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1 WALTER CARVALHO E A TRADUÇÃO DA LUZ TROPICAL São Paulo 2006

WALTER CARVALHO E A TRADUÇÃO DA LUZ TROPICAL

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WALTER CARVALHO E A TRADUÇÃO DA LUZ TROPICAL

São Paulo 2006

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Cardeal, José Paulo Freire Walter Carvalho e a tradução da luz tropical / José Paulo Freire Cardeal – São Paulo, 2006 61p. Monografia de conclusão de curso – Centro Universitário Senac – Campus Scipião – Especialista em Comunicação e Artes com Ênfase em Fotografia. Orientadora: Ms. Isaura da Cunha Seppi 1.Cinema 2.Cinema Brasileiro 3.Cinematografia 4.Linguagem cinematográfica

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Sumário Introdução ................................................................................................................... 7Sobre o trabalho do diretor de fotografia ............................................................................ 16Características do sol no território brasileiro ....................................................................... 21Metodologia ............................................................................................................... 31Pequeno Dicionário Amoroso (1997), 91 minutos, direção de Sandra Werneck. ............................... 33Central do Brasil (1998), 113 minutos, direção de Walter Salles. ................................................ 33Lavoura Arcaica (2001), 171 minutos, direção de Luiz Fernando Carvalho. .................................... 35Amores Possíveis (2001), 98 minutos, direção de Sandra Werneck. ............................................. 36Abril Despedaçado (2001), 105 minutos, direção de Walter Salles. ............................................. 37Madame Satã (2002), 105 minutos, direção de Karim Aïnouz. .................................................... 39Amarelo Manga (2002), 103 minutos, direção de Cláudio Assis. .................................................. 41Carandiru (2003), 148 minutos, direção de Hector Babenco. ..................................................... 43Cazuza - O Tempo Não Pára (2004), 98 minutos, direção de Walter Carvalho e Sandra Werneck. ......... 44A fotografia de Walter Carvalho ....................................................................................... 47Imagens de exterior/dia ................................................................................................ 49Imagens de interior/dia ................................................................................................. 56Imagens de interior/noite .............................................................................................. 59Filmes sem compensação ............................................................................................... 60Filmes com maior compensação ....................................................................................... 61Imagens de exterior/noite .............................................................................................. 62Paletas de cores .......................................................................................................... 64Cenas externas/dia ...................................................................................................... 65Céus ........................................................................................................................ 68Cenas internas/dia ....................................................................................................... 69Janelas ..................................................................................................................... 71Relação interior/exterior ............................................................................................... 72Nascente e poente ....................................................................................................... 74Cenas externas/noite ................................................................................................... 75Cenas internas/noite .................................................................................................... 76O sol e o sofrimento ..................................................................................................... 78O sol e o prazer .......................................................................................................... 79O céu de São Paulo ...................................................................................................... 80Mudanças de contraste .................................................................................................. 81Uso simbólico da cor ..................................................................................................... 82Conclusão ................................................................................................................. 83Referências bibliográficas .............................................................................................. 89Entrevista ................................................................................................................. 91

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Introdução

“A luz é a ideologia, o sentimento, a cor, a atmosfera, a profundidade e a narração de um filme...”

Federico Fellini (ARONOVICH, 2004)

Durante muitos anos, considerou-se que as primeiras imagens cinematográficas feitas em nosso território tinham sido feitas pelo italiano Affonso Segreto em 1896. O registro em preto e branco da então capital da República, a cidade do Rio de Janeiro, vista do convés do vapor Brazil.

A descoberta posterior de que o primeiro a rodar a manivela de uma câmera em território brasileiro tinha sido um nativo, José Roberto da Cunha Salles1

O cinema das primeiras décadas, como o explorado pelos exibidores no Rio e em São Paulo em fins do século XIX, é o cinema de mostração, parte de um modelo que privilegiava a exibição das possibilidades da então novidade tecnológica, e os filmes aqui produzidos eram idealizados para suprir essa demanda. Filmes naturaes (documentários), posados (ficção), revista (musicais), conviviam com outros gêneros

, modificou muito pouco o cenário. Literalmente falando, pois a cena filmada era a mesma: como de costume na época, o registro em filme tinha um valor documental, e foi feito para registrar uma paisagem típica, como uma lembrança para o futuro, reproduzindo em movimento o que já era exaustivamente retratado pelos pintores e fotógrafos de panorâmicas.

1 “Descoberto o primeiro filme brasileiro” in Revista da USP, n°19, p. 171-173.

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como os dramas moraes e os filmes patrióticos. Todos modelos que vinham dos centros irradiadores da nova cultura, Europa e Estados Unidos, com estruturas narrativas e plásticas já definidas, e aprovados pelas audiências do norte.

Das cenas de Salles e Segreto da baía da Guanabara, inocentes em suas intenções, às não tão inocentes imagens dos filmes estrangeiros em que o país figura como destino de foragidos da polícia ou paraíso das mulheres lânguidas e canastrões latinos, o Brasil tentou alguns caminhos para a implantação de uma indústria cultural cinematográfica. Tentaram os pioneiros de Campinas, Recife, Cataguases. Tentou-se o modelo industrial na Cinédia, Atlântida, Maristela e Vera Cruz. A produção passou por ciclos econômicos, alternância de modelos, de escolas. Mas a força da produção local em poucos momentos fez frente ao ideário e ao imaginário estrangeiro que nos retratava, muitas vezes de maneira superficial e pré-concebida. Firmou-se, com base inclusive na nossa incapacidade de construção de outra imagem, a idéia do Brasil associada ao exótico, ao sensual, ao permissivo.

Um clássico do cinema mundial, Orfeu Negro (100 min., cor, 1959), dirigido por Marcel Camus, foi premiado em Cannes com a Palma de Ouro, finalista de melhor filme no BAFTA (Inglaterra) e Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960. Mostrava um Brasil artificial, alegórico, que causou estranheza, riso e deboche quando foi exibido aqui (SILVA, 1998). A mediação e o filtro do olhar estrangeiro alteraram tanto a imagem do brasileiro que não nos reconhecemos em tela. A reação, quando assistimos a uma produção assim, se parece um pouco com a pergunta que nos fazemos ao encararmos uma caricatura: será que sou assim? São mesmo meus estes traços exagerados, ou o artista não foi competente?

Padecemos, simultaneamente, do desconhecimento de nossa cultura por parte do mundo e da necessidade de reconhecimento exterior para chancelar a qualidade de algum produto, seja ele cultural ou industrial. Não temos a penetração internacional da cultura americana ou européia, nem temos a força da produção própria reconhecida pelo público nativo, como o cinema indiano ou o nigeriano. Ainda não temos balizadores confiáveis de que nossa produção esteja indo pelo caminho certo, se são as seleções, menções e prêmios do exterior, se são os números das bilheterias, se é a opinião do público ou da crítica.

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Público e crítica que mudaram consideravelmente nos últimos anos. O expectador não é o mesmo que, nos anos 1950, lotava salas imensas para ver as chanchadas2, nem aquele que freqüentava pequenos cinemas para ver o cinema marginal nos anos 1970 3

A crítica passou por diversas fases. Do tom ingênuo e nacionalista que criticava a “americanizada” Carmen Miranda nos anos 1950, passou à militância nos anos 1960 e à aproximação da vanguarda com as culturas populares, que teve início no tropicalismo e dividiu a crítica a partir dos anos 1970 entre os partidários de um cinema militante e doutrinador e os que assimilavam sem culpas as influências populares.

. Desde a abertura política e econômica, o modelo de exibição mudou radicalmente, com o fechamento de inúmeras salas e a maior concentração dos projetores nas mãos de poucos grupos. O dado mais recente no quesito público é a proliferação de salas tipo multiplex, controladas muitas vezes por grandes empresas estrangeiras, com a mudança do perfil do expectador nas grandes cidades: somem dez pagantes de cinco reais, surgem dois de quinze. O barateamento dos aparelhos de DVD também é um dado novo e que ainda não teve seu impacto na freqüência do cinema devidamente analisado.

Uma passada de olhos por nossa cinematografia nos mostra que alguma identidade já pode ser delineada. A despeito da nossa pobreza de meios e dos poucos períodos de produção continuada, conseguimos colecionar alguns filmes memoráveis, em que não

2 Chanchada é o termo genérico que abrange uma série de filmes que reunia música, romance, aventura e comédia, cujo pico de produção ocorreu dos anos 1940 até o final dos anos 1950. Modelo de produção que fez sucesso de público, mas dividia a crítica, as chanchadas eram indissociáveis do rádio, do teatro de revista e das marchinhas de carnaval. Embora hoje pareçam ingênuas quando vistas em perspectiva, as produções representavam uma liberalização de costumes razoável para a época. O uso exaustivo da fórmula em produções sucessivas acabou por desgastar o gênero e, com o declínio do rádio e o surgimento da televisão, viu seu modelo migrar para o novo veículo ao longo dos anos 1960. 3 No final da década de 1960, jovens diretores ligados de início ao Cinema Novo romperam, aos poucos, com a antiga tendência, em busca de novos padrões estéticos. O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, e Matou a família e foi ao cinema, de Júlio Bressane, são os filmes-chave dessa corrente underground alinhada com o movimento mundial de contracultura e com a explosão do tropicalismo na MPB. Podem ser citados também Ozualdo Candeias (A margem), Andrea Tonacci (Olho por olho) Carlos Reichenbach (Essa rua tão Augusta) e o diretor, roteirista e ator José Mojica Marins (No auge do desespero, À meia-noite levarei sua alma), também conhecido como Zé do Caixão.

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figuramos como coadjuvante exótico, mas como protagonista, narrador, musa, herói ou, simplesmente, como assunto. Em cada ciclo, podemos identificar temáticas, tratamentos e autores característicos, sinais de diferenciação do que se produzia então no mundo, o que já configura alguma personalidade.

A linguagem do cinema comercial atual foi estabelecida, em grande parte, ao longo dos primeiros 30 anos do século XX, na Europa e nos Estados Unidos. Das estruturas de roteiro aos significados de planos, da decupagem à montagem, na absorção do recurso do som, livros e teses foram discutidos na Itália, na França, na Rússia. Concepções estéticas da fotografia e da pintura foram incorporadas nas construções de planos significativos, no uso do chiaroscuro, etc. Estudantes de cinema aprendem, desde o primeiro rolo, qual a diferença de contraste mais adequada para retratar uma tragédia ou uma comédia.

Daí surgiu, para mim, o mote deste trabalho. À procura da fonte de tais parâmetros, não consegui encontrar um estudo, um trabalho, um teórico, que me apontasse as causas exatas de tais distinções. Parecia-me que tais parâmetros eram arbitrários, ou baseados em uma experiência não natural para mim, que nasci e cresci sob o sol dos trópicos.

Sol a pino. Imagens do sertão, ou do cerrado, inundados pelo sol do meio dia. Ou imagens do sul, banhadas pelo sol angulado, que dá longas sombras na topografia plana. Ou sol de São Paulo, difundido pelas nuvens constantes e rebatido pelos prédios. Ou o sol filtrado pelas folhas das árvores, na floresta amazônica ou na floresta da Tijuca. Quantas luzes são possíveis no Brasil? Quantas histórias se passam abaixo desse sol? Qual o papel desse sol, desses sóis, em cada história?

Ficou claro como o dia que o sol tropical é mais do que um coadjuvante em nossas histórias quando li o ensaio Verão em Irará, do músico Tom Zé para a revista Bravo de janeiro de 2005. Tom dizia que o sol de sua infância em Irará era malvisto, era um sinônimo de seca e mau agouro para as plantações de fumo que sustentavam a economia local, e que o caminho entre este conceito e o de que o sol também pode ser sinônimo de o que o sol pode significar vida e prazer demorou a maturar em sua vida, tendo somente se consolidado quando ele se mudou para o Rio, nos anos 70. A mudança de latitude, combinada com a mudança de cultura, passou a dar outros significados ao sol, ao dia, aos contrastes. Embora provocados pela mesma fonte de

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luz, o sol, não há como confundir o suor do agricultor no sertão brasileiro com o suor do banhista na praia de Copacabana, para ficar em duas imagens marcantes da iconografia do cinema brasileiro.

O que há de fato e o que há de convenção no uso do sol, dos contrastes tropicais e das funções dramáticas da luz seria um bom ponto de partida para um questionamento com quem tem de lidar diariamente com essa questão. Passei a pesquisar qual a forma de fotografia dominante em cada momento da cinematografia brasileira de ficção, na procura de uma marca nacional com relação ao tema.

Ilustração 1: Rio 40 Graus (100 min. p&b, 1955) Direção de fotografia de Hélio Silva.

Foi o Cinema Novo o primeiro movimento no Brasil que lidou com a questão da luz tropical de maneira mais independente do padrão clássico do cinema. Considerado o marco inicial do Cinema Novo, o filme Rio, 40 Graus, de Nélson Pereira dos Santos, fotografado por Hélio Silva, trazia o sol do Rio implícito no título e absolutamente impresso no celulóide.

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Dito assim parece que assumir os contrastes mais próximos do natural foi algo simples e sem traumas. Mas, oito anos depois, a fotografia de Vidas Secas4

O resultado visual foi tão impactante para a cultura vigente que o laboratório que processou o material tentou “consertar” o negativo superexposto, de forma a evitar que as altas luzes vindas do fundo invadissem o primeiro plano. A discussão sobre a validade de se compensar as sombras com muita luz artificial, que já vinha da polêmica do uso do flash no fotojornalismo (campo de atuação original de Barreto), chegava ao cinema com força.

, que dispensou o uso de filtros, só foi possível após a aprovação do resultado, na sala de projeção, dos primeiros copiões do filme, que foram feitos de duas tomadas, uma compensando fortemente as sombras, à maneira clássica, e a outra com a chamada “lente nua”, defendida pelo fotógrafo Luiz Carlos Barreto. A exposição do filme foi feita preferencialmente para a sombra, deixando os brancos superexpostos, com a conseqüente perda de detalhe nas áreas mais claras.

Ilustração 2: Vidas Secas (103 min., p&b,1963) Direção de fotografia de Luiz Carlos Barreto e José Rosa.

4 Vidas Secas (103 min., p&b, 1963), dirigido por Nélson Pereira dos Santos, fotografia de Luiz Carlos Barreto e José Rosa.

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A despeito dos Gangas Brutas5, dos Limites6, dos Cangaceiros7, dos Deuses e dos Diabos8

A elaboração de uma identidade para o cinema brasileiro ainda está em curso. Após anos de pouca e inexpressiva produção, aos poucos vamos retomando um ritmo de lançamentos em números regulares, que já movimentam a pequena reserva de mão-de-obra especializada, que cresceu e sobreviveu nos anos de estio com trabalhos na publicidade e na televisão. Talvez esta origem menos dogmática e mais voltada para resultados objetivos, como retorno comercial e de audiência, seja um componente diferencial que possibilite uma continuidade da indústria.

, durante muito tempo público e crítica preferiram uma versão meramente reprodutiva do cinema de estúdio americano. O sucesso das chanchadas, com suas luzes de compensação fortíssimas, pouca área de sombra fechada, e a militância de fotógrafos estrangeiros na Atlântica e na Vera Cruz retratam bem a popularidade do tratamento estético setentrional. Esta equação também inclui lobby dos estúdios americanos, empenhados no esforço diplomático de guerra, que viu o cinema como laço entre os americanos do norte com os brasileiros e seu presidente indeciso entre o apoio aos aliados ou ao Eixo nos anos 1940, ou como arma contra o perigo comunista dos anos 1950.

Dentro desta busca de identidade, a fotografia tem um peso imenso. A forma como o ambiente se inscreve na percepção do homem, especialmente no cinema, já foi tratada por Balasz:

“Há um antropomorfismo inerente ao ato da representação, tendente a figurar uma realidade à medida do homem. O aspecto rico deste antropomorfismo vem do fato de que esta ‘medida humana’ não está de uma vez por todas definida, havendo desenvolvimento e acumulação, numa interação com a realidade objetiva, o que transforma as formas de representação. Dependendo de condições de tempo e lugar, o trabalho artístico, subjetivo, está inserido em uma determinada cultura, que define

5 Ganga Bruta (76 min., p&b, 1933), dirigido por Humberto Mauro, fotografia de Edgar Brasil, Afrodísio de Castro e Paulo Morano. 6 Limite (120 min., p&b, 1931) dirigido por Mário Peixoto, fotografia de Edgar Brasil. 7 O Cangaceiro (105 min., p&b, 1953), dirigido por Lima Barreto, fotografia de Chick Fowle. 8 Deus e o Diabo na Terra do Sol (120 min., p&b, 1964), filme dirigido por Glauber Rocha, direção de fotografia de Waldemar Lima.

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certos recursos, certa sensibilidade e certas formas particulares de representação.” (apud XAVIER, 2005, p.56)

Esta fala de Balasz também abre a discussão de quanto à acumulação de sensações derivadas das origens geográficas, culturais e até sócio-econômicas do autor pode se refletir na obra criada. O quanto o conhecimento das técnicas consagradas, dos ensinamentos transmitidos dentro de um determinado ofício se misturam com as subjetividades e os saberes intuitivos nascidos da experiência e da memória. Ou, para colocar uma pergunta que mais tarde será dirigida ao personagem deste trabalho, quantas sensações pode provocar um quadro iluminado pelo sol do meio-dia.

A escolha de Walter Carvalho como sujeito deste trabalho se deu por vários fatores. Trabalhando no cinema desde os anos 1970, é um sobrevivente. Da sua safra de cineastas, a maioria pouco ou nada produziu nos vinte anos seguintes, devido à falta crônica de recursos dos anos 1980 e à falência do modelo Embrafilme, no início do governo Collor, em 1990. Carvalho, porém, manteve uma carreira bastante produtiva. Fez curtas e longas, comédias, dramas, documentários, docudramas, Trapalhões. Trabalhou com diretores consagrados e com estreantes, com orçamentos dos mais variados tamanhos. Fotografou para cinema e televisão, para produções nacionais e estrangeiras. Reúne, em sua trajetória, um espectro de possibilidades e experiências que o habilitam a explorar mais livremente a linguagem da cinematografia e sustentar, junto a diretores e produtores, uma abordagem menos acadêmica.

O interesse em estudar sua obra mais recente se justifica para identificar as principais características de seu trabalho que, apesar de apresentar diversidade no tratamento fotográfico de cada projeto, mantém uma unidade e uma coerência que passam de filme para filme. A análise deste diretor em particular pode lançar luz, também, para a maneira de se fotografar filmes no Brasil, de modo a apontar caminhos para uma forma própria de se fazer cinema com argumentos e cenários identificados com o brasileiro, e não com a imagem idealizada ou estereotipada do Brasil pelo produtor estrangeiro.

Sua produção cresceu em quantidade e reconhecimento após o que se convencionou chamar de retomada do cinema nacional. Seus filmes podem ser reflexos ou sintomas da modalidade de financiamento via renúncia fiscal, pois o modelo de produção atual privilegia produções que possam ser vinculados à divulgação do produto como forma

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de marketing cultural. Filmes com alta qualidade de captação e acabamento, temática nacional sintonizada com as mudanças do mundo, mas distante de temas polêmicos como os que caracterizavam algumas fases do cinema nacional, como o da Boca do Lixo9

A recente atuação também como diretor representa uma evolução natural para quem, nas palavras de Walter Salles, “tem uma percepção vertical daquilo que deve ser a imagem. É um grande fotógrafo porque entende não somente dos mistérios da luz e da sombra, mas também daquilo que torna a fotografia essencialmente orgânica”. Ou, para quem está assistindo ao filme, faz com que a função da luz, das cores e dos enquadramentos componham um todo coerente e inseparável do restante dos elementos fílmicos – roteiro, montagem, cenário, caracterização e som.

.

Analisar criticamente, dentro de uma linha formalista de análise, a filmografia recente do diretor de fotografia de cinema Walter Carvalho, no que tange à maneira de imprimir a luz natural que ocorre no Brasil, e sua relevância no significado das obras em que seu trabalho se fez destacar, foi o objetivo inicial deste trabalho.

9 Cinema da boca é como foi conhecido o ciclo de filmes feitos em São Paulo, a partir da década de 1970 até o final dos anos 1980, sem incentivo governamental ou de grandes empresas. Genericamente, são denominados pornochanchadas, embora não fossem pornográficos, apenas explorassem a nudez, o palavrão, a escatologia e o humor como forma de entretenimento. Entre os atores, autores e diretores que passaram por filmes da Boca estão Maurício do Valle (que havia feito Deus e o Diabo na Terra do Sol), Sílvio de Abreu (que hoje escreve novelas para a Rede Globo), Dionísio Azevedo (que foi o padre de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte), entre outros.

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Sobre o trabalho do diretor de fotografia

“É o responsável técnico pela filmagem” José Tadeu Ribeiro10

“É o spalla do diretor do filme” Murillo Salles

(MOURA, 2001, p. 209)

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“É quem transforma os sonhos do diretor em realidade” Edgar Moura

(idem)

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“É o pintor do quadro dos outros” Luiz Antônio Mendes

(idem)

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(idem)

O cinema é resultado de um processo artístico e artesanal complexo, que envolve diversos profissionais de áreas tão díspares quanto produção, administração financeira, segurança, criação e finalização. A produção de um longa-metragem demanda um planejamento e uma coordenação de esforços muito bem feita para que seja iniciada a filmagem, daí a denominação de indústria para o ambiente em que ele se desenvolve. O papel do diretor de fotografia neste processo é garantir que todos os esforços logísticos, financeiros e intelectuais precedentes ao momento da filmagem resultem em imagem filmada. Porém, sua responsabilidade não cessa com o “corta” do diretor. Vários passos anteriores e posteriores ao ato de filmar são sua responsabilidade, e o sucesso ou fracasso no resultado obtido é também seu. O filme

10 Fotógrafo de Eu te amo (1981), Noites do sertão (1984) e Luzia homem (1987), entre outros. 11 Fotógrafo de Dona Flor e seus dois maridos (1976), O beijo no asfalto (1981) e Árido movie (2004), entre outros. 12 Fotógrafo de Se segura, malandro! (1978), A hora da estrela (1985) e Kuarup (1989), entre outros. 13 Fotógrafo de Das tripas coração (1982), Ópera do malandro (1986) e Bendito fruto (2004), entre outros.

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que o expectador assiste na sala de cinema ou na TV, não importa quais processos de intermediação que tenha passado, como revelação, digitalização, montagem, marcação de cor, efeitos especiais, cópia e passagem para outras mídias como o VHS ou DVD, deve passar por sua avaliação e aprovação.

A função de diretor de fotografia, ou simplesmente fotógrafo14

O diretor de fotografia é o responsável pela imagem no cinema. É dele a responsabilidade de escolher material sensível, exposição, revelação e pós-produção para um roteiro, dentro de um dado orçamento, prazo, disponibilidade técnica e outras limitações práticas. A textura final do filme, a maneira como o filme vai registrar tons e cores, o formato da janela (proporção entre altura e largura da imagem) são algumas de suas atribuições.

, difere de país para país. Em alguns, o fotógrafo tem maior autonomia; em outros, suas funções são limitadas pelas atribuições de operadores de câmera, diretores de set e outros. Neste trabalho, vamos considerar as funções desempenhadas pelos fotógrafos no Brasil, pois foi aqui que o fotógrafo analisado desenvolveu a maior e mais significativa parte de seu trabalho.

Dentro do processo produtivo do cinema, o diretor de fotografia interage com vários outros profissionais, e deles depende para conseguir o efeito visual idealizado para uma cena. Com o auxílio do gaffer15

14 Em cinema, o termo fotógrafo se refere ao diretor de fotografia. Os fotógrafos que documentam a produção ou reproduzem em fotografia a cena que foi filmada são denominados, respectivamente, making of e still.

ou do eletricista-chefe, ele dirige a equipe de eletricistas no set de filmagem, e determina a quantidade, posição, intensidade e qualidade das luzes que vão iluminar a cena. Determina o diafragma da objetiva, a sua distância focal, os filtros e outros efeitos aplicados a luzes e lentes; estabelece, só ou em conjunto com o diretor geral, a composição do plano, a localização do foco e os movimentos de câmera. O trabalho em conjunto com o diretor de arte e com o

15 Gaffer é função relativamente recente na equipe de cinema no Brasil. É um cargo mais técnico e de maior conhecimento que o eletricista-chefe, é o responsável pela logística de transporte, instalação, alocação de materiais da equipe elétrica, que é quem monta e configura a iluminação de um set. Também é o gaffer quem testa previamente todos os equipamentos de iluminação, controlando todos os filtros, efeitos e correções de cor necessários para os equipamentos que estão em uso, e faz a distribuição prévia dos refletores no set a partir das instruções do fotógrafo.

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figurinista estabelece as cores (ou tons, no caso de filmes em p&b) de objetos, locações e figurinos, os objetos que podem compor melhor a cena ou marcar o movimento de câmera, as texturas que serão valorizadas por uma iluminação mais contrastada e rasante. Orienta maquinistas na execução de movimentos de câmera por meio de gruas16 e travellings17

Em suas funções, além do gaffer e do eletricista-chefe, tem uma equipe de assistentes de câmera que, numa ordem decrescente de importância, vão auxiliá-lo ao manter o foco da cena, trocar as lentes e acessórios óticos, fazer claquete

. Por fim, o diretor de fotografia pode operar a câmera, o que acontece com freqüência no Brasil.

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Normalmente, o trabalho do diretor de fotografia começa pela leitura do roteiro. Desta leitura geral sairão as impressões gerais sobre a trama que vão fundamentar a elaboração de uma abordagem visual à história, que denominaremos neste trabalho como proposta fotográfica.

, etc.

A proposta fotográfica vai incluir itens práticos, como a especificação de um suporte (que pode ser em película ou vídeo), formato (cine 16mm, 35mm, HDTV, Super HDTV etc), uma janela (proporção entre altura e largura da área do fotograma), e os possíveis efeitos de pós-produção que vão gerar um efeito tal que, na visão do diretor de fotografia, seja condizente com a história. Mas também abrange aspectos mais subjetivos, como os principais tons (se a sugestão é por filmar em p&b) ou matizes que deve registrar, se a luz deve passar uma sensação de realidade ou não, etc. Estas considerações devem levar em conta o prazo previsto para o início das filmagens, o orçamento e o parque tecnológico (câmera, lentes, luzes, laboratórios, estoque de material sensível, etc) disponíveis.

16 Grua é um instrumento para elevar o ponto de vista da câmera. Consiste em um braço móvel, de tamanho variável, com uma câmera presa a uma extremidade. O operador de câmera pode ou não estar junto da câmera para operá-la; em alguns casos, opera por meio de controles remotos. 17 Pequena plataforma, sobre rodas ou trilhos, em que se instala uma câmera para movimentação regular, sem o movimento da caminhada do operador de câmera. 18 Claquete é a marcação feita em uma tomada em que constam dados de identificação da produção, cena, tomada, diretor, diretor de fotografia, marca e rolo de filme utilizados para filmar a cena. Serve de identificação para a continuidade, o laboratório e o editor.

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Sobre esta fase do processo, temos algumas questões que precisam ser consideradas, como já observou Adrian Cooper (ABC, 1997):

No cinema, diferentemente da fotografia fixa, as imagens só têm significado quando se inter-relacionam para contar a história.

E como contar a história?

Em poucas palavras, enquanto trabalha, o cinematógrafo deve responder para si mesmo as seguintes perguntas:

• Onde estamos e como parece? (localização) • Que está acontecendo e, implicitamente, porque estamos aqui? • A quem acontece e/ou quem está fazendo acontecer? (introdução aos personagens) • Como eles reagem ao que está acontecendo? (externamente) • Que efeito provoca? (internamente) • O que eles pensam ou sentem sobre isso? (subjetivamente) • O que nós (o filme) achamos disso? (a atitude critica intrínseca ao filme)

Algumas destas perguntas serão respondidas aos poucos, em fragmentos que só mais tarde, na montagem, se tornarão claros. Certas imagens, por si só, respondem parcialmente a várias perguntas; outras propõem novas questões.

A primeira pergunta formulada por Cooper nos leva a mais uma atribuição do diretor de fotografia: conhecer as locações de seu filme. O grau de envolvimento do fotógrafo na escolha das locações é variável, mas conhecer os aspectos físicos da locação no que concerne à fotografia – tamanho, topografia, localização geográfica, hora do nascer e do pôr do sol, trajeto do sol no horizonte, previsão meteorológica, etc., é fundamental para construir uma iluminação adequada à trama. A decupagem19

19 Esquematização, plano a plano, das cenas do filme, usada pela produção para tomar todas as providências necessárias para a filmagem, como necessidades de iluminação, figurino, maquiagem, contra-regra, etc.

das cenas em locação, o parque de luz a ser utilizado, a quantidade de assistentes e

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anotações de continuidade são apenas alguns exemplos de decisões que dependem de um conhecimento prévio dos locais que vão servir como locação.

Aprovada a proposta fotográfica por parte do diretor, inicia-se então a preparação das filmagens, com o teste de material sensível. Como este teste é feito para avaliar o resultado estético que se pretende obter, todas as variáveis do processo devem ser idênticas ao que se pretende na produção: mesma marca, modelo e lote de filmes, mesma câmera, mesmas objetivas, mesmo laboratório. Este teste determina, entre outras coisas, qual a sensibilidade efetiva do material sensível a ser utilizado, qual a sua latitude nas condições de utilização, qual o rendimento para as cores ou tons, etc.

Nas filmagens, o diretor de fotografia procura aplicar o contido em sua proposta fotográfica e soluciona os problemas práticos surgidos no set, como inversão de ordem das cenas, mudança de clima, impossibilidade de locação, quebra de equipamento, etc. Geralmente, após alguns dias de filmagem, o diretor de fotografia assiste aos primeiros copiões, que são os positivos resultantes do material já filmado, e consegue visualizar se está sendo obtido o resultado plástico esperado para as cenas rodadas até então.

Após a filmagem, o diretor de fotografia supervisiona todo o processo de revelação, para assegurar-se de que os procedimentos específicos (alterações de processo, testes de revelação, etc.) estão sendo tomados.

Após a montagem e a aprovação desta, o diretor de fotografia faz a marcação de luz, que é o processo pelo meio do qual se determina a intensidade e a qualidade das luzes de cópia do filme, de maneira a fazer com que o resultado final tenha uma consistência de cores e textura. Após a marcação de cores, o filme é copiado e está pronto para a exibição.

Atualmente, além da exibição do filme nos cinemas convencionais, também se prevê a exibição em mídias eletrônicas, como o VHS, o DVD e o cinema digital. Nestes casos, o diretor de fotografia também é responsável pela aprovação do resultado final do processo de transposição para estas mídias antes da exibição.

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Características do sol no território brasileiro

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador”

Ditado europeu do século XVI

Para a corrente formativa do cinema, tendência hegemônica atualmente entre os estudiosos do cinema, o clima pode desempenhar papel importante na contextualização da história, na motivação dos personagens e na manifestação externa de tensões internas, como se fossem metáforas visuais. Chuvas que “lavam” a alma do protagonista 20 , lama e umidade que demonstram a dificuldade de superar obstáculos21, romances ao entardecer22

Para o cinema europeu ou americano, o uso do Brasil como locação muitas vezes se justifica para a contextualização de histórias em que o sol e as paisagens possam ser conectados a histórias de pobreza, violência, exotismo ou de liberdade sexual. Essa constatação pode ser creditada ao produtor executivo, pois viagens de equipes cinematográficas são caras e trabalhosas, e somente se justificam se a locação acrescenta algum significado do senso comum ao desenvolvimento da trama, ou ao roteirista, que usa o apelo exótico do Brasil (ou de outras locações tropicais) para

, são exemplos de situações em que o ambiente em que se desenrola a cena torna-se elemento não textual significativo, muitas vezes reforçado pela sensação causada pela fotografia.

20 Chuvas de Verão (93 min., cor, 1978), filme dirigido por Carlos Diegues, direção de fotografia de José Medeiros. 21 Fitzcarraldo (158 min., cor, 1982) filme dirigido por Werner Herzog, direção de fotografia de Thomas Mauch. 22 Bossa Nova (95 min., cor, 2000), filme dirigido por Bruno Barreto, direção de fotografia de Pascal Rabaud.

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justificar seu enredo. Histórias que possam ser consideradas universais, especialmente as ambientadas no espaço urbano, não justificam o alto custo de produção em terras estrangeiras. Daí que o Brasil usualmente figure no cinema estrangeiro como o palco do exótico.

Esta constatação não deve ser encarada simplesmente como um preconceito do primeiro-mundo. Países com indústria cultural desenvolvida, como França e Itália, também têm sua imagem esquematizada em produções de outras nacionalidades filmadas em seu território. Faz parte da ilusão do cinema reproduzir estes clichês para estabelecer mais facilmente o ambiente da trama e concentrar a força das imagens na construção do enredo. Cabe aos diretores e autores locais explorar mais facetas do clima, das paisagens e da gente local para contar outras histórias, e com isso, construir outros significados para o mesmo ambiente.

O clima também determina muitas variáveis da produção. Diretores como Nestor Almendros23

Por estas razões, entendo ser necessário esclarecer as principais diferenças do comportamento do clima e do sol no Brasil em relação ao hemisfério norte e, assim, entender melhor a utilização do clima na cinematografia de Walter Carvalho.

, que privilegiava filmar ao entardecer, no período conhecido como hora mágica, têm maiores dificuldades logísticas para filmar onde este período do dia é mais curto, ou seja, quando a locação é mais próxima da linha do equador. Ao mesmo tempo, a efemeridade do pôr-do-sol tropical pode ter um simbolismo muito mais rico do que o longo trajeto que o sol faz até morrer no horizonte setentrional.

Geograficamente, o Brasil situa-se entre o paralelo 3N (Oiapoque/PA, 03°50’35”N) e o 33S (Arroio do Chuí/RS, 33°41’28”S) 24

23 Fotógrafo de Kramer Vs. Kramer (1979), A lagoa azul (1980) e O último metrô (1980), entre ou outros filmes.

. Para efeito de comparação, algumas locações freqüentes dos filmes europeus, como Roma (41°54’N), Paris (48°52’N), ou Berlim (52°30’N), estão muito mais longe do equador; as locações que apresentariam a incidência da luz do sol mais próxima de nosso registro são Los Angeles (34°03’N) e os estados mais ao sul dos EUA, como Texas, Novo México, Flórida e Nova Orleans, além dos países que produzem um cinema menos conhecido entre nós, como

24 Fonte: www.aondefica.com

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a Austrália (localizada entre os paralelos 10S e 35S, aproximadamente), Cuba (entre os paralelos 20N e 25N) e Índia (entre os paralelos 15N e 41N) e México. É sempre oportuno lembrar, contudo, que estamos mencionando as cidades como locação, e não como sede de produção, já que em alguns grandes centros a produção é feita em estúdios, e não em externas.

Alguns elementos de linguagem de determinados gêneros podem ser mais bem entendidos quando se conhece as características das locações. A luz altamente contrastada dos westerns americanos, ambientados em sua maioria nos estados do sul citados no parágrafo anterior, deixava o rosto dos protagonistas sob a sombra do chapéu, se deve à posição mais zenital do sol, e foi largamente utilizada como forma de ilustrar a rudeza da vida do desbravador do oeste e a incerteza das intenções dos personagens de rostos ocultos. Essa relação de contraste, aliás, pode ser percebida também em grande parte das produções mexicanas, especialmente a partir do trabalho de Figueroa 25

Mesmo dentro do Brasil, as opções são muitas, devido à grande extensão territorial no eixo norte-sul. Em sua entrevista a este trabalho, Carvalho citou um projeto que iniciou que se passava na região sul do Brasil, em que a luz do meio-dia projetava uma sombra de metro e meio para as pessoas. “Um metro e meio de sombra ao meio-dia!” exclamou Carvalho “o pagamento da diária seria filmar naquela luz!”

, mas em seu trabalho já tinham outro peso, mais parecido com o significado dos filmes brasileiros situados no nordeste.

Os países europeus, o Canadá e a maior parte dos EUA estão mais afastados do equador e, portanto, recebem os raios do sol de forma muito mais oblíqua. Essa obliqüidade se traduz em sombras mais longas, menor intensidade da luz solar em comparação com as sombras (pois os raios solares atravessam uma camada maior de

25 Gabriel Figueroa é considerado um dos melhores fotógrafos de cinema de todos os tempos. Nasceu na Cidade do México em 1908 e começou como fotógrafo de still, em 1932, em Revolución, de Miguel Contreras Torres. Em 1935, vai para Hollywood com uma bolsa de estudos para estudar com Greg Toland, fotógrafo de Cidadão Kane. Seu primeiro filme como diretor de fotografia, Allá en el Rancho Grande, foi premiado no Festival de Veneza. A parceria com Fernández se iniciou com Flor Silvestre e durou treze anos. Em 23 filmes, a dupla desenvolveu o que é considerada uma estética nacionalista por excelência, bem representada em filmes como Enamorada (1946), Rio escondido (1947) e Pueblerina (1948). (fonte: EBERT, Carlos in Mestres da luz – Gabriel Figueroa; ABC – Associação Brasileira de Cinematografia http://www.abcine.org.br/, São Paulo, )

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atmosfera, o que causa maior refração e ilumina as áreas de sombra) e mais iluminação lateral, em comparação com o sol tropical. Mesmo no verão, o sol é mais ameno e não imprime tão agressivamente, nem ofusca a expressão dos atores.

A duração dos dias fica afetada pela obliqüidade do Sol também. No verão das zonas temperadas, alguma luz do dia é comum até as 19:00h, e muita luminosidade pode ser vista no céu até as 22:00h, o que ajuda a imprimir o céu em cenas noturnas. Inversamente, as noites são mais longas no inverno. Das noites de inverno, outra técnica de iluminação surgiu: a iluminação em baixo registro, com cor levemente azulada, da neve, ou a iluminação especular do solo umedecido. Os dias de inverno, com duração reduzida, têm a característica da luz ainda mais lateral, projetando longas sombras, o que nos remete quase que imediatamente à clássica cena da tarde ensolarada de Natal do cinema americano.

Na reprodução das paisagens tropicais, os pintores e fotógrafos de paisagem se dividiam. Enquanto uns se deslumbravam com nossa luz abundante e violenta e registravam essas impressões em cenas altamente contrastadas, cheias de brancos brilhantes e negros quase sem detalhes, outros mantinham o registro clássico e procuravam por uma luz mais conhecida no registro do amanhecer ou do entardecer.

Vemos a seguir dois registros da mesma cena, feitos por pintores do final do século XIX, em que se percebe claramente a opção por uma luz mais suave ou mais contrastada como forma de linguagem.

Ilustração 3: João Batista da Costa - Vista da Igrejinha de Copacabana, óleo sobre tela, 1895.

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No óleo sobre tela “Vista da Igrejinha de Copacabana”, Batista da Costa (1865-1926) aproveita a luz do meio-dia para ressaltar o contraste cromático entre os verdes da vegetação próxima e distante e os azuis do mar e do céu, atribuindo a eles valores de luminância quase iguais e obtendo assim um contraste cromático acentuado. O branco brilhante da lateral da igreja contrasta belamente com a frente, situada à nossa esquerda.

Ilustração 4 - Giambattista Castagneto - Vista da Igrejinha de Copacabana, óleo sobre tela, 1890.

O mesmo local havia sido retratado cinco anos antes por Giambattista Castagneto (1862-1900) que preferiu a suavidade da "hora mágica", evitando o contraste cromático entre as cores vivas do local, o que resultou numa luz suave, mais acadêmica, mais ao gosto do público da época. O resultado é praticamente monocromático, diferentemente do resultado obtido por Batista da Costa.

Diferentemente de Castagneto, de quem foi colega no Grupo Grimm 26

26 Johann Georg Grimm (1846-1887), pintor alemão e professor responsável pela cadeira de Paisagem, Flores e Animais na Academia Imperial de Belas Artes. Grimm reuniu um grupo de alunos que, com a saída do mestre em 1884, permaneceria reunido na escola da Boa Viagem em Niterói. Desse grupo, que recebeu a denominação de Grupo Grimm, fizeram parte: Domingo Garcia y Vasquez, Hipólito Boaventura Caron, Joaquim José de Franco Junior, Francisco Joaquim Gomes Ribeiro, Thomas Georg Oriende, Giambattista Castagneto, Georg Grimm e Antônio Parreiras. [Fonte: Museu Antônio Parreiras (http://www.sec.rj.gov.br/webmuseu/map.htm)]

, o pintor niteroiense Antônio Parreiras (1860-1937) foi um dos que procuraram menos suavidade no trato das paisagens brasileiras. O desenho abaixo, rascunho para um

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quadro, é um exemplo desse tratamento, pela relação existente entre a sombra do rochedo e o pintor acima dele. Nota-se que há, na mesma cena, uma massa negra sem detalhe na sombra do rochedo e o branco puro do papel no céu.

Ilustração 5: Antônio Parreiras - Estudo para ilustração do livro "História de um pintor", desenho, sem data.

Antônio Parreiras – Estudo para ilustração do livro “História de um pintor”. Desenho, sem data.27

A mesma alternância de tratamento da luz pode ser observada no trabalho dos fotógrafos que documentaram cenas brasileiras no final do século XIX e início do século XX. Enquanto alguns tinham maior preferência pelo entardecer, outros faziam mais registros da luz dura do sol a pino, embora estes registros possam estar mais

27 Fonte: Museu Antônio Parreiras (http://www.sec.rj.gov.br/webmuseu/map.htm)

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ligados à preferência do público a quem vendiam as imagens (geralmente na forma de cartões postais) do que a gosto pessoal.

Ilustração 6: Camillo Vedani, Casario, fotografia, 1860.

A imagem acima, feita por Camillo Vedani (Itália, ? - ?) em 1860, registra bem a imagem da paisagem ensolarada, com as sombras um pouco mais expostas, o que torna o céu pouco detalhado, o que também pode ter sido causado pela técnica fotográfica utilizada, pois as diferentes técnicas que coexistiam no final do século XIX reagiam de forma diferente às cores, sendo por vezes mais sensíveis à faixa do espectro visível que a outros.

Já Marc Ferrez (Rio de Janeiro, 1843-1923) apresenta registros mais suaves, em que os rostos e casarios não apresentam tanta luz e sombra, com uma leitura mais suave, mesmo com o sol a pino, como na imagem da igreja.

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Ilustração 7: Marc Ferrez, Igreja, fotografia, sem data.

A respeito da luz brasileira, existem dois depoimentos que gostaria de incluir neste estudo, ambos citados por Carlos Ebert28

“É ainda Mario Carneiro

no texto O Desafio da Luz Tropical (2000):

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(Ricardo Aronovich disse que) “Essa luz nordestina me fascinou e quebrou todos os meus esquemas conhecidos da Argentina, onde a luz é mais inclinada, (não tanto quanto a européia, que se assemelha a da Patagônia), e mais controlável... Tenho uma necessidade quase fisiológica de ver, de olhar, de viver pelo menos uma vez ao ano, essa luz que vocês têm a sorte de ter aí. É um pouco como se ela tivesse se fixado na minha retina... E vejo filmes, às vezes, fotografados por grandes diretores de fotografia europeus, em lugares que poderiam se parecer com a luz do nordeste, da

quem observa que o pintor francês Edouard Manet (1832-1883), de passagem pelo Brasil como grumete, teria feito o comentário: ‘Esse é um país muito difícil de ser pintado, eu não consigo pegar essa luz daqui.’”.

28 Carlos Ebert (Rio de Janeiro, 1946), foi o fotógrafo de O Bandido da Luz Vermelha (1968), O Rei da Vela (1983) e Vlado, 30 Anos Depois (2005), entre outros filmes. 29 Fotógrafo nascido em Paris em 1930, ainda na ativa. Fotografou, entre outros filmes, Arraial do Cabo (p&b, 1960, direção de Paulo César Saraceni), Garrincha, alegria do povo (p&b, 60 min., 1962, direção de Joaquim Pedro de Andrade) e o episódio Couro de gato de Cinco vezes favela (p&b, 90 min., 1962, direção de Joaquim Pedro de Andrade).

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Bahia, ou do sertão (embora esta seja única), muito bem fotografados, certinhos até, mas que fora a qualidade técnica e mesmo pictórica, não refletem na fotografia, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão”. Aronovich demonstra, no comentário, a diferença prática e conceitual que existe no dia-a-dia de fazer cinema em locação no Brasil. Como fazer a cinematografia refletir as qualidades da luz local?

Estes dois olhares estrangeiros são bastante representativos de duas posturas perante a nossa abundante luz tropical: a perplexidade e a paixão. A luz natural tal como ocorre no Brasil, difícil de domar mesmo com pincéis, torna-se ainda mais indócil quando mediada pelos instrumentos da fotografia, que não tem as nuanças representativas da pintura e respondem, muitas vezes de maneira pouco sutil, em bases puramente físico-químicas. A tendência do negativo de aumentar os contrastes, numa luz já naturalmente contrastada, dificulta sobremaneira o trabalho diário do fotógrafo em locações.

Não se trata, contudo, de se fazer uma defesa intransigente de um tipo de iluminação como se, somente usando uma reprodução fiel e naturalista do sol da caatinga, por exemplo, se pudesse contar uma história ambientada em tal cenário. Desde que estabeleça uma comunicação com a platéia, todo tipo de cinema é válido, do mais convencional e apegado à tradição ao experimental. Como qualquer forma de produção cultural baseado em linguagem, o cinema dispõe de uma série de recursos, desde os sinais previamente convencionados, passando pelas pequenas subversões que causam estranhamento, até as formas mais anticonvencionais e que, observadas sob a ótica isenta do pesquisador e submetidas ao crivo do tempo, podem estabelecer o elo entre o realizador e o expectador. A forma como esse elo, essa comunicação atinge a platéia pode ser pela convenção ou pelo choque, mas estabelecer uma comunicação é fundamental para que uma obra se destaque da massa da produção de imagens atual e sobreviva para as próximas gerações.

O que se pretende neste trabalho é conhecer algumas referências das quais a linguagem cinematográfica pode se apropriar ao se apoiar no repertório diferente do referencial clássico do cinema. Sem pretender fazer uma apologia do nacionalismo, entendo que seria positiva para o cinema e para as platéias a soma de soluções criativas baseadas no desenvolvimento do olhar dentro das características específicas de um país tropical.

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A fotografia de Walter Carvalho nos filmes estudados reproduz muitas características da luz do Brasil que são menos conhecidas ao realizador estrangeiro. A força da luz que invade as janelas, as noites quentes com lua nova e sem luz artificial, os céus de chuva torrencial do Nordeste, todos se impregnam de realidade e a potencializam pela universalidade dos dramas humanos que abrigam. A integração com outros elementos de linguagem cinematográfica, como a direção de arte, escolha de locações e figurino, remete à memória de casas do interior, realidades urbanas datadas, ou uma brasilidade atemporal. Estes e outros cenários serão analisados com mais profundidade nos capítulos a seguir.

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Metodologia

Foi realizada uma pesquisa na filmografia de Walter Carvalho e, de posse dela, passou-se a realizar um recorte para delimitar quais seriam os filmes a serem assistidos e comentados. O primeiro recorte, conceitual, foi o de se trabalhar somente os filmes de ficção, excluindo-se os documentários. Essa escolha foi feita para que os filmes analisados tivessem sido, sem exceção, pensados e fotografados integralmente com base na leitura prévia do roteiro. Dada a diversidade dos formatos de documentário, haveria sempre um risco de que algum filme tivesse elementos de sua fotografia surgidos do acaso ou do imprevisto, o que poderia ser extremamente didático em outra situação, mas não se adequaria aos fins previstos nesse trabalho.

Também foram preteridos os filmes anteriores ao período da chamada retomada30

O passo seguinte foi a identificação dos títulos em que, pela leitura das sinopses, o ambiente em que se passa a trama tem relevância dramática. Filmes que se passam em sua maioria em interiores, ou em que o ambiente exterior não tenha qualquer

, pois a idéia inicial é tentar identificar os elementos constitutivos atuais da obra do autor, já ultrapassada a fase de estabelecimento de linguagem própria e o momento em que passa a trabalhar com maior autonomia. Não haveria sentido, dentro do contexto do trabalho, em se analisar um trabalho que não refletisse o estágio atual de maturidade artística do autor.

30 A retomada do cinema nacional, ou simplesmente retomada, é o período, a partir dos anos 1994/95, em que foi lançada uma série de filmes brasileiros financiados graças às leis de incentivo à Cultura (Leis Rouanet, Mendonça, etc.), após um período de pouca produção nos anos 1980. Usualmente, estabelece-se como o marco inicial da retomada o filme Carlota Joaquina (100 min., cor, 1995) de Carla Camurati, fotografia de Breno Silveira, mas podem ser citados também outros títulos, como Sábado (85 min., cor, 1995) de Ugo Giorgetti, fotografia de Rodolfo Sánchez, A Causa Secreta (93 min. cor, 1994) de Sérgio Bianchi, fotografia de Eduardo Poiano, ou Terra Estrangeira (100 min., p&b, 1996) de Walter Salles, fotografia de Walter Carvalho.

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influência ou contextualização nas atitudes dos personagens foram desconsiderados, embora possam ser comentadas as cenas internas das produções escolhidas, pelo contraste com as cenas externas e por serem, todas, filmadas em locação, e não em estúdio.

A análise foi feita a partir de cópias dos filmes em DVD. Foram fatores negativos os problemas decorrentes da transposição da mídia filme para DVD, principalmente no que concerne a menor latitude da imagem em vídeo, e os problemas de adequação de formato, pois alguns filmes tiveram sua janela de exibição alterada em relação à versão que foi aos cinemas. Também foi um ponto negativo o fato de que nem todos os filmes selecionados inicialmente tenham sido lançados em DVD. Mas há que se convir que este formato será o que, salvo exceções, vai atingir maior número de expectadores que as cópias que foram exibidas em salas comerciais, o que tem maior permeabilidade em meio ao público, e o formato disponível comercialmente que melhor preserva as qualidades da imagem, em comparação com o VHS.

Após assistir cada filme, foram identificadas as cenas em que o registro da luz se mostrou mais característico, e as cenas foram capturadas para impressão em papel fotográfico. A transposição, novamente, alterou substancialmente as variáveis fotográficas do produto final, mas neste trabalho as reproduções de cenas têm caráter meramente ilustrativo, e não técnico, tendo maior peso a descrição por escrito das cenas e o depoimento do autor. Por razões práticas, não seria possível analisar variáveis técnicas mais profundamente (relação de contraste, gama de cada película, etc) sem que se dispusesse de fonte fidedigna e documentada para basear esta análise; assim, o resultado estético dos filmes em DVD é que está sendo analisado, baseado no pressuposto de que todas as versões colocadas à disposição do público tiveram a aprovação dos diretores.

Após a apreciação de todos os filmes selecionados, será elaborada uma pauta inicial para uma entrevista com o personagem. A abordagem inicial será técnica, mas com liberdade para abranger aspectos menos áridos e contemplar as principais linhas que Carvalho utiliza para elaborar a luz dos seus filmes. A etapa seguinte consiste em analisar os pontos em comum na linguagem fotográfica dos filmes analisados, em confronto com a entrevista efetuada com o fotógrafo.

Filmes estudados neste livro:

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Pequeno Dicionário Amoroso (1997), 91 minutos, direção de Sandra Werneck.

Primeira parceria em longa de Walter Carvalho com Sandra Werneck, retrata o início, desenvolvimento e fim de uma paixão, ilustrada por verbetes que sintetizam as diversas fases de um intenso relacionamento amoroso.

O gênero em que se situa, o da comédia romântica, tem linguagem bem definida, e o filme se utiliza desta gramática conhecida. Ela está nas cores, bem saturadas e, geralmente, um pouco esquemáticas. Está nas locações, limpas de ruídos visuais e com direção de arte bem limpa, de poucos objetos. Nas cenas externas, pouco contraste, personagens filmados em contraluz, com o fundo ligeiramente superexposto. O vermelho marca profundamente o início do relacionamento do casal. Ele está no vestido que a Luíza usa ao conhecer Gabriel, no laboratório fotográfico da arquiteta, no abajur do primeiro beijo, na luz que invade a piscina, em objetos cênicos. A pontuação do vermelho vai caindo aos poucos, mas permanece em algumas cenas, inclusive no figurino do casal de amigos que se encontram no final, mas acabam não se entendendo.

Passeando pelo Rio de Janeiro, usa menos a fotogenia da cidade que outro filme da mesma dupla, Amores Possíveis. O ritmo é mais convencional também, com narrativa linear, marcada por depoimentos dos personagens, como em um documentário. De fato, Sandra Werneck estava em sua primeira direção de longa de ficção, após uma carreira de documentários, e se utilizava desta forma narrativa para estruturar sua trama.

Sua inclusão nesta amostragem se deu mais pelo uso da cor, pois o vermelho marca as primeiras cenas do casal, e pela relação de contraste mais ameno, que em oposição aos outros filmes analisados ressalta e sublinha o uso do contraste como elemento formal.

Central do Brasil (1998), 113 minutos, direção de Walter Salles.

Filme mais famoso da profícua dupla Walter Salles/Walter Carvalho, geralmente é mais lembrado pela expectativa de uma premiação no Oscar de melhor filme em língua estrangeira e melhor atriz, para Fernanda Montenegro, em 1999.

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Dora é uma professora aposentada que complementa os ganhos da aposentadoria escrevendo cartas numa banquinha na Central do Brasil, gare que é o ponto de partida e chegada dos trens suburbanos no Rio de Janeiro. Cínica, solitária e desesperançada, vive uma rotina dura e sem perspectiva até que, numa tentativa malograda de ganhar dinheiro com o órfão Josué, se vê obrigada a fugir do Rio de Janeiro e acaba ajudando Josué na procura por seu pai.

Filmado no Rio de Janeiro, Minas Gerais, e interior do Nordeste, faz um longo caminho também no registro da luz natural, indo do suburbano e caótico Rio de Janeiro para o cenário aberto e ensolarado das cidades pequenas do interior do Brasil. A adoção do widescreen, resultado do uso do Super 3531

Apesar do registro algo amargo do início da trama, a viagem em busca de Jesus, pai de Josué, vai ganhando contornos menos desesperançados, o que se expressa pela entrada progressiva da luz solar na tela, e o filme termina em um belo plano da protagonista narrando sua carta em meio a uma cena de começo de dia. Relembrando Tom Zé, neste caso o exemplo se inverte, e a luz parece mais dura no Sul – denominação geral dos estados abaixo da Bahia para os norte-nordestinos – do que no Norte. O que demonstra o poderoso efeito narrativo da luz solar, sempre justificada e amparada pela trama.

(de acordo com Walter Carvalho, foi o primeiro longa-metragem brasileiro a adotar o formato) dá a dimensão da dificuldade da tarefa dos dois protagonistas, de encontrar algo em um mundo tão grande e sem referências. Infelizmente, a cópia estudada neste trabalho não utilizou todo o quadro composto por Carvalho e Salles, resultando em uma ilustração menos poderosa dos recursos deste formato. Também a transposição do filme para o DVD apresenta problemas na cor, especialmente nas altas luzes, que tendem ao amarelo, efeito conhecido na telecinagem de imagens com alta exposição.

31 Super 35 é um formato criado para tentar aproximar o quadro de um filme 35 mm, padrão da indústria cinematográfica, do quadro proporcionado pelos formatos maiores e mais caros, como o 70 mm. Consiste em usar uma largura maior do espaço do negativo 35 mm, geralmente a parte usada pela banda sonora, combinado com o uso de lentes especiais que comprimem a imagem. Para projeção, outra lente de efeito inverso deve ser utilizada para descomprimir a imagem e gerar um quadro mais largo que o 35 mm convencional.

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Lavoura Arcaica (2001), 171 minutos, direção de Luiz Fernando Carvalho.

Um filme que, nas palavras de Walter Carvalho, nasceu primeiro da necessidade de se filmar com o diretor Luiz Fernando Carvalho, antes mesmo de se conhecer o roteiro em que trabalhariam.

A partir da obra homônima de Raduan Nassar, o filme conta a história de uma família descendente de árabes, obediente e submissa ao pai, que se desestrutura quando o filho André descobre sua paixão pela irmã Ana e foge de casa após consumar a paixão.

Ambientado no interior de Minas Gerais, o filme foi realizado inteiramente em locação. O elenco, em sua fase de preparação, reproduziu muitos dos rituais presentes na história, como a preparação do pão, o plantio da terra e os jantares ao redor do pai, representado por Raul Cortez, na mesma fazenda em que foi rodado o longa.

Filme de texto pesado e solene, de quadros planejados, com desfoques e deformações provocadas intencionalmente para ilustrar a intensa confusão mental em que o protagonista se encontra, tem nas cenas internas seu maior peso. As cenas externas, porém, são tão fortes que acabam por equilibrar sua menor quantidade com a tremenda força narrativa que agregam ao filme. As cenas externas dificilmente são passadas em dia pleno. Somente as cenas que mostram a infância de André têm sol aberto; as demais se passam na madrugada ou crepúsculo, ou sob as árvores que abrigam a dança tresloucada de Ana.

O filme apresenta altos contrastes, com sombras fechadas provocadas por fontes difusas, e cores praticamente restritas aos matizes de marrom e negro. Este é outro filme em que as sobras parecem delimitar as possibilidades dos personagens, que se encontram presos a uma estrutura familiar rígida. Porém, o sol de Minas Gerais se faz presente nos detalhes, como as sombras marcadas por cortinas de renda nas paredes do quarto de pensão, na luz abundante que entra pelas janelas da casa durante o dia e em cenas-chave do filme, como o salto do menino André no monte de palha. Luz da infância que, além de presente no texto original de Nassar, constitui parte importante na conceituação deste trabalho, pela presença no repertório com o que o fotógrafo trabalha os roteiros originais e os traduz em sensações provocadas pelas imagens.

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Amores Possíveis (2001), 98 minutos, direção de Sandra Werneck.

Uma situação inicial, três desenvolvimentos possíveis, quinze anos depois. Esta é a linha mestra do segundo filme da dupla Werneck-Carvalho, que parte de um encontro marcado não consumado para as possíveis conseqüências desta situação-chave.

Na primeira trama, Júlia reencontra Carlos casado com Maria. O casamento não vai bem, e Júlia passa a ser amante de Carlos, que parece decidido a deixar a esposa. Porém, sem coragem para tomar a iniciativa, acaba por justificar para a esposa suas longas ausências de casa com viagens inexistentes, até que Júlia e Maria se encontram por acaso.

Outro desenrolar possível é o que acontece na segunda versão. Nesta, Carlos está separado de Júlia, com quem teve um filho, e vive um relacionamento amoroso com um homem, pivô de sua separação. A relação de Júlia com Carlos é de ódio profundo, por não ter superado o trauma de ter sido deixada por um homem, e o desejo de Carlos de minimizar este ódio vai reaproximá-lo de Júlia e colocar em dúvida sua orientação sexual.

Na terceira versão, Carlos é um adulto infantilizado pela mãe, que o mima e o impede de manter um vínculo amoroso mais estável. Idealizando as mulheres, sem nunca achar uma que o satisfaça, edipiano ao extremo, este Carlos inquieto vai reencontrar uma Júlia intensa e apaixonante através de uma agência de encontros high tech, que promete ajudar os clientes a localizar sua alma gêmea com o auxílio de um aparelho que identifica as afinidades entre seus clientes.

Neste filme, também feito em Super 35, mas lançado em DVD somente na versão 4:332

32 Proporção da tela comum de TV, significa 4 unidades na largura por 3 unidades na altura.

, o tratamento de luz é o mesmo para as três histórias, e a diferença fotográfica entre uma narração e outra se dá mais pela movimentação de câmera – mais clássica com o Carlos mal casado, mais livre com o Carlos separado, e mais aberta no Carlos solteiro. A direção de arte colabora com essa narrativa, construindo ambientes verossímeis a cada uma das versões, do apartamento sóbrio, em tons marrons, da primeira possibilidade, passando pelo colorido e moderno ambiente do casal homossexual, aos ambientes divididos entre mãe – a sala, ampla e arrumada – e filho

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– o quarto, algo desarrumado. Também as três versões de Júlia ganham tratamento diferenciado da arte, pois a uma Júlia mais sóbria na primeira versão contrasta a amargurada da segunda e a intensa da terceira.

Sob este prisma, fica claro que a opção por modificar a fotografia de cada versão possível do amor de Carlos e Júlia poderia parecer redundante. A simples modificação do quadro e do movimento de câmera, aliada às já citadas marcas da direção de arte, bastaram para tornar as três histórias individualizadas, mesmo que o encadeamento da montagem cause uma zona de confusão, a meu ver proposital, entre as possibilidades de um encontro não consumado. Filme de contrastes mais suaves, sombras mais equilibradas com as altas luzes, mais próximo de um registro clássico.

Abril Despedaçado (2001), 105 minutos, direção de Walter Salles.

Abril Despedaçado foi a quinta parceria entre Walter Carvalho e Walter Salles. Adaptação da obra homônima de Ismail Kadaré, é ambientado no sertão brasileiro em 1910 e narra a história da disputa de terra levada a cabo por duas famílias, os Breves e os Ferreiras.

A trama é iniciada pelo ponto de vista de uma criança, Pacu, cuja narração abre o filme. A história passa a correr em flashback e será retomada já na seqüência final do filme, quando a história se conclui.

É um filme de contraste elevado, em que certos quadros apresentam zonas de ambos os extremos do negativo, zonas de alta e baixa luz com conteúdo narrativo. A situação aparentemente sem saída dos personagens, a limitada perspectiva de vida e a aspereza da vida no sertão são o contexto em que a história se desenrola.

Filmado em Super 35 e apresentado em versão widescreen no DVD, aparenta uma revelação normal, sem alteração de banhos que criem alterações de contraste e cor. As locações, a 800 km de Salvador (BA), são filmadas em vários horários do dia, contextualizando o duro trabalho da fazenda de cana em cenas de trabalho sob sol a pino.

O sol tem presença muito forte no filme. Seja na dureza da luz do meio-dia, em que poucos se animam a sair de casa, seja na luz do dia que invade interiores. Até no texto

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o sol se faz presente, na fala inicial do menino Pacu. Mas a presença das sombras fechadas ou quase sem detalhe também é muito grande, e tem muita força dramática no desenrolar da história, fato destacado inclusive pelo diretor Walter Salles em entrevista sobre o filme.

As cores, predominantemente os matizes de ocre, verde e azul, são também opções para se filmar em zonas de altas luzes, pois os brancos tendem a parecer “lavados”, sem detalhes, devido ao excesso de luz. Os planos gerais apresentam todas as cores da cena, não havendo superexposição de nenhuma área. Nos planos fechados, a relação de contraste alta é mantida a partir de uma compensação moderada das sombras, o que garante uma leitura boa dos detalhes nessas áreas sem perda da cor do céu, que aparece um pouco menos azul que nos grandes planos gerais. Nas cenas internas, as luzes são sempre justificadas em cena, isto é, não existem focos de luz que não tenham uma fonte identificável, como a lua, um candeeiro ou o fogo. Talvez por isso, foi feita a opção por não corrigir a temperatura de cor, o que resulta em luzes mais amareladas e/ou avermelhadas, devido à baixa temperatura de cor das fontes condizentes com a ambientação33

Walter Salles afirma que procurou nas pinturas do alemão Eduard Hildebrandt o tom da imagem. Hildebrandt (1818-1868) foi um dos pintores que retrataram o Brasil no século XIX e sua característica era justamente a marcada diferença entre as zonas de sombra e de luz. Suas aquarelas no Brasil reproduziam cenas externas em que as sombras e altas luzes apresentavam detalhes e textura, mas mantinham uma sensação de contraste mais aproximada com a experiência cotidiana do sol tropical, diferentemente de outros pintores que procuravam retratar o país com contrastes mais suaves.

. Mesmo a luz da lua recebe um tratamento discreto, diferentemente do habitual para a luz da lua. Normalmente, devido à correção total ou parcial das fontes artificiais em noturnas, a luz da lua é colocada num tom de azul, pois reproduz melhor a relação entre a luz da lua (que é uma luz solar rebatida pela lua) com a luz das fontes artificiais colocadas na zona do branco.

33 Temperatura de cor do filme fotográfico é a capacidade de imprimir como branco uma determinada faixa do espectro da luz visível. Quando um filme equilibrado para luz do dia (5.500 K) é exposto a fontes de temperatura de luz mais baixas, como uma lâmpada incandescente (3.200 K), ele registra a cor desta luz como amarelada; inversamente, se um filme para luz incandescente é exposto à luz do dia sem correção, ele tende a imprimir uma dominante azul em toda a cena. A correção das fontes pode ser feita por meio de filtros de gelatina nas fontes, ou por filtros óticos nas objetivas da câmera.

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Nas cenas noturnas internas, percebemos que há mais zonas de negro fechado, sem detalhe, em que cabelos, corpo, objetos de cena e fundo se fundem numa mesma massa negra. A composição das cenas de interior/noite, por vezes, lembra a de Caravaggio, com focos laterais de luz dura que concentram a atenção nas expressões do elenco, com pequenos focos iluminando apenas detalhes do cenário. Devido à falta de correção das fontes, as cores nas noturnas internas tendem todas ao ocre, ao laranja e ao amarelo, e a dureza das fontes valoriza a textura de paredes e tecidos e dramatiza sensivelmente as expressões.

As cenas noturnas externas são construídas com pouca ou nenhuma luz artificial. Usando largamente a silhueta dos personagens e cenário contra o céu noturno, não utiliza contraluz. Nas cenas em que o quadro é mais aberto, como a cena em que Tonho encontra o pai após cumprir sua parte na sina da família, apenas um foco de luz lateral, duro e branco, justificado pela lua, dá o contexto de cena e as expressões dos atores ficam quase que completamente no escuro.

Walter Salles diz que as sombras pronunciadas marcam a presença constante da morte no filme. De fato, o uso dramático das sombras, notadamente o contraste entre as sombras e a abundante luz do sertão, identifica grande parte dos elementos dramáticos. Um exemplo do uso deliberado deste contraste é o chapéu do pai de Tonho, que mergulha sua expressão numa penumbra de onde seus olhos brilhantes e expressivos se destacam.

Mas nem todo o filme se desenvolve com esse viés. Algumas ilhas de alívio, oásis na secura do filme, têm mais cores e menos contrastes, como quando Clara brinca na corda, ou Tonho no balanço, pois nelas o céu, finalmente, se mostra menos esmaecido, mais vivo; ou quando Tonho resolve acompanhar o circo até Ventura, cena registrada com contraste sensivelmente menor do que o tom geral do filme, apesar de acontecer sob o sol da manhã. Cores também existem no livro que Clara dá a Pacu, mas curiosamente há pouco vermelho no filme, apenas nas camisas dos mortos que ficam ao sol.

Madame Satã (2002), 105 minutos, direção de Karim Aïnouz.

Biografia de João Francisco dos Santos, notório marginal carioca que viveu na Lapa, Rio de Janeiro, na primeira metade do século passado, e ficou famoso pela

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homossexualidade assumida, pela vida boêmia, pela violência e pela tendência de alimentar seu próprio mito com histórias exageradas de valentia.

A narrativa se concentra no início da vida marginal de João Francisco, antes de começar a se denominar Madame Satã. Sua personalidade bipolar, que oscila entre a euforia e a violência, domina o microcosmo de prostitutas, artistas decadentes e outros personagens marginais, e é soberbamente retratado pela fotografia altamente contrastada, aqui conseguida à custa de um processo denominado no bleach 34

Este filme também tem nas noturnas sua principal característica, já que o ambiente em que o personagem vivia a maior parte de suas histórias é a boêmia. As poucas cenas diurnas se caracterizam pelo contraste plano, isto é, baixo, provocado pelas características físicas do cortiço onde os personagens vivem, de paredes altas e pátios estreitos. As únicas cenas em que o sol aparece tem a exposição determinada mais pelo céu, como no caso da praia e do passeio com a prostituta Laurita e sua filha, embora nas cenas em que estejam abaixo das árvores uma certa superexposição tenha sido necessária para conseguir imprimir as expressões dos personagens na sombra.

. Segundo Carvalho, este foi o primeiro longa brasileiro produzido inteiramente com no bleach no negativo, o que tornou o processo ainda mais custoso, já que cada locação necessitava de um teste específico para poder avaliar a exposição previamente. Em muitos casos, o contraste é tão grande que somente os olhos e os dentes do protagonista, que é negro, puderam ser vistos.

Vemos um enquadramento recorrente nos filmes de Carvalho se repetir: a câmera fixa um personagem – no caso, o protagonista, com o rosto inchado de tanto apanhar – enquanto uma voz em off lê a sentença de condenação. Este plano, existente em vários outros filmes do fotógrafo, remete ao seu histórico de documentarista, seja pela

34 No bleach é um tratamento em que, na revelação da película cinematográfica, elimina-se o último banho químico, conhecido como bleach ou branqueamento. O branqueamento é o processo que retira os sais de prata responsáveis pela sensibilização dos acoplantes de cor no filme colorido. Após a revelação das camadas coloridas, a prata metálica deixa de ter utilidade, e usualmente é eliminada para garantir a pureza e a saturação das cores. Ao eliminar o branqueamento, a película retém os sais de prata nas áreas expostas, o que aumenta consideravelmente o contraste da imagem, além de tornar as cores menos saturadas, isto é, menos vivas. O no bleach pode ser usado tanto no positivo (que resulta em brancos com menos detalhes), como no negativo (os pretos ficam mais fechados), como em ambos.

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composição, seja pela simulação de realidade documentada que este recurso traz ao filme.

Acredito que o principal diferencial fotográfico deste filme, resultado direto do uso pioneiro do no bleach em longas, seja a forma como a expressão do protagonista parece saltar das sombras. Diferentemente de outros filmes, em que as sombras registravam mais suavemente a expressão parcialmente oculta por elas, neste os brilhos se tornam mais fortes e contrastados, no que também são responsáveis a pele luzidia do ator Lázaro Ramos e o tratamento fotográfico que, dificilmente, faz um ataque35 frontal aos personagens, tendo preferido Carvalho posicionar o ataque pela lateral, em geral a 90°. Sempre que se menciona este filme, me vêm à cabeça cenas em que os volumes são desenhados por reflexos existentes em sombras profundas. A câmera é discreta, íntima, e mostra planos fechados em close36

Outra característica comum aos filmes de Carvalho é a iluminação de cenas de interior, sempre feitas com fontes muito integradas ao trabalho da direção de arte. As fontes em Madame Satã são as lâmpadas nuas em bocais pendentes do teto, ou abajures de gosto propositalmente duvidoso; o uso de fontes que remetem imediatamente ao ambiente de cortiço ou de boate em que a vida do protagonista se desenrola. Sempre presentes, neste filme apresentam-se quase sempre corrigidas em relação à temperatura de cor, isto é, não há desvios cromáticos nos ataques, quando muito eles ocorrem em alguma luz de contextualização, como nas luminárias das boates.

com composições cuidadosas, que aumentam a sensação de volume e movimento no escuro.

Amarelo Manga (2002), 103 minutos, direção de Cláudio Assis.

"Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tamboretes, dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro-de-boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas

35 Ataque é a iluminação para a qual todas as outras – a saber, a compensação e o contraluz – são equilibradas. A exposição do negativo, geralmente feita levando em consideração a luz de ataque, vai então situar as demais luzes na latitude do filme. Denominada key light pelos americanos ou attaque pelos franceses. 36 Close é o plano que mostra a cabeça do personagem a partir da base do pescoço.

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purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes apodrecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente." Este trecho da crônica Tempo Amarelo, de Renato Carneiro Campos, dito por um freqüentador do bar de Lígia, resume bem a virulência e crueza do filme.

Um dia na vida de personagens marginais do subúrbio do Recife, cujo elo de ligação é o hotel Texas, é o ponto de partida do argumento deste filme de Cláudio Assis.

O diretor mistura seus personagens e atores profissionais com passantes das ruas e atores amadores, o que lembra o método de filmagem dos neo-realistas italianos, mas com muito mais ironia, humor e um forte acento pop. Cláudio Assis constrói uma trama de personagens aparentemente comuns, como a dona de bar loura que é assediada por um cliente, ou o triângulo amoroso entre o açougueiro, sua mulher evangélica e a amante. O tempero desta trama são as facetas bizarras dos personagens, como a necrofilia do cliente do bar, ou a reação inesperada da esposa traída. Estes personagens marginais, simbolicamente representados pelo hotel Texas, vivem aparentemente sem vontade de interagir, mas acabam forçados a isso, quase numa situação de promiscuidade. O desfecho desta situação sugere que, por mais caótica que possa parecer, a realidade sempre acaba se repetindo. O absurdo faz parte do mundo, e a nossa perplexidade não tem condições de compreender a razão de tudo.

O amarelo manga do título é a cor dos cabelos – e dos pêlos pubianos – da dona do bar, Lígia, que instiga o cliente Isaac. Ele investe afoitamente contra ela, e ela o expulsa do bar. A cor acaba sendo associada, no filme, à sua sexualidade exacerbada, paradoxalmente não explorada de maneira clara no filme, já que é dito textualmente que nenhum cliente conseguiu levá-la para a cama. Curiosamente, o texto de Lígia diz que a noite é a parte mais interessante do dia, o que pela entonação sugere o ato sexual, mas o filme começa e acaba com a personagem sozinha em seu bar, sem qualquer parceiro. Contudo, será esta a cor escolhida para a personagem Kika, após abandonar suas convicções religiosas, tingir os cabelos, e assim assumir uma nova personalidade.

O filme tem imagens fortes e parte de uma linguagem documental ao explorar os bairros populares do Recife, misturando estas cenas com outras imagens já mais baseadas na linguagem e nas possibilidades do cinema de ficção, como as feitas do

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ponto de vista superior, varando paredes para descrever o universo do bar ou do hotel Texas. Muitos planos-sequência são usados, e algumas cenas são inseridas somente para evocar um elo com a realidade, como a morte do boi e as cenas de refeições nas ruas. O efeito da câmera em mergulho parece desnudar todos os personagens, mostrados ora de forma singela, como o sanfoneiro, ora de forma irônica, como o homem que espia a mulher no banho.

A fotografia procurou desvelar os ambientes sem iluminá-los demais. O nível de compensação das baixas luzes coloca-o no meio dos extremos representados, neste trabalho, por Pequeno dicionário amoroso e Madame Satã. A combinação da utilização de planos-seqüência, câmera alta e média compensação nos dá a impressão de investigação ou exposição deliberada dos segredos dos personagens.

A compensação das baixas luzes em Amarelo manga pode ser interpretada tanto no plano contextual, pois Recife é uma cidade cheia de luz, como no plano da narrativa, pois vemos na tela um desfile de características dos personagens que eles mesmos não parecem querer ocultar, como o desejo de Dunga por Wellington ou o caso deste com Dayse.

É um filme, no geral, de cores mais brilhantes e saturadas, e o contraste ocorre sem perda de detalhes nem nas altas luzes nem nas baixas. Como o filme acompanha o desenrolar dos fatos durante um dia, as mudanças de temperatura de cor são registradas na tela pela forma como as cores são impressas, o que reforça a sensação de passagem do tempo.

Carandiru (2003), 148 minutos, direção de Hector Babenco.

Dramatização de um livro homônimo do médico oncologista Dráuzio Varella, ambientado no desativado complexo carcerário do Carandiru, em São Paulo. A partir de histórias reais presenciadas pelo autor do livro, os roteiristas sintetizaram algumas histórias em personagens que vivem no presídio às vésperas do episódio conhecido como o massacre do Carandiru, no qual pelo menos 111 presos foram mortos em uma ação do Batalhão de Choque em 2 de outubro de 1992.

Ambientado quase totalmente no presídio, teve poucas cenas gravadas em locação, sendo a maior parte das celas reconstituída em estúdio. Porém, as cenas em locação

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são intensas, e algumas cenas externas relatam, em flashback, os motivos que levaram os personagens ao presídio.

O filme desvela um submundo impregnado de referências populares, com uma direção de arte fiel ao ambiente retratado, que não estilizou o cenário e reproduziu de maneira realista e detalhada o caos visual reinante no presídio. Partindo das fontes de luz utilizadas pelos presos, Walter Carvalho conseguiu traduzir esse ambiente confuso e claustrofóbico com a verossimilhança desejada pelo diretor e motivada pela trama.

Também mostra, principalmente na seqüência em que Zico conta do estupro da irmã a Deusdete e no futebol, elementos da luz e do clima de São Paulo – a chuva, a lama, embaixo de um céu carregado, mas luminoso.

Acredito que o tratamento de contrastes e cores do filme se deva, em grande parte, ao clima sugerido pelo livro de Varella que deu origem ao roteiro. No livro, Varella conta as histórias de maneira direta e coloquial e, embora seja imparcial em sua posição quanto à culpa ou inocência de seus personagens, mantém um registro menos amargo do que o ambiente e as histórias que presenciou poderiam sugerir.

Cazuza - O Tempo Não Pára (2004), 98 minutos, direção de Walter Carvalho e Sandra Werneck.

Terceiro longa da parceria de Carvalho com Sandra Werneck, Cazuza marca a estréia do fotógrafo na direção de ficção.

Filme urbano, feito em sua maioria de cenas internas e/ou noturnas, retrata o Brasil dos anos 1980 e início dos 1990. A reconstituição do clima de “desbunde”, expressão da liberalização de costumes, no uso de drogas e no sexo livre, é o cenário da biografia do poeta e cantor Cazuza, morto em 1990, aos 32 anos.

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Cazuza foi filmado em 16mm37, com a intenção de se aproximar em textura dos filmes super 8 38

O filme começa mais diurno, e nas cenas internas tem maior detalhe nas regiões de baixa luz. O primeiro ensaio do Barão Vermelho, os treinos no Circo Voador, a praia, a viagem da banda, e até a cena em que o grupo passeia de carro à noite tem muita luz, muito brilho.

fornecidos para pesquisa pela mãe do personagem-título, Lúcia Araújo. Talvez com esta finalidade tenha sido induzida, provavelmente na pós-produção, uma dominante magenta em todo o filme, de maneira a aparentar o desvio de cor característico apresentado pelas fotos coloridas das décadas de 1970 e 1980, e desta maneira acentuar o tom nostálgico e rememorativo.

Embora Carvalho afirme ter usado o mesmo tratamento de iluminação durante o filme todo, nota-se que o filme vai tornando-se cada vez mais escuro e contrastado após a separação do cantor do grupo Barão Vermelho e a descoberta da Aids, pois a partir deste ponto o protagonista passa a viver mais recluso devido à evolução da doença. As numerosas lâmpadas que contextualizavam o ambiente festivo e davam um colorido frenético à movimentação dos personagens saem de quadro, e dão lugar a grandes fontes difusas, em sua maioria janelas, que fazem um dramático contraste com a escuridão que preenche os ambientes, preparando o expectador para a grande cena final, um belíssimo contraste do protagonista contra a silhueta de uma montanha delineada pelo pôr-do-sol.

Outro aspecto interessante neste filme é a reconstituição das iluminações utilizadas nos clips musicais dos anos 1980. Essa reconstituição serviu tanto à forma do filme, pela inclusão de cenas reais ocorridas na apresentação do grupo Barão Vermelho no primeiro festival Rock in Rio (1985), como para produzir nos que viveram aqueles anos uma sensação de flashback curiosa, pela justaposição dos shows com acontecimentos que sintetizam o Rio de Janeiro da época, como o aplauso ao pôr-do-sol, o auge das atividades do Circo Voador, etc. Alguns trechos feitos em vídeo e

37 Negativo de área menor que o 35 mm, geralmente usado em filmes produzidos para exibição em TV. Quando projetado na tela de cinema, tende a criar uma granulação pela ampliação exagerada do formato. 38 Formato muito popular entre o público amador nos anos 1960 e 1970, usado para filmagens caseiras. Caiu em desuso com a modernização e barateamento do vídeo e das camcorders.

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inseridos no filme reforçam a sensação de retorno aos 1980, além da exibição de trechos de filmes pessoais do cantor que servem de fundo para a exibição dos créditos finais.

A inclusão de Cazuza também foi motivada pela relação da luz do sol com o prazer, que vai do início do filme, em que Cazuza conhece Malu, até a cena final, que se inicia com um banho de mar auxiliado por um enfermeiro. No corpo da obra de Carvalho este sol dialoga com o sol-dureza de Abril Despedaçado, e ilustra bem o conceito de imagens do sol levantado por Tom Zé na Revista Bravo de janeiro de 2005, que motivou a investigação deste trabalho.

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A fotografia de Walter Carvalho

A primeira sensação que nos salta aos olhos quando observamos a coleção de imagens de filmes diferentes é a diversidade de tratamento fotográfico que cada roteiro recebe. Mesmo nos filmes em se que trabalha, aparentemente, com um mesmo universo, como as comédias românticas dirigidas por Sandra Werneck, ou os filmes sobre personagens marginais ambientados em cortiços, como Amarelo Manga e Madame Satã, ocorre a utilização de uma abordagem fotográfica específica responsável pela criação de um resultado estético particular a cada trama. Pequeno dicionário amoroso difere de Amores possíveis no uso esquemático das cores, na amplitude dos quadros, no uso das possibilidades fotogênicas das locações. Associamos Lavoura arcaica a seus planos distorcidos e à sua cor sépia. Amarelo Manga traz referências de histórias em quadrinhos no colorido e no enquadramento, enquanto o tom de Carandiru é de realismo, mas sem simular uma abordagem documental.

Percebe-se, pela análise de alguns fotogramas, o grande conhecimento técnico e o domínio da linguagem específica da cinematografia pela segurança com que Carvalho trabalha nos limites de resolução da película. Existe, em alguns filmes, o uso deliberado dos volumes em silhueta contra um fundo iluminado fracamente que, no entanto, permitem que tenhamos uma noção da movimentação e da posição dos personagens em cena. De fato, Carvalho se considera um fotógrafo no mais amplo sentido da palavra, isto é, como um conhecedor e utilizador consciente dos códigos da linguagem da luz, e se permite deixar que muitas imagens sejam percebidas pelo espectador de uma maneira menos explícita, mais sugerida por volumes e formas. Usa seus conhecimentos de fotografia still39

39 Fotografia convencional, em oposição à fotografia cinematográfica.

para posicionar as áreas de sombra e luz no quadro, mas também usa da especificidade do cinema quando permite que uma

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ligação entre o início e o fim do plano seja feita por um vazio cujo significado é completado pelo espectador.

Todos os filmes analisados neste trabalho foram fotografados em cor, suporte que permite menor possibilidade de manipulação química para alterar os contrastes e, portanto, apresenta uma latitude40 de trabalho mais limitada. É imperativo lembrar que, mesmo que se pretenda absoluta fidedignidade entre uma determinada luz natural e o resultado impresso na película, alguma manipulação da relação de contraste 41

O que gostaria de ressaltar, com essa breve explicação do procedimento de afinação das luzes da cena, é que a fidelidade ou sensação de realidade fotográfica dos contrastes de uma determinada cena não é conseguida sem algum tipo de manipulação deliberada. Para se obter um filme com rendimento tonal semelhante ao olho humano, é necessário adaptar a película fotográfica, que naturalmente tem uma latitude menor que o olho, para que ela reproduza parcialmente a sensação de uma determinada relação de contrastes. Ao manipular a quantidade de luz de compensação que atenua os contrastes com a luz de ataque, o fotógrafo estabelece uma relação que pode causar maior ou menor sensação de realidade, e dar um significado específico a uma determinada cena apenas pela maneira como, por exemplo, mergulha na sombra a expressão de um personagem, ou como deixa que o sol elimine quase todas as cores de um fundo e destaque a expressão de um personagem colocado à contraluz.

é necessária, pois o negativo tende a registrar mais fortemente os contrastes que o olho humano, variando de acordo com a marca, modelo, sensibilidade e exposição do negativo. Gaffers e diretores de fotografia contam, usualmente, com um instrumento que pode visualizar aproximadamente o ganho de contraste de uma determinada cena para um determinado negativo, denominado visor de contraste. Trata-se de um óculo, semelhante a uma lupa, porém em tamanho menor, que é usado no momento em que a luz da cena está em afinação, isto é, quando se estão determinando as relações entre as luzes que atingem a cena.

40 Capacidade de um determinado filme, em condições padronizadas de exposição e processamento, de registrar detalhes tanto nas zonas de alta luminosidade quanto na de baixa. 41 Relação de contraste é a diferença existente entre a quantidade de luz refletida de dois determinados pontos de uma dada imagem, traduzida na imagem como diferentes tons de cinza ou diferentes matizes de cor.

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Carvalho, que ainda fotografa still com freqüência, parece transportar para o cinema sua produção com as câmeras fotográficas. O início na fotografia, quando se considerou durante muito tempo um fotógrafo bressoniano, pelo método e pelos resultados esperados, ainda hoje se faz sentir nos equilibrados quadros dinâmicos que compõe. Não há vazio não significativo, a integração com a direção de arte e a valorização dos volumes é facilmente perceptível. É curioso, também, lembrar que os poucos filmes que registraram Bresson em ação mostravam que ele trabalhava com a câmera nos olhos, compondo continuamente a cena com o visor no olho, aguardando o momento de fazer a imagem, à maneira de um cameraman, que mantém o quadro durante uma cena, e tem de adaptar o quadro à medida que o personagem se desloca.

Também o gosto pela imagem panorâmica, revelada na entrevista que fiz com o fotógrafo, aparentemente trouxe contribuições à linguagem de Carvalho no cinema. Central do Brasil, por exemplo, foi um dos primeiros filmes nacionais feitos em Super 35 (processo que rende uma proporção de imagem de 1:2,35, enquanto o formato acadêmico tem uma proporção de 1:1,37) e o uso deste recurso proporciona um registro em tela da mudança de ambiente que Dora e Josué empreendem no decorrer do filme.

Para as análises, vou dividir as cenas pelo ambiente em que elas se desenvolvem para melhor entender a abordagem de Carvalho para cada situação específica, como exterior/dia ou interior/noite. Essa separação, a meu ver, serve para melhor comparar as diferentes formas de se planificar um roteiro e, pela contextualização de sua colocação na narrativa, ajuda na discussão sobre seu sentido em cada filme analisado. Depois, vou agrupar as imagens em quadros temáticos que, acredito, poderão ilustrar melhor as diferentes abordagens da luz tropical nos filmes fotografados por Walter Carvalho.

Imagens de exterior/dia

Começo a análise de imagens dos filmes de Walter Carvalho pelo tema que me levou à pesquisa. Com a seleção dos filmes orientada para tal objetivo, parti da comparação entre as principais cenas de exterior/dia, em que a configuração típica de uma determinada iluminação natural serve para contextualizar a ação.

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O sol como metáfora da rudeza da vida no agreste, como força da natureza, como elemento agressivo e impositivo, conforme a tradição do cinema-novo e em consonância com as linhas naturalistas da literatura nacional, em especial a literatura nordestina, aparece claramente em Abril despedaçado.

Ambientado no sertão da Bahia em 1910, apresenta a família Breves reunida ao redor do trabalho na bolandeira42

Neste filme, o sol está presente com mais força nas horas de trabalho duro, como na cena de abertura, ou na negociação da rapadura na venda da cidade. A cena de maior impacto no filme se dá sob sol intenso, apesar de ambientada numa manhã. Após tocaiar durante toda a noite, Tonho parte em perseguição ao assassino de seu irmão mais velho. A cena, feita em travelling lateral valorizado pela vegetação da caatinga, é vertiginosa e, mesmo conhecendo-se o desfecho, é de uma força impressionante. Os personagens mal conseguem se ver entre a vegetação, e a alternância de ponto de vista entre perseguidor e perseguido é eficiente na representação do medo de ambos perante aquela situação.

. Sob o sol inclemente do sertão, todos têm uma tarefa a cumprir no ritmo incessante dos gritos do pai. Esta cena constitui uma bela metáfora dos acontecimentos que vão ser narrados pelo filme, seja pelo ambiente, seja pelo movimento circular e, portanto, infinito, cíclico, do trabalho. A câmera em mergulho no eixo da bolandeira, os olhares trocados em silêncio sob os gritos do pai, que toca os burros, o ritmo incessante do trabalho na moagem e na casa da rapadura são imagens que não necessitam de muita explicação, e sintetizam em poucos segundos a rotina e o destino dos personagens.

Em outros momentos, como os diálogos entre Tonho e Pacu, o sol já está mais suave, a caminho do poente. Hora de descanso do trabalho para os personagens, hora de alívio da dureza da luz do sol para os espectadores. Texto e contexto estão a favor da fotografia para ilustrar a hora de partilhar segredos e fantasias.

É nesta luz de final de tarde, com suas sombras longas e seu contraste suavizado, que outra das cenas mais marcantes do filme acontece, quando Tonho brinca no balanço contra um céu de azul profundo. O recurso de fixar a câmera num ponto de vista fixo na frente do personagem cria o mesmo ponto de vista que já fora usado para mostrar a 42 Moinho de cana movido à tração animal.

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rotina do pai na bolandeira, e serve para mostrar agora os devaneios do filho mais velho no balanço. Tonho, neste momento, oscila entre a perpetuação da saga violenta das duas famílias e o desejo de alçar vôo para o mundo.

Uma ligeira mudança de tratamento nas imagens tomadas no sol acontece em algumas situações, como quando Tonho se junta a Clara e Salustiano. Apesar de se dar em sol pleno, apresenta menos contraste entre altas e baixas luzes, talvez para tornar mais leve a timidez de Tonho ante a beleza e a graça de Clara. Ou quando a mãe, sabendo do cumprimento da parte de Tonho na vingança familiar, lava a camisa do filho mais velho. A luz registrada está suavizada, apesar de a cena acontecer em plena luz do dia, o que parece ter sido intencional para dar mais intimidade e delicadeza para o gesto saudoso e melancólico da mãe.

Os planos gerais apresentam, geralmente, uma composição equilibrada para o céu, com planos feitos a favor da luz, explorando com mais riqueza as texturas do solo e a quase fusão dos figurinos com a terra. As sombras decorrentes do sol a pino, quando aparecem em planos gerais, são parcialmente suavizadas pela reflexão no solo claro da caatinga. Já nos planos fechados, como os closes, a exposição muda um pouco, com o azul do céu um pouco menos saturado que nos planos gerais e alguma compensação a mais na sombra, mas ainda temos a sensação de sol queimando nos ombros dos personagens.

O contraste entre personagem e paisagem é a chave da bela cena final do filme. Uma cena de brancura ofuscante e tons neutros, em contraste com os tons cálidos de todo o filme.O figurino encardido de Tonho se destaca da brancura da areia e da espuma das ondas do mar. O mar, ao mesmo tempo em que nos traz à lembrança a adoração que lhe devotava o menino Pacu, parece representar uma nova e imensa possibilidade para Tonho, que deixou a caatinga para trás ao tomar outro rumo na estrada e na vida.

Mudanças de rumo também são o tema de Central do Brasil. Ambientado no Brasil contemporâneo, aos poucos vai mergulhando em um país em construção, ao realizar a viagem inversa dos retirantes que saem do nordeste a caminho da fortuna no sul. O caminho agora é em direção às raízes.

No início do filme, pouca ação se desenrola a céu aberto. Estamos na periferia da metrópole, e a ação se passa predominantemente no interior da gare ou de

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apartamentos populares como o de Dora. Com o desenvolvimento da trama, ambos partem em viagem à procura do pai do garoto e se vêem obrigados, literalmente, a ganhar o mundo, pois a partir de determinado ponto da estrada vêem-se sem dinheiro e passam a tentar a sorte para conseguir terminar a viagem. Deste ponto em diante, a luz do dia é particularmente cruel com as feições de Dora, que se vê castigada pelo sol direto, sem atenuantes. Em muitas cenas, a luz de ataque é o próprio sol, luz dura que vai expor a dor e o sofrimento de Dora pela valorização da textura das rugas e do cenho franzido que carrega o tempo todo. Esse tipo de tratamento com a personagem tem um efeito muito forte, pelo contraste com o tratamento mais suave que o cinema, tradicionalmente, reservou às feições femininas, mesmo quando retratadas em sofrimento.

Alguma compensação se percebe certas horas nas sombras, especialmente no diálogo de Dora com Josué na cidade de Bom Jesus, em que o rosto dos protagonistas é levemente mais iluminado do que os rostos dos outros passantes nas ruas. Curiosamente, esta compensação seletiva dá certo destaque aos personagens na cena, pois mesmo em meio ao movimento da rua se percebe um leve destaque luminoso nos rostos dos personagens.

O bairro erguido em meio ao nada, onde moram os irmãos de Josué, também é uma boa figura ilustrativa do destino dos personagens, pois daquele ponto em diante terão diante de si o desafio de construir uma nova vida, a partir do zero. Iluminado pelo sol direto, plano, de linhas regulares e limpas e vazio de pessoas, é em tudo diferente do cenário inicial da estação de trens suburbanos que dá nome ao filme, inclusive pela iluminação direta e pelo registro em alto contraste.

Em Lavoura arcaica, as cenas externas têm presença mais discreta, embora ainda sejam importantes como memória do menino André. O sol, citado textualmente, aparece nas cenas radiantes da infância de André, ora com registro onírico, como a cena em que o menino “voa” para a igreja, ora com resultado impressionista, como quando ele se joga sobre a palha. Já as cenas de André adulto, como a festa do início ou a em que Ana o provoca dançando, se desenvolvem sob a sombra das árvores de copas altas e frondosas, desenhando uma luz filtrada no chão e personagens. O filme inteiro apresenta uma variação de matizes de ocre e marrom, menos naturalista que Lavoura arcaica, reforçando o pesado e solene texto do argumento, narrado em off pelo André adulto.

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As cenas externas têm um registro menos contrastado que o de Abril despedaçado. As panorâmicas da fazenda, cheia de morros e vales, apresentam uma iluminação frontal e de baixo contraste, cenas com uma paleta de matizes mais pastéis, de cores menos vivas. Os céus, aqui, tem menor registro do azul, e aparecem com freqüência superexpostos.

Filme de poucas externas, Carandiru retrata um cenário brasileiro pouco conhecido no exterior: a metrópole de São Paulo. As locações utilizadas em Carandiru retratam bem a diversidade de ambientes da cidade, que contém desde o bairro nobre do assaltante de bancos Antônio Carlos até a favela onde o traficante Zico. Estes e outros tantos mundos, como o conjunto habitacional em que Nego Preto é preso ou a casa de classe média de Dalva, estão contidos na metrópole e acabam, no decorrer da narrativa, por convergir no presídio do Carandiru.

São Paulo, como locação, tem suas peculiaridades. Por causa de suas características meteorológicas instáveis, com alternância entre céus carregados de nuvens e ensolarados, filmar cenas de externa/dia em São Paulo implica, muitas vezes, assumir estas facetas do clima para poder levar a termo uma filmagem.

A variação climática da cidade aparece, por exemplo, na cena em que Majestade conquista Dalva. Ela se inicia com sol forte, zenital e de alto contraste, com a luz equilibrada para o céu e o rosto de Majestade mergulhado em sombra, e termina com o céu fechado e luz sem contraste. Essa mudança, porém, não altera o conteúdo narrativo da cena nem constitui um erro de continuidade, pois a mudança de clima acompanha a linha temporal da cena e não há alternância das luzes entre plano e contra-plano. Bem resolvida, serve perfeitamente para ilustrar a dificuldade de se filmar em locação em São Paulo sem cair em erros de continuidade.

O céu característico da cidade aparece também na cena em que Deusdete conta a Zico sobre o estupro da irmã. Apesar de ser uma cena rodada debaixo de chuva, tem seu céu encoberto registrado em um branco azulado, brilhante. Mesmo nas cenas de sol, como na chegada da quadrilha de Nego Preto à favela para fazer a partilha, o céu aparece algo cinzento, fora do registro azul celeste. A exceção é o céu do assalto ao carro-forte, aparentemente realizado na Rodovia Anchieta, que liga São Paulo a Santos, que usualmente apresenta uma atmosfera mais limpa.

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As cenas externas passadas no presídio tem registros diversos, pois a luz somente atingia diretamente o pátio até determinada hora, após o que tudo era iluminado indiretamente, resultando numa luz difusa para muitas situações. A cena externa mais marcante é, sem sombra de dúvida, a cena em que os presidiários são colocados nus no campo de futebol, registrada em um tom quente e de resultado plástico impressionante. A cor predominantemente parda dos presos se confunde com o chão de barro, numa fusão em que a figura humana forma um padrão irregular sobre o solo.

Outro filme de poucas externas/dia é Madame Satã. As cenas diurnas se passam, em sua maioria, no cortiço onde moram os personagens principais, João Francisco, Laurita e Tabu. Construção de pé-direito alto e ambientes estreitos, o cortiço permite que o sol chegue apenas indiretamente aos seus pátios. Somente duas cenas se desenvolvem sob sol direto: a ida do trio à praia e o passeio de João Francisco com Laurita e a filha. Em ambas, a exposição do filme foi feita para o céu, e o processamento com no bleach acentuou ainda mais as sombras onde mergulham os rostos dos personagens. Esse tratamento parece refletir o caráter noturno dos personagens, como se eles parecessem deslocados sob a luz do sol.

Os filmes em que o sol parece assumir um sentido mais ameno são Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso. Em ambos, as imagens extenas/dia são fotografadas de forma mais convencional, com sombras bem equilibradas em relação ao fundo e compensação difusa iluminando o rosto dos personagens, quase sempre fotografados em contraluz.

As cenas românticas, quando acontecem durante o dia, estão sempre sob uma iluminação confortável, que não coloca grandes diferenças de contraste no rosto dos protagonistas, o que torna as feições mais suaves.

A suavidade no tratamento do sol também traz outra característica a estes filmes. As cores estão muito mais saturadas, vivas, que nos outros filmes do fotógrafo. Em parte devido ao contexto urbano, em parte devido à direção de arte, surgem em cena – e são valorizadas pela iluminação – mais cores puras e intensas. A cena em que o Carlos solteiro encontra, finalmente, a mulher que seu aparelho indica ser a ideal é bastante ilustrativa dessa situação. Ambientada no cais do porto do Rio de Janeiro, acontece contra uma parede multicolorida e tem, no contraplano, o vermelho do vestido da

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mulher refletido no rosto de Carlos. Exatamente o mesmo esquema de cores que se vê no reencontro do Carlos separado com seu namorado Pedro.

Em Pequeno dicionário amoroso, a opção é ainda mais radical, já que apenas a cena em que Luiza e Gabriel se conhecem acontece sob sol intenso. As outras cenas externas marcantes do casal acontecem nas horas de luzes mais suaves, como no entardecer ou amanhecer.

Uma relação mais prazerosa com o sol é estabelecida nos dois filmes, herdeiros de uma tradição cinematográfica mais clássica, e a função da luz solar parece ser a de criar uma aura delicada para os casais protagonistas. O sol, assim como a paixão, cega quando em demasia, é o que parece sugerir este tratamento.

É curioso notar que nenhuma conotação sensual acontece sob o sol, nem mesmo uma pequena exposição dos corpos é utilizada neste contexto. O sol, aqui, ilumina grandes amores, e não incendeia o desejo.

Desejo que está implícito nas passagens iniciais de Cazuza. Com poucas cenas de importância ambientadas em externa/dia, o hedonismo do personagem central, que parece encarnar o zeitgeist do Rio nos anos 1980, fica claro na cena da praia, pelos tons quentes e avermelhados, pelo contraste médio que dá leitura das sombras e das altas luzes.

Esse tom idílico vai desaparecer completamente em outra cena na praia, esta com câmera mais nervosa, na mão, de céu registrado em branco, quando Cazuza conta a Ezequiel do diagnóstico de Aids que acabara de receber. Agora, além da instabilidade da câmera, também sumiram a saturação das cores, o claro-escuro, e mesmo o horizonte no término da cena fica fora do eixo.

A última cena do filme, que começa com um banho de mar e termina num poente, parece retomar o tema do prazer, ainda que com um tom melancólico, já que nos prepara para a despedida do personagem. Agora, os planos são gerais, ao invés do plano fechado da primeira cena, o que diferencia as duas tomadas em significado, já que o Cazuza do início da trama, ainda imaturo, parecia centrado apenas em si, em contraste com o artista mais amadurecido pela doença.

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Por fim, mas não menos intenso em seu registro do sol, Amarelo Manga se passa durante um dia na vida de alguns personagens da periferia de Recife. O filme começa ao amanhecer, quando Lígia abre seu bar e o traficante Isaac volta para o hotel Texas, onde mora. Filme de colorido intenso, tem no sol um dos instrumentos para fazer o registro do painel de personagens bizarros que a trama vai misturar. Cores e enquadramentos à moda das graphic novels americanas são usadas para desfilar elementos típicos da cultura suburbana do Recife.

Com cenas de stock shot43

Curiosamente, assim como alguns planos de Abril despedaçado parecem ter saído diretamente de uma produção mexicana de época, pelo contraste do solo amarelo com o céu azul, rostos envoltos em sombra e sua temática centrada nas contradições das tradições familiares, Amarelo Manga tem muitos planos que nos remetem a outra locação tropical por excelência, Cuba, pela ambientação em uma cidade litorânea, com arquitetura decadente de inspiração européia, personagens que vivem no limite da marginalidade, sensualidade à flor da pele e, por que não, até no antigo carro amarelo do personagem Isaac.

marcando a passagem do tempo, como as cenas em que populares almoçam na rua, registra os matizes do céu sem colocá-lo em superexposição, filmando quase sempre a favor do sol, com uma composição cromática muito saturada. O sol funciona como o relógio do filme, marcando o passar do tempo e, numa referência circular ao texto do filme, o ciclo da vida e da morte.

Fica a sensação de que alguma imagem do cinema realizado nesta faixa de luz tropical começa a se consolidar no imaginário do espectador, mesmo que as referências pareçam vir de lugares tão díspares culturalmente quanto a Cuba comunista, o México tão próximo do primeiro mundo e o Brasil nordestino.

Imagens de interior/dia

Aparentemente, seria um contra-senso analisar as imagens de interior, isto é, as que se passam dentro de locações, em um trabalho que pretende entender o registro das

43 Cenas de contextualização, sem texto dramático e com finalidades descritivas, das locações onde determinada produção se passa. Usada na montagem para determinar local e tempo de uma cena passada em interior, por exemplo, sem necessidade de apoio de texto.

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luzes tropicais no cinema. Porém, dentro da linguagem narrativa cinematográfica, é desejável que haja uma continuidade do registro entre as cenas externas e as internas, de modo a não criar solução de continuidade ao longo da montagem e manter o espaço diegético do filme.

As luzes registradas nas cenas internas/dia dos filmes de Walter Carvalho são, geralmente, equilibradas em relação ao exterior, de modo a não criar zonas de branco sem detalhe. O inverso, porém, é mais comum: cenas em que, mesmo com uma grande janela em quadro, zonas inteiras do quadro permaneçam na completa escuridão. Mas as áreas em que existe interesse dramático sempre têm registro: há ocasiões, como em Abril Despedaçado, em que a contraluz cria uma cena em que existem detalhes importantes na sombra, como a expressão do personagem Tonho, e na alta luz, no registro da paisagem agreste em que a história se passa.

A perfeita integração com a direção de arte e o uso consciente dos efeitos luminosos nos objetos de cena fica evidente, por exemplo, pela utilização das janelas. O interior de Minas Gerais, cenário que ambienta a trama de Lavoura Arcaica, é revelado pela filtragem da luz exterior por uma janela ornada por rendas, na infância de André; as mesmas rendas, registradas com luminosidade menor, estão nas paredes encardidas da pensão em que busca refúgio de sua paixão por Ana. Também as texturas rústicas dos tecidos, dos móveis e das paredes estão impressas no filme, e reforçam a sensação de que alguma turbulência é domada pelo zelo da mãe e pela austeridade do pai. Neste filme existe, inclusive, uma citação textual da luz que invade a casa, certamente derivada das condições geográficas em que a trama se passa, nas montanhas de Minas Gerais.

As janelas também são bem utilizadas em Central do Brasil, seja na janela basculante por onde Dora vê César partir, seja nas sujas janelas do trem de subúrbio em que a protagonista procura o menino Josué com os olhos.

A adaptação da linguagem fotográfica à trama no trabalho de Walter Carvalho pode ser mais bem entendida se fizermos comparações entre filmes que retratam ambientes similares como, por exemplo, Carandiru, Madame Satã e Amarelo Manga. Embora os três filmes tratem do universo marginal, cada um tem sua própria tese, sua própria textura, de onde vêm suas mais imagens mais fortes.

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Madame Satã, por exemplo, é um filme noturno em sua maioria, e não deixa de ser escuro durante o dia, reforçando o caráter marginal dos personagens. As cenas internas/dia, que mostram o esconderijo de João Francisco, apresentam forte contraste com o exterior, já que o personagem está foragido e mantém portas e janelas fechadas. A imagem da porta se abrindo para Renatinho, por exemplo, nos remete a um animal selvagem achado em sua toca, pela luz que parece vir dos olhos de João Francisco, como o que ocorre com gatos e cães. A utilização do no bleach tornou os contrastes mais agressivos, as sombras ainda mais sem detalhes, e as cores menos saturadas, isto é, como normalmente percebemos a luz noturna, e faz com que as cenas diurnas tenham algum estranhamento decorrente deste tratamento.

Carandiru tem poucas cenas de interior/dia rodadas em locação, já que a produção optou for filmar o interior das celas em estúdio. As cenas feitas em locação mostram ambientes iluminados de forma múltipla, com o uso de luz artificial mesmo durante o dia, devido ao tamanho reduzido das janelas e ao número de anteparos (cortinas, portas, grades) que filtram a luz. As sombras se multiplicam, e as cores derivadas da exposição a fontes diferentes de luz se misturam. As cores apresentam uma saturação igual a Madame Satã, mas o uso de fontes artificiais não corrigidas tira parte das cores das cenas de interior, que ora tendem ao amarelo, ora ao verde das diferentes iluminações por lâmpadas incandescentes ou fluorescentes.

Já o outro filme mais próximo deste universo, Amarelo manga, apresenta um registro dos interiores mais detalhado. As influências pop deste filme em especial são valorizadas com a utilização de uma luz geral, que ilumina mais os ambientes, mesmo estando, aparentemente, dois ou três pontos abaixo da luz de ataque. A intenção em registrar os interiores também fica clara com o posicionamento da câmera em algumas cenas internas. O olhar em mergulho radical, passeando sobre os ambientes, nos dá a sensação de exposição de nossos segredos e pequenezas, o que a fotografia com uma compensação tal com descrita acima permite sugerir. A cor, presente até no título do filme, é bem mais saturada e está presente em todos os elementos cênicos, como figurinos e objetos de cena, além das imagens isoladas que descrevem atividades cotidianas dos subúrbios do Recife.

A compensação das sombras causa, no filme todo, uma maior proximidade das baixas luzes com as altas. O exterior, visto através das janelas e portas dos casarões que

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servem de locação ao filme, é apresentado com uma exposição mais aproximada da normal do que em Abril despedaçado ou Central do Brasil, por exemplo.

Central do Brasil, aliás, mostra uma mudança exterior das locações que acompanha, na trama, a mudança da relação entre os personagens. Nas cenas rodadas na estação, no início do filme, a luz do sol, filtrada e atenuada parcialmente pelo teto, se mistura aos luminosos das lanchonetes, e resulta em uma luz com cores dominantes variáveis decorrentes da mistura de fontes luminosas não balanceadas, como em Carandiru. Conforme os personagens se deslocam para o Nordeste, as luzes externas passam a ser mais fortes, invadindo a cena com violência, eliminando os detalhes do exterior e inundando o ambiente.

Nos filmes em que o sol é registrado mais suavemente, vemos um registro interior do sol bem mais equilibrado. Pelas janelas de Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso podemos vislumbrar em detalhes paisagens agradáveis e céus azuis, matas e praias a compor uma vista mais leve, em menor contraste com os interiores. Os interiores já não estão tão na penumbra, pois são ambientes urbanos de classe média, com o qual o senso comum geralmente associa espaços mais amplos, mais iluminados, com menor profusão de texturas e padrões, em contraste com os ambientes modestos dos outros universos retratados, associados geralmente a uma iluminação mais fraca, ambientes mais fechados e com uma menor harmonia entre os objetos, tendendo ao caótico pela mistura não deliberada de padrões e cores.

Já em Cazuza, um certo caos é característico da personalidade do protagonista, principalmente quando visto em choque com o apartamento convencional dos pais. Embora tenha a maior parte de suas cenas ambientadas em locais fechados ou em noturnas, Cazuza apresenta algumas cenas em que o sol dá o tom da leveza e do hedonismo do personagem central, como na imagem do interior do Circo Voador com a lona iluminada pelo sol carioca, ou pela cena do primeiro ensaio do grupo Barão Vermelho.

Imagens de interior/noite

Com relação às cenas de interior/noite, podemos dividir os filmes analisados em dois grandes grupos. Filmes em que grandes porções da tela estão imersos em negro profundo, sem detalhe, em que a ausência de uma luz de compensação mergulha

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grande parte do cenário, e mesmo parte dos rostos dos atores na escuridão; e filmes em que, mesmo na penumbra, existe um maior detalhamento das áreas de sombra, e se consegue visualizar elementos de cenário, volumes dos corpos, etc.

Filmes sem compensação

No primeiro grupo, figuram Madame Satã, Lavoura arcaica e Abril despedaçado. Diferentemente do proposto por Golovnya44

Nestes filmes, a escuridão sem detalhe parece ser, paradoxalmente, cheia de significado. O roteiro dos filmes se foca em microcosmos em que os personagens, geralmente presos em uma teia de acontecimentos ou estruturas sociais limitantes (a família árabe patriarcal, a tradição da defesa da terra, a marginalidade) lutam contra estas limitações e vivem numa situação-limite. Literalmente, há pouca luz, o que parece limitar o mundo ao micro-cosmo que contêm os personagens e sua dinâmica familiar ou social. Esta estrutura é especialmente significativa em Abril despedaçado, pela sensação de contraste existente entre as cenas de dia, em que há grandes áreas de luz e pequenas, porém densas, áreas de sombra, e as noturnas com poucas áreas de luz e grandes áreas de sombra sem detalhe.

em A iluminação cinematográfica (apud ARONOVICH, 2004, p. 91), Carvalho não utiliza nestes filmes uma grande fonte de compensação, de qualidade difusa e intensidade baixa, que preencha as sombras com alguma luz. Desta maneira, compõe quadros que apresentam “ilhas” de assunto iluminado aparentemente por fontes fracas (candeeiro, vela, lâmpadas caseiras), embora normalmente estas fontes não sejam as reais fontes de iluminação da cena, mas estejam em quadro apenas para contextualizar a fraca iluminação.

Neste pequeno grupo de filmes outra prática comum na fotografia de cinema se subverte: a ausência da contraluz. São muito freqüentes as cenas em que não se distingue o fim do personagem e o início do cenário pela falta de contraluz, seja pela falta de justificativa, isto é, de uma luz natural ou artificial em cena que pudesse representar a origem da luz, seja pela opção deliberada e significativa dessa fusão. A composição de alguns quadros, especialmente em Abril despedaçado, remete aos barrocos, como Caravaggio na iluminação lateral dramática, teatral, enquanto o 44 Anatoli Golovnya, fotógrafo russo, diretor dos filmes de Pudovkin, como Admiral Nakhimov (1946), Dezertir (1933) e Konets Sankt-Peterburga (1927).

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tratamento dispensado aos personagens se aproxima dos caravaggistas de Utrecht ou de Vermeer, que retratavam pessoas comuns em atividades diárias.

Mais uma vez, a contextualização da cor das luzes se dá em consonância com a direção de arte e a pesquisa histórica, de forma a unir resultado estético e verossimilhança. A cor amarela resultante da iluminação por candeeiro, a luz colorida do quarto da artista decadente em Madame Satã, as velas que iluminam a capela de Central do Brasil, a cor esverdeada da igreja protestante em Carandiru, a luz branca do lampião em Lavoura arcaica, todas as cores e intensidades são fiéis à realidade e, ao mesmo tempo, produzem um efeito de mergulho integral em um universo que é em tudo diferente do iluminado universo burguês e urbano, retratado com as cores neutras e baixos contrastes de Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso.

Filmes com maior compensação

Os outros filmes estudados apresentam, em graus variáveis, alguma compensação nas baixas luzes em cenas internas. Essa variação vai dos mais iluminados, como Central do Brasil, Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso, que tem uma compensação menor e rendem quadros mais escuros, embora ainda seja possível identificar muitos elementos cênicos e volumes do ambiente, como Amarelo manga, Carandiru e Cazuza.

Cazuza é um filme que usa, alternadamente, a compensação nas luzes das cenas de interior/noite. O filme oscila entre a não utilização da luz de compensação e o uso de fontes contextualizadas – abajures, luzes de corredores, etc – para poder iluminar parcialmente os cenários. Há cenas em que a composição lembra os filmes do primeiro grupo, como na que Cazuza volta a cantar com Frejat após a descoberta da doença, ou a cena em que Cazuza conversa com o pai, em que ambos aparecem recortados pelas portas do apartamento. Mas também há cenas em que a compensação, mesmo fraca, ambienta a cena com maior detalhamento, como as cenas de bar, em que o cenário é mostrado pelas fracas luzes das mesas. A iluminação dos shows do Barão Vermelho foi feita deliberadamente com a intenção de ilustrar o padrão visual das produções dos anos 1980, como uso de filtros estrela, que multiplicavam o flare da lente.

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Em todos os filmes analisados, me pareceu que o uso das luzes de compensação se deu mais em razão dos ambientes urbanos em que as tramas se desenvolviam, pois dessa maneira imprimiriam melhor seu universo em particular. Tanto isso parece verdadeiro que, quando a ocasião permite, Carvalho volta a utilizar uma composição mais minimalista, com apenas uma fonte de luz a dar o clima da cena, como quando Nego Preto conversa com Gordo dentro do camburão em Carandiru.

Imagens de exterior/noite

Uma primeira constatação pode ser feita na análise das imagens de exterior/noite nos filmes analisados de Walter Carvalho: eles quase não utilizam as técnicas mais correntes de contextualização de cenas noturnas. Usualmente, uma série de técnicas mais ou menos conhecidas, como molhar o chão e iluminá-lo em contraluz para criar reflexos especulares, usar a contraluz para separar o personagem do fundo, iluminar a cena com uma luz levemente azulada, uso de máquina de fog, nenhum destes artifícios aparece com freqüência nas cenas noturnas dos filmes estudados neste trabalho.

Só nos trabalhos com estética mais próxima da acadêmica, que se referem aos paradigmas hollywoodianos do gênero comédia romântica, como Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso, ocorre o uso dos recursos clássicos descritos, como a cena em que Carlos e Júlia saem do jantar com a mãe dele, ou na cena final, quando a história dos dois se confunde com um filme projetado no mesmo cinema do começo da trama.

Central do Brasil, no geral um filme com mais compensação que nos outros filmes estudados, mantém o registro das cenas internas nas externas, com uma compensação mais presente, especialmente na cena da festa noturna na cidade de Bom Jesus.

Algumas cenas utilizam técnicas mais radicais, como as cenas de Abril despedaçado e Lavoura arcaica em que os personagens aparecem somente pela impressão de sua silhueta contra o céu quase noturno; ou quando Tonho se encontra com o pai, em que apenas uma luz dura é utilizada, obtendo o efeito de uma lua cheia baixa no céu. Carvalho nos relatou que esta cena e a que ocorre o temporal no final do filme foram iluminadas somente por um refletor de 18 kilowatts colocado sobre uma grua a

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aproximadamente 20 metros de altura, o que permitia imprimir tudo com um único facho de luz.

Em Abril despedaçado outras cenas têm soluções radicais, como a cena do circo, em que a fraca luz da vila é denotada pelo predomínio das fracas luzes amareladas do circo como os pontos mais brilhantes em cena, ou mesmo a cena em que o menino Pacu começa sua caminhada no final do filme.

A iluminação determinada pelo contexto resultou numa das cenas mais marcantes de Carandiru, quando dois fachos de refletores varrem campo de futebol da penitenciária, enquanto os presos sobreviventes do massacre aguardam a chegada da manhã. Também é unidirecional, não difusa, a luz que ilumina o pátio quando o médico caminha para a saída em seu primeiro dia de voluntariado no presídio.

Nas noturnas de Carandiru fora da prisão, os registros vão do parcialmente iluminado centro de São Paulo às ilhas de luz desenhadas pelos postes da favela em que Deusdete caça o estuprador de sua irmã.

Amarelo manga mantém o registro gráfico nas cenas noturnas. Como a cena em que Kika ataca Deyse, iluminada apenas por um facho lateral, em que pouco se pode ver do entorno da cena, e nos concentramos na agressividade do ataque e na expressão de dor de Deyse

No urbano decadente de Madame Satã as externas/noite são tão escuras quanto as internas, pois o filme se ambienta na Lapa dos anos 30, local suspeito por excelência. Os becos e vielas desse bairro boêmio seriam, provavelmente, menos misteriosos se fossem mais explicitados pela iluminação de compensação.

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Paletas de cores

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Cenas externas/dia

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Céus

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Cenas internas/dia

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Janelas

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Relação interior/exterior

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Nascente e poente

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Cenas externas/noite

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Cenas internas/noite

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O sol e o sofrimento

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O sol e o prazer

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O céu de São Paulo

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Mudanças de contraste

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Uso simbólico da cor

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Conclusão

A tentativa de identificar uma forma de exprimir em película as particularidades da luz tropical, ponto de partida deste trabalho, se revelou uma proposta bem mais abrangente do que inicialmente se configurava.

Um filme é a resultante de uma soma de esforços e intenções que depende, em grande parte, do equilíbrio entre suas componentes para atingir o objetivo de envolver a audiência e fazê-la acreditar naquele universo particular que o filme encerra. Qualquer excesso pode ser tão prejudicial quanto as possíveis carências, a explicação a mais pode expor o engodo, o brilhantismo técnico pode revelar a farsa, tanto quanto a pobreza de recursos retóricos ou técnicos pode tirar o brilho de uma grande história. Como em toda forma de arte, saber dosar as partes em prol do todo é, em grande medida, a diferença entre uma grande obra e apenas mais uma obra.

Dentro desta delicada equação, os aspectos técnicos estão intimamente ligados ao seu sentido no contexto da história, à sua necessidade na trama, ao que podem agregar de significado a um roteiro. Quando não conseguimos imaginar determinado filme sem aquela fotografia, aquele enquadramento, aquele movimento de câmera, estamos diante de um filme em que a fotografia agregou, de fato, algo de significado à história. Fundiu-se às outras componentes do filme para compor o todo indissociável da obra de arte.

A fotografia de Carvalho é sutil, pouco afeita a excessos e aparentemente pouco temente a dogmas. Embora pareça não desejar se repetir, não torna esta busca pelo novo uma opção pelo mais atual ou mais surpreendente, e sim pelo que aquela história em particular tem que ainda não foi contado em outros filmes. Não se fixa em nossa memória pela força, pela assinatura marcante, pelos movimentos de câmera personalistas, pelas cores exageradamente saturadas ou ausentes; antes disso, é pela

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união significativa que estabelece com outros elementos da estrutura do filme que sua fotografia vai ser lembrada, é pela cor precisa que o diálogo valoriza, é pela integração com a direção de arte, pelo que imprime do rosto dos atores.

A luz, em seu trabalho, tem expressão até na sua ausência. É na escuridão dos guetos, das grotas e das cortinas que estão os medos, as incertezas e a ignorância. O mundo noturno e instável em que vive Madame Satã seria, provavelmente, menos misterioso se os cômodos do cortiço ou se becos da Lapa tivessem mais luz de compensação a mostrar todas a movimentação dos personagens. É justamente, na minha opinião, na falta de clareza dos movimentos que se expressa a falta de certezas no mundo em que João Francisco se transforma em Madame Satã. É nas luzes recortadas por venezianas ou treliças que o vulto se esconde. É do escuro que vem o golpe.

É no escuro que se escondem a ignorância e o ódio cego que movem o patriarca dos Breves em Abril despedaçado. Sob a luz do candeeiro, seus olhos parecem ainda mais esbugalhados e seu mundo ainda mais limitado.

Walter Carvalho disse na entrevista que não tem qualquer compromisso com a beleza. Esta frase, vinda de um esteta, causa ainda maior estranheza, mas resolvi citá-la para tentar, a partir de seu teor provocativo, entender sua maneira de pensar a construção da luz de um filme.

Sem tentar simplificar a discussão sobre a beleza, ou que definição de beleza que Carvalho tinha em mente ao dizer isto, basta reler a frase para intuir que o diretor se sente liberto da necessidade de adequar seu trabalho a um determinado padrão estético. Livre para registrar tanto a suavidade e o sutil quanto os ruídos, asperezas, imperfeições e lacunas de informação, que são os grandes diferenciais do trabalho deste fotógrafo.

Vemos isto claramente em seu filme Amores Possíveis. Lá estão duas versões de Júlia: a sedutora e irresistível que conquista o infantilizado Carlos e a amarga que foi trocada por outro homem. Ali, registrados com a mesma película, com o mesmo tratamento químico, com a mesma neutralidade na cor, se opera a mudança radical através da atuação, da direção de arte e da fotografia. Fotografia que torna a Júlia amarga uma mulher opaca, sem volume ou destaque no quadro, em oposição à Júlia vibrante, que se projeta do fundo e ganha brilhos e contornos.

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Amores possíveis e Pequeno dicionário amoroso são, dos filmes estudados, os que mais se aproximam de uma forma tradicional de cinematografia, tanto na luz quanto no roteiro, atuação e direção, na linha do cinema europeu. Filmes de palavras, quase um teatro filmado, são tramas que poderiam acontecer em qualquer cidade grande em que os personagens, jovens profissionais liberais, fizessem sentido. Seu resultado estético, porém, não parece artificial nem equivocado, pois seus personagens também são verossímeis no contexto do Brasil urbano. A beleza natural do Rio de Janeiro aparece de forma discreta, porém significativa, e a escolha de locações e planos evita os estereótipos.

Alguns dos outros filmes estudados têm nas locações um peso narrativo e significativo muito maior. Por mais que possamos adaptar, por exemplo, a trama de Abril despedaçado a outro universo em que a tradição e a honra determinam destinos, como os campos da Sicília ou a África muçulmana, ainda assim perderíamos elementos que tornam a honra e a tradição cobradas pelo patriarca dos Breves mais compreensíveis para nós. Sobreviver do trabalho das próprias mãos, ganhar a dura luta contra o clima, defender seu território dos que tentam dominá-lo, a luta do pequeno contra o poderoso, tudo isso fica mais evidente para nós quando colocado na caatinga. É o nosso deserto, a nossa Sibéria, o nosso velho oeste, diz respeito à nossa cultura e às nossas raízes. Convivemos com os imigrantes nordestinos que escaparam daquela realidade. Estudamos Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz na escola. Lemos no jornal histórias contemporâneas da seca. Dividimos uma língua e uma religiosidade comum. Seus nomes nos são familiares.

Tornar bela essa luta, tornar humana a rudeza e do pai e a dúvida do filho, é restabelecer a dignidade tanto do senso de honra e determinação daquele quanto da coragem e da rebeldia deste, retirando do banal tanto a lida dura e infrutífera quanto a necessidade de novos horizontes.

Também o duro tratamento de luz com que retrata o sofrimento de Dora em Central do Brasil tem uma finalidade narrativa. Atenuar o efeito dos dias na estrada naquela mulher egoísta talvez fizesse perder a veracidade do seu sofrimento interior, e tornassem sua transformação menos emocionante e justificada.

Ao assumir os contrastes das luzes tropicais, Walter Carvalho exacerbou os absurdos de Amarelo Manga nos excessos da feira, nas cores dos objetos de cena e figurinos. A

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tela ganha cores fortes para contar uma história em que se misturam o banal e o bizarro.

Projetou as rendas de Lavoura Arcaica no rosto do André menino que era acordado pela mãe e nas paredes da pensão onde vai buscar refúgio de sua paixão. O mesmo padrão rendado está no céu da cena da dança de Ana, e todas estas texturas vão remeter ao Brasil do interior, com suas rendas, seus crochês, seus bilros. Muito além do seu resultado estético, essa projeção é uma maneira de imprimir o sol característico das serras mineiras nas paredes austeras da casa da fazenda, o que acontece de maneira delicada, feminina, em contraste com a luz única que emana do candeeiro do pai nos jantares de família.

Ao retratar as paisagens campestres ou agrestes, seu tratamento privilegia e ressalta tanto a espessa camada de folhas no chão de Lavoura arcaica como o emaranhado da vegetação da caatinga em Abril despedaçado. No equilíbrio dos filmes estudados, muitas vezes não bastaria parecer campestre ou agreste, era necessário ser campestre ou agreste, pois da força representativa destes ambientes exalava parte do motiv dos personagens. Seu poder expressivo pode ser mais bem compreendido pelas palavras de Thomas Burnet em seu Telluris Theoria Sacra, no final do século XVII

“Mesmo as rochas ásperas, os antros musguentos, as cavernas irregulares e as cascatas desiguais, adornadas por todas as graças do selvagem, parecem-me tão mais fascinantes porque representam mais francamente a natureza e estão envolvidas em uma magnificência que supera as ridículas contrafações dos jardins principescos” (ECO, 2004, p. 282).

Ou das cidades cenográficas, poderíamos acrescentar.

E quando retrata o decadente Hotel Texas, não estaria o fotógrafo explorando a vida impressa nas escadarias gastas e nas paredes descascadas? Como o rosto de um velho, o estado das paredes e superfícies dos filmes de Carvalho expõe a história que se passou ali e se integra à narrativa de forma por vezes subliminar, o que em certos casos, como as cenas filmadas em locação de Carandiru, não deixam de conter certa curiosidade mórbida sobre os dramas e tragédias que a velha penitenciária pode ter ocultado. Essa valorização do índice, do registrado tanto pelo tempo, quanto pelo uso, aparece em quase todos os filmes estudados.

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Essa procura por uma beleza oculta nos detalhes, nas reminiscências e reveladora da natureza, por uma beleza mais próxima do tratamento teatral e dramático do romântico que do clássico, permeia o todo da obra de Walter Carvalho.

Ao valorizar os elementos característicos das locações, tais como a poluição visual da estação e do trem de subúrbio em Central do Brasil, a parca luz da vila em Abril despedaçado, as superfícies gastas e absolutamente limpas de Lavoura arcaica, a fotografia de Carvalho dispara em nossa mente uma série de associações que facilitam o entendimento da ambientação daquela história em particular. Da mesma maneira, nossa memória menos primitiva vai reconhecer imediatamente elementos da história recente em Cazuza e Carandiru, coisa que somente uma reconstituição da época talvez não pudesse fazer.

A memória faz parte do processo de trabalho de Walter Carvalho. Ao relatar o processo de criação de Lavoura arcaica, o fotógrafo associou uma passagem do texto de Raduan Nassar que cita “a luz da infância” para buscar, em sua memória, uma imagem de luz abundante, ofuscante. Paraibano de João Pessoa, seria estranho se uma imagem diferente de uma luz farta lhe viesse à lembrança. Este componente da memória no ato da criação no cinema foi citado abundantemente nas obras Meu último suspiro (Luis Buñuel45) e Memórias imorais – uma autobiografia (Sergei Eisenstein46), em que os autores listam passagens de sua vida que, mais tarde, foram total ou parcialmente utilizadas como fonte de inspiração para seu trabalho. De maneira até mais evidente que os citados, outro cineasta que utiliza a memória na concepção de seus filmes é Federico Fellini, cujo registro mais assumidamente autobiográfico talvez seja Amarcord47

O uso da memória pessoal na criação cinematográfica não representa, necessariamente, uma imposição vaidosa e egocêntrica do criador, seja ele diretor, roteirista ou fotógrafo, ao público. O processo da memória é elemento importante na

, que se baseia em sua infância na pequena Rimini.

45 Cineasta espanhol, diretor de Viridiana (90 min., p&b, 1961), direção de fotografia de José F. Aguayo, e Los Olvidados (85 min., p&b, 1950) direção de fotografia de Gabriel Figueroa. 46 Autor, roteirista, diretor de teatro e cinema russo, autor de uma série de livros de linguagem cinematográfica como A forma do filme e O sentido do filme, e diretor do célebre O couraçado Potemkin (75 min., p&b, 1925) direção de fotografia de Vladimir Popov e Eduard Tisse. 47 Amarcord (127 min., cor, 1973), direção de fotografia de Giuseppe Rotunno

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recepção do produto cinematográfico, seja pelo valor narrativo de uma determinada luz, música ou história, seja pelo contraste com o repertório anterior do público. Estabelecer uma relação ao mesmo tempo reconhecível e que não cause a sensação de déjà vu é essencial para que este poderoso recurso narrativo seja efetivamente utilizado e estabeleça uma relação comunicativa com o espectador.

Evidentemente, todo o processo de criação da fotografia de um filme está subordinado ao efeito que se deseja provocar. Da impressão realista ao registro onírico, do efeito natural ou assumidamente artificial, de um contexto cosmopolita ao regional, é desejável que a fotografia faça parte de um todo coerente para que não entre em conflito com as outras componentes do cinema. Carvalho, na entrevista, cita Tarkovisky48

A constante cooperação de Carvalho com diretores e roteiristas identificados com histórias passadas dentro da realidade brasileira contribuiu, nos trabalhos estudados, para firmar um conjunto de referências visuais possíveis no Brasil no imaginário do público. Ao explorar o já conhecido sol da caatinga, mas também as mais suaves luzes de Minas Gerais, ou mesmo a pouco amigável luz da cidade de São Paulo, colocou na tela do cinema elementos da memória do público que, sem intermediação do olhar estrangeiro, passa a se identificar cada vez mais com o cinema produzido no Brasil.

ao ressaltar a importância integração orgânica da fotografia aos outros elementos da linguagem cinematográfica, como a montagem, o roteiro, a interpretação e o som, de forma que a integração de todos os elementos potencialize o efeito no espectador, fazendo-o viver a experiência cinematográfica integralmente.

48 Diretor de Solyaris (165 min., cor e p&b, 1972), direção de fotografia de Vadim Yusov.

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Referências bibliográficas

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COOPER, Adrian; O olhar do fotógrafo: os outros olhos do diretor in: ABC – Associação Brasileira de Cinematografia www.abcine.org.br , 1997

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ECO, Umberto (org.); História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004

MONCLAR, Jorge; O diretor de fotografia; Rio de Janeiro: Solutions Comunicações, 1999.

MOURA, Edgar; 50 Anos Luz, Câmera e Ação; 2ª edição, Editora SENAC São Paulo, 2001;

SCHETTINO, Paulo Braz Clemêncio; Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro, ou, A técnica em estórias, pelos homens e mulheres que a realizaram, desenvolveram, utilizaram...; 1997; (Mestrado) - ECA/USP - CTR

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WATTS, Harris; On camera – O curso de produção de filmes e vídeos da BBC; São Paulo: Summus, 1990.

XAVIER, Ismail: Transparência e opacidade; São Paulo: Paz e Terra, 2005.

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Entrevista

O início na fotografia de cinema

A minha primeira experiência de me aproximar do cinema não tinha uma coisa assim definida de fotografia, mas foi uma ... eu fui ajudar meu irmão, Vladimir Carvalho, ele é documentarista e eu fui ajudá-lo, foi ele ... Na verdade, quem me aplicou o cinema foi ele, o Vladimir, meu irmão. Em 68 eu fui morar no Rio e fiz vestibular para uma escola de desenho industrial, a ESDI, primeira escola de desenho industrial do Brasil e lá tinha uma cadeira de fotografia. O Roberto Maia era o professor dessa cadeira, e eu aprendi com ele a gostar de fotografia. O meu irmão, nesta época, final de 1969, porque estava estudando fotografia na escola, me chamou para fotografar um filme, seria meu primeiro filme, e eu me lembro que o Roberto Maia foi o cara que me emprestou o fotômetro, e eu falei “Mas eu vou lá? Eu não sei...” e ele que deu força pra isso, ele falou “Tem que ir, tem que ir, tem que ir!”, e eu fui. Desde então, mesmo antes de fotografar um filme como esse, eu comecei a fotografar still, coisa que eu faço até hoje.

Referências na fotografia

Eu tenho a impressão de que João Cabral de Melo Neto49

Eu acho que a minha geração de fotógrafos, a anterior e até as que vieram depois de mim, pelo menos uma ou duas depois de mim, se espelharam muito em Cartier-

talvez tenha me situado, tenha me influenciado mais para fotografia do que um fotógrafo especificamente. Eu me lembro o impacto, ainda jovem, de quando eu li o Cabral. A síntese do Cabral me perturba até hoje.

49 Poeta e diplomata pernambucano, nascido em 1920 e falecido em 1999, autor de Morte e vida Severina e várias antologias de poemas.

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Bresson50. Eu já me considerei um fotógrafo bressoniano, no sentido de sair de casa com a câmera procurando uma foto de Bresson. Por exemplo, se passasse uma freira na rua eu ia atrás, porque eu acho que uma freira atravessando uma rua, subindo uma escada, descendo de um prédio, pegando um táxi, tudo o que a freira fizer na rua dá foto. Hoje, eu estou com 58, comecei a fotografar aos vinte, hoje eu acho que entendo que uma pessoa que, provavelmente, me influenciou muito na minha formação, mais do que o Bresson, foram Willian Klein51 e o Robert Frank52, e tem os que eu descobri depois, como o Koudelka53, o Christer Strömholm54, a Sylvia Plachy55

O Brasil em widescreen

, eu acho que esse “timezinho” aí me perturba até hoje.

Lua de outono, um filme do sul, que foi filmado quase que simultaneamente a Central do Brasil, e é um filme meio em co-produção com a Argentina, eu acho até que o fotógrafo é argentino, e mais ou menos no mesmo período que eles filmaram a gente também estava filmando o Central do Brasil, e Central do Brasil vem a ser, junto com esse filme, os dois filmes brasileiros a utilizar o Super-35 E depois do Central eu fiz vários, eu acabei de fazer o último filme do Julio Bressane que ainda não está pronto, é Super-35, o Amarelo Manga, o último filme do Cláudio Assis também, Amores possíveis da Sandra Werneck, Abril despedaçado, são vários filmes Super-35. Eu já tinha feito um filme Super-35, mas era um filme francês no Rio.

Trabalho com produções estrangeiras

Os clichês que o filme olhava não eram nem do ponto de vista da fotografia, mas do ponto de vista de sua concepção, era uma comédia que o cara veio filmar no Brasil o Carnaval, futebol, Cristo Redentor, Copacabana, a mulata, era uma comédia em cima

50 Fotógrafo francês, nascido em 1908. Mito da fotografia, criou a agência Magnum e o conceito do instante decisivo na fotografia. Morto em 2004 51 Fotógrafo nova-iorquino nascido em 1928. 52 Fotógrafo suíço nascido em 1924. 53 Josef Koudelka, fotógrafo checo nascido em 1938, estabelecido atualmente na França, onde trabalha na agência Magnum. 54 Fotógrafo sueco, nascido em 1918 e falecido em 2002. 55 Fotógrafa húngara, nascida em Budapeste em 1943.

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desses ícones da cultura brasileira e carioca. A fotografia era uma fotografia tropical, uma fotografia que tem, na medida do possível, a luz do Rio de Janeiro.

Filmei com italiano, aí era um pouco melhor, se chamava Butterfly, era um filme feito para a televisão, apesar de ser em 35 mm, e ia passar no cinema também, mas era curioso porque era um pouco melhor, era um thriller, um filme policial, não tinha a coisa dos ícones da cultura brasileira, era um policial que se passava no Rio de Janeiro.

Fluxo de trabalho

Meu primeiro contato é essa leitura do roteiro, mas eu nunca leio o roteiro de um filme sem que, antes, tendo conversado com o diretor eu não guarde, no meu processo subjetivo de leitura, eu guardo comigo uma frase, um pensamento, uma palavra do que o diretor me disse. Em geral, os diretores, quando te propõe um filme, em geral eles, não digo todos, mas a grande maioria, eles vão mudar o mundo com aquele filme, e eles no entusiasmo dizem coisas que definem muito mais o filme que o próprio roteiro.Eu leio o roteiro, nunca como um roteiro cinematográfico, como uma peça a ser filmada, a não ser que seja um roteiro do Julio Bressane, o roteiro de Filme de amor são quinze, vinte laudas escritas, divididas em seqüência, e cada uma daquelas laudas têm uma indicação do que seria o filme. Às vezes é um texto filosófico nascido na própria cabeça do Julio, esse é um caso específico, mas geralmente eu leio o roteiro como uma história, eu não fico preocupado com a fotografia, aliás eu nunca me preocupo durante o processo de leitura do roteiro com a fotografia em si, eu me preocupo com a imagem do filme, a fotografia, sem querer fazer trocadilho, nem subestimar, nem fazer sofismas, mas a fotografia se encontra nos manuais, a fotografia em si, agora a imagem eu não entendo que a narrativa do filme seja fotográfica, para mim ela é imagética. Posso dar um exemplo: eu não tenho nenhum compromisso de perseguir a beleza, eu não tenho compromisso com a fotogenia, meu compromisso é com a narrativa, se essa narrativa resultar numa beleza, numa fotogenia exemplar, numa fotogenia que ou seja inevitável ou que ela seja encontrada, ela é sempre um gesto, uma atitude a serviço da narrativa.

Eu compartilho de um pensamento do Tarkovsky em que ele diz que tem o sangue tem que circular entre as pessoas pela mesma artéria, enquanto isso não houver não haverá filme, é mais ou menos isso que ele fala, e eu compartilho completamente

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disso, eu acho que se houver um elemento desse processo em que o sangue interrompe o fluxo dele ali, em alguma artéria, eu acho que tem um colapso.

Concepção da luz

Lavoura arcaica tinha uma frase do romance que dizia “como era boa a luz da infância” e eu posso te assegurar que, como eu sou do nordeste, eu posso te assegurar que a luminosidade, a intensidade da luz naquela região se projeta de uma forma muito forte, muito intensa, e o que fica para mim do ponto de vista da infância é que ela era clara, ela estava mais para o lado do ultravioleta do que para o infravermelho, com certeza. E eu era míope, eu sou bastante míope, eu já era míope quando eu era adolescente, e o míope tem um pouco de fotofobia, talvez isso tenha influenciado eu achar isso da luz, e quando eu leio “como era boa a luz da infância” eu comecei a aprofundar essas relações comigo mesmo e com o personagem que, no Lavoura arcaica há uma divisão entre o André criança e o André adulto, e por oposição eu comecei a trabalhar num sentido em que a luz do interior da casa, dos sermões do pai, à noite com a luz do candeeiro, o lampião no centro da mesa, e pela postura do pai de se colocar como o patriarca, aquela relação familiar do poder, havia uma clareza muito grande entre a luz “tenebrista”, digamos assim, da relação do pai, com o personagem André, então foi estabelecido assim um conceito de luz onde a luz clara da infância é a luz boa da infância, e por oposição a luz “tenebrista” das noites daquela fazenda é a luz do pai, então basicamente essas duas luzes são uma forma de personagem do filme.

O encontro, o cruzamento, a junção do meu departamento com departamentos afins, o cenógrafo, o figurinista, o aderecista, tudo isso é cruzado e muda, nessa relação inclusive, muda determinados caminhos que eu poderia tomar com a descoberta de uma outra possibilidade que nasce da relação com outros departamentos.

A luz tropical

Você pega um filme de 400 ASA, 250 ASA, e vai filmar na praia, e você é obrigado a usar anteparos, é obrigado a colocar neutros para diminuir a entrada de luz no filme, porque se você não fizer isso o diafragma da lente não é suficiente para fechar e compensar a quantidade de luz que está entrando, agora se esse mesmo filme estiver

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no inverno da Europa, você vai abrir completamente o diafragma e ele não vai imprimir porque não tem luz.

Eu acho que a dureza da luz tropical pode dar para a gente determinados recursos, mas muitas vezes a dureza dessa luz, por causa da posição do país em relação ao mundo às vezes atrapalha, aí você começa a alterar a revelação do filme, começa a usar filtros específicos para neutralizar aquilo, aí você começa a usar uma luz forte, e ao mesmo tempo você não quer aquela dureza, você quer suavizar... Dá uma vontade danada, numa hora dessas, de você estar numa região depois do meridiano.

A ausência da luz

O preto do Madame Satã é um preto de laboratório, ele não é um preto de fotografia, ele não é um preto de exposição, ele é conseguido no laboratório, é um preto químico, e eu me meti a fazer isso e sofri horrores, eu tinha de fazer testes a cada cena, a cada mudança de locação, a cada mudança de luz eu tinha de fazer um teste, porque fica difícil de controlar quando você altera a revelação com a prata, com o no bleach, e muitas vezes aquele brilho era muito maior e às vezes some por causa da intervenção da prata, da intervenção do banho.

Talvez os pretos mais significativos dos filmes que eu fiz, na ordem, eu acho que são Lavoura arcaica, Veneno da madrugada e Abril despedaçado, mas curiosamente os três filmes são filmes que se passam em casa de fazenda, em lugares fechados, são filmes intimistas.

Há um tabu muito forte no cinema de que as pessoas têm que estar iluminadas, mas nem sempre é necessário que elas estejam iluminadas, porque a gestalt da imagem, o som da imagem e o que está sendo dito na imagem pelo personagem te situa no espaço cênico, no espaço dramático.