Walter Benjamin Revolucao e Messianismo.pdf Maria João Cantinho

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    RESUMO

    Esta tese visa analisar o conceito de messianismo na obra de Walter Benjamin.Procuramos, acima de tudo, mostrar que este conceito no um tema pacfico e que rena oconsenso, mas, pelo contrrio, muito polmico e controverso, na sua obra. Se, por umlado, numa primeira fase, Benjamin revela nos seus textos, de forma muito clara e explcita,a presena dessa tonalidade messinica, por outro, nos textos mais tardios, a presena doelemento messinico desvanece-se, sob a presena mais forte e mais visvel domaterialismo histrico. Todavia, o elemento messinico na sua obra nunca desapareceu e aprova derradeira o seu ressurgimento nos ltimos textos que redige em vida: O Livro dasPassagens e Sobre o Conceito de Histria.

    Por um lado, o messianismo permite-lhe recuperar a tradio judaica, que eleconsidera em decadncia, e dar-lhe um novo nimo, insuflando o messianismo tradicionalcom conceitos mais dinmicos e que pudessem aplicar-se ao conhecimento filosfico e dahistria. Bebendo no Primeiro Romantismo e em Hamann, Benjamin reencontra nessesautores o verdadeiro esprito de um messianismo que pretende revigorar e, com ele,fortalecer a tradio, no seu sentido mais autntico. Trata-se de utilizar as categorias deredeno, catstrofe, rememorao, apocatastasis, salvao, linguagem messinica ehistria messinica para revolucionar conceitos que, na sua ptica se encontram emdecadncia espiritual; isto , de recuperar esses conceitos do judasmo tradicional e integr-los no pensamento filosfico contemporneo. Face ao desgaste do conceito de experinciakantiana, busca apresentar um novo conceito de experincia superior, que possa abrir-se auma nova compreenso da histria e da tradio. Face ao desgaste de uma concepo dalinguagem, prisioneira da sua instrumentalidade, opor-lhe uma nova concepo dalinguagem, metafsica e messinica, capaz de redimir a experincia e a histria. Face a umaconcepo esvaziada do tempo, um tempo quantitativo e visto na sua sucesso econtinuidade imparvel e catastrfica, opor-lhe uma concepo de tempo qualitativa querestitua histria a sua dimenso autntica. Face a uma concepo da histria vista deforma progressista e privilegiando apenas os "vencedores", opor uma verdadeira concepoda histria que seja capaz de, por um lado, interpretar dialecticamente os factos histricosenquanto fenmenos originrios; e, por outro lado, reparar as injustias e fundar uma ordemmessinica capaz de salvar a prpria histria, redimindo-a. Assim, preciso "destruir" einterromper a ordem imparvel da histria do progresso para (tentar) salvar a experincia ea tradio humanas. S uma histria dialctica, em que os conceitos fundamentaisoperatrios sejam a rememorao e a imagem dialctica, pode salvar a histria dacatstrofe. Porm tal no se constitui como uma utopia extra-terrena, mas antes umaexigncia de fazer com que o presente irrompa, em toda a sua fora, constituindo os

    verdadeiros instantes histricos, o tempo do agora, do Jetztzeit. S a fora do presente,reactualizando e rememorando o presente, pode salvar o conhecimento da histria,apresentando-o na imagem dialctica. Essa a verdadeira viso messinica, em que ahistria e linguagem se fundem, na actualidade plena e integral - entenda-se: messinica.

    Palavras-chave: Messianismo, Revoluo, Histria

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    ABSTRACT

    This thesis aims to analyze the messianic concept in the works of Walter Benjamin. Above

    all, it searches to show that this notion is not a conciliatory issue reuniting consensus but,on the contrary, it is a very contentious and controversial matter. If, to begin with, Benjamininitially shows very clearly and explicitly the presence of such a messianic tone in hiswritings, in the later texts the messianic element fades away, under the stronger and morevisible presence of historical materialism. However, the messianic element in his worknever really disappears and the ultimate proof is its revival in the last texts that he wrote:The Arcades Projectand On the Concept of History.If, by one hand, messianism allows him to restore the Jewish tradition, that he believes tobe perishing, and give it a new spirit, insufflating traditional messianism with moredynamic concepts, this could also be applied to the philosophical and historical knowledge.Fostering on the First Romanticism and Hamann, Benjamin finds in these authors the true

    messianic spirit that he aims to reinvigorate and, with it, strengthen the tradition in its truestsense. He resorts to the categories of redemption, catastrophe, rememoration, apocatastasis,salvation, elements of the messianic language and history to revolutionize the concepts that,in his view, are in spiritual decay; that is, he aspires to carry these ideas from traditionalJudaism and integrate them into contemporary philosophical thought. Confronting the wornout Kantian notion of experience, he intends to present a new concept of a superiorexperience that might open up to a new understanding of history and tradition. Facing theworn out conception of language, a prisoner of its own instrumentality, he wants to go upagainst it with a new conception of language, metaphysic and messianic, able to redeem theexperience and save history. In the presence of an empty conception of time, a quantitativetime - viewed in its unstoppable and catastrophic succession and continuity he aspires to

    go up against it with a qualitative conception of time, able to restore history to its truedimension. Confronted with a conception of history seen from a progressive form, andhighlighting only the "winners", he wants to tackle it with an authentic conception ofhistory that can, first, dialectically interpret the historical facts as pristine phenomena and,secondly, can fix the wrongs and establish a messianic order able to save history itself,redeeming it. Thus, it is necessary to "destroy" and stop the relentless order of the history ofprogress and (try to) save human experience and tradition. Only a dialectical history, inwhich the fundamental operative concepts are recollection and dialectical image, can savehistory from disaster. But this does not constitute itself as an extra-terrestrial utopia;moreover as a condition to make the present break out, in all its strength, amounting to thereal historic moments, the time of the now, the Jetztzeit. Only the strength of this time,

    updating and recalling the present, can save the knowledge of history, presenting it underthe dialectical image. This is the true messianic vision of Walter Benjamin, in whichHistory and Language are amalgamated in a full and absolute present, that is to saymessianic.

    Keywords: Messianism, Revolution, History

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    Dedicado aos meus pais e irms, aos meus filhos e ao Vitor

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    Dies ist das Auge der Zeit:es blickt scheel

    unter siebenfarbener Braue.Seine Lid wird von Feuern gewaschen,

    seine Trne ist Dampft.

    Der blinde Stern fliegt es anund Zerschmiltz an der heieren Wimper:

    es wird warm in der welt,und die Toten

    knospen und blhen.

    Celan, "Auge der Zeit", in Von Shwelle zu Schwelle

    Este o olho do tempo:olha de travs

    sob um sobrolho de sete cores.A sua plpebra lavada com fogo,

    a sua lgrima vapor.

    A estrela cega voa para elee derrete na pestana mais ardente:

    o mundo aquecee os mortos

    brotam e florescem.

    Celan, "O Olho do Tempo", in Sete Rosas Mais Tarde,traduo de Joo Barrento e Yvette Centeno, pp.59/61.

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    Nota Prvia

    Gesammelte Schriften - G.S.

    Sobre a Linguagem em Geral em Geral e sobre a Linguagem Humana - Sobre a

    Linguagem

    Sobre o Programa da Filosofia Vindoura - Sobre o Programa

    A Origem do Drama Barroco Alemo - Origem

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    Agradecimentos

    professora Maria Filomena Molder por vrias razes. Pela pacincia infinita que

    teve para comigo, em primeiro lugar, e pelo apoio e leituras incansveis, peloaconselhamento ao longo de todo o trabalho. Queria tambm referir a sua preciosa tutela

    desde que iniciei os estudos de Walter Benjamin, ainda no ltimo ano de licenciatura. Foi

    esse impacto extraordinrio e inquietante que provocou em mim o desejo de ir mais longe

    na investigao do pensamento de Walter Benjamin. Por outro lado, o contacto com a sua

    obra tambm constituiu um estmulo forte para a minha escrita.

    Gostaria de agradecer ao Professor Grard Bensussan pela abertura dos meus

    horizontes, no campo da filosofia judaica e das questes centrais do pensamento messinicoactual e, igualmente, pelo contacto frutuoso com o seu pensamento e obras. Pela amizade e

    pelo carinho com que me apoiou, na minha solitria estadia em Frana. Tambm

    Professora Danielle Cohen-Levinas, pela amizade carinhosa e apoio constante, durante a

    minha estadia em Frana, bem como pelos seus preciosos conselhos bibliogrficos.

    Ao Professor Eduardo Prado Coelho, infelizmente j desaparecido, cujo dilogo me

    foi precioso e a amizade inestimvel, que recordo sempre com muita saudade. Ao Professor

    Bragana de Miranda, pela sua generosa disponibilidade e apoio, nas actividades doInstituto de Comunicao e Linguagens, que me proporcionou um dilogo vivo e gil com

    vrios investigadores. Professora Maria Luclia Marcos, ao Paulo Barcelos e Rita

    Conde, cuja solidariedade no trabalho e amizade foram to importantes para mim. Ao meu

    amigo Amon Pinho, que me facilitou um contacto to vivo e dinmico com o universo dos

    benjaminianos brasileiros e com o qual trabalhei num projecto apaixonante sobre Walter

    Benjamin. Para a minha querida amiga Maria Joo Cabrita que me impulsionou nas alturas

    de maior desnimo e me forou a ir em frente. Graldine Roux, ao Petar Bojanic, Marion

    Picker, Dimitri Sandler e ao sempre amvel e gentil Antnio Incio, que, em Strasbourg, me

    amenizaram a existncia.

    Ao Professor Mrcio Seligman-Silva, pelo contacto com a sua obra espantosa e

    amizade dedicada e carinhosa. minha famlia, Fernanda Cunha, pela infinita pacincia,

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    e especialmente aos meus filhos, Toms e Francisco, cuja presena discreta, sempre solcita

    e amorosa, tanto me ajudou, particularmente nas fases de maior trabalho. Ao meu

    companheiro Vitor, pelo amor constante e indefectvel com que sempre me apoiou,

    suportando-me com tanta pacincia e to carinhosamente. E tambm por tudo o que nosaberia dizer.

    Finalmente, no posso deixar de agradecer Fundao de Cincia e Tecnologia, por

    ter beneficiado de uma bolsa, que me permitiu dedicar-me mais tempo ao trabalho e ter um

    contacto to fecundo com a comunidade universitria de Strasbourg. Sem ela, isso no seria

    possvel.

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    Introduo

    Foi-lhe dada a iluso que a linguagem.

    JORGE LUS BORGES, Obras Completas, Atlas, "Os dons".

    A tarefa de seguir no encalo do pensamento de Walter Benjamin no isenta de

    espinhos, afigurando-se-nos como um verdadeiro desafio. Pensador singular e original, a

    sua escrita densa e, por vezes, os seus textos possuem um tom algo hermtico que nos faz

    oscilar quanto sua interpretao e compreenso. Todavia, eles so de uma extraordinria

    densidade e tambm fascinantes, por esse mesmo perigo que encerram. primeira vista, o

    seu pensamento aparece-nos algo enigmtico, constitudo por conceitos que se vo

    metamorfoseando ao longo da sua obra e que exigem (como todos os autores) uma leitura

    avisada e atenta. Benjamin opera por meio de conceitos que foram j objecto de uma longa

    e vasta e antiga tradio filosfica ocidental, que vem do tempo da filosofia grega. Por

    outro lado, o solo em que foi educado e em que cresceu - embora pertencente a uma famlia

    judaica assimilada - o do judasmo. Nele ouve-se, ao mesmo tempo, o eco dos Antigos e

    da cultura grega e clssica e o da cultura e da tradio judaica, enrazada nos modos deviver das famlias judaicas da sua poca.

    Numa Europa ameaada pelo terror da Guerra e pela instabilidade das foras

    polticas e sociais - ele comea justamente a escrever nos anos que assistiram ao romper da

    Primeira Guerra Mundial -, uma gerao de jovens intelectuais mobilizada pelos

    pedagogos da poca, com especial destaque para Wynecken, para operar uma verdadeira

    transformao nas estruturas e modelos pedaggicos das escolas e universidades. disso

    que trata, precisamente, o primeiro captulo deste trabalho. Procuramos compreender emque medida o contexto da sua poca determina a formao do jovem Walter Benjamin,

    definindo as problemticas que o preocupam, no apenas a ele, como maioria dos jovens

    intelectuais da sua poca. Se elas revelavam um cariz intelectual, passando pela histria e

    pela linguagem, pela crtica de arte, possuam, tambm, uma natureza poltica.

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    A posio destes novos modelos educativos ressalta, face a decadncia do ensino e

    da cultura burguesa e pretende, justamente, vincar um ideal de educao mais prxima dos

    modelos clssicos e de uma viso mais humanista e neo-romntica1. O sculo XIX

    procurara a especializao cientfica, fruto das teorias positivistas e dos grandes avanos dacincia. O sculo XX configura um movimento de ruptura perante a aridez da cultura

    exclusivamente cientfica, por um lado, e perante a ideia da especializao, por outro. A

    presena de modelos clssicos e da Antiguidade grega, a herana extraordinria do

    pensamento morfolgico de Goethe, a importncia dos modelos do Primeiro Romantismo

    insinuaram-se conjuntamente nos novos modelos educativos, obrigando a uma inflexo na

    direco e orientao pedaggicas.

    As questes relativas ao conhecimento histrico e filosfico, a compreenso danecessidade de refundamentao da metafsica, face a um mundo em que o sagrado perde

    cada vez mais a sua importncia e substitudo por uma viso desencantada2do mundo, faz

    nascer uma gerao que pretende reinventar o sentido da existncia dos laos sociais da

    comunidade.

    A mecnica newtoniana determina um pensamento essencialmente dirigido para

    uma viso racionalista e cientfica, economicista e dominada pelo capitalismo, vai cedendo

    a determinadas perspectivas que valorizam, agora, uma orientao mais humanista,englobando novos paradigmas e novos conceitos operatrios. Em rigor, para a gerao de

    Benjamin, a principal responsvel pelo colapso da experincia [Erfahrung] residia na

    1Michael Lwy, nas suas obras de carcter histrico sobre a poca de Benjamin, fala mesmo de um neo-romantismo como uma das formas culturais dominantes, tanto na literatura, como nas cincias humanas. Eeste "exprime-se por mltiplas tentativas de reencantamento do mundo - onde o retorno do religioso temum lugar de eleio." Cf. L'Avertissement d'Incendie, p. 6. Tambm Benjamin perfilha esta concepo. Umdos seus primeiros artigos (publicado em 1913) , precisamente o texto Romantik, que reclama um novoromantismo, proclamando que a "a vontade romntica de beleza, a vontade romntica de verdade, a vontaderomntica de aco" so aquisies inultrapassveis da cultura moderna. Cf. G.S., II, 1, p. 46. Da mesmaaltura , tambm, o texto Dilogo sobre a Religiosidade do Presente, igualmente revelador da ligao deBenjamin ao romantismo. Cf. G.S., II, 1,pp. 16-34.2Max Weber,Le Savant et le politique, p. 96: "O destino da nossa poca, caracterizada pela racionalizao,

    pela intelectualizao e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo, levou os humanos a banir os valoressupremos mais sublimes da vida pblica. Eles encontraram refgio, quer no reino transcendente da vidamtica, quer na fraternidade das relaes directas e recprocas entre indivduos isolados." Apud Lwy e RobertSayre,Rvolte et mlancolie, p. 46.

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    pobreza da experincia metafsica, que resultou daAufklrung.A obsesso do pensamento

    cientfico valorizara uma viso empobrecida e mecanicista da realidade.

    Nas inquietaes de Scholem, de Benjamin, de Kafka, encontra-se bem presente a

    conscincia da perda da tradio1 e tambm do afastamento do conhecimento, na sua

    dimenso mais profunda. Num mundo em que a linguagem e o conhecimento, a

    experincia, so destitudos da sua dimenso mais profunda e essencial, a alienao do

    homem que cresce, o vazio da experincia, de que deram conta o pensamento e a escrita

    fragmentria de autores como Joyce, Eliot, Broch, Pessoa, Strindberg.

    Se no primeiro captulo, dedicado aos anos de formao de Benjamin, vemos como

    comea a definir-se o seu projecto messinico, , sobretudo, a partir desse documento

    fundamental que A Vida dos Estudantes (1914-1915), no entanto, que se opera a

    emancipao intelectual de Benjamin, a qual rompe com o Movimento da Juventude e se

    vira ambiciosamente para o projecto de fundar uma nova perspectiva da histria e do

    conhecimento filosfico. Reconhecendo a familiaridade do seu pensamento com o do

    Primeiro Romantismo - especialmente com Friedrich Schlegel e Novalis, que estudou

    aprofundadamente - e dando-se conta das razes do seu afastamento irreversvel de Kant,

    no que respeita s questes da experincia e da histria, elabora corajosamente o seu

    prprio "programa filosfico".

    no Primeiro Romantismo que Benjamin encontra as ideias fundamentais que lhe

    permitem combater aquilo que considera ser a "informe tendncia progressista", aquilo que

    ele considera ser o mais nefasto na compreenso da histria humana. Essa a dimenso

    verdadeiramente catastrfica da histria, como o dir mais tarde, noLivro das Passagens e

    na sua obra Sobre o Conceito de Histria. Benjamin descobre, em Schlegel e Novalis, uma

    dimenso utpica do pensamento, messinica e revolucionria, e insiste na ideia de que a

    essncia histrica do romantismo deve ser procurada no "messianismo romntico".

    1 Em Scholem, esse medo da perda da tradio vai conduzi-lo ao estudo da mesma. Comea por romperdramaticamente a relao com o pai e dedica-se, a seguir, ao estudo da tradio cabalstica. Em Kafka, essedesespero est presente na clebre Carta ao Pai.Em Benjamin, como se ver, encontra-se essencialmente

    presente na questo da rememorao, que aplicada como uma categoria essencialmente messinica, por umlado, mas que tambm um antdoto contra a perda da tradio, uma reactualizao constante da mesma.

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    tambm no Primeiro Romantismo que v a possibilidade de "encontrar" a derradeira

    possibilidade de salvar a tradio da noite do esquecimento. Salvar a tradio dizer o

    mesmo que salvar a experincia humana e esse resgate s pode ser operado a partir da

    reviso crtica das teorias instrumentais do conhecimento e da linguagem. Tal serposteriormente demonstrado, partindo da anlise dos textos de Benjamin, O Conceito de

    Crtica de Arte no Romantismo, Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem

    Humana, O Programa da Filosofia Vindoura.

    Salvar a tradio , assim e antes de mais, combater a prpria concepo da histria

    progressista e rever a histria sob outras perspectivas, que valorizem, no o quantitativo, os

    factos histricos vistos como uma acumulao sucessiva e contnua, mas sim o ritmo da

    histria, que totalmente diferente. E trata-se de compreender que a vida da humanidade um processo de realizao e de acabamento e no simplesmente devir, num tempo vazio e

    homogneo, que caracterstico da viso moderna do progresso1. Benjamin vai opr a

    dimenso qualitativa do tempo infinito [qualitative zeitliche Unendlichkeit] ao tempo

    infinitamente vazio [leere Unendlichkeit der Zeit] da perspectiva progressista. Se os textos

    A Crtica da Violncia e O Fragmento Teolgico-poltico2 contm algum ensinamento,

    precisamente o de deixar vista a iminncia da descontinuidade que se encontra no corao

    do gesto revolucionrio, capaz de fissurar a continuidade da histria e revelando o quo

    falsa a ideia da continuidade. Estabelecendo uma estreita relao entre a noo de "reino

    messinico" e de "revoluo", tanto um texto como o outro vm pr em relevo e analisar o

    conceito de violncia revolucionria - sobretudo o texto A Crtica da Violncia - e o modo

    como essa ruptura operada por ela possibilitadora do aparecimento da justia. Isto , s a

    violncia divina, como ser demonstrado no captulo consagrado violncia messinica,

    messinica, no sentido em que ela dissolve a ordem profana do direito e instaura a justia

    divina e redentora.

    1 A crtica de Benjamin ao progresso dirige-se essencialmente s teorias que pretendem aplicar oevolucionismo cientfico ao conhecimento histrico, ao positivismo histrico, por um lado, e, por outro, teodiceia hegeliana.2Embora distantes no tempo, pois A Crtica da Violncia foi redigido em 1921 e O Fragmento Teolgico-Poltico em 1938, encontram-se na temtica abordada.

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    Desde cedo, Benjamin define a importncia da cesura e da interrupo messinica

    da histria, instauradora do momento em que irrompe a justia. A violncia divina

    profundamente revolucionria, como ser mostrado posteriormente, no sentido exemplar:

    ela funda a nova ordem poltica assente na justia autntica e no meramente no direitohumano. Assim, contrariamente violncia do direito [die rechtsetzende Gewalt],

    conservadora, a violncia divina legtima, pois suportada pelo seu carcter tico e

    moral, pelo seu desejo de justia [Gerechtigkeit]. Neste sentido, esta aco poltica e

    revolucionria, pois cria um estado radicalmente novo. O Fragmento Teolgico-Poltico,

    por seu lado, pe vista uma irredutibilidade entre o plano da histria humana e o da

    histria messinica, em que a nica possibilidade de redeno da histria passa pela

    dissoluo da ordem profana. De grande complexidade, este texto ressalta igualmente o

    valor da interrupo messinica, instaurando, pela cesura do instante, uma nova ordem, em

    que o tempo possui uma dimenso totalmente diferente da do tempo profano.

    Se o texto "A Vida dos Estudantes" exprime j, em 1914, a preocupao

    benjaminiana em encontrar uma definio para a tarefa histrica, definindo-a como uma

    necessidade de "dar forma, em toda a pureza, ao estado imanente de perfeio", anunciando

    o seu desejo de tornar visvel e fazer triunfar esse estado imanente de perfeio - o reino

    messinico - na actualidade"1, isso revela a impacincia de Benjamin em delimitar o que

    considera verdadeiramente prioritrio: a fundamentao de um projecto messinico. E se o

    anncio feito n'A Vida dos Estudantes, ento podemos considerar que a primeira etapa do

    seu projecto precisamente a de constituir, primeiro, uma reformulao da teoria da

    experincia, a partir de Kant. Aps a conscincia de que uma nova viso da experincia

    implica uma teoria da linguagem que lhe seja adequada, na sua natureza, uma teoria da

    linguagem que possa servir de base ao projecto messinico. Partindo da crtica viso

    burguesa e instrumental da linguagem e ancorando a sua posio na teoria hamanniana da

    mesma, Benjamin reclama um suporte metafsico para a linguagem. a sua dimenso

    espiritual e mgica (como ele o disse a Martin Buber) que confere linguagem a sua

    1Benjamin exprime esse desejo na primeira pgina do texto A Vida dos Estudantes, G.S., II, 1, p. 75. Mastambm o podemos ver expresso na carta que escreve A Carla Seligson de 15 de Setembro de 1913, como semostrar.

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    verdadeira natureza essencial. Trata-se de (re) encontrar, nos antpodas das teorias

    convencionais da linguagem, uma concepo que devolva palavra o seu esplendor

    originrio, a saber, o seu poder mgico, que lhe advm da sua natureza imediata. S ao

    homem convm a nomeao, s ele pode levar a cabo essa tarefa e essa caracterstica queo distingue fundamentalmente das outras criaturas. Por isso, a experincia humana - como

    nos dir em Sobre o Programa da Filosofia Vindoura, assenta sobre uma concepo

    metafsica da linguagem, que lhe garante a sua pureza e natureza espiritual.

    O nome permite ao homem comunicar a sua essncia espiritual, mas essa

    comunicao no exterior linguagem, pois ele comunica-se na linguagem. Imediatez e

    magia da linguagem, eis o que constitui a sua perfeio e lhe permite elevar-se acima da

    linguagem da natureza. Ainda que, no captulo referente linguagem e experincia,inverta a ordem cronolgica, pois a anlise do texto da linguagem sucede-se do texto

    Sobre o Programa da Filosofia Vindoura, a coerncia da minha ideia mostra-se melhor

    nessa inverso. o texto de Sobre o Programa da Filosofia Vindoura que vinca a

    necessidade de operar uma transformao no modo como encaramos a linguagem e, sem

    dvida, que o texto Sobre o Programa da Filosofia Vindoura j preparado pelo texto

    Sobre a Linguagem. A experincia humana e o conhecimento histrico, cientfico e

    filosfico exigem uma reviso no plano das teorias da linguagem.

    Progressivamente, Benjamin vai-nos mostrando, ao longo do texto, como o acesso a

    uma experincia mais elevada e superior, entenda-se metafsica, s pode fazer-se mediante

    uma reformulao da linguagem e, mesmo na fase final desse texto, Benjamin remete-nos

    para a proposta de Hamann como uma sada para o "problema kantiano da experincia".

    Para ns, atravs da anlise - pela ordem cronolgica inversa - fica mais clara a ideia que

    Benjamin tem presente, na redaco desse texto e as suas implicaes e consequncias.

    Sem uma dimenso metafsica essencial - que lhe advm da viso messinica - quesuporte a experincia humana no ser possvel alcanar o conhecimento filosfico nem o

    prprio conhecimento da histria. Ao reduzir o conhecimento universal a uma viso

    exclusivamente racionalista e mecanicista - como o desenhavam as perspectivas de Newton

    e de Kant - perde-se definitivamente o acesso experincia humana, considerada na sua

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    dimenso mais elevada e superior, mais "digna". Esse o objectivo que Benjamin se prope

    no texto Sobre o Programa da Filosofia Vindoura, avanando na reviso crtica do modelo

    de experincia proposto por Kant.

    O captulo sobre a teoria da linguagem ocupa um lugar central neste trabalho, pois

    a partir da nova concepo benjaminiana da linguagem, que muitas das questes da obra de

    futura podem ser pensadas. tambm um dos aspectos essenciais que permite aproximar

    Benjamin de outros autores que vem na dimenso nomeadora da linguagem a sua potncia

    messinica1. A dimenso messinica liberta a linguagem do peso e da exterioridade da

    palavra, isto , no sentido em que faz coincidir essncia espiritual e essncia lingustica2.

    Ser a ideia da prosa coincidente com a linguagem nomeadora? Se a linguagem

    nomeadora, no texto Sobre a Linguagem nos remete para a questo da origem da

    linguagem, no entanto, Benjamin no se encontra preocupado com o problema da origem

    da linguagem. Mesmo quando ele fala da queda e do pecado original, refere-se "hora

    natal" da linguagem, que faz coincidir com a proliferao das lnguas.

    Por outro lado tambm nos parece ser o que reaparecer mais tarde como a

    linguagem messinica e libertadora que nos aparece sob a forma da ideia da prosa3.

    Benjamin pensou, a partir da leitura e da interpretao do Primeiro Romantismo - quando

    redigiu o seu texto O Conceito de Crtica de Arte no Romantismo Alemo -, a ideia da

    prosa como um dos seus temas fundamentais, numa relao profunda com a ideia da

    poesia. , precisamente, a partir do seu estudo sobre o romantismo, em 1919, que o tema

    aparece integrado na sua prpria obra. Encontramo-lo j nas pginas do "Prefcio" da obra

    1Um dos autores que melhor compreendeu a sua imensa fora messinica foi precisamente Giorgio Agamben,na sua conferncia sobre Benjamin. Cf. "Langue et Histoire", Walter Benjamin et Paris, actas do colquio de1983, Paris, 1986.

    2Traduo de Maria Filomena Molder, ainda no publicada, de G.S., II, 1, p. 142: "A essncia espiritual idntica lingustica, unicamente na medida em que comunicvel.Aquilo que comunicvel numa essnciaespiritual a sua essncia lingustica. A linguagem comunica, portanto, a respectiva essncia lingustica dascoisas, mas s comunica a sua essncia espiritual, contanto que ela esteja imediatamente contida na essncialingustica (...)". Para Benjamin, a resoluo deste paradoxo (e desta exterioridade da essncia lingustica eespiritual) s pode dar-se numa teoria da linguagem imediata.3A ideia da prosa um conceito do Primeiro Romantismo, que Benjamin integrou na sua obra. Cf. G.S., I, 3,B 14, p. 1239.

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    A Origem do Drama Barroco Alemo, a propsito da definio da prosa filosfica1, mas

    sobretudo nas notas preparatrias das teses2 que encontramos a prpria definio

    benjaminiana e coincidente com uma ideia messinica da linguagem. O conceito de ideia

    da prosa (como veremos no captulo respectivo) resulta, na nossa opinio, de um longoamadurecimento sobre a natureza messinica da linguagem e no adquire a sua forma mais

    sublime (e tambm mais enigmtica) seno na ltima fase. Se a teoria da linguagem nos

    reenvia aos efeitos mgicos daquela, a ideia da prosacontm em si a magia da linguagem,

    mas como uma utopia que convm, igualmente, a um estado revolucionrio que o da

    histria messinica3.

    Tambm a questo da linguagem permite a abertura para um dos temas centrais de

    Benjamin: a questo da alegoria. da perda do carcter originrio da linguagem, com aqueda, que nasce a "tristeza" da linguagem, como nasce, tambm, a histria humana e todos

    os males irremediveis do mundo. A alegoria configura-se como o saber desse "peso" da

    linguagem e da sua exterioridade, face s coisas. A alegoria exprime essa exterioridade da

    linguagem (e que tambm a exterioridade do homem face sua prpria essncia

    espiritual). O homem julga (ainda que o juzo contenha uma outra magia), agora, j no

    nomeia. A partir do conhecimento do bem e do mal, nasce no homem o saber do juzo e

    perde-se o poder nomeador originrio.

    Da que a tarefa do pensador da linguagem seja a de restituir o poder simblico

    (entenda-se messinico) que a linguagem possui em si, maneira de um vestgio secreto. A

    tarefa daquele que pensa a linguagem, o filsofo4ou o tradutor - nas suas formas diferentes

    - a de reconduzir a linguagem ao seu grau mais elevado e luminoso, o seu poder

    simblico5. apresentao [Darstellung] e rememorao [Eingedenken], enquanto

    1

    G.S., I, 1,p. 207.2G.S., I, 3,pp. 1235.3Idem: "A ideia da prosa coincide com a ideia messinica da histria universal (as diferentes espcies de

    prosa artstica constituem o espectro do universal histrico [universalhistorische] - no Narrador)."4Ao filsofo cabe a apresentao (e a restaurao) do poder simblico das ideias, dos nomes.5A questo do smbolo, que se ope, precisamente, alegoria, aparece muito clara no texto A Tarefa doTradutor. , como veremos, uma das categorias do messianismo benjaminiano, no sentido em que visa a

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    modos operatrios do filsofo1, que cabe a tarefa da restituio do poder simblico da

    palavra. Neste sentido, o tradutor liberta a lngua, pois converte "o Simbolizado no

    Simbolizante, restaura a lngua pura, plasmada no movimento lingustico, o imenso e

    nico poder da traduo."2

    Desta forma, ele possui, ao mais eminente grau, a tarefa messinica de reconduzir as

    lnguas lngua pura, aquela que j nada quer dizer. A lngua pura o princpio originrio

    que se encontra em todas as lnguas, como querer dizer. Se a traduo uma forma, ento

    a traduzibilidadeque contm a lei da sua forma, permitindo a metamorfose e a passagem

    das lnguas lngua pura.

    Se a questo da traduzibilidade, como veremos, essencial traduo, no

    podemos menosprezar a da criticabilidade, proveniente, tambm ela, do crculo dos

    Primeiros Romnticos. Tal como a traduzibilidade se constitui como a "lei da forma" da

    prpria obra, tambm a criticabilidade3[Kritisierbarkeit] radica na prpria obra e na

    possibilidade, que lhe intrnseca, de aceder ao seu conhecimento4. Se a crtica da obra de

    arte visa o teor de verdade[Wahrheitsgehalt] 5de uma obra, ele s pode faz-lo a partir da

    anlise do seu teor material [Sachegehalt]. O crtico "mergulha o olhar" naquilo que quer

    compreender e efectua - tal como o tradutor - um trabalho de compreenso da verdadeira

    redeno das lnguas e a sua libertao. Citando Mallarm, A Tarefa do Tradutor, traduo de Maria FilomenaMolder, G.S., IV, 1,p. 17, Benjamin refere-se a uma lngua da verdade, que a traduo possibilita, na medidaem que as lnguas se harmonizam e completam, caminhando para ela. Nela se concentra toda a unidadesimblica das lnguas. Na p. 19, Benjamin diz: "Permanece em todas as lnguas e nas suas formas, para almdo comunicvel, um incomunicvel, um Simbolizante ou Simbolizado, conforme o contexto em que seencontra. Simbolizante unicamente nas formas finitas da lngua; Simbolizado, porm, no devir da prprialngua.(...) Simbolizado, ele no habita nas obras seno simbolizando."1Os dois conceitos so apresentados por Benjamin no "Prefcio" sua obra A Origem do Drama BarrocoAlemo.2G.S., IV,p. 19.3

    Le concept de Critique Esthtique, p. 165, traduo francesa de G.S., I, 1,p. 110: "Quer se afirme ou que senegue, isso depende inteiramente dos conceitos filosficos fundamentais sobre os quais se funda a teoriaesttica." Exactamente como a crtica (tambm como Benjamin a toma, em Afinidades Electivas), tambm atraduo faz dissipar a aparncia da unidade natural de cada lngua, ou de cada obra, por uma espcie dedesmembramento salvador e revelador da sua verdade profundamente histrica. Isto , ambas preparam a obraou a lngua para a sua redeno.4Cf. a este propsito, a obra de JEANNE MARIE GAGNEBIN,Histoire et Narration chez Walter Benjamin,p.38.5G.S., I, 1, "Goethes Wahlverwandtschafen", p. 125.

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    estrutura da obra, destruindo o seu Schein, aniquilando-o no seu elemento vulnervel e

    perecvel, da mesma forma que o mdico destri a unidade orgnica de um corpo,

    dissecando-o, com o fito de perceber a sua verdadeira estrutura.

    O acto crtico, que se inscreve nesse movimento de compreenso e de instaurao de

    saber na obra, constitui-se mediante a apresentao [Darstellung], isto , o acto em que

    aquele que se debrua sobre a obra e nela se submerge, nos seus detalhes, procura

    (re)encontrar a origem da ideia (o seu aspecto histrico, ou seja, o modo como a ideia se

    confronta com o mundo histrico1) que se apresenta na obra, determinando o seu auto-

    desenvolvimento. Porm, esse acesso origem que procurado, como restaurao

    originria, um gesto sempre inacabado, porque dplice e dialctico, pois toda a

    restauraose sabe incompleta2

    . E, se aquele que procura levar a cabo esse gesto, medianteum acto de rememorao, o que procura um centro luminoso- a verdade da obra, o seu

    teor de verdade- e restaurador da obra, mediante a apresentao, esse tambm o que sabe

    que pode perder-se perigosamente3nesse anseio, sem conseguir alcanar o que procura.

    De acordo com o citado por Benjamin, as obras que dizem respeito ao Trauerspiel

    prestam-se, mais do que qualquer obra de arte, a uma anlise crtica, num sentido alegrico,

    por uma razo simples, a saber: porque elasjesto mortas, so runas4, so destitudas de

    Schein, isto , encontram-se desde logo desfiguradas na sua bela aparncia, isto , osTrauerspieleconstituem-se como amontoados de runas, como se essas obras j tivessem

    surgido destinadas morte. Neste sentido, elas j se encontram aptas, preparadas, desde

    sempre5, para o procedimento crtico, aquele que quer reabilit-las, na sua fragilidade e

    arranc-las quela, descobrindo, nelas, o seu princpio de formao. Podemos, ento,

    1G.S., I,1, p. 226.2Idem.3Embora a metfora utilizada por mim seja diferente das metforas benjaminianas sobre o perigo da tarefa daapresentao, no entanto, em Benjamin, somos constantemente advertidos para o perigo dessa tarefa,nomeadamente na metfora da respirao, no sentido em que aquele que quer aceder obra corre um risco, ode deixar de respirar, no sentido em que suspende o flego, para emergir nos detalhes da obra.4G.S., I, 1, p. 357, O que persiste o detalhe bizarro das regras alegricas: um objecto de saber, que seesconde no edifcio das runas intelectualmente elaboradas (...).5Idem.

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    compreender o esforo de Benjamin, no sentido em que essas obras, produzidas para serem

    representadas, pem vista um determinado procedimento a que o autor quer aceder, a

    alegoria como experimentum crucis: A alegoria - o que as pginas seguintes se propem a

    demonstrar - no uma tcnica ldica de figurao imagtica, mas uma expresso, como alngua, como escrita. Eis precisamente oexperimentum crucis. [sublinhado do autor]1.

    Na sua forma caricatural e excessiva, as obras do drama barroco alemo, os

    Trauerspiele,deixam ver com mais facilidade a origem que lhes subjacente, em virtude

    do prprio excesso que as constitui. O olhar do crtico, relativamente s obras do drama

    barroco, um olhar mortificador, tomado na sua duplicidade mais fecunda2, pois ele o

    que sabe que a unidade da obra j, desde sempre, destruda, e que a runa s pode ser

    tomada como tal, como fragmento amorfo, avulso, descontextualizado3

    . O crtico toma-ajustamente como a deve tomar: como coisa morta. Imerge em cada detalhe com um nico

    fito: descobrir o teor de verdadeda obra, isto , descobrindo-lhe a origem, restaurando a

    ideia, isto , procurando o modo como a ideia se configura historicamente, concentrando

    em si mesma a sua pr e ps-histria. O alvo do crtico, enquanto olhar lustral e alegrico

    sobre as obras, ser sempre o de mostrar, o de pr a nu a funo da forma artstica,

    reconhecendo-a como uma actividade de converso dos contedos factuais, histricos, que

    se encontram na sua raz, em contedos de verdade da obra. Esta converso diz respeito,

    justamente compreenso da origem das obras, do seu elemento matricial. A origem

    1Idem, p. 339.2No sentido em que se procura a destruio dos elementos aparentes e visveis da obra, para a compreenderna sua verdadeira unidade. Mortificar a obra de arte diz respeito, assim, dissipao da unidade imediata daobra (a falsa unidade) em elementos, em extremos, fazendo despertar nas obras a beleza durvel, a daverdade. Por isso, o olhar mortificador faz-se acompanhar dessa duplicidade, a um tempo aniquilador erenovador, porque se ele destri o Scheinda obra, a sua falsa e emptica unidade, f-lo para salvar a obra,inscrevendo-a numa ordem de perenidade do saber, a que ela no teria acesso sem esse acto aniquilador.3Seria bastante oportuno, aqui, referir essa estrutura comum anlise de Benjamin, relativamente s obrasalegricas, transparecendo, de modo mais explcito, essa descontextualizao e essa desagregao, o aspectoarruinado e decadente da obra, tomada como cadver, sobretudo, nas obras sobre Baudelaire. V. CharlesBaudelaire, Zentralpark, G.S., I, 2, p. 671.

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    acompanha, como uma condio rtmica1 e responsvel pelo desenvolvimento interno e

    crescimento, isto , a metamorfose de qualquer obra literria. A origem constitui-se como o

    prprio aspecto ou figura prpria da ideia ou gnero, historicamente tomada, e que legvel

    a cada passo desse desenvolvimento e da constituio da obra. Da que se torne impossvelseparar a origem da ideia, na tarefa da interpretao e crtica literria. O crtico toma esse

    princpio de inseparabilidade - entre origem e ideia - como condio absolutamente

    fundamental da sua tarefa: Origem est no fluxo de devir e compromete o material

    gentico na sua rtmica. O elemento originrio nunca se d a conhecer na nudez evidente da

    existncia do fctico e a sua rtmica unicamente a uma dupla compreenso se revela. Ela

    quer ser conhecida, por um lado, enquanto restaurao, restituio e, por outro, como o que

    nesse momento fica inacabado, no-definitivo.2O crtico , assim, o que l a origem,

    procurando, atravs do seu olhar lustral e alqumico, restau rar a ideia, reconhec-la. Mas

    essa restaurao, como o prprio Benjamin nos adverte, surge como um anseio, e na sua

    dialctica, e nesse sentido que deve ser tomada. Restaurao e incompletude constituem-

    se, como j vimos anteriormente, como as duas componentes fundamentais da actividade -

    a apresentao da ideia - que diz respeito leitura da origem nas obras, num permanente

    inacabamento da mesma. Assim, podemos afirmar que a origem conhece uma pr e uma

    ps-histria ou o que o mesmo que dizer que as ideias nascem, desenvolvem-se e atingem

    o seu crepsculo.

    E, da mesma forma que o crtico pode perecer (e esse o perigo da crtica da obra)

    no seu anseio, sem conseguir aceder o conhecimento, o mesmo pode acontecer ao tradutor3,

    sucumbindo aos perigos da traduo.Se possvel ao homem perseguir o rastro da lngua

    pura e messinica, isso acontece devido ao ndice messinico que cada lngua traz em si,

    1

    A condio rtmica de que aqui se fala tem a haver, justamente com a configurao da ideia a partir dapolaridade dos extremos e esses ritmos aparecem nas antinomias prprias das formas, quer elas digamrespeito tragdia, ao Trauerspiel ou a qualquer gnero.2 G.S., Expos a Der Ursprung des deutschen Trauerspiels, IV, pp. 950, 951, Trad. de Maria FilomenaMolder. Cf. a obra de JEANNE MARIE GAGNEBIN,Op. Cit.,pp. 21, 22.3 Do qual o melhor exemplo so as tradues que Hlderlin levou a cabo, de Sfocles, cuja vertigem oconduziu loucura. Cf. G.S., IV, 1,p. 17: "As tradues de Sfocles por Hlderlin apareceram no sculo XIXcomo exemplos monstruosos de uma tal literalidade."

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    maneira de uma promessa. E no querer dizer [das Meinen] de cada lngua que se encontra

    a condio que conduz lngua messinica, para a sua unidade. S essa unidade das lnguas

    constitui a pura linguagem. Ainda que o texto A Tarefa do Tradutor (1921) tenha sido

    redigido alguns anos aps o texto Sobre a Linguagem (1916), importante notar apersistncia de uma mesma concepo que atravessa os dois textos. Se, no texto mais

    antigo, a preocupao fundamental era a de descobrir a dimenso mgica e no-

    mediatizvel da linguagem, j o texto sobre a traduo aborda clara e explicitamente esse

    propsito de tarefa messinica, deixando bem vista a sua preocupao essencial. E

    compreendemos que s a histria da humanidade e a histria das lnguas nos permite

    encetar essa caminhada para a redeno. Fica j anunciado, nas entrelinhas deste texto, um

    aspecto fundamental da concepo benjaminiana, isto , a histria humana como tarefa

    messinica por excelncia. na linguagem, como Benjamin bem o sabe1, que se apresenta

    a histria, da que no seja possvel pensar uma sem a outra.

    Se o pecado original foi o momento em que o homem foi expulso do Paraso, isso

    significa que, no s o homem saiu da esfera do nome, como tambm sau da esfera da

    eternidade, pois tomou conhecimento da sua natureza humana e finita. A "hora natal" da

    linguagem humana marca tambm o aparecimento da sua histria e no podem caminhar

    seno lado a lado, sendo a linguagem o lugar onde se apresenta a prpria histria. Desta

    forma, a tarefa messinica no poderia seno dar-se na interseco desses dois planos da

    experincia humana. O destino humano e da sua histria , tambm, o destino da

    linguagem. Que Benjamin tenha compreendido isso to admiravelmente, no nos espanta,

    fazendo ressaltar uma assombrosa coerncia do seu pensamento.

    Assim, se a tarefa messinica se desenrola no campo da histria humana,

    procurando redimir e libertar a humanidade e perseguindo incansavelmente a ideia da

    histria universal [universalhistorische], ela tambm no se cumpre seno perseguir em

    simultneo a ideia da lngua universal, isto , a ideia da prosa. Linguagem e histria, luz

    1Paris, Capitale du XIXe Sicle, pp. 478, 479, traduo francesa de G.S., V, 1, [N 2a, 3], pp. 576, 577: "S asimagens dialcticas so imagens autnticas (ou seja, no-arcaicas); e o lugar onde as reencontramos nalinguagem." Apenas antecipando um pouco, a imagem dialctica a imagem autenticamente histrica e elaapresenta-se na linguagem, o que ser demonstrado no captulo sobra a imagem dialctica.

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    da ideia da redeno messinica, s podem cumprir-se num mundo em que a actualidade

    integral e perfeita, plena1.

    Como culminar deste trabalho, a ltima parte dedicada ao tema da histria, na

    perspectiva benjaminiana. A partir da leitura e da interpretao dos textos mais tardios de

    Benjamin, Sobre o Conceito de Histria e O Livro das Passagens,procura-se determinar de

    que modo se configura nestes textos o projecto messinico de Benjamin. No evitamos a

    polmica nem escamoteamos os paradoxos e as dificuldades que se perfilam no horizonte

    da perspectiva benjaminiana da histria.

    importante esclarecer todos os sentidos que a expresso de "projecto messinico"

    assume, em Walter Benjamin, elencando todos os conceitos que nos reenviam para uma

    compreenso messinica. Conceitos esses que iro aparecer com uma fora imensa na

    primeira fase da sua obra2, desvanecer-se na segunda fase3, para ressurgir inesperadamente

    nas suas obras tardias, como Sobre o Conceito de Histria, onde o mpeto e a fora

    messinica dos seu textos atinge o clmax. Esses conceitos que, no seu conjunto, se

    articulam para formar um projecto messinico, so: o de redeno, de rememorao, de

    salvao, de runa, de catstrofe, de apokatastase, de violncia messinica, de instante

    messinico, de actualidade4. Sempre que possvel e oprtuno, ao longo do trabalho,

    tentaremos clarificar os contornos e as nuances particulares deste conceito de messianismo,na obra de Benjamin.

    1G.S., I, 3,pp. 1235: "O mundo messinico o mundo da actualidade integral e, de todos os lados, aberta."2Referimo-nos aos textos da sua juventude, como iremos ver: A Vida dos Estudantes, Sobre a Linguagem emGeral e sobre a linguagem Humana, A Crtica da Violncia..3A seguir ao contacto com o materialismo dialctico, esses conceitos no desaparecem, mas aparecem maisdiscretamente na sua obra, como, por exemplo, nos textos de crtica literria e de carcter mais materialista,sobre a arte e a literatura, nos estudos sobre Baudelaire. Vemos em textos como "A Imagem Proustiana", porexemplo, como a noo de rememoraose constitui como uma categoria fundamental e aplicada ao ensaioliterrio. Porm, a noo de rememorao um dos conceitos fundamentais da tradio judaica ligada aomessianismo, como se h-de ver.4Especificamente aquilo a que Benjamin chamar, tanto noLivro das Passagens, quanto em Sobre o Conceitode Histria, a "actualidade integral". A ideia de um presente redentor da histria , precisamente, o tempo queconvm actualidade, que reactualiza e rememora o passado histrico.

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    A partir de 1924, o ano em que conhece Asja Lascis e que toma conhecimento do

    materialismo dialctico, perodo que coincide, como podemos verificar na sua obra,

    sobretudo, nos estudos que dedica a Baudelaire, em Charles Baudelaire, um Poeta Lrico

    no Apogeu do Capitalismo e, de forma inequvoca, noLivro das Passagens.Nesse perodo,as suas preocupaes em torno do messianismo pareceram ter diminudo a sua intensidade,

    de algum modo, mas o tema reaparece em todo o seu esplendor no texto Sobre o Conceito

    de Histria, redigido em 1940 e publicado apenas postumamente. E tambm aparece n'O

    Livro das Passagens, fundamentalmente nas passagens consagradas ao conhecimento

    histrico (Erkenntnistheoretisches, Theorie des Fortschritts), letra N,e ao captulo sobre o

    sonho e o despertar (Traumstadt, Zukunfstrume, anthropologischer Nihilismus), na letra K.

    So precisamente estes textos, aqui referidos, que constituem o objecto da nossa anlise.

    com a anlise da primeira tese que abrimos esse captulo, numa tentativa de

    compreender a polmica (e enigmtica) relao que Benjamin estabelece entre a teologia e

    o materialismo dialctico. luz da alegoria do boneco turco e do ano 1, Benjamin

    apresenta-nos a relao entre o ano - a teologia - e o boneco turco - o materialismo

    dialctico (ainda que Brecht no o visse assim). Motivo de diviso e de grande polmica

    entre os seus comentadores, a partir dos anos 50, quando publicada, esta relao remete-

    nos para algumas perplexidades que consideramos. Seria Benjamin um materialista

    dialctico ou um pensador messinico?

    Na ptica de Lwy2, podem ser distinguidas trs grandes escolas: a escola

    materialista, a escola teolgica e a escola da contradio. Se a primeira via Benjamin como

    um materialista consequente e "as suas formulaes devem ser consideradas como

    metforas"3, j a escola teolgica considerava que Benjamin era, antes de mais, um

    pensador messinico, como era o caso de Scholem. Quanto ltima, a da contradio, diz

    que a tentativa que Benjamin faz, de conciliar o marxismo e a teologia judaica, um

    1Nesta alegoria, cuja inspirao se deve a um conto de Edgar Allan Poe, que foi traduzido por Baudelaire eque Benjamin conhecia bem: "O jogador de xadrez de Maelzel".2MICHAEL LWY,L'Avertissement d'Incendie,p. 24.3B.BRECHT,Arbeitsjournal, Erster Band, 1938-1942, Suhrkamp, Frankfurt, 1973, p. 294. Apud Lwy, Op.Cit.,p. 24.

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    autntico fracasso (essa a leitura, tanto de Habermas, como de Tiedemann). certo que a

    posio de Benjamin no isenta de problematicidade, na medida em que tenta conciliar o

    que , aparentemente inconcilivel. Nesta medida, o seu pensamento histrico insituvel e

    profundamente original, que se caracterizava, como o dizia o prprio Benjamin numa cartaa Scholem1, em Maio de 1926, "paradoxal reversibilidade recproca" do poltico e do

    religioso.

    Tomando como ponto de partida esta relao entre materialismo dialctico e

    teologia e aceitando-a como uma condio necessria e intrnseca viso benjaminiana,

    procede-se anlise do texto de Benjamin, com particular destaque para algumas das teses

    mais complexas e que concentram em si o essencial da sua viso histrico-messinica.

    Considerando, com particular ateno a tese II, em que Benjamin fala da frgil foramessinica que cabe a cada gerao e em que se coloca a questo da necessidade da

    reparao colectiva, que a natureza prpria da tarefa messinica, cruzamos, para uma

    melhor compreenso, a leitura deste texto com algumas passagens do Livro das Passagens,

    nomeadamente do captulo referente ao conhecimento histrico. O problema havia sido j

    enunciado por Lotze2, na sua obraMikrokosmos. de salientar tambm a leitura da carta a

    Horkheimer que Benjamin cita, nas Passagens, sobre o "acabamento/inacabamento" da

    histria3. S a reparao, na ptica de Benjamin, das injustias e do sofrimento, da

    desolao das geraes vencidas, confere histria a sua verdadeira dimenso e esta

    verdadeiramente a perspectiva da histria messinica. neste sentido que Benjamin

    incorpora nas suas teses a compreenso de Lotze, propondo, com efeito, a interrupo da

    histria vista luz do progresso e como "cortejo dos vencedores". A exigncia da

    destruio do continuum da histria, vista como linha temporal homognra e sucessiva,

    ininterrupta, uma exigncia de carcter poltico e tico, que convm inteiramente tarefa

    1Briefe, I, Suhrkamp, Frankfurt, 1966, p. 426.2Filsofo alemo que viveu entre 1817/1881. No final dos anos 30, quando Benjamin se dedicava ao estudoda modernidade, em particular sobre Fuchs, foi vivamente atrado pelos seus textos. Numa carta que redige aHorkheimer, datada de 24 de Janeiro de 1939, alguns meses antes da redaco das teses sobre a histria, eleafirma ter encontrado em Lotze um suporte inesperado para as suas reflexes sobre a necessidade de "prlimites utilizao do conceito de progresso na histria. Cf G.S., I, 3,p. 1225.3Paris, Capitale du XIXe Sicle,pp. 488, 489, traduo francesa de G.S., V, 1, [N 8, 1], p. 589.

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    do historiador materialista, como o veremos nos ltimos captulos, referentes histria. O

    momento destrutivo da histria - correspondente tambm ao instante em que ocorre a

    imagem dialctica - o prprio instante messinico, que "arranca o objecto histrico" ao

    fluxo incessante e contnuo do progresso.

    Se a histria humana, entendida como progresso, vista como catstrofe, no sentido

    em que tudo se destina ao declnio e morte, runa, ento a interrupo da histria o

    momento salvfico por excelncia, que cabe ao historiador. Como um gesto redentor, por

    um lado, arrancando o objecto catstrofe imparvel, e como conhecimento histrico, por

    outro, pois na imagem dialctica que se cumpre a interrupo revolucionria. E o instante

    revolucionrio1, destrutivo e violento, igualmente o momento instaurador da justia

    Neste captulo sobre a histria, abordamos tambm a questo do conhecimento da

    imagem dialctica ou fenmeno originrio. Se a imagem dialctica se configura como a

    imagem que apresenta o instante em que se encontra o outrora com o agora, ento essa

    imagem um fenmeno originrio, no sentido em que d a ver a prpria origem do

    fenmeno histrico, em que se pode ler, na medida em que ele se apresenta dialecticamente

    numa imagem, "a sua histria anterior e a sua histria posterior"2. Nela se l e decifra o

    rastro do outrora, mas que, ao mesmo tempo, se actualiza no presente. Desta forma, a

    leitura e a interpretao da "escrita da histria" , ela prpria rememorao, que actualiza opassado no instante actual, o Jetzeit. Cesura, rememorao, actualizao, eis os trs

    momentos operatrios em que se concentra o conhecimento histrico. E justamente na

    fissura da histria, isto , nos seus instantes de suspenso, que se "constroem"

    dialeticamente os verdadeiros instantes histricos.

    1 O momento messinico por excelncia, para Benjamin, luz das teses da histria, o momentorevolucionrio, em que se opera a redeno das injustias passadas. Como modelo revolucionrio, Benjaminrefere-se revoluo que culmina na "sociedade sem classes" de Marx, como se pode ler nas teses de Sobre oConceito de Histria. Cf. tese IV, G.S., I, 2,pp. 694, 695 e tese XVII a.2Paris, Capitale du XIXe Sicle,[N 7a, 1], p. 487,traduo francesa de G.S., V, 1,pp. 587, 588: "A histriaanterior e posterior de um facto histrico aparecem nele graas sua apresentao dialctica. (...) Cada factohistrico apresentado dialecticamente polariza-se e torna-se um campo de foras quando a actualidade penetranele."

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    Tambm procuramos levar a cabo, aqui, a anlise da tese IX, o Angelus Novus. Um

    dos textos mais lidos e interpretados de Benjamin, como uma das alegorias mais belas e

    pungentes que jamais foram escritas sobre o tema. Se a tese nos reenvia imediatamente para

    a ideia benjaminiana da catstrofe da histria e se j encontrvamos no olhar do homem dobarroco1 uma prefigurao do sentimento de impotncia que acomete o anjo da histria,

    percebemos que a catstrofe reside na histria vista luz da ideologia do progresso2. A

    tarefa do anjo uma tarefa impossvel: sabe-o ele e sabemo-lo ns. Lemo-lo no seu olhar

    infinitamente triste. Mas ao historiador resta, ainda, o tempo possvel: o tempo messinico,

    como se h-de ver. Por isso, o historiador pede ajuda ao ano astuto da teologia, sabendo

    que a que radica a ltima possibilidade. Em nome da humanidade, o historiador no pode

    recus-la, pois cabe-lhe a ele a tarefa de reparar a histria e redimir a experincia humana.

    Como Benjamin o diz, na tese II de Sobre o Conceito da Histria, precisamente no final,

    "O historiador materialista sabe disso"3. O que sabe o historiador e que no lhe permitido

    esquecer? precisamente "a frgil fora messinica que cabe a cada gerao". S o

    redespertar dessa frgil fora permite, justamente, a reparao da histria e a restaurao

    messinica.

    Aos historiadores que clamam pelo progresso falta-lhes um outro olhar, aquele

    que descobre na pele morta o que foi o corao vivo. Falta-lhes o que essencial, num

    olhar voltado para o passado: a tarefa de ressurreio desse passado. Nesse sentido, prope-

    se a interveno de um outro conceito cuja presena se faz, aqui, pertinente e que o

    conceito de rememorao [Eingedenken]. No possvel restaurar o passado sem recorrer

    ao conceito de rememorao, a meu ver, absolutamente central no pensamento

    benjaminiano e que tem uma origem teolgica e prxima da tradio judaica.

    1

    Refiro-me ao texto A Origem do Drama Barroco Alemo, onde o olhar lutuoso e saturnino do homembarroco era j resultante do conhecimento profundo da histria como catstrofe da humanidade. Tudo seencontrava votado morte e ao declnio, como uma condio inevitvel da histria, na medida em que, napoca do barroco, a histria se encontrava destituda da possibilidade de salvao.2A catstrofe o prprio progresso e a histria que ignora os injustiados, que permanece indiferente aosofrimento. No caso do anjo da histria, a impotncia e a tristeza tm mais que ver com a impossibilidade,sentida por ele, de salvar os mortos, arrastado pelo vento do progresso, que lhe paraliza o voo salvador.3G.S., I, 2,p. 694.

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    Como Pierre Bouretz o afirma1, a ideia messinica foi, desde cedo, objecto de uma

    antinomia doutrinal de que o eco se estende at ao pensamento contemporneo. Ela

    assumiu formas de pensamento diversas, cruzou-se com modos de pensar mltiplos, e

    Bouretz, na sua obra, faz uma compilao dos pensadores messinicos dacontemporaneidade, onde inclui, alm de Walter Benjamin, outros pensadores, defendendo,

    assim, que a ideia do messianismo fez a sua entrada no palco da Histria como uma

    revitalizao do judasmo esclerosado. Assim, como o reconhece Walter Benjamin, desde

    logo, sentinela do seu tempo, para recorrer expresso de Bensad, apenas a intruso

    messinica pode insuflar uma novidade distinta da inspida e repetitiva modernidade2.

    Estar atento s armadilhas do mito do progresso, vigiar o verdadeiro fenmeno da

    histria, reencontrar o autntico sentido da experincia humana do tempo, parecem seraspectos a que o historiador no pode furtar-se. Trata-se de encontrar um outro quadro de

    temporalidade, distinto da temporalidade linear, uma temporalidade que incorpore em si, de

    forma orgnica, um ritmo de durabilidade. Todavia, enquanto Nietszche se orienta para

    uma viso mtica do tempo, Bergson para uma viso psicolgica, Benjamin, como Proust,

    procura uma temporalidade orgnica, afastando-se das perspectivas anteriores. No por

    acaso que o conceito de imagem dialctica, de memria e de tempo estejam to prximos

    do olhar de Freud, de Jung e de Proust. O lugar da redescoberta do tempo tambm o do

    despertar, da rememorao proustiana. Veja-se a esse propsito o livro de J. Benoist e F.

    Merlini3, onde estes autores defendem a ideia de que, para falar de uma revoluo e da sua

    poca, no sentido moderno do termo e para que se possa legitimar uma prtica

    revolucionria e atingir uma mudana radical, necessria uma ordem do real aberta

    mudana, seja ontologicamente, seja como horizonte partilhado das aces e discursos

    humanos. Deve-se, ento, concluir que o messianismo, tanto em Benjamin como nos

    1Tmoins du Futur, Philosophie et Messianisme, nrf essais, Gallimard, Paris, 2004, p.18.2BENSAID, Sentinelle Messianique,p.62.3Une Histoire de lAvenir, Messianit et Rvolution, p.9.

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    demais autores, se desenvolve como uma estratgia ou um pensamento estratgico, como o

    compreendeu claramente Bensad1, visando insuflar uma nova vida no judasmo.

    A modernidade, consciente da falncia do paradigma positivista da histria,

    inaugura, assim, uma ordem do real que pode ser interpretada como um processo mais

    dinmico e voltado para o futuro: a ideia de uma realidade que procede duma certa

    articulao da relao entre passado, presente e futuro.No nos encontramos, agora, em

    Walter Benjamin, diante de uma viso linear e lgica da histria e do tempo (to-pouco de

    uma viso mitolgica), mas sim de uma concepo norteada pela relao entre as trs

    dimenses do tempo (presente, passado e futuro), articulao essencial para poder pensar a

    Histria e a modernidade, que obtida a partir de uma dimenso de coexistncia, tendo no

    presente, porm, o seu ponto de polarizao e convergncia. O presente um lugar depassagem tpico2. Isto significa que o passado no seno o passado do presente e o

    futuro o advir do presente.

    Pensar assim, a partir desta fora do advir, parece ser a marca do pensar

    historicamente. A irrupo da revoluo sobre o plano da Histria obriga a uma

    subverso da perspectiva da temporalidade, que pensa a Histria revolucionariamente, no

    plano dinmico do advir. E a revoluo prope este modelo como a ultrapassagem daquilo

    a que chama uma pr-histria para a Histria, verdadeiramente vista, uma restaurao damesma. Consequentemente, toda a perspectiva messinica da Histria encontra-se

    indissoluvelmente suportada pela revoluo.

    Tambm Daniel Bensad salienta essa dimenso revolucionria do messianismo: O

    messianismo reside na convico () que as coisas no podem continuar assim.() Longe

    de se neutralizar, luta de classes e messianismo encorajam-se mutuamente contra a

    fatalidade.3Ele recusa, assim, o veredicto estabelecido. H um permanente inacabamento,

    1 Sentinelle Messianique, p. 158: Pensamento do virtual, a razo messinica , ao invs, um pensamentoestratgico. Por detrs da da pacfica delicadeza de Benjamin esconde-se um Messias armado.2Idem.3BENSAD,Walter Benjamin, Sentinelle Messianique,p. 93.

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    segundo este ponto de vista, que sempre posto em causa pelo retorno sobre si, uma

    reavaliao permanente da histria e do passado.

    Trata-se, em ltima anlise, de um outro olhar sobre a temporalidade, que supe

    uma subverso do conceito de tempo e da durao. Equacionar estas questes, procurar

    esclarecer o que caracteriza o pensamento benjaminiano na sua singularidade (ainda que a

    sua singularidade tenha de ser percebida num quadro conceptual comum a vrios

    pensadores) o objectivo fundamental do trabalho que aqui se expe.

    A distanciao e a crtica ao pensamento de Benjamin, a sua pertinncia e

    actualidade, tambm um dos objectivos desta tese, j que o seu pensamento se mantm

    vivo e ensinado com uma amplitude que tem crescido. A morte das ideologias, a reflexo

    acerca da comunicao e da linguagem, o pensamento da Europa e de uma Histria

    exangue1, todas essas questes parecem, mais do que nunca, acentuar a dinmica e a

    actualidade do pensamento de Walter Benjamin. Por isso, tentarei, numa ltima parte do

    trabalho, levar a cabo uma reflexo sobre as questes actuais levantadas no campo do

    messianismo.

    1Cf. Steiner,A ideia de Europa.

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    I. A PRIMEIRA FASE DA OBRA DE BENJAMIN: Em busca de um novo ideal

    de pedagogia e educao, a importncia do messianismo e dos ideais de juventude.

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    I. 1. Os primeiros anos da formao de Walter Benjamin ; em torno de um primeiroconceito de messianismo na sua obra; a ideia de uma comunidade espiritual.

    O mais tolo de todos os erros quando uma boa cabeajovem cr perder a sua originalidade, ao dar-se conta de umaverdade que j fora descoberta por outros.

    Goethe, Mximas e Reflexes, mxima 254, Guimareseditores, Lisboa, 1997, p. 63.

    Nos seus textos Crnica Berlinense (Berliner Chronik)1 e Infncia Berlinense

    (Berliner Kindheit um Neunzehnhundert)2 so textos de uma importncia fundamental e

    lamentamos, aqui, no os podermos desenvolver mais exaustivamente. Plenos de conceitos

    que Benjamin utiliza na sua obra e que comungam do esprito da sua poca, distinguem-se,

    tambm, pelo seu carcter singular e original. neles que Benjamin descreve a sua infncia

    e juventude, no seio de uma abastada famlia judaica assimilada, vivendo em Berlim. A

    partir de 1871 os avs de Walter Benjamin, do lado materno, passaram a residir em Berlim,

    numa poca em que esta capital europeia estava em grande expanso. O seu pai, Emil

    Benjamin, tinha sado de uma famlia de negociantes, estabelecida na Rennia. Pauline

    Schnflies,a me de Benjamin era aparentada com o poeta e escritor Henrich Heine e irm

    do clebre matemtico Arthur Schnflies.

    De acordo com os seus bigrafos Bernd Witte3e Pulliero4, o perodo da infncia e

    da juventude de Walter Benjamin decorreu sob o signo da tranquilidade, considerada por

    ele como uma idade de ouro, nunca ameaada por preocupaes de ordem material. Em

    Infncia Berlinense: 1900, obra de uma extraordinria riqueza e complexidade, toda

    1WALTER BENJAMIN,G.S., VI,pp. 465-519.

    2

    WALTER BENJAMIN,G.S.,IV, 1,pp. 234-304.3BERND WITTE,Walter Benjamin, Une Biographie.

    4 Gostaria de citar as obras biogrficas de MARINO PULLIERO, Le Dsir d'authenticit, e de Jean-MichelPalmier,Le Chiffonnier, l'Ange et le Petit Bossu, que foram fundamentais para o meu conhecimento biogrficodo autor e sobretudo do desenvolvimento intelectual durante a sua juventude. M ARINO PULLIEROestabelecede forma muito rigorosa o contexto cultural do desenvolvimento da obra de Benjamin, nas seus primeirosescritos, ainda que o interesse de Pulliero seja essencialmente o de um ponto de vista do historicismo dasideias.

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    constituda por aquilo que Benjamin designa por imagens-pensamento [Denkbild]1, o autor

    evoca a condio privilegiada da sua infncia.

    Como veremos posteriormente, a imagem um conceito absolutamente central para

    perceber o pensamento de Benjamin2. No apenas como fonte de reflexo de uma nova

    apresentao do pensamento, regido por um modelo fragmentrio de escrita, mas

    igualmente como uma estrutura concreta, isto , apontando para novas formas de

    representar e compreender o conhecimento da histria e do passado, sendo as imagens -

    sobretudo as imagens-dialcticas - a possibilidade de recuperar, por um movimento

    destrutivo (o da formao da imagem), o prprio passado, nos seus vestgios e rastros, por

    um movimento de evocao e, simultaneamente, de reactualizao. Modo operatrio de

    conhecimento da histria e da arte, a imagem faz despoletar toda uma nova compreensodo pensamento filosfico que, at a, no havamos encontrado seno em alguns autores,

    como, por exemplo, Aby Warburg3, que colocou, igualmente a imagem como o centro

    nevrlgico do seu pensamento. No nos parece descabido afirmar, em Walter Benjamin,

    como em outros autores que pertenceram a uma mesma constelao histrica, a percepo

    1Traduzida literalmente por imagem do pensamento, constitui-se como um conceito polmico, ao longo dasua histria. De acordo com Theodor Adorno, Sur Walter Benjamin,p. 31, foi no romance de Stephan George

    Der Siebente Ring, de 1907, que apareceu esse conceito, referindo-se a Mallarm. Tendo sido fortementeatacado por Borchardt, na recenso crtica que dedicou ao livro de George, no conheceu grande expresso nalngua alem, nessa poca. Ainda na opinio de Adorno, o seu sentido alterou-se em Benjamin, j nada tendoa ver com o de George. "As imagens de pensamento de Benjamin so, elas prprias, imagens platnicas, masapenas no sentido em que se falou de um platonismo de Marcel Proust", evocando o passado a partir do

    presente. So, como Benjamin defende, escritos dialcticos ou que se processam de acordo com o seuconceito de imagem-dialctica, apresentado no Livro das Passagens, isto , como cesuras (G.S., V, 1,p. 595)ou interrupes da continuidade do pensamento, constelaes onde se desenvolve a dialctica da imagem e do

    pensamento, como explicaremos adiante. No entanto, como refere Antnio Guerreiro, em "A difcil Arte dePassear", Semear, n6, oDenkbildconverte-se numa forma tpica de literatura, de carcter fragmentrio, entrea poesia e a crtica social, que conheceu o seu desenvolvimento nos poemas em prosa de Baudelaire, e foicultivada por escritores e pensadores da modernidade que fazem parte de uma mesma famlia de autores a que

    pertenceu Walter Benjamin: Brecht, Kracauer, Adorno, Ernst Bloch, Kafka. Renunciando, de alguma forma, a

    uma narrativa, este gnero literrio apresenta-se, antes, como um "diagnstico social da sua poca."2Ela reflecte-se, de vrias formas e em vrias acepes, ao longo de toda a sua obra. Enquanto elementoconstrutivo e depositrio das formas cognitivas, estabelece uma relao (de tenso) entre a realidade e oimaginrio, entre a ideia e o fenmeno, concentrando em si uma pluralidade de significaes que sediferenciam, enquanto formas diversas de representao: imagem alegrica, imagem dialctica, imagem dedesejo, imagem arcaica, fantasmagoria, imagem onrica.3 Aby Warburg defendeu o conceito da "imagem em movimento". Ver, a este propsito os textos de DIDI-HUBERMAN,Devant l'Imagee, tambm,L'Image Survivante.

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    clara de o paradigma narrativo se encontra em crise e que preciso explorar novos

    caminhos para a representao e para a reflexo, pressupondo novas formas de aceder ao

    conhecimento. O fragmento, o aforismo, a imagem, tomadas enquanto modos concentrados

    de apresentar a ideia na imagem, parece ter sido uma via alternativa que vrios autores -tomando Benjamin como um caso privilegiado - consideraram seriamente.

    No por acaso que a imagem-pensamento [Denkebild] aparece ligada a um mundo

    atingido pela experincia do choque [Chockerlebnis]1, da descontinuidade e da

    fragmentao da vivncia quotidiana. ela, enquanto imagem, que permite dar conta da

    voragem descontnua e arruinada do tempo. Foram precisamente os temas da decadncia da

    tradio e dos valores, de uma violncia da experincia arruinada, e da consequente

    necessidade de repensar esses conceitos, que levaram Benjamin urgncia de novas formasde repensar a modernidade, luz de novos conceitos ou de conceitos resgatados tradio

    filosfica e reformulados.

    1 sobretudo no Livro das Passagens (G.S., V, I e II) e nos estudos sobre Charles Baudelaire, em CharlesBaudelaire, um Poeta Lrico no Apogeu do Capitalismo [Charles Baudelaire. Ein Liriker im Zeitalter desHochkapitalismus (G.S., I, 2) que Benjamin vai dedicar-se exaustivamente reflexo sobre a Erlebnis(experincia vivida).

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    I.2. A Juventude de Benjamin; a procura de um novo ideal de pedagogia e deeducao. Tradio ou modernidade?

    Tendo seguido o padro de uma educao semelhante ao dos jovens alemes da

    burguesia, Benjamin obteve o seu Abitur(bacharelato) em 1912, ento com a idade de 20

    anos. Foi, no entanto, a partir da sua estadia em Haubinda, durante dois anos, que mais se

    definiu o carcter de Benjamin1. Muito influenciado por Gustav Wyneken e pelos seus

    ideais pedaggicos, ele tem conscincia, pela primeira vez, de que o seu desejo de

    encontrar um ideal de educao e de pedagogia pode ser levado a srio. Na verdade, estes

    autores vm ao encontro das inquietaes benjaminianas, relativamente ao ensino tal como

    se processava na poca e a que Benjamin tecia constantes crticas2

    . No estabelecimentofundado por Paul Geheeb e Wyneken, a vida que Benjamin leva nessa comunidade

    educativa3, em que professores e alunos tm direitos iguais e partilham os mesmos

    objectivos, transformou Benjamin num defensor da reforma escolar durante os anos da

    Primeira Guerra Mundial.

    J nesta poca, reconhecemos claramente o anseio messinico de Benjamin. A

    leitura benjaminiana de Hueber, de que fala a Carla Seligson, nessa mesma carta, tocou-o

    sobremaneira, no sentido em que afirma: "Nenhum dos meus amigos o tinha lido.Finalmente, encontrava aqui a resposta que simples: ns, ns que compreendemos

    1 V. a este propsito todo o captulo Bildung, em MARINO PULLIERO, Walter Benjamin, le DsirdAuthenticit. Nesta obra, o autor estabelece, de modo excelente, a relao entre Walter Benjamin e ocontexto da Bildung em que se integra a sua obra. Para os aspectos da primeira fase da sua obra, segui,tambm, a leitura de TAMARA TAGLIACOZZO,Esperienza e compito infinito nella filosofia del primo Benjamin.2Essas crticas so constantemente referidas na sua correspondncia, exprimindo o seu descontentamento,relativamente a alguns aspectos do ensino universitrio.3Na carta a Carla Seligson de 15 de Setembro de 1913, Briefe, I, p. 92, como se pode ler, esta comunidade

    espiritual capaz de se assumir a si prpria como uma verdadeira comunidade espiritual e, nela, a juventudeest, aos olhos de Benjamin, investida de um papel messinico, pois o messianismo est associado imagemdo Reino de Deus, que cada um transporta em si: Aber jedem einzigen Menschen, der irgend wo geborenwird und jung sein wird, liegt nicht die Besserung, sondern schon die Vollendung, das Ziel, vom demHueber so messianisch empfindet, wie nahe es uns ist. Heute fhlte ich die ungeheure Wahreit des WortesChristi: Siehe das Reich Gottes ist nicht hier und nicht dort, sondern uns. Essa carta, do nosso ponto devista, ainda que eivada de um esprito juvenil e cheio de esperana - tom que se dissipar na sua obra futura - extremamente importante para traduzir as inquietaes benjaminianas desde a sua juventude, ao mesmotempo que nos mostra a persistncia das mesmas no fio da sua obra e do seu pensamento.

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    Hueber, sentimos (...) toda a plenitude da nossa juventude - os outros, os que no sentem

    nada, no so jovens. Eles nunca foram mesmo jovens. Nunca experimentaram a alegria da

    nossa juventude, seno depois de ela j ter passado, como lembrana." Esta alegria e,

    mesmo, "intensa felicidade da presena da juventude" refere-se possibilidade que ajuventude tem de levar a cabo o que nela traz de melhor e no apenas no sentido de

    aperfeioamento. o cumprimento de um fim [Das Ziel]1e este fim o reino messinico.

    A ideia de que "o Reino de Deus no est aqui nem ali", mas que verdadeiramente se situa

    em ns2, tomada neste contexto especfico, remete-nos para a ideia de que a tarefa

    messinica o que cabe a "cada gerao"3. O entusiasmo de Benjamin diante da leitura de

    Hueber visvel, pela razo de que este lhe permite o alargamento da descoberta da

    interpretao mais plena das palavras de Cristo, reconhecendo com alegria algo que

    percebe como fundamental e que pode servir como um ponto de partida.

    Nessa carta animada pela esperana, Benjamin refere que o que jovem no o que

    est ao servio do esprito, mas sim o que espera o esprito4. Estar a referir-se espera, no

    1Briefe, I,p. 92. Mais tarde, Benjamin, aps a leitura da obra de Ernst Bloch (1918), O Esprito da Utopia,radicalizar a sua posio, estabelecendo no seu breve e enigmtico texto Fragmento Teolgico-Poltico[Theologisch-Politisches Fragment], de 1938, uma clivagem entre fim [Ziel] e termo [Ende]: "Darum ist das

    Reich Gottes nicht das Telos der historischen Dynamis; es kann nicht zum Ziel gesetzt werden. Historischgesehen ist es nicht Ziel, sondern Ende. Darum kann die Ordnung des Profanen nicht am Gedanken desGottesreiches aufgebaut werden, darum hat die Theokratie keinen politischen sondern allein einen religisenSinn." J no o satisfaz aqui o termo Ziel (alvo, objectivo) por considerar que o reino messinico pressupeuma clivagem entre o tempo histrico - esse sim, que se rege pelo fim - e o termo Ende, que diz respeito auma ordem que est para alm do profano e que de uma ordem teolgica. O que est em causa a dimensoda espera, que se sobrepe ordem profana e supe uma dimenso mstica e metafsica da histria.2Logo a seguir ele remete-nos para a leitura de Plato sobre o amor, deixando em ns a convico de que oreino messinico de que fala e que se encontra em cada um de ns, se constitui como uma ideia platnica:"Gostaria de ler convosco o dilogo de Plato sobre o amor, onde est to bem dito e com uma profundidadeque no se encontra em parte alguma, sem dvida."3Muitos anos mais tarde, em 1940, quando Benjamin redige Sobre o Conceito de Histria,na segunda tese,G.S., I, 2,pp. 693, 694, vai referir-se a uma "parcela messinica" que cabe a cada gerao, uma "frgil foramessinica" [eine schwache messianische Kraft]. Arriscando a nossa interpretao e, no obstante a distnciatemporal que permeia os dois textos (o primeiro uma carta de 1913, que esboa as linhas de um dos primeirostextos benjaminianos, A Vida dos Estudantes, o segundo o ltimo texto redigido pelo autor), constatamos a

    presena de uma mesma linha de pensamento, que nunca foi abandonada. Se, numa primeira fase, o "reinomessinico" algo que se encontra em cada um de ns, essa ideia alterada na tese II de Sobre o Conceito deHistria,pois o messianismo, essa "frgil fora messinica" algo que se encontra presente em cada gerao.4Carta a Carla Seligson, Briefe, I,p. 92: "(...) Ser jovem menos estar ao servio do esprito do que esperaro esprito".

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    sentido messinico? Falando de uma "perptua vibrao do sentimento disponvel para a

    abstraco do esprito na sua pureza"1, eis a maneira como define a juventude, isto , aquela

    que se abre espera do reino messinico, para contribuir para o advento da "nova

    realidade". Deste modo, a espera concentra toda a ateno de um ideal utpico dajuventude, sendo simultaneamente a atitude que possibilita "o olhar livre para ver o

    esprito", esteja ele onde estiver, mas acreditando claramente que a origem do advento se

    encontra em cada um de ns e que s pode acontecer se houver um "olhar puro", livre e

    disponvel para a abstraco do esprito. Benjamin refere-se, certamente, capacidade de

    reconhecer o ideal messinico que se apresenta na histria. Benjamin refere-se aqui

    clareza de esprito como uma condio necessria libertao do "pensamento

    determinado", referindo a "cultura da juventude" como uma iluminao que "atrai o

    pensamento". Ele rejeita a ideia de "movimento", o qual aniquila a liberdade do

    pensamento2.

    Esta realidade messinica que se apresenta d-se na prpria realidade histrica, num

    sentido muito concreto de "tarefa histrica", como compreendemos no seu textoA Vida dos

    Estudantes,pela razo de que, na primeira pgina deste texto, Benjamin abre-o, anunciando

    a sua inteno com clareza: "a tarefa histrica a de dar forma absoluta, em toda a pureza,

    ao estado imanente de perfeio3, de o tornar visvel e de faz-lo triunfar no presente."4

    1Idem.2Idem: "O mais importante: no nos fiarmos em nenhum pensamento determinado (...) Mas, para muitos,mesmo Wynecken, mesmo o Sprechsaal, so definitivamente um movimento; eles esto fixados nisso e

    j no vem onde o esprito se manifesta com mais liberdade e numa abstraco mais serena". Podemos ver,aqui, a tendncia de Benjamin para uma autonomia que, desde muito cedo, se revelou e lhe marcoudecisivamente o pensamento, avesso a correntes e a escolas.

    3Ainda que, neste texto, Benjamin fale de um "estado imanente de perfeio", ao qual a tarefa histrica terde tornar visvel e actual, no entanto, em textos posteriores, como haveremos de ver, como, por exemplo, oFragmento Teolgico-Poltico, a ordem messinica de uma ordem transcendente e preciso abolir a prpriaordem profana, para tornar visvel o que naturalmente de uma ordem transcendente. Isso ser claramenteabordado na anlise dos textosA Crtica da Violnciae O Fragmento Teolgico-Poltico.4 G.S., II, 1, "Das Leben der Studenten", p. 75: "Den immanenten Zustand der Vollkommenheit rein zumabsoluten zu gestalten, ihn sichtbar und herrschend der Gegenwart zu machen, ist die geschichtlicheAufgabe."

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    J aqui entrevemos algo que se tornar muito importante nos seus textos futuros, e

    que a actualidade messinica1. Fazer triunfar no presente o "estado imanente da

    perfeio", torn-lo visvel, implica actualiz-lo, isto , mostrar como o "reactualizar da

    histria"2. Esta ideia da reactualizao ou da "actualizao do tempo" muito prxima,para Moss, do tempo tal como aparece em Rosenzweig3, na sua obra A Estrela da

    Redeno.

    1Certamente que esta uma das categorias essenciais que caracterizam o messianismo benjaminiano, mas elas aparecer nos textos de O Livro das Passagens (no captulo dedicado ao conhecimento histrico) e nas

    teses da histria, em Sobre o Conceito de Histria.2No queremos, aqui, antecipar demasiadamente, mas referir que esta reactualizao de que se fala aqui deuma ordem de apresentao dialctica. na imagem dialctica que o passado se reactualiza e chega ao

    presente, cabendo ao historiador a sua leitura e interpretao. Cf. G.S., V, 1, [N 2 a, 3], pp. 576, 577, [N 3, 1],p. 578.3STEPHANE MOSES,L'Ange de l'Histoire,pp. 169-171. O tempo da redeno messinica o tempo actual. Afigura da interrupo messinica, ao mesmo tempo destrutiva e reparadora, como se h-de ver, d-se sempreno instante presente, que engendra algo de radicalmente novo, uma nova ordem.

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    Excurso: Walter Benjamin e Rosenzweig

    A proximidade do pensamento de Benjamin e Rosenzweig (que Benjamin leuatentamente), curiosamente, mais implcita no que respeita aos aspectos polticos e

    sociais, apesar dos aspectos comuns. Nas suas cartas a Scholem1, Walter Benjamin fala da

    importncia da teoria de Rosenzweig para a sua interpretao da tragdia, nos seus aspectos

    mais essenciais, distinguindo-os dos inerentes ao drama barroco alemo. Em todo o

    captulo em que Benjamin se dedica anlise da figura do heri trgico2ecoam as palavras

    de Rosenzweig3.

    A noo de redeno , no pensamento de Rosenzweig, uma categoriafundamental4, a par das categorias da Revelao e de Criao. Ainda que Benjamin no se

    refira a estes aspectos do pensamento de Rosenzweig, cingindo-se teoria do trgico,

    sabemos, pela correspondncia que manteve com Scholem, como foi marcante para o

    jovem Benjamin a leitura de A Estrela da Redeno. As anlises de Moss5 e de Pierre

    Bourretz6, de Bensussan7, de Michael Lwy8, permitem-nos compreender o modo como os

    os vrios aspectos de Rosenzweig tanto marcaram o pensamento de Walter Benjamin.

    1Carta a Gerhard Scholem, de 19 de Fevereiro, 1925. Cf. Briefe, I, p. 373. A este propsito ver o texto deMARC SAGNOL,Tragique et Tristesse,pp. 115-140.2G.S., I, 1, "Ursprung des deutschen Trauerspiels", pp.284-289.

    3 Cf. FRANZ ROSENZWEIG,L'toile de la Rdemption,pp. 94-101, traduo francesa de Der Stern derErlsung,pp. 76-80.4Cf. a este propsito a obra de MOSES,Systme et Rvlation,pp. 127-130.5LAnge de Lhistoire, no captulo que consagrou a Rosenzweig. Cito tambm a sua obra, dedicada

    especialmente a Rosenzweig, Systme et Rvlation, La Philosophie de Franz Rosenzweig.6Tmoins du Futur.7O autor consagrou vrios artigos ao estudo do pensamento de Rosenzweig, como traduziu algumas obras doautor: Hegel et l'tat, Foi et Savoir. Autour de l'toile de la Rdemption (com Marc de Launay e MarcCrpon). Sobre Rosenzweig, escreveu alguns captulos, Le Temps Messianique e a obra Franz Rosenzweig.Existence et philosophie.8Rdemption et Utopie. Le judasme libertaire en Europe centrale,pp. 62-91.

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    Na verdade, a redenoconstitui-se como o ncleo a partir do qual se estrutura toda

    a nossa experincia da histria, tanto em Rosenzweig como em Scholem e em Walter

    Benjamin. Ela apresenta-se na linguagem e , como o nota Moss, atravs dela que se

    exprime a nossa nostalgia de um mundo melhor.1E vivida como um modo de espera. Aconcepo que lhe preside a de um mundo inacabado cujo acabamento apenas pode ter

    lugar num futuro. a este estado final do mundo que Rosenzweig chama o Reino2.O que

    se torna interessante, nesta concepo, a dupla dimenso de que ela se reveste, a um

    tempo histrica e simblica.

    Tal como em Hegel e em Marx, tambm para Rosenzweig a histria se constitui

    como o mdium atravs do qual se cumpre o fim. Porm, em Rosenzweig, a viso da

    histria bebe a sua origem na teoria da evoluo, que se funda sobre uma percepoorganicista do tempo histrico. Como o assinala Moss, animada por uma finalidade em

    tudo comparvel quela que se inscreve no corao da vida3. Tal como ela se move por um

    um mpeto vital, tambm se encontra sujeita s contingncia e limitaes da prpria vida. E

    este aspecto tensional, da histria movendo-se entre as foras da vida e da morte, parece ser

    o cerne da sua concepo. E do conflito que, assim, se instala no mesmo e determina um

    inacabamento essencial e intrnseco a cada instante. Cada instante feito de uma tenso

    entre as tendncias antagonistas4. Tal como a vida, a histria aparece luz dessa

    irreparao que convm contingncia,