Walter Benjamin

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CINCIAS E TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

CAROLINE MITROVITCH

EXPERINCIA E FORMAO EM WALTER BENJAMIN

Presidente Prudente 2007

CAROLINE MITROVITCH

EXPERINCIA E FORMAO EM WALTER BENJAMINDissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Cincias e Tecnologia, UNESP/Campus de Presidente Prudente, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientador: Dr. Divino Jos da Silva

Presidente Prudente 20072

CAROLINE MITROVITCH

EXPERINCIA E FORMAO EM WALTER BENJAMIN

Banca examinadora:

Prof. Dr. Divino Jos da Silva UNESP/Campus de Presidente Prudente Prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz UFSC Prof. Dr. Sinsio Ferraz UNESP/Campus de Marlia Bueno -

Presidente Prudente 2007

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Em memria de Lady Gomes de Castro, para minha me e para minha filha.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Divino Jos da Silva sou grata por me apresentar a potica da educao. Seu comprometimento e dedicao tero sempre o meu reconhecimento. Humildemente, esta pesquisa procura traduzir a grande admirao que nutro pelo seu trabalho e suas aulas. Gratido similar tributo s argies minuciosas dos professores Dr. Pedro ngelo Pagni e Dr. Luiz Hermenegildo Fabiano no exame de qualificao; fecundas em indicaes, s quais esta dissertao, nos seus modestos limites, com certeza no logrou dar as merecidas conseqncias. Aos membros do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educao e Filosofia (UNESP/Marlia), que, em nossos poucos mas intensos encontros, proporcionaram a base e, mais do que isso, os pilares de sustentao desta pesquisa. Devo tambm ao Grupo a oportunidade de submeter meu trabalho ao juzo de colegas e professores. Quero registrar a valiosa contribuio do professor Dr. Rony Farto Pereira, a quem devo o zelo na leitura e apreciao dos textos. FAPESP, agradeo o inestimvel apoio financeiro, sem o qual esta pesquisa no teria sido possvel.

Finalmente e igualmente importantes, Ao meu amigo Valdinei Gomes Garcia, com quem aprendo tanto... a beleza e o valor do pensamento. minha me, ao meu pai e aos meus irmos, por serem meus ps e minhas mos, quando no posso sozinha. Ao Paulo, por tornar tudo possvel, com alegria e determinao; por ser sempre inteiro, meu horizonte e minha luz. Catarina que, num rebento, partiu este trabalho ao meio, e deu sentido a tudo.

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Se nossa poca alcanou uma interminvel fora de destruio, preciso fazer uma revoluo que crie uma indeterminvel fora de criao, que fortalea as recordaes, que delineie os sonhos, que materialize as imagens.

Nossa msica, Jean-Luc Godard

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RESUMO

Esta pesquisa apresenta um estudo sobre o conceito de experincia (Erfahrung) benjaminiano e sua relao com o ideal de formao cultural (Bildung) moderno. A partir do estudo de trs textos de Walter Benjamin, Experincia e Pobreza (1933), Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) e Sobre o conceito de histria (1940), este trabalho constitui-se numa interrogao sobre o sentido da experincia, em seu carter formativo na modernidade. Refletir acerca da necessidade contempornea de reconstruo da experincia formativa, no horizonte de degradao e de esfacelamento da vida histrica moderna, , pois, a tarefa aqui proposta. Nesse sentido, trata-se de mostrar em que medida o pensamento de Benjamin, fundamentado na perspectiva da crise da tradio, pode ser abordado a partir dos ideais da Aufklrung e, por conseguinte, da formao cultural (Bildung) moderna. Assim, esta reflexo move-se em direo ao esforo de pensar aproximaes e contrastes entre o conceito de experincia benjaminiano e o projeto moderno da Bildung. Portanto, o delineamento de um novo campo de atuao da Bildung, pensado a partir do conceito de experincia benjaminiano, incide na tentativa desta pesquisa de se projetar como um estudo pautado pelas prerrogativas e indagaes da Filosofia da Educao. Sob esse aspecto, o objetivo deste estudo apontar algumas nuances do novo conceito de educao que vem sendo forjado, no contexto da contemporaneidade, questionadas sua identificao com a escolarizao e com a temporalidade linear e causal de uma concepo de histria concebida como desenvolvimento progressivo.

Palavras-chaves: Filosofia da educao. Formao cultural (Bildung). Experincia.

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ABSTRACT

Experience and Formation In Walter Benjamin

This research studies the Benjaminian concept of experience (Erfahrung) and its relationship with the idea of Modern Cultural Formation (Bildung). Departing from the study of three texts by Walter Benjamin, Experience and Poverty (1933), On Some Motifs In Baudelaire (1939) and On The Concept of History (1940), this paper based itself on an interrogation of the meaning of experience in its formation of modernity. Therefore the purpose of this work is to reflect on the contemporary necessity of the reconstruction of the formative experience, at the degrating horizon and the deterioration of the historic modern life. In this sense, it shows in what measure Benjamins thinking and thoughts, founded on the perspective of the crisis of tradition can be approached from the ideals of Aufklrung and concequently of the modern cultural formation (Bildung). Therefore these reflections try to think of aproximations and contrasts between the concept of the Benjaminian experience and the modern project of Bildung. Thus, creating an outline of a new field of intervention of the Bildung, steming from the Benjaminian concept of experience which then incises in the attempt of this paper to project itself as a research project, guided by the inquiries and investigations of the Philosophy of Education. In this aspect, this study points to some new educational concept nuances that have been forged in a contemporary context and questioned in its identification with the schooling and the causal linear temporality of history conceived as a progressive development.

Key words: Philosophy of Education. Cultural formation (Bildung). Experience.

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NOTA INTRODUTRIA:

Abreviaturas*:

EP: Experincia e Pobreza TB: Sobre alguns temas em Baudelaire TESES: Sobre o conceito de histria

Quando citados direta ou indiretamente, estes ensaios ordenam-se na seguinte disposio: (BENJAMIN, [uma das siglas acima], seguidos da pgina citada). Foram utilizadas as seguintes tradues: Experincia e Pobreza e Sobre o conceito de histria so traduzidos por Srgio Paulo Rouanet e integram a 7 ed. das Obras escolhidas, Vol. I (1994). O texto Sobre alguns temas em Baudelaire traduzido por Hemerson Alves Baptista e faz parte da 1 ed. das Obras escolhidas, Vol. III (1989). Vide referncias bibliogrficas, p. 122-128.

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SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................12

CAPTULO I O conceito Moderno de Formao Cultural (Bildung)............................17 1. O ideal de perfectibilidade e a afirmao da vida cotidiana................19 2. Progresso e retorno: um percurso incompleto..............................24

CAPTULO II Educao e Formao Cultural (Bildung): confluncias e tenses................................................................................30 1. Os dois edifcios......................................................................................31

CAPTULO III O conceito de experincia benjaminiano (Erfahrung) ou sobreviver cultura........................................................................41 1. A experincia como valorizao do presente..................................42 2. A experincia a partir da precariedade do cotidiano.....................48

CAPTULO IV A expropriao da experincia e a destruio da memria: um caminho entre impossibilidades........................................................54 1. A fora revigorante das correspondncias: uma resposta catstrofe em permanncia.....................................54 2. Rememorao: o desejo de uma ausncia.........................................64

CAPTULO V Onde estou? Que horas so? O espao e o tempo na/ da educao.........................................................................................70 1. Educar: criar espao, ver caminhos por toda parte.........................70 2. A temporalidade moderna e a ciso entre o individual e o coletivo.......................................................................78 3. Educar: mudar o tempo, sonhar sonhos coletivos............................85

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CAPTULO VI A experincia da histria a partir de um torso......................................94 1. Imagens dialticas: no limiar da histria..........................................95 2. Deformidade e distoro: a destruio necessria..........................98

CAPTULO VII A experincia como transformao (Umbildung) do conhecimento....................................................................................105 1. O profano, o sagrado e a desestabilizao redentora...................105 2. Sensus communis: a construo de sentidos que se entrecruzam com as urgncias do presente..............................109

3. A esttica, a tica e a educao ou da percepo do real....................................................................112

CONCLUSO.......................................................................................................................117

REFERNCIAS....................................................................................................................122

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INTRODUO

Mais uma pesquisa sobre a obra de Walter Benjamin; mais um estudo sobre a temtica da experincia. Tema recorrente no debate educacional brasileiro contemporneo1, esta pesquisa se inscreve nesta linha: refletir acerca de uma concepo de educao pautada pela perspectiva anunciada por um conceito de experincia formulado como anttese aos saberes cientficos. Mas, se o tema da experincia recorrente no debate educacional contemporneo, a abordagem da qual ele resulta se mostra um tanto peculiar, ao colocar-se na contracorrente de uma outra discusso tambm de grande profuso no cenrio educacional que se constri hoje, a saber, a pesquisa sobre formao de professores cujo objetivo estabelecer para os estudos em educao a ortodoxia de uma epistemologia da prtica. Experincia e Formao em Walter Benjamin procura responder a esse duplo debate. Contra a tendncia do campo pedaggico de pensar a educao a partir das dualidades cincia/tecnologia e teoria/prtica, esta pesquisa apresenta uma concepo de educao baseada no par conceitual experincia/sentido2, enfatizando o movimento da construo subjetiva em direo criao social como alternativa face nfase concedida pela pedagogia na perspectiva operacional do saber-fazer. Para desenvolver essa temtica, este trabalho realiza um estudo sobre o conceito de experincia de Walter Benjamin3. Conceito central para a teoria do conhecimento, assinalando, desde a separao entre experincia e cincia pela antiguidade (e at certo ponto tambm pelo pensamento medieval), at o reconhecimento pela cincia moderna da experincia como sendo o lugar do conhecimento4; ao abord-lo mediante o pensamento de Benjamin, nossa proposta reconhecer na impossibilidade da experincia hoje o desafio de pens-la de um outro modo (SILVA, 2007, p. 4). Interessa-nos aqui apontar a relao entre o conceito de experincia, tal como ele foi trabalhado por Benjamin para abranger as exigncias do cenrio contemporneo, com o ideal moderno de formao cultural (Bildung). De alta complexidade, o conceito moderno de formao cultural sempre foi revestido pela cultura ocidental com uma alta carga pedaggica. Com uma extensa aplicao no campo da educao, esse conceito est sempre em pauta nos debates acadmicos sobre o sentido e aCf. SILVA, 2007, p. 1 et seq. Cf. LARROSA, 2004, p. 19 e 21. 3 Tema amplamente estudado no Brasil sob as mais diversas perspectivas especialmente pela filosofia da histria e pela crtica da cultura sua atualidade, no nosso cenrio intelectual, diz respeito acurada viso (ou anteviso) do autor sobre a constituio da modernidade. 4 Cf. AGAMBEN, 2005, p. 26-28.2 1

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finalidade da educao contempornea no Brasil5. A reflexo desenvolvida no estudo ora apresentado move-se em direo ao esforo de pensar aproximaes e contrastes entre o conceito de experincia benjaminiano e o projeto moderno da Bildung. A partir da anlise de trs ensaios de Benjamin, Experincia e pobreza (1933), Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) e Sobre o conceito de histria (1940), construmos nossa hiptese de leitura: nesses escritos, Benjamin explicita uma radical argumentao sobre a possibilidade de reconstruo da experincia, no horizonte de degradao e esfacelamento da vida histrica moderna. Esses trs escritos dos anos de 1930 parecem ter em seu centro a questo sobre o estatuto do passado para o presente. Diante da evidncia incontestvel de que a ruptura com o passado agora um fato acabado, o que fazer com essa perda? Trata-se da questo essencial que ser aqui pensada, a partir da transformao/ articulao dos conceitos de experincia (Erfahrung) e vivncia (Erlebnis). Nesse sentido, nossa leitura guiada pelo seguinte movimento de anlise: mostrar em que medida a possibilidade de reconstruo da experincia e da histria, anunciada nas Teses Sobre o conceito de histria, passa tanto pela alternativa encontrada pelos construtores implacveis de Experincia e Pobreza de fazer tabula rasa, como tambm pela sada de Baudelaire, para quem o trabalho da memria pode ser compreendido mediante aquilo que o poeta chamou de o esforo retrospectivo da imaginao, como percebe Benjamin, em seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire. Com efeito, os trs ensaios de Benjamin selecionados aqui constituem tentativas densas e difceis de pensar o trabalho de construo empreendido por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experincia, em seu sentido pleno de Erfahrung, na sociedade moderna e que, justamente por isso, recusaram-se a se consolar na privacidade da vivncia individual (Erlebnis). Os construtores implacveis, o poeta Baudelaire e o prprio texto (ou antitexto) de Benjamin, chamado pelo autor de Teses Sobre o conceito de histria, ressaltam, no nosso entender, esse aspecto construtivista necessrio para que possamos inscrever o pensamento de Benjamin sobre a experincia para alm de sua dimenso nostlgica ou utpica, dimenso essa presente, sem dvidas, mas no exclusiva6. Sob essa perspectiva, nossa interpretao incide na tentativa de demonstrar em que medida, nesses trs escritos, a possibilidade de reconstruo da experincia pode ser pensada com base nos ideais da Aufkrung e, por conseguinte, da formao cultural moderna (Bildung). Diante disso, o objetivo deste trabalho delimitar um novo campo de atuao para a Bildung, pensado com base na estrutura constituinte do conceito de experincia5 6

Cf. SEVERINO, 2006, p. 622 et seq. Cf. GAGNEBIN, 1994, p. 10.

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benjaminiano. Sobressai dessa proposta de leitura uma reflexo sobre a concepo e a finalidade do conceito de educao que vem sendo forjado na contemporaneidade. Diante dessa proposta de trabalho, detalhamos a seguir a estrutura dos captulos da pesquisa. O Captulo I analisa o conceito de formao cultural (Bildung) moderno, numa tentativa de reter alguns princpios constitutivos desse conceito, com o objetivo de perceber mais tarde, ao longo dos captulos seguintes, o que dele permanece atual para a concepo benjaminiana de experincia. O Captulo II completa essa abordagem, ao delimitar o alcance dos conceitos de formao e de educao, e assim, definir seus respectivos campos de atuao. Buscando demarcar as confluncias e tenses entre educao e formao, esse captulo procura mostrar at que ponto podemos chamar de formativo o intuito pedaggico da educao. Essa discusso conduzida nesses dois captulos iniciais por uma anlise da concepo de tempo e de temporalidade, implicada em ambos os conceitos. Assim, o caminho est aberto para que, no Captulo III, nossa leitura do ensaio Experincia e Pobreza possa ser articulada a uma reflexo sobre as condies e o sentido da formao cultural (Bildung), no sculo XX. Sugerimos uma interpretao desse ensaio de Benjamin com fundamento em duas abordagens: primeiro, pensar a experincia como valorizao do presente e, segundo, abord-la mediante uma indagao sobre o papel do cotidiano, em sua constituio. Esses temas sero retomados no Captulo V, sob a perspectiva de uma indagao acerca do lugar e da temporalidade da experincia diante das reais condies da educao moderna. O Captulo IV, por sua vez, analisa o movimento dialtico entre destruio e reconstruo, que est na base do conceito de experincia benjaminiano. Em face dessa temtica, a proposta desse captulo pode ser assim caracterizada: examinar como a concepo benjaminiana da histria como construo depende amplamente da dimenso alegrica e temporal anunciada pelo lirismo baudelairiano. Desdobra-se dessa reflexo uma indagao sobre a relao entre a noo de correspondncia baudelairiana e o conceito benjaminiano de rememorao (Eingedenken). Assim, trata-se de evidenciar que, ao recusar a grande estrutura narrativa no trabalho da memria em proveito de um gnero literrio fragmentado e constelacional, as imagens dialticas, isto , a construo de imagens alegricas capazes de dizer o surgimento do passado no presente , Benjamin elabora uma reflexo sobre a construo da histria que se revela possvel atravs do ritmo dialtico, entre restaurao e criao, prprio estrutura da memria.

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O Captulo V estruturado a partir de uma pergunta sobre o espao em que a experincia se realiza. Sob esse aspecto, elaborada uma distino entre educao e escolarizao. Estamos, portanto, diante de uma indagao a respeito das condies objetivas de possibilidade da experincia na escola e fora dela. Esse tema anuncia uma problemtica diretamente implicada no campo da pedagogia: a clssica contradio entre indivduo e sociedade. Situamos essa reflexo em face da temtica da temporalidade da educao, fazendo-a soar ao lado da temporalidade prpria ao conceito de experincia benjaminiano e, dessa maneira, assinalando uma proposta de se pensar a educao como espao de experimentao. O Captulo VI inicia uma abordagem que ser retomada tambm no captulo VII dos conceitos de apresentao (Darstellung), deformao (Entstellung) e catstrofe. Nesse momento, o objetivo articular tais noes concepo de experincia postulada por Benjamin, em suas Teses de Sobre o conceito de histria. Importa esclarecer como a concepo de experincia, anunciada nas Teses benjaminianas, interfere na possibilidade de reconstruo da histria. Mediante a anlise da Tese I e da Tese IX, devemos esclarecer como a idia de redeno (Erlsung) inaugura uma descontinuidade temporal em que o presente destacado, revelando o quanto a construo da histria, com base no tempo-do-agora (Jetztzeit), deve ser pensada nas antpodas das categorias da compreenso e da empatia. Desse modo, no ltimo captulo (Captulo VII), ressaltamos a crtica do conhecimento contida na perspectiva benjaminiana de uma filosofia concebida como apresentao (Darstellung) da verdade. Nosso objetivo explicitar como as categorias da deformidade e distoro (Entstellung) caracterizam peculiarmente o papel da tica e da esttica, na constituio do conceito de experincia benjaminiano. Est em destaque elucidar como a concepo de experincia possibilita a reconstruo da histria, atravs da criao de narrativas chamadas por Benjamin de imagens dialticas mais adequadamente descritas como artsticas do que como retratos cientficos fiis de determinado acontecimento histrico. Esse tema introduz uma reflexo sobre a relao entre a experincia e a noo de sensus communis, j que esta ltima se traduz pela procura por um sentido comum, quando a fragmentao do cenrio social ameaa nos destituir da capacidade de narrar o ocorrido. Desdobra-se dessa abordagem a interveno de uma atitude tico-esttica, constitutiva do conceito de experincia, na construo de uma concepo de educao forjada a partir da alternativa experincia/sentido. Por fim, metodologicamente, preciso enfatizar ainda que este estudo procura situarse ali onde possvel apreender a essencial ambivalncia da posio de Benjamin diante da 15

modernidade: profundamente crtico de seu tempo, mas, ao mesmo tempo, manifestando uma abertura de perspectiva para a vida cultural nascente. Situados nessa encruzilhada, no pretendemos fazer um estudo exaustivo da obra de Benjamin, porm anunciar uma possibilidade interpretativa, recorrendo muitas vezes a monoplios j consolidados de interpretao de seu pensamento no Brasil, verdade, contudo procurando com isso precisamente ilustrar a peculiaridade do tema desta pesquisa no que se refere a sua abordagem com fundamento na filosofia da educao. Desse modo, este trabalho desenvolvido basicamente como um comentrio do pensamento de Benjamin, ou melhor, de alguns de seus aspectos. Nesse sentido, reconstruir a discusso benjaminiana sobre a experincia, a partir de uma leitura cerrada nos textos, o procedimento aqui adotado. Com isso, no queremos tornar a obra desse autor mais familiar, mas sim retomar seu pensamento numa tentativa de ouvir, dentro de nossos limites, as questes que sua obra pode formular e enderear filosofia da educao. No temos a pretenso de resolver tais questes, todavia, quem sabe, aprofund-las, apontando caminhos e tambm descaminhos, irresolues. assim que, aos comentrios dos textos de Benjamin, se somou uma reapropriao da histria da filosofia, abordagem esta que tenta conduzir a pesquisa a alguns fundamentos da educao, com o objetivo de colocar em pauta suas reais condies.

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CAPTULO I

O conceito moderno de Formao Cultural (Bildung): duas perspectivasCada indivduo particular que se eleva de seu ser natural a um ser espiritual caminha em direo quilo que a modernidade chamou de formao cultural (Bildung)7. Considerada a idia mais importante do sculo XVIII8, o conceito de Bildung designa uma das figuras histricas determinantes do que ainda hoje entendemos por cultura, ao lado de paidia, eruditio e Aufklrung. Formao significa a prpria humanizao do homem concebido como ser que no nasce pronto, mas que deve necessariamente buscar um estgio de maior humanidade. Assim, a formao pode ser caracterizada como um devir humanizador, mediante o qual o indivduo natural se transforma num ser cultural9. A peculiaridade desse conceito advm justamente do sentido que o verbo reflexivo lhe concede, indicando que se trata de uma ao cujo agente s pode ser o prprio sujeito (SEVERINO, 2006b, p. 619). Esse movimento expressa a caracterstica essencial do conceito de formao moderno: o cultivo de si; tal princpio relaciona-se com a elevao da interioridade do sujeito em direo a sua autonomia, ou seja, a formao (Bildung) como evoluo e elevao em direo universalidade , pois, a tarefa humana por excelncia10. nesse sentido que o ser da histria11 a questo central da Fenomenologia do esprito, expressa pelo seguinte postulado:Antonie Bermam, no artigo intitulado Bildung et Bildungsromam (1984, p. 142), prope uma definio do conceito de formao cultural (Bildung), cuja tonalidade determina a maneira como uma poca histrica articula sua compreenso do mundo: a palavra alem Bildung significa genericamente, cultura e pode ser considerado o duplo germnico da palavra Kultur, de origem latina. Porm, Bildung remete a vrios outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riqussimo campo semntico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginao, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cpia, e Urbild, arqutipo. Utilizamos Bildung para falar do grau de formao de um indivduo, um povo, uma lngua, uma arte [...] Sobretudo, a palavra alem tem uma forte conotao pedaggica e designa a formao como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, so seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden). Para uma definio desse conceito, consultar tambm o artigo A idia de formao na modernidade (1997, p. 14-15), de Willi Bolle. Segundo o autor, o conceito moderno de Bildung surgiu na Alemanha a partir de fins do sculo XVIII. um conceito de alta complexidade, com extensa aplicao nos campos da pedagogia, da educao e da cultura, alm de ser indispensvel nas reflexes sobre o homem e a humanidade, sobre sociedade e o Estado [...] Com a modernidade chegaram os tempos da formao (Zeiten der Bildung). O desenvolvimento espiritual e tico do indivduo visto em analogia com o caminhar da humanidade. 8 Cf. GADAMER, 1997, p. 49. 9 Cf. SEVERINO, 2006b, p. 619. O autor desenvolve uma definio de Bildung, salientando sua aproximao com a educao. 10 GADAMER, 1997, p. 49. 11 Cf. VAZ, 1973, p. 25.7

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conhecer os segredos do devir humano at atingir o sentido universal, ltima etapa dessa evoluo. Assim, para Hegel, a cultura ou formao (Bildung) concebida como desenvolvimento e progresso da conscincia em direo cincia ou ao saber. A partir de Hegel, a idia predominante no programa moderno da formao distanciase da noo clssica da imago dei. O mecanismo da imagem e semelhana, portanto, no se d mais entre a idia de um Deus onipotente e um homem imperfeito, e sim entre uma imagem idealizada e universal de homem bem formado, isto , do ideal de perfectibilidade humana, e o ponto de distanciamento em que se encontra grande parte da humanidade que necessita desse aperfeioamento. Ao secularizar a noo de criao divina do homem, o projeto moderno da formao promoveu um deslocamento semntico daquele mecanismo de imago et similitude, em direo idia do indivduo como autoprodutor de si12. Desse modo, a secularizao do projeto moderno da formao, ao promover uma construo interior com sentido espiritual, substitui a noo de criao divina pela alternativa moderna de uma imagem ideal cujo emblema o ideal de perfectibilidade que o homem culto tem o potencial de atingir. A Bildung torna-se, por conseguinte, um conceito que tem em sua essncia uma perspectiva de tempo da ordem do que gradual, pois a temporalidade histrica implcita nesse conceito responde s exigncias de uma disciplina social sempre voltada para o futuro. Com essa pequena introduo, pretendemos destacar o quanto o conceito moderno de Bildung no pode ser compreendido sem antes pensarmos nele como fruto de uma bem delimitada concepo de histria, a qual, evidentemente, sempre acompanhada de certa experincia do tempo13. Apresentamos a seguir o desdobramento inicial desta proposta de leitura. Trata-se de analisar como a nfase na idia de processo interfere na caracterizao da Bildung como smbolo moderno da emancipao do homem, ao privilegiar um movimento de progresso e desenvolvimento baseado numa concepo de presente concebida como passagem ou transio de um antes para um depois.

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Schiller trata desse tema, ao comparar a beleza com a fora interior da natureza criadora: No , portanto, mera licena potica, mas tambm um acerto filosfico, chamarmos a beleza nossa segunda criadora. Pois embora apenas torne possvel a humanidade, deixando a nossa vontade livre [para] o quanto queremos realiz-la, a beleza tem em comum com nossa criadora original, a natureza, o fato de que no nos concede nada mais seno nossa capacidade para a humanidade, deixando o uso da mesma depender da determinao de nossa prpria vontade (SCHILLER, 1963, p. 111). 13 Cf. VAZ, 2002, p. 1-30.

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1. O ideal de perfectibilidade e a afirmao da vida cotidiana

Recusando-se a tomar de outra poca seus critrios de orientao, a modernidade v-se referida a si mesma. A dinmica do afirmar-se a si a partir de si mesma a tentativa da modernidade de conquistar seu prprio conceito. Em outras palavras, por caracterizar-se por uma estrutura de auto-relao, a modernidade adquire seu fundamento justamente como crtica de si, isto , como crtica da modernidade14. Essa estrutura pode ser apreendida enquanto tal na figura emblemtica da conscincia de si absoluta em Kant. Como sublinha Jrgen Habermas (2000), Kant toma essa abordagem da filosofia da reflexo e a torna a base de suas trs Crticas. Com essa estrutura da auto-relao do sujeito cognoscente que se dobra sobre si mesmo enquanto objeto, ele faz da razo o supremo tribunal ante o qual deve se justificar tudo aquilo que, em princpio, reivindica validade. Desde Kant, o conceito iluminista de crtica fundamentado nesse gestus auto-reflexivo. No seria precipitado afirmar que tal gestus, ancorado no princpio kantiano do dever para consigo mesmo, designa a maneira humana em contraposio quela formao natural, que se refere aparncia externa (formao dos membros, uma figura bem formada) e, sobretudo, configurao produzida pela natureza de aperfeioar suas aptides e faculdades15. Relaciona-se, por conseqncia, com a interioridade e a autonomia do sujeito em direo ao sentido de perfectibilidade humana, alcanado apenas quando a formao passa a ser compreendida como elevao universalidade. Afinal, como quer Hegel, quem se entrega particularidade inculto, isto , a natureza formal da formao exige um sacrifcio do que particular em favor do que universal. Desse modo, o cultivo de si integra estreitamente o conceito de formao (Bildung) moderno. Um ato solitrio e inusitado, realizado por uma conscincia em expanso, eis aqui a imagem iluminista emblemtica da Bildung. Ela se torna visvel na modernidade com a afirmao histrica do indivduo. A Bildung, que significa auto-formao e aperfeioamento individual16, representaria a maneira peculiarmente alem de assimilao cultural da herana individualista ocidental entendendo esse legado individualista como a possibilidade de crtica reflexiva. A nfase no auto-cultivo pessoal responsvel pelo ideal de liberdade poltica: o cultivo da mente o que faz o homem livre, sendo a fonte da real liberdade. A14 15

Cf. HABERMAS, 2000, p. 28. Cf. GADAMER, 1997, p. 45. 16 O sujeito constitui-se como tal ao formar-se a si mesmo; a nfase nesse gestus era central mesmo para Von Humboldt, na virada do sculo XIX, quando tentou realizar o conceito de Bildung na reforma da educao superior que implantou na Universidade de Berlim.

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tradio germnica assimila esse raciocnio ao extremo: o nvel de emancipao individual subordina todos os outros, as convices so privilegiadas em detrimento da poltica. Nesse sentido, para autores como Louis Dumond, Norbert Elias ou W. H. Bruford, a Bildung pode significar a traduo laica da enorme influncia da reforma luterana protestante, na Alemanha17. O Luteranismo, atravs de sua noo de privatizao da f, ao privilegiar a vida interior e subjetiva, contrape-se vida social e poltica, j que a relao com a divindade passa a ser direta, prescindindo da mediao de outros homens e da instituio que cuidava dessa mediao, a Igreja. De acordo com Charles Taylor (1997), sob o ponto de vista social, todo o desenvolvimento moderno da afirmao da vida cotidiana foi anunciado e iniciado com a espiritualidade dos reformadores. Com a expresso vida cotidiana, Taylor alude aos aspectos da vida humana referentes produo e reproduo, isto , ao trabalho, fabricao das coisas necessrias vida e nossa existncia como seres sexuais, incluindo o casamento e a famlia. Podemos compreender o alcance dessa designao, se retornarmos a Aristteles e compreendermos que, para o filsofo, o exerccio dessas atividades deveria ser distinguido da busca do bem viver, pelo fato de esta ltima estar relacionada com a deliberao a respeito da excelncia moral, com a contemplao terica e com participao dos homens, na poltica, como cidados18. Para Aristteles, o fim da associao poltica (polis) era a vida e o bem viver (zen kai euzen), de sorte que o primeiro dos termos abrange aquele leque de coisas associadas com o trabalho e o exerccio daquelas atividades necessrias para manter e renovar a vida, sendo, evidentemente, necessrias ao bem viver, mas desempenhando um papel infra-estrutural em relao a eles. Nesse sentido, no se pode buscar o bem sem buscar a vida, diz Aristteles, mas uma existncia dedicada apenas a este ltimo objetivo no inteiramente humana, j que os escravos e os animais empenham-se exclusivamente pela vida. Assim, segundo Aristteles, uma mera associao de famlias com objetivos econmicos e defensivos no pode ser considerada uma verdadeira polis. Diante disso, Taylor considera que a modernidade transfere o lcus do bem viver, de um conjunto especial de atividades para dentro da prpria vida, de maneira que a vida humana plena agora definida em termos de trabalho e produo, de um lado, e casamento e vida familiar, de outro (TAYLOR, 1997, p. 276). Sob o impacto da revoluo cientfica, o ideal de apreenso da ordem do cosmos por meio da theora passou a ser visto como intil, por no ter produzido nenhuma tecnologia aplicvel capaz de melhorar a vida cotidiana. Francis Bacon insistia nessa questo: favorecer17 18

Sobre este tema, consultar SOUZA, 1997, p. 1. Cf. ARISTTELES, 1985 (Livro I).

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a condio humana a meta, a cincia no mais uma atividade superior qual a vida cotidiana deve submeter-se. Nessa perspectiva, um novo modelo de civilidade surge no sculo XVIII com um modelo baseado na vida do comrcio e na aquisio de riquezas, constituindo a afirmao da vida cotidiana. Como argumenta Taylor, em contraste com a tica aristotlica, a modernidade apresenta uma viso alternativa completamente articulada da ordem social: o comrcio e a fora construtiva e civilizadora, associando as pessoas em paz e promovendo os ideais de igualdade, de senso de direito universal e sua tica do trabalho19. Ora, para Taylor, se quisermos compreender bem esse novo modelo de vida, temos de voltar a um ponto de origem teolgico: a afirmao da vida cotidiana origina-se na espiritualidade judeu-crist, e o impulso particular que recebe na era moderna vm sobretudo da Reforma (TAYLOR, 1997, p. 279). Um dos principais pontos comuns entre os reformadores foi sua recusa de mediao e, quando a salvao mediada deixa de ser possvel, o envolvimento pessoal do fiel adquire importncia fundamental. Assim, a salvao pela f reflete o novo sentido da importncia crucial do envolvimento pessoal: a pessoa j no pertencia ao crculo dos eleitos, ao povo de Deus, por sua ligao a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, mas por sua adeso pessoal irrestrita (TAYLOR, 1997, p. 281). O que est em jogo aqui a transformao do prprio conceito de sujeito. Novidade absoluta da episteme moderna, o homem aparece na dupla posio de objeto de conhecimento e de sujeito que conhece. Esse raciocnio leva-nos s consideraes de Giorgio Agamben acerca da no separao, na modernidade, de experincia e cincia. Como nos lembras esse autor, a cincia pde unificar em um novo ego cincia e experincia, que at ento se referiam a dois sujeitos distintos (AGAMBEN, 2005, p. 29). A cincia moderna nasce de uma desconfiana sem precedentes em relao experincia em sentido tradicional aquela chamada por Benjamin de Erfahrung, a qual se traduz em mximas e provrbios, e pode ser compreendida como o solo onde nasce uma verdadeira formao, vlida para todos os indivduos de uma mesma coletividade , definida como selva e labirinto, essa experincia incompatvel com o ideal de certeza almejado pela cincia moderna. Como observa Agamben, pela primeira vez, na histria do pensamento ocidental, a cincia moderna abole a separao de experincia e cincia e faz da experincia o lugar o mtodo, isto , o19

Como lembra Taylor, essa tica burguesa tem bvias conseqncias niveladoras, e ningum pode fechar os olhos para o papel tremendamente importante que teve na constituio da sociedade liberal moderna. [...] a afirmao da vida cotidiana outra caracterstica bsica da identidade moderna e no apenas em sua forma burguesa: as principais correntes do pensamento revolucionrio tambm exaltaram o homem como produtor, um ser que encontra sua mais elevada dignidade no trabalho e na transformao da natureza servio da vida (TAYLOR, 1997, p. 278).

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caminho do conhecimento (AGAMBEN, 2005, p. 27). Desse modo, enquanto a episteme clssica pensa o limite e a finitude como experincias que separam o sujeito da experincia (o senso comum, presente em cada indivduo) do sujeito da cincia (o nous ou intelecto agente, nico e separado da experincia, impassvel e divino), a modernidade faz coincidir experincia e conhecimento a um nico sujeito, o ego cogito cartesiano, a conscincia, transformando a experincia tradicional em um processo infinito do conhecimento20. O desejo e a sede de saber no se voltam apenas para o mundo, o conhecimento se embriaga com uma outra questo: a de sua prpria natureza e de seu prprio poder. Nas palavras de Agamben,A transformao de seu sujeito no deixa imutvel a experincia tradicional. Enquanto seu fim era o de conduzir o homem maturidade, ou seja, a uma antecipao da morte como idia de uma totalidade consumada da experincia, ela era de fato algo de essencialmente finito, e logo, que se podia ter e no somente fazer. Mas uma vez referida ao sujeito da cincia, que no pode atingir a maturidade, mas apenas acrescer os prprios conhecimentos, a experincia tornar-se-, ao contrrio, algo essencialmente infinito, um conceito assinttico, como dir Kant, ou seja, algo que pode somente fazer e jamais ter: nada mais precisamente, do que o processo infinito do conhecimento. (AGAMBEN, 2005, p. 33.)

Assim, a potncia da razo, na modernidade, no est em romper os limites do mundo da experincia com o objetivo de encontrar uma sada para o domnio da transcendncia, mas em ensinar-nos a percorrer esse domnio emprico com toda a segurana e a habit-lo comodamente. A razo deixa de ser a regio das verdades eternas, quer dizer, ela deixa de ser a soma de idias inatas anteriores a toda experincia. Como enfatiza Ernst Cassirer21, a razo, no sculo XVIII, compreendida no como a idia de um ser, mas como a de um fazer.

A funo essencial da razo consiste em ligar e desligar. A razo desliga o esprito de todos os fatos simples, de todos os dados simples, de todas as crenas baseadas no testemunho da revelao, da tradio, da autoridade; s descansa depois que desmontou, pea por pea, at seus ltimos elementos e seus ltimos motivos, a crena e a verdade pr-fabricada. Mas aps essa tarefa dissolvente, impe-se de novo uma tarefa construtiva; dever construir um novo edifcio, uma verdadeira totalidade. Mas ao criar ela prpria essa totalidade, ao levar as partes a constiturem o todo, segundo a regra que ela prpria promulgou, a razo assegura-se de um perfeito conhecimento da estrutura do edifcio assim erigido. (CASSIRER, 1997, p. 33).

Habitar o mundo com segurana e comodidade s possvel, porque a razo compreende a sua estrutura e pode reproduzir sua construo na totalidade, no encadeamento de seus elementos constitutivos. Ora, esse movimento da razo capaz, ento, de

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Cf. AGAMBEN, 2005, p. 29. Cf. CASSIRER, 1997, p. 33.

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proporcionar ao homem a ousadia de assumir o leme e guiar a histria para metas bem definidas. Diante desse quadro, podemos dizer que a Bildung, ao efetuar-se como autodesenvolvimento, liberta o homem moderno dos grilhes do mundo divino e do direito natural. O mundo divino torna-se reflexivo, transforma-se em algo posto por ns, e o direito histrico fundado no solo presente da vontade do homem, realando o princpio da liberdade da vontade como o fundamento substancial do Estado. A relao entre o conceito de individualismo e a concepo de ao poltica ilustra esse modelo persistente da Bildung. De acordo com Fritz Ringer (2000), o conceito de empatia que est no centro do princpio de individualidade, ajudando a moldar a tradio histrica alem em direo ao conceito moderno de Bildung. O indivduo autodidata, sempre descrito pela Bildung como absolutamente nico, imbudo de um potencial distintivo para a realizao pessoal, tem diante de si a tarefa de reviver, isto , reproduzir as experincias e valores corporificados nos textos eruditos que obrigado a ler e estudar, se quiser projetar-se rumo ao ideal de formao. Esse princpio de empatia , assim, a pedra de toque do conceito alemo de formao22, nele que o historicismo tem seu suporte garantido. Os problemas que surgem da so inevitveis: as idias de gnio e dom so legitimadas pelo discurso formador.O que se pode chamar de princpio de empatia [...] postulava, por exemplo, que os historiadores se colocassem no lugar dos agentes histricos que procuravam compreender [...] O historiador bem-sucedido torna-se um gnio; seus poderes um dom misterioso. (RINGER, 2000, p. 21).

No seria equivocado afirmar que a formao de um indivduo incomparvel o propsito da Bildung; tal postura tem como conseqncia algo peculiar: Estado e sociedade no so criaes do ser humano via contrato ou racionalidade utilitria, porm brotam de foras espirituais suprapessoais, oriundas de indivduos mais criativos e destacados23.

Sobre a relao entre as culturas francesa e alem, no que se refere ao conceito de Bildung, consultar ELIAS, 1994, p. 34. 23 Cf. RINGER, 2000, p. 21. Conferir tambm ELIAS, 1994, p. 34. Segundo Elias, na tradio francesa essa caracterstica transfigurada pela concepo de ao poltica. A tradio francesa procurava dar nfase socializao da gerao mais jovem em direo ao poltica, ao invs de conceber um indivduo incomparvel. Comrcio, indstria, enfim, a ordem econmica o alicerce para a auto-imagem da civilizao francesa. A formao, portanto, vista como meta poltica. Sob esse aspecto, Norbert Elias enftico em afirmar que, em meados do sculo XVIII, a intelligentsia alem nenhuma influncia exercia sobre os fatos polticos. De suas fileiras saram, considera Elias, os homens por conta dos quais a Alemanha foi chamada de terra de poetas e pensadores (ELIAS, 1994, p. 34). A burguesia alem, em conseqncia, foi excluda de toda e qualquer atividade poltica, na melhor das hipteses podiam ler e escrever. Assim que a vida interior, a profundidade de sentimentos, a absoro em livros, o desenvolvimento da personalidade, em uma palavra, a erudio, tornaramse sinnimos do ideal de formao moderno.

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Desse quadro desdobra-se uma questo essencial ao conceito de formao moderno: a formao est ligada, sempre, indiscutivelmente, ao problema da condio social24. Nada a caracteriza melhor do que a postura da classe mdia: as portas de baixo fechadas, as que ficam acima abertas. Isto , a classe mdia nasce aprisionada de uma maneira peculiar: no podia pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascenso por medo de que as que a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque (ELIAS, 1994, p. 37). Assim, todo movimento moderno de formao visa a um telos inevitvel: a ascenso social. Todavia, uma ascenso social bem delimitada: trata-se do iderio burgus de emancipao, ou seja, de sua recusa em fomentar a emancipao das classes subalternas.

2. Progresso e retorno um percurso incompleto

Em Goethe, encontramos um aprofundamento da temtica da auto-formao e um deslocamento da nfase na combinao entre introspeco e imaturidade poltica para a esfera pedaggica. Designativa de um processo, a formao de Wilhelm Meister tem um carter prtico e dinmico, remetendo-a s dimenses do trabalho e da viagem. Segundo Bermam (1984), como paradigma do processo de formao do homem moderno25, a formao da personagem de Goethe inscreve-se no crculo concreto dos deveres e tarefas, esforando-se nos limites de uma atividade determinada e, assim, levado a descobrir-se em meio aos diversos encargos e provas da vida material e social. Se esse crculo , por um lado, limitador, por outro, essa auto-responsabilizao tem efeito universalizante: uma vez apropriada, a ocupao no mais limite para o indivduo. Nas palavras de Goethe, na nica coisa que ele faz bem, o homem vive o smbolo de tudo o que bem feito26. Nesse sentido, Berman salienta o carter essencialmente prtico da Bildung, ao destacar o quanto o pensamento de Goethe e de tambm de Hegel anunciam a moderna cultura do trabalho. O trabalho forma esse emblema famoso da filosofia hegeliana da Fenomenologia do Esprito a sntese da dialtica da formao, na modernidade do derradeiro crepsculo do sculo XIX. Em um breve parntesis, limitamo-nos apenas a observar que, para Hegel, o homem concebido pela ruptura com o imediato e o natural, o que lhe exigido atravs do lado espiritual e racional de sua natureza. Em outras palavras, o homem no por natureza o que deve ser, razo pela qual tem necessidade de formao. Contudo, isso no significa que a24 25

Cf. ELIAS, 1994, p. 36-37. Segundo Moretti, esse romance marca o nascimento do Bildungsroman, e, claro, do sculo de ouro da narrativa ocidental. Cf. MORETTI, 1987, p. 3. 26 Apud BERMAN, 1984, p. 145.

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elevao universalidade contraponha um comportamento terico em relao a um prtico. da essncia universal da razo tornar-se um ser espiritual. O que Hegel quer dizer com isso que, acima do imediatismo de sua existncia, a conscincia que trabalha se eleva rumo universalidade ou, como Hegel se expressa, o homem, ao formar a coisa, forma-se a si mesmo. Segundo a leitura de Gadamer sobre a Fenomenologia do Esprito, certo dizer que, para Hegel,enquanto o homem est adquirindo um poder (Knnen), uma habilidade, ganha ele, atravs disso, uma conscincia de senso prprio. O que pareceu ser-lhe negado [...] no servir, na medida em que ele se submeteu totalmente a um sentido que lhe era estranho, volta-se em seu proveito, na medida em que ele uma conscincia laboriosa. Como tal encontra ele em si mesmo um sentido prprio, sendo perfeitamente correto dizer do trabalho: ele forma. (GADAMER, 1997, p. 52).

Continuando a exemplificar parcialmente, seria o caso de recapitular, com Gadamer, que o senso prprio da conscincia laboriosa contm todos os momentos daquilo que perfaz uma formao prtica27. Nesse caminho, toda aquisio de formao conduz inevitavelmente ao desenvolvimento de interesses tericos. Cada indivduo, em particular, que se eleva de seu ser natural a um ser espiritual encontra no idioma, nas instituies de seu povo, enfim, uma substncia j existente, que, como aprender a falar, ele ter de fazer seu. Desse modo, para Hegel, a cultura ou formao (Bildung) concebida como desenvolvimento e progresso da conscincia para o saber. E esse o tema central da Fenomenologia do Esprito, de sorte que essa obra foi muitas vezes apontada como um Bildungsroman abstrato, como observa Lima Vaz (1973). Ao tempo de Hegel, os romances de cultura no eram apenas histrias da formao dos pensamentos, mas tambm histrias do aprendizado da vida, gnero que se elevara altura de um mile de Rousseau e de um Wilhelm Meister de Goethe. A Fenomenologia, assim, foi freqentemente indicada como um romance sem personagens ou com uma nica personagem sem nome, que a annima conscincia. Por isso, podemos dizer que, se a inteno de Hegel, nesse escrito, pedaggica, no se trata de um itinerrio pedaggico que conduz progressivamente a uma forma de vida, mas sim cincia ou ao saber28. Retornemos a Bermam e retomemos nosso percurso em Goethe. De acordo com esse autor, a Bildung no Goethe de Wilhelm Meister pode tambm ser caracterizada como uma viagem. Reise, cuja essncia lanar o mesmo num movimento que o torna outro (BERMAN, 1984, p. 194). Nessa perspectiva, a Bildung a experincia da alteridade: da estranheza do mundo e tambm da estranheza do mesmo para si prprio, da suas polaridades27 28

Cf. GADAMER, 1997, p. 52-53. Cf. VAZ, 1973, p. 25.

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definidoras, em Goethe e nos romnticos de Iena: cotidiano e maravilhoso, prximo e longnquo, presente e passado, conhecido e desconhecido, finito e infinito (BERMAN, 1984, 148-149). Por conseqncia, porque viaja pelo mundo, a formao de Wilhelm Meister no progride mais, como acontecia com os filhos dos homens das comunidades tradicionais, tendo como nico modelo a vida dos pais. H, ao contrrio, uma descontinuidade entre as sucessivas geraes, pois, com o advento do sculo dezenove e com a nova fora imposta pelo capitalismo, o sentido de individualidade e, por conseguinte, de interioridade presentes na idias de cultivo de si desviado em direo explorao do espao social, isto , em direo quilo que Franco Moretti chama de mobilidade29.J no caso de Meister a aprendizagem no mais o lento e previsvel progresso em direo ao trabalho dos pais, mas uma certa explorao do espao social que no sculo XIX atravs de viagens e aventuras, vagando e se perdendo, Bohme and parvenir sublinhado inmeras vezes (Traduo nossa ) 30.

Com efeito, conforme Lima Vaz (2002), o maior desafio do homem moderno estar envolvido numa exigente e imperiosa relao com a inveno do social. O social mostra-se como lugar de realizao efetiva do postulado fundamental da autonomia, sobre o qual repousa a concepo moderna de indivduo. Nesse sentido, Vaz descreve: nunca como no espao da modernidade o ser humano permanentemente intimado a tornar-se outro a partir da sua prpria identidade penosamente conquistada, a arrancar-se de si mesmo, a alienar-se, em suma, a tornar-se social (VAZ, 2002, p. 16) 31.29 30

Sobre a relao entre as noes de interioridade e mobilidade, consultar MORETTI, 1987, p. 4-5. Already in Meisters case, apprenticeship is no longer the slow and predictable progress toward ones fathers work, but rather an certain exploration of the social space, which the nineteenth century through travel and adventure, wandering and getting lost, Bohme and parvenir will underline countless times (MORETTI, 1987, p. 4). 31 O tema formar-se a si mesmo pode ser pensado tambm ao lado do princpio do cuidado de si. Nesse sentido, remetemos o leitor distino que Foucault estabelece entre as concepes gnthi seautn (conhece-te a ti mesmo) e a epimleia heauto (cuidado de si). A partir dessa distino, acreditamos ter um ponto de reflexo instigante para pensarmos o cultivo de si e sua relao com o social e coletivo. Como salienta Michel Foucault, o conceito de cultivo de si soa aos nossos ouvidos modernos como a expresso melanclica e triste de uma volta do indivduo sobre si, incapaz de sustentar por ele prprio uma moral coletiva, no lhe restando alternativa seno ocupar-se consigo. Assim, Foucault destaca que a modernidade encara o preceito do cuidado de si de um modo negativo, como uma espcie de egosmo e dandismo moral, ao contrrio de seu significado em todo o pensamento antigo seja com Scrates, seja com Gregrio de Ncia , o qual o encarava de um modo positivo, fundamentado numa moral baseada na perspectiva do sentir prazer consigo mesmo. Para Foucault, essa moral foi requalificada no contexto moderno de uma tica geral do no-egosmo, seja sob a forma crist de uma obrigao de renunciar a si, seja sob a forma moderna de uma obrigao para com os outros quer o outro, quer a coletividade, quer a classe (FOUCAULT, 2004, p. 17). O lugar ocupado pelo princpio do cuidado de si, na cultura antiga, foi aos poucos apagado e, atravs do que Foucault chamou de momento cartesiano, o pensamento moderno requalificou o conhece-te a ti mesmo socrtico em direo ao acesso desse conhecimento de si verdade. Nesse movimento, a verdade dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento. Disso resulta que o ser do sujeito no posto em questo, o que, ao contrrio, ocorre no princpio do cuidado de si, para o qual, no acesso verdade, h algo que completa e transfigura o ser mesmo do sujeito.

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A mobilidade caracteriza o dinamismo prprio da modernidade. Instabilidade, inquietao, impacincia, insatisfao so alguns dos componentes que fazem desse princpio a imagem precisa daquilo que se quer moderno. Nossa cultura escolheu seu primeiro heri: Hamlet. O enigmtico personagem-smbolo da modernidade tem apenas trinta anos; quando Goethe escreve Wilhelm Meister, portanto, o que est necessariamente por trs tanto da definio desse heri como do outro no outra coisa seno a idia de juventude. Ainda segundo Moretti:

Aquiles, Heitor, Ulisses: o heri da pica clssica um homem maduro e adulto. Aeneas, carregando um pai j muito velho, e um filho ainda muito jovem, a perfeita incorporao de uma relevncia simblica da meia etapa da vida. Este paradigma durar um longo tempo (Nel mezzo del cammino di nostra vita...), mas com o primeiro heri enigmtico dos tempos modernos, isto se desfaz. De acordo com o texto, Hamlet tem trinta anos, longe de ser considerado jovem pelos parmetros do renascimento. Mas nossa cultura ao escolher Hamlet como o primeiro heri simblico esqueceu-se de sua idade [...] (Traduo nossa)32.

Envolta no dinamismo prprio da modernidade, a juventude torna-se para nossa cultura a idade que carrega em si o sentido da vida no nos esqueamos de que ela o primeiro presente que Mefistfeles oferece a Fausto. Como no poderia deixar de ser, pois a histria ocidental mergulhou no to desejado mundo novo, no entanto sem possuir uma cultura da modernidade. Assim, ao considerar a juventude como sendo sua essncia e, por conseguinte, essncia tambm do conceito de formao , a modernidade tem diante de si o desafio de encontrar um sentido no tanto para o conceito de juventude em si, porm para o prprio conceito de modernidade. A modernidade, como um encantador e arriscado processo de formao, repleto de ldicas expectativas e, ao mesmo tempo, de iluses perdidas, no pode encontrar seu sentido na experincia do passado, considerada um intil peso morto, nem tampouco pode se sentir representada pela maturidade e sua inevitvel aceitao dos limites.

Portanto, esse momento cartesiano, segundo Foucault, atuou desqualificando o cuidado de si e requalificando o conhece-te a ti mesmo que, a partir de agora, concebe o conhecimento como um caminho indefinido, abrindo-se simplesmente para a dimenso indefinida do progresso, cujo fim no se conhece e cujo benefcio a histria conhecer apenas sob forma de acmulos institucionalizados de conhecimento. Ou seja, h um movimento que sobrecarrega o ato do conhecimento, sem que mais nada seja solicitado ao sujeito. Ao contrrio, o homem, pela primeira vez, deixa de ser sujeito para tornar-se objeto de saber. Cf. FOUCAULT, 2004, p. 2-24. 32 Achilles, Hector, Ulysses: the hero of de classical epic is a mature man, an adult. Aeneas, carrying away a father by now too old, and a son still too young, is the perfect embodiment of a symbolic relevance of the middle stage of the life. This paradigm will last a long time (Nel mezzo del cammino di nostra vita...), but with the first enigmatic hero of de modern times, it falls apart. According to the text, Hamlet is thirty years old: far from young by Renaissance standards. But our culture, in choosing Hamlet as its first symbolic hero, has forgotten his age [...] (MORETTI, 1987, p. 3).

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Nesse sentido, a idia de maturidade incompatvel com a modernidade. Nas palavras de Moretti, a sociedade ocidental moderna inventou a juventude, espalhando-se nela mesma, escolhendo-a como seu maior valor emblemtico e por este motivo a cada vez mais tem uma noo menos clara do que seja a maturidade (Traduo nossa)33. Eis aqui o problema: a formao s pode ser compreendida como tal, se ela puder ser concluda, e esse processo deve necessariamente perfazer a seguinte trajetria: a juventude deve passar maturidade. Esse processo de transmutao inerente ao conceito de formao, quer dizer, o que da ordem da mobilidade deve transformar-se em algo fixo, imvel, concludo. Na verdade, depois de percorrermos caminhos excntricos e desconhecidos pelo mundo afora, devemos retornar: nosso verdadeiro lugar aquele ao qual voltamos e no aquele do qual nunca samos34. Assim, o movimento natural da Bildung pode ser definido ao mesmo tempo como progresso e retorno. Ora, parece ento, primeira vista ao menos, que a idia de formao incompatvel com seu bero e morada, a modernidade. Como isso possvel? De fato, a moderna sociedade burguesa padece de alguns dilemas, como indivduo e socializao, juventude e maturidade, identidade e mudana, segurana e metamorfose, que uma vez eliminados, apagam a prpria possibilidade de pensarmos o conceito de formao e, com ele, claro, de modernidade. O mundo moderno clama pela coexistncia desses contrrios, de sorte que seria melhor dizer que, ao invs de padecer deles, a sociedade moderna tem a seu ncleo de vida, ou seja, a contradio e a ambigidade podem ser vistas como a primeira lio a ser apreendida pela modernidade, na medida em que ela faz da contradio um instrumento de sua prpria sobrevivncia. Ao constituir-se como motor do conceito moderno de formao, a contradio revela a tenso entre duas dimenses da vida moderna. Como salienta Bruno Pucci35:A cultura (Bildung), na tradio germnica, ao mesmo tempo que compreende o conjunto de criaes espirituais (intelectuais e artsticas) traz em si a exigncia de formar seres humanos que, por sua vez, so consumidores/ criadores de cultura. A dialtica produto/processo constitui sua historicidade, pelo menos em seus primrdios. (PUCCI, 1997, p. 90).

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Modern Western society has invented youth, mirrored itself in it, chosen it as it most emblematic value and for this very reasons has become less and less to form a clear notion of maturity (MORETTI, 1987, p. 27). 34 Cf. BERMAN, 1984, p. 148. 35 A partir do texto de Adorno, Teoria da Semicultura, Pucci ressalta, nesse artigo de 1997, intitulado A Teoria da Semicultura e suas contribuies para a Teoria Crtica da Educao, alguns elementos para uma proposta educacional contempornea.

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Ora, diante disso, seria certo dizer que o ideal de formao antagnico prpria constituio do mundo. Franco Moretti faz decisivas consideraes a esse respeito, ao relacionar capitalismo e Bildung; parece-nos oportuno cit-lo longamente:[...] a racionalidade capitalista no pode gerar formao. A natureza puramente quantitativa do capital, e a competio a qual se sujeita, pode ser uma fortuna desde que continue crescendo. Ele deve crescer, mudar de forma, e nunca parar: como Adam Smith observou em A riqueza das naes, o comerciante um cidado de nenhum pas em particular. Certamente este ponto especfico: a jornada do comerciante nunca pode ser concluda naqueles lugares ideais [...] onde tudo bem estar, transparente e definido. Ele nunca conhecer a felicidade tranqila de pertencer a um lugar fixo (Traduo nossa)36.

Na verdade, no se trata de antagonismos, porm, como vimos, de paradoxos e dilemas. Todo o problema surge quando um dos plos da contradio sobressai, em detrimento do outro. Quando unidimensionalmente o momento da adaptao ou a da autonomia se absolutiza, d sinal de que a formao j no mais possvel37.

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[...] capitalism rationality cannot generate Bildung. Capital due to its purely quantitative nature, and the competition it is subject to, can be a fortune only in so far as it keeps growing. It must grow, and change form, and never stop: as Adam Smith observed in The Wealth of nations, the merchant is a citizen of no country in particular. Quite true, this is precisely the point: the merchants journey can never come to a conclusion in those ideal places [...] where everything is well-being, transparency and concreteness. He will never now the quite happiness of belonging to a fixed place. (MORETTI, 1987, p. 26). 37 Cf. PUCCI, 1997, p. 91.

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CAPTULO II

Educao e Formao Cultural (Bildung): confluncias e tensesA tentativa de uma genealogia do conceito de formao cultural, desenvolvida acima, ao ressaltar alguns princpios constitutivos desse conceito, leva-nos a pensar qual sua relao com a educao na modernidade. Desse modo, aps delimitar o alcance do projeto da formao e, assim, definir seu campo de atuao, o texto a seguir elabora uma primeira definio para o conceito moderno de educao. Demarcar as confluncias e tenses desses dois projetos, formao e educao, mostrando at onde podemos chamar de formativo o intuito pedaggico da educao, o objetivo deste captulo. Essa discusso direcionada para uma anlise da concepo de tempo e de temporalidade implicada em ambos os conceitos. Entender que o descompasso entre os projetos da formao cultural e da educao modernas expressa o carter paradoxal da prpria modernidade significa reconhecer os limites de suas ambies. Avanando um pouco na exposio deste tema, permitam-nos formular desde j uma definio elementar de nosso problema, neste texto: em que momento da histria moderna o projeto da formao cultural coincide com o papel da educao na sociedade? Dito de outro modo, a escola pode, ou pde em algum momento de sua histria recente, incumbir-se da tarefa de formar o homem? A seo seguinte constitui uma tentativa de responder a essa pergunta.

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1. Os dois edifcios

Antonio Candido, ao relatar sua vida escolar no curso primrio brasileiro, lembra risonho a lio decorada pelos alunos e obstinadamente copiada pelo professor, no quadro negro: um poema de Valentim Magalhes, no qual um velho criminoso empedernido, olhando pelas grades de sua priso, v sarem as crianas de uma escola em frente e murmura, desolado: Eu nunca soube ler. O poema chamava-se Os dois edifcios (CANDIDO, 1980, pp. 83-7). Dentro desse contexto, fcil lembrar da adivinhao proposta por Michel Foucault, na V Conferncia de A verdade e as formas jurdicas (2002): Darei o regulamento sem dizer se uma fbrica, uma priso, um hospital psiquitrico, um convento, uma escola, um quartel; preciso adivinhar de que instituio se trata38. Assim como o exemplo de Antonio Candido, algum poderia dizer que aquela fbrica-priso relatada por Foucault desenha na verdade uma caricatura, ou algo que simplesmente faz rir. Retomar a gnese dos sistemas educacionais nas sociedades ocidentais modernas, a partir do outro edifcio significa pressupor de antemo o ponto em comum entre esses dois projetos: sua estrutura de vigilncia e controle (FOUCAULT, 2002, p. 113). O desaparecimento de uma sociedade que vivia sob a forma de uma comunidade espiritual e religiosa, como a sociedade grega antiga, por exemplo, e o aparecimento de uma sociedade38

Era uma instituio onde havia 400 pessoas que no eram casadas e que deveriam levantar-se todas as manhs s cinco horas; s cinco e cinqenta deveriam ter terminado de fazer a toilette, a cama e ter tomado caf; s seis horas comeava o trabalho obrigatrio, que terminava s oito e quinze da noite, com uma hora de intervalo para o almoo; as oito e quinze, jantar, orao coletiva; o recolhimento aos dormitrios era s nove horas em ponto. O domingo era um dia especial, o artigo cinco dessa instituio dizia: Queremos guardar o esprito que o domingo deve ter, isto , dedic-lo ao cumprimento do dever religioso e ao repouso. Entretanto, como o tdio no demoraria a tornar o domingo mais cansativo do que os outros dias da semana, devero ser feitos exerccios diferentes, de modo a passar este dia crist e alegremente; de manh, exerccios religiosos, em seguida, exerccios de leitura e de escrita e finalmente recreao s ltimas horas da manh; tarde, catecismo, s vsperas, e passeio depois das quatro horas, se no fizesse frio. Caso fizesse frio, leitura em comum. Os exerccios religiosos e a missa no eram assistidos na igreja prxima, porque isso permitiria aos pensionistas desse estabelecimento terem contato com o mundo exterior [...] os servios religiosos tinham lugar em uma capela construda no interior do estabelecimento [...] os fiis de fora no eram sequer admitidos. Os pensionistas s podiam sair do estabelecimento durante os passeios de domingo, mas sempre sob vigilncia do pessoal religioso. Este pessoal vigiava os passeios, os dormitrios e assegurava a vigilncia e a explorao das oficinas. O pessoal religioso garantia, portanto, no s o controle do trabalho e da moralidade, mas tambm o controle econmico. Estes pensionistas no recebiam salrio [...], mas um prmio que somente lhes era dado no momento em que saam [...] O silncio lhes era imposto sob pena de expulso. De modo geral, os dois princpios de organizao, segundo o regulamento, eram: os pensionistas nunca deveriam estar sozinhos no dormitrio, no refeitrio, na oficina, ou no ptio, e deveria ser evitada qualquer mistura com o mundo exterior, devendo reinar no estabelecimento um nico princpio. Que instituio era esta? No fundo a questo no tem importncia, pois poderia ser indiferentemente qualquer uma: uma instituio para homens ou para mulheres, para jovens ou para adultos, uma priso, um internato, uma escola ou uma casa de proteo. No um hospital, pois fala-se muito em trabalho. Tambm no um quartel, pois se trabalha. Poderia ser um hospital psiquitrico, ou mesmo uma casa de tolerncia. Na verdade, era simplesmente uma fbrica. Uma fbrica de mulheres que existia na regio do Rdano e que comportava quatrocentas operrias (FOUCAULT, 2002, p. 108-109).

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estatal, em que todos esto submetidos a uma nica lei e a um nico mando, faz da cultura moderna uma cultura individualista e integrada. No preciso efetuar um longo percurso pela histria da educao para saber que a origem do sistema educacional, que consideramos hoje como tradicional, coincide com construo dos Estados nacionais e, conseqentemente, com as exigncias econmicas de consolidao do capitalismo. Para se adaptar s necessidades do sculo da razo, os esforos das autoridades aristocrticas culminaram numa frmula imperativa: a educao um processo de socializao com o objetivo de consolidar a construo da nao39. A nao uma construo social e, como tal, ela pode e deve ser ensinada e aprendida. Cada cidado deve receber na escola o tipo de formao mais adequado para fortalecer os interesses do Estado-Nao40. Tornar-se til e dar os melhores rendimentos possveis para o sistema econmico e para o bem-estar social implicava a adeso nao acima de qualquer outro vnculo, seja religioso, cultural ou tnico. Acentuavam-se, portanto, os aspectos pragmticos da educao41. De inspirao fundamentalmente pedaggica, compreendendo a si mesma como o principal meio, se no o nico (PRADO, 1985, p. 100), da educao da humanidade, a Filosofia das Luzes concebe a escola como o principal instrumento de instaurao da boa sociedade. A migrao semntica do sentido interior, psquico e espiritual da Bildung para o sentido de construo de uma ordem exterior, acarretava a interiorizao de determinadas normais sociais, mediante a adeso a determinadas entidades socialmente construdas. Nesse sentido, a escola passa a ser, ao lado de tantas outras entidades (famlia, priso, indstria, hospital), uma instituio encarregada de difundir as normas de coeso social, ou seja, a aceitao de regras destinadas a garantir a ordem pela adeso s normas dominantes (TEDESCO, 2004, p. 27). Essa moral estatal encarregou-se de transformar o espao coletivo em um espao pblico, em outras palavras, em um espao institucionalizado. O que opera aqui um procedimento muito bem pensado e articulado: no como membro de uma coletividade que o indivduo visto. Ao contrrio, justamente por ser um indivduo que ele se encontra colocado em uma instituio (FOUCAULT, 2002, p. 113). , como observa Michel Foucault, uma rede de seqestro42 que se exerce sobre os indivduos como uma39 40

Cf. TEDESCO, 2004, p. 26. Cf. BOLLE, 1997, p. 16. 41 Cf. Ibidem, p. 16. 42 Pode-se, portanto, opor a recluso do sculo XVIII, que exclui os indivduos do crculo social, recluso que aparece no sculo XIX, que tem por funo ligar os indivduos aos aparelhos de produo, formao, reformao ou correo dos produtores. Trata-se, portanto, de uma incluso por excluso. Eis porque oporei a recluso do seqestro recluso do sculo XVIII, que tem por funo essencial a excluso dos marginais ou o reforo da

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forma de poder fundamentado na exigncia de tornar social ou pblico a singularidade e interioridade dos indivduos. Para Foucault (2002, p. 113),[...] nas instituies que se formam no sculo XIX no de forma alguma na qualidade de membro de um grupo que o indivduo vigiado; ao contrrio, justamente por ser um indivduo que ele se encontra colocado em uma instituio, sendo esta instituio que vai constituir o grupo que ser vigiado. enquanto indivduo que se entra na escola, enquanto indivduo que se entra no hospital ou na priso. A priso, o hospital, a escola, a oficina no so formas de vigilncia do prprio grupo. a estrutura de vigilncia que, chamando para si os indivduos, tomando-os individualmente, integrando-os, vai constitu-los secundariamente enquanto grupo.

A relao mtua entre vida privada e mundo pblico um par conceitual caracterstico da sociedade moderna anuncia o quiasma a ser enfrentado, quando nos propomos refletir sobre a constituio da sociedade moderna: a funo do processo de institucionalizao integrar a sociedade em uma rede pblica, que de modo algum pode ser tomada como uma coletividade em sentido genuno. A perda das referncias coletivas traduz-se na perda da prpria dimenso daquilo que chamamos senso comum, aquela espcie de juzo em virtude do qual estamos adaptados a um nico mundo comum a todos ns43. O desaparecimento daquilo que Hannah Arendt (1988) designa por senso comum, nos dias atuais, faz com que, pouco a pouco, a histria do si preencha o papel deixado vago pela histria comum. Os ideais da formao cultural de autonomia e emancipao, ironicamente, so atingidos, porm s avessas: o individualismo atual integra o homem moderno numa rede de socializao tal que sua identidade constituda custa de sua prpria singularidade. a era da indstria cultural44. Embora o individualismo possa ser visto como um dos aspectos mais libertadores da modernidade, como o considera Paulo Srgio Rouanet45 e Lima Vaz46

, ele mantm uma

marginalidade, e o seqestro do sculo XIX que tem por finalidade a incluso e a normalizao (FOUCAULT, 2002, p. 114). 43 Como observa Hannah Arendt, em seu ensaio A crise na educao (1988), sempre que, em questes polticas, o so juzo comum fracassa, ou renuncia a tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espcie de juzo , na realidade, aquele senso comum em virtude do qual ns e nossos cinco sentidos individuais esto adaptados a um nico mundo comum a todos ns, e qual a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais o sinal mais seguro da crise atual (ARENDT, 1988, p. 227). 44 Sobre o conceito de indstria cultural, consultar ADORNO; HORKHEIMER, 1985. Segundo os autores, a indstria cultural reflete a irracionalidade objetiva da sociedade capitalista, como racionalidade da manipulao das massas. Assim, a indstria cultural, o mais inflexvel de todos os estilos, revela-se justamente como meta do liberalismo, ao qual se censura a falta de estilo [...] Quem resiste s pode sobreviver integrando-se (1985, p. 123). 45 Segundo Rouanet, o iluminismo considera o aparecimento do indivduo uma ocorrncia epocal na historia da humanidade. um dos aspectos mais libertadores da modernidade. Ele permite pela primeira vez na histria pensar o homem como ser independente de sua comunidade, de sua cultura, de sua religio. O homem deixa de ser seu cl, sua cidade, sua nao e passa a existir por si mesmo, com suas exigncias prprias, com seus direitos intransferveis felicidade e auto-realizao (ROUANET, 1993, p. 35).

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relao de alienao com o social, na medida em que sua verso atual absorvida pela indstria cultural, para a qual o indivduo ilusrio (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144). Segundo o diagnstico de Theodor Adorno e Max Horkheimer, a indstria cultural realizou maldosamente o homem como ser genrico (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 136). Desse modo,

O individual reduz-se capacidade do universal de marcar to integralmente o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo [...] a pseudoindividualidade um pressuposto para compreender e tirar da tragdia sua virulncia: s porque os indivduos no so mais indivduos, mas sim meras encruzilhadas das tendncias do universal, que possvel reintegr-los totalmente na universalidade. A cultura de massas revela assim o carter fictcio que a forma do indivduo sempre exibiu na era da burguesia, e seu nico erro vangloriar-se por essa duvidosa harmonia do universal e do particular (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 145).

Nesse sentido, esses autores chegam a afirmar que o princpio da individualidade estava cheio de contradies, desde o incio, de sorte que ele jamais chegou a se realizar de fato, permanecendo no estgio do mero ser genrico. Assim, destinada a perpetuar nos indivduos o modelo de sua cultura, isto , a falsa identidade entre o universal e o particular47, a indstria cultural reduziu a histria coletiva histria do si, enfatizando, pois, a autoexpresso, o respeito liberdade pessoal, a expanso da personalidade em vista da deciso de perseguir apenas fins privados. Essa maneira de perceber a realidade traz conseqncias importantes para o processo de socializao, transmite a idia de que temos o direito de exercer sem restries nossa liberdade de escolha. Decorre dessa situao a recusa do homem moderno em assumir sua responsabilidade pelo mundo48, engendrando da a atual crise da autoridade49. Sempre crescente e cada vez mais profunda, essa crise, como sublinha Arendt, acompanhou o desenvolvimento do mundo moderno. Comumente confundida como alguma espcie de poder ou violncia, a autoridade, nos termos defendidos por Arendt, desapareceu do mundo moderno. Para a autora, uma vez que da possibilidade de viver experincias autnticas, comum a todos, restaram apenas os problemas elementares da convivncia humana aqueles prprios ao mbito da necessidade, em que a preservao da vida sua expresso latente (ARENDT, 1988, p. 158-159) , tanto

46 47

Como indicamos no captulo anterior, supra, p.26. Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113. 48 Cf. ARENDT, 1988, p. 239. 49 Segundo Arendt, historicamente, a perda da autoridade meramente a fase final, embora decisiva, de um processo que durante sculos solapou basicamente a religio e tradio (ARENDT, 1988, p. 130).

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prtica, quanto teoricamente, no estamos mais em condies de saber o que a autoridade realmente (ARENDT, 1988, p. 128). Se essa crise da autoridade , em sua origem, poltica por excelncia, ela se espalhou por todas as esferas da sociedade, da criao dos filhos educao. Aquela legitimidade do direito de cada um definir e escolher sua prpria vida pressupe que os adultos adotem diante de seus filhos uma conduta menos autoritria, menos impositiva. Nas palavras de Arendt:

como se os pais dissessem todos os dias: Nesse mundo, mesmo ns no estamos a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso tambm so mistrios para ns. Vocs devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocs no tm o direito de exigir satisfaes. Somos inocentes, lavamos nossas mos por vocs. (ARENDT, 1988, p. 242).

A idia de apresentar uma viso de mundo, algo que ensina o sentido da coletividade, isto , o sentido de uma histria para alm da histria pessoal, descartada como sendo conservadora e autoritria. Em seu lugar, como enfatiza Arendt, o mundo da infncia, processo que tenta conscientemente manter a criana o maior tempo possvel no nvel da primeira infncia, absolutizado, tomado em si mesmo, num crculo vicioso tal que a criana excluda do mundo dos adultos e condenada autoridade de seu prprio grupo. A situao coloca em destaque uma cena difcil: a criana, em sua singularidade, constantemente confrontada com sua posio perante o grupo ao qual pertence; , segundo Arendt, a tirania da maioria, condenando a criana a assumir a postura ditada pela autoridade da maioria das crianas que integram seu prprio grupo. As inmeras conseqncias desse mundo da infncia diagnosticado por Arendt podem ser sentidas na atualidade. um mundo, como recentemente descreveu Contardo Calligaris (2007, p. 1), em que a permissividade o melhor remdio contra a inevitvel insegurana social50; e a palavra de ordem que o organiza pode ser descrita nos seguintes termos: no h limites para voc. Baseada na lgica da vida privada, para a qual os direitos e nunca os deveres importam, a autoridade ditada pela tica da indstria cultural, quer dizer, pela tica

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Referindo-se ao espancamento de uma domstica confundida com uma prostituta por um grupo de rapazes da classe mdia brasileira, Calligaris observa a defesa dos pais diante dos crimes de seus filhos: prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que tm estudo, que tm carter, junto com uns caras desses? (CALLIGARIS, 2007, p. 1). Ora, eles estavam brincando, poderiam dizer seus pais, assim como brincava o garoto que atirou com seu revlver de chumbinho contra um operrio e ouve sua me protestar indignada, no contra seu ato, contra a polcia que levou o jovem preso: uma criana, ele estava brincando. Diante de situaes como estas, o poema citado por Candido, no comeo deste texto, torna-se, de fato, risvel. Ele revela a crena numa tarefa de redeno que a modernidade depositou na escola e a sua conseqente impotncia, em relao funo, desde sempre assumida como sua, de transformao do mundo.

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dos direitos do consumidor. Nesse sentido, Maria Rita Kehl descreveu essa crise da autoridade e esse mundo da infncia diagnosticados por Arendt:

[...] que valores, que representaes, no imaginrio social, sustentam o exerccio necessrio da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma me, hoje, se sentem autorizados a coibir ou mesmo punir seus filhos? A Autoridade no um atributo individual das figuras paternas. A autoridade dos pais e da escola, que tambm anda em apuros [...] deriva de uma lei simblica que interdita os excessos de gozo. Uma lei que deve valer para todos [...] Mas em nome de que no imaginrio social, a lei simblica se transmite? J no falamos em Deus, ptria e famlia [...] No lugar deles, no entanto, que outros valores ligados vida pblica foram inventados pela sociedade brasileira? Em nome de que um pai diz no pode? Responde ele a inevitvel pergunta: No posso por qu? Ocorre que a palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo (onde todos so chamados, mas poucos os escolhidos) : voc pode. Voc merece. No h limites para voc, cliente especial. Que o apelo ao narcisismo mais infantil vise a mobilizar apenas a vontade de comprar objetos no impede que narcisismo e infantilidade governem a atitude de cada um diante de seus semelhantes principalmente quando o tal semelhante faz obstculo ao imperativo do gozo. (KEHL, 2007, p.1).

Ora, em que medida o sentido coletivo da histria poderia ser apreendido dessa situao bizarra? Se at mesmo a esfera pr-poltica, ou seja, a prpria famlia, acredita que no tem o direito de afirmar determinadas idias e, com elas, sua prpria identidade a seus filhos, como a educao escolar lida com o problema da perda geral de autoridade? Em conseqncia, que viso de mundo a educao moderna pode transmitir, seno a prpria afirmao: no h limites para voc? Arendt (1988) analisa essa questo por dois ngulos: o problema da autoridade na vida pblica ou poltica e o problema da autoridade para a atividade escolar. Naquela esfera, a autoridade no representa mais nada ou pode ser facilmente contestada. O grave dessa situao que, ao contrrio do que se imaginava, quer dizer, ao invs de todos os homens assumirem sua responsabilidade pelo mundo, j que conquistamos a duras penas o sufrgio universal, toda e qualquer responsabilidade pelo mundo est sendo rejeitada (ARENDT, 1988, p. 240). Evidentemente, como dissemos, a perda da autoridade na vida pblica e poltica absorvida pelos mbitos privados da famlia e da escola. A educao, por sua vez, assume essa postura, ou seja, se a autoridade educacional derrubada, a histria coletiva da humanidade, o senso comum prprio ao sentido coletivo daquilo que chamamos humanidade absorvido pelos diversos individualismos e, conseqentemente, por uma viso de mundo da ordem da integrao. Assim, os detalhes particulares de circunstncias e acontecimentos e sua ordem na temporalidade das vivncias individualistas tornam-se a essncia da histria. A situao da educao moderna diante da perda da autoridade no poderia ser mais lamentvel: como educar, se nos recusamos a assumir a responsabilidade coletiva pelo 36

mundo? Essa recusa diz respeito tambm ao modo pelo qual a modernidade se coloca perante a tradio e, nessa perspectiva, perante o passado. Se entendermos que a escola responsvel pela tarefa de introduzir a criana no mundo, e a autoridade do professor advm justamente da responsabilidade que ele assume por este mundo (ARENDT, 1988, p. 239), saberemos que a educao aquela instncia mediadora entre o velho e o novo; tanto o respeito pelo passado quando por aquilo que est por vir um pressuposto essencial ao seu prprio conceito. A conhecida querela o novo versus o velho , quando integrada perda da autoridade e da dimenso do passado, concebe uma nova noo de sujeito, a qual poderia, caricaturalmente, ser representada, no mau sentido, pela personagem Alice, de Alice no pas das maravilhas numa cena especfica: quando ela se v diante de um caminho que se faz conforme ela anda, de tal modo que, a cada passo, tanto o caminho que ficou para trs como aquele que vem a seguir so apagados, deixando-a sempre caminhando sem sair do lugar. Por isso, em educao, afirmamos com Arendt, a responsabilidade pelo mundo assume inevitavelmente no apenas a forma de autoridade como tambm de conservadorismo51, no sentido de conservao, pois, afinal, um mundo comum existe para alm das diversas pseudoindividualidades. Interessante observa no texto Teoria da semicultura como Adorno, de certo modo, tambm aborda esse tema, ao ressaltar que a prpria idia da formao, idia que abrange e, ao mesmo tempo, transcende a educao, em sua essncia antinmica:

[...] a formao tem como condies a autonomia e a liberdade. No entanto, remete sempre a estruturas pr-colocadas a cada indivduo em sentido heteronmico e em relao s quais deve submeter-se para formar-se. Da que, no momento mesmo em que ocorre a formao, ela j deixa de existir. Em sua origem j est, teleologicamente, seu decair. (ADORNO, 1996, p. 397).

De acordo com o filsofo, as reformas escolares, ao descartarem a autoridade e com ela a tradio esqueceram-se de que a liberdade est vinculada a um aprofundamento espiritual que depende da autoridade, sem a qual a liberdade, segundo Adorno (1996), atrofiase. Podemos dizer que desse atrofiamento nasce aquilo que Arendt chamou de autonomia do mundo da infncia. O personagem principal desse cenrio o professor, apenas um passo a frente da classe em conhecimento (1988, p. 231); sua funo apenas garantir que o

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Cf. ARENDT, 1988, p. 242. Sobre a diferenciao entre a autoridade na vida pblica e a autoridade na educao, Arendt (1988, p. 246) faz a seguinte observao: [...] cumpre divorciarmos decididamente o mbito da poltica dos demais, e acima de tudo do mbito da vida pblica e poltica, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhes so apropriados, mas no possuem validade geral, no devendo reclamar uma aplicao generalizada no mundo dos adultos.

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mtodo do conhecimento seja apreendido, ou seja, sua inteno inculcar uma habilidade e no uma aprendizagem. Quando a escola no consegue mais exercer sua essencial atividade, isto , permitir a passagem da vida privada, familiar, ao mundo pblico, cria uma situao tal que livra o professor-adulto da necessidade do ensino da prpria matria na qual este deveria ter sido formado. Ora, a situao bem conhecida: a criana deve aprender fazendo. Portanto, coloca-se o aluno diante de uma folha em branco e, ento, ele solicitado pelo professor de redao ou educao artstica, por exemplo, a espontaneamente (o que significa, simplesmente, sem orientao alguma) escrever seu texto ou pintar seu desenho. Trata-se de uma situao que, de modo algum, pode ser identificada com aquele momento de espontaneidade ao qual se refere Adorno, nutrido pela comunho com a experincia e o conceito52. Ao contrrio, as atividades escolares so reduzidas mera improvisao, forando a criana a uma atitude de passividade. Toda espcie de estranhamento, aquela relao natural diante de tudo o que novo e diferente, absorvida por um empirismo grosseiro, capaz de afirmar que o sol do tamanho de nossa prpria mo. Estamos diante dos princpios do pragmatismo, quando a pedagogia transforma-se numa espcie de prtica sem teoria. A tcnica a essncia desse saber, que no visa a conceitos e imagens, mas apenas ao mtodo, isto , operation, ao procedimento eficaz (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 20). Quando a pedagogia concebe a si mesma como uma cincia do ensino, em geral, substituindo o aprendizado pelo fazer, ela desobriga a formao dos professores na prpria matria a ser lecionada e, assim, abandona os estudantes ao seu prprio mundo, aquele do s possvel conhecer e compreender aquilo que ns mesmos fizemos (ARENDT, 1988, p. 232). Um sujeito (entre aspas) nasce da: aquele que s pode encontrar uma identidade na narrativa de sua prpria histria. Como diz Adorno, [...] a autonomia no teve tempo algum de constituir-se e a conscincia passou diretamente de uma heteronomia a outra. No lugar da autoridade da Bblia, instaura-se a do domnio dos esportes, da televiso e das histrias reais, que se apiam na pretenso de literalidade e facticidade aqum da imaginao produtiva (ADORNO, 1996, p. 388).

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Para Adorno, a perda da tradio resultou num estado de carncia de imagens e formas, no permitindo, ento, a constituio da subjetividade, a qual depende da experincia e do conceito. Em suas palavras, a experincia a continuidade da conscincia em que perdura o ainda no existente e em que o exerccio e a associao fundamentam uma tradio no indivduo fica substituda por um estado informativo pontual, desconectado, intercambivel e efmero, e que se sabe ficar borrado no prximo instante por outras informaes. Em lugar do temps dure, conexo de um viver em si relativamente unssono que se desemboca no julgamento, coloca-se um isso sem julgamento [...] A semiformao uma fraqueza em relao ao tempo, memria, nica mediao que realiza na conscincia aquela sntese da experincia que caracterizou a formao cultural em outros tempos. [...] O conceito fica substitudo pela subsuno imperativa quaisquer clichs j prontos, subtrados correo dialtica [...] (ADORNO, 1996, p. 405-406).

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Esse pragmatismo, associado imediatamente a duas categorias que esto intimamente relacionadas, seqencialidade e hierarquizao, edifica a base institucional da educao escolar moderna. Como considera Juan Carlos Tedesco (2004, p. 25):A seqncia est vinculada capacidade evolutiva dos sujeitos, mas tambm a hierarquia das posies sociais. O sistema educacional organizou-se em graus sucessivos associados a determinadas idades. Da mesma forma, a ascenso nos graus e nos nveis implicava o acesso a estgios cada vez mais complexos de compreenso da realidade e a posies sociais de maior prestgio e poder.

A escola moderna foi (ou ainda ?) sustentada pelo seguinte axioma: dar a cada um a educao que corresponde a seu lugar na sociedade. um raciocnio que nos coloca no centro de nossa prpria atualidade: a ascenso na escala da hierarquia educacional implica uma ascenso na hierarquia social. Destinado a impor uma concepo comum do mundo e da sociedade, o projeto educacional moderno foi fundamentado numa concepo de tempo regida por categorias como progresso, desenvolvimento, evoluo, ascenso. A iluso de que, quando a instruo fosse geral, acabariam os males da sociedade como se a educao pudesse substituir as reformas essenciais na estrutura econmica e social, que, estas sim, so requisitos para tentar a melhoria da sociedade e, portanto, dos homens permeava toda a educao e informava a idia de escola na modernidade. Era como se, usando as palavras de Candido, a mancha do pecado original pudesse ser lavada e o paraso, em vez de ter existido no passado, passasse a ser uma certeza gloriosa do futuro (CANDIDO, 1980. p. 83-7). Resulta da a apologia da ideologia da adaptao, para a qual o verdadeiro objetivo e funo do saber melhor prover e auxiliar a vida. Ora, o impasse que ele no resolve os problemas de ordem imediata, mas, ao contrrio, adia-os para um amanh que nunca se realiza, corroborando, assim, o discurso como uma fantasmagoria, quer dizer, como ideologia da inteno e a realidade como conformao ao existente. Na sua pretenso de educar, uma funo que no inteiramente sua, a escola acredita formar seus jovens e crianas. Todavia, a formao que se d dentro de suas quatro paredes algo controlado, vigiado e normatizado, como observa Adorno (1996, p. 399), exposto agressiva luz das avaliaes e medido apenas pela sua finalidade. Na sua ambio por ser detentora da formao cultural, a educao escolar acaba por decomp-la naquilo que Adorno chamou de semiformao (Halbbildung), um estado de conscincia postulado pelos princpios da identificao imediata e se assumindo como integrada ao carter imediato da cultura moderna, ou seja, indstria cultural.

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Enfim, baseada na projeo de um futuro sempre melhor, como a educao moderna lida com a dimenso temporal do passado e do presente? Rememorar a histria mais recente (um sculo ou dois) das instituies pedaggicas, por essa perspectiva, significa coloc-la luz no apenas de uma reflexo sobre a dimenso temporal que a escola articula e pressupe, mas, sobretudo, de uma indagao sobre o lugar da educao na modernidade. Esse tema ser abordado no Captulo V desta pesquisa, quando os conceitos benjaminianos de experincia e rememorao, apresentados a seguir (nos Captulos III e IV), tero sido estudados em funo de uma reflexo sobre o carter formativo que os compe.

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CAPTULO III

O conceito de experincia benjaminiano (Erfahrung) ou sobreviver culturaA ousadia de assumir o leme e guiar a histria para metas bem definidas deu ao homem moderno a forma acabada da realizao de sua idealizao: figuras disformes e indeterminadas como o mosaico e o labir