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Waldemar Henrique: entre o folclórico e o popular Por Luciana | 08/03/2009, 18h24 1 PROPOSIÇÃO O maestro paraense Waldemar Henrique tem uma vasta obra no que tange a cultura brasileira. Estranhamente, o valor cultural de suas composições é amplamente confundido como produção folclórica – algumas até sendo erroneamente consideradas de domínio público. O presente trabalho tem como objetivo reconhecer e valorizar a importância cultural – e não folclórica – da obra do maestro, tendo como base as canções da Série Lendas Amazônicas, que começou a ser composta em 1933, englobando onze composições – Foi boto, sinhá!, Cobra grande, Tamba- tajá, Matintaperera, Uirapuru, Curupira, Manha-nungara, Nayá, Japiym, Pahy-tuna e Uiara. Além disso, servirá para manter viva a memória de Waldemar Henrique – falecido em 1995 – diante das gerações atuais e futuras. É importante destacar que a Série Lendas Amazônicas é apenas um recorte, um viés pelo qual vamos abordar a obra do autor. Nas composições da Série Lendas Amazônicas, o maestro Waldemar Henrique transpôs para a música a cultura descrita nas narrações populares da Amazônia. Infelizmente as quatro últimas canções não têm edição ainda, mas o estudo pode ser feito mesmo assim, por conta das primeiras sete canções. Dividido em duas partes, o trabalho apresenta primeiramente as composições da Série Lendas Amazônicas assim como as narrativas populares que serviram de inspiração para as mesmas, anotadas nas partituras originais das canções do maestro e mais um breve comentário acerca de cada uma. Em um segundo momento, analisamos o motivo pelo qual Waldemar Henrique é considerado folclore e traçamos um cotejo entre cultura e folclore para desmistificar a afirmação em questão, com o intuito de mostrar que as composições do maestro paraense foram inspiradas no folclore, sem, contudo, ser folclore. 2 SÉRIE LENDAS AMAZÔNICAS “As onze canções que formam as ‘Lendas Amazônicas’ são singelas, mas extremamente expressivas, exigindo, para interpretá-las, cantores que possam, antes de tudo, dizê- las e vivê-las bem, sem deturpar-lhes o sentido” Claver Filho 2.1 FOI BOTO, SINHÁ! (nº1) Waldemar Henrique / Antonio Tavernard

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Waldemar Henrique: entre o folclórico e o popular

Por Luciana | 08/03/2009, 18h241 PROPOSIÇÃOO maestro paraense Waldemar Henrique tem uma vasta obra no que tange a cultura brasileira. Estranhamente, o valor cultural de suas composições é amplamente confundido como produção folclórica – algumas até sendo erroneamente consideradas de domínio público.O presente trabalho tem como objetivo reconhecer e valorizar a importância cultural – e não folclórica – da obra do maestro, tendo como base as canções da Série Lendas Amazônicas, que começou a ser composta em 1933, englobando onze composições – Foi boto, sinhá!, Cobra grande, Tamba-tajá, Matintaperera, Uirapuru, Curupira, Manha-nungara, Nayá, Japiym, Pahy-tuna e Uiara. Além disso, servirá para manter viva a memória de Waldemar Henrique – falecido em 1995 – diante das gerações atuais e futuras. É importante destacar que a Série Lendas Amazônicas é apenas um recorte, um viés pelo qual vamos abordar a obra do autor. Nas composições da Série Lendas Amazônicas, o maestro Waldemar Henrique transpôs para a música a cultura descrita nas narrações populares da Amazônia. Infelizmente as quatro últimas canções não têm edição ainda, mas o estudo pode ser feito mesmo assim, por conta das primeiras sete canções. Dividido em duas partes, o trabalho apresenta primeiramente as composições da Série Lendas Amazônicas assim como as narrativas populares que serviram de inspiração para as mesmas, anotadas nas partituras originais das canções do maestro e mais um breve comentário acerca de cada uma. Em um segundo momento, analisamos o motivo pelo qual Waldemar Henrique é considerado folclore e traçamos um cotejo entre cultura e folclore para desmistificar a afirmação em questão, com o intuito de mostrar que as composições do maestro paraense foram inspiradas no folclore, sem, contudo, ser folclore. 2 SÉRIE LENDAS AMAZÔNICAS“As onze canções que formam as ‘Lendas Amazônicas’ são singelas, mas extremamente expressivas, exigindo, para interpretá-las, cantores que possam, antes de tudo, dizê-las e vivê-las bem, sem deturpar-lhes o sentido”Claver Filho2.1 FOI BOTO, SINHÁ! (nº1) Waldemar Henrique / Antonio Tavernard“Corre nas margens dos rios Amazonas, Tocantins e seus afluentes, que em noites de lua-cheia sai o boto do fundo do mar transformando num belo rapaz, o qual dirigindo-se aos terreiros, em festas, dança e seduz as virgens morenas do arraial. Nessas noites, ouve-se bem alto o choro do tajapanema, a planta alma da beira dos rios, avisando a população do mal que se aproxima…”.Taja-Panema chorou no terreiro (bis)E a virgem morena fugiu no costeiroFoi Boto, Sinhá…Foi Boto, Sinhô!Que veio tentáE a moça levouNo tar dansará,Aquele doutô,Foi Boto, Sinhá…Foi Boto, Sinhô!

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Taja-Panema se poz a chorá. (bis)Quem tem filha moça é bom vigiá!O Boto não dorme No fundo do riuSeu dom é enormeQuem quer que o viuQue diga, que informeSe lhe resistiuO Boto não dormeNo fundo do riu…A composição é inspirada pelo mito do Boto, que é amplamente conhecido na Amazônia.Na realidade, o Boto é uma válvula de escape para as “cabôcas” que engravidam sem casar. Graças a ele, ao invés dessas moças serem tidas como pecadoras, acabam por se tornar vítimas. Da mesma forma, o mito também tem serventia aos “cabôcos” que engravidam as moças, já que a responsabilidade que seria deles passa a ser do Boto. Desse ponto de vista, temos o Boto com um mito socialmente perfeito, pois resolve os “problemas” de ambas as partes. Talvez por isso ele se faça presente até hoje na região amazônica. 2.2 COBRA GRANDE (nº2) Waldemar Henrique “Uma vez por ano a Boiúna sai dos seus domínios para escolher uma noiva entre as cunhatãs da Amazônia. E, diante daquele enorme vulto prateado de luar que atravessa vertiginosamente o Grande-Rio, os pajés rezam, as redes tremem, os curumins escondem-se, chorando, imenso delírio de horror rebenta na mata iluminada… Credo! Cruz!”.I Credo! Cruz!Lá vem a Cobra-Grande,Lá vem a Boi-Una de prata!A danada vem rente à beira do rio…E o vento grita alto no meio da mata!Credo! Cruz!IICunhantã te escondeLá vem a Cobra-GrandeA-a…Faz depressa uma oraçãoP’ra ela não te levarA-a…IIIA floresta tremeu quando ela saiu…Quem estava lá perto de medo fugiuE a Boi-Una passou logo tão depressa,Que somente um clarão foi que se viu…Cunhantã te escondeLá vem a Cobra-GrandeA-a…Faz depressa uma oraçãoP’ra ela não te levar

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A-a…IVA noiva Cunhantã está dormindo medrosa,Agarrada com força no punho da rede,E o luar faz mortalha em cima dela,Pela fresta quebrada da janela…Eh Cobra-GrandeLá vai ela…A narração dramática da composição exalta um medo constante, marcado desde o começo da letra, quando o eu-lírico esconjura a cobra, até o fim, quando a Cunhantã aparece dormindo medrosa na rede.Outro ponto onde o medo é explicitado é quando os versos trazem a expressão á-á, significando todo o temor sentido pelas personagens da história contada pela música. A boiúna é rápida, fatal e age no silêncio, hipnotizando e paralisando com o clarão dos olhos dela as vítimas. Não tendo como escapar, a floresta treme e o luar serve de mortalha para a Cunhantã. 2.3 TAMBA-TAJÁ (nº3) Waldemar Henrique“Anaro, um jovem índio da tribo Macuxi do Amazonas, nutria profundo amor por sua esposa. Certo dia ela não pode levantar-se, estava paralítica das pernas. Anaro ficou muito triste e não a quis abandonar; armou uma tipóia em seus ombros fortes e carregou-a consigo para toda parte. Passado algum tempo, sentiu que o precioso fardo pesava demasiadamente. Verificou então que sua esposa havia falecido, e ainda para não abandoná-la, abriu uma grande cova e enterrou-se junto com o seu amor. Nasceu então uma planta estranha que os índios denominaram tamba-tajá. Venerada como símbolo de um grande amor, há sempre um pé desta planta ao lado da barraquinha de uma cabocla apaixonada. E contam que seu poder miraculoso jamais foi desmentido”. Tamba-tajáMe faz feliz,Que meu amor me queira bem…Que seu amor seja só meu,De mais ninguém,Que seja meu,Todinho meu,De mais ninguém…Tamba-tajáMe faz felizAssim o índio carregou sua “macuxy”Para o roçado, para a guerra para a morte…Assim carregue o nosso amor a boa sorte…Tamba-tajá,Tamba-tajá…Tamba-tajá,Me faz feliz,Que mais ninguém possa beijar o que beijeiQue mais ninguém escute aquilo que escuteiNem possa olhar dentro dos olhos que olheiTamba-tajá,

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Tamba-tajá…Na Amazônia, as plantas têm, conhecidamente, um valor mágico, assegurando pelos pajés. O tamba-tajá é uma planta apontada como um amuleto protetor dos amantes. Na canção de Waldemar Henrique o eu-lírico faz uma oração ao se dirigir ao tamba-tajá, explicitando a crença pagã dos moradores da região amazônica. 2.4 MATINTAPERERA (nº4) Waldemar Henrique / Antonio Tavernard“Matintaperera é um passarinho noctívago de espécie rara, cujo canto estridente dizem prenunciar desgraça. Em toda a Amazônia, o têm como encarnação de alma-penada ou metamorfose de velha malvada a pedir tabaco para cachimbo. Nas noites de sexta-feira é maior o temor que inspira e, por isso, ao escutá-lo, gritam: vem buscar tabaco amanhã… E, conta a lenda, no dia seguinte se há de ver uma negra velha de saia vermelha toda esfarrapada, rondando a casa em busca do fumo prometido”. Matintaperera Chegou na clareiraE logo silvou,No fundo do quarto,Manduca TorcatoDe medo gelou.Matinta quer fumoquer fumo migado,meloso, meladoque de muito sumo…Torcato não pita,não masca nem cheira.Matintapereravai tê-la bonita…Matintaperera, de tardinha vem buscaro tabaco que ontem a noite eu prometi,queira Deus ela não venha me agoniar,Ah! Matinta, preta velha, mãe-maluca, pé de pato.queira Deus ela não venha me agoirar…Matintapererachegou na clareirae logo silvou.No fundo do quartoManduca Torcato de medo gelou. Que noite infernal,soaram gemidos, resmungos, bulidos,do gênio do mal…E, ate amanhã,bem perto da choca,a fúnebre troca dum vesgo acauãAcauã…Acauã…

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A sensação de medo e impotência ao se deparar com uma força ruim maior é a constante dessa composição, que não traz consigo nenhum elemento sensual.2.5 UIRAPURU (nº5) Waldemar Henrique “Por toda a floresta amazônica nota-se um silêncio êxtase quando canta o uirapuru. Este maravilhoso passarinho, escondido nas mais altas e espessas ramagens, solta tão vibrantes, tão apaixonados e caprichosos gorjeios que todos os seres, presos e fascinados, quietam-se a escuta. Mas, para os habitantes supersticiosos do grande vale, possuir um uirapuru embalsamado preparadinho num breve, é dispor de extraordinário poder sobre os corações alheios; é dominar e atrair os sentimentos mais ausentes; é ser querido e feliz por toda a parte. Então caçam-no impiedosamente. Arrumam-no. Vendem-no. Revendem-no. Nas cidades, o feitiço e disputado por altos preços… Todos o querem… Todos o buscam… E assim espalhou-se a lenda do uirapuru – o fetiche canoro das selvas amazônicas”. Certa vez de “montaria”Eu descia um “paraná”O caboclo que remavaNão parava de falá(r)A, a… Não parava de falá(r)A, a… Que caboclo falador!Me contou do “lobishomi”Da mai-d’agua, do tajáDisse do jurutahyQue se ri pro luarA, a… Que se ri do luarA,a… Que caboclo falador!Que mangava de visagemQue matou surucucuE jurou com pavulagem Que pegou uirapuruA, a… Que pegou uirapuruA, a… Que caboclo tentador!Caboclinho meu amor,Arranja um pra mimAndo “roxa” pra pegar “Umzinho” assim;O diabo foi-se emboraNão quiz me darVou juntar meu dinheirinho Pra poder comprarMas, no dia que eu comprarO caboclo vai sofrerEu vou desassossegarO seu bem-quererA, a… O seu bem-quererA, a… Ora deixa ele pra lá. A composição aborda o tema do pássaro que quando canta todo mundo pára pra ouvir. Para dar veracidade e força à canção, o eu-lírico se põe a falar como o povo da região, suprimindo, por exemplo, o –r final da palavra falar.

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2.6 CURUPIRA (nº6) Waldemar Henrique “O curupira é um duende-protetor de todos os bichos e todas as árvores da planície amazônica. É um endiabrado caboclinho de um metro de altura, franzino com um único olho brilhando no meio da testa e os calcanhares voltados para frente. Usa no pescoço um capuz como de frade e tem a cabeça raspada. Diverte-se em atrapalhar os caboclos que se atrevem a penetrar na floresta. Esconde-se atrás dos troncos das árvores e assobia chamando o caçador. Este, atraído pelos sucessivos chamados que partem dos pontos mais diversos da mata, acaba por perder completamente o rumo. O espetáculo do homem assim desorientado e alucinado provoca ao curumim-demônio a mais descomedida hilaridade. Suas risadas estridentes vibram então por toda a imensa floresta virgem”.Já andei três dias e três noitesPelo mato, sem pararE no meu caminho não encontreiNem uma caça pra matarSó escuto pela frente, pelo lado,O curupira me chamar,Ora aqui, ora ali s’escondendo,Sem parar n’um só lugar…Por esse danado muitas vezesMe perdi na caminhadaE nem Padre-Nosso me livrouDesse malvado da estrada.Curupira feiticeiro!Sai detraz do castanheiro,Pula pra frente,Defronta com a gente,Negrinho, covarde, matreiro.Deixa o caboclo passar!A lenda do curupira não é unicamente da região amazônica, tendo nuances diversas em cada localidade brasileira. A composição apresenta o azar de um caçador em encontrar o curupira pela frente. Como o ente mitológico em questão não pode ser ferido por armas, nem mesmo pelo Pai-Nosso, não resta alternativa ao caçador do que pedir passagem ao curupira. 2.7 MANHA-NUNGARA (nº7) Waldemar Henrique“Contam que uma índia morena, jovem e formosa vivia nas margens do rio Amazonas em companhia de sua Manha-nungara (mãe de criação). Certa noite toda a maloca é despertada pelos chamados aflitos da cunhatã: Manha-nungara! Manha-nungara! O que foi? E todos correram as margens do rio. Em breve trazem sobre uma esteira a formosa índia desfalecida que arrancaram as seduções de um boto branco que se agitava ansioso e terrível nas águas prateadas. Com rezas e sacrifícios, Manha-nungara consegue quebrar o encantamento e reanimar a cunhã estremecida, porém a árvore ferida no plenilúnio continua sangrando por muito tempo.

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Não houve mais sossego no espírito da moça. Tempos depois, em outra noite de lua, cedendo ao poder misterioso do deus-peixe das águas amazônicas, a bela índia volta ao rio e entrega-se ao boto que a seduzira. Em vão, desta vez, ecoa por toda a selva o grito angustiado: Manha-nungara! Manha-nungara!”Do alto palmar d’uma jussaraVem o triste piar da iumara.Os tajás pelo terreiro estão chorandoE no rio, resfolegando,O boto-branco boiou!… (o-o)Sentada na rede, cunha esta rezandoA reza que Manha-Nungara ensinou…- Tupan, quem foi que me enfeitiçou?- Manha-Nungara!O grito rolou pela caiçara,Mai-velha se espantou.Embaixo, na treva do rioDois corpos em cio,Lutando, enxergou.E pelo barrancoDe novo soouO grito de angustiaQue a cria soltou: - Manha-Nungara!Mais uma vez o boto se apresenta nas composições de Waldemar Henrique, dessa vez com um detalhamento do espaço e das personagens que nele atuam. 2.8 NAYÁ (nº8) Waldemar Henrique Sem edição2.9 JAPIYM (nº9) Waldemar Henrique Sem edição2.10 PAHY-TUNA (nº10) Waldemar Henrique Sem edição2.11 UIARA (nº11) Waldemar Henrique Sem edição3 WALDEMAR HENRIQUE: ENTRE O FOLCLÓRICO E O POPULAR “A criação do folclore é pessoal. Alguém fez, em um dia de algum lugar. Mas a sua reprodução ao longo do tempo tende a ser coletivizada, e a autoria cai no chamado ‘domínio público’” (Brandão, 1997, p.34). Diante dessa afirmativa, seria a obra de Waldemar Henrique acertadamente reconhecida como folclore? Por anos e anos, muitas composições de Waldemar Henrique foram designadas como folclore, fazendo com que as obras-primas do maestro paraense fossem equivocadamente tidas como de domínio público, afinal, “a floresta amazônica não passa para o antropólogo de um amontoado confuso de árvores e arbustos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de tonalidades verdes. A visão que um índio Tupi tem deste mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial” (Laraia, 2006, p.67).Na verdade, a confusão que ocorre durante todo esse tempo é oriunda do fato de Waldemar Henrique ter baseado muito da arte dele no folclore – não só

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paraense e/ou amazônico, mas nacional. Waldemar Henrique extrai do folclore (cultura popular) elementos para a criação cultural dele. A criação cultural dele não é folclore e sim inspirada no folclore – prova disso são as lendas amazônicas apontadas em suas partituras, como prova de que o folclore deu origem aquelas canções. As composições do autor amazônico trazem temas populares, resultantes da pesquisa que o maestro fez acerca do folclore da terra natal dele. O erro é considerar as canções compostas pelo músico também folclóricas. O termo folclore adquiriu um sentido pejorativo nos dias atuais, fazendo com que a expressão “cultura popular” ganhasse força. Waldemar Henrique pode ser considerado a junção da cultura popular – o antigo folclore – com a cultura erudita – visto a graduação musical do compositor, já que “possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente, o homem é capaz de assegurar a retenção de suas idéias eruditas, comunicá-las para outros homens e transmiti-las para os seus descendentes como uma herança sempre crescente” (Laraia, 2006, p.26).“Uma outra característica consensualmente aceita sobre o fato folclórico é que ele se transmite de pessoa a pessoa, de grupo a grupo e de uma geração a outra, segundo os padrões típicos da reprodução popular do saber, ou seja, oralmente, por imitação direta e sem a organização de situações formais e eruditas de ensino e aprendizagem” (Brandão, 1997, p.46). As lendas amazônicas que originaram as canções de Waldemar Henrique na série em estudo são muito conhecidas e propagadas entre os ribeirinhos, os moradores das florestas e matas amazônicas, contadas de boca em boca através dos tempos, sem que para isso algum desses falantes precise ir a uma escola aprendê-las.Contudo, as composições de Waldemar Henrique não são – infelizmente – tão facilmente suscetíveis à rápida propagação, porque não é todo mundo que tem acesso a conhecimentos e aptidões musicais. Não podemos esquecer que “Qualquer que seja o tipo de mundo social onde exista, o folclore é sempre uma fala. É uma linguagem que o uso torna coletiva. O folclore são símbolos. Através dele as pessoas dizem e querem dizer” (Brandão, 1997, p.107). Algumas apresentações das canções da Série Lendas Amazônicas já foram feitas para essas pessoas que “convivem” mais de perto com as lendas e a reação foi de reconhecimento dessas narrativas, de encantamento com a criação melodiosa que essas narrativas tão bem conhecidas deles conseguiram inspirar, mas não uma vontade, um ímpeto de propagar aquelas canções junto e/ou em detrimento das narrativas. São quatro as características folclóricas encontradas nas canções de Waldemar Henrique, a saber: rítmica, com as “Lendas Amazônicas” majoritariamente feitas à base de recitativo (Manha-nungara, Curupira, Matintaperera, Cobra Grande e Tamba-tajá), que é uma marca do folclore nacional; melódica, dentro de uma obra assumidamente silábica, onde, se existe favoritismo por algum modo (escala) em especial, esse favoritismo recai sobre o hipolídio (que encerra uma quarta maior) que também é um modo costumeiro no folclore nacional; formal, apresentando a canção com estrofes, dialogada, com refrão curto – tudo aquilo que é bem presente nas danças e rodas do folclore; e a psicossocial, propensa, como no folclore, ao amor de lamento, a monotonia de tristeza, a brejeirice, a doçura, ao calor e a uma certa indecisão frásica que engloba principalmente as “Lendas Amazônicas”.

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O que se nota é um vasto e valoroso conteúdo folclórico, cultivado através dos tempos como pedra de encantaria pelo povo humilde da floresta. Waldemar Henrique, como profundo conhecedor dos costumes, tradições e lendas da gente da terra dele, dedicou-se a compor suas canções baseado nessa gama folclórica – algo inédito e original aos olhos do sul/sudeste e, por isso mesmo, fácil e (convenientemente?) confundível com folclore. Sobre isso, Claver Filho (1978, p.91) cita Mariza Lira que escreveu:

Na região amazônica impõe-se como compositor de grande valor, Waldemar Henrique, que teve a originalidade de plasmar a sua rica e linda obra músico-regional no folclore da bacia amazônica fantasmagórica, surpreendente e empolgante. Um dos melhores compositores populares e quiçá o melhor compositor regional, Waldemar Henrique, apreciadíssimo, é nome esplêndido, popular em todo o Brasil, já tendo a sua obra ultrapassado fronteiras, projetando-se lindamente no estrangeiro. Inegavelmente as composições de Waldemar Henrique têm um encantamento, um fascínio da região onde nasceu. (…) No Brasil Waldemar Henrique é o compositor que melhor tem compreendido o folclore de nossa gente. Quase todas as suas composições são firmadas em documentos folclóricos e ele dá um encanto de tanto mistério, como Foi boto, sinhá!, Cobra grande, Matintaperera e tantas mais, que encheu o ambiente de estranha magia, levando-nos aos fabulosos recantos da majestosa floresta e do Rio-Mar.

Ora, se “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo” (Laraia, 2006, p.67), é apropriado reconhecer que a obra de Waldemar Henrique tem uma intensa inspiração folclórica – e por que não dizer valorização folclórica? – mas isso não significa que seja, ela mesma, folclórica. Resumir a folclore a obra do maestro paraense é ignorar que baseado no folclore Waldemar Henrique contribuiu para a cultura nacional, traduzindo e perpetuando musicalmente lendas conservadas através dos tempos pelo povo amazônico. O que Waldemar Henrique confirma então em suas músicas é que “a cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo” (Laraia, 2006, p.49). Ora, “o folclore é um ‘instante fugaz’ da vida dos homens e de suas sociedades através da cultura. Tudo nele é relação e tudo se articula com outras coisas da cultura, em seu próprio nível (o ritual, o religioso, o tecnológico, o lúdico) e em outros” (Brandão, 1997, p.87), e o maestro tirou partido das lendas e causos da gente que o cercava e se viu estimulado na ação criativa que o fez compor um sem fim de músicas representativas para a cultura nacional. Músicas que perpetuam a beleza, a sabedoria e o encantamento do folclore amazônico, fazendo dele bem mais do que um “instante fugaz”. Músicas que conseguem fazer com que alguém – mesmo desconhecendo a vivência das florestas e rios – cantarole e, por conseguinte, absorva as lendas do povo silvícola, instalando-se assim a cultura como algo vivo, presente e, sobretudo, perene no dia-a-dia das pessoas.4 EPÍLOGO Ao revisitar as composições de Waldemar Henrique para a série Lendas Amazônicas, podemos fazer um mergulho e uma análise do folclore amazônico

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e da interpretação cultural que podemos fazer dela, através não só de textos, mas como de música, como o maestro paraense fez. Brandão (1997, p.11) vislumbra que folclore, mais que divertimento, são as tradições populares que o povo cultiva para não esquecer quem é. Waldemar Henrique, por intermédio da música, cultivou as lendas da terra dele para não esquecer quem era, não esquecer as lendas que ouviu quando menino pelo interior do estado em que nasceu e cresceu. Assim como cada um que ouvir a música do maestro paraense também não esquecerá da simplicidade criativa com a qual ele perpetuou as narrativas amazônicas nas canções que compôs. As canções da Série Lendas Amazônicas, além de servirem para lembrar quem era Waldemar Henrique, também têm papel fundamental para quem deseja saber quem é o povo amazônico, as tradições populares, as crendices, os costumes, as dores, os cantares. Com o presente trabalho, fica esclarecida a diferença entre folclore e cultura, tendo a obra de Waldemar Henrique como elo entre os dois conceitos: as lendas são folclore amazônico; as canções são cultura extraída do folclore. No dia em que esquecermos que Waldemar Henrique é o autor dessas e de tantas outras canções que traduziram/traduzem o povo não só amazônico, mas brasileiro, talvez possamos passar a creditá-las como de “domínio público”. A pesquisa aqui feita e muitas mais que são feitas acerca do compositor paraense têm como exitoso objetivo não deixar que essa memória se esvaia.