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WALLON, Henri_As Origens Do Pensamento Na Criança (a)

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WALLON, Henri_As Origens Do Pensamento Na Criança (a)

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AS ORIGENS DO PENSAMENTONA CRIANÇA

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HENRI WALLON

AS ORIGENSDO PENSAMENTO

NACRIANÇA

EDITORA MANOLE1989

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Wallon, Henri, 1879-1962.As origens do pensamento na criança / Henri Wal-

lon ; [tradução Doris Sanches Pinheiro, Fernanda Alves Braga|. — São Paulo : Manole, 1989.

1. Crianças - Desenvolvimento 2. Pensamento 3. Raciocinio em crianças I. Titulo.

CDD-155.413-153.42

89-1384 -155.4

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:1. Crianças : Desenvolvimento : Psicologia infantil

155.42. Pensamento : Psicologia 153.423. Pensamento infantil : Psicologia da criança

155.4134. Raciocinio : Desenvolvimento : Psicologia infan-

til 155.413

Traduzido do original francês:LES ORIGINES DE LA PENSÉE CHEZ L'ENFANT

Copyright © Presses Universitaires de France

Tradução:DORES SANCHES PINHEIROSFERNANDA ALVES BRAGA

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer pro-cesso, sem permissão expressa dos editores. É proibida a reproduçãopor xerox.

Direitos adquiridos para a língua portuguesa pelaEDITORA MANOLE LTDA.Rua Conselheiro Ramalho 516,01325, Bela Vista, S. Paulo, SP, Brasil(011) 287-0746 / 251-5427

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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INTRODUÇÃO

Nesta obra está reunida a essência decursos ministrados no Collége de France edos que eu teria feito, se meu curso nãotivesse sido suspenso, por decisão do Gover-no, durante a ocupação alemã. Ela é consa-grada aos primórdios da inteligência verbalou discursiva na criança. Refere-se ao perío-do que vai dos 6 aos 8 ou 9 anos, ou seja, aosprimeiros anos da idade escolar.

Antes desse período, grandes conquistasforam realizadas pela criança em suas rela-ções com as coisas e com as pessoas. Dasreações que traduziam seus impulsos, suasnecessidades fisiológicas ou afetivas, ela fezcom que emergissem, gradualmente, os ges-tos e as condutas impostos pelos objetostomados por si mesmos, ao mesmo tempoque o reconhecimento perceptivo, depoisnominativo, dos mesmos. Essa etapa inicia-sedesde o final do primeiro ano e se prolongadurante o segundo e o terceiro. Perto dos trêsanos, manifesta-se a crise de personalidade,na qual a criança insurge-se contra as partici-pações afetivas que a mantinham mais oumenos confundida com o meio e na qualtende a libertar seu próprio eu, ao afirmar-lhea precedência, ao querer ganhar, sistematica-mente, vantagens para ele. O quarto e oquinto ano são ocupados, principalmente,por uma evolução sentimental, onde podemestabelecer-se complexos diversos, se o meiorejeitar as veleidades da criança e obrigá-la arecalques e algumas vezes também quandoele tende a aumentar desmesuradamente suasexigências. Entretannto, os progressos dainteligência prática prosseguem, não apenassob suas formas utilitárias mas também naexuberância de suas manifestações lúdicas.

Duas Explicações da Inteligência

O estudo da inteligência prática desenvol-veu-se muito nesses últimos anos e de maneiraautônoma. Antigamente, era à inteligênciadiscursiva que era reduzido qualquer supostoato de inteligência. Parecia que ele deveriaser decomposto nas operações de compa-ração ou de julgamento, cujo tema é dadopela lógica e pela introspecção. Com a psi-cologia de comportamento, o ponto de vistamudou. Foram consideradas as condutas doanimal ou do sujeito face a sitações quernaturais, quer experimentais. Contudo, sur-giu o problema de saber se toda condutaanimal era inteligente e qual poderia ser o cri-tério de uma conduta inteligente. É evidenteque, em todo o ser vivo, a manutenção da vi-da supõe uma subordinação suficientementeexata de suas reações às condições da cau-salidade. É mesmo óbvio que todo organis-mo, todo órgão sejam aparelhos ajustados, deforma mais ou menos perfeita, a certa ordemde causalidade.

Filósofos imaginaram no animal, oumesmo no órgão, uma compreensão, prova-velmente obscura, mas profundamente efi-ciente, da causalidade. O órgão seria cons-truído para a função porque é construído porela. Ele exprimiria assim, uma espécie depredestinação funcional. Nas origens de suaorganização, a vida confundir-se-ia com in-tenções capazes de selecionar, no meio, osmodos de se realizar. Essa íntima compreen-são, que cada ser teria de suas próprias ne-cessidades específicas, com a complexidadecrescente de sua estrutura e de sua existên-cia, apenas diversificar-se-ia, estender-se-ia a

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VI AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

circunstâncias mais numerosas, mais faculta-tivas, e através disso, ele se diferenciaria deforma mais individual. Assim, das reaçõesmais elementares da vida às combinaçõesmais hipotéticas da espécie ou do indivíduo,procederia uma corrente ininterrupta de in-termediários. O antigo adágio, retomado porLeibniz, natura non facitsaltus sempre temseus adeptos, apesar de todos os desmentidoscausados pelo conhecimento mais aprofun-dado da natureza ou do homem. Parece, paramuitos, que o fato de ter suposto a mesmacoisa onde quer que seja é ter explicado. Massubsiste o problema de saber como se operaa passagem entre essa inteligência que seriafinalidade latente nas coisas e as construçõesvariáveis da inteligência explícita. Somenteela importa, somente ela tem um sentido.

Outros, pelo contrário, dedicando-se asreações mais simples, procuraram decomporem seus fatores físicos as que permitem aoanimal manter sua existência no meio, em-prestar dele o necessário, evitar-lhe o noci-vo, estender sobre ele seu poder. Sem dúvi-da, é necessário supor, ao mesmo tempo emque esses fatores, um foco persistente deenergia, que tende a manter sua unidade. Éisso que é atribuível ao ser organizado quetodo ser vivo é. Além disso, a organizaçãonão é somente anatômica, é também fun-cional. Ela não consiste em estruturas pu-ramente materiais, mas também em estrutu-ras que resultam das circunstâncias e que sãosimples condutas cuja lembrança o animalconserva. Ela se torna, assim, o suporte dasassociações que se constituíram entre cer-tas impressões e certos movimentos, en-riquece-se com os complexos já realizadospor suas respostas face às situações cor-respondentes. A repetição delas, mas emocasiões sempre um pouco diferentes, dar-lhes-ia, não somente mais força, mas algo demais analítico, de mais discriminativo. E aaparência de escolha, que disso resultaria,receberia em certo nível de variabilidade, onome de inteligência. Aqui, ainda, entra emjogo a superstição do mesmo em todos os

níveis do real; e a passagem entre formas econdições diversas de existência ou de fun-ção corre o risco de ser ignorada. Seria muitomais produtivo constatar essas passagens e,conseqüentemente, marcar as diferenças. Eisaí, sem dúvida, o melhor modo de evitar aintervenção sub-reptícia de princípios quenada podem explicar, visto que, com eles, jáestão supostos todos os efeitos a seremexplicados.

Instinto e Inteligência

Entre a inteligência prática e a inteligênciaespeculativa, ou pensamento, os contrastessão evidentes, assim como entre a inteligên-cia prática e o instinto, ou, ainda, entre o pen-samento e os sistemas de conhecimentospróprios a cada época. Talvez eles tenhamfatores comuns. Mas o meio de descobri-losnão é escamoteando as diferenças, seriamelhor aprofundá-los e leva-los a suas últimascondições.

O que há de surpreendente no instintosão atos que têm seu fim ou seu resultado emlimites de tempo e de espaço que extrapolampor demais os da vida individual, por nuncaterem podido pertencer à experiência dopróprio sujeito. Aliás, é com a continuidadeda espécie que eles estão, então, relaciona-dos, algumas vezes mesmo em detrimentodo indivíduo. Para explicá-los, seria preciso,portanto, procurar seus motivos para além doindivíduo, na continuidade da espécie. Mu-dança de plano que se impõe com uma evi-dência incontestável, desde que seja precisoconsiderar, não mais a simples sobrevivênciados indivíduos, mas a espécie em sua renova-ção ou em suas origens. Todo problema deorigens implica outras condições, além dasrealmente observáveis. O conjunto presenteseria o resultado de diferenciações entre asquais as intermediárias puderam dissipar-se. Então, subsistiriam apenas os ciclos deexcitações-reações, pelos quais o ato parecerealizar-se como que cegamente, através defragmentos mais ou menos estereotipados.

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INTRODUÇÃO VII

Em todo caso, habitualmente, são im-putadas ao instinto as reações de adaptaçãoque parecem pertencer mais ao equipamentofuncional da espécie do que às aptidõesindividuais. No primeiro caso, tratar-se-á,necessariamente, de situações habituais, nooutro, a situação pode ser inédita ou tornar-seinédita pelo comportamento novo do animal.O instinto aparecerá, assim, como que emtoda parte difundido na espécie, fixo em suaforma, mecânico em sua execução; a in-teligência, como iniciativa esporádica, variá-vel em sua concepção e sua realização. Masessa delimitação nada tem de estrita. Pôde-se mostrar que o instinto precisa de cir-cunstâncias favoráveis para se manifestar,que pode variar com as situações e que é,com freqüência, o resultado de tentativas ede uma aprendizagem. Suas manifestações,consideradas como tais, nãoseriam, portanto,essencialmente diferentes do que é chamadointeligência no animal.

Entretanto, a inteligência opera numoutro plano. Ela não tende à simples animaçãoou reanimação de condutas atávicas ougregárias, ela é, pelo contrário, uma modi-ficação nas maneiras de operar, que seexplicaria, segundo alguns, por uma simplespressão exterior, fonte de tentativas ao longodas quais os sucessos eliminariam os fracassas,e, segundo outros, pela aptidão para reco-nhecer, no campo perceptivo-motor, o con-junto das circunstâncias propícias e dos ges-tos necessários que podem levar o sujeito aseu objetivo. No simples automatismo ou narotina, o ajustamento do ato ao resultado éimediato. A inteligência começa com a ne-cessidade do subterfúgio e sua descoberta. Épreciso, então, que às relações comumenteperceptíveis, sobreponham-se ou substituam-se outras relações, nas quais a atividade dosujeito encontre-se implicada. Elas só sãofiguráveis em função dessa atividade. Elas sefundem com ela em um todo dinâmico, queliga a situação inicial e o resultado previsto. Aintuição de espaço, subjacente à execução dosubterfúgio, não é analítica nem estática, ainda

não distingue as posições e o movimento,mas, entretanto, já é capaz de fornecer figu-ras ou estruturas transformáveis, face a umasituação que continua, objetivamente, a mes-ma.

Essa imagem da inteligência prática estáem oposição com as que lhe foram impostaspela psicologia chamada atomística. De fato,supunha-se que as condutas resultavam decombinações entre elementos primitivamentedistintos. A gênese do ato parecia explicávelcom a ajuda de noções que, na realidade sósão diferenciadas mais tardiamente. A inversãodo ponto de vista tornou-se possível pelapsicologia do comportamento, que tomouprecisamente como objeto direto o estudodas condutas. Em vez de serem consideradasa priori como uma combinação de meiosexistentes cada um por si, elas são encaradasem função das situações que as suscitam edas circunstâncias ou do material que nelas seorganizam. Como tais, sua unidade tem algode indissociável. O que as torna inteligentes,é o grau de justa adaptação e de novidade queelas apresentam. A inteligência foi, portanto,definida como a aptidão para reagir, de formaoportuna, face a situações novas. Assim, seuaspecto pragmático ultrapassou seu aspectoteórico que, até então, fazia repercutir seusesquemas discursivos até na explicação dascondutas cujas condições são exclusivamenteconcretas.

Inteligência Prática e Pensamento

Através de um exagero levado para olado oposto, então, foram as condições for-mais do pensamento que pareceram perdersua importância. As diferenças das duas in-teligências foram ignoradas. Entretanto, elasse opõem em muitos aspectos. Em vez de sefundir com o real para realizar estruturas queorganizam seus elementos segundo fins úteis,o pensamento lhe dá uma réplica no plano darepresentação. Em vez de ordenar entre si oselementos concretos de uma situação, opensamento opera sobre símbolos ou com a

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VIII AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ajuda destes. Ele impõe, às coisas, a frag-mentação das imagens e dos sinais que sãonecessários para sua análise. Ele se utiliza daspalavras e do discurso. Torna-se um tipo deconversa quer explícita, quer implícita. Semdúvida, o ato intuitivo, que deve, em certosmomentos, ultrapassar esses elementosdiscretos da intelecção para deles fazer umacompreensão ou uma evidência novas, nãoperde suas prerrogativas. Mas é sempre emlinguagem vulgar ou científica, falada ouescrita que o mesmo deve ser atestado e de-monstrado, melhor dizendo, ele deve chegara termos sucessivos e agrupados.

O poder de combinar esses elementos,que suas diferenças de significação ini-cialmente individualizam, a fim de que, apro-ximados voluntariamente, eles possam en-trar nas significações desejadas, é essencialao exercício do pensamento. Mas o própriopoder de dar-lhes uma significação é umaetapa que estabelece um limiar decisivo en-tre a inteligência puramente prática e ainteligência teórica; entre todas as outrasespécies animais, aparece o homem. Essepoder de operar com puras significações,simplesmente representadas por signos, quenão são necessariamente imitativos, é o quefoi chamado de função simbólica. Atravésdesta, torna-se possível escapar à ordem dascoisas efetiva, ou imediatamente realizável, eimaginá-la diferente quer no passado, querpara o futuro, quer apenas no mundo dospossíveis. As condutas materiais foram subs-tituídas pelas condutas verbais, cuja imensaimportância foi mostrada por Janet: condu-tas imperativas ou votivas, que formulam odesejo face a um elemento, condutas de fic-ção ou de mentira, que manipulam o real pa-ra substituir os temas dele pelos temas doimaginário, freqüentemente a serviço de in-teresses dissimulados, condutas assertóricas,enfim, as mais complexas e delicadas de to-das, que consistem em atestar o fato e as coi-sas na realidade verídica dos mesmos, o queexige um ajustamento rigoroso das signifi-cações com os dados da experiência, assim

como das significações entre si. Trabalhoimenso que é exatamente o da razão dis-cernente.

Enfim, uma outra oposição é a da razãoe dos conhecimentos. Sob um ponto de vistaestático, estes seriam o que os princípios darazão fazem com que a inteligência possaassimilar do real. Dentro dos limites da razão,acumulando-se as experiências, o saber hu-mano aumentaria sua massa de geração emgeração. O saber de uma época seria a simplesherança das épocas anteriores, acrescido dealgumas aquisições novas. Hipótese difícilde conciliar com a história das ciências e coma do pensamento. Mesmo depois do adventodo pensamento racional e das aquisiçõescientíficas, o progresso dos conhecimentos,possibilitado pelos princípios racionais, queos conhecimentos das gerações anterioreshaviam, aliás, ajudado a formular, acabousempre por entrar em conflito com eles. Umduplo movimento alternante reproduz-seincessantemente. Por um lado, o que se fixousob forma de hipóteses, teorias, princípios,como aquilo que parece necessário para tor-nar a experiência compreensível, tende adesenvolver suas conseqüências lógicas e aestabelecer as ciências dedutivas que ocorremantes da experiência. Por outro lado, aexperiência assim possibilitada acaba porultrapassar os limites, fornecendo resultadoscada vez menos conciliáveis com suas pre-missas teóricas, e as mudanças de hipótesesou de teorias, que se impõem, podem chegaraté a abalar o que parecia princípio definiti-vo, necessário ou, apriori, da razão. Dessemodo, os conhecimentos secretam a razão,dela procedem e a destroem alternadamen-te sob o impulso da experiência, onde in-fluências tecnológicas e sociais são, em ca-da época, solidárias com o esforço especu-lativo.

As Teorias do Conhecimento

É impossível, estudando o pensamentoda criança com relação ao do adulto, ou seja,

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INTRODUÇÃO IX

os limites respectivos dos mesmos, nãoconsiderar a natureza e a razão dos limitespróprios a cada um. A solução pode não sersemelhante na criança e no adulto. Num casoé uma questão de desenvolvimento individual."No outro é o problema do conhecimento.Este ocasionou teorias diversas. Para pensaras coisas e o mundo, o espírito deve fazê-losentrar em classes, no que é chamado, desdeAristóteles, de categorias. Sem estas, seriapreciso supor uma impregnação direta doespírito pelas coisas ou, pelo contrário, umainvenção das coisas pelo espírito. Estas trêsconcepções negam-se reciprocamente, mas,se cada uma é considerada isoladamente,nenhuma é satisfatória. Elas opõem entre siaspectos da vida intelectual que são igual-mente indispensáveis. As categorias nãopoderiam ser distinguidas da ação exercidapelo real sobre o espírito sem se transfor-marem em princípios a priori, que tornariamimpossível o conhecimento do real em si.Elas não poderiam ser opostas ao espíritocriador sem se confundirem com simplescompartimentos de preenchimento passivo,o que deixaria sem explicação as ciênciasteóricas e suas antecipações.

A impregnação do espírito pelas coisasé a crença vulgar que nossa percepção enossas representações mentais limitam-se arepetir as coisas tais como são. Elas seriam aimpressão sensível e intelectual delas oumesmo, segundo Epicuro, consistiriam em"espécies" ou imagens materiais que ema-nariam das coisas. A dificuldade desta tese,mesmo reduzida à simples ação sobre os sen-tidos do meio físico, é de explicar a reduçãodas impressões relativas a cada objeto parachegar a sua representação e para levar suaclassificação em coleções cada vez maisextensas, onde o que restaria dele tenderiaa algo sempre mais vago e abstrato. Êdifícil imaginar como poderia disso resul-tar o conhecimento das leis precisas quese manifestam no universo.

Estas têm um caráter necessário e lógico,que inspirou teorias diretamente contrárias.

O que conhecemos das coisas não podeconsistir nas sensações variáveis que elas nosdão. É uma estrutura que resulta de umaconstrução intelectual. Por que não admitirque essa estrutura é o que há de mais realnelas? Assim concluiu a tese idealista ou ra-cionalista, diretamente oposta à tese empiristaou materialista. Mas ela oferece, por sua vez,uma dificuldade que é ora de demonstrar aexistência do mundo fora do pensamento,ora de justificar a conciliação do conhecimentocom a realidade das coisas. Para Platão, omundo material já era apenas uma ilusão, umreflexo.

Entre essas duas atitudes, surgiu umaterceira, que é uma tentativa de conciliaçãoentre a experiência prática e o conhecimen-to, entre o espírito e as coisas. As coisas sãoconhecíveis apenas com a condição de en-trarem em certas classes, que são as do co-nhecimento: as categorias. Mas, a seu pro-pósito, o debate recomeça. Qual é a origem,qual é o sentido delas? As categorias de Aris-tóteles foram discutidas durante toda a IdadeMédia. Discussão sobre os universais. Pos-suem elas mais ou menos realidade do que osobjetos particulares cujo conhecimento elasasseguram? Nominalistas vêem nelas apenasetiquetas; realistas vêem um tipo de realidadeintelectual que seria geradora das realidadesparticulares. Assim, reaparecem o empirismo,deum lado, e um racionalismo mais ou menosidealista.

Kant retomou a noção de categorias.Tentou fundi-las intimamente com a expe-riência, tanto concreta ou sensível, comomental, com toda a experiência real, comtoda a experiência possível. Desse modo, eleas levou a seu grau extremo de necessidade ede formalismo. Embora distingua entre asformas da sensibilidade e as categorias doentendimento, ele cessa de opor sensibilidadee entendimento como mais ou menos reais. Éimpossível experimentar qualquer coisa, anão ser em certos planos que são as condiçõesindispensáveis de toda percepção: o espaçoe o tempo. É impossível pensar qualquer

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AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

coisa, a não ser como matéria de certosjulgamentos, que dão aos objetos sua subs-tância, ou seja, sua existência e sua unidade,que os reata à sua causa, que afirmam aligação deles com tudo o que existe. Não po-dendo, de forma alguma, ultrapassar essesplanos, condição indispensável e a príori detoda experiência e de todo conhecimento,disso resulta que nos é proibido apreciar se arealidade lhes é conforme. Eles impõem suaforma ao que podemos dela apreender. Vistasomente através deles, a realidade em si dascoisas escapa-nos necessariamente.

Contudo, se é verdade que não háexperiência sensível, nem intelectual possívelfora das categorias definidas por Kant, sãoelas que seriam preciso encontrar assim quetocamos no que pode ser identificado comopercepção ou pensamento na criança. Nes-sas categorias, percepções ou pensamen-tos poderiam muito bem ser menos de-senvolvidos nela do que no adulto, mas sualinha geral e sua estrutura essencial deve-riam coincidir exatamente com a maneiraque o adulto tem de perceber e de raciocinar.O estudo de sua evolução psíquica mostraque não é assim. Aliás, a concepção dascategorias não manteve o rigor que possuíacom Kant. Assim como após Aristóteles, asdiscussões foram retomadas. O estudo com-parado das civilizações e das sociedadeshumanas fez com que fosse constatado que oconformismo, de algum modo universal, darazão, segundo Kant, era uma hipótese emoposição com os dados da história. Foi pre-ciso dar às categorias um caráter mais pro-visório, uma signifcação mais relativa. Umsociólogo como Lévy-Bruhl satisfez-se emopor as formas de pensamento, que seobservam nas sociedades que ele chama deprimitivas, às nossas próprias formas depensar, às que ele também considera, aliás,como as condições indefectíveis de todoconhecimento racional e científico. No con-junto, ele as distingue do que denomina, noprimitivo, de "categoria afetiva do sobre-natural". Outros sociólogos pensaram que

poderia existir, em cada sociedade, umarelação mais diferenciada entre seu tipo deestrutura e as categorias de que ela se servepara representar o real. Hubert e Maussmostraram que as categorias utilizadas pa-ra explicar a natureza inicialmente foramcalcadas sobre os planos da organizaçãosocial. A ordem imaginada entre as coisasreproduzia a dos clãs. A causalidade física eraassimilada às filiações segundo as quais essassociedades representavam suas próprias ori-gens. Era a representação totêmica do mun-do.

A idéia de evolução e de transformismofoi, portanto, introduzida no estudo críticodas categorias. Justamente por causa disso,elas se tornaram algo que pode ajustar-se,cada vez mais intimamente, às coisas taiscomo elas realmente são. Entretanto, foigrande a tentação de se perguntar se, nacriança, elas não evoluiriam da mesma formaque na espécie, se sua mentalidade não separeceria, inicialmente, com a dos primiti-vos. Falou-se de pensamento mágico a seurespeito. Hipóteses bem inverossímeis. En-cerrada, pela linguagem que aprende a falar,nas formas de pensar próprias ao seu meioa criança pode apenas adotar as mesmasclassificações de coisas e de causas. Mas nãoé capaz disso de imediato, e passa por umperíodo pré-categorial. Aliás, esse período érepleto de ensinamentos para fazer com queseja reconhecido o que há de verdadeiramenteessencial na noção de categoria, para mostrara significação funcional desta. Inicialmente,a criança sabe apenas agrupar os objetos se-gundo as relações deles com sua atividade ouseus desejos do momento. Ela não os classificasegundo a natureza deles, ela os constelasegundo suas intenções mais pessoais. É umaetapa que pertence mais à inteligência dassituações do que à da representação. Mas vin-do a representação das coisas a interessá-lapor si própria, ainda decorre um longo pe-ríodo, sem que a criança saiba fazer outracoisa a não ser constatar-lhes a existência ouas qualidades.

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INTRODUÇÃO XI

É então que se torna evidente a quedistância a criança ainda está do pensamentocategorial. Não é apenas o local ou o momentoque estão ligados, individualmente, a cadaobjeto, sem permitir situá-lo no espaço ou notempo, mas toda qualidade é-lhe tão particularque ocasiona apenas qüiproquós, se se tornamo motivo de sua aproximação com outrosobjetos. Quanto às relações entre efeito ecausa, estas são tão indistintas que há, semcessar, inversão de uma na outra. O poderque lhe falta para classificar ou para explicaras coisas, é o de distribuir cada uma em tantascategorias quantos forem os traços dela quepermitam classificá-la entre outras. As ca-tegorias não constituem um número deter-minado de classes definidas para sempre. Sãoo resultado de um pensamento que sabe pôrordem entre todas as coisas existentes ouapenas possíves. Mas isso exige a diferen-ciação do pensamento, inicialmente sin-crético, em diversos planos, onde possam sesobrepor as operações do espírito relativas acada realidade dada. A idade é o fator essencialdisso. Os limites da criança são de origemfisiológica, enquanto que, em cada época, osdo adulto dependem das condições históricase sociais.

O Interrogatório e a Criança

O único modo de pôr à prova ascapacidades de pensamento da criança é dequestioná-la, de forma a obter explicaçõesdela. Contudo, não deve correr o risco decolocá-la numa atitude artificial, onde osresultados seriam pouco probatórios. A ex-plicação não é algo simples. Ela responde aaptidões cujo desenvolvimento estende-sepor vários anos. Apresenta grandes mudanças,segundo o objeto. Precoce se se trata, porexemplo, de condutas que interessam pes-soalmente a criança, muito mais tardia pararealidades que lhe são exteriores ou estra-nhas.

Mas ela opõe também dificuldades quepoderíamos chamar de segundo grau. Ex-

plicação e interrogação são solidárias. Com-preender ou dar uma explicação é ser capazde fazer ou compreender a pergunta cor-respondente. Ora, a criança não tem a pos-sibilidade de manipular a seu modo a for-ma interrogativa. Ela sabe muito bem fazerperguntas quando o objeto assim o solicita.Não sabe pedir explicações quando pressiona-da. Numa experiência que fiz com frases sim-ples que se relacionavam a incidentes que acriança poderia ter experimentado quase dia-riamente, ela deveria fazer uma pergunta, à suavontade, relacionada com o conteúdo da frase.O resultado desejado foi obtido apenas excep-cionalmente, mesmo com crianças de 8 a 9anos. Os exemplos nada significavam; a réplica,em vez de ser interrogativa, era uma frase afir-mativa.

A menos que seja levada por uma curi-osidade pessoal, a criança não é capaz deassumir a posição de perguntador. O motivoque ela tem no espírito ocasiona a afirmaçãoque parece convir. Ela não sabe adotar umaatitude de certa forma hipotética, impessoal,teórica. Ignora o problema como tal. Nãopode se pôr à vontade em atitude expectante.No plano da percepção, ela desenvolveu seupoder de expectativa entre um e dois anos.No plano intelectual, ela ainda só podeentregar-se ao desenrolar das idéias, assimcomo, quando mais nova, era levada pelo desuas impressões. Assim, ela reagirá às per-guntas ouvidas à medida que estas lhe propo-rão um motivo ao qual possa ligar uma afir-mação. A criança não saberá suspender aresposta própria a cada uma das perguntaspara se perguntar se estas são bem coerentesentre si e com o objeto completo da interro-gação. É apenas sob essa ressalva que elaspodem ser consideradas como válidas.

Uma outra objeção pode referir-se aoconteúdo das perguntas. Se elas não respon-dem às reflexões ou aos interesses espontâ-neos da criança, não correm o risco de suge-rir-lhe idéias que ela não teria tido por simesma? Mas não se trata, aqui, de pesquisarquais são as crenças da criança sobre as

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xn AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

coisas. Provavelmente, por uma escolha en-tre suas respostas, por interpretações conci-liadoras, sempre é possível chegar a tipos deopiniões ou de explicações que pareceriamsuficientemente estáveis e ligadas para seremdadas como sua representação intelectualdas coisas. O problema é que a mesma crian-ça, na mesma conversa, passa continuamen-te de um tipo a outro, contudo, longe deserem enganosas, essas contradições, essasincoerências tornam-se indíces preciosos,quando o objetivo é ver como a criança operaface a uma dificuldade, quais são suas pos-sibilidades, quais são suas insuficiências, dequal mecanismo mental ela dispõe. Dessemodo, o objeto das perguntas não foi extra-ído daquilo que a criança pode conhecercomo experiência do dia-a-dia. Ela tem, defato, uma grande aptidão para registrar odetalhe das coisas que entram em sua atividadefamiliar e suas explicações poderiam serapenas fiéis reminiscências. Foi preciso es-colher realidades de sua ambiência habitualque não fossem, contudo, totalmente aces-síveis a seu manejo.

Quanto às crianças interrogadas, as duasidades extremas são 5 anos e meio e 9 anos.Abaixo dessa idade, todo interrogatório deste

tipo revelou-se impraticável. A criança é in-capaz de seguir a conversa. De maneira al-ternada, ela repete pura e simplesmente ostermos da pergunta, ou, então, fala, repen-tinamente, de qualquer outra coisa. Acima denove anos, a bagagem de conhecimentos es-colares é uma outra rotina que dispensa acriança, com muita freqüência, do esforço so-licitado.

Esta pesquisa foi feita numa escola deBoulogne-Billancourt, onde se encontravamrepresentados todos os elementos com-ponentes da população dessa cidade. Po-

| pulação semi-operária e semiburguesa: Ope-rários da mecânica e da mineração, pequenaburguesia de empregados e funcionários pú-blicos. População que compreende, também,uma certa proporção de estrangeiros e, par-ticularmente, de italianos. É extremamenteprovável que, numa escola rural, por exemplo,o conteúdo de certas respostas teria sido di-ferente, como as relativas às plantas e à cultura.Mas, ainda uma vez, o problema, aqui, não éde estabelecer um inventário de conheci-mentos ou de crenças, mas de apreender ofuncionamento do pensamento em seus pri-mórdios na criança.