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O voo 447 Como uma série de pequenos erros transformou uma cabine de comando altamente tecnológica em armadilha fatal por William Langewiesche A noite caía sobre o aeroporto do Rio de Janeiro no último dia de maio de 2009. Os 216 passageiros que embarcariam num voo rumo a Paris jamais poderiam suspeitar que não voltariam a ver a luz do sol, ou que muitos continuariam presos a seus assentos por dois anos antes de serem encontrados mortos na escuridão abissal do Atlântico, 4 quilômetros abaixo da superfície das águas. Mas foi isso que aconteceu. A tripulação do voo 447 da Air France era composta de nove comissários de bordo e três pilotos – um número maior que o habitual devido às limitações de jornada de trabalho legal numa viagem de 9 200 quilômetros que deveria durar por volta de onze horas. Eram pessoas muito bem treinadas, que voariam num Airbus A330 classificado na categoria wide body (fuselagem larga e dois corredores), por uma das mais prestigiosas linhas aéreas do mundo, uma empresa que é o orgulho de todos os franceses. Ainda hoje – com as caixas-pretas recuperadas, relatórios técnicos franceses amplamente divulgados e abrangentes investigações em curso nos tribunais da França –, parece quase inimaginável que o avião tenha caído. Um pequeno defeito derrubou o voo 447, a breve perda de indicações de velocidade do avião – uma simples falha de entendimento de uma anormalidade, durante um voo estável, reto e nivelado. Os pilotos foram completamente atropelados pelas circunstâncias. Como assim? Descartou-se a resposta mais fácil: não, aqueles três homens não eram de uma incompetência atroz. As demais respostas são necessariamente especulativas, pois os pilotos não podem mais se explicar e haviam mergulhado num frenético estado de confusão antes de morrer. No entanto, a confusão deles nos diz muito. Ela parece ter suas raízes no próprio

Voo 447 Air France - Artigo

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Uma descrição bastante real sobre as circunstâncias do acidente do Air France 447.

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O voo 447

O voo 447Como uma srie de pequenos erros transformou uma cabine de comando altamente tecnolgica em armadilha fatalpor William LangewiescheA noite caa sobre o aeroporto do Rio de Janeiro no ltimo dia de maio de 2009. Os 216 passageiros que embarcariam num voo rumo a Paris jamais poderiam suspeitar que no voltariam a ver a luz do sol, ou que muitos continuariam presos a seus assentos por dois anos antes de serem encontrados mortos na escurido abissal do Atlntico, 4 quilmetros abaixo da superfcie das guas. Mas foi isso que aconteceu.

A tripulao do voo 447 da Air France era composta de nove comissrios de bordo e trs pilotos um nmero maior que o habitual devido s limitaes de jornada de trabalho legal numa viagem de 9 200 quilmetros que deveria durar por volta de onze horas. Eram pessoas muito bem treinadas, que voariam num Airbus A330 classificado na categoria wide body (fuselagem larga e dois corredores), por uma das mais prestigiosas linhas areas do mundo, uma empresa que o orgulho de todos os franceses.

Ainda hoje com as caixas-pretas recuperadas, relatrios tcnicos franceses amplamente divulgados e abrangentes investigaes em curso nos tribunais da Frana , parece quase inimaginvel que o avio tenha cado. Um pequeno defeito derrubou o voo 447, a breve perda de indicaes de velocidade do avio uma simples falha de entendimento de uma anormalidade, durante um voo estvel, reto e nivelado. Os pilotos foram completamente atropelados pelas circunstncias.

Como assim? Descartou-se a resposta mais fcil: no, aqueles trs homens no eram de uma incompetncia atroz. As demais respostas so necessariamente especulativas, pois os pilotos no podem mais se explicar e haviam mergulhado num frentico estado de confuso antes de morrer. No entanto, a confuso deles nos diz muito. Ela parece ter suas razes no prprio progresso em matria de pilotagem e engenharia aeronutica que tanto contribuiu para melhorar a segurana area nos ltimos quarenta anos. Em suma, a automao tornou cada vez mais improvvel que pilotos de linhas areas tenham de se defrontar com graves crises durante o voo mas tambm tornou cada vez mais improvvel que sejam capazes de lidar com esse tipo de crise caso ela ocorra. Alm do mais, no evidente que exista um meio de resolver tal paradoxo. por isso que, para muitos observadores, a perda do Air France 447 se afigura como o mais intrigante e significativo acidente areo dos tempos modernos.

A tripulao chegou ao Rio trs dias antes da partida e se hospedou no hotel Sofitel, na praia de Copacabana. Na Air France, aquele pernoite era muito apreciado. O copiloto mais moo, Pierre-Cdric Bonin, de 32 anos, havia trazido a mulher, deixando em casa dois filhos ainda pequenos. O comandante, Marc Dubois, de 58 anos, viajava na companhia de uma comissria de bordo de folga, que tambm era cantora de pera. No melhor estilo francs, o relatrio sobre o acidente no mencionou a vida privada de Dubois.

Essa omisso, porm, acabou por induzir a concluso de que o cansao no havia desempenhado papel relevante no episdio, embora a atitude desatenta do comandante tenha claramente mostrado o contrrio. Dubois atingira o topo da carreira trabalhando duro e pilotando muitos tipos de aeronaves antes de ser contratado pela Air Inter, uma linha area que s efetuava voos domsticos e foi absorvida pela Air France. Era um veterano, com quase 11 mil horas de voo, mais da metade como comandante. Mas, como se soube depois, ele s havia dormido uma hora na noite anterior. Havia passado o dia fazendo turismo com sua acompanhante.

O Air France 447 levantou voo como programado, s 19h29, com 228 pessoas a bordo. O Airbus A330 um jato dcil, fcil de pilotar, com duas turbinas, uma cabine automatizada e um sistema de controle eletrnico baseado em computadores, que garante um voo extraordinariamente estvel e, em situaes extremas, pode intervir para evitar que os pilotos excedam certos limites aerodinmicos e estruturais. A frota, lanada em 1994, no registrara desde ento uma nica queda de um A330 servindo em linhas areas.

Na cabine, Dubois ocupava o assento da esquerda, posio tradicional do comandante. Embora fosse o piloto em comando em ltima anlise, o responsvel pelo voo , naquela oportunidade estava servindo como piloto assistente, cuidando das comunicaes, checklists e atividades de suporte pilotagem. No assento direita estava o copiloto mais novo na empresa, Bonin, a quem caberia pilotar o avio nas operaes de decolagem e aterrissagem, alm de controlar a automao durante o voo de cruzeiro. Bonin era uma cria da casa: fora treinado desde o incio pela Air France e havia sido designado para tripular os avies Airbus com apenas algumas centenas de horas de voo. Agora j acumulara 2 936 horas, mas isso no significava um up-grade em sua experincia, uma vez que s pilotara os Airbus com controle eletrnico e em regime de piloto automtico.

Bonin acionou o piloto automtico quatro minutos depois de levantar voo. Tratava-se de um procedimento rotineiro, bem como a prtica de utilizar o piloto automtico at pouco antes da aterrissagem. A rota do voo havia sido plotada pelos despachantes operacionais de voo na Frana e fora inserida no computador de bordo antes da partida: era uma rota direta, subindo a costa do Brasil at Natal e dali tomando a direo nordeste para atravessar o Atlntico. A altitude inicial de cruzeiro era de 10 700 metros. A nica complicao meteorolgica consistia numa linha de temporais com relmpagos e troves, associada Zona de Convergncia Intertropical, que cruzava o Atlntico pouco acima da linha do Equador. As imagens de satlite sugeriam a possibilidade de que se desenvolvesse uma situao climtica talvez mais intensa do que o normal, com formaes de nuvens tempestuosas altas demais para serem sobrevoadas, mas com aberturas passveis de serem transpostas mediante desvios laterais.

Naquele momento, a noite era clara e tranquila. Trinta e um minutos aps a decolagem, o piloto automtico nivelou o avio a 10 700 metros, quase a altitude mxima que o Airbus pode voar, dada a temperatura externa e o peso do avio. Os aceleradores automticos regularam a potncia dos motores para atingir a velocidade selecionada de 0,82 Mach, o que no ar rarefeito representava, com as devidas correes de vento, temperatura e densidade, uma velocidade relativa ao solo de 870 quilmetros por hora. Durante a totalidade do voo, a caixa-preta gravou mais de mil parmetros. J o registro de voz da cabine tem um sistema que apaga automaticamente as gravaes a cada perodo de pouco mais de duas horas, a fim de proteger a privacidade dos pilotos. Resultado: o registro de voz entrou em operao vinte minutos antes da decolagem, permanecendo at os momentos finais que culminaram no acidente.

Eram 21h09, hora do Rio. O comandante Dubois e o jovem Bonin haviam se acomodado e a cabine estava em silncio, no fosse o rudo de alguns papis sendo manuseados ou de um assento sendo ajustado. s 21h24, Dubois mencionou que o jantar talvez ainda demorasse, e Bonin respondeu amistosamente que ele tambm estava ficando com fome. Embora no se conhecessem antes do voo, os dois se tratavam informalmente por voc, como praxe entre os pilotos da Air France. No entanto, como as trocas posteriores iriam demonstrar, Bonin se revelava quase respeitoso demais e talvez muito consciente da diferena hierrquica entre ambos.

Uma comissria de bordo entrou na cabine com as refeies e perguntou:

Tudo bem?

Animado, Bonin respondeu: Tutto bene!

Dubois no disse nada. Aparentemente estava com fones de ouvido, escutando pera num aparelho porttil. Dirigindo-se a ele, a comissria perguntou:

E voc? Tudo bem?

Como?, disse Dubois.

Tudo bem? Quer caf, ch?

Tudo bem, ele respondeu.

Dubois passou o aparelho de som para Bonin, para que ele ouvisse a pera. Bonin no disse: Obrigado, agora no, estamos voando com o piloto automtico, mas sou o responsvel pelo comando, ou: No, obrigado, no estou interessado na msica da sua acompanhante. Ps os auriculares, ouviu por alguns minutos e exclamou: S falta mesmo o usque!

A pera acabou ali. Dubois indicou uma linha no mapa eletrnico e disse: Esse aqui o Equador.

Sei.

Acho que voc compreendeu.

Bonin no disse: Olhe, comandante Dubois. J voei cinco vezes para a Amrica do Sul. Em vez disso: Pensei...

Dubois disse: Gosto de saber para onde estamos indo.

Bonin concordou, dizendo: isso a.

Chegou de Paris uma informao meteorolgica dos operadores, acompanhada de imagens da linha de temporais que se desenvolvia frente. Nenhum dos pilotos a mencionou, mas comentrios posteriores sugerem que Bonin estava ficando nervoso. Dubois ento semeou a confuso ao responder a um chamado dos controladores de trfego areo dirigido a outro voo da Air France. Insistiu em retorquir, apesar das dbeis tentativas de Bonin em lhe dizer que se enganara.

Depois de alguns minutos, o controlador simpaticamente desfez a confuso e deu ao voo 447 uma nova frequncia. Problemas semelhantes surgiram mais adiante com relao aos pontos de notificao compulsrios de sobrevoo e frequncias, porm Bonin no interveio. As conversas na cabine eram pouco relevantes, em geral sobre o plano de voo. O avio sobrevoou o porto de Natal e se dirigiu para o mar.

Dubois disse: No fomos incomodados pelos temporais, no ? Essa poderia ter sido uma oportunidade para Bonin expressar sua incerteza acerca das condies climticas frente, mas nesse momento a porta se abriu e uma comissria de bordo entrou, pedindo que reduzissem a temperatura do poro de carga, pois ela trazia carne em sua bagagem. Bonin baixou a temperatura. Quinze minutos depois, uma comissria ligou para informar que os passageiros na parte traseira do avio estavam sentindo frio. Bonin mencionou a carne.

s 22h30, o avio j havia se afastado bastante da costa, escapando ao alcance do radar do controle de trfego areo. Dubois contatou o controle ocenico brasileiro, conhecido como Atlntico. Indicou sua posio e as estimativas de tempo de voo para atingir os dois pontos de referncia mais adiante. O controlador agradeceu e o instruiu a manter a altitude de 10 700 metros. Bonin disse: Muito bem, l vamos ns. Dubois falou: Wilco.[1]O controlador respondeu: Obrigado. Foi a ltima troca de palavras com os operadores em terra.

Bonin estava ansioso para atravessar a Zona de Convergncia Intertropical numa altitude mais elevada, se possvel acima das nuvens, a fim de se manter a salvo das turbulncias. Preocupou-o que Dubois aceitasse a altitude recomendada. Ele disse: Mas no devemos demorar para pedir que nos deixem subir mais. Dubois respondeu: Est bem, porm no fez o pedido.A seu juzo, no havia nada de excepcional na Zona de Convergncia naquela noite: talvez encontrassem alguma turbulncia durante a travessia, mas os sistemas mais violentos poderiam ser evitados com o uso do radar meteorolgico do avio, que lhes permitiria, como sempre, ziguezaguear entre as tempestades mais intensas. Alm disso, no havia nenhuma razo para crer que, voando um pouco mais alto, eles encontrariam condies substancialmente diferentes. Por fim, cumpria notar que a prxima altitude padro na rota que seguiam correspondia a 11 300 metros, o mximo recomendado (ou rec max), conforme o mostrador de navegao.

Tratava-se de uma altitude em que, nas condies da poca, as margens de desempenho seriam estreitas porque o avio estaria voando numa velocidade relativamente baixa e prestes a sofrer uma perda de sustentao aerodinmica (estol). O procedimento de praxe na Air France consistia em preservar maiores margens, evitando que se voasse na altitude mxima. Ambos os pilotos sabiam disso. Um dos mistrios insondveis do voo 447 por que Bonin continuava a querer subir mais.Do lado de fora, a escurido era total. Bonin viu a primeira tempestade no radar, talvez uns 320 quilmetros adiante, e disse: Tem um troo bem na nossa frente. Dubois limitou-se a responder: , eu tambm vi. E deixou o assunto morrer. Um minuto depois ele comentou sobre a temperatura externa, que era bastante fria naquela altitude, ainda que 12 graus Celsius mais alta do que o normal. Bonin disse: , isso mesmo, de outro modo teramos... estaramos numa altitude de cruzeiro bem mais alta. Dubois disse: Ah, ...

Dubois estava lendo uma revista. Desviou a conversa para um artigo sobre parasos fiscais. Bonin tentou se mostrar igualmente despreocupado. s 22h45, disse: Estamos cruzando o Equador. Sentiu o solavanco?

O qu?

Sentiu o solavanco?

Ah. Porra, no.

Bem, c estamos.

No havia solavancos, a noite continuava calma medida que o avio se aproximava da zona turbulenta. Dubois disse: Bem, simplesmente vamos tomar as medidas necessrias. Foi o comentrio mais prximo de uma ordem que ele chegou a dar a Bonin. O piloto baixou a luz da cabine e ligou as luzes de aterrissagem para iluminar o lado de fora. Penetraram uma camada de nuvens. Dubois respondeu chamada de uma comissria de bordo que lhe disse estar assumindo o turno da noite, caso ele precisasse de alguma coisa. Ele retrucou com uma frase carinhosa: Tudo bem, querida, e encerrou a chamada.

Embora o radar houvesse registrado tempestades frente, no se via nenhum relmpago. Eles atravessavam uma rea de turbulncia discreta, ainda sem necessidade de se desviar da rota direta. Bonin disse: Seria bom subir, no? Dubois respondeu: Se houver turbulncia. Ele tinha em mente uma forte turbulncia, que registros posteriores revelaram no ter sido nunca encontrada. Referindo-se s regras relativas a aeroportos passveis de serem usados numa emergncia, ele disse: Estamos entrando na zona Etops,[2]a zona da morte.

E Bonin respondeu: isso mesmo.

O avio estava acumulando carga esttica, causando estalidos nos rdios. Bonin teve a impresso de que estavam voando perto do topo das nuvens. Mais uma vez sugeriu que subissem. Ser que podemos pedir um 3-6 (36 mil ps) fora dos padres? Estamos mesmo no topo. At essa altitude seria boa. Dubois, de forma pouco usual, respondeu sem qualquer ambiguidade: Vamos esperar um pouco, ver se isso passa. As luzes espectrais do fogo de santelmo danavam diante das janelas da cabine.Com mau tempo frente e um jovem copiloto ansioso no comando, Dubois decidiu que era hora de tirar uma soneca. O principal investigador francs, Alain Bouillard, mais tarde me disse: Com sua experincia, se o capito tivesse adiado seu sono por quinze minutinhos e permanecesse em seu posto durante a travessia da Zona de Convergncia Intertropical, talvez a histria tivesse terminado de outra forma. Mas no acredito que tenha se afastado por cansao. Foi mais um comportamento rotineiro, parte da cultura da Air France. E o fato de haver sado da cabine no contrariou as regras. Mesmo assim, foi inusual. Se voc o responsvel pelo resultado final, no tira frias durante o evento principal.

Pouco antes das 23h, hora do Rio, Dubois aumentou a iluminao da cabine, limitando sua viso do exterior, e tocou a campainha do compartimento de repouso da tripulao, um pequeno espao na parte posterior da cabine onde havia dois leitos. O segundo copiloto, que cochilava, bateu na parede divisria em resposta. Era David Robert, de 37 anos, outra cria da casa, porm com mais do dobro da experincia de voo de Bonin dos dois, era o mais experiente e mais antigo na empresa. Robert se formara na cole Nationale de lAviation Civile (Enac), uma das instituies de elite conhecidas como as Grandes coles, e recentemente migrara para os nveis executivos da companhia, onde agora tinha um cargo de gerncia no centro de operaes. Optara por fazer aquela viagem a fim de manter sua qualificao como piloto. Aquele voo era sua primeira misso em trs meses. Aps ser chamado, chegou cabine em dois minutos.

Na curta histria da segurana das linhas areas, as transformaes mais importantes ocorreram nos anos 50, com os avies a jato, bem mais confiveis e fceis de pilotar que os gigantescos e complexos avies com motores a pisto que os precederam. Nas duas dcadas seguintes, medida que crescia a frota mundial de jatos, avanos na rea de engenharia praticamente eliminaram vrios tipos de acidentes associados a falhas mecnicas e fenmenos meteorolgicos. Os aperfeioamentos em matria de segurana foram impressionantes, abrindo caminho para as viagens areas como as conhecemos hoje.

Mas na dcada de 70 surgiu uma nova realidade. Embora a taxa de acidentes houvesse cado, os desastres que ainda ocorriam eram causados quase exclusivamente pelos pilotos aquelas pessoas, muitas ainda em posio de comando, que haviam adquirido uma reputao quase heroica por, no passado, terem superado tanto as falhas mecnicas como as causadas pelo mau tempo. Os erros de pilotagem eram um problema reconhecido havia muito, mas, depois dos jatos, foi como se uma cebola houvesse sido descascada para revelar um ncleo inesperadamente imperfeito. O problema era de carter global.

Na Europa e nos Estados Unidos, um pequeno nmero de especialistas passou a se ocupar da questo pesquisadores, funcionrios das agncias reguladoras, investigadores de acidentes, pilotos de prova e engenheiros. Foi um momento nefasto para os pilotos de companhias areas, que ento comeavam uma v batalha defensiva, ainda em curso, contra a inexorvel reduo dos salrios e do prestgio de que gozavam consequncia dos prprios avanos tecnolgicos que haviam tornado os voos mais seguros. Em termos simples, os dias de glria dos pilotos estavam chegando ao fim e, por mais que isso fosse um infortnio para eles, para os passageiros se comprovou uma coisa boa.

No final da dcada de 70, um pequeno grupo de pesquisadores de uma unidade da National Aeronautics and Space Administration (Nasa), Administrao Nacional da Aeronutica e do Espao, em Mountain View, Califrnia, deu incio a uma avaliao sistemtica do desempenho dos pilotos de companhias areas. Um deles era John Lauber, um jovem pesquisador na rea de psicologia e piloto privado, que mais tarde serviu por dez anos como membro da National Transportation Safety Board e depois chefiou a diviso de segurana da Airbus na Frana. Como parte de seu trabalho na Nasa, Lauber passou muitos anos viajando nas cabines de avies das companhias areas, observando as operaes e tomando notas.

Naquela poca, a maioria das tripulaes inclua um engenheiro de voo, que se sentava atrs dos pilotos e operava os sistemas eltricos e mecnicos da aeronave. Lauber descobriu uma cultura dominada por comandantes autoritrios, muitos deles reacionrios rspidos que no admitiam a interferncia de seus subordinados mais moos. Naquelas cabines, os copilotos tinham sorte se vez por outra lhes era dada a oportunidade de pilotar. Certa ocasio, Lauber entrou na cabine de um Boeing 727 antes que o comandante chegasse, e o engenheiro de voo lhe disse: Voc j deve ter estado numa cabine de comando.

Sim, claro.

Mas talvez no saiba que eu sou o consultor sexual do comandante.

Como assim?

, porque sempre que falo alguma coisa, ele diz: Se eu quiser a porra do seu conselho, eu peo.

Na Pan American World Airways, outrora a principal companhia area norte-americana, tais comandantes eram conhecidos como Clipper Skippers, uma referncia aos capites dos hidroplanos da dcada de 30. A Nasa convenceu a empresa a lhe emprestar um simulador com todos os movimentos, no aeroporto de So Francisco, a fim de conduzir uma experincia com vinte tripulaes do Boeing 747 que se ofereceram voluntariamente. Cenrio: um voo transatlntico rotineiro sai do Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York; surgem vrias dificuldades e o avio precisa retornar ao aeroporto de origem. Tudo havia sido planejado pelo mdico e piloto ingls Hugh Patrick Ruffell Smith, um sujeito de jeito reservado que morreu alguns anos depois e ainda reverenciado por haver reformado as operaes das linhas areas em todo o mundo, salvando incontveis vidas. John Lauber participava ativamente da experincia. Os testes no simulador procuravam ser to realistas quanto possvel, incluindo caf de m qualidade e interrupes de comissrios de bordo.

Lauber me contou que, na Pan Am, alguns gerentes de operao acreditavam que a simulao fosse fcil demais. Eles disseram: Olha, esses caras foram treinados. Vocs no vo descobrir nada de interessante. Pois bem, observamos um bocado de coisas interessantes. Que no tinham tanto a ver com a capacidade fsica dos pilotos a habilidade de p e mo no jargo aeronutico ou o domnio dos procedimentos de emergncia. Pelo contrrio, tudo tinha a ver com o gerenciamento da carga de trabalho e as comunicaes internas. A certeza de que o engenheiro de voo estava fazendo o que um engenheiro de voo precisa fazer, que o copiloto estava operando os rdios, que o comandante estava delegando tais tarefas para tomar as decises certas.

Tudo dependia dos comandantes. Alguns eram lderes por natureza e suas tripulaes se saram bem. A maioria, contudo, era composta de Clipper Skippers, cujas tripulaes se desorganizaram sob presso e cometeram graves erros. Ruffell Smith publicou os resultados em janeiro de 1979, num ensaio que exerceu grande influncia, o Nasa Technical Memorandum 78482. Em resumo, afirmava que o trabalho de equipe mais importante que a competncia individual dos pilotos. Isso ia de encontro a uma longa tradio nos meios aeronuticos, porm correspondia de perto aos achados de outro grupo da Nasa, que realizara um estudo cuidadoso de acidentes recentes e chegara concluso de que, em quase todos os casos, a culpa era da falta de comunicao na cabine de comando.As companhias areas se mostraram receptivas s concluses da pesquisa. Em 1979, a Nasa realizou um seminrio sobre o assunto em So Francisco, ao qual compareceram os chefes dos departamentos de treinamento do mundo inteiro. Para descrever a nova abordagem, Lauber inventou uma expresso que pegou: Gerenciamento dos Recursos da Cabine de Comando Cockpit Resource Management ou CRM, uma abreviao cujo sentido foi mais tarde ampliado para Crew Resource Management,ou Gerenciamento de Recursos da Tripulao.

A ideia consistia em criar uma cultura menos autoritria na cabine, preservando a hierarquia, mas encorajando o esprito de colaborao durante o voo os copilotos (agora denominados primeiros oficiais) passariam a controlar o aparelho e poderiam expressar suas opinies, questionando os capites caso entendessem que estava sendo cometido algum erro. Por seu lado, esperava-se que os comandantes admitissem sua falibilidade, buscassem aconselhamento, delegassem funes e comunicassem seus planos e reflexes.

Como parte do esquema, modificou-se o uso dos simuladores menos esforo seria gasto no aprimoramento das habilidades de pilotagem, e maior nfase seria dada ao trabalho de equipe. Isso ficou conhecido como Line-Oriented Flight Training (Loft), ou Treinamento de Voo em Linha. Como era de esperar, as novas ideias encontraram resistncia por parte dos pilotos veteranos, muitos dos quais comentavam com desdm as concluses da Nasa no passavam de baboseira psicolgica, com seus seminrios que mais pareciam cursos para debutantes. Como nos velhos tempos, eles insistiam que era a competncia e a autoridade deles que asseguravam a vida dos passageiros. Entretanto, pouco a pouco muitos desses pilotos se aposentaram ou foram obrigados a mudar, de modo que, na dcada de 90, tanto o CRM quanto o Loft haviam se transformado no padro aplicado globalmente, ainda que de forma imperfeita.

Conquanto seja difcil quantificar o efeito sobre a segurana, uma vez que tais inovaes esto intimamente associadas a outras que contriburam para melhorar os resultados, o xito do CRM foi to evidente que o mtodo migrou para outras reas, inclusive a medicina: os cirurgies, como os pilotos, j no so mais os pequenos deuses que um dia foram.

Na aviao, a alterao foi profunda. O treinamento mudou, os copilotos ganharam poder e a importncia da capacidade individual dos aviadores foi implicitamente reduzida. Todavia, o ponto mais importante que se aplica ao caso do Air France 447 reside no prprio desenho da cabine do Airbus, como no de todos os Boeings modernos, que pressupe uma comunicao clara e um bom trabalho de equipe. Quando esses elementos no esto presentes, uma crise pode se transformar rapidamente em catstrofe.

Os princpios do CRM, oriundos dos Estados Unidos, adaptam-se facilmente cultura de pases anglo-saxes. Mais problemtica foi sua aceitao em certas naes asiticas, onde ele fere as tradies de hierarquia e respeito pelos mais idosos. Um caso notrio ocorreu em 1997, quando o Boeing 747 da Korean Air se chocou contra um morro numa noite escura ao se aproximar da ilha de Guam. Um respeitadssimo comandante resolveu descer antes do tempo, e nem o copiloto nem o engenheiro de voo manifestaram com a devida nfase suas preocupaes, embora soubessem que ele estava cometendo um erro. Em consequncia do impacto, 228 pessoas morreram. Comportamentos semelhantes estiveram presentes em outros acidentes na sia.

E na Air France? A julgar pela dinmica da cabine antes da queda do voo 447, a disciplina igualitria da Nasa havia se deteriorado, dando origem a um estilo complacente em que copilotos no s se dirigem ao capito dispensando o tratamento de senhor, como alguns comandantes se sentem autorizados a fazer o que bem entendem. Esse sentimento no surge do nada, faz parte do contexto cultural de um pas orgulhoso que se tornou crescentemente inseguro.

Um alto executivo da Airbus mencionou que, na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos, membros da elite no escolhem ser pilotos de linhas areas, enquanto na Frana, como em pases menos desenvolvidos, isso ainda acontece. Essa circunstncia faz com que seja difcil administr-los. Bernard Ziegler, o visionrio piloto de provas e engenheiro francs que est por trs do desenho do Airbus, certa vez me disse que primeiro preciso entender a mentalidade.

Voc realmente acha que eles so to arrogantes?, perguntei.

Alguns, sim. E tm o defeito de serem muito bem pagos, ele respondeu.

Ento no deve haver problema nos Estados Unidos!

Mas Ziegler no estava para brincadeiras. Em segundo lugar, a posio do sindicato de que os pilotos so sempre perfeitos. Pilotos em atividade e tambm pilotos mortos.

No caso do Air France 447, o sindicato chegou a sugerir que era imoral acusar os pilotos porque eles no teriam condies de se defender. Por incrvel que parea, essa opinio to enraizada que at mesmo algumas famlias de vtimas do desastre se alinharam a ela.Em 1953, quando uma tripulao da Air France atirou um Constellation em perfeito estado contra uma montanha durante uma descida rotineira em Nice, o pai de Ziegler, que era gerente geral da companhia, acompanhou o chefe dos pilotos numa audincia com o primeiro-ministro francs. O primeiro-ministro abriu a conversa perguntando: O que o seu piloto fez de errado? Ao que o chefe dos pilotos retrucou: Monsieur, o piloto nunca est errado.Ziegler sorriu ironicamente. Ele to franco que durante algum tempo necessitou de proteo policial. Estava construindo avies to dceis, declarou certa vez, que at mesmo o concierge de seu prdio era capaz de pilot-los. Conversamos logo depois da queda do Air France 447, antes da recuperao das caixas-pretas. A Frana um grande pas no campo da aviao. E Ziegler um patriota. Mas de viso moderna. Desenhou as mais avanadas aeronaves construdas at hoje. Sustentava que, na Air France, a cultura dos pilotos no evolura.Na noite de 31 de maio de 2009, os pilotos do voo 447 certamente no prestaram um bom servio a seus passageiros. Depois que o capito Dubois deixou a cabine para tirar uma soneca, Robert, o copiloto mais graduado, sentou-se esquerda, servindo como piloto assistente. Bonin, direita, continuava encarregado das tarefas bsicas. Em regime de piloto automtico, o avio mantinha a velocidade de 0,82 Mach e seguia rumo a Paris a 10 700 metros de altitude, encontrando vento de proa enquanto o nariz exibia uma elevao de 2 graus e as asas um ngulo positivo de 3 graus o importantssimo ngulo de ataque que garante a sustentao da aeronave.

medida que aumenta o ngulo de ataque, aumenta tambm a eficincia da sustentao porm at o ponto em que o ngulo se torna muito ngreme e o ar que vem de encontro ao avio no consegue mais fluir suavemente por cima das asas. Nesse ponto, o aparelho estola. O fenmeno ocorre com todo e qualquer avio, no tem nada a ver com os motores. Quando estola, a aeronave perde sustentao e suas asas passam a cortar o cu com uma enorme resistncia ao avano, impossvel de ser superada pelo impulso dos motores. O avio inicia uma forte queda com o nariz para cima, frequentemente acompanhada da dificuldade em controlar os movimentos laterais. A nica soluo consiste em reduzir o ngulo de ataque baixando o nariz e mergulhando. Essa uma manobra que, embora conflitante com a intuio, essencial para quem pilota. A recuperao exige a disponibilidade de altitude suficiente, mas em regime de- cruzeiro isso coisa que no falta.

Como comum com avies em altitudes elevadas, o Air France 447 estava voando bem perto de um ngulo de ataque problemtico. Se estivessem 3 graus mais inclinados, a 5 graus teria soado um alarme na cabine; com um ngulo de ataque de 10 graus, teoricamente, o aparelho estolaria. O ltimo parmetro terico, porque no A330, sujeito ao abrangente regime de automao conhecido como Normal Law, o sistema de controle de voo intervm a fim de evitar o estol: ele baixa o nariz e aumenta a potncia dos motores independentemente da ao dos pilotos. Tais intervenes automticas so extremamente raras. A maioria dos pilotos passa a vida sem tomar conhecimento delas a menos que algo muito grave afete sua capacidade de julgamento.

Algo de muito grave ocorreu naquela ocasio, mas por enquanto estava tudo bem. Diante de cada piloto havia duas telas planas alimentadas por fontes independentes. Para um observador leigo, o mais fcil de compreender eram os monitores dos computadores de navegao mapas em constante atualizao que indicam a direo do voo, a rota, pontos de referncia e velocidade com relao ao solo, alm das informaes do radar meteorolgico.

Mas o mais importante eram as telas com os dados bsicos do voo, cada qual contendo uma representao simblica da aeronave em relao linha do horizonte mostrando a inclinao longitudinal (nariz para cima ou para baixo) e a inclinao lateral (asas horizontais ou no), alm da direo do voo, altitude, velocidade aerodinmica e razes de subida ou descida. Uma terceira tela, de reserva, reportava as mesmas informaes, mas em menor escala. com base nessas maravilhas de apresentao grfica de dados que os pilotos mantm o controle enquanto pilotam noite ou em meio a nuvens, ocasies em que o verdadeiro horizonte no pode ser vislumbrado.

Depois que Dubois aumentou a intensidade das luzes da cabine, no se enxergava nada do lado de fora. O avio penetrou em outra camada de nuvens e balanou devido a uma leve turbulncia. Na cabine de passageiros, os sinais de afivelar os cintos de segurana estavam acesos. Bonin chamou a comissria que ficava na parte da frente e disse: Sim, Maryline, Pierre aqui da cabine de comando. Escute, dentro de dois minutos devemos entrar numa rea onde vai comear a balanar mais do que at agora. Ele aconselhou a tripulao a se acomodar em seus assentos e terminou dizendo: Vou te avisar quando sairmos. Na verdade, no chegou a ter tempo.

A turbulncia aumentou ligeiramente. Bonin continuou a lamentar a impossibilidade de subir mais. Mencionou de novo a temperatura extraordinariamente alta do lado de fora: Treze graus, acima do normal. E depois: Putain la vache. Putain!, que pode ser traduzido por: Puta que pariu. Que merda! No havia nenhuma razo especial para esse desabafo. Ele estava ansioso. Prosseguiu: Estamos realmente no topo da camada de nuvens. muito ruim. Tenho certeza de que com 36 mil ps fora dos padres seria melhor...

Robert no respondeu. Ele estava observando a tela de navegao, que mostrava uma tempestade bem frente. Voc no quer ir um pouco para a esquerda?, ele sugeriu. Bonin disse: Como assim? Robert disse: Talvez voc pudesse se desviar um pouco para a esquerda. A frase j soava mais como uma ordem. Bonin selecionou uma direo 20 graus esquerda e o avio obedientemente tomou o novo rumo.

A troca de palavras foi o primeiro passo para uma confusa troca de poder, graas qual Bonin comeou a aceitar a autoridade de Robert, embora sem faz-lo de modo completo.

Ao penetrarem uma rea em que as condies meteorolgicas eram piores, a cabine foi tomada pelo martelar surdo dos cristais de gelo contra os vidros. Bonin reduziu a velocidade do avio selecionando a marca de 0,80 Mach. Robert aprovou com um: No custa nada, equivalente a um sacudir de ombros verbal. Os aceleradores automticos reagiram reduzindo a potncia. O ngulo de ataque aumentou ligeiramente. A turbulncia variava de leve a ocasionalmente moderada. O rudo dos cristais de gelo prosseguiu.

Sem que os pilotos soubessem, os cristais de gelo comeavam a se acumular dentro das trs sondas de presso atmosfrica do aparelho conhecidas como tubos de Pitot , montadas sob o nariz. Sabia-se que ocorria o entupimento daquele tipo especfico de tubo em certos modelos do Airbus e, embora tivesse sucedido raras vezes em altitudes elevadas, isso nunca havia provocado um acidente. Mas o problema fora considerado suficientemente srio a ponto de a Air France ter decidido substitu-los por tubos com um desenho aperfeioado, alm de ter alertado os pilotos. A primeira leva de sondas a serem trocadas havia acabado de desembarcar em Paris e se encontrava num depsito esperando a instalao.

Para o voo 447, chegavam tarde demais: os tubos entupiram rapidamente. E, por isso, pouco depois das 23h10 todos os trs indicadores de velocidade aerodinmica da cabine falharam, atingindo valores impossivelmente baixos. Tambm por conta do entupimento, embora sem maior importncia, as indicaes de altitude caram, mostrando erroneamente 110 metros. Nenhum dos pilotos teve tempo de prestar ateno a esses indicadores antes que o piloto automtico, reagindo perda de informaes vlidas sobre a velocidade aerodinmica, se desligasse do sistema de controle e fizesse soar o primeiro de muitos alarmes uma verdadeira carga de cavalaria eletrnica.Por razes similares, os aceleradores automticos mudaram de regime, fixando-se no empuxo atual, enquanto o sistema de controle eletrnico, que necessita dos dados sobre a velocidade a fim de funcionar plena capacidade, se reconfigurou, passando da Normal Law para um regime de menor nvel de proteo chamado Alternative Law. Com isso, eliminou-se a proteo contra o estol e se alterou a natureza do controle sobre os movimentos de rotao, de modo que, nesse aspecto, o A330 passava agora a ser comandado como uma aeronave convencional. Tudo isso, alm de necessrio, constitua uma reao mnima e lgica do equipamento.Assim, a situao naquele momento era a seguinte: o avio prosseguia em regime de cruzeiro, avanando em linha reta sem subir ou descer, com a potncia das turbinas fixa e sem automatismo a fim de garantir uma velocidade tranquila de 0,80 Mach. A turbulncia era to leve que se podia caminhar nos corredores, embora com certa instabilidade. Exceto pela pequena reduo no indicador de altitude, a nica falha substancial residia nos indicadores de velocidade aerodinmica e mesmo assim a velocidade real da aeronave no havia sido realmente afetada. No havia nenhuma crise. O episdio era irrelevante e no duraria muito tempo. O avio estava sob o controle manual dos pilotos e, caso eles no tivessem feito nada, isso seria tudo que precisavam fazer.

Naturalmente, eles ficaram surpresos. De incio, entenderam apenas que o piloto automtico fora desligado. Uma leve turbulncia fez o avio se inclinar um pouco. Bonin pegou, direita, a alavanca denominada side-stick, que tem como funo a pilotagem manual, parecida com a usada em jogos eletrnicos. Ele disse: Assumi os controles! E Robert respondeu: O.k. Soou um alerta, que consistia num acorde em d, porque as indicaes de altitude haviam se desviado da marca selecionada no painel, de 10 700 metros.

provvel que Bonin estivesse apertando demais o side-stick: a caixa-preta, que registra seus movimentos, mostrou mais tarde que desde o incio ele estava fazendo movimentos exagerados, tentando nivelar as asas, mas utilizando gestos bruscos como um motorista em pnico que busca controlar o carro numa derrapagem. Isso fez com que o avio oscilasse para a esquerda e para a direita, possivelmente devido pouca familiaridade de Bonin em manobrar o Airbus sob o regime da Alternative Law, sobretudo numa altitude elevada em que as caractersticas normais dos movimentos de rolagem se alteram. Fosse ele mais experiente, poderia ter aliviado a presso no stick usando apenas as pontas dos dedos, com o que a aeronave se estabilizaria. Os registros revelam que ele nunca fez isso.Mas o pior muito pior foi o que Bonin fez no sentido vertical: ele puxou o stick para trs. No comeo, essa pode ter sido uma reao impulsiva diante da falsa indicao da pequena queda de altitude. Porm, Bonin no apenas o moveu para trs, mas lhe deu um puxo que o fez recuar trs quartos da deflexo possvel, continuando ainda a pux-lo depois. Alain Bouillard, o investigador francs, equiparou sua reao ao gesto instintivo de quem assume a posio fetal. A aeronave reagiu com uma subida insustentvel, provocando a reduo da velocidade e o aumento do ngulo de ataque.

Seis segundos depois que Bonin assumiu os controles, com o alerta de altitude em d maior soando na cabine, ouviu-se um breve aviso de perda de sustentao: uma voz mecnica de homem disse uma vez ESTOL, em alto e bom som. O alerta em d maior recomeou. Robert perguntou: O que foi isso? O avio respondeu: ESTOL, ESTOL, ESTOL, e o alerta em d maior voltou a soar. Nenhum dos pilotos compreendeu a mensagem. O ngulo de ataque subira para 5 graus e as asas ainda se comportavam bem, embora houvesse chegado a hora de fazer algo com relao aos alertas. Bonin disse: No temos uma boa indicao de... velocidade! E Robert concordou, dizendo: Perdemos as velocidades!

Ao se darem conta de que as indicaes de velocidade aerodinmica haviam deixado de operar, o problema deveria estar resolvido. Conquanto Bonin houvesse manipulado freneticamente os controles, os dois tinham avaliado de modo correto a falha onze segundos depois que ela ocorreu, to rpido quanto seria de esperar. O nariz estava elevado em 11 graus, uma inclinao excessiva em grande altitude, mas no necessariamente extrema.A soluo era simples e fundamental para quem pilotava o aparelho. Bonin s precisava baixar o nariz at reposicion-lo na inclinao normal de cruzeiro prxima da linha do horizonte e no alterar a potncia. O avio retomaria o voo de cruzeiro na mesma velocidade em que voara at ento, mesmo se, no momento, aquela velocidade no pudesse ser conhecida.

Mas Bonin continuou a puxar a alavanca para trs, empinando nervosamente o nariz ainda mais. Ser que ele ansiava pelo cu limpo que acreditava estar logo acima? Ser que estaria pensando no procedimento de emergncia velocidade aerodinmica no confivel que s recomendado para baixas altitudes, onde h grande disponibilidade de potncia nas turbinas e a maior preocupao consiste em evitar o choque com o solo? Ter suposto que o avio voava rpido demais? Os indcios encontrados posteriormente indicariam que ele talvez tivesse pensado isso, mas, nesse caso, por qu?Mesmo que ele no tivesse ouvido o anncio de estol, ele estava mantendo o nariz apontado para cima a potncia disponvel era insuficiente e, com ou sem indicaes vlidas, o voo em alta velocidade naquelas condies era fisicamente impossvel. Um conceituado projetista de cabine da Boeing ele prprio piloto certa vez me disse: No existem maus pilotos. Existem pilotos medianos que tm maus dias. Afirmou que esse princpio est na base do desenho das cabines dos Boeings. Mas, se Bonin era um piloto mediano, o que dizer dessa mdia?

Ao menos uma resposta dada pelo homem sua esquerda. Depois que concordou que as indicaes de velocidade aerodinmica tinham sido perdidas, Robert desviou a vista das principais telas que exibiam as informaes sobre o voo, abandonando assim seu papel fundamental como piloto assistente que, segundo as normas do CRM, consistia em monitorar as aes de Bonin. Em vez disso, comeou a ler em voz alta os dizeres de uma tela de mensagens que lista certas condies do sistema e, em alguns casos, oferece conselhos sumrios acerca dos procedimentos.Naquele momento, o conselho era irrelevante para a situao, mas levou Bonin a anular a instruo anterior para que a potncia fosse mantida inalterada, com o que as turbinas automaticamente aceleraram para alcanar o empuxo mximo. Foi a primeira de uma srie de alteraes para mais e para menos na potncia das turbinas, complicando o quadro para os pilotos e certamente despertando a ateno de alguns passageiros.

Robert continuou a ler o que aparecia na tela de mensagens e disse em voz alta: Alternative Law. Alternative. Protees desligadas. Isso pelo menos era relevante. Significava que as asas poderiam perder sustentao e que os alertas precisavam ser obedecidos. No entanto, no claro que Robert tenha processado suas prprias palavras ou que Bonin as tenha ouvido.

Robert disse: Espere, estamos perdendo... Parou. Vinte segundos haviam se passado desde a perda das indicaes de velocidade. Estavam subindo atravs do ar rarefeito a 11 mil metros de altitude e vinham perdendo velocidade. O nariz estava elevado num ngulo de 12 graus.

Robert olhou de novo para os principais indicadores de voo e comentou: Preste ateno na sua velocidade! Preste ateno na sua velocidade! Com isso talvez desejasse se referir ao ngulo de subida, pois as indicaes de velocidade continuavam obviamente invlidas. Bonin deve ter entendido assim, porque respondeu: O.k., estou descendo! Baixou o nariz, mas apenas em meio grau. O avio continuou a subir.

Robert disse: Estabilize!

Bonin disse: Est bem!

Desa!, continuou Robert apontando para um medidor da taxa de subida ou de altitude. Pelo que aparece aqui, estamos subindo! De acordo com todos os trs, voc est subindo! Desa!

Est bem!

Voc est... Desa!

No cabe aqui uma longa explanao sobre o sistema de controle do Airbus, que criticado pela Boeing. No entanto, se ele contm um erro de projeto, o problema est em que as alavancas de controle do piloto e do copiloto no so mecanicamente interligadas e no se movem de modo simultneo. Isso quer dizer que, quando o piloto no comando move sua alavanca, a outra permanece estacionria na posio neutra. Caso ambos movimentem seus sticks ao mesmo tempo, soa um aviso de DUPLA ENTRADA, e o avio reage somando os valores de ambos os comandos efetuados pelos pilotos.

A fim de evitar que isso cause algum problema na hiptese de que uma alavanca fique emperrada, cada uma delas possui um boto de prioridade que torna a outra inoperante e permite o controle total. Esse arranjo depende de uma comunicao eficaz e de um bom trabalho de equipe para funcionar como previsto. Na verdade, representa um caso extremo de fortalecimento do poder do copiloto e de aceitao dos princpios do CRM no desenho da cabine. Naquele momento, essa falta de interligao no permitiu que Robert sentisse os movimentos descoordenados de Bonin.

Bonin empurrou a alavanca para a frente e o nariz baixou, mas um pouco rpido demais para o gosto de Robert, reduzindo o fator de carga para a constante gravitacional 0,7 G, que um tero da acelerao vertical que os faria deixar de sentir o efeito da gravidade. Robert disse: Devagar! Aparentemente, s ento ele se deu conta de que as turbinas haviam acelerado. O que isso?, perguntou.

Bonin respondeu: Estamos subindo! Tudo indica que, nesse momento, um deles ps os aceleradores na potncia mnima, mas seis segundos depois o outro os acionou mais uma vez. No claro quem fez o qu, porm provvel que Bonin tivesse optado pela marcha lenta e Robert pela acelerao. Bonin a essa altura havia baixado o nariz para uma inclinao de 6 graus, reduzindo a razo de subida.

Embora estivessem numa situao insustentvel, s precisavam baixar o nariz mais alguns graus a fim de voltar situao inicial. No entanto, por alguma razo Bonin no fez isso e Robert parecia ter esgotado suas ideias. Continuou tentando acordar o comandante Dubois, apertando sem parar o boto que permitia a comunicao com o compartimento de descanso da tripulao situado atrs da cabine. Dizia: Porra, onde que ele est?

Bonin recomeou a puxar a alavanca para trs, erguendo o nariz 13 graus acima do horizonte. O ngulo de ataque aumentou e, trs segundos depois, o avio ps-se a tremer violentamente devido ao incio do estol. Isso ocorre quando o fluxo de ar se modifica para uma situao de turbulncia ao passar por cima das asas. medida que prossegue a perda de sustentao, fica difcil at mesmo ler os indicadores na cabine de comando devido violenta oscilao.

Levado pela inrcia, o avio continuou a subir. Uma comissria de bordo chamou no intercom, aparentemente em resposta a Robert, que talvez a tenha acionado por engano ao tentar acordar o comandante. Ela disse: Sim? Como se o violento tremor no fosse suficiente, voltou a soar o alarme, alternando os avisos de ESTOL, ESTOL, ESTOL com um trinado. Os alertas soaram continuamente pelos 54 segundos que se seguiram.

A comissria insistiu: Sim?

Robert a ignorou. Talvez tenha se dado conta de que haviam perdido sustentao, porm no afirmou: Estolamos. Para Bonin, disse: Procure manusear o menos possvel os controles laterais. Esse um detalhe sem importncia para a recuperao de um ESTOL, praticamente nada se comparado necessidade de baixar o nariz.A comissria disse: Al?

Lutando com os controles, e encontrando uma dificuldade crescente para manter as asas na horizontal, Bonin disse: Estou em Toga, no? Toga o acrnimo para Take Off/Go Around, que se usa para indicar potncia mxima. Trata-se de outra manobra menos importante para a recuperao de um estol, especialmente em grande altitude e prximo ao teto operacional de uma aeronave, em que a potncia mxima significa na realidade uma pequena capacidade de impulso. Bonin continuou a levantar o nariz, agora atingindo a elevada marca de 18 graus.Porra, disse Robert, ele vem ou no vem?

A comissria disse: No responde, e a chamada foi encerrada com um clique.

A essa altura, os tubos de Pitot haviam descongelado e os indicadores de velocidade tinham voltado a funcionar de modo normal ainda que Bonin ou Robert no tenham se dado conta disso, em parte por ignorar a velocidade que os mostradores deveriam exibir naquele momento, mas tambm por aparentemente no terem tido a presena de esprito de compar-la com a velocidade fornecida pelo gps que constara todo o tempo na tela de navegao.

Durante os doze segundos seguintes nenhum dos dois abriu a boca. Em meio a reiterados alarmes de estol, o avio perdeu a capacidade inercial de subida, atingiu o topo de um arco parablico a 11 600 metros de altitude e comeou a descer com o nariz para cima e as asas num ngulo de ataque de extraordinrios 23 graus. Um minuto e dezessete segundos haviam transcorrido desde o comeo do problema, o que um tempo muito longo. A razo de descida cresceu rapidamente para cerca de 1 200 metros por minuto, resultando num aumento ainda maior do ngulo de ataque. A vibrao aumentou intensamente.

Dubois por fim bateu na parede da cabine avisando que estava a caminho. Robert continuava a apertar o boto de chamada. Ele disse: Mas as turbinas continuam a funcionar! Que diabo est acontecendo? ESTOL. ESTOL. ESTOL. Perguntou: Voc compreende o que est acontecendo ou no?

Bonin respondeu: Merda, no controlo mais o avio! No tenho nenhum controle do avio! Como a asa direita estava perdendo mais sustentao que a esquerda, a aeronave estava se inclinando naquela direo.

Robert disse: Controles para a esquerda! Acionando o boto de prioridade em sua alavanca, ele assumiu o controle do aparelho. Porm, s o manteve por um segundo antes que Bonin, lanando mo de seu prprio boto de prioridade e sem pronunciar uma nica palavra, retomasse o controle. Isso fez Robert imaginar que sua alavanca tivesse falhado. Ele disse: Porra, o que est acontecendo?Bonin disse: Acho que estamos voando incrivelmente rpido. Com o nariz levantado e pouca potncia disponvel? Como era possvel que ele estivesse to confuso?

A porta da cabine se abriu e Dubois entrou. Reinava um estado de comoo. Com bastante calma, ele perguntou: O que est acontecendo? ESTOL. ESTOL. ESTOL. A cabine balanava fortemente.

Robert no disse: Perdemos as indicaes de velocidade aerodinmica e esse cara fez o avio subir. Estamos no regime da Alternative Law. Subimos para 11 600 metros e agora estamos descendo. O que ele disse foi: No sei o que est acontecendo.

Bonin completou: Estamos perdendo o controle do avio!O Airbus passava pela altitude inicial de 10 700 metros. O nariz estava num ngulo de 15 graus e a velocidade de descida era de cerca de 3 mil metros por minuto e crescia. O ngulo de ataque, embora no indicado nos mostradores da cabine, era de incrveis 41 graus. A asa direita estava irreversivelmente inclinada num ngulo de 32 graus, e o avio se desviava de seu curso, numa trajetria em arco, sobre as trevas do oceano Atlntico.

Robert disse a Dubois: Perdemos totalmente o controle do avio e no estamos entendendo nada! Tentamos de tudo!

A confuso de Robert refletiu-se mais tarde na frustrao de engenheiros e especialistas em segurana area de todo o mundo. O A330 uma obra-prima em matria de projeto e um dos aparelhos mais prova de acidentes construdos at hoje. Como poderia uma breve falha na indicao de velocidade aerodinmica, em momento no crtico do voo, ter levado aqueles pilotos da Air France a se meterem em tamanha enrascada? E como poderiam no ter compreendido que o avio havia estolado? Paradoxalmente, as razes do problema parecem residir nos prprios desenhos de cabine que tanto contriburam para fazer com que as ltimas geraes de avies de carreira sejam to seguras e fceis de pilotar.Isso tanto verdade para o Boeing quanto para o Airbus, porque, malgrado suas rivalidades e diferenas, ambos os fabricantes desenvolveram solues similares para as cabines de comando. A primeira foi a eliminao do posto de engenheiro de voo, a despeito das veementes objees dos sindicatos de pilotos, que alegavam que a segurana estaria comprometida. Isso ocorreu no final da dcada de 70, no momento em que John Lauber e os pesquisadores da Nasa realizavam seus estudos sistemticos sobre o desempenho das tripulaes areas e concebiam a ideia do Gerenciamento dos Recursos da Cabine de Comando (CRM). Nessa poca, os diversos sistemas individuais de uma aeronave motores, combustvel, componentes eletrnicos, pressurizao, equipamentos hidrulicos etc. tinham se tornado to capazes de autorregulao que j no havia necessidade de um terceiro membro da tripulao que cuidasse de control-los manualmente.

Naqueles tempos a companhia Airbus era o cavalo azaro, responsvel por uma hemorragia de recursos pblicos e produzindo avies que no eram vendidos. A empresa decidiu ento fazer uma aposta decisiva com vistas a fabricar os aparelhos mais avanados que pudessem ser projetados. Ignorando o clamor dos sindicatos, comeou a impor uma tripulao de duas pessoas no comando de seus modelos, dando origem a uma discusso sobre o valor dos pilotos, retomada sempre que um Airbus sofre algum desastre.

A Boeing, que desenvolvia ao mesmo tempo o 757 e o 767, assumiu uma postura mais branda, mas o desfecho estava praticamente anunciado. O Boeing 737 e o Douglas dc-9 j tinham obtido o certificado para operar com dois pilotos, dispensando o engenheiro de voo. Os sindicatos reconheceram a derrota depois que uma fora-tarefa convocada pelo presidente dos Estados Unidos estudou o assunto e concluiu que um terceiro membro da tripulao na cabine de comando, na melhor das hipteses, no passaria de uma distrao.

O problema consistia em desenhar cabines para dois pilotos levando em conta sobretudo os progressos na potncia dos microcomputadores, sensores digitais, mostradores de alta visibilidade e novas possibilidades de navegao que podiam se valer de mapas eletrnicos mveis. Os fabricantes se livraram dos painis eletromecnicos do passado e, com base nas concluses do trabalho da Nasa, equipararam seus novos avies com cabines de comando construdas em funo dos mostradores de tela plana. Esses novos mostradores ofereciam muitas vantagens, inclusive a capacidade de aliviar o atravancamento da cabine ao consolidar as informaes bsicas sobre o voo em algumas poucas telas, empregando smbolos aperfeioados e ocultando a maior parte das informaes remanescentes, que contudo poderiam ser facilmente acessadas. Assim como o CRM, o objetivo consistia em garantir um desempenho melhor e mais consistente dos pilotos e isso foi alcanado.

A automao faz parte do esquema. Os pilotos automticos so conhecidos praticamente desde o incio da era da aviao e os sistemas de componentes foram introduzidos na dcada de 60. Todavia, nos atuais desenhos das cabines a automao centralizada e permite que os sistemas se comuniquem entre si a fim de atuarem como partes de um todo integrado, podendo at mesmo decidir quais informaes devem ou no ser prestadas aos pilotos, e quando.

No mago do sistema esto os computadores gerenciadores de voo, com teclados montados em pedestais centrais. Quase inteiramente pr-programados em terra de acordo com otimizaes decididas pelos operadores das companhias, eles controlam os pilotos automticos ao longo de todas as complexas etapas de cada voo. Em meados da dcada de 80, muitos aparelhos assim equipados, tanto da Airbus quanto da Boeing, haviam passado a integrar a frota mundial, fazendo com que aos pilotos s coubesse, a maior parte do tempo, a observao do funcionamento dos sistemas.

Em 1987, a Airbus deu novo passo ao introduzir os primeiros avies pilotados sem ligaes mecnicas (fly-by-wire airliners), os relativamente pequenos A320, nos quais os computadores interpretam os movimentos das alavancas dos pilotos antes de alterar as superfcies de controle das asas e da cauda. Todas as aeronaves da Airbus desde ento contm tais sistemas, e a Boeing seguiu o mesmo caminho com seus prprios equipamentos.

Esses avies so conhecidos como de quarta gerao, constituindo quase metade da frota global. Desde que foram introduzidos, a taxa de acidentes caiu de modo to drstico que alguns investigadores do National Transportation Safety Board recentemente se aposentaram por falta de atividade no setor. de todo impossvel questionar o xito da automao. Os projetistas que a desenvolveram so alguns dos maiores heris no homenageados de nosso tempo.

No obstante, os acidentes continuam a ocorrer, e muitos deles agora so causados pela confuso na interface entre o piloto e uma mquina semirrobtica. Especialistas tm alertado sobre isso h anos: a complexidade da automao acarreta efeitos secundrios muitas vezes indesejados. Uma das vozes que recomendavam cautela foi a do prestigiado engenheiro Earl Wiener, falecido h pouco, que ensinou na Universidade de- Miami. Ele conhecido por suas Leis de Wiener, uma breve lista que elaborou na dcada de 80. Alguns dos preceitos:

* Todos os dispositivos criam suas prprias oportunidades de erro humano.

* Dispositivos exticos criam problemas exticos.

* Dispositivos digitais eliminam pequenos erros, mas criam oportunidades para grandes erros.

* A inveno a me da necessidade.

* Alguns problemas no tm soluo.

* Um avio suscita o que h de pior num piloto.

* Sempre que se resolve um problema, em geral cria-se outro: a nica esperana de que o problema criado seja menos crtico do que aquele eliminado.

* Nunca se rico o bastante ou magro o bastante (duquesa de Windsor), ou cuidadoso o bastante com o que se programa num sistema digital de controle de voo (Wiener).

Wiener destacou o fato de que a automao reduz a carga de trabalho na cabine de comando quando ela j leve, mas a aumenta quando ela j est alta. Nadine Sarter, engenheira industrial que d aulas na Universidade de Michigan e uma das mais renomadas pesquisadoras na rea, afirmou o mesmo de forma diferente: medida que o nvel de automao aumenta, a ajuda prestada tambm cresce, a carga de trabalho diminui e todos os benefcios esperados so alcanados. No entanto, se por algum motivo a automao falha, paga-se um preo alto. Precisamos pensar se existe um nvel em que os considerveis benefcios da automao podem ser obtidos, mas, caso ocorra algo de errado, o piloto ainda seja capaz de lidar com o problema.

Sarter vem defendendo essa tese h anos e recentemente participou de um amplo estudo sobre o emprego da automao, conduzido pela Federal Aviation Administration e divulgado no segundo semestre de 2013 e que chegou s mesmas concluses. A questo que, por trs da aparente simplicidade das cabines de comando modernas e da facilidade oferecida pelo controle eletrnico, os esquemas so de fato incrivelmente complexos tanto mais porque a maior parte das funes permanece oculta. Os pilotos podem experimentar um grau de confuso que jamais seria atingido numa aeronave mais simples.

Quando mencionei a Delmar Fadden ex-chefe de tecnologia de cabine de comando na Boeing essa complexidade inerente, ele negou enfaticamente que isso representasse um problema. O mesmo sustentaram os engenheiros com quem falei na Airbus. fato que os fabricantes de avies no podem admitir problemas srios que envolvam seus produtos, dadas as responsabilidades legais que da decorrem, porm no duvido da sinceridade deles.

Fadden na verdade disse que, uma vez acrescentadas novas capacitaes ao sistema da aeronave, em particular ao- computador que gerencia o voo, as exigncias de certificao tornam incrivelmente onerosas quaisquer tentativas de elimin-las. E, contudo, caso no sejam eliminadas nem usadas, continuam invisveis nas profundezas do equipamento. Mas ele s foi at a.

Sarter tem escrito sobre as surpresas da automao, com frequncia relacionadas a modos de controle que o piloto no compreende de todo ou que foram acionados automaticamente, talvez com um aviso, mas sem que o piloto dele estivesse consciente. Tais surpresas sem dvida aumentaram a confuso a bordo do Air France 447. Atualmente, uma das perguntas mais comuns numa cabine : O que que est acontecendo agora? A frase de Robert No estamos entendendo nada! foi uma verso extrema disso. Sarter afirmou: Temos hoje esse problema sistmico com a complexidade, e isso no envolve apenas um fabricante. Posso listar dez ou mais incidentes envolvendo cada fabricante em que o problema se relacionou com a automao e a confuso. A complexidade significa que temos um grande nmero de subcomponentes e s vezes eles interagem de modo inesperado. Os pilotos no sabem disso porque no foram confrontados com as condies marginais que esto incorporadas ao sistema.

E continuou: Certa vez, numa sala com cinco engenheiros que haviam participado da construo de determinada aeronave, comecei a perguntar: Como que isso funciona? E eles foram incapazes de dar as mesmas respostas. Fiquei pensando que, se aqueles cinco engenheiros no podiam se pr de acordo, o pobre piloto, caso algum dia se encontrasse naquela situao particular... Bem, boa sorte.

Nos incidentes simples de automao que preocupam Sarter, os pilotos superestimam seu conhecimento dos sistemas do aparelho e ento fazem alguma coisa esperando certo resultado e logo descobrem que o avio reage de forma diferente e parece ter assumido o controle. Isso muito mais comum do que os registros indicam, j que so raras as vezes em que tais surpresas provocam acidentes. E apenas os casos mais srios de falhas de altitude ou transtornos no voo necessitam ser reportados. No Air France 447 houve um componente adicional. O entupimento dos tubos de Pitot sinalizou uma falha que nada tinha de moderna, e a resultante desconexo do piloto automtico induziu uma reao tambm ultrapassada: confie, pois os pilotos iro resolver o problema.

Certamente houve complicaes de automao no que se seguiu, e a esse imbrglio podemos acrescentar a deciso de no interligar as alavancas de controle, prevista no desenho do equipamento. Mas, no Air France 447, o problema de automao foi ainda mais srio. Bonin e Robert pilotavam uma aeronave de quarta gerao com cabine de telas planas e, ao contrrio dos pilotos que pensam saber mais do que sabem, aqueles dois pareciam temer suas complexidades. O Airbus estava reagindo de modo convencional, mas os pilotos, uma vez deparados com uma situao diversa da de um simples e banal voo de cruzeiro, no confiaram na natureza do aparelho. difcil crer que isso pudesse acontecer com os velhos Clipper Skippers, a turma que leva o avio no p e na mo. Mas com Bonin e Robert? Foi como se o progresso houvesse obliterado a compreenso elementar da arte de pilotagem que eles possuam.

O capito Dubois entrou na cabine de comando um minuto e 38 segundos depois da falha dos tubos de Pitot. No se sabe se ficou ajoelhado ou de p atrs de Bonin e Robert, ou mesmo se sentou no assento dobrvel. As condies na cabine de passageiros tambm no so conhecidas. Embora os movimentos incomuns devam ter sido notados por alguns, e aqueles sentados na frente possam ter ouvido os alarmes, no h indcios de que tenha se instalado um clima de pnico, tampouco se registraram gritos.

Na cabine de comando, a situao havia ultrapassado os limites dos testes de voo. Depois que Dubois chegou, o aviso de estol cessou por um tempo, basicamente porque o ngulo de ataque era to extremo que o sistema rejeitou a informao, considerando-a invlida. Isso conduziu a uma reverso nefasta que durou at quase o momento do impacto: a cada vez que Bonin baixava o nariz, tornando o ngulo de ataque marginalmente menos severo, o alarme de estol voltava a soar um reforo negativo que pode t-lo congelado no propsito de forar a subida (supondo que ao menos estivesse ouvindo o alarme de estol).

Dubois apontou uma indicao no instrumento primrio de voo e disse: Olha a, usa isso, usa isso.

Robert repetiu a ordem com maior urgncia: Usa isso, usa isso! Tente usar isso!

O alarme de estol soou de novo. Bonin disse: Estou com um problema, no tenho mais um indicador de velocidade vertical! Dubois apenas grunhiu em resposta. Bonin disse: No tenho mais nenhum indicador! No procedia. Ele tinha indicaes, mas no acreditava nelas. A taxa de descida era agora de 4 600 metros por minuto.

Robert compartilhava a mesma descrena. Ele disse: No temos um s indicador vlido!

Bonin disse: Tenho a impresso de que estamos voando incrivelmente rpido! No? O que vocs acham? Alcanou a alavanca dos freios aerodinmicos, conhecidos como speed-brakes, e a puxou.

Robert disse: No. No! No acione os freios de modo algum!

No? Est bem! Os freios foram recolhidos.

Os dois continuavam a manipular suas alavancas, se revezando nos controles, um anulando as aes do outro. Bonin disse: Ento ainda estamos descendo!

Robert respondeu: Vamos subir!

Durante 23 segundos, o capito Dubois no havia pronunciado uma s palavra. Robert por fim o provocou: O que voc acha? O que voc acha? Est vendo o qu?

Dubois respondeu: No sei. Est descendo.

Em sua defesa, pode-se dizer que o comandante estava diante de uma cena indecifrvel. Chegara depois da perda de controle, ainda que sua posio como observador constitusse de fato uma vantagem. Nada sabia sobre a falha original da indicao de velocidade aerodinmica. Tinha agora um mostrador funcional, exibindo baixas velocidades aerodinmicas, uma baixa velocidade em relao ao solo, um posicionamento de nariz alto e uma grande descida em curso. Acrescentem-se os reiterados avisos de estol, a vibrao significativa e a dificuldade de controlar os movimentos de inclinao lateral. Teria sido til contar com um indicador do ngulo de ataque algum que fosse capaz de indicar tais extremos , mas o que poderia estar acontecendo se no um estol?

Bonin conseguiu reverter a persistente inclinao para a esquerda. Ele disse: Aqui estamos! Olha... Est bem. Voltamos a nivelar as asas No, no quer ficar A aeronave estava balanando para a direita e para a esquerda em ngulos de 17 graus.

Dubois disse: Nivele as asas. O horizonte artificial.

Ento as coisas ficaram mais confusas. Robert disse: Sua velocidade! Voc est subindo! Ele provavelmente queria dizer que Bonin estava levantando o nariz, porque com certeza o avio no estava subindo. Ele disse: Desce! Desce, desce, desce!, mais uma vez aparentemente se referindo ao ngulo de inclinao longitudinal.

Bonin disse: Estou descendo!

Dubois retrucou: No, voc est subindo.

Bonin talvez tenha se dado conta de que a referncia era inclinao longitudinal. Perguntou: Estou subindo? O.k., ento vamos descer.

A comunicao na cabine de comando estava se deteriorando. Robert disse: O.k., estamos em Toga.

Bonin perguntou: Qual a situao agora? Em altitude, o que temos? Aparentemente ele estava ocupado demais para verificar por si prprio.

Dubois disse: Porra, no possvel.

Em altitude, o que temos?

Robert disse: O que voc quer dizer com altitude?

Isso mesmo, estou descendo, no?

Sim, est descendo.

Bonin nunca teve a resposta que desejava, mas o avio estava passando pela marca dos 6 100 metros. Inclinou-se fortemente para a direta, num ngulo de 41 graus. Dubois disse: Ei, voc, voc est em... Nivele as asas!

Robert repetiu: Nivele as asas!

o que eu estou tentando fazer!

Dubois no estava satisfeito. Repetiu: Nivele as asas!

A alavanca est puxada toda para a esquerda!

Robert movimentou sua prpria alavanca. Uma voz artificial disse: DUPLA ENTRADA.

Dubois disse: O leme de direo. Isso resolveu o problema, o avio se equilibrou. Dubois disse: As asas esto niveladas. Vai de leve, de leve.

Confuso, Robert disse: Perdemos tudo na asa esquerda! No tenho nada l!

Dubois respondeu: O que voc tem?. E ento: No, espera!

Embora nunca se tenha conseguido estabelecer o que de fato ocorreu, os investigadores mais tarde estimaram que, quando o avio baixou de 4 mil metros, esse foi o ltimo momento em que a recuperao teria sido teoricamente possvel. A manobra exigiria um piloto perfeito para baixar o nariz pelo menos em 30 graus abaixo da linha do horizonte e mergulhar, aceitando uma grande perda de altitude a fim de acelerar e encontrar uma velocidade e um ngulo de ataque que permitissem ao avio voltar a voar, saindo do mergulho pouco acima das ondas e subindo com fora suficiente para no exceder o limite de velocidade do aparelho, de forma suave para evitar uma falha estrutural.

Talvez haja um punhado de pilotos no mundo capazes de realizar tal feito, mas aquela tripulao da Air France no contava com nenhum deles. Segundo um velho ditado na aviao, as razes pelas quais voc se mete numa encrenca se transformam nas razes pelas quais voc no escapa dela.

Bonin disse: Estamos estamos l, estamos chegando ao nvel 100! Nvel 100 corresponde a 10 mil ps, ou aproximadamente 3 mil metros. uma referncia comum em operaes normais. Costumava-se dizer que, abaixo dessa altitude, voc est em terra de ndios. Agora se diz que a cabine de comando precisa estar completamente silenciosa, significando que no pode haver a menor distrao; dilogos, s os estritamente necessrios.

Robert disse: Espera! Eu... eu tenho os... eu estou no controle, eu! Ele no acionou seu boto de prioridade e Bonin no largou sua alavanca. A voz artificial disse: DUPLA ENTRADA. O ngulo de ataque do avio continuou em 41 graus.

Bonin disse: Como que pode? Como que continuamos a descer to rpido?

Robert indicou ao comandante Dubois o painel de controles no teto, dizendo: Tente ver o que voc consegue fazer com os controles a em cima! Os primrios, todo o resto.

Dubois disse: No d para fazer nada, nada.

Bonin disse: Estamos chegando ao nvel 100! E quatro segundos depois: Dois mil e 700 metros! Ele estava lutando para manter as asas niveladas.

Dubois disse: Suave com os lemes.

Robert disse: Sobe, sobe, sobe, sobe! Queria dizer: Nariz para cima!

Bonin disse: Mas j estou puxando a alavanca at o limite faz um tempo! DUPLA ENTRADA.

Dubois disse: No, no, no! No sobe! Queria dizer: No levante o nariz!

Robert disse: Ento baixa! DUPLA ENTRADA.

Bonin disse: Vai em frente voc tem os controles. Ainda estamos em Toga. Algum disse: Senhores... Fora disso, durante os treze segundos que se seguiram ningum falou nada. Treze segundos, veja em seu relgio o que isso representa. Robert estava pilotando. Os alarmes automticos ressoavam na cabine.

Dubois disse: Cuidado voc est empinando o nariz.

Robert disse: Estou empinando o nariz?

Est empinando.

Bonin disse: Bem, precisamos fazer isso! Estamos a 1 200 metros! Mas empinar o nariz o que desde o comeo havia criado o problema para eles. O sistema de alarme que anunciava a aproximao do solo comeou a soar. Uma voz artificial disse: RAZO DE AFUNDAMENTO, ARREMETA.

Dubois disse: Vamos, sobe. Com isso, parece, ele aceitou a ideia de que ia morrer.

Bonin era mais moo. Tinha a mulher l atrs e duas crianas em casa. Assumiu o controle, dizendo: Vamos! Sobe, sobe, sobe!

Robert disse: Porra, vamos cair! No pode ser! Mas o que que est acontecendo?

Os alarmes soavam GANHE ALTITUDE, alarme de altitude, ESTOL, alarme de altitude, GANHE ALTITUDE, PRIORIDADE DIREITA. Ao mesmo tempo, Robert e Bonin disseram: Puta que pariu, vamos morrer.

Dubois disse calmamente: Inclinao de 10 graus.

Mil e um, 1 002. O voo 447 ento se espatifou de barriga no Atlntico equatorial. Eram 23h14 da noite no Rio, quatro horas e quinze minutos aps a decolagem, quatro minutos e vinte segundos desde que surgira o problema. Dois anos depois, quando foi recuperada a caixa-preta, os registros mostraram que o avio se afastara 225 graus de sua rota e estava voando diretamente rumo ao oeste com o nariz erguido num ngulo de 16 graus e as asas quase niveladas; totalmente estolado, avanava a apenas 107 ns, mas com uma velocidade vertical, apesar da potncia mxima nas turbinas, de cerca de 3 400 metros por minuto. O impacto foi devastador. Todos a bordo morreram instantaneamente e os escombros mergulharam nas profundezas do oceano. Em meio aos destroos encontrados pouco tempo depois boiando na superfcie, estavam cinquenta corpos, inclusive o do capito Marc Dubois.

Para os projetistas de jatos comerciais, h alguns fatos da vida imutveis. crucial que suas aeronaves voem com tanta segurana e de forma to barata quanto possvel dentro dos limites impostos pelo vento e pelas condies atmosfricas. Uma vez resolvidas as questes de desempenho e confiabilidade, eles precisam confrontar o mais difcil, que so as aes dos pilotos. H mais de 300 mil pilotos de companhias areas no mundo, de todas as culturas. Eles trabalham para centenas de linhas areas na privacidade das cabines de comando, onde no fcil monitorar seu comportamento. Alguns dos pilotos so soberbos, mas a maioria tem uma capacitao mediana e alguns poucos so simplesmente ruins. Para piorar, com exceo dos melhores, todos se creem mais competentes do que so.

A Airbus efetuou amplos estudos que mostram ser isso verdade. O problema no mundo real que os pilotos que derrubam seus avies ou apenas queimam combustvel excessivamente so difceis de serem identificados em meio aos demais. Um engenheiro da Boeing comentou: Os pilotos so como qualquer outra pessoa. Alguns se revelam heris sob presso, outros tremem e fogem. Em qualquer caso, difcil prever. Voc quase precisa de uma guerra para saber. Mas, naturalmente, no se pode ter uma guerra para saber. Em vez disso, o que se pode fazer tentar imaginar o que ocorre dentro da cabine de comando.

Primeiro, voc descarta o Clipper Skipper, pois ele detm o poder unilateral de provocar um problema, e o substitui pelo conceito do trabalho de equipe o assim chamado Gerenciamento de Recursos da Tripulao , que encoraja o sistema de pesos e contrapesos e exige que todos os pilotos se revezem no controle do aparelho. Com isso, j seriam necessrios dois para causar uma encrenca. Em seguida, voc automatiza os sistemas de componentes a tal ponto que eles exijam um mnimo de interveno humana, e os integra num todo robtico capaz de se automonitorar. Depois, cria um monte de redundncias. Acrescenta computadores de gerenciamento de voo nos quais as rotas possam ser programadas em terra, ligando-os a pilotos automticos capazes de pilotar o avio da decolagem at o momento de taxiar, aps a aterrissagem.

Depois de profundas reflexes, projeta cabines de comando minimalistas que estimulem o trabalho em equipe por sua prpria natureza, ofeream excelentes padres ergonmicos e sejam construdas em torno de mostradores que evitam exibir informaes impertinentes, mas fornecem alarmes e indicadores de situao quando os sistemas sentem que so necessrios. Por fim, acrescenta o controle eletrnico (fly-by-wire). Nesse ponto, aps anos de trabalho e bilhes de dlares de custos de desenvolvimento, voc chegou ao tempo atual. Tal como projetado, a autonomia dos pilotos foi severamente restringida, mas os novos aparelhos garantem voos mais suaves, mais precisos e mais eficientes alm de serem tambm mais seguros.

natural que alguns pilotos se oponham, mas isso parece estar vinculado a diferenas de culturas e geraes. Na China, por exemplo, as tripulaes no se importam. Na verdade, gostam da automao e dependem dela com gosto. Em contraste, um empregado da Airbus me contou sobre um encontro entre um piloto britnico e seu superior numa companhia area no Oriente Mdio, no qual o primeiro reclamou que a automao havia tirado toda a graa de sua vida, e o superior respondeu algo assim: Olha, seu babaca, se voc quer se divertir, trata de ir velejar num barco. Ou voc pilota usando a automao ou vai arranjar outro emprego.

Ele continuou no emprego. Ocorreu uma transformao histrica na profisso de piloto. Na privacidade da cabine de comando e fora das vistas do pblico, os pilotos foram relegados ao papel prosaico de gerentes de sistemas, de quem se espera que monitorem os computadores e vez por outra os alimentem usando os teclados, mas sempre mantendo as mos longe dos controles e s intervindo no raro caso de uma falha. Em consequncia, o desempenho normal dos pilotos medocres se equiparou ao dos pilotos medianos, e os pilotos medianos no tm grande importncia. Se voc est fabricando um avio de carreira e procura vend-lo em todo o mundo, isso bom. Desde a dcada de 80, quando a mudana comeou, os dados sobre a segurana so hoje cinco vezes melhores, atingindo a marca atual de um acidente fatal para cada 5 milhes de partidas. Ningum pode racionalmente advogar um retorno aos tempos glamorosos de outrora.

No obstante, h preocupaes at mesmo entre as pessoas que inventaram o futuro. Delmar Fadden, da Boeing, explicou: Dizemos: Muito bem. Vou cuidar de 98% das situaes que posso predizer, e os pilotos tero de cuidar dos 2% que sou incapaz de prever. Isso coloca um problema importante. Vou obrig-los a fazer alguma coisa apenas 2% do tempo. Veja bem o nus que imponho a eles. Primeiro, tm de reconhecer que est na hora de intervir, quando em 98% do tempo no esto intervindo. Ento, espera-se que eles lidem com os 2% que ns fomos incapazes de prever. Quais so as informaes? Como vamos oferecer algum treinamento? Como vamos suprir os dados suplementares que os ajudaro a tomar as decises? No h uma resposta fcil. Do ponto de vista do projeto, ns nos preocupamos de verdade com as tarefas que lhes pedimos para executar apenas ocasionalmente.

Tal como pilotar o avio?, perguntei.

Sim, isso tambm. Uma vez que voc submete os pilotos automao, suas habilidades manuais se deterioram e a sensibilidade com relao ao comportamento do aparelho se esvai: a pilotagem se transforma numa tarefa de monitoramento, uma abstrao numa tela, uma espera pouco estimulante, como a expectativa pelo prximo hotel. Nadine Sarter disse que o processo conhecido como desabilitao. Ele particularmente agudo nos crculos dos pilotos de longo alcance e mais graduados, em especial aqueles que se revezam no controle com tripulaes duplicadas. No Air France 447, por exemplo, o capito Dubois havia voado uma cifra respeitvel de 346 horas nos seis meses anteriores, porm s fizera quinze decolagens e dezoito aterrissagens. Calculando generosos quatro minutos para cada decolagem e aterrissagem, isso significa que Dubois havia controlado efetivamente seu side-stick por, no mximo, cerca de quatro horas num ano. Os nmeros para Bonin eram parecidos, e menores para Robert. A maior parte da experincia dos trs consistia em se sentar numa cabine de comando e observar o funcionamento do equipamento.

A soluo pode parecer bvia. John Lauber me disse que, com a introduo do CRM e da automao integrada na dcada de 80, Earl Wiener saiu pregando a necessidade de treinamento com tudo desligado. Segundo Lauber, de tempos em tempos, preciso desligar todos aqueles troos. Controle total do piloto. Pilotar como se tratasse de um avio.

O que aconteceu com essa ideia?

Todo mundo disse: Sim, sim, precisamos fazer isso. E acho que, durante algum tempo, talvez tenham feito.

Nadine Sarter continua a refletir sobre esse tema, e vem tentando desenvolver interfaces melhores entre o piloto e o equipamento. Nesse nterim, ela diz, cumpre no mnimo baixar os nveis de automao (ou ignor-la) quando ela surpreende o piloto.

Em outras palavras, numa crise, no se deve se limitar a ler os alarmes automticos. Os melhores pilotos descartam naturalmente a automao quando ela se torna um estorvo, mas aqui tambm parecem influir caractersticas culturais. Os estudos de simuladores mostram que os pilotos irlandeses, por exemplo, jogam fora com prazer suas muletas, enquanto os asiticos se apegam fortemente a elas. evidente que os irlandeses esto certos, mas no mundo real o conselho de Nadine Sarter no fcil de ser aceito. A automao simplesmente persuasiva demais. Os benefcios operacionais superam os custos. A tendncia no sentido de mais automao, no de menos. E, depois de abandonar suas muletas, muitos pilotos hoje no teriam condies de andar.

Esta outra consequncia no proposital de projetar aeronaves que qualquer um capaz de pilotar: todo mundo se candidata a uma oferta de emprego. Alm da deteriorao das capacitaes bsicas de gente que no passado poderia ser um piloto competente, os jatos de quarta gerao abriram espao para pessoas que, para comeo de conversa, talvez nunca tenham tido tais capacitaes e jamais deveriam ter entrado numa cabine de comando. Como resultado, o aparato mental dos pilotos de companhias areas mudou. Sobre isso h quase uma unanimidade universal na Boeing e na Airbus, assim como nos crculos de investigadores de acidentes, funcionrios de agncias reguladoras, gerentes de operaes areas, instrutores e acadmicos: hoje, as pessoas que pilotam so diferentes das que pilotavam no passado e, conquanto ainda haja excelentes profissionais na ativa, a base de conhecimento se tornou em mdia muito tnue.

Parece que estamos presos numa espiral em que o desempenho humano medocre gera automao, que prejudica o desempenho humano, que gera mais automao. Esse padro comum na vida moderna, porm bastante agudo no campo da aviao. O Air France 447 foi um caso notvel. Na esteira do acidente, os tubos de Pitot foram substitudos em vrios modelos da Airbus. A Air France contratou uma reviso independente dos procedimentos de segurana que revelou a arrogncia de alguns dos pilotos da empresa e sugeriu reformas; numerosos peritos recomendaram a instalao de indicadores de ngulo de ataque nas aeronaves, enquanto outros advogaram o treinamento de estol a grandes altitudes, recuperao de imprevistos, atitudes incomuns, voo sob a Alternative Law e bom senso aeronutico.

Tudo isso muito bom, mas nada far grande diferena. Numa poca em que os acidentes so extremamente raros, cada um se torna um evento nico e improvvel de ser repetido em moldes idnticos. Na prxima vez ser outra companhia area, alguma outra cultura e algum outro defeito mas certamente envolver a automao e nos deixar perplexos quando ocorrer. No futuro, a automao se expandir at lidar com falhas e emergncias durante o voo. E, medida que as estatsticas de segurana forem melhorando, os pilotos sero pouco a pouco expulsos da cabine de comando. Tal dinmica se tornou inevitvel.

Ainda ocorrero acidentes, mas chegar o dia em que s poderemos culpar as mquinas.

[1]Nas conversaes conduzidas por rdio, o termo Wilco uma abreviao de will comply, ou seja, assim farei. (N.T.)

[2]Etops o acrnimo de Extended Range Twin Operations (Operaes de Alcance Ampliado para Jatos de Duas Turbinas). So regras da Federal Aviation Administration (FAA), Administrao Federal de Aviao dos Estados Unidos, que permitem a aeronaves como o Airbus A330 o percurso de rotas antes proibidas, dada a distncia dos aeroportos onde possam aterrissar, em caso de emergncia com uma nica turbina funcionando. Na linguagem coloquial dos pilotos, o acrnimo significa Engines Turning Or Passengers Swimming (Turbinas Funcionando ou Passageiros Nadando), referncia ao pouso forado no mar se as duas turbinas entrarem em pane.