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Pelotas - RS, 06 a 08 de julho de 2016 SBSP - Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção VULNERABILIDADE E DIVERSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE VIDA NOS ASSENTAMENTOS RURAIS EM SANTANA DO LIVRAMENTO-RS VULNERABILITY AND DIVERSIFICATION OF LIVELIHOODS IN RURAL SETTLEMENTS IN SANTANA DO LIVRAMENTO RS Jorge Carvalho Carrion; Márcio Zamboni Neske; Deise Maria Silva de Carvalho; Liana Mendonça Goñi; Vivian Trindade Cardoso Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Campus Santana do Livramento E-mails: [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected] Grupo de Pesquisa: Fundamentos teórico-metodológicos da abordagem sistêmica aplicada à agricultura Resumo O objetivo do artigo é apresentar uma construção teórico-metodológica para o estudo de situações agrárias complexas no âmbito dos assentamentos rurais em Santana do Livramento- RS. O foco da análise recai em demonstrar as potencialidades da abordagem dos meios de vida para a identificação de fatores que estão subjacentes à formação das situações de vulnerabilidade e os condicionantes relacionados a adoção de estratégias de reação entre os agricultores familiares. Fortalecer a agricultura familiar implica na mitigação das situações de vulnerabilidade, sendo a diversificação dos meios de vida uma via importante, permitindo maiores de chances de oportunidade e liberdade dos indivíduos. Palavras-chave: Agricultura Familiar. Vulnerabilidade. Meios de Vida. Desenvolvimento Rural Abstract The objective of this article is to present a theoretical and methodological construction for the study of complex agrarian situations in the context of rural settlements in Santana do Livramento-RS. The focus of the analysis lies in demonstrating the approach's potential livelihoods for identifying factors that underlie the formation of vulnerabilities and constraints related to the adoption of response strategies among family farmers. Strengthen family agriculture implies mitigation of vulnerabilities, and the diversification of livelihoods an important route, allowing greater chance of opportunity and freedom of individuals. Key words: Family Farming. Vulnerability. Livelihoods. Rural Development

VULNERABILIDADE E DIVERSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE … · A discussão sobre meios de vida apresenta proximidade com a abordagem das ... compreender os meios de vida é entender que

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SBSP - Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção

VULNERABILIDADE E DIVERSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE VIDA NOS

ASSENTAMENTOS RURAIS EM SANTANA DO LIVRAMENTO-RS

VULNERABILITY AND DIVERSIFICATION OF LIVELIHOODS IN RURAL

SETTLEMENTS IN SANTANA DO LIVRAMENTO –RS

Jorge Carvalho Carrion; Márcio Zamboni Neske; Deise Maria Silva de Carvalho; Liana

Mendonça Goñi; Vivian Trindade Cardoso

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Campus Santana do Livramento

E-mails: [email protected]; [email protected]; [email protected];

[email protected]; [email protected]

Grupo de Pesquisa: Fundamentos teórico-metodológicos da abordagem sistêmica

aplicada à agricultura

Resumo

O objetivo do artigo é apresentar uma construção teórico-metodológica para o estudo de

situações agrárias complexas no âmbito dos assentamentos rurais em Santana do Livramento-

RS. O foco da análise recai em demonstrar as potencialidades da abordagem dos meios de vida

para a identificação de fatores que estão subjacentes à formação das situações de

vulnerabilidade e os condicionantes relacionados a adoção de estratégias de reação entre os

agricultores familiares. Fortalecer a agricultura familiar implica na mitigação das situações de

vulnerabilidade, sendo a diversificação dos meios de vida uma via importante, permitindo

maiores de chances de oportunidade e liberdade dos indivíduos.

Palavras-chave: Agricultura Familiar. Vulnerabilidade. Meios de Vida. Desenvolvimento

Rural

Abstract

The objective of this article is to present a theoretical and methodological construction for the

study of complex agrarian situations in the context of rural settlements in Santana do

Livramento-RS. The focus of the analysis lies in demonstrating the approach's potential

livelihoods for identifying factors that underlie the formation of vulnerabilities and constraints

related to the adoption of response strategies among family farmers. Strengthen family

agriculture implies mitigation of vulnerabilities, and the diversification of livelihoods an

important route, allowing greater chance of opportunity and freedom of individuals.

Key words: Family Farming. Vulnerability. Livelihoods. Rural Development

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1. Introdução

O município de Santana do Livramento, localizado na região da campanha do estado do

Rio Grande do Sul, é tradicionalmente reconhecido por ser detentor de uma estrutura agrária

constituída pelo latifúndio pastoril. A formação cultural, socioeconômica e produtiva do

município foi forjada pela produção de bovinos de corte, introduzidos pelos colonizadores na

região em meados do século XVIII. No entanto, a partir da década de 1990 o município passou

a vivenciar um processo intenso de transformação da base socioeconômica e produtiva com a

constituição dos assentamentos rurais da reforma agrária. Assim, os assentamentos rurais

representam um fato novo e importante na história recente de Santana do Livramento, onde a

paisagem agrária, antes dominada pelas grandes propriedades, passou a ceder espaço a

propriedades de origem familiar oriundas de outras regiões do estado.

Dentre os direitos estabelecidos pelos projetos de assentamentos, cada família recebeu

um lote de terra, que corresponde em média a 25 hectares por família. No entanto, a conquista

do lote de terra não representa uma etapa final de uma longa jornada de luta pelo direito a terra,

mas significa a abertura de novos horizontes de vida e trabalho. A garantia do recebimento do

lote de terra não significa que a instalação e sobrevivência das famílias na terra conquistada

seja um processo descomplicado. Transformar o lote no lugar de viver não é algo simples e

imediato, mas um movimento constante de apropriação do lugar, passando pela organização

produtiva do espaço, o acesso a recursos, assim como as significações simbólicas e afetivas

associadas ao seu uso.

A condição de assentado apresenta um quadro pouco conhecido no que diz respeito às

condições dos meios de vida. O certo é que essas estratégias de sobrevivência das famílias

representam um processo multifacetado e heterogêneo, e, em certa medida, desigual. As

famílias apresentam disponibilidade e acesso distintos a recursos, o que redunda em trajetórias

diferenciadas de sobrevivência em face ao ambiente hostil que se confrontam.

Assim, os agricultores assentados estão expostos a diversas situações de vulnerabilidade

social, econômica e ambiental. De um lado, na imensa maioria dos projetos de assentamentos,

as condições de infraestrutura (estradas, transporte, educação, saúde, morada, água, energia

elétrica, saneamento, crédito, assistência técnica, etc.) apresentam uma situação deficiente que

impõem restrições às condições de vida das famílias. As primeiras instalações foram

provisórias, onde o estabelecimento da moradia se deu em barracos de lona, ou mesmo na sede

da antiga fazenda, que abrigava diversas famílias no mesmo espaço.

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Atualmente, as condições de vida revelam situações preocupantes de vulnerabilidade

para a realidade de grupos familiares, sendo que diversas famílias apresentam casas inacabadas,

sem saneamento, acesso deficitário a saneamento e à água para consumo humano e dos animais,

desprovimento de benfeitorias, máquinas e equipamentos agrícolas. Como efeito cascata dessa

situação, verificam-se consequências diretas sobre a baixa autoestima das famílias, além de

limitações impostas à produção de alimentos devido a restrições de acesso a água para os

animais ou para irrigação dos cultivos.

Por outro lado, no âmbito das relações de produção, os agricultores familiares estão

sendo submetidos a um processo crescente de especialização ligado à gramática dos mercados

globais e setores agroindústrias da produção de commodities agrícolas, especialmente o

monocultivo da soja. Esse modelo de especialização produtiva tem provocado mudanças

profundas de ordem técnica, socioeconômica e ambiental, conduzindo a um aumento da

fragilização das famílias.

Sendo assim, apoiando-se na abordagem dos meios de vida, o objetivo do artigo é

apresentar uma construção teórico-metodológica para o estudo de situações agrárias complexas

no âmbito dos assentamentos rurais. O foco da análise recai em demonstrar as potencialidades

da abordagem dos meios de vida para a identificação de fatores que estão subjacentes à

formação das situações de vulnerabilidade e os condicionantes relacionados à adoção de

estratégias de reação entre os agricultores familiares.

Além dessa parte introdutória, o artigo está em mais cinco seções. A primeira (1) seção

apresenta algumas contribuições da abordagem dos meios de vida para o estudo das dinâmicas

de desenvolvimento rural. Na seção seguinte (2), destaca-se os aspectos históricos relacionados

a origem e evolução agrária de Santana do Livramento. A terceira (3) seção desta os processos

relacionados a formação dos assentamentos rurais no município. Na sequência, a quarta (4)

apresenta uma proposição metodológica à análise dos meios de vida em assentamentos rurais.

Por fim, na última seção (5) são tecidas algumas considerações finais.

2. Contribuições da abordagem dos meios de vida no estudo das dinâmicas de

desenvolvimento rural

A abordagem dos meios de vida (livelihoods) surge na década de 1990 tendo como

pressuposto evidenciar os processos interativos através dos quais se constroem, reproduzem e

transformam a vida social e, com isso, visando criar ações de intervenção do desenvolvimento

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direcionadas à mitigação das situações de pobreza rural. Conforme Perondi e Schneider (2012),

Chambers e Conway (1992) foram os pioneiros no uso do conceito de "meios de vida

sustentáveis”, e desde o início procuraram conjugar o tema “meios de vida” com o da

sustentabilidade em consonância com o tema em moda na época em função da Eco 92

(Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992).

Atribuindo uma crítica sobre as narrativas e projetos de desenvolvimento top down, Chambers

e Conway (1992) questionam o alcance e as prioridades das atividades para o desenvolvimento,

advogando sobre a necessidade de colocar as pessoas no centro do desenvolvimento.

No entanto, ao longo dos anos a abordagem foi sofrendo adaptações por outros autores.

Frank Ellis (2000) é um dos importantes estudiosos do mundo rural que passou a ganhar

notoriedade no final da década de 1990 e início dos anos 2000. O autor substituí o uso do

adjetivo “sustentável” adotado por Chambers e Conway (1992) por “diversificado”,

procurando, com isso, atribuir aos meios de vida um caráter para explicar a utilidade e a função

da diversidade (PERONDI, 2014).

Ellis (2000) confere aos meios de vida uma concepção com forte influência com a

abordagem das capacitações do economista Amartya Sen. Assim, o desenvolvimento é

entendido como o processo de ampliação das capacidades dos indivíduos, sendo para isso

necessário que os mesmos disponham das condições e oportunidades para realizar o que

desejam, e escolher o tipo de vida que almejam. De acordo com Sen (2010), para que o que

desenvolvimento seja exercido pelos indivíduos, deve-se dispensar atenção aos meios

disponíveis e não direcionar a atenção apenas para os fins. Ou seja, não basta o indivíduo ter

capacidade (oportunidade de escolha) para fazer o que deseja, é necessário que ele disponha

das condições e oportunidades reais para realizar o que deseja.

A discussão sobre meios de vida apresenta proximidade com a abordagem das

capacidades justamente porque visa tirar o foco das ações sobre os fins ou resultados do

desenvolvimento, mas fortalecer os meios que os indivíduos dispõem para lidar com as

adversidades e realizar suas atividades no contexto em que vivem (ELLIS, 2000; SCOONES,

2009). Para Ellis (2000), um meio de vida compreende os ativos ou capitais (natural, físicos,

humanos, financeiro e capital social), as atividades e o acesso a estas que juntos determinam a

vida adquirida pelos indivíduos ou grupo familiar. Segundo o autor, o capital natural refere-se

à base de recursos naturais (terra, água, paisagem) que produz produtos utilizados pelas

populações humanas para a sua sobrevivência; o capital físico são bens relacionados ao

processo de produção econômico, por exemplo, ferramentas, máquinas e benfeitorias; o capital

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humano diz respeito ao estado do nível de educação e saúde de indivíduos e populações; o

capital financeiro refere-se aos estoques de dinheiro e o acesso ao crédito que podem ser

acessados a fim de comprar qualquer produção ou bens de consumo; o capital social está

associado às redes sociais e associações em que as pessoas participam e, a partir do qual eles

podem derivar de apoio que contribui para a sua subsistência.

Desta forma, compreender os meios de vida é entender que a diversificação destes é

uma via importante para minimizar riscos, incertezas e vulnerabilidades dos indivíduos.

Diversificar os meios de vida é, para Ellis (2000), em um processo em que os indivíduos

constroem um portfólio crescentemente diverso de atividades e recursos para sobreviver e

melhorar os seus padrões de vida. Assim, fortalecer os meios de vida implica criar mecanismos

de diversificação das opções e estratégias de trabalho e renda, estimulando assim sua resiliência

para lidar com crises, choques ou vulnerabilidades (PERONDI; SCHNEIDER, 2012).

Os determinantes da diversificação dos meios de vida rurais estão relacionados com a

disponibilidade e acesso a ativos. Podem estar relacionados a aspectos edafoclimáticos, ou

socioeconômicos e produtivos que se manifestam através de situações de sazonalidade, das

migrações, dos efeitos do mercado de trabalho, do acesso ao crédito e a outros ativos (ELLIS,

1999; SCHNEIDER, 2010). Um portfólio diversificado de atividades contribui para a

sustentabilidade de um modo de vida rural que aumenta a sua capacidade de resistência a longo

prazo em face das tendências adversas ou choques repentinos (ELLIS, 1999). Assim quanto

mais diversificada for uma unidade produtiva familiar, maiores serão as chances e

oportunidades dos agricultores para criar estratégias e fazer frente às distintas formas de

vulnerabilidade (clima, doenças, preços) que possam se estabelecer (SCHENEIDER, 2010).

Portanto, na medida que os indivíduos e as famílias rurais possuem diferentes formas de acesso

aos distintos ativos, a própria heterogeneidade do mundo rural e da agricultura se manifesta na

medida em se estabelece diferentes estratégias de enfrentamento e adaptação às diversas

situações de vulnerabilidade que estão expostos.

A construção de sistemas sociais e econômicos diversificados, regulados e controlados,

representa uma alternativa importante à centralização e especialização que diminuem a perda

da autonomia dos agricultores frente às imposições do capitalismo agrário (NIERDELE;

GRISA, 2008; SCHNEIDER, 2010). Assim, entender a diversidade dos grupos familiares

possibilita compreender as opções que estão à disposição dos indivíduos, bem como as

estratégias que estes adotam frente às situações de vulnerabilidade que estão expostos.

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3. Aspectos históricos da origem e transformação agrária do município de Santana do

Livramento

Essa seção retrata aspectos centrais da evolução e diferenciação agrária do município de

Santana do Livramento. Para tanto, estabelece-se uma narrativa histórica apoiada na abordagem

dos sistemas agrários (MAZOYER; ROUDART, 2010). Em cada período histórico destacados,

são observadas mudanças ocorridas no modo dominante que os grupamentos humanos se

utilizaram dos recursos naturais, do espaço apropriado, as técnicas que utilizadas nos processos

produtivos e nas relações sociais e econômicas que estabelecem. São descritos cinco sistemas

agrários distintos, a saber: sistema agrário indígena; sistema agrário estância; sistema agrário

industrial; sistema agrário modernização agropecuária.

Sistema agrário indígena (antes de 1800)

O sistema agrário indígena é caracterizado pela existência dos povos ameríndios na

região do pampa. Antes da chegada dos europeus, a região onde atualmente se localiza o

município de Santana do Livramento já era habitada a cerca de 12 mil anos por grupamentos

indígenas Minuanos e Charruas. A região em questão era considerada pelos colonizadores como

“terra de ninguém”, de difícil acesso e muito pouco povoada. Mas aqui já habitavam ameríndios

com costumes próprios e com sua economia particular recoletora. Esses grupamentos indígenas

eram excelentes caçadores, sendo vistos pelos colonizadores como preguiçosos devido à falta

de variedade de alimentos que compunha a sua dieta alimentar, já que sua alimentação era

dependente da caça e pesca (POTOCO, 2013).

A cultura indígena foi “dilacerada” pelo colonizador, onde muitos índios foram

expulsos, mortos e escravizados. Portanto, a presença dos colonizadores, ao promover a sua

territorialização no território originalmente hábito pelos indígenas, acabou promovendo a

desterritorialização dos mesmos, gerando uma crise no sistema agrário indígena.

Sistema agrário estância (1800 à 1917)

A origem do estado do Rio Grande do sul está relacionada com a criação de gado,

introduzido pelos padres jesuítas em princípios do século XVII. O tratado de Tordesilhas

assinado em 1494 dava direito a Espanha de explorar o estado do Rio Grande do Sul, e os padres

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jesuítas espanhóis acabaram desempenhando um papel importante na missão colonizadora

através da catequização dos índios. Além de assegurar o território definido no tratado de

Tordesilhas, a catequização visava introduzir uma cultura de medo e de subordinação do

conquistador branco europeu sobre os povos indígenas.

O estabelecimento das missões Jesuíticas no noroeste do Rio Grande do Sul, durante o

século XVII, foi um fator importante para formação da atividade pecuária na região da

campanha, pois foi nessa época que as primeiras cabeças de gado foram introduzidas no estado

pelos jesuítas. Porém, as invasões frequentes dos bandeirantes paulistas em busca de índios para

escravizá-los, fez com que os jesuítas abandonem o gado, o qual passa a se reproduzir solto e

de forma livre, na região que ficou conhecida como Vacaria Del Mar, que compreende a atual

região da campanha (AGUIAR; MEDEIROS, 2010).

Nessa época, a região onde está localizado por Santana do Livramento era palco de

disputa entre Espanha e Portugal. Para garantir o direito de posse sobre as terras em disputa,

Portugal ordena a ocupação das terras, tornando essa região de ocupação fortemente

militarizada. Assim, a posse da terra ocorreu através da distribuição de sesmarias, que eram

extensas áreas de terras medindo, cada uma 13.065 hectares. A distribuição de sesmarias acabou

gerando um processo de concentração de terras, formando imensas propriedades rurais

denominadas de estâncias. É importante destacar que, desde formação da propriedade privada

em Santana do Livramento, sempre houve no município a presença de pequenos produtores

familiares (atualmente denominados de pecuaristas familiares), e, embora ocupando uma

posição marginal na estrutura agrária, são atores sociais importantes da história agrária do

município (FERNANDES, 2012).

Então, devido a esses acontecimentos, nesse período da história da região onde

atualmente se localizada Santana do Livramento, tem-se a formação de um novo sistema agrário

denominado de estância. A partir de então, inicia-se o povoamento da região sul do Rio Grande

do Sul, surgindo às primeiras cidades. Para se dimensionar a formação e expansão das estâncias

na região, conforme Potoko (2013), no município que hoje é Alegrete, desde 1806 foram

distribuídas mais de 320 sesmarias. Santana do Livramento pertencia a Alegrete, e fundada a

cidade em 30 de julho de 1823, elevada à categoria de município em 1857. De acordo com

Potoko (2013), o primeiro local escolhido para o povoado de Livramento foi às terras entre dois

braços do Ibirapuitã, cedidas pelo sesmeiro Antonio José de Menezes.

Assim, o sistema agrário estância, segundo Miguel (2010), se deu pela decadência do

tropeirismo e pelo aparecimento das charqueadas. Ao invés de serem conduzidos para o centro

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do Brasil, os bovinos passaram a ser enviados às localidades do Rio Grande do Sul com maior

facilidade de acesso, onde eram abatidos e transformados em charque. Em função das

particularidades desse novo mercado, constatou-se uma melhoria das práticas de manejo da

criação dos bovinos nas estâncias de criação de gado. O trabalho consistia em recolher os

animais para um espaço determinado, marcá-los para identificação e assegurar que se

reproduzissem dentro dos limites da sesmaria (SILVA NETO; BASSO, 2005).

Com as concessões das sesmarias consolida-se uma economia sustentada na produção

do charque, destinado à alimentação dos escravos, mas em seguida o charque se torna um

excelente negócio, muito rentável que dava um novo valor para a carne. Com a compra

garantida, sem depender das flutuações da economia nacional e internacional, houve um

crescimento econômico dos pecuaristas latifundiários, e com isso a formação de uma elite

política de caráter regionalista, militar e conservadora (AGUIAR; MEDEIROS, 2010).

Desenvolveu-se, assim, uma organização social baseada em senhores de terra, gado,

charqueadas e escravos, com relações autoritárias e violentas (PESAVENTO, 1980 apud

AGUIAR; MEDEIROS, 2010).

Em 1904 é instalada a Charqueada Livramento, e conforme Albornoz (2000), em 1911

Santana do Livramento possuía quatros grandes charqueadas, constituindo-se naquele momento

o segundo maior centro de abate do estado, “pois estava no centro da maior região de produção

pecuária do estado e do Uruguai." (ALBORNOZ, 2000, p.76). A Lei de Terras de 1850 acaba

por extinguir a concessão de sesmarias e a terra que antes era gratuita, passa a ter valor

mercantil, e a posse da mesma, entra para os custos de produção. Com a mão-de-obra e a terra

escasseando, as charqueadas rio-grandenses entram em decadência e se restringem a poucos

lugares no estado.

No entanto, com a crise das charqueadas, inicia-se um processo de instalação de

frigoríficos de capital internacional na América Latina, sendo o primeiro instalado em 1883 na

Argentina (AGUIAR; MEDEIROS, 2010). Em seguida, nos princípios do século XX, os

primeiros frigoríficos começam a se instar no estado do Rio Grande do Sul, vislumbrando

grandes possibilidades de investimentos lucrativos, tanto no Uruguai, como na região da

campanha do Rio Grande do Sul. Em princípios de século XX dois frigorífico se instou em

Santana do Livramento, e assim, a economia pastoril do município se reestrutura através da

industrialização de carne, marcando a transição para um novo sistema agrário: industrial.

Sistema agrário industrial (1917 à 1970)

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No ano de 1917 a Companhia Armour dos EUA compra a charqueada Livramento, e

estabelece o Frigorífico Armour. Armour. Em seguida, em 1918, a Companhia Wilson, também

estadunidense, implanta uma unidade para o processamento da carne da região. Conforme

Fernandez (2012) a existência de gado em abundância, mão de obra barata e proteção oferecida

pelo Estado, a malha ferroviária do Uruguai e o gado brasileiro, já adaptado para os padrões

dos frigoríficos, foram os principais fatores que estimularam o estabelecimento destas empresas

em Santana do Livramento.

Com a industrialização, a mudanças tecnológicas também são verificas no âmbito da

produção animal. De acordo com Albornoz (2000), em média, 50% do gado que abastecia o

frigorífico Armour era de Santana do Livramento, sendo que os maiores vendedores eram de

outros municípios, geralmente grandes estancieiros (alguns que possuíam gados dos dois lados

da fronteira), ou compradores que revendiam para o frigorífico.

A partir da década de 1950, com o final da segunda guerra mundial, diversos frigoríficos

entram em crise, alguns fechando, e outro enfraquecendo sua produção local, como e é caso do

frigorífico Armour (FERNANDES, 2012). Ainda segundo a autora, ao tempo em que a

industrialização perde forças no município, a modernização agropecuária a partir da década de

1970, devido às mudanças proporcionadas pela Revolução Verde, começa a marcar presença

na região da campanha, iniciando, assim, um novo sistema agrário.

Sistema agrário modernização agropecuária (1970- Atual)

Esse sistema foi marcado pelo surgimento da revolução verde, ocorreu de forma mais

intensa o processo de modernização da agricultura que envolveu um grande aparato tecnológico

provido de variedades de plantas geneticamente modificadas em laboratório, espécies que

foram desenvolvidas com objetivos de alcançar alta produtividade, foram utilizados

procedimentos técnicos como uso de agrotóxicos, maquinários provenientes da segunda

revolução industrial (MIGUEL, 2010). No Brasil a modernização da agricultura foi dividida

em fases, a primeira na transformação da base técnica, estimulada pelo governo e empresas

norte-americanas, a segunda pela industrialização da produção rural com a implantação de

indústrias, na terceira fase ocorre à integração entre a agricultura e a indústria, e na última fase

a integração de capitais (bancários, industriais, agrários) (SILVA, 1996 apud MATTOS;

PESSÔA, 2011, p. 320).

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Para Chelotti (2005) no município de Santana do Livramento inicialmente o

desenvolvimento de lavouras esteve vinculado às lavouras de subsistência, possuía sua base

pecuária de corte extensiva, porém, após a década de 1970 devido à modernização da

agricultura outras culturas foram introduzidas na região da campanha, como o mono cultivos

de arroz irrigado, soja e uva, através do arrendamento de terras a lavoura expandiu-se para a

região da campanha.

O início da rizicultura no município caracterizou pela lavoura em grande escala, em

extensas áreas, tendo como práticas agrícolas o emprego de irrigação, preparo do solo por meios

mecânicos, fertilizante e uso agrotóxico para o controle de doenças e pragas. Já para o autor

Beskow (1986), a produção do arroz não está associada à produção familiar e nem em

transformar o grande proprietário em capitalista agrícola, mas numa inteiração de categorias

distintas como: o proprietário de terras, o arrendatário e o trabalhador rural. O arrendamento

das terras ocorreu em terras onde antes desenvolvia a pecuária de corte, sendo esse sistema de

parceria com o arrendatário considerado uma alternativa nas crises que ocorreram neste setor

(BESKOW, 1986).

Se a formação do social, econômica e produtiva do município de Santana do Livramento

tem sua origem na pecuária de corte, exercida pela concentração do latifúndio pastoril,

atualmente é possível observar uma mudança neste cenário, visto que o processo de reforma

agrária e a formação dos assentamentos rurais alteraram o quadro da estrutura agrária e

produtiva. Além da formação de pequenos núcleos familiares, a matriz produtiva também se

diversificou, sobretudo através da produção de leite, e de outros cultivos agrícolas, como soja

e milho. A discussão sobre as dinâmicas da formação dos assentamentos rurais no “território

pastoril” será abordada na próxima seção.

4. Territórios em transformação: a formação dos assentamentos rurais em Santana do

Livramento

Nesta seção são apresentados alguns aspectos relacionados às dinâmicas transformações

do espaço rural em Santana do Livramento a partir da compreensão da evolução e do processo

de formação de assentamentos rurais no município. Segundo Chelotti (2005), os municípios

localizados ao sul do Rio Grande do Sul mantêm características que remetem ao início de sua

ocupação, marcadas principalmente pela presença de latifúndios, herança da distribuição de

sesmarias no início do século XVIII. Paralelamente a isso, foram incorporados novos elementos

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a esse espaço regional, como a expansão das lavouras de arroz irrigado, principalmente na

década de 1970, e as lutas pelo uso da terra, nos anos de 1990. Nesse contexto, Santana do

Livramento torna-se palco da instalação de assentamentos rurais por meio da reterritorialização

do espaço agrário, em que áreas adquiridas pelo Governo Federal, passam a ser distribuídas

para a instalação de famílias de trabalhadores rurais. As instalações desses assentamentos no

município geraram significativas transformações no espaço rural, tanto em aspectos produtivos

como socioculturais, como também modificaram a dinâmica econômica e política local.

Segundo estudo realizado por Monteblanco e Medeiros (2014), acerca do surgimento

do Movimento dos Sem Terra, um dos fatores que contribuíram de maneira considerável para

essa mobilização foi o processo de modernização da agricultura, o qual excluiu e marginalizou

uma significativa parcela de produtores rurais. Corroborando com o autor, Chelotti (2005)

destaca que a modernização da agricultura foi o principal combustível dos conflitos na região

norte e noroeste do Rio Grande do Sul, resultando na expulsão dos trabalhadores rurais que

habitavam essas regiões. Frente a esse contexto, forma-se um movimento de pressão sobre as

esferas governamentais, por parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o qual

almeja a desapropriações de propriedades rurais consideradas inativas e/ou improdutivas,

visando com isso oferecer terra à parcela da população rural que foi excluída pelo projeto

modernizante implantado no país.

O processo de assentamento de famílias rurais em Santana do Livramento ocorre de

maneira mais intensa a partir de 1990, distinguindo-se das demais formas de ocupação por não

serem precedidos por conflitos, mas sim a partir de desocupações realizadas pelo Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), (CHELOTTI, 2005). Além de não haver

resistência no processo de desapropriação dessas áreas por parte dos antigos proprietários, os

solos ocupados eram férteis e em boas condições para a consolidação de propriedades rurais.

Os colonos que passaram a fazer parte da população de Santana do Livramento são

oriundos, principalmente, da porção mais ao norte do estado do Rio Grande do Sul. Entre os

municípios de origem das famílias estão Redentora, Palmeira das Missões, Constantina, Ronda

Alta, Nonoai, Rodeio Bonito, Entre Rios do Sul, Erechim, Frederico Westphalen, Planalto, Joia,

Guarani das Missões, São Miguel das Missões e Cruz Alta (MONTEBLANCO; MEDEIROS,

2014). Na tabela a seguir são compiladas por MonteBlanco e Medeiros (2014), o total de

assentamentos criados e o número de famílias assentadas no período de 1992 a 2008.

Tabela 1- Número de assentamentos e de famílias assentadas em Santana do Livramento

durante o período de 1992 a 2008.

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Ano Assentamento criado N° de famílias

assentadas

1992 PA* Liberdade no Futuro 62

1996

PA Apolo

PA Joaquim

PA Santo Ângelo PA Bom Será

PA Coqueiro

34

40

16 26

31

1997

PA Jupira/São Leopoldo

PA Recanto PA Posto Novo

PA Santa Rita II

PA Frutinhas

45

23 21

22

20

1998 PA Capivara

PA Pampeiro

22

44

1999 PA Rondeniense

PA Nova Esperança

17

43

2000 PA Esperança da Fronteira 21

2001 PA Nova Madureira 22

2002

PA Rincão de Querência

PA Torrão

PA Paraiso II

PA Roseli PA Conquista do Cerro da Liberdade

4

21

7

57 72

2005 PA Leonel Brizola

PA Fidel Castro

13

57

2006

PA 31 de Março

PA Sepé Tiaraju III

PA São João II PA Herdeiros de Oziel

12

41

33 39

2007 PA Banhado Grande 11

2008 PA Ibicuí 60

TOTAL 30 assentamentos 936

Fonte: MonteBlanco e Medeiros (2014).

*Projeto de Assentamento

É possível visualizar, a partir da tabela elaborada por Monteblanco e Medeiros (2014),

que até o período do levantamento, foram criados 30 assentamentos, nos quais foram assentadas

936 famílias. Seria necessário realizar um novo levantamento para atualização dessas

informações, tendo em vista que no período subsequente a 2008, novos assentamentos foram

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criados e dinâmicas internas ocorreram. Conforme Chelotti (2005), Santana do Livramento

possui a maior concentração de assentamentos no estado do Rio Grande do Sul, em que é

estabelecida nesse território uma criação e recriação dos espaços. Esse processo de recriar um

novo espaço é identificado enquanto uma forma de reterritorialização de centenas de famílias

de trabalhadores, nãos mais sem-terra, provenientes de outras regiões.

Para Chelotti (2005), a ocupação por assentamentos na porção sul do Rio Grande do Sul

significou a junção de duas identidades distintas: o camponês da campanha e o camponês da

colônia. Essa mistura cultural é percebida na maneira de falar, de cultivar a terra, na forma de

construção das casas, no estranhamento com o clima, entre outras particularidades. Essa mistura

produziu e ainda produz novas territorialidades, tanto no meio rural como no meio urbano.

Atualmente, as famílias assentadas, fazem parte da população santanense, é parte do lugar,

constituindo sua história com raízes nesse território. Nas palavras de Chelotti (2005), a

reterritorialização manteve traços culturais significativos daqueles que vieram para esse novo

espaço, mas, sobretudo houve trocas que contribuíram para a geração de certo grau de

hibridismo, resultando em uma adaptação ao novo território pela incorporação de novos

elementos. Exemplo disso, hoje é são identificadas famílias de assentados que se tornaram

pecuaristas, atividade típica do município, propiciado pelas características ambientais do bioma

Pampa e de suas pastagens naturais.

Em síntese, conforme destacado por Medeiros (2002), a criação de assentamentos rurais

na porção sul do estado resulta em um novo desenho do território, rompendo com a hegemonia

de uma área historicamente dominada por latifúndios de pecuária de corte. Com isso a

readaptação a um novo espaço, até então desconhecido, em que o cultivo e as técnicas que

herdaram de seus antepassados e que desenvolviam necessitam ser repensadas e ajustadas.

5. Proposição metodológica à análise dos meios de vida em assentamentos rurais

Essa seção apresenta alguns aspectos relacionados ao uso da abordagem dos meios de

vida no espaço rural, especificamente, tratando da realidade dos assentamentos rurais em

Santana do Livramento. De tal modo, as asserções metodológicas que serão apresentadas

versam sobre uma pesquisa que se encontra em andamento (2016), elaborado junto ao Programa

Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Agroecologia da Universidade Estadual do

Rio Grande do Sul (UERGS).

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Segundo Perondi (2014), a abordagem dos meios de vida é uma ferramenta para a

compreensão do grau de vulnerabilidade dos agricultores e famílias rurais. Assim, um grupo

familiar que se encontra em situação de dependência em relação a um repertório restrito de

fontes de renda e atividades (por exemplo, a especialização na produção de soja), se encontra

em uma situação de maior vulnerabilidade do que as famílias que apresentam um portfólio mais

amplo de possibilidades de incremento de renda e atividades (por exemplo, a produção de leite,

associada à agro industrialização e a produção para o autoconsumo). Frente a fatores como

clima, doenças e preços, o primeiro grupo familiar apresenta menor margem de manobra para

lidar com a situação de vulnerabilidade, e, portanto, seus meios de vida se encontram

fragilizados e o exercício das capacitações limitados.

Sendo assim, como proposição metodológica à análise dos meios de vida nos

assentamentos rurais em Santana do Livramento, a entrada metodológica orienta-se pela

compreensão do contexto de vulnerabilidade que se dá construção de estratégias de

diversificação dos meios de vida, conforme é esquematicamente apresentado abaixo.

Figura 1 - Construção de estratégias de diversificação dos meios de vida

Fonte: Niederle e Grisa (2008).

A concepção mais ampla da noção de vulnerabilidade se refere à exposição a

contingências e estresse, e à dificuldade de lidar com eles, podendo, assim, ser compreendido

por dois lados sobrepostos, o externo (exógeno) que advêm das situações que provocam o

choque, estresse ou riscos, e o lado interno (endógeno) que é a capacidade de reagir frente às

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situações externas impactantes (CHAMBERS, 2006). A vulnerabilidade também está

relacionada à situações de incertezas que interferem e dificultam o desenvolvimento do grupo

familiar, influenciando nas decisões e na forma de reação a essas situações (MATTE, 2013).

Na perspectiva de ELLIS (2000), diante a exposição a uma situação de vulnerabilidade,

os indivíduos reagem desenvolvendo processos de enfrentamento ou adaptação. As estratégias

de enfrentamento são construídas como resposta à ocorrência de crises e choques (secas,

inundações, queda/aumento de preços, etc.) e que se tornam alternativas momentâneas de

sobrevivência (NIEDERLE, GRISA, 2008). Portanto, são estratégias que visam moderar ou

reduzir os impactos negativos de situações que causam vulnerabilidade, ou promover efeitos

positivos para evitar maiores impactos (MATTE, 2013).

Do outro lado, as estratégias de adaptação envolvem a capacidade dos meios de vida

“evoluírem”, visando adaptar-se às situações de riscos ou mudança, ampliando, com isso, as

possibilidades de lidar com as situações de vulnerabilidade (MATTE, 2013), “antecipando”

possíveis crises e choques (NIEDERLE, GRISA, 2008).

Assim, o contexto de vulnerabilidade é o fio condutor da abordagem metodológica, o

que permite a compreensão de como a vulnerabilidade age sobre os meios de vida das famílias

rurais e como essas desenvolvem estratégias para arquitetar mecanismos de reprodução social.

Seguindo a linha metodológica desenvolvida por Matte (2013), a operacionalização da pesquisa

segue três etapas distintas, porém completares: 1) a identificação a plataforma de ativos internos

e externos que são acessados pelas famílias rurais visando à construção de estratégias de

enfrentamento ou adaptação à vulnerabilidade; 2) a identificação dos fatores de vulnerabilidade

e avaliação de seus impactos sobre as capacitações e meios de vida das famílias; e 3) a

identificação das estratégias criadas e adotadas pelas famílias no enfrentamento ou na adaptação

às situações de vulnerabilidades. Trata-se de desenvolver uma pesquisa em uma perspectiva

multidimensional, combinando diferentes dimensões (econômica, social, cultural, politica,

ambiental) e um amplo número de variáveis.

A obtenção e análise das informações, mediante entrevistas seguindo um roteiro com

questões abertas, fechadas e de múltipla escolha, de caráter qualitativo e quantitativo, deve

contemplar as três etapas anteriormente descritas. Para operacionalizar as etapas 1, 2 e 3

procede-se a construção de blocos constituídos pela plataforma de ativos/capitais, os quais

definem distintos fatores de vulnerabilidade, permitindo, ao mesmo tempo, identificar as

estratégias adotadas de enfrentamento e adaptação.

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Tabela 2 – Fatores de vulnerabilidade organizados em blocos.

A – Terra, solo e vegetação

1 Situação fundiária (área insuficiente, arrendamento, compra terra)

2 Relevo

3 Solo (fertilidade, degradação)

4 Vegetação florestal (uso, reservas legais, APP´s)

5 Plantas “indesejáveis”

6 Vegetação arbustiva

7 Campo nativo

8 Arenização

B – Clima e água

1 Período de verão (seca)

2 Período de inverno

3 Disponibilidade de água para família e sistema produtivo

4 Qualidade da qualidade da água

C – Mercado e processo produtivo

1 Acesso aos mercados de venda dos produtos (falta de mercado,

concentração, exigência)

2 Produção agrícola (sistema produtivo, custos de produção, preços de venda,

doenças, tecnologia, manejo)

3 Produção animal (sistema produtivo, custos de produção, preços de venda,

doenças, tecnologia, manejo

4 Tecnologias produtivas

5 Impostos

D – Fatores sociais

1 Ausência de sucessor

2 Contratação de mão de obra

3 Capacitação da mão de obra

4 Opções de entretenimento (lazer e cultura)

5 Organização social

6 População (idade, gênero, número de membros na família)

7 Acesso à educação

8 Acesso à saúde

E – Infraestrutura e fatores institucionais

1 Acesso ao crédito rural

2 Acesso aos meios de comunicação (celular, telefone fixo)

3 Condições das benfeitorias e equipamentos

4 Condições das estradas

5 Condições de habitação

6 Condições de saneamento

7 Apoio da administração pública municipal

8 Acesso às políticas públicas (programas e projetos)

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9 Presença de cooperativas

10 Presença dos sindicatos

11 Presença pesquisa agropecuária

12 Presença das Universidades

13 Presença da extensão rural

Fonte: Adaptado de Matte (2013).

Na sequência de cada bloco, mediante as questões abertas aplicadas a cada fator do

respectivo bloco, abra-se a possibilidade para os indivíduos manifestarem as estratégias

adotadas para enfrentar ou adaptar-se às situações de vulnerabilidade. Na medida em que se

indica o grau de vulnerabilidade a um determinado fator, procede-se sobre estratégias de

enfrentamento ou adaptação adotadas frente a esta situação.

6. Considerações finais

As mudanças sociais, econômicas, produtivas e ambientais derivadas das

transformações societárias em curso no meio rural da região da Campanha do Rio Grande do

Sul, evidentemente, têm impactado o nos meios de vida das famílias rurais oriundas dos projetos

de reforma agrária. No entanto, o alcance dos impactos dessas mudanças ainda são

desconhecidos, e até certo ponto, incertos devido à imprevisibilidade de suas consequências.

A abordagem dos meios de vida tem sido recorrente e central à análise da transformação

social no mundo rural, definindo nos últimos anos uma importante agenda de pesquisa e

orientando a formulação de políticas públicas em diferentes partes do mundo, ganhando

notoriedade nos últimos anos no Brasil, particularmente na região Sul. Apesar dos avanços da

agenda de pesquisa que têm tratado sobre essa abordagem, essa agenda está longe de ser

esgotada, e ainda são prementes estudos que focam dinâmicas de desenvolvimento rural em

contextos localizados com realidades agrárias multifacetadas.

Nesse sentido, ao se propor a abordagem dos meios de vida para o estudo dos

assentamentos rurais em Santana do Livramento, apresentou-se possibilidade teórico-

metodológicas para análises que possam dar conta de identificar situações multidimensionais

de vulnerabilidade que agem sobre os agricultores familiares, e como esses fazem uso dos ativos

que dispõem para a realização dos seus meios de vida, visando, assim, desenvolver estratégias

de enfrentamento às mudanças de contexto a que estão expostos.

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Assim sendo, é possível perceber, por exemplo, que a dificuldade de enfrentar

determinada situação de vulnerabilidade (geração de renda) tem relação com uma restrição de

acesso a um ativo (especialização produtiva) ou a um conjunto de ativos (estradas + assistência

técnica + acesso à água), o que restringe a realização plena das capacitações na busca por novas

oportunidades a partir dos meios de vida das famílias rurais.

Portanto, as situações de vulnerabilidade sobre as famílias rurais tendem a estar

diretamente relacionadas com a consequente perda de autonomia dos indivíduos, no entanto

esta situação pode variar conforme as características dos meios de vida destes indivíduos ou

grupos familiares. Assim, fortalecer a agricultura familiar implica na mitigação das situações

de vulnerabilidade, sendo a diversificação dos meios de vida uma via importante, permitindo

maiores de chances de oportunidade e liberdade dos indivíduos. O ponto inicial e fundamental,

no entanto, é conhecer os meios de vida e as situações de vulnerabilidade.

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