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Passageo• A massa em Baudelaire. Ela se coloca como um véu diante do flåneur: é o mais novo alucinógeno do solitário. Ela apaga, em segundo lugar, todos os rastros do indivíduo: é o mais novo refúgio do proscrito. Ela é, finalmente, o mais novo e mais insondável labirinto no labirinto da cidade. Através dela, traços cónicos até então desconhecidos imprimem-se na imagem da cidade. IM 16, 31 A base social daflånerie é o jornalismo. Como flâneur, o literato dirige-se ao mercado pôr-se à venda. Isto é certo, mas não esgota de maneira alguma o aspecto social da/ånerie "Sabemos", diz Marx, "que o valor de cada mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção." (Marx, Das Kapital, ed. org. por K. Korsch, Berlim, 1932, p. 188). O jornalista comporta-se como um flâneur, como se ele fosse consciente disso. O tempo de trabalho socialmente necessário à produção de sua força de trabalho específica é, de fato, relativamente elevado; mas, ao cuidar de fazer com que suas horas de ócio no boulevard apareçam como uma parte desse tempo, ele o multiplica, aumentando assim o valor de seu próprio trabalho. A seus olhos, e muitas vezes também aos olhos de seus patrões, este valor adquire qualquer coisa de fantástico. Na verdade, isto não aconteceria se ele não se encontrasse na situação privilegiada de submeter à avaliação pública e geral o tempo de trabalho necessário para a produção de seu valor de uso, sendo que ele passa e, por assim dizer, exibe esse tempo no boulevard. [M 16, 41 A imprensa gera uma profusão de informações, cujo efeito estimulante é tanto maior quanto menor for o seu valor de uso. (Apenas a ubiqüidade do leitor possibilitaria a sua utilização; e essa ilusão também é, de fato, produzida.) A relação real dessas informações com a existência social é determinada pela dependência dessa indústria da informação dos interesses da bolsa de valores, com os quais ela se alinha. Com o desenvolvimento da indústria da informação, o trabalho intelectual se assenta de forma parasitária sobre todo trabalho material, assim como o capital cada vez mais coloca todo trabalho material sob sua dependência. [M 16a, 11 A observação pertinente de Simmel sobre a inquietude do habitante da cidade grande provocada pela proximidade dos outros, que ele, na maioria dos casos, sem ouvir <Cf. M 8a, mostra que na origem das fisiognomonias <leia-se: fisiologias> havia, entre outros, o desejo de dissipar e minimizar esta inquietude. De outra forma, a fantástica pretensão daqueles pequenos livros dificilmente teria sido aceita. [M 16a, 2) Tenta-se dominar as novas experiências da cidade dentro do quadro das antigas experiências da natureza transmitidas pela tradição. Daí os esquemas da floresta e do mar (Meryon e Ponson du Terrail). (M 16x 31 Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós. IM 16a,

Walter Benjamin. Passagens Arquivo M

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Benjamin, Livro das Passagens

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Passageo•

A massa em Baudelaire. Ela se coloca como um véu diante do flåneur: é o mais novoalucinógeno do solitário. — Ela apaga, em segundo lugar, todos os rastros do indivíduo: é omais novo refúgio do proscrito. — Ela é, finalmente, o mais novo e mais insondável labirinto

no labirinto da cidade. Através dela, traços cónicos até então desconhecidos imprimem-se

na imagem da cidade.IM 16, 31

A base social daflånerie é o jornalismo. Como flâneur, o literato dirige-se ao mercado

pôr-se à venda. Isto é certo, mas não esgota de maneira alguma o aspecto social da/ånerie

"Sabemos", diz Marx, "que o valor de cada mercadoria é determinado pela quantidade de

trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário

à sua produção." (Marx, Das Kapital, ed. org. por K. Korsch, Berlim, 1932, p. 188). O

jornalista comporta-se como um flâneur, como se ele fosse consciente disso. O tempo de

trabalho socialmente necessário à produção de sua força de trabalho específica é, de fato,

relativamente elevado; mas, ao cuidar de fazer com que suas horas de ócio no boulevard

apareçam como uma parte desse tempo, ele o multiplica, aumentando assim o valor de seu

próprio trabalho. A seus olhos, e muitas vezes também aos olhos de seus patrões, este valor

adquire qualquer coisa de fantástico. Na verdade, isto não aconteceria se ele não se encontrasse

na situação privilegiada de submeter à avaliação pública e geral o tempo de trabalho necessário

para a produção de seu valor de uso, sendo que ele passa e, por assim dizer, exibe esse

tempo no boulevard.[M 16, 41

A imprensa gera uma profusão de informações, cujo efeito estimulante é tanto maior quanto

menor for o seu valor de uso. (Apenas a ubiqüidade do leitor possibilitaria a sua utilização;

e essa ilusão também é, de fato, produzida.) A relação real dessas informações com a existência

social é determinada pela dependência dessa indústria da informação dos interesses dabolsa de valores, com os quais ela se alinha. — Com o desenvolvimento da indústria dainformação, o trabalho intelectual se assenta de forma parasitária sobre todo trabalho material,

assim como o capital cada vez mais coloca todo trabalho material sob sua dependência.[M 16a, 11

A observação pertinente de Simmel sobre a inquietude do habitante da cidade grandeprovocada pela proximidade dos outros, que ele, na maioria dos casos, vê sem ouvir <Cf. M8a, mostra que na origem das fisiognomonias <leia-se: fisiologias> havia, entre outros,o desejo de dissipar e minimizar esta inquietude. De outra forma, a fantástica pretensãodaqueles pequenos livros dificilmente teria sido aceita.

[M 16a, 2)

Tenta-se dominar as novas experiências da cidade dentro do quadro das antigas experiênciasda natureza transmitidas pela tradição. Daí os esquemas da floresta e do mar (Meryon ePonson du Terrail).

(M 16x 31

Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquiloque o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que aevoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós.

IM 16a,

10 491

"Sobretudo eu que, fiel ao meu velho hábito,Faço muitas vezes da rua gabinete de estudo,Quantas vezes, levando ao acaso meus passos sonhadores,Caio de imprevisto no meio dos pavimentadores!"

Barthélemy, Paris: Revue Satirique à M. G. Delessert, Paris, 1838, p. 8.[M 16a, 5)

"O Sr. Le Breton diz que os agiotas, os advogados e os banqueiros de Balzac às vezes separecem mais com implacáveis moicanos do que com parisienses, e ele acha que a influênciade Fenimore Cooper não foi muito favorável ao autor de Gobseck. Isto é possível, masdifícil de provar." Rémy de Gourmond, Promenades Littéraires, segunda série, Paris, 1906,pp. 117-118 ("Les maîtres de Balzac").

[M 17, 11

"O aglomerado de pessoas acotovelando-se umas contra as outras e a confusão do trânsitonas grandes cidades seriam insuportáveis sem ... um distanciamento psicológico. O fato deestarmos fisicamente tão próximos de um número tão grande de pessoas, como acontecena atual cultura urbana, faria com que o homem mergulhasse no mais profundo desespero,se aquela objetivaçáo das relações sociais não acarretasse um limite e uma reserva interiores.A monetarização das relações, manifesta ou disfarçada de mil formas, coloca uma distância

funcional entre os homens, que é uma proteçâo interior . . contra a proximidadeexcessivamente estreita." Georg Simmel, Philosophie des Geldes, Leipzig, 1900, p. 514.

[M 17, 21

Prólogo para Le Flåneur, jornal popular, publicação do escritório dos pregoeiros, Ruede Ia Harpe, 45 ... (primeiro e provavelmente único número, de 3 de maio de 1848):"Em nosso tempo, flanar entre baforadas de tabaco..., sonhando com os prazeres da

noite, parece-nos algo atrasado de um século. Não somos gente incapaz de compreender

os hábitos de uma outra época, mas afirmamos que, flanando, pode-se e deve-se pensar

nos seus direitos e deveres de cidadão. Os dias são de penúria e requerem todos os

nossos pensamentos, todas as nossas horas; flanemos, pois, mas flanemos como

patriotas." (J. Montaigu). Um exemplo precoce do deslocamento da palavra e do sentido

que faz parte dos artifícios do jornalismo.[M 17, 31

Anedota envolvendo Balzac: "Um dia em que ele e um de seus amigos se depararam com

um esfarrapado no bouhard, o amigo, estupefato, viu Balzac tocar com a mão sua própria

manga: ele acabava de sentir o rasgão que se abria no cotovelo do mendigo." Anatole

Cerfberr e Jules Christophe, Répertoire de Ia Comédie Humaine de H. de Balzac, Paris, 1887,

p. VIII (Introdução de Paul Bourget). [M 17, 41

Sobre a frase de Flaubert de que "a observação procede, sobretudo, através da imaginação", a

capacidade visionária de Balzac: "É importante ressaltar, antes de tudo, que esse poder de

visionário mal pôde ser exercido diretamente. Balzac não teve tempo de viver ... nunca dedicou

seu tempo para estudar os homens, como o fizeram Molière e Saint-Simon, através do

contato cotidiano e familiar. Dividia sua edstência em duas, escrevendo à noite, dormindo de

492 Passagens

dia." (p. X). Balzac fala de uma "perscrutação retrospectiva". "Ele se apoderava dos dados da

experiência de maneira verosímil e os jogava num cadinho de devaneios." A Cerfberr e J.

Chrßtophe, Répertoire de 1a Comédie Humaine, Paris, 1887 (introdução de Bourget,

(M p.

17a, XI).

11

Basicamente, a empatia pela mercadoria é empatia pelo próprio valor de troca. O flâneur é o

virtuose desta empatia. Ele leva para passear o próprio conceito de venalidade. Assim como

sua última passarela é a loja de departamentos, sua última encarnação é o homem-sanduíche.[M 17a, 21

Em uma cervejaria nas proximidades da Gare Saint-Lazare, Des Esseintes já se sente na

Inglaterra. [M 17a, 31

Sobre a embriaguez da empatia no flâneur, pode-se lançar mão de uma passagem magnífica

de Flaubert. Ela se origina provavelmente da época da elaboração de Madame Bovary.

"Hoje, por exemplo, homem e mulher ao mesmo tempo, amante e amada, eu passeei a

cavalo numa floresta, durante uma tarde de outono, sob folhas amareladas, e eu era os

cavalos, as folhas, o vento, as palavras que foram ditas, e o sol vermelho que fazia se

entrefecharem as pálpebras inundadas de amor..." Cit. em Henri Grappin, "Le mysticisme

poétique et l'imagination de Gustave Flaubert", Revue de Paris, 15 dez. 1912, p. [M 856.

17a,

Sobre a embriaguez da empatia no flâneur, tal como aparece também em Baudelaire, esta

passagem de Flaubert: "Vejo-me com muita nitidez em diferentes épocas da história... Fui

barqueiro no Nilo, cáften em Roma no tempo das guerras púnicas, depois orador grego em

Subura, onde fui devorado pelas pulgas. Morri durante uma cruzada, por ter comido uvas

em excesso nas praias da Síria. Fui pirata e monge, saltimbanco e cocheiro, talvez também

imperador do Oriente..." Grappin, op. cit., p. 624.17a, 51[M

1.

O inferno é uma cidade muito semelhante a Londres —

Uma cidade populosa e fumacenta;

Lá há todo tipo de pessoas arruinadas

E pouca ou nenhuma diversão

Pouca justiça e ainda menos compaixão.

11.

Lá há um palácio e uma canalização

Um Cobbett e um Castlereagh

Todo tipo de corporações que roubam

Com todo tipo de artifícios contra

Corporações menos corruptas que elas,

to 493

IIL

Lá há um que perdeu o juízo

Ou o vendeu, ninguém sabe qual

Ele vagueia como um fantasma encurvado

E quase tão magro quanto a fraude

Sempre mais rico e mais resmungão.

Lá há urna chancelaria; um rei;

Uma ralé de comerciantes; uma gangue

De ladrões, eleita por si mesma

Para representar ladrões iguais;

Um exército; e uma dívida pública.

A qual é um astucioso papel-moeda

Que simplesmente significa:

'Abelhas, guardai vossa cera — dai-nos o mel

E no verão plantaremos flores

Para o inverno.

Vl.

Lá há muitas falas sobre revolução

E grandes perspectivas para o despotismo

Soldados alemães — campos — confusão

Tumultos — loterias — fúria ilusão

Gim — suicídio e metodismo.

E também impostos, sobre vinho e pão

E carne e cerveja e queijo e chá

Com os quais são mantidos nossos patriotas

Que antes de cair na cama

Devoram dez vezes mais que os outros.

494 passagens

Há também advogados, juízes, velhos beberrões

Meirinhos, conselheiros

Bispos, pequenos e grandes caloteiros

Maus poetas, panfletários, especuladores

Soldados gloriosos

Homens cuja profissão é apoiar-se nas damas

Flertar e endeusar e sorrir

Até que tudo o que é divino numa mulher

Se torne atroz, fútil, vão e desumano

Crucificado entre um sorriso e um pranto.

Shelley, "Peter Bell the Third" ("Parte Terceira: Do manuscrito de Brecht.[M 181

Passagens esclarecedoras sobre a multidão: no conto "Des Vetters Eckfenster" [A janela de

esquina do primo], o visitante pensa que o primo só observa a agitação do mercado para

apreciar o jogo cambiante das cores. E pensa que, com o passar do tempo, isto deveria ser

cansativo. De maneira semelhante e mais ou menos na mesma época, Gogol escreve em

"O documento perdido" a respeito da feira de Konotopa: "Era tanta gente a caminho, que

tudo dançava diante dos olhos." Russische Gespenster-Geschichten, Munique, 1921, p. 69.(M 18a, 11

Tissot, para justificar sua sugestão de taxar os cavalos de luxo: "O barulho insuportável que

fazem dia e noite as vinte mil carruagens particulares circulando nas ruas de Paris, a trepidação

contínua das casas, e o desconforto e a insónia que daí resultam para a maior parte dos

habitantes de Paris merecem uma compensação. " Amédée de TISS0t, Paris et Londres Comparés,

Paris, 1830, pp. 172-173.[M 18a, 21

O flâneur e as vitrines: "Primeiro, há os flâneurs do boulevard, cuja existência toda se passaentre a igreja da Madeleine e o Théâtre du Gymnase. Cada dia é possível vê-los voltar a esse

estreito espaço que não ultrapassam nunca, examinando as vitrines, contando os consumidoresinstalados na entrada dos cafés... Eles saberão dizer se Goupil ou Deforge estão expondouma nova gravura, um novo quadro; se Barbedienne mudou de lugar um vaso ou umarranjo; conhecem de cor todos as tomadas dos fotógrafos e recitariam sem erro a seqüènciadas tabuletas comerciais." Pierre Larousse, Grand Dictionnaire Universel, Paris, 1872'vol. VIII, p. 436.

20 Cf. Percy Bysshe Shelley, Poetical Works, ed. org. por Thomas Hutchinson e G. M, Matthewsreimpressåo 1970), Londres, Oxford University Press, pp. 350-351, (UM)

provinciano de Vettets Eckfenster": "Desde aquele de

sobßdOO inimigo insolente e atrevido invadiu o pais", os costumes dos berlinenses se

urn

"Veja, caro primo, como hoje, ao contrário, o mercado oferece aestar e da tranqüilidade moral." E. T. A. Hoffmann,

Schrifien,do bern-XIV,

Stuttgart, 1839, pp. 238 e 240.

IM 19,

O homem-sanduíche é a última encarnação do flaneur.

ocaráter provinciano de "Des Vetters Eckfenster": o primo quer ensinar a seu visitanteSobre da arte de olhar".

os "princípios

(M 19.31

Em 7 de julho de 1838, G. E. Guhrauer escreve a Varnhagen a respeito de Heine: "Ele

sofria muito, na primavera, com problemas nos olhos. Da última vez, acompanhei-o em

echo dos boulevards. O esplendor e a vida desta via única em seu género provocavam

em mim uma admiração incansável, à qual Heine desta vez contrapôs enfaticamente o que

havia de horrível neste centro do mundo." Cf. Engels sobre a multidão. Heinrich Heine,

Gespräche, ed. org. por Hugo Bieber, Berlim, 1926, p. 183.[M 19, 41

"Esta cidade, onde reina uma vida, uma circulação, uma atividade sem igual, é também,

por um singular contraste, aquela onde se encontra o maior número de ociosos, preguiçosos

e vagabundos." Pierre Larousse, Grand Dictionnaire Universel, Paris, 1872, vol. VIII,

p. 436 (verbete: "Flâneur").[M 19, 51

Hegel à sua mulher, em 3 de setembro de 1827, de Paris: "Quando ando pelas ruas, as

pessoas se parecem com as de Berlim — vestidas da mesma maneira, praticamente os mesmos

rostos -, o mesmo aspecto, mas em meio a uma massa populosa." Briefe von und an Hegel,

ed. org. por Karl Hegel, Leipzig, 1887, Parte II, p. 257 (Werke, vol. XIX, tomo 2).IM 19, 61

Londres

"É um espaço imenso, de uma tal extensão

Que é preciso um dia de hirondelle para atravessá-lo,

E nada se vê, ao longe, senão o acúmulo

De casas, palácios, altos monumentos,

Plantados ali pelo tempo, sem muita simetria;

Negros e longos tubos, campanários da indústria,

De ventre quente e goela sempre escancarada

Exalando nos ares a fumaça em grandes baforadas;

Vastas cúpulas brancas e flechas góticas

Flutuando no vapor sobre pilhas de tijolos;

496 • passagens

Um rio inabordável, um rio revolto

Derramando seu lodo negro por desvios sinuosos,

Lembrando o terror das ondas infernais;

Gigantescas pontes de pilares descomunais

Como o Colosso de Rodes, através de seus arcos,

Deixando passar milhares de barcos;

Um mar infecto e sempre ondulante

Trazendo e levando as riquezas do mundo;

Canteiros em movimento, lojas abertas,

Capazes de guardar em seus flancos o universo;

Além, um céu atormentado, nuvem sobre nuvem;

O sol, como um morto, com um lençol sobre o rosto,

Ou, por vezes, nas vagas de um ar envenenado

Mostrando como um mineiro sua fronte escurecida,

Enfim, num amontoado de coisas, sombrio, imenso,

Um povo negro, vivendo e morrendo em silêncio,

Seres aos milhares seguindo o instinto fatal,

E correndo atrás do ouro para o bem e o mal."

Confrontar com a resenha escrita por Baudelaire sobre Barbier, sua descrição de Meryon,

poemas dos Tableaux Parisiens. Na poesia de Barbier, distinguem-se claramente dois elementos

— a "descrição" da cidade grande e a reivindicação social. Destes encontram-se apenas

vestígios em Baudelaire; em sua obra eles se uniram em um terceiro elemento totalmente

heterogêneo. Auguste Barbier, Jambes et Poèmes, Paris, 1841, pp. 193-194. O poema

pertence ao ciclo "Lazare", que data de 1837.[M 11

Se comparamos o texto de Baudelaire sobre Meryon com "Londres", de Barbier, surge a

pergunta se a imagem lúgubre da "mais inquietante das capitais", ou seja, a imagem de

Paris não foi fortemente determinada pelos escritos de Barbier e de Poe. Certamente Londres

estava à frente de Paris, quanto ao desenvolvimento industrial.IM 19a. 21

Início da "Seconde Promenade" de Rousseau: "Tendo, pois, formado o projeto de descrever

o estado habitual de minha alma na mais estranha condição em que se possa jamais encontrar

um mortal, não vi maneira mais simples e mais segura de executar tal empreendimentoque manter um registro fiel de meus passeios solitários e dos devaneios que os preenchem,quando deixo minha cabeça inteiramente livre e minhas idéias seguirem sua inclinaçãosem resistência nem constrangimento. Essas horas de solidão e meditação são as únicas dodia em que sou plenamente eu mesmo, senhor de mim, sem distraçóes, sem obstáculos, e

em que posso verdadeiramente dizer que sou o que a natureza quis." Jean-Jacques Rousseau'Les Rêveries du Promeneur Solitaire, precedido de Dix Jours à Ermenonville, de Jacques deLacretelle, Paris, 1926, p. 15. Esta passagem representa o elo entre a contemplaéo e o

Ê significativo

que

e

Rousseau — em seu ócio já frui a si mesmo, mas aindadança

01110(M 20. 1)

Bridge. Passei há algum tempo sobre a Ponte de LondresLondon 0 espetáculo de uma água rica, pesada e compleca, ornada de lençóis de nácar

o querbada por manchas de lama, confusamente carregada de tantos navios... Apoiei-me.„

ta, cuja riqueza eu não podia esgotar. Mas sentia atrás de mim 0 trotar e 0de todo um povo invisível, de cegos eternamente impelidos ao objeto imediato

inc—nvidas. Parecia-me que essa multidão não se compunha de seres individuais, cada

de suassua história, seu deus único, seus tesouros e suas taras, um monólogo e umcom

eufazia deles, sem o saber, à sombra de meu corpo, ao abrigo de meus olhos, umdestino; identicamente aspirados por não sei qual vazio, e cuja correntedegr,ios todos idênticos,

122-124.1930,

pp.[M 20, 2)

se baseia, entre outras coisas, no pressuposto de que o fruto do ócio é maisque 0 do trabalho. Como se sabe, 0 flâneur realiza "estudos". O do

secul XIX diz a esse respeito o seguinte: "Seu olho aberto e seu ouvido atento procuram

coisa diferente daquilo que a multidão vem ver. Uma palavra lançada ao acaso lhe revela um

desses traços de caráter que não podem ser inventados e que é preciso captar ao vivo; essas

fisionomias táo ingenuamente atentas vão fornecer ao pintor uma expressão com a qual ele

sonhava; um ruído, insignificante para qualquer outro ouvido, vai tocar o do músico e lhe

dar a idéia de uma combinação harmónica; mesmo ao pensador, ao filósofo perdido em seu

döaneio, essa agitação exterior é proveitosa: ela mistura e sacode suas idéias, como a

tempestade mistura as ondas do mar... Os homens de gênio, em sua maioria, foram grandes

flåneurs; mas flâneurs laboriosos e fecundos... Muitas vezes, é na hora em que o artista e o

poeta parecem menos ocupados com sua obra que eles estão mais profundamente imersos

nela. Nos primeiros anos deste século, via-se todo dia um homem dar a volta nas fortificações

da cidade de Viena, não importando o tempo que fizesse, neve ou sol: era Beethoven que,

flanando, repetia em sua cabeça suas admiráveis sinfonias antes de lançá-las no papel; para

ele, o mundo não existia mais; em vão o cumprimentavam respeitosamente em sua

caminhada - ele não percebia; seu espírito estava em outro lugar. Pierre Larousse, Grand

D:ctwnnaire Universel, Paris, 1872, vol. VIII, p. 436 (verbete: "Flåneur").IM 20a, 11

Sob os tetos de Paris: "Essas savanas de Paris eram formadas por telhados nivelados como uma

planície, mas que cobriam abismos povoados." Balzac, La Peau de Chagrin, Ed. Flammarion,p. 95. O fim de uma longa descrição da paisagen dos telhados de Paris.

(M 20a, 21

Descrição da multidão em Proust: "Todas essas pessoas que andavam sobre o dique„

ançando o corpo como se estivessem no convés de um navio (porque não sabiam ergueruma perna sem ao mesmo tempo mover o braço, virar os olhos, levantar os ombros,

498 Passagens

com um movimento balanceado 0 movimento que acabavam de do ladose

congestionar o rosto), e que, fingindo não ver as outras pessoas para mostrar que naosepreocupavam com elas, espiavam, porém, aquelas que andavam ao seu lado ou vinham

sentido inverso para não correrem o risco de se chocarem, batiam contra elas,

nelas, porque tinham sido reciprocamente o objeto da mesma atençãO secreta, disfarçada

sob o mesmo desdém aparente; o amor — e conseqüentemente o temor -- da multidão

sendo um dos mais poderosos estímulos em todos os homens seja porque PrOCuram

aos outros ou impressioná-los, seja para lhes mostrar que os desprezam." Marcel pr

À I'Ombre desJeunes Filles en Fleurs, vol. III, Paris, p. 36.21

[M 21.11

A crítica das Nouvelles histoires extraordinaims, publicada por Armand de Pontmartin em

Spectateur, de 29 de setembro de 1857, contém uma frase que, embora se referindo ao

caråter geral do livro, teria seu verdadeiro lugar em uma análise do "Homem da multidão",

"Estava bem ali, sob uma forma cativante, essa implacável dureza democrática e

não considerando mais os homens senão como números e, no fim, atribuindo aos números

alguma coisa da vida, da alma e do poder do homem." Mas será que esta frase não se refere

mais especificamente às Histoires Extraordinaires, publicadas anteriormente? (E onde se

encontra o "Homem da multidão"?) Baudelaire, (Euvres Complètes, Traduções: Nouvelles

Histoires Extraordinaires, Paris, ed. Crépet, 1933, p. 315. — A crítica no fundo é maldosa[M 21,21

O espírito do sonambulismo encontra seu lugar em Proust (não sob este nome): "Este

espírito de fantasia que faz tão bem às damas que dizem para si mesmas: 'como será divertido!'

e as faz terminar a noite de maneira deveras fatigante, buscando forças para acordar alguém

a quem finalmente não se sabe o que dizer, permanecer ao lado de sua cama por ummomento em seu casaco de soirée, para, ao constatar que é muito tarde, terminar indo para

casa deitar-se." Marcel Proust, Le Temps Retrouvé, vol. II, Paris, p. 185.22

[M 11

Os projetos arquitetônicos mais específicos do século XIX — estações ferroviárias, pavilhõesde exposição, lojas de departamentos (segundo Giedion) — têm todos por objeto um interessecoletivo. O flâneur sente-se atraído por estas construções "desacreditadas e cotidianas",como diz Giedion. Nelas já está prevista a aparição de grandes massas no palco da história.Elas constituem a moldura excêntrica na qual as últimas pessoas privadas gostavam tantode se exibir. (Cf. K 1a, 5)

[M 21a, 21

21 M. Proust, À Ia Recherche du Temps Perdu, l, pp. 788-789. (J.L.)22 op. cit., III, p. 994.0.1.)