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1 VOZES DO RIO Heitor Herculano Dias Contos © Heitor Herculano Dias [email protected]

VOZES DO RIO Heitor Herculano Dias Contos · 2019-04-27 · Uma tarde de domingo A lagartixa Questão de espaço ... envoltos pela iluminação vermelha, azul e prata. Sobre o estrado,

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VOZES DO RIO

Heitor Herculano Dias

Contos

© Heitor Herculano Dias

[email protected]

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Quem encontra prazer na solidão, ou é fera selvagem ou é Deus.

ARISTÓTELES

Com os meus sinceros agradecimentos a Helena Frenzel pela

cuidadosa leitura do original e criteriosas observações.

Para Wanilde

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SUMÁRIO

Boleros

A entrevista

Três amigos

Dona Helena

Só enquanto o diabo deixa

O próximo

Idos latidos

Uma tarde de domingo

A lagartixa

Questão de espaço

Quem paga hoje?

O anúncio

A última página

O mundo

As pernas curtas da mentira

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BOLEROS

No salão os pares deslizam em harmonia, envoltos pela

iluminação vermelha, azul e prata. Sobre o estrado, os músicos

se esmeram na execução de mais um bolero, ritmo sabidamente

reconhecido como o preferido pelos frequentadores das

domingueiras do Coliseo Atlético Club. Creusa e a amiga

Esmeralda não perdem por nada deste mundo a dança no clube,

mesmo que seja para permanecerem as duas sentadas a tomar

Coca Cola a tarde inteira. Bom, mas também chegar algum

cavalheiro só pra querer apertar um pouquinho demais e ficar

feito abelha, no ouvido da gente, dizendo umas bobagens de

aproveitamento da situação, melhor não aparecer nenhum

mesmo, é a opinião de Creusa.

“Eu, hein! Ainda mais quando vem aquele bafo, cerveja

pura”, concorda Esmeralda lançando alegremente o rosto para

cima no ato de uma inocente baforada, sorriso zombeteiro, o

brilho do dente de ouro num canto dos rubros lábios

caprichosamente envernizados por Helena Rubinstein.

Aos últimos acordes de La Barca, Armando vem saindo

do corredor de acesso aos sanitários, dobra com cuidado o

lenço em que acabou de retocar o enxugamento das mãos, e

busca abrir caminho entre os pares de regresso às mesas.

Navega entre dezenas de sorrisos e caretas de quem apreciou

ou não o desempenho de cada parceiro, passam sonsos

cavalheiros a tocar com a ponta dos dedos costas decotadas. Os

diálogos daqui e dali substituem então os sopros do trombone,

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o tique-taque ritmado das maracas e o exagerado espanhol

apátrida da vocalista.

“Parece que uma de nós foi sorteada“

Esmeralda se curva sobre a toalha quadriculada em

direção ao ouvido de Creusa após reparar naquele senhor de

branco vindo em direção a elas. A introdução de um samba

canção provoca a debandada dos cavalheiros desacompanhados

rumo a uma possível parceira, enquanto os casais previamente

formados deixam seus lugares, mãos dadas, à caça do melhor

espaço na pista.

Armando faz uma ligeira curvatura, braço direito

adiantado, palma da mão voltada para cima no aguardo

do esperado toque de aceitação.

“A senhorita me permite?”, é a Creusa que o convite é

feito, os lábios do cavalheiro desenhando esperançoso sorriso

encimado por um bigodinho bem aparado e tingido de negro. A

escolhida lança o sorrateiro olhar à amiga, antes ele que

ninguém, é a senha despachada; amassa com vagar o resto do

cigarro no cinzeiro de latão e afasta a cadeira, em seus olhos

um brilho divertido. Entrelaçam os dedos, Esmeralda observa

curiosa, ele tem jeito de saber dançar, e despeja o restante da

Coca Cola no copo.

Logo aos primeiros passos de dança, ela se convence de

que acertou no palpite: a coluna ereta do cavalheiro, o modo

como sua mão direita toca as costas nuas da amiga, a

habilidade em cavar sem problemas um espaço bastante para

que a dupla não esbarre em outros pares, tudo isto dá certeza a

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Esmeralda de que a primeira dança desta tarde não será

decepcionante para a amiga Creusa.

''De noite, eu rondo a cidade, a te procurar, sem

encontrar''.

A vocalista capricha no modo triste da canção, que

neste instante traz a Esmeralda recordações da época em que

morou em São Paulo, quando o rádio divulgava demais essa

mesma melodia, lá na casinha de Vila Maria. Seu ex-marido

comentou certa ocasião que esses versos são o símbolo da noite

paulistana.

''Vai dar na primeira edição, cena de sangue num bar

da Avenida São João''.

“Quer continuar?”. Armando abaixa a cabeça, olhos

fincados no decote de Creusa. Ela faz o sinal afirmativo

balançando duas vezes o queixo. Por que não esse bolero que

agora se inicia? Antes esse coroa do que ficar esquentando o

traseiro lá na mesa; mas aposto que a Esmeralda não tira os

olhos da gente.

O ritmo agora é mais veloz, foi-se a dor de cotovelo do

samba canção, e retorna o clima sensual de quadris, pernas e

nádegas em evolução cadenciada ao som da madeira das

baquetas e das chacoalhantes maracas. A vocalista traz o

microfone portátil aos lábios como num beijo extasiado. Cerra

os olhos banhados em rímel para lançar os vocábulos

castelhanos embaladores dos pares.

“Já te disseram que você é muito leve pra dançar?”

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“Quem, eu?”. Creusa se faz de desentendida, sente as

pontas dos dedos de Armando um pouco mais firmes em sua

cintura, ele exala um ligeiro perfume que ela conheceu há

tempos atrás, moda entre os homens de meia idade, argentino,

parece que o nome era Vitesse, ou coisa assim. Aproveita

quando deslizam bem junto à mesa onde Esmeralda, pernas

cruzadas, marca os compassos com as pontudas unhas sobre a

mesa, e de um jeito cômico faz discreta careta na direção da

amiga.

“Você vem sempre aqui?”, é a pergunta sussurrada do

cavalheiro.

“Nem sempre”, mente: não perco uma domingueira, é o

que pensa com vontade de rir de sua própria mentira, mas

incentiva o diálogo.

“Ai, desculpe, errei agora, me distraí! Pisei o senhor?”

Armando encolhe o pescoço para trás na intenção de,

agora, ver-lhe os olhos.

“Pisou nada!”, galante, ele capricha no volteio. “O

senhor, não, por favor: você!”

Creusa dá uma risadinha de encabulada.

“Já sei. O Senhor está no céu, é o que dizem, né? Tá

bem. Você!”

Sorrisos de concessões lado a lado. Agradável essa

dama que arrumei, é a análise de Armando, felizmente não me

vem perfumada demais, coisa muito comum nas frequentadoras

dessas domingueiras, mas tive a impressão de que ela fez

qualquer sinalzinho pra amiguinha dela. Esmeralda faz um

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gesto em direção ao garçom. Armando e Creusa vêm

caminhando em direção à mesa, o bolero terminou, novo

intervalo.

De pé em frente a Esmeralda, ele se aventura no elogio.

“Sua amiga é uma exímia dançarina!”

Ligeiro olhar de cumplicidade trocado entre as duas.

Entendem-se muito bem, há mais de dez anos saindo juntas,

desde que Esmeralda voltou de São Paulo com o casamento

terminado.

“Que nada, o senhor ..., desculpe, você é que é um

tremendo pé de valsa!”. Riem os três da saída bem humorada

de Creusa. Armando mexe no paletó, recompõe-se dos volteios

na pista, mostra-se desconfortável.

“Bom, se me permitem, volto pro meu lugar”.

Esmeralda mostra algum interesse em prolongar a

conversa.

“Sua mesa, onde é?”

Armando encolhe os ombros.

“Hoje não consegui nenhuma, fico de pé lá naquele lado,

onde está o bar”, volta-se indicando o local. “Quando começa a

música, saio caçando”, ri do próprio termo e estuda o efeito da

frase nas feições de Creusa, no momento abrindo a bolsa à

procura de um cigarro. Ocultos sob a toalha de plástico, os

joelhos das duas amigas se cutucam na mensagem do atenção

ao que o velho está querendo.

O convite parte de Esmeralda.

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“Se arrumar uma cadeira, tudo bem, pode sentar aqui

com a gente, não é, Creusa?”

Armando faz uma pausa, olha em volta, será que ainda

acho alguma cadeira a essas alturas? O salão está lotado,

vamos ver. Talvez não convenha, é o que imagina, dúvidas

aflorando quanto ao que afinal desejariam dele. Observa sobre

a mesa as duas garrafas de Coca Cola. Bom, pelo menos, ao

que parece, não estão tomando cerveja, bem mais cara do que

refrigerante. Ele analisa.

Esmeralda se ergue.

“Vocês dois me desculpem, mas preciso ir ao toalete”,

recolhe a bolsa e se afasta.

Momento de dúvida para Armando: ficar fazendo

companhia a Creusa, ou sair de fininho e esperar? Mas se

gostou de dançar com ela, do toque daquelas costas morenas e

macias, seria melhor ficar ali por perto, na certa algum

concorrente está de olho para tirá-la na próxima dança. Os

músicos já se apressam de volta ao estrado, ele observa.

Eis o garçom com a bebida, deposita duas garrafinha na

mesa e olha para Armando. Creusa abre a bolsa.

“Quanto é mesmo?”

“Nada disso, deixe comigo”. Armando enfia a mão no bolso

interno do largo paletó de linho branco. - “Faço questão, por

favor! Fico até aborrecido se ...”

“Quanto é?”, ele, erguendo o rosto, indaga ao garçom.

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Coca paga, o garçom se afasta, deixando nas feições de

Armando rugas de apreensão.

“A Esmeralda devolve a você, não precisava se

preocupar!”

”Pelo amor de Deus! Que bobagem!”, Armando reitera

o oferecimento, mas Creusa já se ergue aos primeiros acordes

dos pistons em surdina com Moonlight Serenade.

“Ah, mas esta é divina, a minha preferida”, Creusa

revira os olhos.

“Aceita mais esta?", ele estende a mão a Creusa, que

lhe sorri no coquetismo desenxabido dos seus cinquenta e dois

anos, e ambos tomam o caminho do centro do salão de mãos

dadas.

Na orquestra a dedicação profissional dos pistonistas e

trombonistas na execução da clássica melodia americana traz

enlevo aos pares, o acoplamento das mãos e o suave mas

decidido toque na cintura das damas trazendo aos cavalheiros a

ilusão momentânea de verdadeiros reis, cada qual um Fred

Astaire redivivo, com certeza invejado pelos cavalheiros que se

deixaram ficar ao redor da pista.

Lá no alto, sobre as cabeças em rodopio, o espelhado

globo cumpre fielmente a missão de auxiliar as notas musicais

com seus lampejos prateados distribuídos aqui e acolá,

mandando para bem longe qualquer cansaço, congelando

possíveis artrites, fechando provisoriamente o baú dos temores

e preocupações rotineiras existente em cada coração.

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Glen Miller se foi, e eis um novo bolero. Armando

reestrutura seus passos para conduzir Creusa, pois os dois

navegarão agora nas ondas de veludo já entoadas pela sensual

voz da vocalista da orquestra.

"Cuanto tiempo desfrutámos de este amor ...".

Armando nota com tristeza, através de uma fresta

momentaneamente aberta entre os pares, que a amiga de sua

dama ainda não retornou à mesa. Na certa começará a

bebericar sua Coca Cola, quem terá pago será a dúvida na

cabeça dela, e Creusa, ao sentar-se, dirá que foi o gentil

cavalheiro. Quais palavras trocarão a respeito dele? Armando

não tem dúvidas quanto a isso: aquele velho ridículo, com um

bigodinho que, pelo amor de Deus!

Mas neste instante a cintura, as costas macias desta

alegre morena não valem a mínima preocupação. Talvez, quem

sabe, faça até bem para a saúde eu caminhar de volta pra casa,

uma hora no máximo, andando devagar. Da próxima vez, com

toda certeza, não me esqueço de separar o trocado pra

passagem de volta, hoje vim com a conta certinha do ônibus.

Se desfalcasse a grana do pagamento do aluguel do quarto, na

certa teria problemas com a Dona Graziela. Ah isso com toda

certeza!

“Cansou?”, entusiasmado, faz pressão nos dedos da

parceira.

“Não, por mim tudo bem”, a proximidade do corpo de

Creusa obscurece a figura do ônibus sumindo em meio à

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orquestra, certamente sem muitos passageiros, pois hoje é

domingo.

Paciência, vivamos o presente. Não vale a pena chorar

pelo preço de uma simples garrafa de Coca Cola. Hoje ele volta

a pé pra casa, mas se sentindo nas nuvens dá um volteio mais

caprichado; procura caprichar na condução da dama, para ele

tão delicadamente dócil e macia. Seus olhos estão semicerrados,

a vocalista é encantadora; tudo o conduz a um sonho

formidável, tão sedutor e imperdível como são estas

domingueiras.

"Perfume de gardenia, flor en tu boca, perfume de

gardenia, perfume del amor".

A ENTREVISTA

Jackson atira o paletó sobre a poltrona, sente-se cansado, seus olhos ardem, e um gosto amargo lhe sobe à boca. Da cozinha vem o cheiro de fritura, peixe frito mais uma vez, Moema esteve na feira, e a solução encontrada foi trazer meio quilo de pescadinha.

− Oi, amor, cansado? − Um pouco, dia ruim hoje. Não dá pra diminuir o fogo?

Esse cheiro está tomando conta de tudo! Ela conhece o marido muito bem para saber quando o

trabalho dele não anda em boa maré. Reclamar do cheiro de peixe frito! Essa é muito boa, pois ele sabe que a grana está curtíssima pra gente ter carne todo dia. Há mais de um ano que Jackson vem batalhando nesse trabalho de vender títulos de clubes, e pelo jeito tem pouca gente hoje em dia interessada nisso. Mas Moema é de boa paz. Não deseja armar uma batalha a mais, mesmo porque o marido acaba de chegar da rua, cabeça quente, condução difícil, ônibus apertados, a viagem até o Encantado leva em média uma

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hora, por aí. Tenta amenizar o desânimo de Jackson: − Na feira estava tudo pela hora da morte, meu bem, fui

com a Esmeralda, ela ficou abismada e não comprou quase nada, precisava ver -; Jackson esboça uma careta, afrouxa o nó da gravata surrada, no gesto o odor da camisa suada.

− Virou coleguinha dessa vizinha agora, é? Estou gostando de ver!

Ela ameaça um sorriso, sabe o porquê do comentário de Jackson, mas se limita a dar de ombros e retorna à cozinha.

− Deixa cuidar do fogo, senão queima tudo. −Vou é tomar um banho, tirar essa catinga do ônibus,

gentinha fedorenta, muito pior que esse seu peixe. O telefone toca. Moema, gritando lá da cozinha: − Amor, atende aí.

Ele, que já começou a se despir, volta do banheiro de cuecas, má vontade nos gestos. É dona Creusa, sua sogra.

− Não, dona Creusa, está tudo bem, a Moema tá lá na cozinha terminando a janta.

− Quem era, Jackson? − Sua mãe. Disse que liga depois. Moema retorna à sala e liga a televisão, hora do Jornal

Nacional; começa a arrumar a mesa, toalha dobrada ocupando metade da mesa arredondada; afasta a jarra com rosas de plástico e um cinzeiro. Que bom seria se o Jackson parasse de fumar, meu Deus, só piora a saúde e deixa a casa toda impregnada. Põe os dois pratos, talheres, traz a jarra com o refresco de caju, os cubos de gelo refletindo a luz mortiça da lâmpada ao centro do teto; nua, desprotegida, porque o globo caiu e se quebrou durante uma faxina. A voz do locutor toma conta do aposento; do banheiro vem o ruído de chuveiro. Moema, enxugando as mãos no pano de pratos, procura prestar atenção ao que é informado pelo repórter bem penteado. Bonito mesmo esse cara, hein!

Dim-dom, soa a campainha, é Aparecida, quer saber se Moema teria fósforos, os dela se acabaram.

− Boa-noite, Seu Jackson, me desculpe a pressa, nem cumprimentei o senhor.

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Moema fica sem jeito. O marido sequer levantou o rosto do prato, concentrado em separar algumas espinhas do peixe. Volta envergonhada para a mesa, serve-se de refresco, estuda as feições de Jackson,.

− Coitada, amor, ela é tão atenciosa, prestativa. Jackson, cortando-a. − Interesseira, Moema, não se iluda, eu conheço essa

gentinha, vai por mim! Não adianta argumentar com ele, ainda mais nos dias em

que chega cansado, quando descarrega toda a frustração por não ter vendido nada em cima de quem lhe aparecer pela frente. Se for a pobre da Esmeralda então, coitada! Ele sempre foi assim, recorda Moema enquanto começa a recolher a travessa do peixe e a panela com feijão, mas de uns tempos pra cá piorou muito. Nem adiantou aparecer na televisão, outro dia mesmo, o caso daquele jogador argentino. Jackson não comentou nada, ela se lembra deles dois assistindo à reportagem especial, contando como um jogador de futebol de um time da Argentina foi preso em campo, no Morumbi, só porque chamou um jogador brasileiro de negro.

Mesmo sendo assim mulatinha, igual à Esmeralda, ele vira a cara, faz pouco caso mesmo. Mas para que se aborrecer com o marido agora? Quem sabe a situação no trabalho dele melhore; tinha a promessa de emprego na firma de um primo, carteira assinada e salário não tão ruim assim. Só não sei se essa birra com preto iria acabar, mesmo com o Jackson empregado; afinal de contas vivemos num país de gente de tudo quanto é cor, ainda mais aqui pelo subúrbio, que está cheio de gente preta, mulatos; difícil de ver um branquinho como dizem ter lá pro Paraná, Santa Catarina. Somos todos filhos de Deus, mas o Jackson não pensa assim.

Moema se lembra de que sua falecida sogra falava que o marido era tal e qual o Jackson: batizou os filhos, todos homens, com nomes de presidentes dos Estados Unidos. Afirmava ele que nos Estados Unidos os pretos sabem o seu lugar, e não é assim como no Brasil, não!

Bom, mais um dia que se inicia; Jackson acaba de sair para

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o enfrentamento da difícil e maçante tarefa de vender títulos de motéis clubes, o mesmo que, como ele próprio compara, vender brasas ao Diabo.

Moema já tirou a mesa do café da manhã, deu um jeito ligeiro no cabelo, e está pronta também, não para oferecer fogo ao Diabo como fala Jackson, mas para enfrentar os filhinhos do próprio: a turma dos vinte e seis alunos do primeiro grau que a aguardam lá na distante escola pública da Ilha do Governador

A campainha do telefone coincide com o giro da maçaneta da porta do apartamento..

− Sim, Julieta, quase que você não me pega em casa, estava já de saída, mas fala.

− S-sim, pode falar. Não, o Jackson já saiu, queria falar com ele?

Notícia animadora. Julieta conversou com um cunhado, dono de uma firma de informática, um homem a quem a amiga sempre admirou; subiu na vida sozinho, e hoje tem um grande escritório com clientes de primeira, tipo IBM e algumas firmas japonesas.

À noite, mal Jackson tira o paletó, vindo da rua após mais um dia de andanças e tentativas mal sucedidas na venda de títulos, Moema lhe transmite o recado:

A Julieta, uma colega minha lá da Ilha, telefonou hoje de manhã Eu estava já abrindo a porta quando ela me chamou; disse que o cunhado dela está precisando de gente na firma dele.

− É? Firma de quê? − pergunta jogada tal e qual o paletó lançado sobre o sofá, sem um mínimo de interesse ou cuidado.

Ela vai com calma. − Diz que é um grande escritório, com trabalho de

informática. − Entendo nada disso, Moema, você sabe − ele se vira já

na porta do quarto, desabotoando a camisa. − Sei, amor, custa nada tentar. É no Castelo, ela conhece

o lugar, diz que é um escritório e tanto. Assinam carteira, dão vale refeição, décimo-terceiro ...

Edifício De Paoli, oitavo andar, na portaria Jackson tem que mostrar a identidade.

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− Obrigado, pode subir -, o empregado da portaria lhe devolve a carteira após anotar os dados.

Na ampla sala de espera, decorada com vasos de plantas ornamentais e um enorme painel em cores vivas, a recepcionista sentada atrás de ampla mesa com tampo de vidro faz a chamada pelo interfone:

− Doutor Alfredo, o senhor Jackson. Diz a moça que num instante ele será atendido, pergunta-

lhe se aceitaria um cafezinho, ou talvez água. Não, ele apenas balança a cabeça em emburrada negativa, desconfiado de tanta gentileza de quem nunca o viu mais gordo, e escolhe o comprido sofá estofado em couro negro montado sobre armação de aço inoxidável. À sua frente, a mesinha oval com três pilhas de revistas:Veja, Isto É, algumas outras cujos títulos falam nomes em inglês: Newsweek, Financial Review, Time, algumas tomadas à mão por Jackson aleatoriamente. Justamente quando ele renuncia ao exame das revistas e elege os joelhos da recepcionista como passatempo visual, vem o aviso:

− Senhor Jackson, por favor − a jovem se ergue para comboiá-lo rumo a uma porta dupla esmaltada em branco com frisos dourados.

Ali se encontra ele, entre paredes de lambris ocupadas em grande parte por gravuras de caçadas antigas, com os caçadores trajando casacos vermelhos e elegantes chapéus negros, a cavalgar furiosos corcéis precedidos por matilhas de esguios cães; reproduções de pinturas com motivos marinhos; e mais umas três semelhantes nas cores, como que borradas, a algumas gravuras anteriormente vistas por Jackson numa revista de turismo, onde Paris era o assunto.

Senta-se na poltrona macia, estofamento em napa esverdeada, diante da ampla mesa carregada de enfeites, porta-retratos, dois porta-lápis encapados em couro; algumas pastas de cartolina colorida, um copo de aparente cristal com água pela metade, e um cinzeiro de cristal; formando um L com a mesa, outro móvel menor sustenta um computador e uma impressora.

Em meio a tudo isso, duas mãos de dedos manicurados emergem de elegantes e alvos punhos duplos com abotoaduras

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douradas, complementos por uma camisa riscada em azul e branco; uma dessas mãos, a bem da verdade portentosa mão, se adianta à sua companheira e se dirige justamente à cata de sua correspondente no corpo do visitante. Jackson vê lá adiante, além dos braços e ombros do possuidor daquelas mãos, um colarinho duro e branco a envolver o largo laço de uma elegante gravata cor de vinho. Acontece então que o alvo colarinho, a camisa de finos riscos azuis, a bonita gravata, e a abotoadura dourada têm todos os suas matizes ofuscados num repente. Tanto a mão que aperta a sua quanto o forte pescoço a surgir gravata acima, e mais ainda aquele rosto, onde dentes perfeitos se mostram num sorriso afável, são total e irremediavelmente bem escuros, negros, repelentes para Jackson.

Moema, animação em pessoa, mal aberta a porta, lança-lhe a indagação esperançosa:

− E aí, como foi a entrevista? − Nada feito, Moema. − Nada feito como, Jackson? Por quê? − decepção

sofrida na voz. − Gostei do ambiente, não, posso pegar coisa melhor. E Jackson parte para o banho, para ele hoje mais

necessário do que nunca, a começar pelas mãos.

TRÊS AMIGOS

Em memória do Índio Galdino

O emblema do clube Vasco da Gama, belo trabalho feito

em latão, sempre atraiu a atenção de quem se dignava olhar ao menos por uns poucos segundos para o tosco carrinho de madeira, construído com tábuas arrebanhadas por ele aqui e ali, sob o qual prendera as quatro rodinhas de rolimã. Em uma das extremidades daquele caixão móvel ficavam as duas travas que suportavam um pedaço de cabo de vassoura, onde as mãos do negro Joaquim se apoiavam para dirigir seu veículo de carga. Entulhando-o de pedaços de papelão amarrados por sebosas fitas plásticas, ele fazia invariavelmente o mesmo percurso através as

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ruas do velho centro da cidade, Mem de Sá, Gomes Freire, Lavradio, até recolher-se, tarde da noite, debaixo de qualquer marquise, para suas poucas horas de sono.

Seus dois amigos, Manoel e Antônio, bem mais novos do que ele, faziam o que podiam para velar por seu sono, uma dormida com poucos sonhos e muitos sobressaltos, pois que os trocados adquiridos com a venda do papelão tinham que ser vigiados atentamente, sob pena de o café com pão seco do dia seguinte permanecer unicamente em seu famélico desejo.

Há anos que os três companheiros andavam juntos, inseparáveis, todos conhecidos pelos frequentadores dos botequins da região unicamente por seus apelidos, muito embora de lusitanos nada possuíssem, a começar por Joaquim, crioulo retinto que nem sequer origem de português ultramarino possuía para justificá-lo. Às vezes se esquecia de que por Claudionor lhe tratavam em seus dias de mocidade, mas se instado a mostrar algum papel onde estivesse testificado seu verdadeiro nome de nascença, nada poderia oferecer como comprovação de seu verdadeiro nome de batismo, considerando-se não mais que um eufemismo esse termo, privilégio dos felizes cristãos que tiveram salpicada sua testinha com água da sacra pia católica.

Durante suas inúmeras noitadas de recolhimento forçado em delegacias policiais, graças a alguns copos de cachaça além da conta, que culminavam por entreveros contra os coparticipantes dos abrigos sob as incontáveis marquises da cidade, declarara sempre aos impacientes plantonistas da lei se chamar Claudionor. De quê, não lhe perguntassem por que ele nada poderia esclarecer.

O emblema vascaíno, achado em um terreno baldio transformado em estacionamento clandestino, vez por outra nas avançadas horas da madrugada em hotel de alta rotatividade para os carecedores de economias, foi por ele pregado cuidadosamente na frente do seu transportador de papelão, e não demorou muito para lhe granjear o epíteto de Vascaíno, logo substituído por Joaquim, para muitos um sinônimo.

Destino ingrato, o dos três inseparáveis amigos, condenados a viver pelas tristes, escuras e escarradas vielas, que de dia ainda continham sinais para lhes alegrar, qual uma ou outra

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saudação, uma brincadeira qualquer concernente ao grande emblema vascaíno, e na melhor das hipóteses alguns centavos a mais no quilo do papelão vendido. Quando a noite descia com suas luzes coloridas dos pequenos hotéis, o vai-e-vem dos perambulantes solitários à espreita pelos cantos, e os perfis ondulantes das bundas e seios nos tristes portais, a única preocupação de Joaquim e seus companheiros era escolher o ponto mais estratégico para mais uma noite ao relento, de preferência diante da porta de um banco.

Nada de se acostarem perto de restaurantes, nem de bares, muito menos perto daqueles velhos sobrados de hospedagem, convite a uma expulsão ao raiar do dia, certamente sonorizada a palavrões e temperada a jatos de água fria. Joaquim andava preocupado com a saúde de Antônio, que já não era tão lépido e fagueiro desde a tarde em que tentou atravessar atrás dele a Lavradio, descurando da atenção necessária ao ponto de a roda de um caminhão esmagar-lhe um dos pés, acontecimento que encheu profundamente de mágoa e piedade pelo fiel amigo o bom Vascaíno, fato que tampouco passou desinteressado diante o solidário Manoel.

O acontecido não privou Antônio de caminhar, mas os deslocamentos do trio pelas ruas já não podiam ser feitos como antes, visto que os passos de Antônio careciam de alguma ligeireza. Em seus olhos Joaquim podia divisar sofrimento e dor, olhos de um amarelo-cinza que emitiam o brilho completo da incompreensão diante os violentos e inesperados acontecimentos que a vida lhes reservara.

Em algumas ocasiões de festa, traduzível tal termo por imprevistos encontros de sólidos restos de refeições nas lixeiras, não sendo difícil entre esses encontros a descoberta de uma costeleta de porco onde seu feliz consumidor havia esquecido alguns vestígios de aproveitável carne, o pobre e manco Antônio esquecia as doloridas lembranças daquele pesado pneu.

Manoel, dos três o mais valente, possuía bem pulsante o desprezo e o medo que os seres privados de teto, nas grandes cidades, têm pelos homens fardados, e não podia deixar de expressar a seu modo o desagrado que lhe causava a aproximação

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de um policial, característica essa que a Joaquim requeria contornar diplomaticamente com um ''Olá, chefe'' ao dividirem a calçada com algum dos objetos da antipatia do amigo. As asquerosas botinas faziam ressoar na cabeça de Manoel passados pontapés em portas frágeis, que se rompiam sem muito esforço para seus executores e liberavam gritos histéricos de mulheres e crianças não cidadãs da república infernizada, ocasiões em que sem dúvida alguma o mais aconselhável, para seres desprovidos de resistência física proporcional aos mastodontes fardados, melhor conselho não havia senão o de correr.

O perfil encurvado daquele que agora se aproximava dos três amigos, entretanto, não terminava em uma botina, mas certamente nuns grosseiros pés imundos cheios de crostas negras onde à primeira vista seria difícil discernir entrem os efeitos da falta de água e a acomodação de cascas de recém-cicatrizadas feridas. A voz enrolada por álcool e catarro se dirigiu a Joaquim dentro do fechado dialeto dos deserdados. A conversa que se estabeleceu entre os dois foi apreciada com curiosidade por Antônio e Manoel, não lhes escapando o nervosismo que o suor do interlocutor do amigo Vascaíno fazia transparecer, estado de espírito que se concretizou na frase de despedida do imundo visitante: ''Eles estão pensando que sou algum otário. Acertei um com uma garrafa no quengo! Baguncei mesmo, e corri!''. Ficaram os três a apreciar a figura maltrapilha, suja e malcheirosa que se afastava a passos incertos, largando um lastro de álcool e tragédia humana.

−Ele vacilou, vacilou mesmo, meus amigos -, foi o comentário único que Joaquim se importou em fazer para Manoel e Antônio, que, emudecidos, fixaram nele seus olhares de apoio e compreensão. O recente desabafo que os três ouviram do desconhecido, agora sumido na escuridão, não lhes roubou a preocupação pela escolha de um ponto para o pernoite, posto que fosse mais que chegada a hora de descansar das longas caminhadas à cata de papelão e jornal. Era a hora para o merecido descanso, do qual evidentemente estavam dispensadas as faiscantes mas não tristes meninas encostadas nos portais mal iluminados, vivamente interessadas em catar também seus

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próprios papéis e papelões nos manjados hotéis hispânicos com seus letreiros azul e vermelhas.

O iodo ardia na cabeça do homem, mas o que mais o incomodava era aquele triste curativo sobre a testa, que o impedia de enxergar com facilidade. Saiu do pronto socorro da Praça da República tateando os bolsos, mal ouvindo as recomendações da enfermeira quanto a evitar beber pelo menos por vinte e quatro horas, a fim de não complicar o efeito do soro antitetânico. Ele sempre soubera que esse tal de soro as pessoas tomam quando se espetam com pregos enferrujados, mas não se lembrava de ter se ferido com nenhum prego. Em todo caso, esses doutores sabiam mais, e o que importava era terem estancado a sangueira da cabeça, mas tinha outra coisa agora a lhe causar preocupações, e daí seu reflexo em levar as mãos aos bolsos da calça na procura ávida. Mas lá estavam eles, intocados. No pronto socorro tem sempre um tira de plantão, e quem sabe alguém podia ter revistado suas roupas na hora dos curativos? Mas não, mesmo porque ele não precisou tirar a roupa, aliás, só a camisa, que era sangue puro. Quando voltasse para casa, a porca da Juçara naturalmente iria fazer aquele auê - ''O que foi isso? Foi assaltado? Ai, meu Deus!''. - Assaltado coisa nenhuma, vai dormir antes que eu é que te assalte com um par de cadeiradas nas fuças! Deixa pra lá, e meu dinheiro? Garfaram minha grana no hospital? Não, não, está aqui, ainda bem. Preciso agora é de um canto tranquilo para uma cheirada no capricho, claro.

Aqui nestas bandas da cidade não tem erro. Não se pode é vacilar, pois vira e mexe passam os homens como não querendo nada, suas caretas de otário olhando todo mundo de dentro do camburão. Uns veados, isso sim. Ele precisava era achar uma farmácia aberta, tem que ter alguma de plantão por aí, não é possível. É melhor tratar disso primeiro, depois me entoco num cantão qualquer e cheiro uma no capricho, mas antes de tudo a farmácia, porque senão o diabo foge.

O que é que está olhando, o que foi, nunca viu ninguém assim não, e coisa e tal, e ele foi aos tropeços pelas calçadas, a camisa de azul quase nada, mas de vermelho-sangue quase tudo, e por pouco não dá de cara com um poste na rua mal iluminada, e

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aparece-lhe de repente a mulher de calça branca, colante, peitos quase se derramando blusa estampada abaixo, e vamos lá amorzinho, vem cá, vem, gostoso, e vai catar outro, vagabunda, que não tou a fim, e saia do meu caminho, e afinal uma farmácia aberta.

Só um cliente, logo pediu e pagou, os caras e a moça do caixa espantados e comentando as manchas da camisa. Saiu rápido que nem precisava embrulhar, se demorassem mais era capaz de quebrar todos eles, cambada de palhaços, me dá logo essa porcaria desse vidro, quanto é, toma lá.

Antônio foi o primeiro a pegar no sono. Diante da marquise havia uma árvore que escurecia aquele cantinho para a soneca. Manoel ainda demorou um pouco, desconfiado, olhando o movimento dos automóveis, que àquela hora era quase nenhum ali na Mem de Sá. Passou um gato malhado, e ele, só de brincadeira, deu-lhe uma corrida, mas foi chamado de volta por Joaquim. Não era hora disso, o melhor era mesmo se acomodarem no largo papelão, junto ao portal da agência bancária, que amanhã seria outro dia, e nada como um descanso merecido, embora a sensação de um buraco na barriga incomodasse. Mas fome é assim mesmo, não ia passar mais ninguém por ali para o risco de pedir um trocado para o pão. Cachaça não havia, que problema, meu Deus!

As criancinhas corriam de um lado para o outro, todas elas vestidas de branco. Todas não, havia uma menininha escura, com os cabelos amarrados em duas pequenas trancinhas coladas ao coro cabeludo, e ela olhava sorridente para Joaquim, perguntava-lhe alguma coisa que ele não entendia. Por mais que insistisse, a menina não se fazia entender, e aí então ele notou que a crioulinha era a cara da Isabel. Coitadinha da Isabel, onde andou esse tempo todo que nunca mais procurou seu pai? Mas também pudera, um pai mendigo e cachaceiro, nenhuma filha quer saber. E aí as outras garotinhas foram se chegando para perto de Isabel, mas nenhuma delas sorria. Só Isabel mostrava para ele seus pequeninos dentes de seus cinco aninhos. Seriam cinco mesmo? Não se lembrava mais.

Não compreendeu as outras meninas, de repente, a

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puxarem Isabel pelos braços, gesticulando. Umas puxavam, outras faziam gestos para ele freneticamente, nervosas, com medo. Queriam levar Isabel dali, mas ela lutava para se libertar dos braços da turminha.

Ele não compreendia nada, e estranhou quando delas vieram umas gotas frias, bastante esquisitas, direto na cabeça dele. Diabo, por que Isabel e suas colegas estão a me molhar? Chegou a armar um baita sorriso, menina inteligente do pai, sabe que o velho aqui adora uma pinga e está é me molhando com uma caninha da boa, ah, é isso! Saiu daquele sonho bom no meio de um forte cheiro que era só parecido com cachaça, mas que de cachaça só se fosse parati do demo, porque logo as labaredas azuis e amarelas lhe cercaram o corpo, e as dores inclementes e dançantes subiram de seus pés descalços para a barriga, a cabeça.

Tentou afastar as quentes línguas esvoaçantes, sem sucesso. Sua garganta se fechou, seus olhos logo se derreteram, e o último aspecto da vida penetrou por seus ouvidos na forma dos latidos assustados e chorosos de Antônio e Manoel, prudentemente afastados daquela inesperada e quentíssima roupa que envolvia o corpo em convulsão do bom e paciente amigo Joaquim. Ganidos de incompreensão para com o mundo dos homens ecoaram por um bom tempo, depois somente o ruído dos passos apressados de alguém que voltaria orgulhoso para casa. Afinal, nenhum vagabundo poderia agredi-lo sem um merecido castigo.

IDOS LATIDOS

Até que a tarefa de observação não esteve ruim hoje,

apesar daquela casa da esquina, o sobrado onde morou o doutor Pérsio não me parecer local adequado. Mas tem a escola. Sábado passado vi uma mulher entrando lá com dois deles. Pelo jeito me pareceu ser a zeladora, ou mulher do zelador, sei lá. O chato é o velhinho do prédio da frente, fica varrendo a calçada naquele descanso de não ter mais fim, só pra não ficar sem nada pra fazer. É, custa nada tentar hoje mesmo. O negócio é dar um jeito de azeitar o bicho, se não me engano tem mais de cinco dias que

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nem pego nele. Compra boa foi essa, uma mixaria, e ainda com duas

caixas cheinhas! O que é a tecnologia, hein! Antigamente, tinha jeito não, era todo aquele estrondo, e a gente tinha que correr pra outras bandas se quisesse curtir um negócio desses sem perigo de ser pego no flagra. A Rita falou que ia dar uma chegadinha lá na Zilá depois da janta, horário melhor não tem. Ah! Não vejo a hora!

O problema é que um daqueles da mulher da escola me deu a impressão de ser bem arisco, melhor mesmo deve ser o outro, o da casa da esquina. Atravesso bem pro lado do ponto de ônibus, e de lá dá pra ver eles direitinho. No máximo, uns quatro, cinco metros, não pode é aparecer aquela moreninha do outro dia, com o namoradinho dela. Ficaram se esfregando um tempão, logo ali pertinho, no muro de pedra. Nesse caso a coisa fica mais difícil. Vamos ver! Só não posso é deixar ele onde está, outro dia mesmo a Rita perguntou que caixa era aquela. Negócio de um colega lá do trabalho, amor. A danada querendo xeretar. Vez em quando dá umas incertas na garagem, preciso tomar cuidado. Isso é coisa do Coutinho, amor, falei. Que Coutinho? Ora que Coutinho, Rita! Aquele da festa de quinze anos da filha da Eronildes, tu não lembra? Um careca, fiscal da Receita Federal. Sacana essa minha mulher! Balança a cabeça, assim como quem se lembra, mas é só eu virar as costas e lá vai ela xeretar de novo.

Tenho é que mudar o bagulho de lugar. Qualquer hora, olha ela desembrulhando, e aí a coisa vai ficar feia. Como é que eu vou explicar? Melhor desentocar de lá, camuflar em um outro ponto, fora da garagem, mas onde? Mulher esperta está ali, mas não troco ela por nenhuma, isso eu não faço mesmo, nem que a vaca tussa! Só se ela vacilar, é lógico, eu até que tenho andado direitinho com ela, pianinho mesmo, posso bobear não, a malandra parece até que sente o cheiro de outra mulher. Mas também já lá se vão o quê? Setembro agora faz o quê? Mais de nove anos que estamos nessa, juntinhos pro que der e vier. Tenho do que me queixar, não. Com aquela tal de Marli, do churrasco, é que não posso bobear, chegou até a se debruçar num exagero de pegar cerveja naquela tina do gelo, mais pra se exibir, a peitaria

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pulando fora da camiseta. Sacana! Mas sei que o Borges é que está beliscando aquilo, o safado não me engana. Ano que vem emplaco meus cinquenta e oito, começar do zero novamente é que não dar mesmo a esta altura do campeonato.

A minha Rita é legal, boa companheira, me entende direitinho na hora do amorzinho, sabe cuidar de mim, econômica, dinheiro com ela parece de borracha. Mulher de ouro mesmo! Merece ser sacaneada, não! Quando a gente começou a se entender, vi de cara que era pegar ou largar, tinha urubu só rondando a carniça. Lá na vila da mãe dela, era aquela rapaziada assim de shortinho de play boy sentada na calçada, exibindo as coxas de atleta, coçando o saco, de olho na moreninha da casa quatro, a minha Rita. Foi preciso eu começar a fazer cara de poucos amigos, não cumprimentar. Ihhh, Fofinho, você parece que faz pouco deles! É tudo rapaz direito, fazendo faculdade! Tá! Eu que bobeie! Se não desse uma de dono do terreiro, dançava mesmo! Bom, quase sete horas, não posso bobear, tenho que dar uma de sonso, deixar que ela diga que vai dar um pulinho na Zilá. Aí então dou uns cinco, dez minutinhos, e me mando pro lado da ladeirinha. Quando aquelas duas pegam de papo furado, bota hora nisso, ainda mais agora que a Zilá recebeu uns negócios dos Estados Unidos, daquela prima que mora lá, uns filmes, um montão de fotos e coisa e tal. A Rita me falou, queria que eu fosse com ela só pra dar uma espiada, tomar um cafezinho. Qualquer hora, amor, qualquer hora! Dá um abraço nela que eu mandei, vou ficar por aqui mesmo, vão passar uma série do Ademir da Guia, os golaços dele no Palmeiras..., sei que é coisa da antiga, mas o garoto jogava um bolão, você era garota e não ligava. OK, você venceu: batata frita. Se eu demorar, esquenta aquela carne assada, viu? Tá bom,se preocupa não. Vai com Deus. Vamos agora ver o bichinho aqui: Hmm,... bem azeitado, precisa de mais óleo não. Lua bonita que está fazendo.

Boa noite, Seu Raimundo! É! Noite linda, né? Nenhuma nuvenzinha,.. aquele time só tem salto alto, e sabe o senhor de uma coisa? É mais fácil a gente trocar de mulher do que de time! Verdade, sabe mais? Quando eu era garoto, meu pai vivo, flamenguista doente, sabe como é que é. Cinco irmãos, mais eu.

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Todo mundo flamenguista, só eu Botafogo. Não vou mudar casaca agora, depois de velho. O quê? O Vasco? Leva a mal não, Seu Raimundo, conta outra! Aquele time de bacalhau? Pode crer. Está certo, a gente se vê, vou só ali na esquina, no boteco do Eduardo, o meu isqueiro está pifado. Não, não, se preocupa não. É bom pra espraiar um pouquinho, a noite está que é uma gostosura, olha só! A Rita? Deu uma saidinha, daqui a pouco está aí. Uma boa noite pro senhor, Seu Raimundo, e...ah, esqueci, e a sua filha, passou lá no vestibular? Só semana que vem? Diz pra garota meter as caras mesmo, porque pra quem tem estudo a coisa já está braba, que dirá então se não estudar! A gente se vê. Boa noite, recomendações à patroa. Agora vamos nós.

Um deles está dando sinal de vida, ouvi o maligno daqui, tomara que seja algum lá da escola. Ali é mais claro. Que tesão sentir ele aqui no bolso da bermuda. Caminhar mais rápido, de repente, nunca se sabe, passa alguma patrulha, coisa rara por aqui, não iam querer me parar, cara de vagabundo não tenho. Mas não é bom brincar com o azar. Parece que vai esfriar, o que está demais é esse cheirinho, não sei que flor é essa, tenho que perguntar à Rita, mas como cheira gostoso! Bom demais, e engraçado é que é só de noite. São essas aí, branquinhas, um perfumezinho tão doce. Nem sinal daqueles dois namorados, tomara que vão se apalpar longe daqui, pelo menos esta noite. Lá está o diabo do bicho, é ele mesmo, já me viu, essa raça não é de fazer escândalo, só se a gente se aproximar demais.

Daqui já está bom. Não, uns dois passos mais, melhor assim, agora não tem erro não, safado! Ninguém à vista, janela do sobrado apagada, sai pra lá, gatinho, não é você que eu quero. Te prepara, condenado, chegou tua hora, fica assim mesmo, só olhando pra mim. Tira a minha fotografia, tira! Isso, não se mexa agora! O primeiro disparo tira um fino da grade do portão e faz aquele teeiiinnnc ressoante do metal, mas os outros dois pegam bem no meio da testa do encapetado, que não solta um grito sequer, só um rosnado meio rouco. Isto, estrebucha, que estou saindo de fininho! O negócio é papa fina mesmo, totalmente silencioso, um barulhinho de nada, ninguém apareceu, nenhum outro demônio latiu. Hasta la vista, baby, como diz aquele filme.

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Voltar pra casa, que a carne assada da Rita está que é uma maravilha. E por falar em carne, a outra, a da própria dona da casa, até que me cairia bem esta noite, estou estourando de felicidade. Mais um encapetado que despacho. Nem tremer o bicho tremeu. Ah, minha Rita, meu amor, que seria eu na vida sem você? Com este de agora, se não me falha a memória, já são pra mais de vinte, contando com aqueles lá do Engenho Novo.

Cruz credo, amor, sabe o babado que está rolando aí pela rua? Diz que um cachorro do vigia lá da escola amanheceu com dois buracos de bala na cabeça. Mortinho, tadinho! Está rindo de que, Fofinho? Ah,.. com dois buracos na cabeça, claro que tinha que estar mortinho, né, Rita? Algum ladrão na certa quis pular o muro, o bicho veio e o cara meteu o dedo, bandidão não brinca em serviço não, filha! Ladrão nada, filho, diz que o portão estava com corrente e cadeado, que ninguém mexeu em nada, acredita? Estou falando sério, benzinho, quase toda semana matam um cachorro a tiro aqui por perto, e o pior é que ninguém ouve nada! Coisa esquisita. Dá uma pena! Diz que o sangue empapou todo o cimento da entrada da escola..., estou brincando não, bota essa mão boba pra lá, deixa de safadeza, homem! Já não ganhou bastante de noite? Mas você não tem juízo mesmo, hein! Depois do café dá congestão, sabia? Vem cá, amor, vem! Tão carente esse meu homem! Rita, ó, minha delícia de mulher, chega pra cá, chega! Estou tão feliz esta manhã, Ritinha, vem,...vem, neguinha..., esquece essa história de cachorro morto, minha cachorrinha!

SÓ ENQUANTO O DIABO DEIXA

Oh, flamenguista, vê aí quanto a gente deve! Deixa

comigo hoje, cara, esquenta não. Esquentar a cabeça com cinco cervejas não é comigo. Esse aí nem imagina o que está me torrando os miolos, ou quem sabe até desconfie. Te levo em casa, então! Ruas desertas, a cachorrada vadia cheirando as latas de lixo, o vento da noite aparecendo pelas esquinas, arrastando as memórias podres. Velho subúrbio, podres lembranças de sonhos enterrados em fundos de quintais. Os faróis batem por segundos de encontro aos olhos do gato temente aos homens, pronto, ele

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pulou o muro a salvo. Segunda ou terceira vez que converso com o Honório, me parece um bom sujeito, tomara que não corra muito. Preocupação mais besta essa de carona, não? E a patroa, reclama não? Honório de olho fixo no asfalto irregular, buracos mal tapados, armadilhas mal ocultas pelos tíbios faróis. Reclamar? Ahh... dar a bronca por causa de umas cervejinhas? Pausa para absorver a indagação inesperada. Que patroa que nada, cara! Moro com minha irmã, dois solteirões convictos, sabia não? Conversamos umas poucas vezes, tomamos nossas cervejinhas de leve, e vem ele querer saber detalhes de minha vida! É logo ali, aquela primeira à direita. Não, mais em frente, depois daquele muro. Isso! Aqui tá bom, sabe o caminho de volta? É só fazer o retorno duas quadras à esquerda. Valeu, Honório, te devo essa!

Duas moedas caindo ao chão, merda! Toda vez que boto o chaveiro no bolso dessa calça é uma confusão desgraçada, deixa pra lá, me curvar pra catar mixaria no chão. Aqui está, emblema da Volks, quem me deu foi aquele revendedor lá da Piedade, na certa imaginando que ia me vender aquela lata velha. Até que é um chaveirinho bonito. Tudo escuro, não é tão tarde assim, ah, a bexiga já tá cheia, vamos logo, chavinha, vamos! Hmm as louras geladas já estão virando mijo. As ideias começando a brincar lá embaixo, pensamento e púbis brincando de bater papo, aquela comunicação bandida, a sonsa deve estar fingindo que dorme, mas esperando, me aguardando. Tá escuro demais, se bobear me esparramo no chão, e aí acabo molhando tudo aqui mesmo, no tapete. Tem sopa na geladeira, esquenta no micro-ondas! Se preocupa não, tou sem fome. Não falei que não tava dormindo! Epa! Mas que zíper mais danado esse. O relâmpago azul-prateado indo e vindo, antes da luz do banheiro ficar firme. Ahhhh!!! Que prazer!!! Até que enfim! Mijada mais da boa, caralho! Tirar os sapatos de fininho e mergulhar juntinho da minha loucura.

Como somos doidos, meu Deus, nunca pensei que tudo acabasse nessa maluquice. Olha só, mesmo no escurinho dá pra ver que beleza são essas costas. E as cadeiras então? Como a gente foi acabar assim? Só carne firme, pelanca nenhuma, sou um homem de sorte, minha mãe já falava que eu tinha cara de sortudo na vida: Sei sim, meu filho, sou advinha não, tenho

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certeza, não acredito nessas besteiras de ler mão, cartomante, jogar búzios, macumba, nada disso é comigo. E essa sonsinha na conversa, diabólica, olhando com o rabo dos olhos pra mim. O mano vai ser um homem de sorte, mãe, eu também acho! Tereza me sorrindo naquela segredação de só eu e ela, o coração pulando tão forte lá dentro do peito. A coitada da velha numa inocência de arrepiar.

Nós dois numa sonsice de mãos nervosa naquelas viagens a percorrer coxas, a investigar carnes, detalhes, umidades e quenturas, algodão. Nossa mãe não sabia mesmo? Sei lá, agora nada mais importa. Não tem mais volta nem perdão. Que idade a gente tinha? Quatorze eu, por aí, ela, os seus doze. E papai? Só naquele retrato retocado na parede, que nem a voz do velho conheci, culpa do desastre de trem no Méier. Tereza crescendo mais de peito e rabo, e o coitado do Arlindo, vizinho mais trouxa: Quero namorar sua filha pra casar, dona Dionísia, deixa ela ficar mocinha pra senhora ver! A mana fazendo careta por trás do boboca, piscando de sem-vergonhice. Mamãe respondia nada não, fingia não ver meus lençóis manchados, meus suspiros abafados. Doidas fantasias noturnas, o quartinho de Tereza bem ali do outro lado da parede.

Estamos perdidos, agora eu sei, mas mamãe falava que eu ia ser um homem de sorte! Sorte? Só se foi o diabo quem quis. Não era assim que a velha falava, nos olhando com o rabo dos olhos? Mana minha, minha fofinha, cadê minha maninha linda? Tereza maninha, maminhas, coxinhas, perninhas do mano aqui, teu homem condenado. Pergunta se tomei banho não, paixão. Tomei nada, quero banho é agora, banho de tua saliva, desses teus sucos só meus. Venha que a vida pode acabar amanhã mesmo, e ninguém tem nada com nossa vida, nem Deus. Mano sem-vergonha que não toma jeito mesmo, hein! Minha maninha, fica assim, pelo menos enquanto o diabo deixa.

O PRÓXIMO

Ponte negra, viaduto fedorento, catinga de mijo só, há

quanto tempo vivo aqui? Não dá mais pra contar direito, no

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mínimo uns seis, sete meses. Só lembro que tive aquele negócio aqui na perna, caí na calçada e me levaram prum hospital que nem sei mais onde fica. Foi logo depois daquela desgraceira toda. Pra que você quer meus documentos, seu miserável, você é que merecia morrer! Desespero tremendo o meu, destratando aquele atendente do pronto socorro. Ele até que foi legal, podia, se quisesse, me deixar mofando lá naquele corredor com a minha perna doendo pra cacete. Por pouco não me tocaram de lá do pronto socorro que nem cachorro. Não tem documento e ainda vem se fazer de malcriado! Meus papéis todos com a Nelminha, podia fazer nada. Só sei que aqui é Bonsucesso, ali adiante a Nova Holanda, favela braba, lugar onde vi meu amor pela primeira vez.Quantos anos a gente ficou junto? Sei lá, a cabeça vai ficando assim meio que embolada, a gente acaba não se lembrando de nada direito mesmo! Pelé, ô Pelé, fica aí na tua que vou tirar o atraso! É o Caxinguelê, cara mais do arriscado, não quer o crioulinho perto dele, vai se virar atrás daqueles papelões, está nem aí se a gente vê. E se passam os hômi? Uma vez veio um pessoal da Fundação, de tardinha, as mulheres todas de luvas, narizinho pra cima, prendendo a respiração por causa da catinga, mais uns três crioulos e dois PMs, que era pra recolher a gente pro albergue. Fui, mas me mandei assim que deu jeito, e não é que bem mal voltei e lá estava Caxinguelê se limpando! Tinha acabado de dar uma numa velha que podia ser avó dele! Mas fazer o quê? Se a sem-vergonha deixou…, ele está certo, enquanto tem a gente tem saúde e a coceirinha, tem mesmo é que aproveitar, eu, por mim, acho que não dou mais no couro mesmo. Mas deixa pra lá, ponte negra, viaduto fedorento, quantas pessoas eu já vi morando aqui? Perdi a conta, vagabundo bêbado, mulher de barriga parindo num cantinho ali mesmo, papelão fazendo paredinha, e muito ladrão, rapaz, sujeitos sem-vergonhas, metendo a mão nas trouxinhas, lugar do pessoal guardar seus trocados. Mendigar mesmo, sinceridade! Nunca mendiguei, nem mesmo nos primeiros dias, quando a Nelminha ameaçou parar de trazer comida pra mim. Você não merece, não, mas aqui tem um pouquinho de feijão com angu. Ainda está quente, come antes que esfrie! E eu de cabeça baixa, mais humilhado que sei lá o quê.

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Obrigado, Nelma, fico até sem jeito, você se preocupando comigo. Precisava, não! Em volta, aquela gozação: Tá se dando bem, hein, velho! Comidinha de casa na boquinha! Rá-rá-rá! O Zé Cotoco encostado lá adiante, na pilastra suja, preta e mijada do viaduto, olhando pra mim com aqueles olhos de diabo só, que sujeito com jeito de encapetado, aqui neste sanduíche de concreto de uma largueza de abrigar mais de cem, eu ainda não vi igual a ele, não. Deus me perdoe, mas quando o trem, dizem que foi um trem cargueiro, eu não vi, nem sonhava parar aqui, passou por cima da perna dele, foi a justiça divina que mandou. É, Zé! O negócio tá difícil, tenho que aceitar, né? Resposta que eu vomito só pra ele não ficar imaginando coisas, pegar na imaginação de que eu não ligo pra ele... É sua patroa, ela? Sempre perguntando, aquela boca desdentada de sorriso de cova negra. E olha que ela ainda dá um caldo, meu camarada, sabia? Vontade de partir pra cima do encapetado, arrebentar a cabeça dele, porque pra isso não falta pedregulho aqui. Prefiro ficar calado quando ele puxa o assunto pra esses lados. Interessa a ele se a Nelminha é ou não minha mulher? Olha lá eles passando, rondando assim no macio, parece mais cobra amassando o capinzal bem de levezinho, aquele ali, no banco de trás, mulato do olho amarelo, está sempre com eles. Tem um, que uma vez eu vi saltar só pra dar uma mijada num cantinho, com cara de paraíba, que tem um encapetamento nos olhos que só vendo. Mas o tal do olho amarelo, cruz credo! Cristo, não deve ser bom nem da gente falar bom-dia seu guarda pra ele! Bom, deram marcha-a-ré, vão voltar, na certa pro bar do Seu Trancoso, tem lá dois escrevedores do bicho, hora daqueles bicheiros chegarem, assim como quem não quer nada. As mãos suadas e sujas num aperto de tudo bem seu guarda, a bolada do banqueiro pro pessoal da viatura. Minha velha, me lembro como se fosse hoje, já falava. Meu filho, só duas coisas eu peço a Deus pra você não ser: ladrão e polícia! Pode até ser lixeiro, limpador de privada…, na época eu achava até engraçado. Polícia não é o mocinho, e ladrão não é o bandido, mãe? Então...?! Que descanse em paz, naquele meu tempo de menino as coisas não eram como hoje. Lembro direitinho, a gente chamava polícia de meganha, mas sem bronca nenhuma. Era isso

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mesmo: meganha. Hoje, tá no que se vê, só dá crioulo com cara de quem quer matar qualquer um, levando grana da bicheirada. E lá no centro da cidade, então? Já vi os sem-vergonhas rondando no bem do devagarinho, parando nas esquinas das mulheres da vida e dos maricas pra pegar um troco. A Nelminha também fala isso, pobre Nelminha, devia me odiar até as profundas do inferno, mas ainda traz comida pra mim. Sempre que ela vem, a malandragem fica só de butuca, zarolho na bunda dela. Pior é que não posso falar nada, dar uma de machão pra esses vagabundos. Tenho moral pra isso não, acho que nem força mesmo. Nos olhos da minha Nelminha as lágrimas nunca vão de secar, isso eu sei. Homem pra aquela hora do vamos ver, sei não, acho que não vou querer mais não, disse ela uma vez, logo depois da minha burrada, que nunca mais ia querer saber de homem pra dormir junto: nem de macho, nem muito menos de bebida. Beber, ela não bebia mais que uns dois copos de cerveja, assim só pra fazer companhia, jogar conversa fora. O babaca aqui, pensando que tava abafando, pegando de tudo: cachaça, rabo de galo, conhaque, fogo paulista, os cambau. Assim, ó: virando sem parar, voltando bebum pra casa, ela com a barriga já bem da empinada A gente botava aqueles discos na vitrola e ficava dançando, dançando, a vizinhança sabendo e falando que a gente era um casal que deu certo. Mesmo com a minha bebida, todo mundo acreditava! Até o Seu Carlinhos, quando aparecia lá em casa pra receber o aluguel, uma vez comentou: queria que minha filha tivesse feito um casamento igual ao de vocês! Juraciara, lembro que ele falou que esse era o nome da menina, com quinze anos fugiu com um caminhoneiro e nunca mais apareceu. Que nada, Seu Carlinhos, bondade sua, a gente só vai é levando a vida, né, amor? Nelminha só fazia sorrir, eu dando uns beijinhos meio do sem jeito na frente da visita, pescoço sempre cheirando a sabonete. Hoje, pego meu prato de comida das mãos dela, assim como esmola, de cabeça baixa, não vejo mais os olhos dela, ela não deixa, mas sinto aqui dentro de mim que ela só faz é chorar e mais nada. Aqueles olhos pretos morreram afogados numa poça de lágrimas e sangue, sangue do nosso neném. Sempre que vem, vira a cara pro lado, mas aqui dentro de mim eu sinto que os

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olhos dela nunca mais vão secar. Paga um rabo de galo, cumpádi? Naquele tempo dava pra fazer desse bonito: Ô, Pernambuco, vê aí dois no capricho! E o paraíba de sorriso sempre aberto, virando a pinga do gargalo lá do alto, ela descendo fina, brilhando que nem prata, sem derramar uma gota fora do copo. Parecia um filete de sei lá o quê, um craque nisso o Pernambuco. Fiado só amanhã, parece que estou vendo aquele cartaz do lado da figura de Nossa Senhora e um retrato velho do time do Santa Cruz, campeão de mil, novecentos e sei lá quando. Voltava pra casa leve, imaginando mil coisas. Amanhã, prometo, Nelminha, levo os documentos lá na Caixa, a gente tem que parar com essa de aluguel. Ela me incentivando, coitada: Dá certo sim, meu bem, a gente se aperta um pouco: tua aposentadoria é uma mixaria, sei disso, mas com jeitinho a gente fica pagando o que é nosso. Nada contra o Seu Carlinhos, um homem até do correto, crente, ele e toda a família, mas aluguel é sempre aluguel! E eu, trocando as pernas com a cachaça, mas vendo tudo cor de rosa na vida, concordando com ela e sonhando com nosso filho a caminho. Quando o bebê chegar, a gente pode até deixar um quarto só pro menino, né? A carinha dela meio de marota, já sabendo o que vinha daquele barrigão. Menino, é? Quem foi que te disse? Quantas bobagens e beijinhos e amores e promessas e faz lá um café sem açúcar que hoje eu abusei um pouco, meu amor. Ponte preta, viaduto da desgraça, quanto tempo faz? Sei lá! Pô, meu camarada, a coisa tá feia! Lá vem o Zé Cotoco procurando papo, querendo lá sei eu o quê. Daqui a pouco Nelminha está chegando por aí, não quero que me veja com ele. Sujeito mais do sacana, perigoso, sujo mesmo, já vi ele cagar e levantar a bermuda sem limpar nem nada, está nem aí o desgraçado. Fede que nem o capeta. Demora muito, vai embora, ou bate as botas que nem aquele mineiro que veio pro viaduto mais a mulher e três meninos. Disse que veio de Lavras e que não pegou emprego nenhum aqui. Quando a mulher começou a berrar de manhã cedinho foi aquele corre-corre, acode pelo amor de Deus! O coitado tinha era já morrido, acho que tuberculoso. Ficou quase um dia inteiro o defunto, ali atrás daquela outra pilastra, coberto de jornal, custou pra aparecer gente pra levar ele, durinho e amarelo que era de

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espantar, e já começando a feder. Mas não foi que naquela noite mesmo vieram uns neguinhos, acho que da Nova Holanda mesmo, e pegaram a viúva do coitado à força! Todo muito viu, ninguém fez nada, as crianças chorando e cada um dos desgraçados se satisfazendo em cima da viuvinha, os outros xingando e mandando ela calar a boca, batendo até palmas pro que estava em cima , tudo maconhado. Chegaram até a dar umas porradas nos meninos, e depois saíram correndo, tudo rindo e xingando a coitada e os filhos dela de tudo o que foi nome. Caxinguelê falou que logo uma semana depois a polícia matou um, sei com certeza não, parece que estavam assaltando um ônibus em Bonsucesso. Ponte preta, mundo escuro, cheiro de mijo, gente tossindo, e não é que lá vem a minha Nelminha com a boia! Mas o que a dona Guiomar vem fazer aqui? Não é a dona Guiomar mesmo, aquela vizinha do bloco quatro? Vergonha nenhuma, todo o conjunto sabe de tudo, estou aqui não é de hoje, me esconder é que não vou. Anda logo, minha Nelminha, aperta o passo e deixa essa mulher pra trás. Só não estou vendo a marmita! Olá! Esta é a Guiomar, você se lembra dela, não? Meus olhos baixos pro chão imundo, olhando meu unhão do pé esquerdo todo escalavrado, tudo uma sujeira só, que vergonha, meu Deus. Onde estão os olhos da Nelminha? Precisava trazer a vizinha junto com ela dessa vez? Nunca fez isso, e agora são quatro olhos em cima de mim, e não posso olhar pra cima, cadê coragem? Bom que essa tal de dona Guiomar fosse logo embora, vontade doida de olhar o olhar da Nelminha. Pega suas coisas, ainda tenho que passar na feira! O que deu nela hoje: pegar minhas coisas? Que coisas? Dá pra ver que aquelas mãos continuam bem tratadas, unhas feitas, sem luxo, é verdade. Mas acima daquelas mãos me falta coragem pra olhar. Anda, homem, acabou o castigo, vamos pra casa logo antes que eu desista e deixe você apodrecer aqui! Levanta daí! Vergonha e espanto ao mesmo tempo, se é que estou ouvindo bem o que a Nelminha está falando. As mãos dela vindo em minha direção, pele na pele, palma da mão na palma da mão. Orgulho meu ainda foi embora de todo não. Deixa isso de lado, Nelminha, posso me levantar sozinho! Agora deu pra ver os olhos dela, sequinhos de tudo, sem

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lágrimas nem nada. Vamos que a Guiomar não pode esperar, anda logo! Ponte preta, cimento preto e cinza e azul e tinto de sangue e de tudo o que o diabo gosta, adiante o amarelo do dia de sol me doendo nos olhos de tanto estranhar. Cuidado, atravessa devagar! A vizinha assim meio sem jeito, de lado, falando baixinho: aleluia! aleluia, Cristo! Nelminha segurando minha mão e meu coração na mão dela. Sigo quase que puxado, como um cego, abobalhado, rabo do olho buscando a escuridão de lá de trás, não quero que os de lá fiquem debochando não. Castigo, meu velho, acabou, agradeça muito à dona Guiomar aqui, ela me levou na igreja dela, compreendi muita coisa, perdoei..., encontrei Cristo, mas pego mais filho nenhum, o doutor me disse ontem .Vai falando alto enquanto a gente anda, o sol me pegando de todo, me abraçando quente, mas eu com vontade de abraçar minha mulher, e as sombras do viaduto ficando lá bem pra trás. Acredita o senhor, doutor, ano passado expulsei meu marido de casa porque ele matou meu filho! Acredita o senhor? Dormiu bêbado em cima da menininha, nem uma semana de nascida, senhor acredita? Vomitando e amassando a inocente com aquela barriga de porco capado. O médico de cabeça baixa, cabelos começando a faltar no alto do cocuruto, falando nada, preocupado mais em preencher aquela ficha e olhando assim meio de lado seu relógio dourado. Hmm,... sei, diz pra ele ter cuidado da próxima vez. Passe bem, dona... dona Nelma. O próximo, por favor! Boba sou eu, buscando meu marido de volta. Saudades dele eu não tinha nem mais um tiquinho, porque saudade mesmo, que machuca aqui dentro de doer até não sei onde, é a saudade do meu neném, a minha menininha, mas a gente que é mulher tem mais é que se conformar mesmo. Dona Guiomar diz que na Bíblia a mulher nunca teve valor, mas que Deus sabe de tudo e quis assim mesmo, e que a gente não deve guardar ódio no coração, nem de marido que apronta, bate e faz da gente um capacho até. Nelminha, nem sei o que dizer, muito obrigado, obrigado mesmo, minha mulher. Vai logo tomar um banho, se esfrega bem pra tirar toda essa sujeira. Deixa comigo, querida, pode deixar que depois dou um pulinho lá no bar do Amadeu, compro umas cervejinhas pra gente, e…

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UMA TARDE DE DOMINGO

“A carne mais barata do mercado é a carne negra!”. Já ouviu essa música? Lílian está dobrando algumas roupas que tirou da secadora. Sei, conheço, é daquele cara que trabalhou no filme Cidade de Deus. O Seu Jorge, outro dia mesmo passou um especial com ele. Gozado essas coisas, né? O quê? Antigamente não tinha isso de crioulo aparecer na televisão, ser entrevistado, o diabo a quatro, só jogador de futebol. Ué, e o que isso tem de mais, meu bem? Acho pra lá do natural, pelo menos eu. Racismo não é comigo, falo igual ao Fernando Henrique: tenho um pé na cozinha! Também não sou, te garanto, mas acontece que tem gente que abusa. Abusa como, Lílian? Ah, sei lá, Décio, com tanto assalto por aí, a gente vê isso na tevê toda noite, a polícia prendendo neguinho de treze, quinze anos, tudo pretinho. A verdade é essa, o resto é demagogia de esquerda, amoreco. Ah, tá bem,... vamos virar o disco, que quando a gente começa nesse papo, já sei, já vi esse filme antes, acaba em briga. Não é briga, amor, mas é só enxergar a realidade, você precisa é acordar pra vida, fica nessa de sociólogo, salvador dos pobres e oprimidos, isso é coisa pra Zorro, Robin Hood, ficção, entendeu? Décio leva as mãos à cabeça, oh, Deus, dá-me forças! O telefone toca (Salvo pelo gongo!). Vai atender, Senhora Goldwater? Senhora o quê? Nada, deixa pra lá... E Lílian acaba atendendo: Oi, mãe, tudo bem, não, estamos só de bobeira, jogando conversa fora, e a senhora? Ah! Está bem, graças a Deus. Olhando diretamente para ele com um sorriso sardônico. Fora quando dá uma de sociólogo,... a senhora conhece a peça, né? Ah,... vem aqui agora? Tá! Tudo bem. Te espero, mãe. Beijos! Mudando de tom, mostrando-se animada: mamãe vai dar uma chegadinha aqui, amor, dá pra você descer e comprar sorvete? Faz um carinho na cabeça dele, um cafuné lhe esparramando os fartos cabelos negros, crescidos na nuca. Décio, cara de mimado, aproveita e lhe alcança um dos seios, seus dedos ágeis rodopiam em torno daquilo que mais lhe agrada na anatomia geral de sua “Lílian Golwater”. Acabou o que tinha aí?

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Claro! Ou você se esquece que caiu de boca nele ontem, vendo aquele filme, um filme pra lá do asqueroso, aliás. Oportunidade para novas provocações recíprocas. Achei legal, sinceramente. Lílian não está pra dar o braço a torcer nesta rotineira tarde dominical. Não tenho saco pra filme brasileiro, amor, você sabe disso! Décio ainda guarda uma bala na agulha, e solta a alfinetada. Não tem saco, é? Ainda bem, senão a coisa ia ficar pretíssima! Ia pelo menos empatar! Mas, …gostosinha do papai, sorvete de que mesmo? Abre a porta e olha para trás, sorriso pleno e quase infantil, satisfeito por ter arrematado o jogo de forma magistral. Vê se tem aquele de manga, é bom demais, mamãe adora. Batendo a porta, Décio ainda a ouve o brado: Olha, se não tiver, serve napolitano! Lá vem descendo o elevador, mas Décio não tem pressa, sente-se feliz vivendo com aquela teimosa e surpreendente mulher. Cantarola no corredor. “A carne mais barata do mercado é a carne negra,.. a carne mais barata...” E, pronto, chegou o elevador, a porta se fechou, e Lílian, lá dentro do apartamento 604, deixou de ouvir aquele maridinho tão implicante. Quanta louça pra lavar, Deus meu! A campainha do interfone dá seu zumbido (Mamãe não é, ela tem a chave. Vamos ver...) A voz fanhosa que parece vir de quilômetros de distância é identificada: Seu Alfredo, o porteiro. Sim senhor, Seu Alfredo, pode falar! É ela mesma sim, o que é que… o quê? Hein? Fala mais alto, por favor! Pronto, o homem conseguiu se fazer ouvir, e o mundo de Lilian ‘’Goldwater’’’ e Décio, ‘’Esquerdinha-Sociólogo’’, aquele maridinho implicante, se espatifou no chão sem mais nem menos, rompido: Ai, meu Deus! Oh, minha Santa Mãe, me acode... estou descendo! Estou descendo! Vou indo, Seu Alfredo... Meu amor, meu amor, olha pra mim pelo amor de Deus! Décio! Décio! Sou eu: Lílian! Olha pra mim, meu amor! Ai, meu Deus, não faz isso comigo não! Ai, minha Nossa Senhora…, que foi que fizeram com ele, Seu Alfredo? Ó, não, não, meu Deus! Décio, meu querido! De pé ao lado dela, o agitado porteiro, pálido, ergue um dos braços, as mãos a tremer. A dentadura meio bamba mas sem impedir a saída da trágica revelação. Só vi os dois pretinhos correndo pra lá, dois pivetinhos, Dona Lílian, ... um deles com uma garrucha na mão,...sumiram na direção da praia!

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O Seu Décio já tava ali, ó, chegando na portaria. Detalhes, mero detalhes que não vão reconstruir o mundo esfacelado de Lílian, aquela bela reacionária que amava um marido esquerdista, um carinhoso homem cujo sangue (vermelho de comunista) agora se misturava com o sorvete napolitano, tão amado pela sogra.

A LAGARTIXA

“Sei lá o que ele anda aprontando comigo, te juro. O quê??? Nada disso, você me conhece não é de hoje. Então! Esse negócio de mexer em bolso, cheirar camisa, vigiar cueca não é comigo, não. Mas uma coisa eu te juro, mana, isso não vai ficar assim! Pode deixar, não vou fazer besteira à-toa, tenho a minha filha pra criar. Então está bem, mais tarde a gente se fala, beijo no Artur.”

Repõe o fone no gancho, olha para Cláudio, que folheia o jornal, distraído. Eliana sente-o longe, pensamentos, ela imagina em quê, ou melhor, em quem.

“Que horas eles vêm??? A Drica e o Décio? É, eles mesmos, você não disse ontem que ficaram de dar um pulinho aqui hoje?”

“Ah, é isso, mas a Drica prometeu ligar pra confirmar”. Eliana sente-se à vontade para dar a alfinetada aguardada. Assim como não quer nada, mexendo por mexer no porta-retratos sobre a televisão (eles dois, há uns cinco anos, por aí, em Cabo Frio: ela, barriga nenhuma, fazendo careta pra câmera).

“A Drica ficou de ligar pra quem, ... pra você, ou pra mim?”

Ele faz que não percebe a ênfase acentuada naquele nome. Ah,... sei lá, tanto faz , mas erguendo os olhos do jornal se depara com um sorrido enigmático e não pode evitar a indagação.:

“Mas o que foi, amor, hein?” Eliana dá de ombros, faz que não é nada demais (sendo,

contudo). “Nada não, é que estou mais acostumada a falar Adriana,

e não D-r-i-c-a, sabia?” Ligeira pausa na provocação, mas logo concluída com o

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disparo azedo. “Como é que ela prefere ser chamada: Drica, D-r-i-q-u-i-

n-h-a, ou Adriana?” Ele prefere fingir não ter percebido a provocação. “Costume, filha, às vezes a gente fala Adriana, e de

repente está chamando Drica, mas... por que isso agora?” Remexe-se na poltrona, finge se concentrar na mudança

de página dobrando com exagerado cuidado o matutino. Eliana ensaia um passeio em diagonal pela sala, olhar a vagar entre uma e outra das gravuras já esmaecidas por um sol traiçoeiro.

“Nada não, estou só perguntando” Cláudio sente que é hora de contra-atacar antes que o

adversário o massacre nas cordas. “Vem cá, filhota, tá com ciuminho, é?” Ela, ocultando o regozijo por tê-lo conduzido ao ponto

desejado, mãos na cintura e rosto enviesado num esgar de boca retorcida, faz de tudo para dominar o embate.

“Eu??? Ciúmes de quem, da Driiiicaaa, da Driquiiiinnhaaa? Olha bem pra mim, Cláudio, vê se te enxerga! Eu com ciúmes da sua amiguinha??? Era só o que me faltava!”

E para dar um fecho de ouro a uma investida em que imagina haver se saído vitoriosa, curva-se para ele no arremate definitivo.

“Fica com essa cara não, Cláudio, você insiste em falar dela como se estivesse botando chantili na torta, no capricho”

. Mas logo recua, desfaz a pose provocante e, como se houvesse entrado na sala naquele momento, muda de tom assim num jeito bem distraído.

“Claudio, precisamos dar um jeito numa lagartixa lá no quarto da Belinha”

. Ele, surpreso mas acima de tudo aliviado pela aparente trégua, ergue-se da poltrona com a atitude de um prestimoso escoteiro sempre alerta.

“No quarto da Belinha? Nunca um bicho desses entrou aqui! O negócio é arrastar os armários e a cama, com uma vassourada ela some, foge pela janela”

.”Não, amor, pode deixar, eu cuido disso, você, com essa

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mão desajeitada vai é quebrar algum brinquedinho da Belinha..., e aí nem uma coisa nem outra”

Ela decide, e pronto. Claudio ainda argumenta, insiste, porque aquelas

insinuações pretéritas a respeito de Dricas e Driquinhas funcionaram como um aviso de grossas tempestades vindouras. Por isso seria bom que ele adoçasse o melhor possível a paz caseira, e para isso a perseguição de um réptil asqueroso que ameaçasse a filhinha do casal seria missão bem valorizada pela amorosa mãe.

“Engraçado: eu sempre pensei que mulher tivesse medo fosse de barata, amor.”

“Eu assumo que vomito se pegar numa barata, Claudio, mas é a Belinha que morre de medo de lagartixa. Se lembra daquela vez lá no sítio do Lima? Faz o seguinte, bem,: dá uma geral aí na geladeira, vê se não falta cerveja, e depois tira pra mim umas toalhas molhadas que deixei no banheiro, abre a segunda gaveta do lado esquerdo do armário e põe toalhas novas lá, comprei um jogo lindíssimo sexta-feira”

. Animado, Cláudio se apruma e, com ar gaiato, perfila-se em continência militar (Perfeitamente, meu capitão!) recebida por Eliana com um risinho condescendente.

“Deixa então, amor, que eu mesma vou dar uma espiada lá na bichinha e resolvo isso”

. Mal ela regressa do quarto da filha, rosto afogueado aparentemente pela caçada à lagartixa ameaçadora, soa a campainha da porta. Certamente é o casal esperado, e Eliana sorri internamente. Bem, eles estão chegando! Cláudio tem a impressão de ter ouvido uma gargalhada em surdina..

“Oi, Décio, beijinho, como está você, Adriana?” Beijinhos. “Pensei que não viessem mais!” “É, o trânsito não está nada fácil. Mas esse teu

apartamento está que é um brinco, olha só, Décio!” (Olha só o quê, dona Driquinha? Você e o Cláudio não

me enganam! Nem sei como o Décio não se toca!). “Bondade sua, querida, vai uma cervejinha, Décio? E você,

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Driquinha? Driquinha, não é? Mas, fiquem à vontade. Olhem, buzinaram lá embaixo, é o ônibus da escola da Belinha. Cláudio, amor, volto já!”

Mesa posta, Belinha presente puxando o braço da mãe, olhinhos saltitantes entre a comida e as visitas.

“Como é que é, Belinha, como vamos de escola?” É Décio, afagando os longos cabelos da menina. Adriana, de longe, um sorriso diplomático captado por

Eliana, que se apressa em arrumar os lugares à mesa. “Vamos, gente, senão esfria. Décio e Cláudio, deixem o

futebol pra depois!” Cadeiras são arrastadas, Eliana se concentra em partir a

carne no prato da filha, com o rabo dos olhos procurando o rabo dos olhos do marido.

“Cruzes, Belinha, minha filhinha! Mamãe sabe que você está com fome, meu anjo, mas deixa acabar de partir seu bifinho! Senta direitinho, tá?”

“Ela está com que idade, Eliana?” É Adriana ajeitando seus próprios talheres, aguardando a

dona da casa sentar. “Vai fazer seis agora em agosto,... mas vamos lá, gente,

não me esperem, não. Mãe é sempre assim, a última a comer, mas a primeira a ...”

Cláudio, servindo cerveja a Décio, preocupa-se com aquela pausa na sentença maternal e dá um sorriso de lábios cerrados sem olhar para a mulher.

“Olha, com pouca espuma, como eu sei que você gosta, Décio”

Eliana, faca na mão interrompendo os cuidados com o bife de Belinha, franze a testa em máscara de repreensão à quebra do protocolo.

“Cláudio querido, a Drica também toma cerveja. Primeiro as damas, né? Não é mesmo, Driquinha?”

(Nossa! O Cláudio, se pudesse, pulava agora mesmo na minha garganta!).

“Deixa, querida, eu sirvo seu prato; olha, esta parte do suflê está mais recheada. É uma receita de minha mãe, Driquinha.

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Não repare, hein! Não repare porque não sou uma exímia cozinheira. Espero que você goste, Driquinha”

Adriana, feliz com a gentileza especial, estende o prato. Servida a especial visitante, Eliana volta a sua atenção para o prato de Belinha, onde alguns nervos e pedaços de cebola enfrentam o total desagrado da filha. Necessário, ela se lembra angustiada, resguardar o pobre Décio enquanto é tempo.

“Décio, tira mais salada e deixa eu polvilhar um pouco mais de queijo no suflê, me desculpe, Adriana, servi o seu com pouco molho, vou levar a bandeja e volto logo”

.Que ela, Eliana, não se preocupasse, pois Adriana lhe garante que o suflê está com excelente aspecto, crocante como ela adora.

“Belinha, filhinha, mastiga direitinho” É a frase mais adequada para deixar no ar todo um quê

de inocência angelical. O giro de corpo da prestimosa dona de casa Eliana, bandeja com o suflê à mão para retorno à cozinha, é estagnado pelo grito de horror:

“Aiii!!! Aiii!!! Meu Deus! Ai, virgem santa, o que é isso???” O grito é de Adriana, recuando da mesa em inesperado

rebuliço. Cadeiras derrubadas, Adriana, mãos à boca, bochechas infladas na luta contra um insolente e incontrolável vômito. “Ai, vou...vou vomitar... o que... o que é isso, meu Deus?”

Passos atrapalhados pelos sapatos de salto alto, e dá-se, ali mesmo, a expulsão do jorro azedo, projetado desde a boca rumo a pratos, toalha, garfos, colheres, facas e terrinas fumegantes. Os dois homens se erguem, Décio tem um naco de cenoura fincado no garfo, e Cláudio, mais estático do que o convidado, tartamudeia alguma coisa e ameaça correr em socorro da convidada, já refugiada no banheiro, de onde provêm altos e sofridos urros e lamentos intermináveis, sublinhados auditivamente por “Ai que eu morro...”.

Eliana, a calma em pessoa, atravessa o busto sobre a mesa em direção ao prato abandonado com tamanho estrépito pela convidada, e percebe ali, em meio a champignons e tomates, a falecida e inocente lagartixa, sua cabeça parcialmente decepada pelo gume da abandonada faca, largada assim a esmo entre

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batatas amassadas e azeitonas descaroçadas, olhinhos desaparecidos em função do vapor do cozimento a que foi submetida, exibindo naquela transparente e viscosa barriga a sombra de escurecidos intestinos.

Belinha, sorridente, careteia e procura os olhos da mãe na indagação infantil muda, se pode ou não achar graça daquilo tudo. Eliana olha abismada para o pálido convidado, sem coragem de fitar Cláudio, homem com quem vive há uns oito anos cuja perspicácia aprendeu a não subestimar.

“Oh, Décio, mas que vergonha. Como é que isso foi acontecer?”, Eliana se esforça na necessária sinceridade para momento tão drástico.

QUESTÃO DE ESPAÇO

(Pode confiar em mim, não vai haver problema nenhum!) “Mas,... e não passei do mas, o Doutor Hermenegildo

tinha aquela coisa de: não sei explicar direito, não. Verdade que não ia ser qualquer um que daria emprego pra minha mãe, coitada, sessenta e quatro anos, de estudo nada mais que o primário, enxergando pouco.”

(Leva essas amostras pra senhora sua mãe, esta aqui (a caixa azul) vai ser muito boa pra controlar a pressão dela)

“Bom, ele sempre me tratou com o maior respeito,

garanto. Até que é um coroa charmoso; verdade mesmo, você quer saber? Teve só uma vez que eu estava saindo da secretaria, dei um duro pra achar a ficha de uma menina que tinha sido operada, e aí ele ia entrando, e vi que naquela de porta estreita e tudo o mais, eu saindo e ele entrando, a mão dele me roçou assim, não muito do exagerado, aqui assim do lado da coxa. Agora, te digo com sinceridade, queria ver minha mãe mortinha...”

“Vira essa boca pra lá, menina! Onde já se viu, jurar assim!”

“Mas tudo bem, o importante é que eu estava satisfeita, tranquila, minha mãe empregada, ganhando o salário na clínica, e eu levando minha vidinha, podendo pelo menos pagar o aluguel e

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mais a menina que toma conta do Andrezinho.” “Está com que idade, ele?” Meu filho está crescido, precisa ver. Vai fazer sete mês

que vem” .”Parece que vejo bem aquele dia na sala dele” Eu digo e repito que vai ficar tudo bem. Deolinda, você

me ajuda e a clínica sai dessa miséria que não tem mais conta) “Aquela loção dele e os dentes branquinhos, camisa de

linho, gravata de classe, e o jaleco, então... branquíssimo, impecável”

“Casado, ele?” “Divorciado, acho. Quando entrei na enfermaria onde

estava o Seu Gérson, engraçado, você sabe que eu estava bastante tranquila?, os outros velhinhos já estavam dormindo.

(Acordado a essa hora, Seu Gérson?) “Aqueles olhinhos se apagando, quase tudo azul da

catarata, glaucoma, assim que nem peixe passado de feira, o sorrisinho dele na boca seca amarelada, branca nos cantos da saliva pegajosa”

”Era esse velho mesmo que...?” “Era, ele mesmo: oitenta e cacetada, mas adorava pedir

pra segurar a minha mão, e eu deixava, claro. Um dia, foi pegando minha mão, nem quis saber se eu estava segurando o termômetro, e, mesmo fraquinho, foi puxando minha mão pra baixo, e mais pra baixo...”

.Sério? Só dando risada mesmo” “Não é que o coitadinho queria que eu pegasse o pintinho

dele, uma muxiba menor que o meu dedo! Acredita numa coisa dessas? Mas eu olhava a cara do velhinho e tinha uma peninha dele que você nem pode imaginar, continuar ali naquela cama, pele e osso, só tomando papinha, enxergando nada, e naquele momento senti que Deus me abençoava, menina. Juro. Seu Gérson mexeu um pouco a boca, só os cantinhos, cheios daquela saliva branquela, grudenta.

(Agora, o remedinho, Seu Gérson. Isso! Assim, levanta mais a cabeça)

“E foi isso, depois dele foram uns outros dois, mas o

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Doutor Hermenegildo me pediu pra esperar pelo menos uma semana. Um deles, teve a família que veio até a clínica, com um dos filhos, garotão abusado, dizendo que era advogado e que ia processar a clínica, essas babaquices, sabe? Foi falar com o Doutor Hermenegildo, disse poucas e boas pra ele, que desconfiava de alguma coisa, que o pai estava se recuperando bem, virou bicho naquela sala. Passou um mês e ninguém falou mais nada. Três leitos vagos. Minha mãe teve uma melhorazinha no salário e eu, quer saber de uma coisa? Perder sono eu não perdi”

“Você não tem remorso?” “Remorso? Minha falecida tia Eulália era uma crente

dessas de usar vestido de manga comprida, não cortar cabelo, sabe? Uma vez, eu era mocinha ainda, ela fazendo de tudo pra me converter, e não sei como a conversa debandou pra idade das pessoas. Aí, sabe, ela abriu a Bíblia e, sem eu esperar, começou a ler uma coisa que, lembro bem, disse que era um provérbio. Aquilo ficou na minha cabeça, martelando aqui, ó!”

“E o que era?” “Falava que os dias da vida da gente dão nuns setenta

anos, e tem mais, que se a gente tiver saúde vão um pouquinho mais adiante”

“Verdade?” “Ela falou isso. Mas, gozado, tem velhinho aí que, vou te

contar, sai da frente, hein! Vambora que tá na hora do meu trem”

QUEM É QUE PAGA HOJE?

“Se continuar esse calor do cão, hoje ainda chove” “Pode ser, lá na minha rua, quando chove, é aquela sujeira

pra não acabar mais, sabia?” “Não deve ser pior do que pras bandas lá de Belford

Roxo! Pergunta aí pro Bragança. Aquilo não é lugar de se viver!” “Santa mãe! Sei como é, já tive lotado ali perto. A última

vez que fui praqueles lados foi pra resolver aquela parada do doutor Xavier.”

“Que Xavier?”

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“O substituto da trinta-e-nove! Conheceu ele não?” “Ah, sei, sei, mas ali não é Coelho da Rocha?” “Tudo a mesma porcaria, mermão, não vejo a hora de dar

o pinote de lá” .”E por que tu fica?” “Causa da patroa, você sabe como é a Letícia, mãe, o

irmão, um cunhado, tudo morando perto, e ainda por cima a escola dos garotos”

“Sei como é que é. Olha só, olha só, o bicho aqui tá suando que nem cavalo, cumpádi! Fica nervoso não, cara, fica tranquilo que isso acaba logo”

.”Churrascaria Assunção!” “Que é que tem essa churrascaria, Nanico?” “Viu não? Passamos por ela indagorinha!” “Claro que vi, mas se ficar olhando pra tudo que é letreiro

que tem por aqui, motel, restaurante, posto de gasolina, acabo bobeando, não dá pra descuidar com tanto farol alto na cara da gente”

“Sei que não dá, Mariozinho, mas é que me lembrei da Heloísa”

“Que Heloisa?” “Aquela capixaba que te contei, fiquei com os quatro

pneus arriados por causa dela, ô menina da legal, gente fina mesmo.”

“Olha só o Nanico aí, gente, gamadão! Quis casar não, cara?”

“Casar? Casar como, rapaz, se a pensão da falecida me come quase metade do salário”

“Xiiii!!! Que fedor é esse? Olha, olha só, o infeliz aqui se sujou nas calças, olha só! Vê aí, Cardoso”

“Vê aí o quê? Tá me achando com cara de cheirar rabo de vagabundo?”

“Gozado esses pilantras, na hora de aprontar, eles são machões de primeira, mas quando a gente grampeia o vagabundo é isso aí, só falta chorar e chamar mamãe.

“Ô meu camarada, fica assim não, falta pouquinho, um tiquinho de nada pra gente deixa você bater um papo com São

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Pedro! Relaxa aí.” “Mas a catinga tá demais, não tá dando pra aturar não,

vamos encostar logo esse carro e resolver a parada, assim vou perder até o apetite, ainda não jantei, sabia?”

“Deixa passar o trevo, lá é beleza, garanto” .”Ouvi dizer que no quilômetro vinte tem um boteco que

serve uma tripa no capricho” .”E eu sou lá homem de comer tripa?” “Não, não, hoje vou levar vocês numa pizzaria que não

está no mapa, garanto, tem lá uma garçonete com uns peitos que vou te contar, rapaz”

“Ha! Mas você tá a fim de comer pizza ou a garçonete, hein?”

“Olha, é por aqui mesmo, reduz, reduz, Mariozinho, arma a seta, encosta, cuidado com a buraqueira! Beleza! Vem cá, ô seu moleque filho de uma égua, você sabe rezar, sabe?”

“O bicho tem mais cara é de macumbeiro. Dá aqui a coisa, Nanico, assim, passa a ponta menor pra trás. Epa! Güenta firme agora, Cardoso, deixa o homem te chutar não. Vambora, gente. Força, isso, vai torcendo, para não”

.”O que foi, moleque? Hein? Tou ouvindo nada não. Fala mais alto”

“Olha a língua do infeliz só! Mais, mais um pouco, você aí, Nanico, sustenta desse jeito, isso!!! Mais um pouquinho só. Parou de tremer?”

“Já está dando boa-noite aos anjinhos o vagabundo” “Mas que catinga, gente, o carro vai precisar de uma geral,

vou te contar” “Beleza pura, minha gente, agora é só desovar. Abre a

porta aí, Nanico, e sai você primeiro” .”Deixa que eu puxo pelas pernas. Pronto, assim é que se

fala, agora dá pra gente pegar aquela pizza, ô Cardoso! Estou com a boca seca, doido por uma loura geladíssima”

“Posso beber hoje não, gente” .”Por quê? Virou crente?” “Nada, é que tomei uns antibióticos prum dente que tá

me dando uma dor de cabeça danada, e o doutor mandou não

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facilitar” “Falou! Pronto, o presunto está entregue, quando chegar

em casa bato um fio pro doutor Esperidião” .”Quem?” “O delegado da décima, conhece não?” “Ah, sei, foi ele que encomendou?” “Gente fina ele. Vambora, quem é que paga hoje?”

SOLIDÃO

Essa guimba está aí desde ontem à tarde, me lembro dela, e o engraçado é que ao descer a escada encontrei dona Leopoldina. Boa-tarde, como vai o senhor? Tudo bem, graças a Deus!”“. Aquele rosto manchado, a boca no sorriso do como vai o senhor mostrando os dentes amarelados da dentadura velha, amarelos como a velha blusa surrada ocupada por um exército de cores indefiníveis. Onde está a limpeza que a senhora diz que manda fazer dia sim, dia não, dona Leopoldina? Vontade de perguntar. São quatrocentos e cinquenta por mês, pagos adiantados. O senhor pode ficar descansado. Todos os inquilinos são gente decente, e olhe: não descuido da limpeza, três vezes por semana vem uma senhora fazer a faxina, a dona Ednalva lava os dois banheiros, varre os corredores, a escada, deixa tudo um brinco. Brinco redondinho é aquela cusparada que vi agora mesmo no degrau. Brinco de catarro, dona Leopoldina? Dá vontade de bater na porta dela e perguntar. Deixa pra lá, me aborrecer pra quê? Os outros moradores não reclamam, não sou eu que vou bancar o estraga prazer, pelo menos estragar o prazer do Custódio e as visitas dele ao quarto dela, né? Só cego não vê! Uma coisa que faço questão absoluta aqui, o senhor pode ter certeza, é de respeito, decência, entende o senhor? Sei que todos os meus inquilinos de quarto são pessoas de respeito, homens de bem, mas, o senhor compreende..., se eu abrir exceção pra um receber visitas, amanhã ou depois tem outro trazendo prima, tia, assim, mas só da boca pra fora, né? Nessas horas todas são tias, irmãs, sobrinhas, amanhã esta casa vira o quê? Mas não sou otário, o Custódio está é se dando bem com ela, vejo na cara dos dois, o

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galego, com aquela pose de galã, sempre passando o pente na cabeleira, parecendo até que dá mergulho em loção, perfume que espanta até rato. Dona Leopoldina, na certa, está é tirando o atraso de viúva. Bom, vamos ver, deixa eu largar estes embrulhos aqui, assim, no canto mesmo, tomar meu banho, a vida dos outros é a vida de cada um, depois do banho me enfio debaixo do cobertor e logo vem o sono. Tomara que o chuveiro esteja desocupado, mas o pior mesmo é olhar aqueles restinhos de cocô no vaso, tem alguém com diarreia por aí, acho, será que não pode dar uma descarga de verdade? Acho que fiz uma boa compra, o rádio estava quase pelo dobro do preço outro dia mesmo. Os sabonetes e a pasta de dentes, eu podia esperar pra comprar amanhã, nas Americanas sai mais em conta. Faz mal não, se eu não estivesse tão cansado, ia experimentar o radinho agora mesmo, ligar baixinho, mas acho que já passam das dez, é muito tarde. Quer saber de uma coisa? Vou é me deitar assim mesmo, tomo banho amanhã cedinho, mas semana que vem tenho é que voltar naquela doutora, ela falou que meu peito está chiando muito, disse até o nome do que é, não lembro agora, perguntou se eu fumo muito. Até que nem tanto assim, Doutora, distração, só isso, o que mais posso fazer na minha idade? Acho que ela viu maldade na minha cara, aquela doutora, jeitosinha ela. Nunca senti dor nenhuma no coração, bobagem isso tudo, é como diz o outro, estou usado mas não estou velho. Será mesmo? Velhice, coisa triste, não tem como negar. Oh caminha boa! Que horas serão agora? Preciso mandar consertar aquele relógio, não deve ser muito caro. Ah! Aposto que esses passos assim de leve, no corredor, são do Custódio, galego mais do sonso, na certa indo pro quarto da velha Leopoldina, e ela com aquela cara de carola. Deus me livre e guarde, o senhor me conhece, uma senhora sozinha como eu, meu falecido marido me deixou este sobrado, no princípio umas sobrinhas até que foram contra: a senhora, Tia, alugar quartos para homens solteiros? Eu que o diga se fosse atrás de palpite de família..., não tivesse esta casa, com a pensão miserável que recebo, estava era debaixo da ponte mesmo, o senhor imagina. Ah, travesseiro bom este aqui, aliás, não posso me queixar do quarto, ventilado, de fundos, sem aquela barulheira

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da rua, tem gente que está em piores condições neste país. Bom, deixa eu me estirar, hoje não vejo nem ouço mais nada, mês que vem talvez dê pra comprar aquela tevê de segunda mão, o cara disse que fazia por cento e sessenta. Garantia de quanto tempo? O senhor está brincando! Garantia, meu amigo? Compro essas coisas que o senhor está vendo aqui aos pedaços, reformo, dou um capricho, não ganho nem vinte em cada aparelho! Posso dar garantia, não. O jeito é acreditar que o aparelho vai funcionar por muito tempo, novinha, zero mesmo, não posso comprar, pelo menos até a metade do ano que vem. Engraçado, aquela dorzinha de ontem está querendo voltar agora: ui! Epa! Mas isso está é esquisito demais agora! Hmmm, quem sabe se eu me sentar, ou tomar um chá, ... chamar quem agora? Oh, dona...dona Leopoldina! Aqui, do…dona…Leopol…Leop… oldina, dá um pulinho aqui! Ai! Deus meu! Rádio pra consertar, tevê que tem que ser de segunda mão mesmo, não, dona, tá doendo demais, quero ar, mais ar... Não tinha o que falar dele, dona Ednalva, sossegado, falava pouco, uma parenta distante veio tratar de tudo, família de Minas, parece. Pobre homem, coisas bobas, guardei comigo. Deus o tenha. Mas, a senhora compreende, faz uma limpeza em regra, principalmente no colchão, a gente nunca sabe, né? Bota pra arejar, tomar um pouco de sol lá na área dos fundos. Ah, antes que me esqueça: estou esperando compensar um cheque e por isso não lhe pago hoje, mas segunda-feira, sem falta, está bem? Capricha porque acho que amanhã vem um rapaz, capaz que alugue.

AS PERNAS CURTAS DA MENTIRA

Ambos foram pontuais, tal qual lhes exigira Jean-Marc,

assim mesmo, afrancesado, com o hífen, o jovem secretário e

promoter da estrelíssima Karina di Franco, a grande revelação

brasileira na música pop internacional, ganhadora do Disco de

Ouro do ano passado e candidata ao próximo Grammy. Tanto

Júlia quanto Amadeu, ela praticamente uma estreante em

reportagens de eventos artísticos da Olhe, o conceituado

magazine da classe média brasileira, ele um veterano fotógrafo

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habituado a ambientes e situações as mais diversas, ficaram de

queixo caído diante do luxo e ostentação daquele living room.

Julinha, vou te contar: a menina aí 'tá podendo, hein!^^

O "qua-qua-qua" de Júlia foi reduzido à metade, teve

que ser engolido diante da aparição da entrevistada.

“Gente, muito bom-dia. Desculpem meu minutinho de

atraso. Estava falando com o meu empresário em Tóquio”

Karina di Franco adentra a espaçosa sala, braço direito

esticado para a frente, palma da mão e dedos voltados para

baixo numa pose que faz o experiente, cético e gozador

Amadeu compará-la a uma deusas egípcia.

Júlia, com o rabo dos olhos, certifica-se de que o

fotógrafo não caiu no laço armado para a subserviência do

beija-mão. Claro que não: pelo que conhece desse coroa

gaúcho cultivador do machismo em alto grau, profissional

recém chegado do Oriente Médio onde cobriu a queda do

Gadafi e outras sangueiras mais, ele jamais curvaria a espinha

pra beijar a mão desta menininha star.

Quanto a ela mesma, limitou-se ao clássico biquinho de

bate lá-toma cá com as bochechas semi tocadas, ocasião em

que suas mucosas nasais foram assoladas por um tsunami de

Chanel número 5.

“Tudo bem, Karina? Muito trabalho?”, Júlia faz a

pergunta padrão de aquecimento para a entrevista, dirigindo-se

ao assento indicado pela entrevistada, enquanto soam os

primeiros cliques da Canon de Amadeu.

“Demais, querida, demais! Japão, semana que vem,

duas apresentações, depois uma esticada por Barcelona, Madri

e Roma, na volta fazendo o circuito nordestino com Fortaleza,

Recife e Salvador”

Karina informa e dá alguns socos numa almofada para

melhor se acomodar no longo e alvo sofá.

“Algum disco novo em andamento?”

“Sim, sim. Faltam só mais alguns detalhes, fechar com

a banda. Talvez, quem sabe, na volta de minha viagem tudo

esteja arrumado”

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“Por falar em banda, Karina, ficou tudo resolvido na

questão daquele baterista?”

“Meu advogado já fechou um acordo com ele, mas não

quero mais saber de nenhum mau caráter tocando comigo,

entende?”

“Ele falou que chegou a passar fome na excursão aos

States porque você deixou de pagar aos músicos”

Karina di Franco cruza por duas vezes as longas e bem

torneadas pernas envoltas em colantes e brilhantes calças

douradas, antes de responder.

Amadeu pressiona o obturador da câmera

repetidamente.

“Sabe o que é, queridinha? Tem gente que só porque um

dia a Elba, a Daniela, por exemplo, deram chance de

acompanhar, se acha o máximo na guitarra, na bateria, essas

coisas. Se duvidar, diz até que recusou convite pra tocar com a

Madona, ou a Lady Gaga só pra ficar na minha banda,

entende?”

“O que você acha do atual panorama da música pop?”

“Pouca renovação, amor, não aparece quase ninguém.

Os poucos que dão as caras não querem trabalhar seus discos,

correr atrás, sabe? Você vê: eu consegui o que tenho porque

não paro, mal tenho tempo pra sentar e assistir a um filmezinho,

sair com amigos, pegar um sol em Búzios, essas coisas assim,

entende?”

“E de amores, Karina, como vamos?”

A entrevistada dá uma estrepitosa gargalhada, quando

revela uma invejável fileira de dentes alvíssimos.

“Amores? O que é isso, hein?”, e Karina di Franco

revira os olhos, face erguida para o alto teto da soberbo

apartamento de cobertura.

“Então não é verdade que você e um certo ator do

cinema espanhol...”

“Quem? O Guel? Nada disso. Somos apenas bons

amigos, e o Banderas, se é isso que dizem por aí, 'tá muito

velho pra mim. Mesmo porque ele agora só trabalha na

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América, e lá eu posso escolher coisa melhor. Te garanto, amor”

“Mas onde há fumaça...”, insiste Júlia no tema.

“Não, não, queridinha”

“Karina, uma coisa que seus fãs gostariam de saber é

sobre sua família, seus pais, onde você nasceu por exemplo”

“Sou mineira, nascida em Frutal, mas isso eu acho que

'tá em tudo que é revista”. a entrevistada fala e dá um jeito nos

longos cabelos lançando-os para trás dos ombros em gesto

displicente.

“E seus pais, costumam assistir aos seus shows?”

Pausa.

Mais cliques da câmera de Amadeu.

“Meu pai faleceu há muito tempo. Eu nem tinha me

lançado na carreira artística”

“Sua mãe...?”

A hesitação de Karina di Franco em responder não

passa despercebida por Júlia, que busca um melhor contato

olho no olho com a entrevistada.

“Não, não. Sabe o que é? Minha mãe sempre

preferiu .aquela vidinha simples do interior, diz que não se

acostuma com cidade grande...”, risinho contido. “Veio aqui só

pra assistir a um show meu na Globo, mas depois nunca mais

veio ao Rio. Diz que a Barra é terra de doido”, conclui com um

riso nervoso.

“O que você acha da MPB? A chamada música pop tem

condições de suplantar no mercado os grandes ícones da

música popular brasileira?”

Há como uma sincronia entre o descerramento dos bem

pintados lábios de Karina di Franco, no encaminhamento da

resposta, com o súbito e autêntico tufão provocado pela

aparição de uma mulher idosa de cabelos desgrenhados,

descalça, numa camisola mal posta que lhe deixa exposto um

seio murcho, perseguida por um casal de desesperados

serviçais que inutilmente tentam contê-la.

Com seu inesperado ingresso no ambiente, ela inunda o

ambiente de palavras ditas altas e ininteligíveis misturadas a

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gritos semelhantes a uivos animalescos, despejados por uma

boca murcha, escurecida, quase sem dentes.

Entrevistada, entrevistadora e fotógrafo se erguem ao

mesmo tempo como se impulsionados por invisíveis molas, e

neste instante apenas uma coisa em seu luxuoso living room

atrai o súbito olhar esgazeado de Karina di Franco: a câmera

fotográfica de Amadeu.

“Se fotografar, eu te mato!”

Karina berra e se lança com a palma das mãos

avançadas ao encontro do fotógrafo, que dá um pulo para trás

quase derrubando a atônita Júlia.

“Não vimos ela sair do quarto, dona Karina”, balbucia

chorosa a moreninha com uniforme de copeira.

“É ...assim, dona Karina, quando a gente viu, sua mãe já

‘tava correndo pra cá! P-perdão...! Perdão, patroa!”, clama

quase aos prantos o rapazinho de sotaque nordestino.

"Mãe" − palavra que atou os olhares de Júlia e Amadeu,

a repórter novata e o experimentado fotógrafo, olhando um

para o outro numa plena associação de tristeza e decisão

irrecorrível.

Coube à repórter dar o passo seguinte, e Júlia assim o

fez:

“Fique tranquila, Karina. Esta reportagem nunca

aconteceu”

Pelas costas da dupla em retirada ficaram as desculpas

trêmulas dos destroçados serviçais mescladas aos gritos

doentios da pobre mulher, uma apreciadora da "vidinha simples

do interior", mãe da estrela da música pop Karina di Franco.

FIM

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