zenão, essa tese do ser imóvel e uno é compreensível no domínio do pensamento: é preciso pôr de lado as ilusões da multiplicidade e do mo-vimento. É com esse propósito que Zenão se propõe, por meio de argumentos por absurdo, a denunciar a impossibilidade de pensar o movimento de forma razoável.

O argumento parte de uma tese que não é difícil aceitar: “Para alcançar o cor-redor mais lento à sua frente, é necessário que o perseguidor antes chegue ao ponto do qual o perseguido saiu”. De fato, esta-mos todos dispostos a aceitar essa tese, já que é evidente aos nossos olhos que o corredor mais veloz, começando a correr bem atrás do corredor mais lento, passa pelos mesmos pontos que o outro, e o faz depois dele.

Então parece também necessário con-cluir que, para ultrapassar o mais lento, o mais veloz terá que passar pelo ponto em que o mais lento estava... mas não está mais, porque continua se movimentando, ainda que lentamente.

Muito bem, se isso for correto, então, para Zenão será inevitavelmente correto também que o corredor mais rápido esta-rá sempre na situação descrita e, portan-to, nunca alcançará o corredor mais lento. Essa conclusão contraria aquilo que perce-bemos – pois vemos que a ultrapassagem acontece. Mas o que importa a Zenão é que isso mostra como o movimento e a mudança percebidos por nós não podem ser plenamente compreendidos pelo pen-samento, que tem a capacidade de com-preender o ser, a unidade e a imutabili-dade. Se assim for, deveremos concluir, segundo Zenão, que o movimento não possui realidade plena, uma vez que esta só é compreensível pelo pensamento.

Assim, podemos até entender as in-tenções de Zenão. Mas isso não torna seu argumento mais convincente e me-nos estranho, pelo simples fato de que vemos que o corredor mais rápido, em al-gum momento, faz a ultrapassagem. Essa

evidência é muito mais forte para nós do que qualquer artifício argumentativo. O argumento, por isso, é chamado de “pa-radoxo”, uma forma de apontar para sua fraqueza e, mais do que isso, sua não-va-lidade e falsidade.

Contudo, antes de acusar Zenão de ser louco, note que, partindo de uma tese inicial com a qual podemos concor-dar, seu argumento explora uma outra, que está implícita no raciocínio e o tor-na possível: a tese da infinita divisibili­dade do espaço.

Vejo que sempre há um determinado intervalo entre o ponto do qual saiu o corredor mais lento e o ponto alcança-do pelo corredor mais rápido, que che-ga depois ao ponto do qual o mais lento já partiu. De modo que – eis a conclu-são de Zenão – o perseguidor nunca o alcançará.

Ora, para que se possa concluir que ele “nunca o alcançará”, no entanto, é preciso dizer também que toda distân-cia existente entre eles, que vai dimi-nuindo com o passar do tempo, pode ser ainda dividida novamente, sem cessar. A cada instante a distância entre eles diminui, mas nunca será completamen-te suprimida, porque sempre pode ser novamente dividida, mesmo que eu não mais seja capaz de perceber.

A desqualificação do argumento de Zenão envolve, então, a defesa de uma posição contrária a essa divisibilidade infinita. Se concordamos que, no mo-mento em que ambos os corredores ini-ciam sua corrida, a distância entre eles é finita, então, estando em diferentes velocidades, podemos até mesmo calcu-lar e prever o momento em que aconte-cerá a ultrapassagem. A menos que – as-sim quer Zenão – essa distância seja, em certo sentido, infinita, pelo fato de que sempre podemos dividir novamente cada intervalo que separa os dois corredores, isso infinitamente. Mas isso não pode ser aceito. Se a ultrapassagem acontece,

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mostra-se que não é possível dividir infi-nitamente uma magnitude finita.

Parece ser essa a maneira como Aris-tóteles denuncia o absurdo do argumento de Zenão, pelo que lemos na sequência de seu texto: “A afirmação de que aquilo que está na frente não é ultrapassado é falsa. De fato, quando está na frente não é ultra-passado; contudo, ele será ultrapassado se for aceito que se percorre uma distân-cia finita” (Aristóteles, Física, VI, 9, 239b. Tradução nossa).

A solução parece simples e, em certo sentido, é mesmo, já que a seu favor está a evidência dos fatos. Por que, então, falar disso? Por que perder tempo com um mero paradoxo, que não se sustenta diante de nossos olhos?

A resposta a essa pergunta nos leva-ria a um estudo profundo das análises que Aristóteles, em sua Física, faz sobre o conceito de infinito, particularmente no livro III dessa obra. Trata-se de pági-nas filosoficamente profundas e comple-xas, nas quais o filósofo está interessado em mostrar os problemas que surgem quando se investiga a natureza tomando o “infinito” como um possível princípio explicativo.

A seguinte passagem expressa bem o tipo de objeção que Aristóteles tem contra essa pretensão: “Há certamente uma inves-tigação mais ampla sobre isso, sendo pos-sível o infinito nas matemáticas, na esfera do pensamento e no que não possui magni-tude. Mas neste estudo, investigamos so-bre os objetos dos sentidos, se há ou não corpo infinito em extensão” (204a-204b).

Não se deve misturar o “infinito” relati-vo às matemáticas, um infinito conceitual, que pode ser pensado, com um “infinito” real. Este, para Aristóteles, não deve ser tomado como princípio de explicação da realidade, porque, a bem dizer, não existe o “Infinito”, como uma entidade dotada de realidade própria. Conforme Aristóte-les, nada que existe pode, em sentido ri-goroso, “ser infinito”.

Aristóteles defende essa afirmação por-que entende que tudo que tem realidade tem determinações, portanto, limites e fins. Um homem qualquer, por exemplo, é “um”. Isso o limita e determina. Ele pos-sui várias outras determinações: é animal, racional, tem um aspecto, uma altura, um peso etc. Tudo isso impede que se fale dele como “infinito” ou como originado de algo “infinito”. E o mesmo vale para todo ser.

Cabe lembrar que o termo grego que se

traduz por “infinito”, ápeiron, é dotado de sig-

nificado amplo. Na língua grega, a vogal “a” (α:

“alpha”), colocada no início de uma palavra,

muitas vezes expressa negação ou privação.

O português incorporou esse significado em

termos como “amoral” e “atemporal”. Ápeiron

significa ausência ou privação de péras, termo

que quer dizer “limite”, “fim”. O latim diz infinitus,

porque o prefixo “in” com frequência expressa

ausência ou privação – pense, no português, em

palavras como “incrível”, “inaceitável” ou “inde-

cente”. Finis, em latim, significa “fim” ou “limite”.

Na origem, então, “infinito” expressa ausência

de fim ou limite. Mas essa ideia também podia

ser compreendida no sentido da ausência de

determinação, da “indeterminação”, porque

“determinar” algo é dar-lhe um limite ou fim –

pense na ideia de “determinar o tamanho de

um terreno”, isto é, estabelecer seus “limites”. E

observe também que determinar os limites de

algo é demarcar seu “fim” no sentido de “definir”

esse algo. Uma “determinação” sobre algo per-

mite “defini-lo”. Haverá, assim, uma associação

importante entre “infinito” e “indefinível”, que

terá consequências importantes.

O SIGNIFICADO ETIMOLÓGICO DE “INFINITO”

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Percorrendo e traçandoDesenvolvimento individual por escrito

Dois lendários guerreiros gregos, Aquiles e Ájax, vão apostar uma corrida. Ájax é co-nhecido como “o corredor”, já Aquiles rece-beu o apelido de “pés-velozes”... Também, pudera: é o homem mais rápido da Grécia antiga. Suponhamos que Aquiles corra a uma velocidade constante de 20 m/s – o dobro da velocidade de Ájax (10 m/s). Por causa disso, Ájax recebe uma “colher de chá” e pode ini-ciar a corrida 20 metros à frente de Aquiles.

• Seguindo o esquema do argumento de Zenão de Eleia, procure fazer o seguinte grá-fico. Comece desenhando um plano coorde-nado cartesiano. A abscissa representará “eta-pas” da corrida (num sentido que examinare-mos abaixo); a ordenada representará a dis-tância que, a cada uma dessas etapas, separa Aquiles de seu oponente. Imagine que em cada “etapa” Ájax deixa cair uma pedrinha no chão, no exato lugar onde se encontra. Você vai marcar, no gráfico, a distância que naquele momento separa Aquiles daquela pedrinha.

Ájax corre olhando para trás, prestando atenção em seu oponente. Quando Aquiles alcança a primeira pedrinha, Ájax, que já está um pouco mais adiante, deixa cair a segunda pedrinha no chão. Quando Aquiles chega nesse lugar, Ájax deixa cair a terceira pedrinha, e assim por diante. Assim, cada segmento de nossa abscissa representa uma etapa, ou seja, uma pedrinha que Ájax deixa cair para marcar a sua posição atual. Aqui está o começo de nosso gráfico:

Distância entre os corredores (m)

20

15

10

5

0 Etapas (pedrinhas)1 2 3 4 5 6 7 8

No início da corrida (p0), Ájax tem 20 m de vantagem sobre Aquiles. Então marcamos o primeiro ponto do gráfico com x=0 (etapa zero: o número de pedrinhas no chão des-de o início da corrida) e y=20 (a distância, em metros, que naquele mesmo instante sepa-ra Aquiles de Ájax).

Na etapa seguinte p1 – isto é, tendo Aquiles percorrido aqueles primeiros 20 m – Ájax, que nesse meio tempo avançou 10 m, deixa cair a primeira pedrinha. Agora, a distância que separa Aquiles de Ájax é de 10 metros. Então marcamos, no nosso gráfico: x=1 (uma pedrinha, ou etapa 1 da corrida), y=10 (a dis-tância, em metros, entre a posição atual de Aquiles e a posição atual de Ájax).

• Após preencher algumas etapas seguin-do esse procedimento, procure responder: Que tipo de linha os pontos desse gráfico irão esboçar? Essa linha irá tocar na abscissa em alguma etapa? Justifique a sua resposta com um breve comentário por escrito.

Dica: a pergunta aqui não é pela represen-tação gráfica da velocidade de cada um dos corredores, nem da distância total percorrida por eles desde a largada. O que buscamos é um gráfico da distância que separa os com-petidores a cada “etapa” da corrida, ou seja, a cada pedrinha que cai no chão. Uma boa ideia é iniciar a atividade calculando as distâncias percorridas por Aquiles e Ájax a cada etapa, em seguida a diferença entre uma e outra, e então anotar os resultados em uma tabela.

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“Patrística” designa o conjunto das refle-

xões efetuadas pelos “Pais da Igreja”, isto é,

por aqueles que, no início de nossa era até

aproximadamente o século V, deram uma

forma organizada e doutrinal aos dogmas

do cristianismo primitivo. “Escolástica”, por

sua vez, designa o pensamento ligado aos

ensinamentos cristãos transmitidos pelas

universidades medievais a partir do século

XI até o século XV. Embora seja muito rico,

englobando diversas correntes, o pensa-

mento escolástico possui por característica

comum a tentativa de articular a filosofia

helênica, especialmente a filosofia de Aris-

tóteles, com os princípios da religião cristã.

A partir do século XV, a Escolástica tornou-

-se cada vez alvo de críticas, primeiro, pelos

humanistas do Renascimento, em seguida,

pelos reformadores do Cristianismo, a co-

meçar por Martinho Lutero (1483-1546).

PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

O infinito divino

Para um dos mais importantes filósofos da Antiguidade, Aristóteles[+], o infinito a rigor não existe, ao menos não como uma entidade dotada de realidade própria. Este é um ponto no qual Aristóteles faz coro com quase todos os filósofos da Antigui-dade grega. Com efeito, de modo geral po-de-se dizer que a infinitude soa à mentali-dade grega como algo irracional. Não por acaso, o ideal estético e moral dos gregos é ligado à ordem, à medida e à proporção.

Tudo mudará de figura a partir do mo-mento em que o Ocidente se tornar cris-tão. Por uma razão que você já pode adi-vinhar: para os teólogos cristãos, Deus é infinito. Partindo daí, o desenvolvimento da especulação filosófica ligada ao cristia-nismo (o que inclui, por um longo período, o conjunto da reflexão filosófica ociden-tal) tomou uma direção inédita em rela-ção à Antiguidade grega – uma vez que o infinito passou a ser considerado como uma entida de dotada de realidade própria, a realidade suprema, divina. Iniciou-se, en-tão, um debate que se estende por mais de mil anos, sobre a natureza de Deus e sua in-finitude. Um debate que não termina com o fim da Escolástica, mas segue adiante, envolvendo autores da Filosofia Moderna, como René Descartes[+] (1596-1650), Nico-las Malebranche (1638-1715) e Gottfried W. Leibniz (1646-1716), entre outros.

O infinito no Antigo TestamentoComo compreender as mudan-

ças por que passou a ideia de infinito, em consequência da cristianização do Ocidente ? O cristianismo é uma religião que se funda na aceitação da verdade das Escrituras. O que, então, as Escritu-ras dizem sobre o infinito?

Uma passagem do Antigo Testamento foi repetidamente apontada pelos pensa-dores cristãos como base para a afirma-ção da infinidade de Deus. Vejamos essa

passagem e, em seguida, assinalemos suas consequências. O texto encontra-se no livro do Êxodo, que narra o momento em que Moisés é interpelado por Deus. Este lhe ordena retirar do Egito o povo de Israel . Moisés, então, indaga o seguinte:

Exemplo de uma representação do mundo

finito, muito difusa na Idade Média

Uni

vers

um -

C. F

lam

mar

ion,

xilo

grav

ura,

Par

is 1

888,

Co

lori

zada

: Hei

kenw

aeld

er H

ugo,

Vie

na 1

998.

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Na Unidade Razão e paixão (módulo “His-

tória, razão e paixões”), examina-se como, no

curso do século XVIII, autores como Friedrich

Schiller (1759-1805) sublinharam os aspectos

que, no entender deles, separam a Grécia an-

tiga da época moderna. Conforme tal interpre-

tação, os gregos possuíam uma atitude diante

da natureza muito diversa daquela assumida

por nós, modernos.

A atitude grega, escreve Schiller, é “ingê-

nua”, e não “sentimental” – querendo dizer com

isso que os gregos antigos se sentiam em união

com a natureza, e não em oposição a ela. Esta

ideia de união entre humanidade e natureza

se refletia também na convicção da existência

de uma harmonia entre a razão e as paixões. E

essa harmonia, por sua vez, dependia de os hu-

manos serem capazes de encontrar uma medi-

da entre a razão e as paixões e, além dela, uma

medida entre a humanidade e o cosmos em

que ela se encontra. Essa mesma ideia, aliás,

está presente na noção antiga de “cosmos”,

compreendido como “beleza” e “ordem”. Veja, a

este respeito, a Unidade Realidade e aparên-cia, módulo “As aparências enganam?”.

Com isso, compreendemos melhor o por-

quê de os gregos entenderem a “perfeição”

como algo dispondo de limites. Afinal, sem

esses limites, como poderíamos identificar a

medida das coisas e do todo? Esse privilégio da

ordem, do equilíbrio, da medida e da finitude

se exprime igualmente nas concepções morais,

políticas e estéticas da Antiguidade.

Para você ter uma ideia do contraste entre

essa atitude e a dos modernos, imagine a rup-

tura representada pela ideia judaico-cristã de

que a perfeição e infinitude são ambas carac-

terísticas da divindade: a perfeição de Deus,

conforme o cristianismo, passa pelo fato de

que ele é infinito. E, se ele é infinito, em que

medida nós, seres finitos, podemos ter algo

em comum com ele?

A PERFEIÇÃO POSSUI LIMITES OU É INFINITA?

“Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? O que lhes direi?

Respondeu Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.” (“Êxodo”, 3, 13-14, in: A Bíblia Sagrada. Tradução de João F. de Al-meida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1986).

Vejamos como esse famoso texto foi interpretado pela maioria dos pensado-res cristãos. Ao instruir Moisés a dizer aos filhos de Israel que EU SOU o enviou a eles, Deus, conforme a interpretação cristã (e também certas correntes de pen-samento judaico), quis dizer que o seu nome é o ser. E isso significa que o ser de

Deus é o ser em puro ato, aquilo que ex-clui de si todo não-ser, toda ausência de ser. Ora, isso precisamente não equivale a dizer que o ser de Deus é... infinito?

Se não há nenhum ser fora de Deus, se Deus contém em si, como ser em ato, todo o ser, conclui-se daí que Deus é infinito.

Totalidade do serCom base nisso, já podemos arriscar

uma explicação da novidade trazida pelo advento do cristianismo para a reflexão em torno do infinito. No entender de Aristóteles, o infinito é apenas potencial ou virtual, não real. E, se é assim, o infi-nito então se define como aquilo fora do que sempre se encontra algo.

Posso não chegar ao término da série dos números naturais, por exemplo, e concluir daí que ela é “infinita”. Mas isso, aos olhos de Aristóteles e de quase todos

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os gregos da Antiguidade (Zenão de Eleia é uma exceção), quer dizer apenas que há sempre um número superior além da-quele em que me detive.

Muito diferente disso é o que resulta da ideia de que a infinitude é uma mar-

ca característica de Deus, compreendido como “totalidade do ser”. Neste caso, o infinito é aquilo fora do qual não há nada. Ele engloba tudo. Percebe a dife-rença? Não bastasse isso, a entrada em cena do Deus judaico-cristão na história

A historicidade das questões filosóficasPesquisa e desenvolvimento individual por escrito

A noção de infinito surgiu no pensa-mento filosófico grego como uma questão metafísica, envolvendo a realidade ou irre-alidade do movimento. Esse quadro, como estamos assinalando agora, altera-se com a grande importância que irá adquirir a re-ligião cristã no Ocidente em nossa era. O infinito passa a ser pensado tanto por re-ferência à infinidade de Deus, quanto por referência à finitude do ser humano.

Ora, essas alterações de abordagem não constituem privilégio do par discu-tido nesta Unidade. Você certamente poderá perceber, seguindo os demais percursos propostos nesse livro, que é comum verificarmos mudanças nos pro-blemas e conceitos filosóficos conforme se sucedem as épocas.

Um aspecto essencial do estudo da filosofia reside em levarmos a sério a sua historicidade. Isso significa que, para compreender os problemas levantados pela reflexão filosófica, convém ter em mente que ela é fruto de indivíduos que vivem em um determinado período da história e em um determinado espaço geográfico – em resumo, que vivem em um contexto cultural particular. Este con-texto em que se desenvolve a reflexão é um elemento relevante para os resul-tados, sempre díspares, a que chega a reflexão humana. Esta disparidade não é problema. Ao contrário: tomar contato

com ela é uma experiência única e muito formadora.

Tentemos, então, verificar até que ponto diferentes contextos produzem soluções distintas para as mesmas ques-tões ou problemas. Estamos às voltas com um caso assim: com a cristianização do Ocidente, a reflexão sobre o infinito tornou-se em boa medida o exame e a discussão da infinitude enquanto carac-terística da divindade.

• Utilizando a biblioteca da escola e a literatura disponível na internet, empre-enda uma pesquisa inicial sobre histó-ria das religiões, sempre tendo em vista duas questões determinadas. Primei-ro, procure identificar quais religiões se edificam com base na ideia de um Deus único e pessoal. Segundo, examine se tal divindade se caracteriza ou não pela sua infinitude. Como entradas possíveis para o trabalho, pesquise sobre as religiões do Oriente, tais como o confucionismo, o taoísmo, o islamismo, o budismo. Ou, caso prefira, sobre a religião da Antigui-dade greco-romana (geralmente deno-minada “mitologia grega” ou “greco-ro-mana”) ou sobre as tradições religiosas dos ameríndios. Com base no material pesquisado, organize as informações sob a forma de uma redação, buscando inves-tigar o seguinte ponto: todas as religiões monoteístas concebem a divindade como sendo infinita, como faz o cristianismo? De que modo o infinito é compreendido no seio de uma religião politeísta?

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do pensamento ocidental trouxe para o primeiro plano do debate filosófico ou-tra novidade muito significativa. Como era mesmo de se esperar, a nova maneira de pensar a infinitude mudou também a compreensão da finitude.

Se os gregos acreditavam que havia uma medida comum entre a humanidade e o universo, entre a razão e a natureza, isso tinha por consequência a convicção, muito difundida entre eles, de que a razão humana era capaz de conhecer as coisas ao nosso redor, a começar por nós mesmos. Nossas paixões, a vida política, a nature-za, tudo isso era matéria de uma reflexão marcada pela confiança em nosso poder de compreensão, pela confiança no lógos, que admite ser traduzido como “razão”, “argu-mentação”, “discurso”. (Veja, sobre isso, a etimologia do termo “lógos”, na Unidade Dúvida e certeza, módulo “A dúvida, base da investigação”.)

Você pode então imaginar o que acontece se, como ocorreu a partir da cristianização do Ocidente, o que há de mais perfeito (isto é: Deus) é concebido como infinito – isto é, como algo que ultrapassa a razão humana, por definição finita.

Era mesmo inevitável que os pensa-dores cristãos se perguntassem: de que maneira, afinal, o infinito pode ser com-preendido pelo que é finito? Quando falamos da finitude, estamos falando de nós mesmos. O ser humano é marcado pela finitude. Veja, então, a revolução que o advento do cristianismo representou para o par de conceitos desta Unidade. Ao mesmo tempo em que difundiu a ideia de que o infinito existe como realidade posi-tiva, já que Deus é infinito, o cristianismo também trouxe para o primeiro plano da reflexão teológica e filosófica a questão de determinar como podemos conhecer esta infinitude, visto que somos finitos. Com isso, o debate sobre o infinito viu-se ligado a uma controvérsia mais ampla, acerca da nossa capacidade de compreen-der a essência e a natureza de Deus. Em

resumo, o problema do infinito terminou dando grande relevo ao debate sobre as relações entre a fé e a razão.

Para que você possa medir a magni-tude dessa mudança, façamos recurso, mais uma vez, à comparação com a An-tiguidade. A filosofia grega havia tomado a via da razão como instrumento privile-giado para o exercício filosófico. Mesmo no caso de Platão[+], que repetidamente lança mão de mitos e alegorias, os ele-mentos poéticos e mitológicos se veem subordinados a um tipo de investigação que não supõe a aceitação de dogmas ou verdades reveladas.

Já o cristianismo é uma religião e, como tal, se baseia na fé de seus adeptos, que partem da convicção de que as Escri-turas contêm uma verdade inquestioná-vel. Essa verdade não pode ser contradita pela razão, nem precisa – embora às vezes possa – ser demonstrada por ela. A título de “verdade revelada”, ela é conhecida por uma via independente da razão.

Tomás de Aquino (1225-1274), também

conhecido como Doctor Angelicus, é con-

siderado um dos principais expoentes do

pensamento cristão.

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Vimos, há pouco, a passagem do Êxo-do, no Antigo Testamento, sobre a qual se basearam muitos pensadores cristãos, a fim de assinalar a infinitude de Deus. Há um outro passo da Escritura que foi muito relido por todos aqueles que refle-tiram sobre as relações entre a fé e a razão como vias diferentes para apoiar a refle-xão religiosa cristã. Trata-se de uma sen-tença do Livro de Isaías, também ele no Antigo Testamento: “Mas se não crerdes / não subsistireis” (“Isaías”, 7,9; tradução de Frederico Dattler. Bíblia, mensagem de Deus. São Paulo: Loyola, 1994, p. 761).

Essa sentença foi in-terpretada já pelos pri-meiros padres da Igreja, denominados os “padres gregos”, como significan-do que a nossa capacida-de de compreensão dos temas que cercam a cria-ção do universo, a natu-reza da alma e a existên-cia de Deus dependem da fé, muito mais do que da razão e do entendimen-to. A sentença de Isaías foi interpretada, por-tanto, nesses termos: “se não crerdes, não compreendereis”.

Como se vê, a fé passou a ser considera-da condição da compreensão das questões mais decisivas aos seres humanos, como seu lugar no universo, sua natureza, o que é capaz de conhecer e o que deveria fazer. Abandonada a si mesma, a razão não seria capaz de atingir essas verdades mais pro-fundas e decisivas. Isso não significa que o pensamento cristão tenha concebido a razão como sua adversária. Desde muito cedo, vários pensadores cristãos busca-ram apoiar-se na razão para esclarecer, co-mentar e confirmar a revelação. Mas nem mesmo os que mais se aprofundaram nes-sa via questionaram que as verdades acer-ca da alma, da criação do mundo e de Deus constituíssem, antes de mais nada, maté-

ria de fé. A razão poderia, na melhor das hipóteses, esclarecer e promover a verda-de das Escrituras.

Ao lado dessa vertente, e que surgiu ao mesmo tempo que ela, houve uma ou-tra maneira de interpretar a afirmação de Isaías. Pensadores igualmente ligados ao cristianismo levantaram suspeitas mais fortes quanto ao poder de compreensão das verdades da religião por parte de nos-so entendimento. Conforme essa outra vertente, nosso entendimento e nossa razão natural seriam incapazes de forne-cer explicação para os temas fundamen-

tais da religião cristã. A primeira interpreta-

ção colaborou para o apa-recimento de autores de orientação “racionalista”, como é o caso de Ansel-mo (1033-1109), Tomás de Aquino (1225-1274) e Duns Scot (1266-1308). A segunda foi representa-da por pensadores como Agostinho[+] (354-430) e, de uma forma mais radi-cal, pelos defensores da mística cristã.

É interessante no-tar que o debate que reuniu essas duas vertentes permaneceu ativo até mesmo no seio da Filosofia Moderna, no século XVII. É o que atesta a comparação en-tre dois grandes pensadores do período, René Descartes[+] (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662). Se você consultar a carta que Descartes escreveu aos te-ólogos da Universidade de Sorbonne, na França, a fim de conseguir seu apoio para publicar suas Meditações metafísi­cas, identificará facilmente o elemento racionalista que anima esse autor. Logo de início, Descartes afirma que cabe à fi-losofia, mais do que à teologia, demons-trar a existência de Deus e a imortalidade da alma. Conforme Descartes, portanto, esses dois dogmas essenciais ao cristia-

Desde muito cedo, vários pensadores cristãos buscaram apoiar-se na razão

para esclarecer, comentar e confirmar a revelação.

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nismo podem e devem ser conhecidos pela “razão natural”.

Blaise Pascal, de seu lado, irá opor-se completamente a Descartes. Segundo Pascal, seria uma enorme insensatez pre-tender conhecer pela razão os mistérios que cercam a criação do mundo por Deus e, mais ainda, a própria infinitude de Deus. Há uma passagem, em seus Pensa­mentos, muito instrutiva a esse respeito, na qual, com grande ironia, Pascal ques-tiona a capacidade de os filósofos, ser-vindo-se apenas de sua razão, chegarem

a alguma descoberta relevante: “O maior filósofo do mundo em cima de uma tá-bua mais larga do que o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o convença de que está em segurança, a sua imaginação preva-lecerá” (Pascal. Pensamentos. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13). Ora, conclui Pascal, se a razão humana mal conse gue fazer frente à nossa imaginação, como poderia ela pretender descortinar os princípios da criação e de Deus?

Como o finito pode compreender o infinito?Pesquisa em grupo

• Reúna-se em equipe de três a cin-co pessoas e, juntos, imaginem que vocês estivessem em uma universidade europeia do século XIV, e que fossem responsáveis pelos debates teológicos e filosóficos acerca da infinitude de Deus. Investiguem a seguinte questão: a essên-cia de Deus é ou não inatingível ao enten-dimento e à razão humanas? Procurem formular argumentos tanto para uma, como para a outra posição. Revejam a passagem do Êxodo, que citamos há pou-co. Eis, em termos sucintos, a dificuldade que ela parece impor a esta questão: se o nome de Deus é o ser total, se ele se faz

chamar pelo “EU SOU”, então como nós, que dispomos de nomes e conceitos de seres determinados, poderíamos ser ca-pazes de nomeá-lo?

• Em seguida, consulte, juntamen-te com os demais membros da equipe, alguns dicionários, a fim de identificar como eles definem o infinito. Consul-te também, se possível, o termo equiva-lente em dicionários em outras línguas. Após a consulta, busquem resolver o seguinte desafio: vocês seriam capazes de fornecer, ou ao menos encontrar em alguma fonte consultada, uma caracteri-zação positiva do infinito, isto é, que não se contente em dizer que ele equivale ao que “não é finito”?

Quem é finito não pode conceber o sem-fim

Sendo o infinito algo de tão difícil apreensão, como será que um pensador empirista – alguém para quem tudo o que concebemos provém das sensações – pode-ria admitir que o infinito esteja ao alcance de nossas capacidades de conhecimento, se tudo o que nossos sentidos nos dão a conhe-cer possui limites no espaço ou no tempo?

Dá-nos um exemplo desse raciocínio Thomas Hobbes[+] (1588-1679), filóso-fo que também é discutido na Unidade Ordem e caos, na ocasião em que é exa-minada a instituição da ordem política nas sociedades humanas. Assim como naquela Unidade, aqui também tomare-mos um trecho da obra mais conhe cida de

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Hobbes, o Leviatã (1651). Vamos extrair dela uma passagem inicial, inscrita no trecho em que Hobbes defende que todas as nossas concepções têm por origem al-guma sensação. É isso o que faz com que Hobbes seja considerado um partidário do empirismo, isto é, da doutrina confor-me a qual todas as representações e ideias que possuímos provêm da experiência.

Leiamos o trecho no qual Hobbes ex-põe as implicações que seu posicionamen-to filosófico possui em relação ao infinito:

“Tudo que imaginamos é finito. Portanto, não existe nenhuma ideia, ou concepção de algo que denomina­mos infinito. Nenhum homem pode ter no seu espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita, ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas da nossa própria inca­pacidade. Portanto, o nome de Deus é usado não para fazer concebê­lo (pois ele é incompreensível e a sua gran­deza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos honrar. Tam­bém porque tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos, de uma vez só, ou por partes, pois o homem não pode ter nenhum pensam­ento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação. Nenhum homem, portanto, pode conceber uma coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, e dotada de uma de­terminada magnitude, e susceptível de ser dividida em partes.” (Hobbes, Leviatã, Parte I, “Do Homem”, Cap. 3, “Da sequência ou cadeia de imagina-ções”. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria B. Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 28-29)

Pois bem: com base em que razões Hobbes alega que não podemos conce-ber, sob hipótese alguma, o infinito? Veja a primeira sentença do texto: “Tudo que imaginamos é finito”. Ora, apenas com base nela não é possível concluir que seja impossível conceber o infinito, como faz Hobbes, a não ser que acrescentemos a ela um outro elemento, que, no tre-cho em debate, aparece um pouco mais à frente. É preciso acrescentar que “tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos” para, partindo da afirma-ção inicial de que tudo o que imaginamos é finito, extrair, então, a conclusão de que não podemos conceber o infinito.

A razão disso é simples. Suponha que possuíssemos ideias ou noções que não vêm dos sentidos; neste caso, mesmo ad-mitindo que tudo que imaginamos seja finito, poderíamos ainda assim alegar que concebemos o infinito por outra via, diversa da imaginação (o intelecto puro, por exemplo). Mas, como o conjunto do trecho que estamos discutindo deixa claro, Hobbes não admite que possamos

Nesta bela cena de um Apocalipse (séc. XI),

encontramos uma representação pictórica

da revelação: o anjo soando a trombeta.

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acessar ideias ou concebê-las sem que, antes, a realidade que elas designam te-nha sido percebida pelos sentidos. Ou, nos termos do trecho sob exame: “o ho-mem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação”.

Aqui entra em cena o empirismo de Hobbes: só representamos aquilo que foi, de início, percebido pelos sentidos, aquilo que foi primeiro matéria para a imagina-ção. Ora, se admitirmos isso, admitiremos sem dificuldades a afirmação inicial de que não podemos formar ideia do infinito.

Afinal, como nos recorda Hobbes mais para o fim do trecho em debate, toda coisa pensada por nós, na medida em que é algo sujeito à sensação, tem de ser uma coisa determinada. A coisa representada pelo pensamento, assim, é sempre “dotada de uma determinada magnitude”, “suscetí-vel de ser dividida em partes” etc. Logo, jamais concebemos algo indeterminado e sem limites, como é o caso do infinito. Conclusão de Hobbes: quando falamos que algo é “infinito”, com isso não quali-ficamos a coisa em pauta, mas, sim, nossa própria incapacidade de compreen dê-la. O infinito, conclui Hobbes, situa-se além de nossa compreensão.

Mas isso significa que Hobbes rejeita completamente a existência do infinito, ou a existência de um ser que disponha de qualidades infinitas? Note que, no trecho citado, Hobbes assimila sem rodeios a in-finidade a Deus. Nisso, Hobbes agiu como todos os pensadores de seu tempo: a questão do infinito, após a cristianização do Ocidente, passou a concernir direta-mente ao ser de Deus. Pois, como vimos há pouco, Deus foi tradicionalmente ca-racterizado como dispondo de predicados infinitos (“bondade infinita”, “poder in-finito”, “sabedoria infinita”, etc.). Entre-tanto, o trecho que estamos discutindo faria de Hobbes um pensador ateu, que nega a existência de Deus, associado que está à representação do infinito?

Desafiamos você a identificar, na pas-sagem citada, uma prova que nos permi-ta afirmar que Hobbes nega a existência divina. Reexamine o texto uma última vez. O que nele é afirmado é que não podemos conceber o infinito – e nem conceber, por isso, Deus. Mas uma coisa é afirmar que um ser é inconcebível; ou-tra, que ele não existe...

No trecho citado, Hobbes afirma que o nome de Deus é usado “para que o possa-mos honrar”. Isto é, Hobbes aceita e mes-mo defende que honremos a Deus, embo-ra não possamos compreendê-lo. E, uma vez que Deus e a infinidade estão assimi-lados entre si no argumento de Hobbes, o mesmo, segue-se daí, vale para o infinito: não podemos de fato compreendê-lo, em-bora possamos atribuí-lo como predicado da sabedoria ou bondade de Deus.

Talvez possa parecer estranha a você a ideia de que possamos – e, conforme Hobbes, até mesmo devamos – honrar aquilo que ultrapassa nossa compreen-são. Mas essa não é uma convicção iso-lada. Hobbes alinha-se a muitos outros pensadores que defendem, eles também, que a existência e o significado da infini-tude não dependem de nossa capacidade de compreendê-la. Essa tese de Hobbes, aliás, se inscreve em uma vertente que remonta aos primeiros séculos de nossa era. Isso é especialmente o caso ali onde a infinitude se encontra assimilada à ideia cristã da divindade.

Uma postura semelhante é encontra-da nos textos de outro célebre pensador empirista, o escocês David Hume. O tre-cho abaixo é extraído de Investigação so­bre o entendimento humano, e nele Hume aceita claramente a tese empirista de que nossas representações têm por ori-gem as impressões sensíveis:

“[...] quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais com­plexos ou grandiosos que sejam, sem­pre verificamos que eles se decompõem

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em ideias simples copiadas de alguma sensação ou sentimento precedente. Mesmo aquelas ideias que, à primeira vista, parecem as mais afastadas des­sa origem revelam­se, após um exame mais detido, dela derivadas. A ideia de Deus, no sentido de um Ser infini­tamente inteligente, sábio e bondoso, surge da reflexão sobre as operações de nossa própria mente e do aumento ilimitado dessas qualidades de bonda­de e sabedoria. Podemos prosseguir o quanto quisermos nessa investigação, e para cada ideia que examinarmos sempre descobriremos que ela é co­

piada de uma impressão semelhante. Aqueles que desejarem declarar que essa proposição não é universalmente verdadeira, ou que admite exceções, só dispõem de um método para refutá­­la, que de res to é simples: apresentar alguma ideia que, em sua opinião, não derive dessa fonte. Caberá a nós, en­tão, se quisermos sustentar nossa dou­trina, exibir a impressão, isto é, a per­cepção vívida, que a ela corresponde.” (Hume, Investigações sobre o entendi-mento humano e sobre os princípios da moral. Tradução: José O. Marques. São Paulo: Edunesp, 2004, p. 36)

HumeDavid Hume (1711-1776)

nasceu em Edimburgo, na

Escócia. Tornou-se órfão de

pai logo criança, com ape-

nas dois anos; com doze, foi

enviado pela família para

a Universidade de Edim-

burgo, a fim de preparar-

-se para os estudos jurídi-

cos. Mas Hume de partida

tomou gosto pela literatu-

ra clássica e pela filosofia,

assim como pela matemáti-

ca e a história.

Com apenas vinte e oito anos, Hume pu-

blica sua obra mais importante, o Tratado

sobre a natureza humana (1739-1740). Decep-

ção: o livro passou totalmente despercebido

do público. Somente em 1742, com a publica-

ção de seus Ensaios, Hume começa a tornar-

-se familiar do público leitor. Tenta por duas

vezes ingressar como professor na universi-

dade, mas fracassa. Em 1748, publica a Inves-

tigação sobre o entendimento humano – obra

que retoma, de forma resumida, teses do

Tratado da natureza humana. Hume se torna-

rá célebre como escritor, porém, apenas com

a publicação de sua História da Inglaterra, em

seis volumes (a partir de 1754).

As obras principais de

Hume possuem excelentes

traduções para o português:

D. Hume, Tratado da na-

tureza humana. Tradução: D.

Danowski. São Paulo: Editora

da Unesp, 2009.

D. Hume, Investigações

sobre o entendimento humano

e sobre os princípios da moral.

Tradução: José O. de A. Mar-

ques. São Paulo: Editora da

Unesp, 2004.

D. Hume, A arte de escrever

ensaio e outros ensaios. Tradução: Márcio Suzuki

e Pedro Pimenta. São Paulo: Iluminuras, 2011.

Como introdução à obra de Hume, suge-

rimos:

• Leonardo Sartori Porto, Hume (Coleção

Passo a Passo). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 2006.

• Fernão de Oliveira Salles, “Hume e a cau-

salidade”, in: V. Figueiredo (org.), Filósofos na

sala de aula – vol. 3. São Paulo: Berlendis & Ver-

tecchia, 2009, pp. 86-126.

Para um estudo mais aprofundado, mas

muito instigante, veja-se:

Gilles Deleuze, Empirismo e subjetividade.

São Paulo: Editora 34, 2001.

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Analisando O Leviatã

O infinito, por sua própria caracteri-zação conceitual, sempre foi uma noção que oferece dificuldade para ser apreen-dida. Contudo, no final do século XIX, a noção de infinito sofreu uma verdadeira reviravolta. Pela primeira vez, foi dada uma definição matemática da ideia de “infinitude” – uma definição que parecia finalmente colocar o infinito atual a salvo das críticas que lhe eram feitas desde os tempos de Aristóteles[+].

Uma série de matemáticos chegou a essa nova concepção do infinito mais ou menos ao mesmo tempo, e há controvér-sias a respeito de sua paternidade. Os dois principais nomes associados a essa revolução conceitual são os de Georg Cantor (1845-1918) e Richard Dedekind (1831-1916). As teorias que eles formu-laram são bastante complicadas, mas a ideia de infinito que elas incorporam é relativamente simples.

Você deve ter estudado nas aulas de matemática algumas noções de teoria dos conjuntos. Vamos nos lembrar de algumas delas. Um conjunto é determinado única e exclusivamente pelos elementos que per-

tencem a ele. Considere, por exemplo, o conjunto dos múltiplos de 3 que são maio-res que 4 e menores que 10. Naturalmen-te, esse conjunto é formado por dois ele-mentos – o 6 e o 9. Podemos representar esse conjunto da seguinte forma:

{6 , 9}

Considere agora o conjunto dos divi-sores de 18 que são maiores que 3 e me-nores que 18. É fácil perceber que esse conjunto é idêntico ao primeiro. Não importa que estejamos nos referindo a esse conjunto por meio de duas carac-terizações diferentes. Importa apenas o fato de que os elementos são exatamen-te os mesmos.

Conclusão idêntica valeria para o caso de o conjunto ser “vazio”, isto é, de não ter nenhum elemento. O conjunto dos presidentes dos Brasil nascidos em Bo-tucatu é idêntico ao conjunto dos peixes que sabem assobiar o Tico­tico no fubá. Em ambos os casos, temos um conjun-to que não contém elemento nenhum, e que é chamado por isso de “conjunto va-zio”. Pouco importa como nos referimos

Análise de texto em equipe

Vamos ler com atenção o trecho do Leviatã (ver p. 360) que traz importantes consequências para a relação entre finito e infinito. Façamos primeiramente uma análise gramatical.

• Em equipe, realize uma primeira lei-tura, sublinhando as palavras que ope-ram como conectivos do discurso desen-volvido pelo autor. Identifique com os co-legas as conjunções que ocorrem no tex-

to. Privilegie as conjunções explicativas (“porque”, “pois” etc.) e conclusivas (“por-tanto”, “logo”, “por conseguinte” etc.). Isso possibilitará a você enxergar a estrutura argumentativa da passagem em discus-são, apontando o que é afirmado e com base em que razões.

• Faça, juntamente com sua equipe, um esquema da estrutura argumentativa desse trecho e apresente em classe, com-parando com o resultado obtido pelas outras equipes.

O infinito atual nas matemáticas

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ao conjunto vazio, portanto – estaremos sempre nos referindo ao mesmo conjunto, pois um conjunto é determinado única e exclusivamente pelos elementos que per-tencem a ele. Como o conjunto vazio não tem elementos, só pode existir um único conjunto vazio, e os matemáticos costu-mam represen tá-lo usando o símbolo Ø.

A noção de “conjuntos equinuméricos”Uma coisa, porém, é possuir os mes­

mos elementos. Outra, muito diferente, é possuir o mesmo número de elementos. O conjunto dos imperadores do Brasil é diferente do conjunto dos divisores de 18 maiores que 3 e menores que 18. Apesar disso, esses dois conjuntos possuem exa-tamente dois elementos:

{6 , 9}{D. Pedro I , D. Pedro II}

Quando isso acontece, dizemos que os conjuntos são equinuméricos. A palavra é complicada, mas a ideia é simples: ela quer dizer apenas “ter o mesmo número de elementos”.

Embora a ideia seja, de fato, simples, há algumas aplicações dessa ideia que ofe-recem alguma dificuldade. Considere, por exemplo, o conjunto dos números naturais:

ℕ = {0 , 1 , 2 , etc.}

Quantos elementos tem esse conjun-to? A resposta parece ser: “infinitos”. Repare, no entanto, que a resposta é a mesma que nós daríamos a respeito do conjunto dos números pares:

P = {0 , 2 , 4 , etc.}

E, no entanto, parece haver “mais” ele-mentos no conjunto dos naturais do que no conjunto dos pares. O motivo é sim-ples. Todo par é um número natural, mas nem todo natural é um número par. O conjunto dos números pares é um subcon-junto próprio do conjunto dos naturais. Será que estamos autorizados, por isso, a dizer que o conjunto dos naturais é “mais

infinito” que o conjunto dos pares? Será que, apesar de ambos serem infinitos, um conjunto é “mais numeroso” que o outro?

Vamos refletir um pouco, fazendo ou-tra pergunta. O que será maior? O conjun-to dos pares, ou o conjunto dos ímpares? Aqui, não temos nenhuma razão para di-zer que um é menor que o outro. O con-junto dos pares é parte própria do conjun-to dos naturais, mas não é parte própria do conjunto dos números ímpares.

Um conjunto é uma parte própria de outro quando todos os elementos do primeiro conjunto pertencerem ao segundo, mas não o contrário. Assim, por exemplo, o conjunto dos habitantes de Indaiatuba é uma parte própria do conjunto dos habitantes do Brasil. Todo habitante de Indaiatuba é habitante do Brasil, mas não o contrário.

É fácil ver, aliás, que ambos não pos-suem elementos em comum:

P = {0 , 2 , 4 , etc.}

I = {1 , 3 , 5 , etc.}

Como ambos são infinitos, e um não é parte própria do outro, somos tentados a dizer que ambos têm o mesmo número de elementos. Até aí, tudo bem. O pro-blema surge quando juntamos os dois raciocínios que fizemos. Pois considere o seguinte conjunto:

A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.}

O conjunto I (dos ímpares) começa com o número 1 e avança somando 2; o conjun-to A também começa com o número 1, mas avança somando 4. Note que este segundo conjunto é uma parte própria do conjunto dos números ímpares. Por nosso critério, portanto, A seria um conjunto infinito, mas teria “menos” elementos que I. Vamos representar isso da seguinte maneira:

(i) número de elementos de A < número de elementos de I

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Agora, repare no seguinte fato. O con-junto A é uma parte própria de I, mas não é uma parte própria do conjunto P dos números pares. Como ambos são infini-tos, deveríamos concluir que

(ii) número de elementos de A = números de elementos de P

Pelo mesmo raciocínio, deveríamos admitir que

(iii) número de elementos de P = número de elementos de I

É fácil ver, no entanto, que fomos le-vados a um beco sem saída. A partir de (ii) e de (iii), deveríamos concluir que

(iv) número de elementos de A = número de elementos de I

No entanto, (iv) e (i) são claramen-te incompatíveis. Entramos num beco sem saída.

Becos sem saída como este levaram muitos filósofos e matemáticos a darem razão a Aristóteles. Eles passaram a des-confiar da noção de “infinito atual”. Não se trata apenas de constatar que todos os agregados que encontramos na experiên-cia são agregados finitos. O problema é ainda mais grave. A ideia de um agregado com um número infinito de elementos parece nos levar a contradições como essa que acabamos de descrever.

Séries potencialmente infinitasA melhor saída, então, talvez fosse

admitir que não faz sentido falarmos na totalidade dos números naturais, ou na to­talidade dos números ímpares. O que temos é uma regra para a obtenção da sequência de números que chamamos de “números naturais”. A regra diria o seguinte: “come-ce de 0, e vá somando 1”. Essa regra pode ser aplicada quantas vezes quisermos, ge-rando uma quantidade cada vez maior de números na série. Porém, jamais tería mos “todos” os números naturais. Teríamos

apenas a regra que nos permite ir avan-çando na série, passo a passo. Como a re-gra nos permite ir sempre mais longe do que já fomos, dizemos que ela produz uma série potencialmente infinita de números – uma série que nunca chega ao fim. Mas ela não nos dá nenhum tipo de “totalidade” infinita. As totalidades que ela produz são sempre finitas: chegamos hoje até mil, po-demos chegar amanhã até 10 mil, até 100 mil e assim por diante. Mas sempre esta-remos lidando com totalidades finitas.

O que isso quer dizer? Basicamente, quer dizer que a expressão “etc.” nos enga-nou. Reescrevamos os conjuntos “infini-tos” que deram origem ao beco sem saída:

ℕ = {1 , 2 , 3 , etc.}

P = {0 , 2 , 4 , etc.}

I = {1 , 3 , 5 , etc.}

A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.}

Em todos eles, utilizamos a expres-são “etc.” e interpretamos essa expressão como se ela indicasse que a série con-tinua “até o infinito”. O que os seguido-res de Aristóteles irão alegar é que não faz sentido dizer que continuamos “até o infinito”. Podemos continuar até o ponto que quisermos. Mas o ponto que atingir-mos será sempre atingido num número finito de passos: iremos até 257, até 566, até 13.453, e assim por diante. Jamais chegaremos “até o etc.”; jamais iremos “até o infinito”.

O que matemáticos como Cantor e Dedekind fizeram foi oferecer um mé-todo para lidar com totalidades infinitas sem entrar em becos sem saída como os que acabamos de examinar. Ou seja, eles ofereceram uma resposta precisa às difi-culdades que envolviam a noção de “in-finito atual”. Para isso, eles formularam uma definição precisa da noção de “tota-lidade infinita”. Essa definição, por sua vez, só foi possível a partir do momento em que esses matemáticos formularam

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uma definição precisa de “equinumerici-dade”. Vejamos como isso tudo se deu.

O que significa dizer que dois conjun-tos são equinuméricos? No caso de con-juntos finitos, isso é claro. Eles são equi-numéricos caso seja possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre seus membros, ou seja, se for possível fazer com que cada membro de um conjunto corresponda a um e somente um membro do outro conjunto, e vice-versa. Tomemos dois conjuntos com três elementos cada:

X = {a , b , c}

Y = {d , e , f}

É possível fazermos cada elemen-to de X corresponder a exatamente um elemento de Y, e cada elemento de Y corresponder a exatamente um elemento de X. Por exemplo, podemos fazer o se-guinte pareamento:

a b c

↕ ↕ ↕

d e f

Não faltaram nem sobraram elementos, e nenhum elemento foi associado a mais de um elemento correspondente: o parea-mento foi perfeito. É isso que chamamos de correspondência biunívoca. Sempre que for possível fazer isso com dois conjuntos finitos, eles são equinuméricos. E sempre que não for possível fazer isso com dois conjuntos finitos, eles não são equinumé-ricos. Tente fazer um pareamento perfeito entre o conjunto X e este outro:

Z = {g , h}

Isso é impossível. Sempre vai sobrar algum elemento de X que não estará pareado a nenhum elemento de Z.

O que matemáticos como Cantor e De-dekind fizeram foi muito simples. Eles estenderam essa definição de equinumerici­dade para o caso dos conjuntos infinitos. Por definição, passaram a chamar de “equinu-

méricos” quaisquer conjuntos entre cujos elementos houvesse uma correspondência biunívoca. Podemos perceber o que isso significa voltando aos casos estudados mais acima. O conjunto P dos pares é equi-numérico ao conjunto I dos ímpares, pois é possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre eles. Basta associar o pri-meiro par ao primeiro ímpar, o segundo par ao segundo ímpar, e assim por diante:

0 2 4

↕ ↕ ↕

1 3 5 ... etc.

A cada número par irá corresponder exatamente um número ímpar, e a cada ímpar, exatamente um número par. Existe, portanto, uma correspondência biunívoca entre os dois conjuntos, e em função disso diremos que eles são equi-numéricos.

A mesma coisa irá acontecer com os casos mais “complicados”. É perfeita-mente possível estabelecer uma corres-pondência biunívoca entre os números naturais, de um lado, e os números ímpa-res, de outro. Podemos novamente fazer o primeiro número natural corresponder ao primeiro número ímpar; o segundo, ao segundo; o terceiro, ao terceiro e as-sim por diante:

0 1 2

↕ ↕ ↕

1 3 5 ... etc.

Já não vamos dizer agora que o conjun-to dos naturais tem “mais” elementos que o conjunto dos ímpares. Ambos são equi-numéricos – têm o mesmo número de ele-mentos, pois é possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre eles.

“Ah, mas isso está errado!”, você pode pensar. “Como é possível que um conjun-to tenha o mesmo tamanho que outro do qual ele é apenas uma parte? Como é pos-sível que o conjunto dos números natu-

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rais, que contém todos os números ímpa-res e, além disso, todos os números pares, tenha o mesmo tamanho que o conjunto dos números pares sozinho?”

Seu estranhamento é compreensível. No caso de um conjunto finito, isso jamais acontece. Se um conjunto finito está con-tido em outro, então ele não pode mesmo ter o mesmo tamanho desse outro.

Por que não pode? Porque, pela nossa definição, dois conjuntos têm o mesmo tamanho (isto é, são equinuméricos) caso exista uma correspondência biunívoca en-tre eles, e essa correspondência jamais vai existir entre dois conjuntos finitos quan-do um é parte própria do outro. Só que isso não vale para conjuntos infinitos. Se o conjunto é infinito, então ele pode perfeitamente ter o mesmo tamanho que uma de suas partes próprias, como acon-tece no caso dos naturais e dos ímpares.

Foi isso que permitiu aos matemáti-cos do final do século XIX elaborar uma definição rigorosa do infinito – algo que não tinha sido feito até então. A de-finição é muito simples: Um conjunto é infinito se (e somente se) for equinumérico a alguma parte própria de si mesmo. Ser infinito, então, quer dizer justamente isso: ter o mesmo tamanho que certas partes próprias de si mesmo.

Com essa definição, todas as contra-dições que surgiam quando falávamos do infinito desaparecem completamente. Lembre-se do conjunto A:

A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.}

Como ele era uma parte própria do con-junto dos números ímpares, nós éramos levados a dizer que “o número de elemen-tos de A < o número de elementos de I”, e isso acabava nos levando a um beco sem saída. Lembra-se disso? Pois bem. Agora, com nossa definição, o fato de A ser “par-te própria” de I já não nos dá razão para dizer que I é “maior” ou “mais numeroso” que A. Ambos têm exatamente o mesmo tamanho. Eles são infinitos, pois existe uma correspondência biunívoca entre eles e certas partes próprias deles mesmos, e também são equinuméricos, pois existe uma correspondência biunívoca entre eles:

1 3 7 9

↕ ↕ ↕ ↕

1 5 13 17 ... etc.

Pronto. O paradoxo se dissolveu.

Infinitos maiores que outrosVamos resumir aquilo que fizemos

até aqui. Estávamos lidando com uma noção vaga de “infinito”, e com um cri-tério vago para dizer quando um con - junto tem o mesmo número de ele-mentos que outro. Diante do conjun - to dos números naturais e do conjunto dos números pares, nossa primeira rea-ção era dizer que, apesar de ambos se-rem “infinitos”, o conjunto dos pares aparentava não ter “o mesmo número de elementos” que o conjunto dos naturais, já que aquele é uma parte própria deste último. O conjunto dos naturais tem to-dos os elementos que pertencem ao con-junto dos pares e outros mais. Isso nos levava a becos sem saída (ou, como se diz em lógica, nos levava a “paradoxos”).

O que nós fizemos? Decidimos (isso mesmo: decidimos) que, em nossas discussões, quando dizemos que um conjunto tem o mesmo número de ele-mentos que outro, estamos dizendo que

Trabalho por escrito individual

Prove que o conjunto A = {1, 5, 9, 13, 17, etc.} é mesmo infinito, isto é, ache uma correspondência biunívoca entre A e uma parte própria de A.

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há uma correspondência biunívoca en-tre eles. A partir desta decisão, fica es-tabelecido que o conjunto dos naturais e o conjunto dos pares têm o mesmo número de elementos, apesar de um ser parte própria do outro. A existência dessa correspondência biunívoca, neste caso, pode ser evidenciada por meio de uma regra de correspondência. A regra é a seguinte. Associamos a cada número natural o número par – ao 0 associamos o 0; ao 1 associamos o 2; ao 2 associa-mos o 4; ao 3 associamos o 6; e assim por diante. Essa regra pode ser expressa da seguinte forma:

x / 2x

A associação produzida por essa regra pode ser representada da seguinte forma:

0 1 2 3

↕ ↕ ↕ ↕

0 2 4 6 ... etc.

Até aqui, tudo corre às mil maravilhas. O problema surge quando temos dois con-juntos infinitos e não sabemos se existe ou não uma regra para estabelecer a corres-pondência biunívoca entre seus elementos. Seja, por exemplo, o conjunto dos números naturais e o conjunto dos números racio-nais. Números racionais, você sabe, são aqueles que podem ser expressos por uma fração: 1/1, ½, 37/241 etc. E agora? Será que existe uma correspondência biunívoca en-tre os naturais e os racionais, ou não? Não existe nenhuma regra óbvia a ser aplicada neste caso. Se tentarmos colocar as frações em ordem crescente, veremos que entre duas frações quaisquer sempre existe uma terceira. Na verdade, entre quaisquer duas frações sempre existem infinitas outras.

Será que isso é motivo para dizermos que não é possível estabelecer uma cor-

respondência biunívoca entre os natu-rais e os racionais? Isso é motivo para dizermos, enfim, que o conjunto dos racionais, apesar de ser infinito como o conjunto dos naturais, não contém o mesmo número de elementos que este último?

Se não fosse possível estabelecer a correspondência biunívoca entre os dois conjuntos, essa seria certamente a con-clusão a ser tirada. No entanto, Cantor descobriu uma maneira simples de esta-belecer uma correspondência biunívoca entre os naturais e os racionais. Imagine-mos uma fileira infinita na qual nós po-remos todas as frações com numerador 1; imaginemos uma segunda fileira com todas as frações com numerador 2; uma terceira com todas as frações com nume-rador 3; e assim por diante:

1/1 , ½ , 1/3 , ¼ , 1/5 , ...2/1 , 2/2 , 2/3 , 2/4 , 2/5 , ...3/1 , 3/2 , 3/3 , ¾ , 3/5 , ...

...Eliminando as frações que expressam

números repetidos,

obtemos a seguinte lista infinita de listas infinitas de números racionais:

1/1 , ½ , 1/3 , ¼ , 1/5 , ...2/1 , 2/2[=1/1], 2/3 , 2/4[=½], 2/5 , ...

3/1 , 3/2 , 3/3[=1/1], ¾ , 3/5 , ......

Trabalho por escrito individual

• Para você verificar isso com seus próprios meios, ache uma fração F1 en-tre 0 e ½. Em seguida, ache uma fração F2 entre 0 e F1; e assim por diante. Após o terceiro ou quarto caso, responda se este procedimento pode ou não ser re-petido indefinidamente, e por quê.

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1/1 , ½ , 1/3 , ...2/1 , 2/3 , 2/5 , ...3/1 , 3/2, ¾ , ...4/1 , 4/3 , 4/5 , ...

Agora, faremos uma espiral percorrer todos os números dessa lista infinita de números infinitos, começando do can-to superior esquerdo, isto é, começando com a fração 1/1:

1 /1 , ½ , 1/3 , ...2 /1 , 2/3 , 2 /5 , . . .3 /1 , 3 /2, ¾ , ...4 /1 , 4 /3 , 4 /5 , . . .

Imaginemos, agora, esta espiral sendo “desenrolada”. Teremos uma lista infinita de números racionais:

1/1, ½, 2/1, 1/3, 2/3 , 3/1, ¼, 2/5, 3/2, 4/1, 1/5 ...

Note que esses números não estão organizados em ordem de grandeza. Ape-sar disso, qualquer número racional que você possa imaginar aparecerá mais cedo ou mais tarde nessa lista. Por exemplo, o número 37/241 certamente será encontra-do em algum ponto da 37ª fileira.

Podemos, agora, associar cada núme-ro natural a um número racional, e cada racional a um natural – podemos, enfim, mostrar a existência de uma correspon-dência biunívoca entre os dois conjuntos. Primeiramente, associamos o número 0 à fração 0/1, que não estava em nossa lista. Em seguida, passamos a associar o 1 ao primeiro número racional da lista; o nú-mero 2, ao segundo; o número 3, ao tercei-ro e assim por diante:

1 ↔ 1/1

2 ↔ ½

3 ↔ 2/1

4 ↔ 1/3

5 ↔ 2/3 etc.

Pronto. A cada número natural fizemos corresponder um (e somente um) núme-ro racional, e a cada número racional, um (e somente um) número natural. Existe uma correspondência biunívoca, o que, segundo nossa definição de “possuir o mesmo número de elementos”, quer dizer o seguinte: o conjunto dos naturais tem o mesmo número de elementos que o con-junto dos racionais.

Expansões e mais expansõesRecapitulemos, outra vez, o que fizemos

até aqui. Vimos, em primeiro lugar, que a noção de infinito atual apresentava inúme-ros problemas, o que levou muitos filóso-fos a rejeitar completamente essa ideia.

Então, na segunda metade do século XIX, matemáticos como Cantor e De-dekind elaboraram uma definição da in-finitude que parecia nos permitir lidar com essa ideia sem nos vermos presos em becos sem saída. A definição era mui-to simples, e partia da ideia de “equinu-mericidade” entre dois conjuntos.

Dizer que um conjunto é infinito signifi-ca dizer que ele é equinumérico a uma par-te própria de si mesmo. Isso acontece com os números naturais, e acontece também com os números racionais e com os núme-ros reais. Todos esses conjuntos são equi-numéricos a partes próprias deles mesmos.

Mas poderíamos, agora, fazer uma ou-tra pergunta: “Será que, além de serem equi­numéricos a partes próprias deles mesmos (sendo, em função disso, infinitos), esses conjuntos também são equinuméricos en-tre si?”. Ou, fazendo a pergunta de outra forma: “Será que os conjuntos infinitos são todos do mesmo tamanho, ou alguns são maiores que os outros?”. O que acabamos de ver é um caso de dois conjuntos infinitos que possuem o mesmo tamanho, já que foi possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre eles: o conjunto dos natu-rais e o conjuntos dos racionais.

A próxima pergunta a ser feita é: “Será que isso acontece sempre?”. Será possível

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estabelecer toda vez uma correspondên-cia biunívoca entre dois conjuntos infini-tos quaisquer, como fizemos no caso dos naturais e dos racionais? Cantor mostrou que as coisas não são assim. Considere, por exemplo, o conjunto de todas as ex­pansões decimais infinitas correspondentes a números reais entre 0 e 1 (exclusive). Uma expansão desse tipo seria o número

0,5000000...

(As reticências indicam aqui que os zeros se repetem infinitamente nessa expansão.) Ele é a expansão correspondente ao núme-ro 0,5, que por sua vez corresponde à fração ½. Outra expansão do mesmo tipo seria

0,3333333...

correspondente à fração ⅓. Há expan-sões que não correspondem a fração ne-nhuma. Por exemplo, 5 é um número real que não pode ser posto na forma de uma fração. Mesmo assim, existe uma “receita” (um algoritmo) para ir calculan-do a expressão decimal de 5 até onde quisermos. Se aplicarmos esse algoritmo até a sétima casa decimal, obteremos o seguinte número:

0,7071067...

(As reticências postas no final dessa ex-pressão numérica indicam apenas que po-deríamos continuar calculando além desse ponto, até onde quiséssemos.) Há infinitas outras expansões decimais compreendidas entre 0 e 1 que são como 5: possuem uma receita, um algoritmo a partir do qual elas podem ser geradas. Imaginemos, ago-ra, o conjunto de todas as expansões deci-mais compreendidas entre 0 e 1 – sejam elas geradas por um algoritmo ou não.

Suponha que existisse uma corres-pondência biunívoca entre os números naturais e essas expansões decimais infi-nitas compreendidas entre 0 e 1. Se essa correspondência biunívoca existisse, se-ria possível fazer uma lista dos números reais entre 0 e 1 como fizemos no caso dos números racionais. Seria possível pô--los numa fila infinita que conteria todos esses números reais.

Cantor, no entanto, provou que isso não é possível. Ele mostrou que, se uma lista qualquer nos fosse dada, sempre poderíamos apresentar uma expansão decimal entre 0 e 1 que não foi associa-da a nenhum número natural. A prova é um pouco difícil de ser seguida no deta-lhe, mas o resultado final era exatamen-te esse: Cantor mostrou que é impossí­vel estabelecer uma correspondência biunívoca entre os números naturais e as expansões decimais infinitas compre-endidas entre 0 e 1. Isso quer dizer que o conjunto dessas expansões não tem o mesmo número de elementos que o con-junto dos naturais. Os dois conjuntos são infinitos, mas não são equinuméricos. O conjunto das expansões decimais in-finitas é “maior” ou “mais denso” que o conjunto dos naturais. Cantor não ape-nas deu uma definição rigorosa da no-ção de infinito, como vemos, mas tam-bém mostrou que há diferentes tipos de infinitude, e que há um sentido preciso no qual podemos dizer que certos con-juntos infinitos (como o dos números reais) são “maiores” que outro conjun-

Georg Cantor (1845-1918)

Mon

dado

ri /G

etty

Imag

es

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tos também infinitos (como o dos núme-ros naturais).

Estranho? Talvez. Mas repare que tudo que nós fizemos foi seguir à risca nossa definição de “ter o mesmo número de elementos”. Havendo uma correspon-dência biunívoca, o número de elementos é o mesmo; não havendo, não é. Como nesse caso a correspondência biunívoca não existe, somos obrigados a dizer que o conjunto das expansões tem um número de elementos “maior” que o conjunto dos naturais. É tudo uma questão de sermos coerentes com as definições que estabele-cemos no início.

A crítica de WittgensteinEmbora essa prova seja aceita pela

maioria dos matemáticos contemporâ-neos, ela foi submetida a duras críticas por um filósofo importantíssimo, que viveu na primeira metade do século XX. Estamos falando de Ludwig Wittgens-tein[+] (1889-1951). Wittgenstein exa-minou essa prova de Cantor e tentou mostrar que ela não demonstra aquilo que nós fomos levados a pensar que ela estava demonstrando, mas, sim, outra coisa. Como a prova de Cantor é um pouco complicada, nós não a reprodu-zimos aqui. Mas é fácil entender qual foi o foco das críticas de Wittgenstein. Cantor nos pede, lá pelas tantas, que imaginemos que todas as expansões de-cimais infinitas entre 0 e 1 nos fossem dadas. Voltemos, então, por um mo-mento à noção de “expansão decimal infinita”. Tomemos, por exemplo, a raiz quadrada de 0,5.

Existe uma receita – um algoritmo – que nos permite ir calculando essa raiz quadrada até o ponto que quisermos. É essa “receita” que podemos inserir num computador para que ele vá calculando essa raiz quadrada passo a passo, até o ponto que desejarmos. Se aplicamos a receita uma vez, chegamos ao primeiro algarismo da expansão, que é o “7”:

0,7...

Se aplicamos o algoritmo mais uma vez, chegamos ao segundo algarismo da expansão, que é o “0”:

0,70...

Novas aplicações do algoritmo nos le-vam ao terceiro algarismo

0,707...

ao quarto

0,7071...

ao quinto

0,70710...

ao sexto

0,707106...

e assim por diante. Todo o problema, se-gundo Wittgenstein, está em saber o signi-ficado exato das reticências neste caso. O que querem dizer expressões como “etc.” e “e assim por diante”, que muitas vezes são postas no lugar das reticências? Assim por diante até quando? Cantor responde-ria – “Até o infinito”. Será que faz sentido, porém, imaginar que a expansão prossegue “até” o infinito? Quando dizemos que cal-culamos a expansão até a quinta casa deci-mal, a palavra “até” expressa o fato de que fomos até a quinta casa e então paramos. Será que é isso que queremos dizer quando afirmamos que a série continua até o infini­to? Nós vamos até o infinito e depois para-mos? Ou será que estamos querendo dizer justamente o contrário, ou seja: que, por mais longe que nós formos, jamais teremos chegado ao final da expansão?

O que o algoritmo nos dá é uma “re-ceita” para ir calculando um algarismo depois do outro. Ele não nos dá “todos” os algarismos da expansão decimal de 5, nem poderia dar. Não existe nada que seja a totalidade dos algarismos des-sa expansão decimal.

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Para compreender isso, vamos imagi-nar a seguinte situação. Suponha que um homem chamado “Lúcio” resolva passar o resto de sua vida sorteando os núme-ros de uma expansão decimal. Lúcio não usa nenhuma espécie de algoritmo. Ele sorteia os algarismos com um dado. Sua expansão decimal, portanto, só contém algarismos de 1 a 6. Ele chama essa ex-pansão de “expansão de Lúcio”, e esta-belece que ela nunca estará completa. Quando ele morrer, a expansão de Lúcio poderá ser continuada por qualquer pes-soa que queira jogar aquele dado e anotar mais um dígito no papel. Você acha que faz algum sentido falar em “todos os al-garismos da expansão de Lúcio”?

Não faz sentido nenhum. Essa expan-são se caracteriza exatamente pelo fato de que ela jamais contém “todos” os seus algarismos. Ela contém apenas os algaris-mos que foram sorteados até agora. Não faz sentido supor que a expansão de Lúcio tenha sido escrita “até o infinito”. Mesmo que Lúcio fosse imortal, e que nunca mais parasse de escrever a sua expansão, ele ja-mais chegaria ao final dela. Estaria sem-pre sorteando um novo algarismo.

A mesma coisa, diz Wittgenstein, vale para a expansão decimal corres-pondente a 5. Podemos ir até onde quisermos. Jamais poderemos falar em “todos” os algarismos componentes des-sa expansão, mas apenas dos primeiros 100 algarismos, ou do primeiro trilhão de algarismos, dá na mesma. Teremos sempre um segmento inicial da expan-são, jamais a expansão “toda”. É contra-ditório, nesse caso, falarmos na totali-dade dos dígitos dessa expansão, pois se trata de uma expansão que não possui totalidade. Está sempre incompleta, sempre aberta, sempre desenvolvida apenas até um certo ponto.

Wittgenstein e a tartarugaA crítica que Wittgenstein endereça

a Cantor retoma aspectos importantes

que cercam a discussão filosófica sobre o infinito... desde a Antiguidade grega! Afirmar que jamais atingimos senão um valor para o qual sempre se pode encon-trar um valor superior, como Wittgen-stein objeta a Cantor, é reaver a ideia de que a infinidade (compreendida como totalidade absoluta da série) é inalcan-çável para nós.

Foi pela teologia cristã que a noção de infinidade positiva, estranha ao uni-verso conceitual do pensamento grego, entrou na história da filosofia. Esse in-gresso, porém, não foi feito sem difi-culdades. A afirmação da infinitude de Deus produziu, em linhas gerais, duas consequências importantes.

De um lado, muitos autores, dentre os quais alguns dos mais antigos e influentes pensadores cristãos, insistiram na impos-sibilidade de nós, seres humanos, enquan-to seres finitos, compreendermos positi-vamente a essência infinita de Deus. De outro, também houve quem defendesse que nossa finitude não impede que ao me-nos concebamos a infinitude de Deus. Por isso, propuse ram-se a fornecer uma prova ou demonstração dessa existência. San-to Anselmo (c.1034-1109) e Descartes[+] (1596-1650) fornecem exemplos disso.

Com Cantor e Dedekind – grandes fi-lósofos da matemática do século XIX –, o debate sobre o infinito recebeu novo impulso. Recorrendo à noção de con-juntos equinuméricos, foi possível atin-gir uma definição positiva do infinito atual. Se aplicássemos esse resultado ao universo conceitual da Antiguidade, é como se o argumento de Cantor e De-dekind desse vantagem a Zenão diante de Aristóteles.

Porém, como acabamos de ver, Witt-genstein levantou uma objeção de peso a Cantor: jamais podemos realmente com-preender uma “totalidade infinita”... Terá dessa forma o debate chegado a seu ter-mo ou, ao contrário, ele – como a reflexão que o anima – também é infinito?

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Apêndices

Quadro sinótico: Grandes áreas da Filosofia ................... 372

Conteúdos e referências ...............374

Índice de boxes bio-filosóficos ......... 399

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es

Quadro sinótico: grandes áreas da FilosofiaEste – como diz o nome – é um quadro abrangente, de visão panorâmi-

ca (“sinótico” vem do verbo grego synoráo: abranger no campo de visão; ver com um golpe de vista). Nele, encontramos a distribuição dos conteú-dos do livro de acordo com os tradicionais recortes disciplinares do ensi-no universitário de Filosofia: Teoria do conhecimento, Filosofia política, Ética, Filosofia da ciência, Estética etc.

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UNIDADEGRANDES ÁREAS DA FILOSOFIA

(Distribuição de conteúdos estruturantes nas Unidades)

NATUREZA E CULTURA Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia das Ciências Humanas

RAZÃO E PAIXÃOÉtica

Filosofia Política

— Estética —

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO Ética Lógica

Teoria do Conhecimento

Estética —

DÚVIDA E CERTEZA Ética LógicaTeoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

REALIDADE E APARÊNCIA Estética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

ESPÍRITO E LETRAÉtica

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia da História

EU E O OUTROÉtica

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

— —

LIBERDADE E NECESSIDADE Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia das Ciências Humanas

Filosofia da Ciência

ORDEM E CAOSÉtica

Filosofia Política

Lógica Estética —

CONTINUIDADE E RUPTURA —

Filosofia Política

Filosofia da Ciência

Filosofia da História

Metafísica

PRINCÍPIO E TEMPORALIDADE Ética —

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

FINITO E INFINITO Ética LógicaTeoria do Conhecimento

Estética Metafísica

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Conteúdos e referênciasAs tabelas a seguir resumem e sistematizam dois aspectos de cada

módulo nas Unidades do livro. O primeiro diz respeito aos conceitos centrais explorados em cada etapa. Aqui encontram-se indicações bre-ves para localizar as principais questões da história da filosofia que são tratadas neste livro.

Por exemplo: a instituição da ordem política; o contratualismo; a cons-ciência histórica; a dúvida cética; a teoria do discurso e assim por diante.

Dado o caráter eminentemente interdisciplinar da Filosofia, essas no-ções desdobram-se em especificações que dizem respeito a outras áreas dos saberes e das atividades humanas: economia, ecologia, geografia, literatu-ra, direito, ciências da natureza...

O que já nos leva ao segundo aspecto sistematizado nas tabelas: as refe-rências e as indicações para eventuais aprofundamentos – os autores tra-tados, os contextos mobilizados (artes; ciências humanas; ciências exatas etc.), os diferentes tipos de abordagem para uma determinada questão.

Daí a pertinência das correlações com os outros componentes cur-riculares do Ensino Médio: “ganchos” que podem ser desenvolvidos no encontro das diferentes disciplinas, com grande proveito para todos os envolvidos.

Um papel de destaque é reservado à História: pois o estudo do deba-te filosófico tantas vezes se expressa no que se convencionou chamar de “história das ideias”. Nos estudos de História, mentalidade e motivações interpenetram-se mutuamente: há pouco ganho em isolar hermeticamente ideias e fatos. As ações humanas só adquirem sentido histórico quando são contextualizadas em seu alcance simbólico e ideológico.

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1 unidadenatureza e cultura

Módulo • O limite entre dois universos

Filosofia – Conceitos Natureza; civilização

História Sociedade contemporânea

Literatura Amyr Klink; Homero; Jack London; Saint-Exupéry; John Krakauer

Artes Cinema

Ciências humanas Antropologia: diversidade cultural, etnocentrismo

Interdisciplinaridade Literatura

Módulo • O naufrágio de Robinson Crusoé

Filosofia – Autores Delamarre

Filosofia – Conceitos Natureza; civilização; diversidade cultural

História Grandes navegações (Novo Mundo)

Literatura Defoe

Ciências humanas Antropologia, economia

Ciências da natureza; saúde Ecologia

Interdisciplinaridade Literatura; Ciências sociais

Módulo • A diversidade das culturas

Filosofia – Autores Lévi-Strauss

Filosofia – Conceitos Diversidade cultural; civilização; barbárie

História Civilização greco-romana, invasões bárbaras; Novo Mundo; sociedade contemporânea (séc. XX)

Ciências humanas Antropologia

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • A ideia de “natureza humana”

Filosofia – Conceitos Jusnaturalismo (direito natural)

História Iluminismo; Revolução Francesa

Direito e legislação Declaração dos direitos do homem

Religião Budismo; judaísmo; cristianismo; islamismo

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Módulo • Montaigne e os canibais

Filosofia – Autores Montaigne; Adorno e Horkheimer; Montesquieu; Rousseau

Filosofia – Conceitos Natureza; civilização; crítica da cultura

História Grandes navegações (Novo Mundo)

Interdisciplinaridade Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades Dúvida e certeza

Módulo • “Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas”

Filosofia – Autores Pascal

Filosofia – Conceitos Moral; política

História Era Moderna; Iluminismo

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • Uma espécie que se diz racional

Filosofia – Autores Aristóteles

Filosofia – Conceitos Racionalidade/irracionalidade; paixões; loucura; virtude

História Sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro Saramago (entrevista a Carlos Reis); Eurípedes; Sófocles; Cervantes

Direito e legislação Código Penal; violência contra a mulher

Religião "Paixão de Cristo"

Interdisciplinaridade Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades Espírito e letra

2 unidaderazão e paixão

Módulo • Virtude e paixão

Filosofia – Autores Aristóteles; Schopenhauer; Hegel; Nietzsche; Freud

Filosofia – Conceitos Virtude/vício; educação; hábito

História Grécia antiga

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Módulo • A rejeição das paixões

Filosofia – Autores Sêneca; Cícero; Marco Aurélio; Aristóteles

Filosofia – Conceitos Estoicismo; filosofia aristotélica; virtude/vício

História Roma antiga

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • A razão a serviço das paixões

Filosofia – Autores Hume; Sêneca; Aristóteles; Horkheimer;

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Salles; Porto; Deleuze

Filosofia – Conceitos Virtude; vontade; razão;

História Iluminismo

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Remissão a outras Unidades Dúvida e certeza; Princípio e temporalidade

Módulo • História, razão e paixões

Filosofia – Autores Schiller; Sêneca

Filosofia – Conceitos Racionalidade/emoções; estoicismo; alienação; arte; gosto estético

História Antiguidade greco-romana; Era Moderna

Literatura/ Teatro Schiller; Goethe; "Tempestade e Ímpeto" (Pré-Romantismo)

Interdisciplinaridade Literatura; artes

Módulo • Racionalidade e emoção

Filosofia – ConceitosDialética; racionalidade; lógica; teoria do discurso; argumento: componentes racionais e emocionais; verdade ≠ validade; enunciados

História Segunda Guerra Mundial; sociedade contemporânea

Ciências humanas e cognitivas Economia; comunicação; publicidade e propaganda

Interdisciplinaridade Língua estrangeira (inglês)

3 unidadelógica e argumentação

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Módulo • A arte de persuadir

Filosofia – Autores Aristóteles

Filosofia – Conceitos Teoria do discurso; retórica; debate (dialética); persuasão

História Democracia ateniense (Grécia antiga); Segunda Guerra Mundial

Artes Cinema

Direito e legislação Argumentação jurídica

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Módulo • Premissas e conclusões

Filosofia – Autores Aristóteles; Frege; Russell

Filosofia – ConceitosTeoria do discurso; lógica; tipos de sentenças; verdade e validade; enunciados; proposições; premissas e conclusões; Lógica formal: conectivos, tabelas de verdade; busca booleana

História Sociedade contemporânea

Ciências exatas Linguagens artificiais

Interdisciplinaridade Língua portuguesa; matemática; informática

Módulo • Falácia e argumento

Filosofia – Autores Schopenhauer; Newton da Costa

Filosofia – ConceitosTeoria do discurso; debate (dialética); retórica; lógica; verdade e validade; falácias; tipos de argumentos; proposições; premissas e conclusões

História Sociedade contemporânea; Antiguidade; Idade Média

Ciências humanas e cognitivas Sociologia; comunicação; publicidade

Ciências exatas Geometria

Artes Ópera cômica

Interdisciplinaridade Língua (latim)

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Módulo • Vivemos cercados de dúvidas

Filosofia – Conceitos Dúvidas filosóficas; investigação; certeza ≠ verdade; objetividade × subjetividade; lógica; dedução; paixões; Modernidade

História Sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro Machado de Assis; Shakespeare

Artes Cinema

Interdisciplinaridade Literatura

4 unidadedúvida e certeza

Módulo • A dúvida, base da investigação

Filosofia – Autores Platão

Filosofia – Conceitos

Dúvida filosófica; investigação; verdade e falsidade; significado, alcance e condições do conhecimento (epistemologia); lógos: discurso, razão, argumento; lógica; necessidade; justificação; oratória; persuasão; justiça; método; definições; dialética

História Grécia antiga

Literatura Machado de Assis

Direito e legislação Argumentação jurídica

Interdisciplinaridade Ciências humanas

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Módulo • Limites da dúvida ao garantir a certeza

Filosofia – Autores Hume; Descartes; Moore; Wittgenstein; Porchat; céticos antigos; Carnap; Schlick; Waismann; Ryle; Strawson; McDowell

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Cuter; Marques; Moreno

Filosofia – Conceitos

Sujeito do conhecimento; curiosidade filosófica; ceticismo; cartesianismo; empirismo; ação hábito; prova do mundo exterior; evidência; limites do conhecimento filosófico; idealismo; suspensão do juízo; simplicidade e simetria

História Antiguidade greco-romana; Era Moderna

Interdisciplinaridade Ciências da natureza

Módulo • Duvidando para atingir a certeza

Filosofia – Autores Descartes; Galileu; Aristóteles; Tomás de Aquino; Platão; Pascal

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Silva; Cotingham; Teixeira

Filosofia – Conceitos

Dúvida como instrumento e método da investigação (dúvida metódica); cartesianismo; ceticismo; verdades presumidas ≠ certeza; necessidade e lógos; “penso, logo existo”; critério de verdade; prova; sujeito do conhecimento

História Era Moderna; Maurício de Nassau; Grécia antiga

Literatura Machado de Assis

Interdisciplinaridade Ciências exatas; ciências da natureza

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Módulo • As aparências enganam?

Filosofia – Autores Pré-socráticos; Pitágoras; Leucipo; Demócrito Sócrates; Platão

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Cornford

Filosofia – Conceitos Natureza (phýsis); realidade; aparência; ilusão; atomismo; teoria do número

História Grécia antiga;

Artes Música

Ciências da natureza Astronomia; Cosmologia; Física

Religião Teologia cristã (Escolástica)

Interdisciplinaridade Língua portuguesa; línguas estrangeiras; Física; Matemática; Química

5 unidaderealidade e aparência

Módulo • Ser e parecer justo

Filosofia – Autores Platão; Sócrates; Pitágoras; Parmênides; Lucrécio; Sêneca; Marco Aurélio; Montaigne; Diderot; Nietzsche; Novalis; F. Schlegel

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Santos; Bolzani Filho

Filosofia – ConceitosAparência × essência; debate (dialética, divergência); formas do filosofar; ética; justiça; argumentação; platonismo: Formas ou Ideias; fins políticos

História Antiguidade greco-romana

Artes Telenovela

Ciências humanas e cognitivas Ciência política

Religião Religião oficial da República Romana: Bona Dea, pontifex maximus

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • A realidade da aparência

Filosofia – Autores Platão; Malagrida; Rousseau; Diderot; Voltaire; Hume; Schiller

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Prado Jr.

Filosofia – Conceitos Estética; cuidado de si; moral e crítica dos costumes; contratualismo; representação pictórica, imitação (mímesis)

História Iluminismo; Grécia antiga; Romantismo

Literatura/ Teatro/ Artes Teatro; Cinema; Artes plásticas

Ciências humanas e cognitivas Pedagogia

Interdisciplinaridade Ciências sociais; artes

Módulo • A revolução filosófica e científica moderna

Filosofia – Autores Aristóteles; Tomás de Aquino; Kepler; Giordano Bruno; Galileu; Descartes; Kuhn

Filosofia – Conceitos Essência; razão; percepção; qualidades primárias e secundárias; experimento

História História dos povos árabes; história da ciência e da tecnologia; Era Moderna

Ciências da Natureza Astronomia; Física; Química

Religião Teologia cristã (Escolástica)

Interdisciplinaridade Física; matemática; química

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6 unidadeespírito e letra

Módulo • Interpretar as regras do jogo

Filosofia – Autores Kant; Arendt

Filosofia – Conceitos Regras; normas; interpretação; experiência e conhecimento; capacidade de julgar

História Sociedade contemporânea; nazismo

Direito e legislação Crimes de guerra

Saúde; esporte Esporte

Interdisciplinaridade Ciências sociais; prática esportiva

Módulo • Mudar a “letra” para manter o “espírito”

Filosofia – Conceitos Regras; legislação; normalização; justiça; interpretação jurídica

História Sociedade contemporânea

Direito e legislação Constituição Federal; Código Civil

Saúde; esporte Esporte

Interdisciplinaridade Ciências sociais; prática esportiva

Módulo • Traduzir e interpretar

Filosofia – Autores Schleiermacher; Platão; Aristóteles

Filosofia – Conceitos Hermenêutica (interpretação); tradução

História Antiguidade greco-romana

Literatura Homero

Interdisciplinaridade Língua; literatura

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Módulo • O enigma do Eu e do Outro

Filosofia – Autores Arendt; Heidegger; Jaspers

Filosofia – Conceitos Indivíduo; interioride/exterioridade; vida em sociedade

História Nazismo (totalitarismo); Segunda Guerra Mundial; Idade Média

Literatura Twain

Artes Cinema

Ciências humanas Ciência política

Direito e legislação Estado de exceção; direitos do homem e do cidadão

Interdisciplinaridade Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades Realidade e aparência {A realidade da aparência}

7 unidadeo eu e o outro

Módulo • Questões de interpretação

Filosofia – Autores Nietzsche; Foucault; Heidegger; Husserl; Marcuse; Arendt; Sartre; Lacan; Gadamer

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Nunes; Loparic

Filosofia – Conceitos Tradução; consciência histórica; historicismo; tradição; estética; fenomenologia; existencialismo

História Era Moderna; Antigo Regime: Revolução Francesa; Segunda Guerra Mundial

Literatura/ Teatro Sófocles; Horácio; Alceu; Arquíloco; Propércio; Calímaco; Filetas; Corneille

Artes Pintura; escultura; música

Ciências da natureza Astronomia

Religião Panteísmo greco-romano

Interdisciplinaridade Artes; Física; Matemática

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Módulo • O “Eu penso”: Descartes

Filosofia – Autores Descartes; Pascal

Filosofia – Conceitos Dúvida cética; cartesianismo; corpo; Mundo; Deus; racionalidade; sujeito do conhecimento; "eu penso, logo existo”; verdade

História Era Moderna

Ciências humanas e cognitivas Psicologia

Interdisciplinaridade Ciências da natureza

Módulo • O Eu com o Outro

Filosofia – Autores Merleau-Ponty; Descartes; Husserl; Sartre; Lacan; Lévi-Strauss

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Chauí; Moutinho

Filosofia – ConceitosReflexão; “eu penso, logo existo”; existência social; coletividade; formação do indivíduo; linguagem; História; relações assimétricas de poder; autoritarismo

História Sociedade contemporânea

Literatura Géza Gárdonyi

Ciências humanas e cognitivas Linguística; psicologia

Ciências da natureza; exatas Astronomia; navegação espacial; exobiologia

Interdisciplinaridade Língua; ciências sociais; física; matemática; biologia

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Módulo • A defesa da tolerância

Filosofia – Autores Voltaire; Hegel; Diderot; D’Alembert; Rousseau

Filosofia – Conceitos Tolerância (necessidade e limites); jusnaturalismo; fundamento do Direito

História Nazismo

Literatura/ Teatro Voltaire; Dumas; Mann; Brecht

Artes Cinema

Direito e legislação Instituição e legitimidade do Direito

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Módulo • Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento

Filosofia – Autores Hegel; Descartes; Merleau-Ponty; Stirner

Filosofia – ConceitosConsciência de si; imperativos biológicos; desejo; egoísmo; liberdade; ética; política; dominação; individualismo; necessidade do reconhecimento recíproco; vida em sociedade

História Sociedade contemporânea

Ciências humanas e cognitivas Ciência política; sociologia; psicologia;

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • A tragédia de Édipo

Filosofia – Conceitos Destino; liberdade; ilusão; responsabilidade

História Grécia antiga

Literatura/ Teatro Sófocles

Religião Panteísmo greco-romano

Interdisciplinaridade Literatura

8 unidadeliberdade e necessidade

Módulo • Estoicismo e a necessidade do universo

Filosofia – AutoresZenão de Chipre; Cleantes; Crisipo; Panécio; Posidônio; Sêneca; Marco Aurélio; Alexandre de Afrodísia; Aristóteles; Cícero; Aulo Gélio

Filosofia – Conceitos

Estoicismo; destino; ordem e regularidade; natureza; sistema; universo; causa e consequência; ética; virtude; necessidade; metafísica da natureza; indiferença moral × responsabilidade da ação; vontade e moralidade

História Antiguidade greco-romana

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Remissão a outras Unidades Razão e paixão {A rejeição das paixões; Perder a razão}

Módulo • A origem da ideia de necessidade

Filosofia – Autores Hume

Filosofia – ConceitosIdeia de necessidade; relações causais; hábito; empirismo; cartesianismo; regularidade e uniformidade; condições e limites do conhecimento humano; ações voluntárias

História Era Moderna (o sujeito; empirismo)

Literatura/Teatro Sófocles

Interdisciplinaridade Física; química; geografia; matemática

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Módulo • A bagunça do meu quarto

Filosofia – Autores Agostinho; Platão; Husserl; Freyre; Buarque de Holanda; Prado Jr.

Filosofia – Conceitos

Civilzação e barbárie; ordem; desordem leis; liberdade; violência; controle social; conformação do corpo social; teorias da miscigenação (“mito das três raças”); ordem e caos como noções correlatas

História Sociedade contemporânea; Império Romano; Absolutismo

Literatura Huxley

Artes Urbanismo; cinema

Interdisciplinaridade Ciências sociais

9 unidadeordem e caos

Módulo • Necessidade natural e liberdade humana

Filosofia – Autores Hume; estoicismo; Marx e Engels

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Giannotti; Konder; Codato

Filosofia – Conceitos

Determinismo na natureza; teoria das ciências humanas; lei científica; cultura; determinismo nas ciências humanas; diversidade de formas de vida social; determinismo econômico e liberdade política; instinto × espontaneidade; divisão do trabalho; condições de sobrevivência material; ideologia; materialismo histórico; consciência; luta de classes; revolução; cidadania: liberdade e deveres; democracia; progresso econômico × danos ambientais; leis de mercado; marxismos; liberalismo

História Revolução Industrial; Era das Revoluções; sociedade contemporânea

Ciências humanas e cognitivas Pedagogia; ciência política; economia; sociologia

Interdisciplinaridade Geografia; ciências sociais; física; química

Remissão a outras Unidades Natureza e cultura

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Módulo • A origem do mundo

Filosofia – Autores Descartes; Leibniz; Espinosa

Filosofia – Conceitos Khaos como origem do universo; poesia; racionalismo moderno; princípio de razão suficiente; mito

História Antiguidade greco-romana

Literatura Hesíodo

Religião Panteísmo grego

Interdisciplinaridade Literatura

Módulo • A ordem política

Filosofia – Autores Hobbes; Descartes; Aristóteles; Vernant; Rousseau; Proudhon; Marx; Bakunin

Filosofia – Conceitos

Normas e leis; instituição da ordem política; uso da linguagem (lógos) como característica distintiva do ser humano; Cidade- -Estado (pólis); interesses particulares; sujeição como condição da paz social; doutrina do direito divino; jusnaturalismo; soberania emanando do povo para o Estado; guerra civil; anarquismo; governo despótico; tragédias naturais

História Antiguidade greco-romana; Idade Média; Era Moderna; Antigo Regime; sociedade contemporânea

Direito e legislação Jusnaturalismo (direito natural); Organização das Nações Unidas

Interdisciplinaridade Ciências sociais; geografia

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10 unidadecontinuidade e ruptura

Módulo • Como e quando algo muda

Filosofia – ConceitosArte; tradição; ruptura; heliocentrismo; revolução político-social; processo histórico; forma artística; permanência e mudança; processos naturais;

História Idade Média; Renascimento; Antiguidade greco-romana; Era Moderna; Revolução Francesa; Restauração; Unificação Italiana

Literatura/Teatro Petrarca; Brecht; Tomasi di Lampedusa

Artes Artes plásticas; música; cinema

Ciências da natureza Astronomia

Religião Mitologia

Interdisciplinaridade Literatura; artes; física; biologia

Remissão a outras Unidades Espírito e letra

Módulo • Da ordem do irracional

Filosofia – Autores Hobbes; Agostinho; Descartes; Burton; Pascal; Freud; Charcot; Breuer; Jung; Lacan; Saussure; Aristóteles

Filosofia – Conceitos Razão; paixões; irracional; indivíduo moderno; princípio de coerência; inconsciente

História Era Moderna; sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro Madame de La Fayette; Racine; La Rochefoucauld; Sófocles; surrealismo (Breton; Éluard; Boiffard; Vitrac)

Artes Cinema; artes plásticas

Ciências humanas e cognitivas Psicologia; psicanálise

Religião Jansenismo

Interdisciplinaridade Literatura; artes

Remissão a outras Unidades Razão e paixão; Liberdade e necessidade; Eu e o Outro

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Módulo • O “movimento” segundo Aristóteles

Filosofia – Autores Aristóteles; Newton; Galileu; Torricelli; Kepler; Platão;

Filosofia – Conceitos

Imutabilidade do conhecimento no platonismo; mudança; linguagem matemática expressando leis do movimento; ato e potência; forma e matéria; natureza; mundo da percepção × suprassensível; atributos essenciais × acidentais; arte e técnica; teleologia

História Grécia antiga (e herança)

Interdisciplinaridade Física; matemática; biologia

Módulo • Perfectibilidade e desenvolvimento

Filosofia – Autores Hegel; Rousseau; Condorcet; Kant; Marx

Filosofia – Conceitos

Espírito hegeliano; mudança natural × mudança histórica; perfectibilidade × desenvolvimento; finalidade histórica; liberdade; governo despótico; consciência e vontade; progresso; antagonismos como premissa da síntese histórica

História Antiguidade (Grécia, Egito); Filosofia da História; Iluminismo

Religião Concepção pneumológica da alma; kardecismo

Interdisciplinaridade Ciências sociais

Remissão a outras Unidades Espírito e letra

Módulo • As revoluções científicas

Filosofia – Autores Kuhn; Kepler

Filosofia – ConceitosGosto estético é relativo ao contexto histórico; ideia do belo; princípcios que norteiam a ciência; paradigma e revolução científicos; sistema geocêntrico × heliocêntrico

História História da Arte; Era Moderna; história da ciência; revoluções científicas

Artes Artes plásticas

Ciências da natureza Astronomia

Interdisciplinaridade Artes; física; geografia

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11 unidadeprincípio e temporalidade

Módulo • A diferença entre fundamento e início

Filosofia – Autores Textos bíblicos (Antigo Testamento)

Filosofia – Conceitos

"Princípio": pluralidade de sentidos – começo, ponto de partida, temporalidade - fundamento, causa; origem do universo (cosmogonia); criacionismo, evolucionismo; textos: análise, tradução e interpretação; história do texto bíblico; o discurso adquire perspectivas em função de quem lê; princípios explicativos na História; senso comum × atitude crítica e filosófica

História História judaica; mundo helênico; cristianismo; Reforma; guerra de Canudos

Literatura/ Teatro Gênesis; Euclides da Cunha; Hebreus;

Religião

Antigo Testamento; interpretações e conceitos judaico-cristãos; rabinato; Igreja Romana, Reforma protestante, Igreja Anglicana; Islã; criação do universo sob diversas perspectivas (hinduísmo, politeísmo greco-romano...)

Interdisciplinaridade Língua; literatura; língua portuguesa

Remissão a outras Unidades Espírito e letra {Traduzir e interpretar}

Módulo • Platão e o tempo

Filosofia – Autores Platão, Sócrates; Justino, Clemente de Alexandria; Orígenes

Filosofia – Conceitos

Realidade × ilusão (alegoria da caverna); atemporalidade do ser real no platonismo; senso comum; saber filosófico; existência temporal/atemporal; aparência, sentidos; realidade e permanência; o Bem platônico; cosmo; intelecto; princípio do ser e do conhecimento; eternidade × mortalidade; pluralidade de crenças

História Grécia antiga, mundo helênico; pensamento cristão

Religião Assimilação do platonismo pelos primeiros pensadores cristãos

Interdisciplinaridade Língua

Remissão a outras Unidades Realidade e aparência

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Módulo • O tempo em Agostinho

Filosofia – Autores Agostinho; Platão; estoicismo antigo

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Ayoub e Novaes; Storck

Filosofia – Conceitos

Textos: expressão da diferença de pensamento (grego, cristão), mas também de sua convergência; "mesmidade" de Deus em Agostinho; Deus judaico-cristão como princípio atemporal, criador do universo; estoicismo e "eterno retorno" (tempo circular e cíclico); duração ≠ atemporalidade; teologia × filosofia

História Passagens entre mundo antigo e medieval; Idade Média

Literatura Eclesiastes

Religião Patrística: relações de proximidade e distanciamento da filosofia greco-romana; dogmas do cristianismo; razão e fé

Módulo • Elogio de Kant a Platão

Filosofia – Autores Kant; Platão

Filosofia – Conceitos

Filosofia moderna: novos termos da relação entre dividade atemporal e seres mortais; Kant lê Platão: ideia do bem, princípio moral; fundamentos da filosofia prática (moral): ideia × experiência; modelo de virtude é ideal; normas atemporais

História Era Moderna

Interdisciplinaridade Ciências sociais

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Módulo • Regularidade da experiência

Filosofia – Autores Hume; Kant; Platão; Aristóteles; Locke; Leibniz

Filosofia – ConceitosCrítica do racionalismo; tempo e experiência orientam o homem para fora do erro; tempo como condição das regras práticas; empirismo × racionalismo

História Era Moderna

Interdisciplinaridade Ciências da natureza; ciências sociais

Módulo • A noção de progresso científico

Filosofia – Autores Popper; Hume; Kant; Platão; Hayek; Friedman

Filosofia – Conceitos

Tempo e experiência são dimensões essenciais para a ciência; imprecisão terminológica é um bem para a ciência; admissão da margem de erro: teorias falham em apreender completamente o real; história da ciência: substituição de teorias consagradas por novas teorias que as contradizem; só no tempo há progresso

História História da Ciência; Era Moderna; sociedade contemporânea

Ciências da natureza; exatasFilosofia da ciência; hipótese; imprecisão da ciência; teoria científica; Ptolomeu × Copérnico; Física newtoniana × einsteiniana e quântica

Interdisciplinaridade Ciências da natureza

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Módulo • Filosofia grega e infinito

Filosofia – Autores Parmênides; Zenão de Eleia; Sócrates; Aristóteles

Filosofia – Conceitos

Filosofia pré-socrática; unidade × multiplicidade do ser; permanência × mudança; irrealidade do tempo e do movimento; argumentação; paradoxo; refutação por absurdo (reductio ad absurdum); infinito; tese da infinita divisibilidade do espaço; realidades matéticas; ato × potência

História Grécia antiga

Ciências da natureza; exatas Movimento; tempo e espaço; grandezas contínuas × discretas; cálculo

Interdisciplinaridade Matemática; física; língua

12 unidadefinito e infinito

Módulo • A biblioteca de Borges

Filosofia – Conceitos Infinito; espacialidade; número; codificação e decodificação (criptografia); linguagem; gramática; cálculo infinitesimal

História Segunda Guerra Mundial; sociedade contemporânea

Literatura Borges; Homero

Interdisciplinaridade Língua; literatura; informática; matemática; geografia

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Módulo • O infinito divino

Filosofia – AutoresAristóteles; Descartes; Malebranche; Leibniz; Lutero; Agostinho; Platão; Schiller; Anselmo; Tomás de Aquino; Scot; Descartes; Pascal

Filosofia – Conceitos

Grécia: ordem=ideal estético e moral; expansão do cristianismo; lógos: argumentação, razão, discurso; mito, alegoria; totalidade do ser; perfeição; finitude humana × infinitude divina; teologia; Patrística; Escolástica; historicidade das questões filosóficas; revelação; "racionalidade cristã"

História Passagens entre mundo antigo e medieval; Idade Média; Romantismo alemão

Literatura Êxodo; Isaías

Religião

Antigo Testamento; interpretações e conceitos judaico-cristãos; Igreja Romana, Reforma protestante; panteísmo grego; crenças ameríndias; taoísmo; confucionismo; budismo; islamismo; monoteísmo × politeísmo

Interdisciplinaridade Língua; geografia; ciências sociais

Remissão a outras UnidadesRazão e paixão {História, razão e paixões}; Realidade e aparência {As aparências enganam?}; Dúvida e certeza {A dúvida, base da investigação}

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Módulo • O infinito atual nas matemáticas

Filosofia – Autores Aristóteles; Cantor; Dedekind; Wittgenstein; Alsemo; Zenão de Eleia; Descartes

Filosofia – ConceitosParadoxo; conjuntos infinitos; séries potencialmente infinitas; equinumericidade; correspondência biunívoca; infinitos maiores que outros

História História da ciência; Grécia antiga; sociedade contemporânea

Ciências exatas Teoria dos conjuntos; teoria do número; algoritmo

Interdisciplinaridade Matemática

Módulo • Quem é finito não pode conceber o sem-fim

Filosofia – Autores Hobbes; Hume

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários Porto; Salles; Deleuze

Filosofia – Conceitos Empirismo; intelecto e sentidos; finitude humana × predicados infinitos; análise da linguagem, do texto

História Era Moderna (o sujeito; empirismo)

Interdisciplinaridade Ciências sociais; ciências da natureza; língua

Remissão a outras Unidades Ordem e caos {A ordem política}

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Índice de boxes bio-filosóficosO livro oferece ao leitor pequenos resumos so-

bre a vida e a obra de importantes pensadores e au-tores. Como muitos deles são referidos em mais de uma seção do livro, o índice abaixo os lista alfabe-ticamente, para sua rápida localização e consulta.

Autor PáginaAgostinho de Hipona 323

Alexandre de Afrodisia 229

Arendt 202

Aristóteles 85

Cícero 230

Condorcet 301

Descartes 126

Freud 273

Gadamer 194

Hegel 296

Heidegger 192

Hobbes 263

Hume 360

Kant 300

Kuhn 306

La Fayette 268

Lévi-Strauss 29

Marx & Engels 247

Merleau-Ponty 209

Newton da Costa 108

Nietzsche 191

Platão 156

Popper 337

Rousseau 166

Schiller 71

Schleiermacher 187

Schopenhauer 59

Sêneca 60

Voltaire 220

Wittgenstein 143

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