Waldir Beividas - Inconsciente Et Verbum - Psicanálise, Semiótica, Ciência, Estrutura

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metodologia psicanalise

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    INCONSCIENTE ET VERBUM:Psicanlise, Semitica,

    Cincia, Estrutura

  • 2Inconsciente et verbum

    USP UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Reitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho Jos Melfi

    FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

    CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS

    Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profa. Dra. Lourdes Sola (Cincias Sociais)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thom Saliba (Histria)Profa. Dra. Beth Brait (Letras)

    FFLCH

    FFLCH/USP

    VendasLIVRARIA HUMANITAS-DISCURSOAv. Prof. Luciano Gualberto, 315 Cid. Universitria05508-900 So Paulo SP BrasilTel.: 3818-3728 / 3818-3796

    HUMANITAS-DISTRIBUIORua do Lago, 717 Cid. Universitria05508-900 So Paulo SP BrasilTelefax.: 3818-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.br/humanitas

    Crdito das imagens da capa: Marcos LopesReviso tcnica de contedo: Iv Carlos Lopes

    Humanitas FFLCH/USP agosto 2001

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    2001

    FFLCH/USPFFLCH/USP

    ISBN 00-0000-000-0

    INCONSCIENTE ET VERBUM:Psicanlise, Semitica,

    Cincia, Estrutura

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    Waldir Beividas

    2. edio

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    Copyright 2001 da Humanitas FFLCH/USP

    proibida a reproduo parcial ou integral,sem autorizao prvia dos detentores do copyright

    Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USPFicha catalogrfica: Mrcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

    B 423 Beividas, WaldirInconsciente et verbum: psicanlise, semitica, cincia,

    estrutura / Waldir Beividas. So Paulo: Humanitas / FFLCH /USP, 2001.

    394 p.

    Originalmente apresentada como Tese (Doutorado) Fa-culdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universi-dade de So Paulo, 1992, sob o ttulo Inconsciente e verbo:por um dilogo terico entre psicanlise e semitica.

    ISBN 85-7506-006-6

    1. Semitica 2. Psicanlise 3. Linguagem (Filosofia e teo-ria) 4. Inconsciente I. Ttulo

    CDD 401.41 150.195

    HUMANITAS FFLCH/USPe-mail: [email protected]

    Tel./Fax: 3818-4593

    Editor ResponsvelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenao Editorial e Arte Final da CapaM. Helena G. Rodrigues MTB n. 28.840

    Projeto Grfico e DiagramaoMarcos Eriverton Vieira

    RevisoEdison Lus dos Santos

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    Agradecimentos

    Muitos colegas, professores, amigos, pessoas ligadas a mim afeti-vamente ou intelectualmente, e mesmo instituies envolvidas em mi-nha formao, deixaram marcas benficas neste trabalho, preparadocomo tese de doutoramento. difcil indicar a proporo e lembrar-mede todos. Mas h os que tiveram presena especial em todo o contextoda pesquisa, da preparao presente publicao.

    Diana Luz Pessoa de Barros foi a orientadora segura, a estimula-dora por natureza e incorrigvel no otimismo. Sob seu zelo e competn-cia terica pude ter o norte sempre vista. Eventuais derivas, portanto,so da inabilidade simplesmente minha.

    Igncio Assis Silva, Luiz Tatit, Eduardo Peuela e Luiz AlfredoGarcia-Roza foram os membros da banca arguidora da tese. Sua leituraedificante me fizeram corrigir algumas rotas e perseverar na direo.

    Jos Luiz Fiorin, terico severo, trabalhador incansvel da teoria,professor no sentido prprio, e companheiro na acepo exata, umparmetro que insiste em se manter em mim.

    Luiz Tatit, cujo amor pelo que estuda s perde para a disciplinacom que o faz, foi e continua parceiro de reflexo na pesquisa e nastrocas tericas j quase vintenrias.

    Iv Carlos Lopes, o amigo mesmo, desde o incio das coisas, foialm disso a quem destinei a tortura dos erros de sintaxe, na correodo trabalho. Os que remanesceram teimosia minha.

    A Universidade de So Paulo me deu as condies excelentes depesquisa, num contexto sempre difcil para a produo cientfica, noBrasil. A FAPESP, o CNPq e a CAPES me proporcionaram suporte fi-

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    nanceiro para o empreendimento no pas e em estgio no exterior. Semesse apoio decisivo o leitor certamente estaria diante de um trabalhomenor.

    De tudo, enfim, o que mais importa a convivncia com genteque engrandece a vida em sua passagem por ela. A Igncio Assis Silvafica dedicado este trabalho, in memoriam.

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    Sumrio

    Prefcio ....................................................................................................... 9

    Introduo Geral ....................................................................................... 17

    Parte I Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    Cap. 1 Freud e a Cincia ........................................................................ 27

    Cap. 2 Lacan e a Cincia ....................................................................... 33

    Cap. 3 Por uma epistemologia do desejo ................................................. 51

    Cap. 4 A a-cientificidade da psicanlise ............................................... 59

    Cap. 5 Psicanlise, caminho das Luzes ? ............................................. 85

    Cap. 6 Psicanlise e mito ...................................................................... 113

    Cap. 7 LOGOS vs MYTHOS ......................................................................... 129

    Parte II Psicanlise e estrutura: questes de mtodo

    Cap. 1 Por uma nova cientificidade para a psicanlise ....................... 159

    Cap. 2 Vacncia conceptual ................................................................. 179

    Cap. 3 Descuidos conceptuais: hiprboles e paralogismosem psicanlise ........................................................................... 191

    Cap. 4 Sobre o estilo ............................................................................ 227

    Cap. 5 O estilo em Lacan (e aps) ....................................................... 241

    Cap. 6 Estilo e metalinguagem ............................................................. 261

    Cap. 7 O inconsciente como estrutura (de linguagem)e o sujeito-suposto-saber ....................................................... 283

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    Parte III Psicanlise e semitica: questes de descrio

    Cap. 1 Por uma psicanlise (ainda) estrutural ......................................... 291

    Cap. 2 Um significante ao quadrado .................................................. 303

    Cap. 3 Um contedo estruturvel: a forma do contedo ..................... 333

    Cap. 4 Significante e sujeito: a isotopia do desejo ............................... 347

    Cap. 5 Um percurso gerativo da subjetividade inconsciente ................. 357

    Concluso ................................................................................................ 373

    Bibliografia .............................................................................................. 379

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    Do sujeito da pesquisa

    Do ponto de vista eminentemente cientfico, seria injustificvelcomear as linhas de um trabalho terico por tentar situar o sujeito deuma pesquisa. A primeira coisa que o discurso cientfico faz , na ver-dade, procurar apagar as marcas da sua enunciao, fazer o sujeito seesconder sob frmulas impessoais: sabe-se que... os fatos impem que...conclui-se que.... O pesquisador torna-se um fiel servo de seus desti-nadores: segundo Fulano... j afirmara Sicrano... conforme o demons-tra Beltrano. Consegue-se assim driblar as pequenas fragilidadespessoais de escolha do tema, do mtodo. As hesitaes, as incredulida-des, as incertezas ficam contornadas. As motivaes pessoais, as an-gstias cotidianas, enfim todo o sofrimento em jogo na tarefa de tra-balhar cognitivamente a rea de conhecimento escolhida fica transfor-mado num relato sereno de vitria: quod erat demonstrandum. Nou-tros termos, o sujeito inquieto da produo queda transformado nopesquisador sereno do resultado. O eu da enunciao cede lugar ao sedo enunciado. O sujeito do desejo cede a vez ao sujeito da cincia. Estepoderia ser um retrato bem simples de como a psicanlise nos convidaa ver na cincia e no seu discurso uma verdadeira mquina de objetiva-o ou um discurso de supresso do sujeito.

    Mas esse procedimento comea hoje a ser questionado. De umlado, ele sofre um revs de suas prprias fileiras. Uma teoria dos discur-sos, como a Semitica, mesmo alinhada em termos gerais cientifici-dade, consegue hoje desmontar por dentro essa mquina de objeti-vao e remontar passo a passo as estratgias de veridico postas aem cena. O discurso cientfico, nas cincias humanas, aparece assim

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    Inconsciente et verbum

    como uma simples camuflagem objetivante. Comea a exibir-se comoum tipo de manipulao cognitiva, calcada num conjunto de procedi-mentos p. ex. a impessoalizao, acima que induz a um parecer-verdadeiro. Um efeito de verdade, atravs de uns tantos procedimen-tos lingsticos, tal poderia ser resumida a cientificidade dos discursosnas chamadas cincias humanas. Um outro revs lhe vem da teoriapsicanaltica. Freud, e toda sua psicanlise, parece querer sensibilizar-nos fundamentalmente para isto: alm do sujeito do conhecimento, queage racionalmente, h um outro sujeito, que reage segundo outros pa-rmetros. Alm ou aqum do sujeito da cincia h o sujeito dodesejo, que trabalha tanto quanto pouco se mostra, que fala nos inter-ditos da fala racional, ativo mais do que o sujeito racional, porque vela,em sonhos, at quando este repousa, em sono.

    A epistemologia de hoje ainda no absorveu as implicaes dadescoberta freudiana. Talvez mais justo seja dizer que a psicanlise, re-lutante que quanto converso epistemolgica das suas descobertas,ainda no lhe apresentou os instrumentos dessa absoro. Mesmo asreflexes mais sensibilizadas das cincias exatas da atualidade (mecni-ca quntica), quanto ao papel do observador na determinao do esta-tuto dos objetos estudados a, mesmo as reflexes filosficas que procu-ram resgatar a influncia de resduos mticos na cognio humanano parecem conceder lugar pondervel a uma viso psicanaltica dosujeito. A psicanlise , no geral, rejeitada, ironizada, no mais das vezescompletamente desconhecida, nos ambientes das cincias duras. Eela por si s ainda no conseguiu alar um vo epistemolgico parapoder mostrar o que e como seria uma cincia ou um discurso cientficoonde o sujeito do desejo no fosse excludo (ou foracludo no seujargo). Uma epistemologia de base psicanaltica, se no impossvel, ainda hoje uma aspirao distante. Assim, sem o lastro de qualquer hip-tese a respeito do modo de uma possvel emergncia do sujeito do desejono discurso cientfico, tomaria a meu cargo o risco de apresentar, talveznum gesto ainda tmido, as motivaes que me trouxeram at aqui.

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    difcil saber se a idia de uma aproximao entre duas teorias a psicanlise e a semitica greimasiana fora primeiro desejada pormim para que depois eu procurasse as evidncias dessa possibilidade.O inverso poderia ser igualmente verdadeiro. E esse desejo no podeser declarado a origem de tudo. H desejos por trs de desejos. A psica-nlise ainda no estabeleceu uma estereoscopia fina das camadas dodesejo. Ela se limita a salt-las para logo atingir o estrato onde o desejose deixa ver como sexualidade. Velocidade de mtodo? ou dificulda-de de se mover por entre as camadas intermedirias? Uma e outra res-postas sendo igualmente acertadas, elas entretanto no nos ajudammuito a saber qual o ponto nodal a partir de onde o desejo, em pro-gresso, pertinente ao discurso da cincia, e a partir de onde o desejo,em regresso, se torna um caso clnico. assim que a escolha de umponto onde pousar o desejo e as motivaes que animaram o presentetrabalho uma escolha ntima, e arbitrria. De modo que pretendo, ameu custo e risco, inaugurar uma expedio a um lugar ainda bastantedesconhecido por ambas as disciplinas. O presente estudo pretendecriar condies para um debate terico entre elas e, como parece sem-pre inevitvel, limitar-se a um registro das minhas convices atuais,seja em psicanlise seja em semitica.

    Porm, como na mistura da gua com o vinho sempre eles per-dem a sua cor e qumica de origem, nada deve inculpar a essas teoriaso modo da mistura ensaiado no presente tubo. o alquimista que deveresponder por qualquer inabilidade do feito. De modo que o psicanalis-ta, se a poo de semitica aqui inserida lhe parecer insuficiente namedida, estranha na catlise (dos conceitos), ou turva no teor (terico),a semitica no deve pagar pelo mau jeito da operao. No seria justoque o olhar crtico do psicanalista atento, incidindo sobre a inabilidadedo autor da mistura, encontrasse a pretexto para condenar a teoriausada. Ele estar convidado a conhecer a semitica nos textos dos seusfundadores (Hjelmslev/Greimas) e dos discpulos mais experientes. E,ocorrendo esse interesse, a experincia j ter sido gratificada. Por sua

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    Inconsciente et verbum

    vez, se ao semioticista a dose do fluido psicanaltico no lhe parecerlmpida na transparncia (dos conceitos), clara na seqncia (dos argu-mentos), fique ele sabendo que a psicanlise de Lacan notoriamentedifcil de sorver.1 Em todo caso, a psicanlise no deve pagar pelo gos-to ou rosto com que sai do experimento. Ele estar convidado a intei-rar-se dela diretamente nos seus textos fundadores.

    Mas se, enfim, ao psicanalista e ao semioticista a psicanlise ou asemitica lhe parecerem ao final um tanto desfiguradas quanto ssuas propriedades de origem, bem, esse o risco e talvez o destinoinevitvel de toda mistura, de toda aproximao interdisciplinar. Masqual o rosto de origem da psicanlise? Um espectro biolgico do Proje-to inaugural de Freud, ou a tintura lingstica que lhe pincelou Lacan?Talvez o rosto de origem de uma disciplina no seja mais do que amiragem impossvel de uma essncia primeira. Porque o rosto de umadisciplina se molda na pesquisa que o trabalha.

    1 A dificuldade no atormenta apenas o aprendiz. Lvi-Strauss admitia no entendera Lacan. Confessou-o francamente num depoimento, onde chega mesmo a in-terrogar-se sobre a prpria noo de compreenso:eu mesmo escutando-o, no fundo no compreendia. E me encontrava no meiode um pblico que, ele sim, parecia compreender. Uma das reflexes que me fiznessa ocasio era sobre a prpria noo de compreenso: no tinha ela evoludocom a passagem das geraes? Quando essas pessoas pensam que compreen-dem, querem dizer exatamente a mesma coisa que eu, quando digo que compre-endo? (LAne n. 20, 1985). Paul Ricoeur, por sua vez, confessa ao prprio Lacanque acha impenetrvel o que ele diz (cf. Roudinesco, 1986: 401). J. Hyppoliteadmite ser levado tortura pelas aporias sempre novas que a linguagem deLacan provoca; confessa jamais estar bastante seguro de compreender (cf. Lacan,1985a: 21).

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    A interdisciplinaridade

    curioso notar o quanto se alteram as atitudes epistmicas deuma disciplina no decorrer da sua histria.2 Quando nasce, propondo-se a um novo saber ou uma nova criao conceptual, ela se ressente danecessidade de um dilogo prximo com seus pares. Amadurecida, osaber se consolida, cristaliza, e briga por sua completa autonomia. Tor-na-se como que refratria a qualquer contato, a qualquer confronto.Parece sentir-se segura, numa espcie de solipsismo metodolgico, numaespcie de narcisismo cognitivo.

    Assim, uma psicanlise como a de Freud nasce na conflunciacom a neurologia ou a biologia (cf. o Projeto e mesmo algumas refle-xes sobre a assim chamada Metapsicologia) e depois rejeita, com Lacane aps, qualquer biologismo nas suas investigaes. Assim tambm,uma nova orientao psicanaltica (de Lacan) gera-se num dilogo apai-xonado com a lingstica, com a antropologia, e hoje parece fazer tudopor prescindir delas (sem Lacan). E uma teoria como a semitica nofaz exceo. Nasce com a vocao de ser compatvel com as outrasdisciplinas humanas, na busca de uma gramtica do sentido. Um dosprimeiros votos de Greimas, ao fund-la, era o de no deix-la esclerosar-se numa prtica de igrejinha (1966: 7-8). E no entanto reconhece pos-teriormente a dificuldade do dilogo com a psicanlise (Greimas/Courts,1979: 301-2). assim que o dilogo interdisciplinar, to necessrio poca do seu nascimento, parece tornar-se impossvel, nocivo mesmo,na maturidade de uma disciplina. Muitas so as razes que talvez expli-quem esse rumo, aparentemente inelutvel, de isolamento das teorias

    2 Em todo este estudo, utilizo o termo episteme, e adjetivos derivados, como desig-nando o crer-poder-saber que mobiliza o engajamento de um pesquisador ou deuma teoria nas suas hipteses. E utilizo epistemologia no sentido habitual deteoria da cincia, de reflexo crtica sobre as cincias ou, mais amplamente, comoo nvel terico em que se examinam os procedimentos metodolgicos e descritivosde uma teoria.

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    Inconsciente et verbum

    na marcha da sua histria. No sendo a matria viva deste ensaio pro-curar aprofundar o tema, chamaria a ateno para uma destas razesapenas, que me parece simples o suficiente para bem ser plausvel.

    As teorias, amadurecendo-se nas suas conceptualizaes, adqui-rindo um linguajar cada vez mais especializado na forma de umametalinguagem, explcita ou implcita tornam-se hermticas. quan-do a leitura do no especialista, ainda que bastante interessado, notem como evitar a dificuldade de compreenso. No consegue suplan-tar facilmente os pequenos preconceitos gerados nessa dificuldade.Somados uns aos outros, esses preconceitos acabam levando impres-so da mais profunda divergncia entre as disciplinas.

    assim que alguma coisa entre lingstica ou semitica e psica-nlise no anda mais ou no anda ainda. Mais precisamente, nuncaandou direito. Por mais que a linguagem ou o discurso seja o campocomum das suas operaes a autorizar e mesmo exigir todas as tenta-tivas de aproximao talvez encontremos aqui e ali pedaos tericossemelhantes, convergncias pontuais, mas nada que indique uma es-perana mais concreta de qualquer troca fecunda de mtodo, de equi-parao de conceitos; nada que torne compatveis os procedimentosde anlise ou de interpretao daquilo que talvez no fundo elas persi-gam juntas, a seu modo: o sentido ou um no-sentido (ab-sens) davida, do mundo, do sujeito.

    que, diferentemente da matria pesada que constitui o campofsico das cincias naturais, o campo semntico das timias humanas(do grego TIME afeto, sentimento) tem uma textura plstica, malevele fluida. Essa massa informe onde se inscrevem as patologias e as pai-xes humanas deixa-se moldar como queiram os mtodos, as interpre-taes ou as ideologias. Na fragilidade dos gestos e de aporias de fun-dao das disciplinas esculpido desse humus informe um e no outrohomo. Nascem sujeitos admicos tantos quantos sejam os mtodos pro-postos a cri-los. Ser ele um homo semioticus, modalizado pela apti-do a fazer significar o mundo? Ou ser um homo psychologicus, incli-

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    nado a suportar o sofrimento do seu desejo? Comearamos assimuma lista quase sem fim para tentar resgatar os arcanos da subjetivida-de num homo conomicus, do valor, num homo sapiens, da cognio,a competirem todos eles com o homo faber das antigas bricolagens ouo homo erectus da antiga arqueologia. Operao feita, o sujeito foi cu-nhado sob tantos moldes quantos os stylos empregados. Um sujeitopara cada disciplina, elas brigaro cada qual na defesa do seu prprio,metodologias em punho, epistemologias em guarda, antemas comottica. E uma batalha de mal-entendidos e preconceitos reproduz nocampo da cognio a arena de lutas que a Histria nos conta, desde ocomeo, e sem fim, talvez a provar com isso mais um cnone da nossasubjetividade: o homo bellicus, da guerra.

    A palavra preconceito merece aqui um pouco mais de ateno.Ddiva da nossa lngua, ela oculta atrs do sentido usual um sentidoeminentemente metodolgico: o que est aqum do conceito. Vejo auma pista por onde entender a gerao das distncias mais equivoca-das entre as disciplinas. Na minha experincia e limite pessoais de pes-quisa, quanto mais procuro conhecer a semitica, mais vejo que asreferncias depreciativas, feitas a ela pelo pesquisador que no a co-nhece a fundo, so eivadas de preconceitos. Igualmente, quanto maisentro na leitura dos textos psicanalticos, o mesmo se d, de igual modo.

    Isto , o no-especialista, situado aqum da conceptualidadenuclear da disciplina, e dependendo da pressa e da fria com que vaiarmado para a crtica, constri da teoria a criticar uma verdadeira cari-catura, monstruosa de talhe. E critica ento o talhe monstruoso dacaricatura, como se fora a prpria teoria.3 Assim, um princpio de or-dem geral poderia ser enunciado e servir de alerta para estudos que seproponham interdisciplinares: as divergncias entre teorias so to mais

    3 Talvez Bohr tenha mesmo razo quando entende como especialista no aqueleque sabe muita coisa sobre uma matria, mas aquele que conhece os erros maisimportantes que se podem cometer no campo da sua especialidade, e que, por issomesmo, pode evit-los (apud Heisenberg, 1969: 261).

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    Inconsciente et verbum

    radicais quanto mais se fundam em preconceitos, pr-conceitos que nadamais significam do que falta de domnio nos conceitos da outra teoria.

    com esses anteparos que penso poder enunciar os objetivosmais genricos do presente ensaio: pleitear uma interdisciplinaridadeentre a psicanlise e a semitica e trabalhar, para isso, na remoo dosobstculos que a meu ver se interpem, como preconceitos, entre elas.Entendo que nesse tipo de desafio que as disciplinas podem perderqualquer carter de inconciliao prvia. Embora saiba que a interdisci-plinaridade uma questo de difcil resoluo, sempre desajeitada na suaconduo e imperfeita na concluso, no obstante, ela me parece terdireito existncia. Mesmo que no se tenha ainda calibrado uma estra-tgia de convivncia interdisciplinar quer na psicanlise, quer na se-mitica preciso tent-la. Porque, sem a converso dos seus resultadosnum saber partilhvel pelas outras disciplinas, as teorias correm o riscode ver seu progresso absorvido por no mais de um punhado de adep-tos, diretamente engajados. Risco de um discurso cada vez mais herm-tico, esotrico, que leva a abstraes cada vez mais artificiais, minima-listas, arbitrrias, ocultistas mesmo, quando no a jarges intra-grupelhos. quando no conseguem mais esconder os primeiros vestgios de sa-turao. E comeam a morrer. A convivncia interdisciplinar no umcharme de boa vizinhana, mas condio de sobrevivncia das teorias.

    De modo que, mesmo sem a ilusria pretenso de qualquer har-monia universal, as convergncias de base entre semitica e psicanli-se precisam sair do limbo, ser enfatizadas, ou mesmo criadas e aciona-das. Somente assim se pode, eventualmente, ajustar suas divergncias,de superfcie, para depois faz-las dialogar, na base. Convico, peti-o de princpio, ou excessiva esperana, o alento que move este traba-lho que possa ganhar, no fim, o inconsciente et verbum.4

    4 O presente estudo rene, com pequenas supresses e adaptaes, quase todos oscaptulos que compuseram minha Tese de Doutoramento pela USP-SP, concludaem setembro de 1991 e defendida em maro de 1992.

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    Prefcio

    Introduo geral

    Si lon nous passait le jeu de mots nousdirions que cest toujours de laccord dusujet avec le verbe quil sagit.

    (Lacan)

    Freud nos descobriu E Lacan colocou tal vigor em convencer-nos de que o inconsciente no deixa nenhuma de nossas aes fora deseu campo (1966: 514), que talvez no fosse exagerado entender queas disciplinas que o homem j construiu deveriam todas elas reservarno seu interior um campo de cogitaes psicanalticas. Da Fsica Antropologia, da tecnologia mais pragmtica filosofia mais especula-tiva, nenhuma prxis humana escapa ao inconsciente. Se isso pudersoar como proselitismo excessivo, talvez baste dizer que tal convicono significa querer fazer o mundo deitar-se clinicamente no div dopsicanalista. Significa apenas dizer que, reorientada atravs dos esfor-os, como os de Lacan, para uma leitura inovante de Freud, a psican-lise pode se tornar uma teoria bem posicionada epistemicamente parasubstituir uma certa viso ortopdica do sujeito da cincia forjadonas caldeiras do cogito cartesiano por uma viso profiltica, dasrelaes entre um ego cogitante e um sujeito desejante, entre o imagi-nrio da sua cognio e a verdade do seu desejo. Tal convico signifi-ca, pois, apenas querer ver o campo da cincia inclinar-se epistemolo-gicamente evidncia do inconsciente. Toda a primeira parte do pre-sente estudo a tentativa de mostrar que no horizonte atual das cin-cias, ou ao menos em alguns dos seus segmentos, as condies paraisso no parecem utpicas.

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    Inconsciente et verbum

    Freud intuiu isso E Lacan consumiu tal energia em formalizarque o inconsciente no apenas se manifesta por meio da linguagemmas que se produz numa estruturao de linguagem, que talvez nofosse exagerado entender que todas as disciplinas lingsticas devessemser conclamadas pela psicanlise a empenhar-se em rastrear os inusita-dos meandros e leis linguageiras por onde isso fala. Todas as lingsti-cas deveriam ser um pouco psicanalticas, num sentido limitado dotermo, e toda a psicanlise deveria ser uma lingstica, no sentidoamplo do termo. Convocar aqui a Semitica, como teoria da lingua-gem e dos discursos em geral, a essa tarefa ampla, no significa senoum desdobramento natural desse entendimento. A segunda e terceirapartes deste estudo pretendem examinar as condies prvias de taltarefa.

    Essas duas convices a que fui levado na presente investigaodefiniram, talvez sub-repticiamente, os seus rumos, aqui balizados emtrs movimentos. No primeiro deles, cujo teor est voltado para umatemtica de natureza epistemolgica, trata-se de pr em discusso e decontestar uma atitude em que grande parte da psicanlise ps-lacanianaparece ter-se acomodado: a da sua impossibilidade cientfica. H umconjunto mais ou menos difuso de argumentos, no campo psicanalti-co, que advoga com maior ou menor nfase uma no-cientificidadepara a psicanlise. Os argumentos tm pesos desiguais. Sem quererentrar logo aqui no vivo da questo, diria que, enquanto alguns delesse apresentam como verdadeiros desafios tericos, outros no conse-guem esconder o carter opinioso de um conjunto de fobias ou de re-pugnncias mais ou menos generalizadas contra a cincia. Freud en-to convocado e interpretado como algum que teria denegado a cin-cia, ou que teria levado a psicanlise a uma obedincia mtica. Lacanpor sua vez interpretado, junto a Freud, como algum que teria vindopara demonstrar a irredutibilidade definitiva da psicanlise cincia. Oconceito de foracluso impugnado como estrutura psictica inelut-vel da cincia sacado do coldre da clnica, como arma fulminante,

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    Introduo geral

    para provar uma no-, anti-, ou a-cientificidade da psicanlise. A cin-cia atual acusada de um cartesianismo disseminado. A eliminaodas partculas egocntricas do discurso cientfico (eu, ns) impug-nada em Russell (e no seu neo-positivismo) como uma industriosaexorcizao do sujeito do desejo, enquanto o critrio popperiano dafalseabilidade interpretado como fico, falsa modstia, porquantosua referncia a uma a-certeza no deixaria de ter por referncia im-plcita uma certeza de segundo grau.

    Dentre outros argumentos que no tm tratamento sistemticono campo psicanaltico, mas que se traduzem como uma espcie deestratgia por cumulao, por onde se justape de antemas em ante-mas um desfile de incompatibilidades entre psicanlise e cincia, osargumentos acima elencados mostram um contexto mnimo que indicao conjunto de obstculos que se antepuseram ao presente trabalho eque exigiram ser tratados de forma extensa. Esse o tema da reflexo detoda a primeira parte do estudo.

    Dessa forma, os trs primeiros captulos procuram mostrar breve-mente, no meu modo de entender, as modalidades da relao entreFreud e Lacan e a cincia e, sobretudo em Lacan, os aspectos um pou-co mais delicados dessa relao do que indicam as interpretaes quelogo o posicionam contra a cincia. O captulo 4 toma para exame osargumentos de J. Dor (1988a, b) quanto sua tese de uma a-cientifi-cidade da psicanlise, argumento inteiramente balizado na questo daforacluso do sujeito que o autor julga caracterizar o discurso cientfico.O captulo 5 tematiza uma srie de crticas aos veementes argumentosque Fennetaux (1989) dirige contra a cincia e contra uma orientaoda psicanlise, que ele supe ser cientfica, defendida pelo CampoFreudiano, dirigido por J. A. Miller. O captulo 6 pe em questo umapretensa obedincia mtica que o mesmo Fennetaux pensa poderdecifrar em algumas passagens da obra freudiana, j que essa seria aseu ver a nica sada para a psicanlise evitar a esfera de irradiao dacincia. O captulo 7 apresenta o modo como entendo poder estimar

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    Inconsciente et verbum

    uma espcie de retorno ao mito, uma restaurao do saber mtico,no apenas como reivindicao local da psicanlise, mas, mais ampla-mente, como uma nova tendncia epistmica que parece pouco a pou-co querer introduzir-se em significativos segmentos da cincia contem-pornea e, dentro desta, de algumas disciplinas humanas (antropologiae semitica). Tal captulo fecha o tratamento epistemolgico do dile-ma bsico em psicanlise cincia/no-cincia num pequeno balan-o das reflexes traadas e num augrio otimista, pleiteando uma novaopo cientfica para a psicanlise.

    Na tentativa de propor essa nova opo de cientificidade para ocampo psicanaltico, o segundo movimento do estudo procura trazer discusso uma srie de temas relacionados ao mtodo de abordagemdos conceitos. Pretendo mostrar uma maneira possvel de reestimar aindahoje em psicanlise o mtodo estrutural, desenvolvido em algumas cin-cias humanas, tais como a antropologia (Lvi-Strauss) e a semitica(Greimas). Assim, o primeiro captulo defende a idia de que a psican-lise pode deixar de ter como parmetro as cincias de tipo emprico,os critrios das cincias positivistas e neopositivistas, os critrios da ve-rificabilidade ou falseabilidade popperianos, e encontrar o alento deuma nova cientificidade nas diretrizes que o estruturalismo de Lvi-Strauss, Greimas ou Thom prope como critrios de regulao da suacientificidade uma linguagem conceptual construda sob os princpiosde coerncia, elegncia e exaustividade, numa palavra, uma concep-tualizao estruturante. O captulo 2 pretende mostrar que essa direotinha sido explicitamente inaugurada na psicanlise de Lacan, nos anos50 e 60, sobretudo pelo seu empenho em ordenar os conceitos psica-nalticos ao redor do conceito de significante, importado da lingsticade Saussure. Pretendo demonstrar que, abandonada nos anos 70 aconceptualizao do inconsciente via lingstica, e orientada ento topologia e aos matemas, entre essas duas orientaes um salto exces-sivamente grande fora dado, o que deixou atrs de si um imenso espa-o vago de articulaes linguageiras do inconsciente, espao que no

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    Introduo geral

    se inscreve nos limites das articulaes lingsticas stricto sensu, mas noregime de articulaes semiticas que se do para alm do signo e dafrase, isto , no discurso. Ficara a cavada uma vacncia conceptualque exige uma retomada das teses linguageiras de Lacan sobre o in-consciente, o que reclama o dilogo aqui pleiteado entre psicanlise esemitica. O captulo 3 discute alguns obstculos que se antepem aessa retomada, tendo em vista que, abandonado o suporte metodol-gico da conceptualizao via lingstica, e ainda sem instrumentos sa-tisfatrios para uma conceptualizao geral do campo via topologia, apsicanlise ps-lacaniana acabou fazendo imperar na sua reflexo umamaneira pragmatista acepo a ser definida no momento oportuno de trabalhar os conceitos (desejo do analista, transferncia, transmis-so, formao), maneira que dramatiza e hiperboliza de tal forma oscontedos nocionais deles, que no consegue evitar riscos de paralo-gismos quando no de derriso. Os captulos 4, 5 e 6 tematizam umaquesto delicada dentro do campo psicanaltico, a questo do estilo. Oestilo individual como fonte da subjetividade mais recndita, o estilo deLacan como instrumento de descoberta e de transmisso do seu ensi-no, o contexto da proposio do estilo como a via desse ensino e amaneira excessivamente transferencial como o estilo de Lacan foi ab-sorvido na psicanlise ps-lacaniana figuram nesses captulos comomatria a partir da qual pretendo mostrar uma vocao metodolgicano estilo de Lacan, sobretudo nos usos metalingsticos desse estilo.O captulo 7, por fim, alm de fazer um pequeno balano das reflexesdo segundo movimento do estudo, tenta viabilizar a hiptese de umajuste na base demonstrativa da psicanlise, na sua evidncia de fatoe de direito: a descrio do inconsciente no deve fundar-se no a priorida enunciao de seus fundadores (num dixit Freud ou dixit Lacan),mas no a priori da sua estrutura (de linguagem).

    O terceiro movimento do presente estudo desenvolve, sob formahipottica e numa explorao eminentemente preliminar, o modo comopenso ser possvel resgatar as concepes linguageiras de Lacan sobre

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    Inconsciente et verbum

    o inconsciente, tentando deslocar o parmetro de interlocuo: da lin-gstica do significante para a teoria semitica do discurso. Para isso, noprimeiro captulo procuro examinar as teses de Lacan sobre a lingua-gem como condio do inconsciente e sobre o inconsciente comoestrutura de linguagem. Proponho interpretar o gesto lingstico da pro-posio das teses lacanianas como a atitude mais ampla de um verda-deiro gesto semitico, entendendo com isso a tarefa de inscrever a psi-canlise no terceiro grande paradigma da cognio humana, segundoalguns autores, o qual absorve o paradigma aristotlico (o mundocomo a priori) e o paradigma cartesiano (o sujeito cognoscente comoa priori) num paradigma Semitico, para o qual a semiose do discur-so se pe como o locus conceptual de onde se depreende qualquersaber sobre o mundo e sobre o sujeito. Com o lastro desse entendimen-to, o trabalho se mobiliza da por diante a tentar uma explorao pre-liminar de interlocuo, isto , de confrontao descritiva entre algunsconceitos da psicanlise e da semitica e de transposio de mtododa semitica para a psicanlise. Nessa direo, no captulo 2, discuto oconceito lacaniano de significante e procuro averiguar uma possvelcompatibilidade com o conceito de forma semitica de Hjelmslev/Grei-mas. Examino questes como a contraposio entre o significantelacaniano e o significante da lingstica, o entendimento (e as restri-es) de Lacan quanto aos conceitos de significado, de significao, esua predileo pelo conceito de sentido, ou efeitos de sentido; examinoas razes dessas restries e predilees, enfim as razes de uma pre-terio do significado na concepo lacaniana da linguagem. No cap-tulo 3, para contestar argumentos que vem na psicanlise de Lacanuma teoria do sem sentido, procuro identificar vrios indcios de an-lises efetivamente semnticas efetuadas por Lacan. Procuro assinalarque Lacan estava na verdade em busca de uma concepo de signifi-cante que pudesse exibir uma estrutura que encarnasse o sentido deuma maneira correta. A concepo hjelmsleviana de forma do conte-do e, mais amplamente, de forma semitica, a sugerida como uma

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    Introduo geral

    maneira de aproximao dessa estrutura buscada. No captulo 4, pre-tendo demonstrar que uma concepo local do significante lacaniano,concepo de pertinncia direta e imediata ao campo psicanaltico aquela que mergulha o sujeito na definio do significante: um signifi-cante o que representa o sujeito para um outro significante podeser interpretada, com o auxlio da metodologia semitica, como umatextura homognea de significaes do discurso, uma isotopia do dese-jo, que remete continuamente instncia da enunciao da verdadedo sujeito. Por fim, no captulo 5, ensaio alguns passos descritivos quetomam dois esquemas da psicanlise o quadrado da subjetivao e omatema do fantasma e os pem em confrontao com o modelogreimasiano do quadrado semitico. Trata-se a partir da de mostrarque os conceitos da psicanlise, que se apresentam at hoje de formadispersa e atomizada, podem-se organizar em nveis hierrquicos deprofundidade de articulaes, a autorizar a imagem de um percursogerativo da subjetividade. Trata-se enfim do intuito de abrir para ocampo psicanaltico outros tipos de economia descritiva e outros con-ceitos que suponho operacionais na investigao de um inconscienteque fala de si, contnua e eminentemente, per verbum.

  • PARTE I

    Psicanlise e cincia: questesde epistemologia

  • Cap. 1 Freud e a cincia

    Qu otra cosa puede ser?

    (Freud)

    Introduo

    A obra de Freud to polivalente e a investigao da realidadepsquica o levou a atravessar tantos domnios da mente humana queh sempre flancos, nas entrelinhas do seu texto, por onde classific-lade maneiras diferentes. Assim, h quem veja sua psicanlise como umanova cincia (do inconsciente); h quem a tome por uma antropologia(psicolgica); h sempre modos de situ-la como uma filosofia ou umapsicologia ou ainda uma sociologia; algum sugere-a como umahermenutica ou uma arte de interpretao, sem que nisso descuide-mos da literatura ou mesmo de uma potica a embutidas. E claro,tambm se deixar ver como um ramo da medicina e da biologia. Talcomo numa cena primeva, a psicanlise de Freud oferece por assimdizer seu corpo (seu corpus) de esplio a filhos vorazes que dela que-rem nutrir-se cada um a seu modo. assim que, de corpo fragmentado,a sua psicanlise sempre se expe ao risco de aparecer como uma teo-ria contraditria.

    Uma dicotomia mais abrangente capaz de englobar todas essasreivindicaes que, com maior ou menor sutileza, querem em Freudmais um aliado (e legitimador) de suas prprias orientaes, do queriscar alguma trilha heurstica e metodolgica psicanlise. Essa dico-tomia a que vai mesmo se polarizar na questo da cientificidade,isto , se a psicanlise ou no uma cincia. Velho problema, que

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    traz a sina de ser sempre atual, cuja discusso peca na maioria dasvezes por estar vitimada por uma ou outra escolha previamente traada,que os argumentos em seguida se encarregaro de confirmar.

    No vamos aqui entrar de imediato nessa dicotomia. Quero an-dar obliquamente. Sem enveredar-me numa exegese em filigrana dostextos de Freud, onde uma ou outra posio se revele com mais deter-minao, prefiro deslizar um pouco mais fluidamente sobre alguns tex-tos do vienense. Prefiro colher brevemente alguns dados margem dessapolaridade um pouco feroz cincia/no cincia , para fazer emergirsob que modalidades a psicanlise se relaciona com a cincia, em Freud(e, na seqncia, em Lacan).

    Freud e a questo da cientificidade

    instrutivo comear por observar que em todos os pontos da suaobra, seja no nascimento, ainda com Breuer, seja nos ltimos escritos,quando j firmada a disciplina, Freud sempre se refere espontaneamen-te a ela como pretendida cincia, como jovem cincia, enfim, comocincia. Desde quando escreve os primeiros registros clnicos sobre ahisteria, j possvel notar uma preocupao cientfica, pelo incmodoque sente frente aos seus relatos que ainda carecen, por decirlo as, delsevero sello cientfico (1973, v. I: 124).1 De igual modo, num dos lti-mos escritos da sua vida, refere-se sua disciplina como nossa cin-cia e a enquadra como parte de uma cincia natural, a psicologia (p.3419-23).

    1 As citaes de Freud sero mantidas em espanhol, seja pela proximidade para comnossa lngua, seja para evitar o duplo embarao de uma traduo de traduo.Ademais, tomo a liberdade, daqui para adiante no captulo, de citar apenas o n-mero das pginas, visto serem progressivas nos trs volumes das Obras completasque me serviram de referncia.

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    Freud e a cincia

    Essa fidelidade aos ideais de cincia, que atravessa o quase meiosculo da produo do psicanalista e que poderia aparentemente bastarde cauo segura para os adeptos do cientismo da psicanlise , logoperde sua fora, porquanto na maioria das remisses de Freud cin-cia, em muito poucas dentre elas faz alguma defesa mais incisiva doestatuto de cincia psicanlise. Em geral, o cientismo de sua disciplina lembrado por ele como que en passant, mais como qualificao devirtudes desejadas do que como definio de mtodo. Faz isso de for-ma abundante e nas circunstncias as mais variadas. Assim, h textosem que toma a caracterizao de cincia apenas para englobar umconjunto de conhecimentos descobertos:

    Psicoanlisis es el nombre: [] de una serie de conocimientos psicol-gicos as adquiridos, que van constituyendo paulatinamente una nuevadisciplina cientfica (p. 2661).

    H formulaes em que procura escorar a psicanlise no exem-plo das cincias j reconhecidas, como a Fsica ou a Qumica:

    [A psicanlise] tolera tan bien como la Fsica o la Qumica que sus con-ceptos superiores sean oscuros, y sus hiptesis, provisionales, y espera deuna futura labor una ms precisa determinacin de los mismos (p. 2674).

    Nuestra unilateralidad [tema da sexualidade] es como la del qumicoque refiere todas las combinaciones a la fuerza de la atraccin qumica.No por ello niega la ley de gravedad; se limita a abandonar su estudio alfsico (p. 2433).

    As virtudes que deposita nessas cincias, procura transferi-las paraa sua disciplina: neutralidade, exatido, preciso, segurana:

    [] como toda cincia, no tiene nada de tendenciosa y su nico pro-psito es aprehender exactamente un trozo de la realidad (p. 2673).

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    Desde que la labor del analtico se orienta as hacia la resistencia delpaciente, la tcnica analtica ha adquirido una sutileza y una seguridadcomparables con las de la Cirurga (p. 2671).

    As virtudes no param a. A modstia dos limites, o rigor no pro-cesso tambm so conclamados:

    La ciencia, eternamente incompleta e insuficiente, est destinada aperseguir su fortuna en nuevos descubrimientos y en nuevas concep-ciones. Para evitar el engao fcil le conviene armarse de escepticismo,y rechazar toda innovacin que no haya soportado su riguroso examen(p. 2801).

    Esse elenco de virtudes que deposita nas cincias e reivindica psicanlise se funda numa maturidade libidinal que Freud supunhacaracterizar o procedimento de investigao da cincia. A cincia noseria outra coisa seno um estgio mais maduro do pensamento huma-no. A evoluo do conhecimento humano fizera o homem passar poruma fase animista espcie de primitiva filosofia da natureza e, emseguida, por uma concepo religiosa do mundo que, por sua vez, jestaria sendo ultrapassada pela concepo cientfica moderna, qualaliava a psicanlise:

    Hallamos entonces que tanto temporalmente como por su contenidocorresponden la fase animista al narcisismo, la fase religiosa a la de laeleccin de objeto caracterizado por la fijacin de la libido a los padresy la fase cientfica a aquel estado de madurez en el que el individuorenuncia al principio del placer, y subordinandose a la realidad, buscasu objeto en el mundo exterior (p. 1804).

    A histria da psicanlise no deixa dvidas em entender por queo fundador tanto necessita aproxim-la das virtudes cientficas. Sabe-

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    Freud e a cincia

    mos por seu prprio testemunho das dificuldades que encontrara nomenosprezo dos mdicos e psiquiatras de ento, habituados a estabele-cer uma causa exclusivamente orgnica aos distrbios patolgicos. natural portanto supor que o que mais atemorizava a Freud, a se moverem regies escorregadias e evanescentes da mente humana, era versua disciplina ser tida por elucubrao mgica, especulao infundada,esoterismo fantstico, ansiosa por construir misterios y pescar en lasaguas turbias. Atormentava-o a falta de decoro e lgica nas crticasque negavam sua disciplina qualquer carter cientfico, abandonn-dola a los profanos, poetas, filsofos y msticos (p. 2128-30).

    A cientificidade tinha de ser mais do que acenada. Tinha mesmode ser conclamada e por quaisquer meios. Escorada no exemplo daFsica, da Qumica, ou mesmo da Eletricidade ou Cirurgia, seja o diaboque for, a cientificidade era a chamada a prestar socorro a uma discipli-na ainda tenra de formao, tnue de objetos de estudo sonhos, lap-sos, esquecimentos de nomes, haveria algo mais movedio? e forte-mente ameaada de ser empurrada para o ridculo da magia e feitia-ria. Faz-la nascer e preservar-lhe a sobrevivncia era uma prioridadentida.

    E foi justamente essa prioridade que, a meu ver, no permitiu aoinvestigador da alma flego maior para qualquer discusso mais dura,mais aprofundada sobre a cientificidade da sua disciplina. Essa priori-dade no lhe deu chances da reflexo epistemolgica mais funda e ex-plcita, na atribuio da cientificidade psicanlise.2 Se a cincia era

    2 de se notar que a carncia, em Freud, de uma epistemologia explcita do mtodopsicanaltico foi talvez uma dentre as razes da difcil penetrao de sua obra numpas como a Unio Sovitica, justo numa poca em que a discusso desse gneroestava na ordem do dia, diante das inmeras psicologias que estavam se firmandoa. Uma citao de M. Bakhtin basta para ilustrar a decepo com que Freud fora arecebido:

    Assim Freud jamais tem buscado seriamente demarcar-se das outras correntes emtodos da psicologia, deixando-nos ignorar, por isso mesmo, o que pensa do

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    por ele vista como um raciocnio exato, rigoroso, cauteloso, sem ten-denciosidade, cnscio dos limites, se revelava maturidade libidinal, seera portanto uma tendncia natural da psicanlise, mesmo assim, essacientificidade, por toda a fora do desejo de Freud, no fica demonstra-da ou j instalada na sua disciplina. Para retomar uma interpretao deC. Castoriadis, no teria havido em Freud mais do que uma miragemcientfica mas que, no entanto, lhe serviu de iluso vital e mesmofecunda (1978: 29).

    O mximo que talvez possamos dizer de sua psicanlise , parausar uma formulao de Lacan, que em Freud a psicanlise pode serconsiderada como a manifestao do esprito positivo da cincia, en-quanto explicativa (1981a: 269) e, como o complementa seu discpu-lo, em um mbito especialmente resistente captao conceptual dacincia (Miller, J. A. , 1984a: 49). No houve a questo da cientifici-dade em Freud porque a cientificidade no foi uma questo para Freud.Sob sua mira, a psicanlise era uma cincia, e pronto:

    Qu otra cosa puede ser? (p. 3420).3

    Tal a meu ver a situao da cientificidade em Freud. Desejada,acenada, no ficou demonstrada, nem garantida. Situao frgil, quemerece ser examinada onde ganhou maior espessura. Lacan que ape como uma verdadeira problemtica.

    mtodo introspectivo, do mtodo da experimentao em laboratrio, das novastentativas de mtodos objetivos (behaviorismo) da psicologia funcional (1980:53).

    3 O autor que mais se notabilizou em desenhar uma epistemologia freudiana rigoro-samente nativa e imanente atitude de Freud no deixa de notar seu silncio, ouantes, a recusa da querela dos mtodos por parte de Freud na famosa questoentre as Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften do final do sculo XIX. (cf.Assoun, 1983: 10).

  • Cap. 2 Lacan e a cincia

    Permanente donc restait la question qui fait notreprojet radical: celle qui va de: la psychanalyse est-elle une science? : quest-ce quune science quiinclut la psychanalyse

    (Lacan)

    Introduo

    A questo da cientificidade na rea das humanidades no po-dia ser mesmo uma questo freudiana. Porque ela tomou corpo apenasna agitao cientfica das cincias humanas na dcada de 50, sob oimpulso da lingstica chamada estrutural, ainda que os princpios decientificidade desta j tivessem sido firmados desde a dcada de 30,seja na Escola de Praga (R. Jakobson), seja na de Copenhague (L.Hjelmslev).

    E mesmo que no seja o caso de investigarmos aqui as circuns-tncias dessa agitao, isto , no que a lingstica se escorava para pro-clamar sua nova cientificidade ou para se contrapor ao discurso dasgramticas histricas dos sculos anteriores, o certo que Lacan sesentiu tocado por esse movimento cientfico da lingstica. Tornou-ouma espcie de bandeira de luta para a sua proposta de renovao dapsicanlise. E, se podemos concordar com J. A. Miller (1978: 22) aoobservar que todo o estilo do longo ensino lacaniano se sustentou numequilbrio entre cincia e potica, penso que nessa balana em equil-brio os pesos mais significativos da cientificidade vieram certamente davinculao de Lacan com os promotores desse movimento cientfico e

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    estrutural nas cincias humanas, sobretudo na Frana (Lvi-Strauss, M.Ponty, R. Jakobson, E. Benveniste).

    Isso no quer dizer, no entanto, que se tratou de uma opo defi-nitiva ou tranqila do psicanalista pela cincia. Lacan e a cincia tive-ram uma convivncia to enlaada quanto problemtica. A cientificida-de no se tornou uma soluo mas um problema, por onde a psican-lise teve de se mover sob a sua aguda sensibilidade epistemolgica. Porisso, percorrer os meandros dessa sensibilidade talvez nos ensine maisdo que querer arrastar Lacan para a cincia ou recus-la abruptamentesob razes previamente concebidas, ainda quando fundadas numa ounoutra citao do autor.

    OBS. Ainda no do meu conhecimento na literatura psicanaltica al-gum estudo que tenha examinado com cuidado essa convivncia, diriadramtica, de Lacan com a cincia. Ao contrrio, pelo que me foidado observar a at o momento, quase sempre vejo uma certa pressaem querer resolver por e para Lacan aquilo que ele mesmo no se sen-tiu na convico terica de deixar resolvido. uma certa pressa queleva muitos discpulos a rejeitar qualquer tentativa de utilizao em psi-canlise do discurso cientfico. uma certa impacincia que leva outrosa se espantarem frente ao fato de Lacan ter retomado a justificao docientismo em plena maturidade e radicalidade do seu ensino nos anos60. talvez por no terem ainda tirado todo o sentido de uma hesita-o ou equilbrio entre cincia e no cincia de Lacan que, penso, seusdiscpulos romperam, no dizer de J. A. Miller, tal equilbrio, na medidaem que para eles a dimenso cientfica os repugna tanto quanto a liter-ria os atrai (1978: 22).

    A indagao que melhor consegue a meu ver recobrir como umtodo os meandros do pensamento de Lacan no tocante cincia umaformulao emitida em plena maturidade de seu ensino. Trata-se daquesto que constituiria, segundo ele, seu projeto radical: aquela quevai de: a psicanlise uma cincia? a: o que uma cincia que inclua apsicanlise? (1984: 8). Essa indagao parece-me a baliza que norteou

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    Lacan e a cincia

    todo o aspecto dramtico da relao entre Lacan e cincia. Tal relaoteve como eixo trs movimentos cognitivos que na verdade definiramos rumos dessa sua hesitao entre cincia e no-cincia: (a) a tesesobre a estrutura paranica do conhecimento humano; (b) a vincula-o terica com a lingstica; (c) o exame do lugar do sujeito do desejono discurso cientfico.

    O conhecimento paranico

    A produo lacaniana que vai desde a tese de doutorado empsiquiatria (1932) at o limiar da dcada de 50 testemunha que suasensibilidade epistemolgica no esperou a dcada eufrica da lings-tica para se fazer notar. Dentre os textos dessa fase, que ele prprioqualifica como seus antecedentes, uma comunicao feita em Mari-enbad, 1936, que considera pertinente retomar treze anos depois, emZurique, 1949, vem lanar a hiptese de que o momento inauguralda socializao da criana, a que chamou o estdio do espelho, impri-me na aurora da cognio humana (entre os 6 e 18 meses do beb) umcarter paranico a todo conhecimento humano (1985c: 23).

    O conhecimento paranico, embora tenha momentos fecundosna irrupo do delrio paranico (cf. o caso Aime), no qualquerdegenerescncia orgnica ou fragilidade inata, imputada a tal ou qualsujeito, mas, para todo ser humano, uma das pr-condies doconhecimento humano (1985c: 26):

    Longe portanto de ser a loucura o fato contingente das fragilidades deseu organismo, ela a virtualidade permanente de uma falha aberta nasua essncia (1966: 176).1

    1 Lembro ao leitor que, mesmo sabendo da dificuldade que a traduo de qual-quer texto de Lacan, tomei a meu cargo efetu-la pessoalmente a partir dos textos

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    No se tratar para ns de examinar em detalhes a demonstra-o lacaniana dessa tese. Talvez seja bastante lembrar aqui que a expe-rincia jubilante que a criana atravessa no estdio do espelho, preci-pita um efeito de alienao do sujeito, em funo da prematuraoespecfica do nascimento no homem: no outro que o sujeito se iden-tifica e se sente mesmo de antemo (1966: 181-6). Esse efeito de cap-tura especular, imaginria, se mostra como organizao a mais arcai-ca do conhecimento humano (1966: 185). um efeito de alienaoque retm as afinidades paranicas de todo conhecimento de objetoenquanto tal (1981a: 49). Lacan chama nossa ateno para uma con-firmao disso na prpria intuio de Freud quando, depois de analisaro famoso caso da parania do Dr. Schreber, surpreende-se com a gran-de semelhana de raciocnio que v entre as elucubraes delirantes doSr. Presidente e as coisas que ele mesmo, Freud, teoriza sobre a libido(Lacan 1981a: 37, 67; cf. tambm 1966: 539).

    O discurso do saber, o discurso cientfico estariam assim destina-dos a reproduzir na captura (e descrio) de seus objetos de conheci-mento um modelo calcado paranoicamente no estdio do espelho:

    Assim do mesmo belvedere aonde nos levou a subjetividade delirante,ns nos voltaremos tambm em direo subjetividade cientfica; que-remos dizer aquela que o pensador (savant) em ao na cincia partilhacom o homem da civilizao que o suporta (1966: 576).

    Ora, evidente que tal hiptese no nos deve assustar pelo pesodos termos. Mesmo porque desde Freud sabemos que entre a sanidadee a loucura no existe um hiato mas uma linha de continuidade. O quetemos de reconhecer que uma hiptese dessa envergadura capaz de

    originais porventura citados ao longo de todo o trabalho. Quero apenas com issodeixar transparente o modo como o texto de Lacan foi por mim assimilado bemcomo assumir a responsabilidade da leitura.

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    Lacan e a cincia

    determinar posturas epistemolgicas e implicaes de fundo na cons-truo de uma teoria. O que temos de ressaltar desde aqui que otamanho dessas convices ser uma das razes que vo fazer Lacansituar a psicanlise numa posio de reserva frente ao discurso cientfi-co, isto , frente ao modo como os discursos cientficos manipulam seusobjetos. A psicanlise no poderia embrenhar-se precipitadamente nodiscurso que mobiliza a cincia quando, a seu ver, trata-se precisamen-te de denunciar sua infra-patologia de origem.

    Por contraditrio que possa parecer, no foi atitude anti-cientficaque Lacan a partir da procurou introduzir no debate psicanaltico. instrutivo observar que num texto produzido na mesma poca do es-tdio do espelho (cf. Alm do princpio de realidade (1966: 73-92)),o psicanalista procura esclarecer, em contraposio ao quadro vigenteda psicologia dita associacionista, o valor objetivo da experincia anal-tica. A dignidade da cientificidade para a experincia psicanalticaparece ser nesse texto o fio condutor desejado, ainda mais porque, deresto, todo o artigo se inscreve sob a seguinte rubrica: A psicologia seconstitui como cincia quando a relatividade de seu objeto estabeleci-da por Freud, ainda que restrita aos fatos do desejo (p. 73).2

    Igualmente, num texto de 1946, procura refletir sobre a causali-dade psquica no drama da loucura, tentando apreender o seu modode ao enquanto identificvel cientificamente ao conceito de imago. sintomtica a analogia com a cincia que o faz ver no conceito deimago o objeto prprio da psicologia, exatamente na mesma medidaque a noo galileana do ponto material inerte fundou a fsica (1966:177-88). Tempos depois, 1948, Lacan se incumbe de examinar a no-o de agressividade no encargo de

    2 bastante razovel concordar neste ponto especfico com F. Roustang que sugereque o uso das expresses relatividade e restrita estejam indicando a nada menosdo que um horizonte cienttico da fsica einsteiniana (1988: 17).

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    experimentar diante de vocs se se pode formar um conceito tal quepossa almejar um uso cientfico, isto , prprio para objetivar fatos deuma ordem comparvel na realidade, mais categoricamente, para esta-belecer uma dimenso da experincia cujos fatos objetivados possamser considerados como variveis (1966: 101, itlicos meus).

    E mesmo formulando a tese de que a agressividade em psican-lise se manifesta numa experincia (a fala da sesso) que subjetivapor natureza, Lacan se pergunta sobre essa tcnica: Podem seus resul-tados fundar uma cincia positiva? Sim, responde, se a experincia forcontrolvel por todos e [] tudo indica que seus resultados podemser relativizados o bastante para uma generalizao que satisfaa aopostulado humanitrio, inseparvel do esprito da cincia (1966: 103).

    Assim, mesmo sob o pano de fundo da hiptese do matiz para-nico do conhecimento humano (e do discurso cientfico), toda a pro-duo inaugural do mestre francs pode ser dita como inspirada noesprito cientfico, ou, pelo menos, em atitude compatvel com ele.

    A vinculao lingstica

    A dcada de 50 testemunha um esforo hercleo de Lacan, noapenas em sustentar como na lenda mas tambm em girar no seudorso o mundo da psicanlise freudiana, para situar seus conceitos noque considerava seu campo de origem, o campo da linguagem:

    Nossa tarefa ser a de demonstrar que esses conceitos s adquiremseu pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao seordenarem funo da fala (1966: 246).

    A lingstica tornara-se uma referncia obrigatria. No apenasporque a estrutura da linguagem era capaz de dar um suporte terico

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    Lacan e a cincia

    consistente para a hiptese do inconsciente freudiano. Na verdade alingstica representava tambm uma espcie de catalisador epistmicodas vrias disciplinas humanas em busca de um novo tipo de paradig-ma terico por onde operar suas renovaes (cf. a antropologia de Lvi-Strauss, a filosofia de M. Ponty, a hermenutica de P. Ricoeur). E nessabusca, Saussure tornava-se uma baliza para todo mundo, porque seuCurso de lingstica geral revelava novidades conceptuais at ento in-suspeitadas. Como o diz Greimas, as metforas de Saussure (jogo dexadrez, frente e verso da folha de papel, o trem de Paris) tinham a forade sacudir nossa imaginao (1970: 20). Lvi-Strauss fora a umaespcie de carro-chefe desse comboio saussuriano, e atraiu as simpa-tias de Lacan:

    A lingstica pode aqui nos servir de guia, visto que este o papel que

    ela mantm na vanguarda da antropologia contempornea e ns nopoderamos permanecer indiferentes a isso (1966: 284).

    O Discurso de Roma, como ficou conhecido o texto de 1953, foina verdade um manifesto de integrao da psicanlise na nova or-dem conceptual que se estabelecia no campo das cincias humanas.Era o momento urgente de fazer a psicanlise superar um atraso demeio sculo frente ao movimento das cincias (ibid. p. 284), atrasoagravado por uma certa ambigidade que via na terminologia deFreud:

    Pensamos de nossa parte que, se inovamos, no por isso que vamosnos vangloriar. Numa disciplina cujo valor cientfico funda-se unicamente

    nos conceitos tericos que Freud forjou no progresso da sua experincia mas que, ainda mal criticados e conservando por isso mesmo a ambi-

    gidade da lngua vulgar, tiram proveito dessas ressonncias, no semexpor-se aos mal-entendidos , julgaramos prematuro romper a tradi-

    o de sua terminologia (ibid. 239-40).

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    Portanto, mesmo considerando prudente no romper a tradioda terminologia da psicanlise de Freud, a nica maneira de faz-la supe-rar tais dificuldades era mesmo a de estabelecer sua equivalncia nova linguagem da antropologia, da lingstica, da filosofia (ibid. p. 240).A psicanlise de Lacan estava de fato ento procura da sua cientificida-de. Chega mesmo a dizer que se a psicanlise pode-se tornar uma cin-cia porque ainda no o [] devemos reencontrar o sentido da suaexperincia (ibid. p. 267), sentido esse que indica orientar-se no campoda linguagem, ordenar-se na funo da fala (ibid. p. 246). Umaformalizao adequada das dimenses da experincia analtica funda-da no campo da fala era a a condio de se obterem fundamentoscientficos sua teoria, como sua tcnica (1966: 289). tambm nes-sa direo que abrir o texto Variantes da cura-tipo, com o propsitode interrogar a dita cura no seu fundamento cientfico (1966: 323).

    Entretanto, se a cientificidade era ento efetivamente apontada,no passou a ser ostensivamente perseguida e pregada. Basta percor-rermos os textos do final dessa dcada para notarmos logo uma espciede silncio epistemolgico de Lacan quanto ligao da psicanlisecom a cincia e tambm alguns indcios de certa decepo para com alingstica, tal como a via. Esse silncio e a decepo era um tempo degestao do que seria, a meu ver, sua mais madura posio tericafrente cincia, ou pelo menos frente ao discurso cientfico tal como oentendia. A posio terica se externar com maior nfase a partir dadcada de 60, mais precisamente, no texto A cincia e a verdade(1966: 855-77). Ela germina, no entanto, j a partir dos ltimos semi-nrios dos anos 50, nos quais o ardoroso freudiano procura conceptua-lizar em psicanlise a questo do desejo.

    O sujeito do desejo

    A psicanlise de Freud, atravs do forte crivo conceptual que Lacanlhe sobreps, pode mesmo ser considerada como uma verdadeira Teo-

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    Lacan e a cincia

    ria do Desejo: desidero o cogito freudiano (Lacan, 1973a: 141). Sea psicanlise do vienense fincara todos os mecanismos da escuta clnica(ateno flutuante), pondo como condio prvia a fala do sujeito sobo regime da associao livre, assistemtica, em rebulio, era nica eexclusivamente para poder fazer emergir o sujeito do desejo; era paraprocurar desarmar as infinitas variedades sintomais por onde essa falalhe resiste, nega-o ou o despista. A essa incidncia do desejo do sujeitoLacan vai incorporar, como contribuio inusitada, a incidncia es-sencial do desejo do analista, enquanto tal (1973a: 146). O desejo setorna a, desde ento, no s o objeto central de escuta do discurso dopaciente como tambm se pe como efetiva problemtica nas prpriascondies dessa escuta, no analista.

    Ora, se a primeira incidncia, a do desejo do paciente, uma lidede natureza clnica, encerrada nos limites da sesso teraputica, a se-gunda, do desejo do analista, passa a ganhar dimenso mais ampla,extrapolando da clnica para se tornar em dois lances uma questode epistemologia. No primeiro lance, a investigao do desejo do ana-lista enquanto funo estrutural no discurso do paciente sob transfe-rncia sai do circuito especfico da clnica para se colocar no regimeda tica de sua teoria. No segundo lance, o desejo do analista sai docircuito da clnica para se colocar na ordem da prpria construo dateoria, da sua construo conceptual. Trata-se do desejo do sujeito dapesquisa, como produtor de teoria. nessa perspectiva que entendo quan-do Lacan, na reflexo sobre o desejo do analista, se diz no dever de pra questo do desejo que h por trs da cincia moderna (1973a: 146).Ou seja, essa uma questo de cincia. Assim, para continuar a deline-ar a posio de Lacan frente cincia, cabe-me seguir aqui o modocomo, segundo entendo, o psicanalista francs introduziu e conduziu aterceira dessas incidncias: o desejo que est por trs da cincia. Qual oenquadre do desejo no discurso cientfico? Qual a relao do sujeito(pesquisador) com o seu desejo no discurso da cincia? So indaga-es desse tipo que podem servir de referncia para o que vem a seguir.

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    O discurso cientfico, tal como prope desenvolver-se internamentee apresentar-se externamente s comunidades cientficas, caracteriza-se por procurar apagar as marcas da enunciao, os traos dos movi-mentos subjetivos mais fundos do pesquisador. Isso se d sob a formade uma camuflagem objetivante conforme expresso de Greimas.Trata-se de uma estratgia de persuaso, de obteno de um efeito desentido de verdade para os fatos demonstrados. O pesquisador seesconde por trs de formulaes impessoais sabe-se que, fatoque, somos obrigados a reconhecer que, isto , por trs da evi-dncia dos fatos, que falam por si. O sujeito da pesquisa e o comple-xo jogo das foras psquicas a presentes so por assim dizer disciplina-dos ( ao que parece o sentido primeiro do termo disciplina, aplicados teorias). O sujeito pouco a pouco se neutraliza, reduz-se a uma esp-cie de operador autmato que empresta seu corpo (sua reflexo) parazelar e levar adiante a coerncia da demonstrao. No limite, o sujeitose torna zero, isto , um algoritmo da prpria demonstrao. Esse obje-tivismo assim a forma de persuaso do discurso cientfico, sua estrat-gia de manipulao discursiva, um fazer-parecer-verdadeiro (Grei-mas, 1978: 211-21).

    OBS. claro que uma apresentao assim breve do discurso cientfico,moldada por expresses como camuflagem, manipulao, pode dar umaimpresso caricatural, negativista, desse tipo de discurso, como se setratasse de manobra retorcida. Ainda mais porque no considero perti-nente apresentar extensamente aqui a contrapartida dele, que igual-mente uma manipulao discursiva e que se estabelece sob o regime deuma camuflagem subjetivante: sob a aparente explicitao do sujeitoda enunciao, por meio dos diticos (quando sabemos que o eu enun-ciado no discurso no de modo algum o sujeito da enunciao pro-priamente dito), o discurso subjetivante visa os mesmos fins: a adesodo destinatrio (Greimas, 1978: 218). Mesmo assim, essa impressopejorativa do discurso cientfico talvez tenha de ser retida provisoria-mente aqui porque de certo modo a que serve de parmetro aospsicanalistas que se declaram anti-cientficos. tambm, segundo en-

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    Lacan e a cincia

    tendo, a que serviu de parmetro implcito para as crticas lacanianas aodiscurso da cincia.

    j de sada pondo-se com desconfiana frente severa discipli-na da intuio e aguda objetivao do discurso cientfico que umadas primeiras intervenes de Lacan se d. Com alguma ironia, diz eleque, por mais que uma teoria como a fsica moderna se apresente comopurificada de toda a categoria intuitiva, no deixa de trair a estrutu-ra da inteligncia que a construiu:

    Sem dvida as vias por onde a verdade se descobre so insondveis, eencontramos at matemticos para confessarem t-la visto em sonhoou terem-se chocado com ela em alguma coliso trivial. Mas decenteexpor sua descoberta como tendo procedido de uma atitude mais ade-quada pureza da idia. A Cincia, como a mulher de Csar, no develevantar suspeitas (1966: 86).

    Tendo assim ironizado essa decncia (ou camuflagem), vai en-tend-la como um movimento de supresso do sujeito do desejo nodiscurso da cincia. Em Roma (1953) essa convico se firma. Lacanfaz-nos observar que a perda do sentido do prprio sujeito nas objeti-vaes do discurso um dos paradoxos com que a psicanlise ter demanobrar. Porque esse movimento de supresso do sujeito do desejose irradia mesmo para alm do estrito crculo cientfico: a alienaomais profunda que atinge at o homem comum, isto , o sujeito dacivilizao cientfica. Por meio de uma enorme objetivao constitu-da pela cincia, a comunicao permitir ao sujeito esquecer sua sub-jetividade (1966: 266-89):

    Ele colaborar eficazmente obra comum no seu trabalho cotidiano epreencher seus lazeres com todos os atrativos de uma cultura profusaque, do romance policial s dissertaes histricas, das conferncias

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    educativas ortopedia das relaes de grupo, lhe dar assunto paraesquecer sua existncia e sua morte, ao mesmo tempo que para desco-

    nhecer numa falsa comunicao o sentido particular de sua vida (ibid.p. 282).

    O psicanalista concebe como dramtica desvalorizao do ser para usar expresso de E. Roudinesco (1986: 413) a supresso dodesejo na cincia moderna, calcada no cogito cartesiano. Utiliza-se dosseminrios que terminam a dcada de 50 para acentuar na psicanliseprecisamente a centralidade do desejo. Os seminrios sobre as forma-es do inconsciente (1957/58), sobre o desejo e sua interpretao(1958/59) vo nessa direo. Uma formulao, no seminrio sobre atica da psicanlise (1959/60) basta para ilustrar o dramatismo comque Lacan entende a desvalorizao do desejo na evoluo das con-quistas cientficas:

    Creio que ao longo desse perodo histrico, o desejo do homem, lon-gamente tateado, anestesiado, adormecido pelos moralistas, domesti-

    cado por educadores, trado pelas academias, tem-se simplesmente re-fugiado, recalcado, na paixo mais sutil, e tambm a mais cega [] a

    paixo do saber (1986a: 374).

    Parecia ento que a desconexo entre psicanlise e cincia esta-va posta. A incompatibilidade entre o discurso cientfico neutralizadordo desejo e as condies do discurso do inconsciente uma verda-deira retrica do desejo devia indicar psicanlise uma posio anta-gnica frente cincia. Curiosamente esse no foi o caminho de Lacan.Ao contrrio, colocar a questo do desejo no centro de sua teoria e, aomesmo tempo, forar essa questo a ser reconhecida pelas disciplinascientficas, essa me parece a atitude com que o enrgico psicanalista selanaria da por diante.

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    Lacan e a cincia

    Cincia e Verdade

    A partir da dcada de 60 a psicanlise do parisiense toma umnovo flego de cincia. Mais precisamente, a partir do seminrio XI(1963/64), volta boca do mestre a indagao de base: a psicanlise uma cincia? Passando a indagao pelos registros da religio e da cin-cia, faz-nos supor atravs de comentrios sobre a hermenutica, so-bre a experincia mstica, mesmo sobre a alquimia e at sobre a agricul-tura que, se no est seguro de atribuir estatuto de cincia psican-lise, no est disposto a descart-lo prematuramente. Parece querer rei-vindicar psicanlise, ainda que sob traos problemticos, um lugardentro da cincia: no de modo algum necessrio que a rvore dacincia tenha um nico tronco (1973a: 11-7). A questo delicada mesmo a a do desejo:

    Pode essa questo ser deixada fora dos limites de nosso campo, como

    o de fato nas cincias as cincias mais modernas do tipo mais seguro onde ningum se interroga sobre o que se passa, por exemplo, com o

    desejo do fsico? (p. 14)

    Da mesma forma que inicia, o seminrio desse ano termina, su-gerindo um estatuto de cincia psicanlise: mas a anlise no umareligio. Ela procede do mesmo estatuto que a cincia, embora, noentanto, um estatuto que implique um mais alm da cincia (1973a:239).

    Ora, como sustentar esse estatuto ao mesmo tempo que se estdiante do pesado fardo que a cincia carrega de ser matizada por umaestrutura paranica, na origem, e por uma recusa do desejo, no proces-so? Esse parece ser o desafio projetivo da aula de abertura do semin-rio XIII, sobre o objeto da psicanlise (1965/66), liberada publica-o sob o ttulo, j mencionado antes, A cincia e a verdade (1966:855-94). Lacan inicia o texto lembrando que a prxis analtica tambm

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    se submete s exigncias epistemolgicas gerais da cincia. Isto , nov outro modo de produzir pela psicanlise qualquer saber sobre o de-sejo, sobre o inconsciente, que no seja atravs de uma reduo deseu objeto, de um fechamento do campo de pertinncia, caractersticaspredominantes no procedimento cientfico. Noutros termos, admite quepara tratar da prpria diviso (Spaltung) do sujeito, bem como paracentralizar o desejo como objeto da psicanlise, no basta encar-la comoum fato emprico (mesmo se atestado todos os dias na prtica da escu-ta clnica): necessria uma certa reduo, por vezes demorada de secompletar, mas sempre decisiva no nascimento de uma cincia (1966:855). Ironiza as interpretaes que viram em Freud uma pretensa ruptu-ra com a cincia de sua poca. Afirma que a psicanlise se constituiupelo cientismo, que a marca de cincia para ela no um fator contin-gente, mas lhe permanece essencial (ibid. p. 857). Porque o sujeito dodesejo, da verdade, no um sujeito totalmente, e desde uma supostasua origem, fora da cincia. Num certo momento da sua emergncia semostra como um correlato essencial da cincia (ibid. p. 856).

    Talvez seja til estendermos um pouco a reflexo sobre esse as-pecto da correlao entre o sujeito da cincia, cartesiano, e o sujeito dodesejo, freudiano. No apenas, porque vejo nesse retorno a Descartesum Lacan alterar substancialmente seu prprio pensamento anterior,quando via a psicanlise como experincia que se oporia a toda filoso-fia sada diretamente do cogito (1966: 93). que, justamente escora-dos apenas nessa antiga formulao de Lacan, muitos psicanalistas sesentem legitimados a acentuar um antagonismo definitivo entre psi-canlise e cincia. Sentem nela o libi perfeito de uma frmula aparen-temente lapidar, mas que o prprio autor se encarregaria posteriormen-te de nuanar.3 A interpretao que me serve aqui de base tirada de

    3 " bem claro que no se trata absolutamente da questo de pretender ultrapassar aDescartes, mas antes, de tirar o mximo de efeitos da utilizao dos impasses cujofundo ele nos conota" (Lacan, 1961/62, aula de 15. 11. 61).

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    Lacan e a cincia

    uma conferncia que J. A. Miller fez em Caracas e que recebeu o ttulode Elementos de epistemologia (1984a: 41-58). Vale a pena ser cita-da uma boa parte porque bastante clara no que quer demonstrar:

    Descartes elaborou o que podemos chamar o sujeito da cincia. Sabe-mos que a emergncia do sujeito cartesiano [] constitui um corte nahistria do pensamento []. O cogito cartesiano algo diferente doego como funo de sntese que os psiclogos pem mostra. umabuso estender a identidade especfica do cogito cartesiano a toda esfe-ra psquica, a todos os atos, a todos os movimentos, a todas as repre-sentaes da esfera psquica []. Lacan ento decifrou as primeirasmeditaes de Descartes nesse sentido [] [isto ] a funo da dvidahiperblica em Descartes: qual ? O esvaziamento da esfera psquica, oesvaziamento do universo das representaes, o esvaziamento de tudoo que imaginrio. O cogito em sua identidade somente surge como oresduo ineliminvel dessa operao de esvaziamento. Nesse sentido,para seguir a acuidade de Lacan a respeito, a evidncia a de umsujeito esvaziado (vid-vid), que no existe de modo nenhum comouma esfera que implicaria um monte de representaes, de qualidadese propriedades diversas, seno como um simples ponto, um pontoevanescente []. Esse um sujeito que em seu ponto de emergnciano de modo algum uma substncia, seno que, ao contrrio, umsujeito completamente dessubstancializado [] esse sujeito estrutu-ralmente o agente do discurso da cincia. [] Lacan formula, o quepode parecer-lhes paradoxal, que o sujeito do inconsciente freudiano,esse sujeito que aparentemente muito distinto de um cogito, o sujei-to da cincia, o sujeito pontual e evanescente de Descartes (1984a:53-4).

    A interpretao do discpulo nos indica assim que Lacan vira nopercurso cognitivo da dvida hiperblica de Descartes nada menos douma metodologia de depurao do imaginrio do sujeito da cincia, ummomento subjetivo de rejeio de todo saber (Lacan, 1966: 856). Nou-tros termos, o cogito cartesiano inauguraria explicitamente uma remoodos obstculos epistemolgicos que impregnaram toda uma civilizao

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    pr-cientfica, para usarmos o argumento maior de Bachelard (1977);operao que tenderia assim a esvaziar o imaginrio da iluso pansexua-lista do conhecimento ou obstculo animista de Bachelard , aquelaque, numa expresso feliz de Lacan, teria feito a teoria do conhecimentopermanecer por muito tempo como uma metfora das relaes do ho-mem com a mulher imaginada (1975f: 7).

    Ora, quando a clnica analtica conduzida em sesso de modo afazer emergir o sujeito do desejo, no faz outra coisa seno induzir omesmo percurso de depurao do imaginrio na fala do paciente. Ten-ta desvestir esse sujeito das maquiagens imaginrias de seu ego resis-tente. Assim, a depurao do imaginrio do sujeito do desejo, da psica-nlise, toma um curso correlato depurao dubitativa do sujeito car-tesiano, da cincia. assim que entendo quando Lacan indica que aprxis analtica no implica outro sujeito a no ser aquele da cincia,ou que seria impensvel a psicanlise de Freud antes do nascimento dacincia (1966: 857 e 863).

    Desse modo, em todas as ilustraes acima sobre os meandrosdo pensamento lacaniano frente cincia, podemos ver que, de umaforma ou de outra, h um denominador comum. Com mais ou menosnfase, a cincia se lhe apresenta como um ideal terico, mas tambmcomo um discurso que suprime, esquece, ignora, recusa ou foraclui,pouco importa o termo, a subjetividade do cientista:

    A cincia, se a olharmos de perto, no tem memria. Esquece as peri-pcias das quais nasceu, quando se constituiu, isto , uma dimenso daverdade que a psicanlise leva altamente em conta []. o drama, odrama subjetivo que custa cada uma dessas crises [crises tericas] []dramas indo s vezes at a loucura (1966: 869-70)

    Assim se desenha o ncleo de sua cautela frente cincia: o dis-curso da cincia um discurso suturador do sujeito do desejo o qual,por sua vez, o lugar por excelncia da investigao psicanaltica. Aquele

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    Lacan e a cincia

    suprime exatamente o que nesta deve prevalecer. So essas reservasque o detm frente cincia: no tenho pois galgado at o momento opasso concernente vocao cientfica da psicanlise (1966: 856).

    Mas no haver outra razo para a atitude de reserva do ana-lista frente cincia? Cabe-me aqui uma explicao sobre a expressoescolhida. Penso j ter ficado demonstrado o sentido cauteloso do ter-mo. Mas o termo recobre tambm a semntica de um outro sentido.Reserva tambm quer dizer algo que se guarda para um futuro. possvel notar em vrias passagens dos mesmos textos que vimos exa-minando alguns indcios de um lugar para onde Lacan solicita a psica-nlise. Por trs da suspeio frente cincia parece se desenhar no sum certo receio de romper o dilogo com o discurso cientfico a ma-gia e a religio parecendo-lhe ainda mais suspeitos como procedimen-tos de conceptualizao do inconsciente, desde Freud. Do mesmo modocomo quando nos expressamos por exemplo sobre uma reserva ecol-gica que nos cumpre criar para uma etapa futura da vida, assim tam-bm vejo a intuio de Lacan apontar para o programa de uma reservaepistemolgica que a psicanlise poderia criar e com ela influir numapossvel etapa futura da cincia. Vale a pena tentarmos localizar os ind-cios e assim justificar a interpretao.

  • Cap. 3 Por uma epistemologia do desejo

    Introduo

    No difcil perceber ao longo dos textos lacanianos, sobretudoos trabalhados sob a forma de escritura, os mais densos, mais elabora-dos, que o parisiense guarda uma certa decepo para com a episte-mologia, tal como constituda. A seu ver ela no se mostra altura desua funo (1966: 855). No trato que dispensa ao sujeito no vai mui-to alm do que exibir mais pretenso do que xito (1966: 799). Igual-mente a cincia, no geral, o desilude pelos rumos que tomou ou pelasquestes que no pensou. Essa cincia que vocs vem no momentocavalgar to alegremente, e completar todas as espcies de conquistasditas cientficas (1986a: 374), teria andado em mau galope (1969/70: 50). A seu ver h alguma coisa no estatuto do objeto da cincia queno lhe parece ainda ter sido elucidado desde o nascimento dela (1966:863). Ao mesmo tempo, reivindica a existncia de outros saberes queno o especfico da cincia (constituda) para se tratar globalmente deuma pulso epistemolgica (ibid. p. 868). assim que s admite re-solver a questo da posio da psicanlise dentro ou fora da cincia sehouver a chance de uma modificao do estatuto do objeto na cincia,enquanto tal (ibid. p. 863).

    O que vejo nessa interpelao da cincia que o psicanalistafrancs persegue efetivamente a linha de fora do vienense. Insistia desdeo comeo de seu ensino sobre a diferena entre o estilo de Freud e odas outras pesquisas cientficas: a pesquisa da verdade no inteira-mente redutvel pesquisa objetiva (1975b: 29). Ou seja, no temdvidas em nos apontar que o teor completo da luta titnica de Freud,na construo da psicanlise, no teria sido outro seno o de forar o

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    retorno (rentre) da verdade no campo da cincia, da mesma formacomo se impe no campo de sua prxis (1966: 799). A entrada dodesejo enquanto verdade do sujeito na considerao cientfica, ou,seu correlato, o reconhecimento de que a psicanlise essencialmenteo que reintroduz na considerao cientfica o Nome-do-Pai (ibid. p.875), esse me parece o desafio epistemolgico esboado em Freud,circunscrito em Lacan e por ele mesmo reservado psicanlise futura:

    Ocorre que o campo que o nosso na medida que o exploramos cons-titui de algum modo o objeto de uma cincia. A cincia do desejo, vocsme perguntaro, ela vai entrar no quadro das cincias humanas? (1986a:373).

    Dessa maneira, em toda a oscilao da reflexo de Lacan frente cincia, que vimos acompanhando at aqui, penso que no nos sejalegtimo imputar qualquer tipo de recusa frontal da cincia. A atitude dereserva, mais edificante ao contrrio, apresenta a salutar hesitao deuma preveno: a cautela de no deixar a psicanlise mergulharacriticamente no discurso cientfico (tal como constitudo), na ignorn-cia do desejo. Mas tambm prefigura uma proviso: cabe psicanlisejuntar esforos na tarefa freudiana de forar o regresso do desejo enquanto verdade do sujeito na considerao cientfica.

    assim que penso poder deduzir um sentido inaudito, talvez maispromissor para o prprio campo psicanaltico, das reservas de Lacanfrente cincia: a necessidade de uma epistemologia do desejo: aepistemologia estar aqui sempre em falta, se ela no partir de umareforma que subverso do sujeito (cf. contra-capa dos Ecrits). Esta-riam a concentrados a meu ver os esforos implcitos do mestre quan-do manifesta em seu projeto radical o desdobramento de uma ques-to de certa maneira metodolgica a psicanlise uma cincia? emuma questo sobremaneira epistemolgica: o que uma cincia queinclua a psicanlise?

  • 53

    Por uma epistemologia do desejo

    Ora, escusado dizer que a reflexo em torno de uma possvelepistemologia do desejo no coisa simples, ou rpida. Supe examedenso no s do ponto de vista do trnsito nas questes de epistemologia,de histria da cincia, mas igualmente de sensibilidade coisafreudiana.1 Supe aprofundamento do prprio conceito de desejo, in-flado que ficou nas utilizaes abundantes (abusivas at) dentro da pr-pria literatura psicanaltica. Numa palavra, supe uma reduo damistagogia que o circunda. E, por bvio que possa parecer, temos departir com uma premissa evidente: nenhuma laudao fervorosa ouperene do desejo provocar sua epifania em qualquer discurso, cientfi-co ou no.

    Porque uma epistemologia do desejo no pode o primeirorisco que se corre resvalar para uma apologia inconseqente do dese-jo. No pode igualmente se degradar numa ideologia que recoloca osujeito nos embaraos anmicos e substancialistas de uma poca ante-rior formao do esprito cientfico (Bachelard, 1977), isto , numaconcepo do desejo que acabe tornando-o mais obstculo do que pro-gresso, no conhecimento da subjetividade humana. Com efeito, pri-meira vista, querer introduzir o sujeito do desejo, isto , faz-lo prevale-cer na pesquisa cientfica, parece ir contra a evoluo do conhecimentocientfico. A que cincia levaria a descrio, explicao ou interpretaoda realidade (psquica ou no), se a regulao cognitiva fosse dadaatravs de um desejo contraditrio, imprevisvel, insensato e sempre deriva? No faria isso regredir a cincia era pr-cientfica em queBachelard denunciou com energia a numerosa quantidade de obstcu-los epistemolgicos ao conhecimento objetivo? No atrairia o pesqui-

    1 Assim, no peque o leitor por excesso de expectativa. Sem a competncia do epis-temlogo, e tendo que admitir nas coisas freudianas (lacanianas) o desconforto deuma absoro sempre aqum da vontade com que a me lano, as linhas queseguem no reivindicam operar numa tal epistemologia. Quando muito, procurampistas de um traado, como estmulo reflexo.

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    sador, o cientista ou o psicanalista para seus anacronismos cognitivos,para as zonas de sua inrcia cognitiva? No o levaria de volta a racioci-nar sob o regime da sua experincia primeira, aquele tesouro puerilconquistado pelos nossos primeiros esforos escolares (Bachelard, 1977:41)? No o faria operar com o imaginrio sobrecarregado das suas pr-prias iluses pansexualistas, teolgicas, teleolgicas, ou fundado emadolescentes analogias selvagens? Numa palavra o desejo seria o me-lhor condutor dos destinos da cincia, ou do indivduo, ou apenasuma presena incmoda, que prefere uma atuao sub-reptcia, toconstante e decisiva quanto foracluda?

    Talvez mais do que respostas, essas perguntas tenham de se ali-mentar de outras ainda. Talvez a pesquisa heurstica de uma epistemo-logia do desejo s possa se contentar, por uma boa margem de tempoainda, em tomar a forma de um formidvel ponto de interrogao,para usarmos expresso do prprio Lacan (1986a: 374). No obstante,uma epistemologia do desejo, isto , um novo exame do desejo que,embora explicitamente suprimido do discurso cientfico, segundo o en-tende a psicanlise, no por isso menos atuante nele , parece encon-trar hoje um terreno propcio para germinar, na medida em que as cin-cias por mais exatas que sejam j se inteiram das implicaes do papeldo observador na descrio de seus objetos de estudo, ou dos res-duos mticos na base de quaisquer teorias.2

    2 Para o papel do observador, a citao de um livro de divulgao cientfica talvezbaste aqui para ilustrar o dado: A teoria quntica tornou claro que esses fenme-nos [atmicos] apenas podem ser entendidos como elos numa cadeia de proces-sos, cujo fim est na conscincia do observador humano []. A incluso explcitada conscincia humana pode vir a se tornar um aspecto essencial das futuras teo-rias da matria (F. Capra, 1983: 224). certo que a expresso usada conscin-cia pode ser incmoda primeira vista, dada a oposio forte que temos entreconsciente/inconsciente em psicanlise. Mas est a mesmo o desafio de uma inflexopsicanaltica a poder alimentar a reflexo dos cientistas e epistemlogos! (Para aquesto dos resduos mticos na cognio cf. o cap. 7 adiante).

  • 55

    Por uma epistemologia do desejo

    Sobre a cronologiaO leitor acostumado literatura psicanaltica, sobretudo ps-la-

    caniana, facilmente perceber que a interpretao que pude colher daleitura dos textos de Lacan vai na contramo da interpretao quaseunnime dos seus discpulos. De modo geral, estes admitem voluntari-amente que o mestre comeara seu ensino sob o selo da cincia, damesma maneira que o terminou opondo-se a ela ou situando-se foradela (cf. De Neuter, 1988: 7). De modo que, enquanto na leitura acimapude colher, nas cautelas de Lacan, uma possvel direo de continui-dade de dilogo com a cincia, os psicanalistas ps-lacanianos se fir-mam num consenso quase geral a entender que a partir dos anos 70seu mestre se afastaria mais e mais da cincia; que apresentaria afirma-es incisivas segundo as quais a psicanlise no uma cincia; quesua tipologia de discursos estaria destinada a enquadrar a cincia comodiscurso do mestre situado numa estrutura inversa do discurso doanalista.

    Assim, o movimento do pensamento de Lacan se lhes apresentacomo uma viragem: de uma cientificidade, suposta na origem (e talvezmesmo desejada desde o corao), se volta a uma no-cientificidade,constatada em terreno. a meu ver essa a interpretao que leva mui-tos discpulos a crer poder decretar, com intenes definitivas, uma a-cientificidade fundamental da psicanlise (cf. o prximo captulo). Ora,uma das questes mais difceis quando se est diante de um ensinoeminentemente oral, e que atravessa perto de trs dcadas, sem dvi-da a de como ponderar uma ou outra formulao dentro da cronologiada sua feitura. Que peso atribuir a uma afirmao mais antiga ou maisrecente, de um ensino que se refaz constantemente, quando vai apa-rentemente ou no contra uma outra? Qual o Lacan a privilegiar? Aqueleque no quer deixar dvidas (flou) sobre sua obedincia cientfica(1966: 870); que se proclama psictico por ter sempre almejado o rigor(1976a: 9)? Ou aquele que diz ter aprendido em Freud a dispensa do

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    Psicanlise e cincia: questes de epistemologia

    rigor frente a um inconsciente que se mobiliza em franca contradio para abaixar o limiar da sua experincia ao justo calibre (laccentjuste) do que chama uma razo medocre (1981a: 228, 334)? Podemosadmitir seguramente que o ltimo Lacan seja mais radical (maislacaniano) que um primeiro? possvel postular como critrioepistemolgico uma linha evolutiva no pensamento de um autor demodo a que sempre o mais recente seja heuristicamente superior aomais anti