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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO EM SAÚDE WANDA LUIZA PEREGRINO DO ESPIRITO SANTO MOVIMENTOS SOCIAIS EM SAÚDE E ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE SENTIDOS: no reclame da liberdade, o novo lugar da loucura Rio de Janeiro 2015

WANDA LUIZA PEREGRINO DO ESPIRITO SANTO … · Ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/FIOCRUZ, da Escola Nacional de Saúde Pública

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INFORMAÇÃO

E COMUNICAÇÃO EM SAÚDE

WANDA LUIZA PEREGRINO DO ESPIRITO SANTO

MOVIMENTOS SOCIAIS EM SAÚDE E ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE

SENTIDOS:

no reclame da liberdade, o novo lugar da loucura

Rio de Janeiro

2015

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WANDA LUIZA PEREGRINO DO ESPIRITO SANTO

MOVIMENTOS SOCIAIS EM SAÚDE E ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE

SENTIDOS:

no reclame da liberdade, o novo lugar da loucura

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Informação, Comunicação e Saúde (Icict),

para obtenção do grau de Doutor em Ciências.

Orientadora: Profª. Drª. Inesita Soares de Araújo

Rio de Janeiro

2015

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WANDA LUIZA PEREGRINO DO ESPIRITO SANTO

MOVIMENTOS SOCIAIS EM SAÚDE E ESTRATÉGIAS DE PRODUÇÃO DE

SENTIDOS:

no reclame da liberdade, o novo lugar da loucura

Aprovado em: 23 / 05 / 2014

Banca Examinadora

_____________________________________________

Profª. Drª. Inesita Soares de Araújo – ICICT/Fiocruz (Orientadora)

_____________________________________________

Prof. Dr. Nilson Moraes – ICICT/Fiocruz (Examinador interno)

_____________________________________________

Profª. Drª. Janine Miranda Cardoso– ICICT/Fiocruz (Examinadora interna)

_____________________________________________

Prof. Dr. Fernado Sobhie Dias – UFRJ (Examinador externo)

_____________________________________________

Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante (Examinador externo)

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Ao meu pai (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial

(LAPS/FIOCRUZ, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) Por ser

espaço de reflexão sobre os saberes e as práticas em Saúde Mental, Atenção Psicossocial e

Reforma Psiquiátrica. Ao seu coordenador, Paulo Duarte Amarante, que me fez descobrir a

riqueza que se escondia nas prateleiras desarrumadas do LAPS, me impulsionou em direção

ao doutorado e compreendeu minhas necessidades de doutoranda. Ao Fernando Freitas que

como chefe substituto soube entender meu desespero final. Ao Fernando Oliveira por ter

fotografado parte dos cartazes utilizados na pesquisa. A todos os colegas do LAPS pela

amizade e compreensão.

À minha orientadora, Inesita Soares Araujo, por ter acreditado no meu projeto, por ter me

aceito como orientanda, por ser firme e carinhosa na medida correta, por estar sempre

presente e por conduzir suas orientações com inteligência e fineza de humor, tornado minha

vida de orientanda menos árdua. A integridade com que conduz seus orientandos e a

seriedade com que arca com suas muitas tarefas me fez sua eterna admiradora.

Aos amigos antimanicomiais de todo o Brasil que responderam meus e-mails, me contaram

um pouco da sua luta, me enviaram cartazes e fotos. Anna Luiza Castro Gomes, Edvaldo

Nabuco, Ermínia Celiberti, Ligia Oliveira, Miriam Abou- Yd , Raphael Henrique Travia,

Marcio Loyola e muitos outros. Agradecimento especial aos integrantes do Núcleo da Luta

Antimanicomial do Rio de Janeiro pela forma com que me acolheram.

Aos colegas de doutorado com quem ri e me desesperei durante quatro anos.

Aos funcionários da secretaria acadêmica por sua atenção e sempre disponibilidade.

Aos amigos Ana Normando, Edvaldo, Jeorgina e Douglas que me ajudaram a cumprir

alguma das tarefas ingratas da tese.

Aos meus filhos, Yuri e Thaís donos do meu amor e carinho, motivo dos meus esforços

A Deus por iluminar os meus caminhos

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RESUMO

A presente pesquisa tem como eixo principal a análise dos materiais de divulgação do

Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, mais especificamente dos cartazes

comemorativos do Dia Nacinal de Luta Antimanicomial. Considerando que, no Brasil, o

Movimento da Reforma Psiquiátrica surgiu na década de 1970, a partir de graves denúncias

contra o sistema nacional de assistência psiquiátrica, a pesquisa incluiu cartazes que

circularam desde o ano de 1978, com o propósito de compreender mudanças na produção de

sentidos ocorridas a partir do II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, realizado na

cidade de Bauru, São Paulo, em 1987, marco histórico no qual teve início o Movimento

Nacional de Luta Antimanicomial. Com base nos enunciados dos cartazes, buscamos

compreender como as vozes que têm transformado as práticas e as concepções sobre a loucura

organizam seu discurso e disputam sentidos no espaço público. Neste sentido,

contextualizamos o momento sócio-histórico-discursivo das peças de comunicação

analisadas; identificamos a relação possível entre as mudanças nos eixos de debate ao longo

dos anos e as temáticas dos materiais; identificamos, compreendemos e compararmos os

dispositivos de enunciação dos cartazes analisados, tendo como contraponto sua dimensão

temporal e geográfica; identificamos e analisamos as disputas de sentidos entre os diferentes

discursos que se manifestam nos cartazes. Como eixo teórico, optamos pela Semiologia dos

Discursos Sociais, com sua premissa central de que discursos são produzidos socialmente e

seu caminho metodológico, a Análise Social de Discursos. O corpus extenso de análise da

pesquisa foi formado pelos materiais de divulgação sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira.

No corpus específico foram privilegiados cartazes comemorativos do Dia Nacional de Luta

Antimanicomial, selecionando-se os produzidos a partir do ano de 1978 até o ano de 2013.

Foram analisados documentos históricos relativos aos contextos político e institucional de sua

produção e circulação. Destacamos os seguintes resultados: nos cartazes analisados, não

obtivemos evidências de diferenças significativas no modo de apropriação local das diretrizes

nacionais. Este foi um dos pontos de partida da pesquisa, considerando-se o âmbito nacional

do movimento, que tem núcleos em todas as regiões do Brasil. Uma de nossas perguntas de

pesquisa era se e como diferenças regionais produzem diferenciações no discurso

antimanicomial. De um modo geral, essa hipótese não se confirmou, embora tenha sido

possível observar um outro padrão de diferenciação. Nos diversos momentos históricos nos

deparamos com o que é possível ser dito e o que é não dizível naquele contexto: os cartazes

analisados buscam reverter um discurso cristalizado mas, apesar de sinalizarem que é

necessário mudar alguma situação, os argumentos são os possíveis na sociedade de cada

época. As mudanças ocorridas nos eixos de debate ao longo do tempo influíram claramente

nas temáticas dos cartazes.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica. Comunicação. Análise Social de Discurso.

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ABSTRACT

This research is built upon the analysis of the advertising material of the National Movement

for Deinstitutionalization (Movimento Nacional de Luta Antimanicomial), more specifically

the posters celebrating the National Day for Deinstitutionalization (Dia Nacional de Luta

Antimanicomial). Considering that, in Brazil, the Movement for Psychiatric Reform

(Movimento da Reforma Psiquiátrica) arose in the 1970s, from severe complaints against the

national psychiatric assistance system, this research includes posters that began to circulate in

1978, in an attempt to understand the changes in the creation of meaning that happened after

the Second Mental Health Workers’ Congress (II Congresso dos Trabalhadores de Saúde

Mental), which happened in the city of Bauru, in the state of São Paulo, in 1987, a historical

moment which marks the beginning of the National Movement for Deinstitutionalization. By

studying the slogans in the posters, we aimed to understand how the voices that have been

changing practices and opinions on madness organize their speech and dispute meanings in

the public space. In that sense, we contextualize the social, historical and discursive moment

of the pieces of communication which were analyzed, we identify the possible link between

the changes in the ideas discussed over the years and the themes present in the advertising

material, we identify, comprehend and compare the enunciation devices of the analyzed

posters, in the light of their temporal and geographical aspects and we identify and analyze

the disputes of meaning generated by the different discourses present in the posters. For a

theoretical base, we chose Social Semiotics, with its fundamental premise that discourse is

produced socially and its methodological path, Discourse Analysis. The extensive analysis

corpus of the study was composed from the advertising material for the Brazilian Psychiatric

Reform. In the specific corpus, we gave priority to posters celebrating the National Day for

Deinstitutionalization, choosing those created between the years of 1978 and 2013. We also

analyzed historical documents together with the political and institutional contexts of their

creation and circulation. Our most important results are: in the posters we analyzed, we did

not obtain evidence of significant differences in the local understandings of the national

guidelines. That was the starting point of our study, considering the national reach of the

movement, with nuclei in all regions of Brazil. One of the questions we sought to answer in

our study was whether and how the regional differences produce differences in the discourses

for deinstitutionalization. Generally speaking, that hypothesis was not confirmed, although we

observed another pattern of differentiation. In the various historical moments, we faced what

could and what couldn’t be said at that specific context: the analyzed posters seek to revert

petrified discourse but, despite the fact that they express a need for change, the arguments are

only those which were possible in the society in each period. The changes that happened in

the points of debate over the years clearly had an influence on the ideas on the posters.

Key words: Psychiatric Reform. Communication. Discourse Analysis.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABI Associação Brasileira de Imprensa

ABP Associação Brasileira de Psiquiatria

Abrasme Associação Brasileira de Saúde Mental

AI-5 Ato Institucional número cinco

ASD Análise Social de discursos

ASUSSAM Associação dos usuários dos serviços de Saúde Mental de MG

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CAPS A Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas

CAPSi Centro de Atenção Psicossocial Infantil

CDH Centro dos Direitos Humanos

Cebes Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CEM Centro de Especialidades Médicas

CFP Conselho Federal de Psicologia

CGT Confederação Geral do Trabalho

CNSM-I Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial

CRP Conselho Regional de Psicologia

CUT Central Única dos Trabalhadores

DINSAM Divisão Nacional de Saúde Mental

ENSP Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz

INPS Instituto Nacional de Previdência Social

LAPS Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental

ME Movimento Estudantil

MINC Ministério da Cultura

MPAS Ministério da Previdência e Assistência social

MS Ministério da Saúde

MTSM Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental

PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RAPS Rede de Atenção Psicossocial

REME Movimento Nacional de Renovação Médica

RENILA Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial

SES Secretarias Estaduais de Saúde

SM Saúde Mental

SUS Sistema Único de Saúde

TSM Trabalhadores em Saúde Mental

UFPB Universidade Federal da Paraíba

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cartaz 1.............................................................................................................. 57

Figura 2 – Cartaz 2.............................................................................................................. 57

Figura 3 – Cartaz 3.............................................................................................................. 57

Figura 4 – Cartaz 4.............................................................................................................. 57

Figura 5 – Cartaz 5.............................................................................................................. 57

Figura 6 – Análise do Cartaz 1 ............................................................................................ 63

Figura 7 – Análise do Cartaz 2 ............................................................................................ 66

Figura 8 – Análise do Cartaz 3 ............................................................................................ 69

Figura 9 – Análise do Cartaz 4 ............................................................................................ 72

Figura 10 – Análise do Cartaz 5 .......................................................................................... 74

Figura 11 – Cartaz 6 ............................................................................................................ 85

Figura 12 – Cartaz 7 ............................................................................................................ 85

Figura 13 – Cartaz 8 ............................................................................................................ 85

Figura 14 – Cartaz 9 ............................................................................................................ 85

Figura 15 – Cartaz 10 .......................................................................................................... 85

Figura 16 – Análise do Cartaz 6 .......................................................................................... 89

Figura 17 – Análise do Cartaz 7 .......................................................................................... 91

Figura 18 – Montagem com cartazes do CFP ...................................................................... 92

Figura 19 – Análise do Cartaz 8 .......................................................................................... 94

Figura 20 – Montagem com cartazes do FMSM e Asussam ............................................... 95

Figura 21 – Montagem com imagens relacionadas à logomarca do FMSM .......................... 98

Figura 22 – Análise do Cartaz 9 .......................................................................................... 98

Figura 23 – Análise do Cartaz 10 ...................................................................................... 101

Figura 24 – Cartaz 11 ........................................................................................................ 111

Figura 25 – Cartaz 12 ........................................................................................................ 111

Figura 26 – Cartaz 13 ........................................................................................................ 111

Figura 27 – Cartaz 14 ........................................................................................................ 111

Figura 28 – Cartaz 15 ........................................................................................................ 111

Figura 29 – Cartaz 16 ........................................................................................................ 111

Figura 30 – Análise do Cartaz 11 ...................................................................................... 117

Figura 31 – Montagem com cartazes da região sudeste de 2013 ........................................ 119

Figura 32 – Análise do Cartaz 12 (frente) .......................................................................... 120

Figura 33 – Análise do Cartaz 12 (verso) .......................................................................... 121

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Figura 34 – Análise do Cartaz 13 ...................................................................................... 122

Figura 35 – Montagem com imagens relacionadas ao cartaz 13 ......................................... 124

Figura 36 – Análise do Cartaz 14 (frente) .......................................................................... 125

Figura 37 – Análise do Cartaz 14 (verso) .......................................................................... 125

Figura 38 – Análise do Cartaz 15 ...................................................................................... 127

Figura 39 – Cartaz relacionado ao cartaz 15 ...................................................................... 129

Figura 40 – Análise do Cartaz 16 ...................................................................................... 130

Figura 41 – Montagem com cartazes com mesma imagem ou slogan ................................ 141

Figura 42 – Montagem com cartazes com imagens semelhantes ........................................ 142

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Sujeito da enunciação, enunciadores e dispositivos de enunciação .................... 77

Quadro 2 – Emissores, destinatários e antagonistas ............................................................. 78

Quadro 3 – Condições de produção ..................................................................................... 79

Quadro 4 – Sujeito da enunciação, enunciadores e dispositivos de enunciação .................. 104

Quadro 5 – Emissores, destinatários, antagonistas ............................................................. 106

Quadro 6 – Condições de produção ................................................................................... 107

Quadro 7 – Sujeitos da enunciação, enunciadores e dispositivo de enunciação .................. 133

Quadro 8 – Emissores, destinatários e antagonistas ........................................................... 134

Quadro 9 – Condições de produção .................................................................................. 135

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 14

1.1 OBJETIVOS .................................................................................................................. 21

2 METODOLOGIA ........................................................................................................... 23

2.1 CORPUS EXTENSO DE ANÁLISE .............................................................................. 25

2.2 CORPUS ESPECÍFICO DE ANÁLISE .......................................................................... 28

2.3 ENTREVISTA E ANÁLISE DOCUMENTAL COMO PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS COMPLEMENTARES ...................................................................... 29

3 CONTEXTO ................................................................................................................... 31

3.1 CONTEXTO TEÓRICO DA SEMIOLOGIA ................................................................. 31 3.1.1 Discurso e poder ........................................................................................................ 41

3.2 CONTEXTO HISTÓRICO E TEÓRICO DA SAÚDE MENTAL .................................. 44

4 ANÁLISE DOS CARTAZES.......................................................................................... 56

4.1 GRUPO I ....................................................................................................................... 56 4.1.1 Cena social 1 .............................................................................................................. 58

4.1.2 Análise particularizada sobre cada cartaz ............................................................... 63

4.1.3 Síntese dos principais elementos analíticos .............................................................. 76

4.1.4 Análise comparativa dos cartazes ............................................................................. 80

4.2 GRUPO II ...................................................................................................................... 84

4.2.1 Cena social 2 .............................................................................................................. 86

4.2.2 Análise particularizada de cada cartaz .................................................................... 89

4.2.3 Síntese dos principais elementos analíticos ............................................................ 103

4.2.4 Análise comparativa dos cartazes ........................................................................... 108

4.3 GRUPO III ................................................................................................................... 110 4.3.1 Cena social 3 ............................................................................................................ 111

4.3.2 Síntese dos principais elementos analíticos ............................................................ 132

4.3.3 Análise comparativa dos cartazes ........................................................................... 136

5 ANÁLISE TRANSVERSAL DOS CARTAZES .......................................................... 138

5.1 A RELAÇÃO ENTRE DISCURSO E ESTRUTURA SOCIAL.................................... 143

6 CONCLUSÕES ............................................................................................................. 145

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 154

ANEXOS .......................................................................................................................... 160

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1 INTRODUÇÃO

A luta por uma sociedade sem manicômios configura-se como uma das mais bem-

sucedidas da história recente brasileira. Sua longevidade, sem dúvida, está relacionada à sua

capacidade de reinvenção. O tema de nossa pesquisa – as estratégias de produção de sentidos

dos movimentos sociais com atuação na área da saúde – aproxima-nos do Movimento da

Reforma Psiquiátrica, um dos movimentos sociais mais bem-sucedidos na área da saúde.

“Liberdade ainda que Tam Tam”, “Loucos pela Cidadania”, “Loucos em Cena”,

“Harmonia Enlouquece”, “Conspirados”, “Maluco Beleza”, “Loko motivas”, “Loucos por

você” falam de uma sociedade sem manicômios, decretam que hospício faz mal à saúde e, de

perto, ninguém é normal. São frases que pulam dos cartazes antimanicomiais, ocupam os

espaços públicos, rompem com o esperado e trazem inquietação ao receptor da mensagem.

Lançando mão desses cartazes, aprofundamos o conhecimento sobre o Movimento de Luta

Antimanicomial brasileira. Trata-se de uma distinta iniciativa, cujo processo e seus resultados

convidamos, agora, o leitor a compartilhar conosco.

A criatividade e irreverência contida em alguns dos cartazes antimanicomiais nos

aproximam da comunidade discursiva antimanicomial.1São eles que nos possibilitaram

entender como essas vozes se organizaram e disputaram sentidos; conhecer as pessoas

responsáveis pela produção e circulação do discurso antimanicomial; as transformações e

disputas que marcaram essa comunidade discursiva ao longo do tempo; além de sua

disseminação pelo território nacional.

A análise dos cartazes se impõe não apenas para possibilitar nosso entendimento a

respeito de como ocorreu a disputa de sentidos entre os diversos discursos que deles

emanaram, mas também constituíram o movimento antimanicomial e neles se manifestaram.

Ainda no contexto dos cartazes, observa-se como as vozes do movimento se estabeleceram ao

longo do tempo e em todos os rincões brasileiros. Um dos nossos pressupostos foi que esse

movimento pode não ter sido apropriado e vivido de forma idêntica em todo o país, como

decorrência da diversidade regional que nos habita. Nossa intenção foi verificar esse fato,

entender, por meio da conformação da temática existente nos cartazes, as mudanças ocorridas

nos eixos de debate ao longo do tempo, de acordo com sua diversidade regional e possível

pluralidade de modos de produzir sentidos sobre a luta por uma sociedade sem manicômios.

1 O termo comunidade discursiva, como veremos adiante, referencia grupos que produzem e fazem circular

discursos sobre um tema.

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Nas dimensões geográficas e temporais, formulamos nossas questões e encontramos o

contraponto que nos permite comparar os cartazes.

Compreender, com base nos enunciados de materiais de divulgação da luta

antimanicomial brasileira, como as vozes que vêm transformando as práticas e as concepções

sobre a loucura organizaram seu discurso e disputaram sentidos no espaço público é a

finalidade última desta tese.

No Brasil, o Movimento da Reforma Psiquiátrica surgiu na década de 1970, durante

importante momento histórico nacional. O ano de 1974 foi marcado pela esmagadora vitória

da oposição nas eleições parlamentares. Os votos de protesto contra o regime militar

caracterizavam o fim do milagre econômico e a retomada da luta ao Estado de Direito

(NUNES; JACOBI, 1983).

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), criado em 1976, e o Movimento

Nacional de Renovação Médica (Reme), instituído em 1978, marcaram a atuação da saúde

entre os diversos setores que se organizaram e se manifestaram. A significativa participação

política da saúde na conjuntura geral não só escreveu o nome dessas entidades na história

recente do país, como também as identificou pelo seu apoio aos movimentos que então

surgiam em algumas áreas da saúde. Dentre eles, destaca-se o Movimento de Trabalhadores

em Saúde Mental (MTSM), também constituído em 1978.

Graves denúncias contra o sistema nacional de assistência psiquiátrica, acusações

acompanhadas de mobilizações por projetos alternativos ao modelo asilar dominante e, ainda,

a efetivação de um pensamento crítico sobre as práticas psiquiátricas se tornaram públicas

pelo MTSM (AMARANTE, 1998).

No ano de 1979, em São Paulo, ocorreu o I Encontro Nacional do Movimento dos

Trabalhadores em Saúde Mental, cujas discussões vincularam essa luta às dos demais setores

sociais. Afinados com seu tempo histórico, além da luta pelas liberdades democráticas, os

trabalhadores fizeram do encontro um momento de reflexão para questões da sua prática

(AMARANTE, 1998).

Dentro de um contexto político efervecente, materializam-se avanços na área da

saúde mental, Como exemplo desse momento, ocorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde2 e,

2 Marco da história das conferências de saúde brasileira. Destaca-se por ter reunido 4 mil pessoas para discutir a

Reforma Sanitária a ser implantada pelo governo. Um dos principais momentos da luta pela universalização da

saúde no Brasil. A 8ª Conferência impulsionou a reforma sanitária, que obteve sua maior legitimação com a

promulgação da Constituição Federal de 1988.

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em sequência, a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental,3 eventos classificados como de

grande significância (AMARANTE, 1998).

Nossa pesquisa inclui cartazes que circularam desde o ano de 1978, com o propósito

de compreender mudanças na produção de sentidos ocorridas a partir do encontro de Bauru.

Em 1987, o II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, realizado na cidade de Bauru,

São Paulo, acompanhou a efervescência política da época, distinguindo-se como marco

histórico. São muitos os acontecimentos que propiciam considerar o Congresso de Bauru um

momento emblemático. Dentre os diversos eventos, vale a pena citar: a primeira manifestação

brasileira pública pelo fim dos manicômios; criação do Movimento Nacional de Luta

Antimanicomial; o estabelecimento de 18 de maio como Dia Nacional de Luta

Antimanicomial e a inclusão, em suas discussões, dos usuários e seus familiares

(AMARANTE, 1998).

No ano de 1987, também foi inaugurado, em São Paulo, o primeiro Centro de

Atenção Psicossocial (Caps). O serviço, denominado Luiz Cerqueira, de vínculo estadual e

formato piloto, implantava uma nova etapa no sistema de saúde mental.

O sistema de desinstitucionalização avançou significativamente na segunda metade

dos anos 1980. Em Santos, São Paulo, o processo de intervenção da Casa de Saúde Anchieta –

hospício privado com 500 internos – implicou seu fechamento e, em sequência, a substituição

do modelo assistencial. A criação dos Centros de Atenção Psicossocial4 formalizou tal

decisão. O Projeto de Lei Paulo Delgado, outro fato histórico, propunha a extinção gradual da

institucionalização dos pacientes psiquiátricos e a substituição progressiva por novas

modalidades assistenciais. Por fim, a instauração das Portarias 189/91 a 224/92, do Ministério

da Saúde, possibilitou que o Sistema Único de Saúde (SUS) financiasse outros procedimentos

assistenciais diferentes do leito e da consulta ambulatorial (AMARANTE, 1998).

O I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial foi realizado em 1993 na cidade de

Salvador, Bahia, e ratificou a identidade do movimento. De caráter apartidário, porém

político, sua militância se organizava em núcleos articulados nacionalmente, mas de forma

descentralizada, compondo uma rede (SOALHEIRO, 2003).

Ao delinear nosso problema no cruzamento entre a comunicação e a saúde, podemos

afirmar que a mola mestra deste trabalho é a articulação de dois campos de saberes, uma vez

3 Com a participação de 176 delegados e temas estruturantes (economia, sociedade e Estado, Reforma Sanitária e

reorganização da assistência e cidadania e direitos mentais), ocorre em junho de 1987. 4 Em funcionamento 24 horas, propõe-se a atender situações de crise psiquiátrica e/ou problemas de cunho social

relacionados ao estado mental; oferece leitos de suporte para hospedagem em situações mais graves. Permite o

desenvolvimento de projetos culturais, artísticos e de lares abrigados para pacientes que não tenham casa ou

condições de moradia, assim como cooperativas de trabalho.

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que tal articulação foi determinante para a saúde em sua totalidade, porém, em especial, para a

saúde mental, pois, nesse campo, fez-se necessária não só a negação do sistema manicomial,

mas também a construção de novas maneiras de a sociedade lidar com a loucura, não sendo

possível deixar de mencionar a precisão de os profissionais da área reavaliarem sua atuação.

A negação de um sistema surge em geral de um questionamento do campo. O

sistema psiquiátrico, como sistema científico e institucional, foi dessa forma, questionado.

Diante da constatação que havia “mecanismos estranhos à doença e sua cura”, era impossível

evitar uma crise das teorias científicas sobre o conceito de doença dentro das instituições onde

ocorriam as ações terapêuticas (BASAGLIA, 1985, p. 103).

Na desconstrução manicomial, amplia-se a abrangência do campo da saúde mental,

impondo a necessidade de encontros com outros saberes, alguns deles, inclusive, por vezes

desqualificados, considerados não competentes e desprovidos de cientificidade. A libertação

de saberes sujeitados (FOUCAULT, 2008) torna-os capazes de oposição e luta, antes de tudo,

contra os efeitos de poderes centralizadores vinculados à coerção exercida por um discurso

teórico, unitário, formal e científico, configurando-se assim parte importante da luta de

desinstitucionalização.

Naquele período, o lugar social do louco e da loucura definia as discussões. O

movimento de saída das instituições fechadas para os espaços não exclusivos suscitava uma

diversidade teórica e prática. A estratégia de aproximar a questão da loucura com o espaço

sociocultural ganhou evidência. No âmbito do movimento, a organização de atividades

culturais, artísticas e científicas tomou corpo, difundindo a luta e conquistando novos atores

sociais para a disseminação da causa.

Amarante e Nocan (2012) atribuem duas vertentes à dimensão sociocultural da

Reforma Psiquiátrica. Uma se refere ao aspecto da participação social nas políticas e à

mudança na concepção da sociedade sobre a loucura. A outra se pauta no trabalho com arte e

cultura no campo da saúde mental.

As inovações surgem desde as primeiras experiências substitutivas. O experimento

santista englobou um conjunto de iniciativas culturais: o Projeto TAM- TAM desenvolveu um

programa de rádio, produção de vídeos, artes plásticas e dramaturgia. Há de se destacar que

essa e outras experiências continham em si características diferentes das atividades

desenvolvidas nos asilos. Nos espaços manicomiais, as ações estavam vinculadas à disciplina,

que possibilitava o bom funcionamento da instituição. Em contraponto, aquelas realizadas nos

serviços substitutivos tinham por foco a superação do estigma, da desqualificação que

acompanhava o sujeito louco nos últimos séculos.

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A arte pensada como “produção de vida, de subjetividades, de significados e

sentidos” passou a marcar a produção de arte e cultura no processo da Reforma Psiquiátrica.

Rapidamente, por todo o Brasil, multiplicaram-se os projetos de arte e cultura, ocupando um

espaço “de luta e construção de sujeitos” (AMARANTE; NOCAN, 2012, p. 10).

Na constituição de uma nova concepção sobre o louco e a loucura, o conceito de

diversidade teve grande importância. A convivência com a pluralidade e a aceitação do

diferente aproximou o movimento antimanicomial de outros movimentos sociais. Alguns

autores discutem a luta em defesa dos sujeitos.

Touraine (1994) propõe que a sociedade pós-industrial seja compreendida pelo

crescimento rápido das indústrias culturais, denominando-a sociedade programática. O efeito

de dominação dessas sociedades possibilitou que as mudanças ocorridas influenciassem todos

os países do mundo. Tal predomínio repercutiu diretamente nos movimentos sociais. A nova

conjuntura fez transparecer conflitos e problemas antes desconhecidos, sendo eles, ao mesmo

tempo, culturais e sociais. Além disso, essa nova circunstância conduziu os movimentos

sociais na direção daqueles que viviam grandes opressões e misérias. Valores universais,

como direitos humanos, de minorias e preservação ambiental, entre outros, passaram a

orientar os movimentos em redes. Ideologicamente, os novos movimentos se distanciaram dos

interesses de classe, que se configuravam como práticas em torno do mundo do trabalho.

De acordo com Santos (1998), ao identificarem novas formas de opressão, não

específicas das relações de produção, e buscarem um paradigma social relacionado à cultura e

à qualidade de vida, esses movimentos denunciaram os excessos de regulação da sociedade.

Touraine (1994, p. 256), por sua vez, acredita que as orientações culturais de uma sociedade

não estão acima dela, pois entende que a defesa dos sujeitos “está repleta de movimento

social”. A modernidade de uma sociedade conduz a um modelo racionalizador, um sistema

pautado em técnicas e objetos. Sua tecnoestrutura torna forçoso recorrer à ideia de sujeito.

Conforme a explicação do autor, na sociedade pós-industrial, os opostos são a sociedade de

consumo e a defesa do sujeito. Dentro desse novo contexto, a luta passa a se desenrolar sobre

as finalidades da produção cultural.

Para Touraine (1994, p. 226), o direito de ser sujeito supõe maior autonomia e

“limites à dominação da lei e do Estado sobre os corpos e os espíritos”; assim, o individuo se

torna sujeito quando se opõe à lógica de dominação social. A afirmação do sujeito e de seus

direitos se estabelece pela crítica, decorrente não de princípios transcendentes, mas do sentido

da liberdade.

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Se, no início da modernidade os loucos, foram confinados em asilos, sendo-lhes

prescrito um tratamento moral – medidas que visavam à recuperação da razão –, nos tempos

atuais, buscam recuperar o direito à cidadania. Bezerra (1994) aponta como uma das questões

centrais ao projeto da reforma o estatuto de cidadania para os loucos. As mudanças ocorridas

na dinâmica interna do movimento impelem a observar a cidadania não por seus atributos

formais, mas sim por meio das diversas formas de expressar a condição humana que estão alí

reunidas.

Ao exercitar o espírito crítico diante da ideologia dominante, o Movimento da

Reforma Psiquiática brasileira foi capaz de modificar instituições, libertar indivíduos

segregados e, principalmente, estimular a sociedade a pensar sobre como tratar os que

adoecem. Com base na premissa discursiva de que os textos produzidos por um grupo

revelam a história e a dinamicidade desses grupos e de suas bandeiras de luta optamos por nos

aproximar das questões que envolvem a luta antimanicomial por meio de seus cartazes.

Ao escolhermos a interdisciplinaridade como caminho, é nossa preocupação tornar

tal escolha dinâmica, ou seja, fazer com que esses compartilhamentos não sejam burocráticos

e pouco eficazes, mas sim que atuem de forma estratégica na construção de novos

conhecimentos.

Uma das principais práticas de visibilidade do movimento é a comemoração do Dia

Nacional de Luta Antimanicomial. A data é lembrada nas mais diversas localidades do Brasil.

Uma de suas principais estratégias de divulgação são os cartazes, reponsáveis por difundir os

discursos que buscam mobilizar o sentido de uma sociedade sem manicômios.

O eixo principal de nosso projeto de pesquisa está na análise dos materiais de

divulgação, mais especificamente dos cartazes. Os discursos apresentados nos cartazes serão

observados considerando que os materiais foram produzidos em determinados contextos

históricos, influenciados pelos dilemas e contradições de seu tempo, ao mesmo tempo que

procuram construir uma nova realidade.

Muitos aspectos de transformações na dinâmica do Movimento da Reforma

Psiquiátrica são abordados em seu material de divulgação. Na materialidade das superfícies,

diversas questões se presentificam. Com base na comunicação, torna-se possível reconhecer o

contexto sócio-histórico e relacioná-lo aos processos em que o Movimento da Reforma está

inserido. Ao analisar as ideias expressas no material de divulgação, compreende-se para quais

outras forças políticas os militantes dirigem seu discurso, quem são seus opositores e de que

maneira pretendem transformar a realidade daquele momento.

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Para entender a dinâmica desse movimento, foram selecionados cartazes do Dia

Nacional de Luta Antimanicomial que contemplam as diferentes regiões do Brasil. Por haver

núcleos do movimento, de dimensão nacional, em todas as localidades, torna-se necessário

compreender como as diretrizes nacionais foram absorvidas localmente, de que forma o

movimento se organizou nas diversas regiões brasileiras, além de reconhecer como diferenças

regionais influenciaram nas decisões nacionais.

Os atores que se movimentaram nesse campo são vários. Muitos deles participaram

da organização ou deram apoio à confecção dos materiais de divulgação. A diversidade de

atores identificada nos cartazes sugere que o campo representara disputa. Perceber dissensos e

consensos que marcaram a tomada de decisão do movimento é fundamental, sendo a análise

pretendida uma das formas de se alcançar esse objetivo.

Parte do material que narra a história da Reforma Psiquiátrica brasileira – cartazes,

camisetas e bottons que relatam em detalhes como grupos dos mais diversos locais do Brasil

se organizaram e divulgaram sua luta – está no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde

Mental/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz

(Laps/ENSP/Fiocruz), lugar onde nasceu o interesse por esta pesquisa e se configuraram seu

tema e objeto, a seguir enunciados:

Tema: O uso das práticas comunicativas no espaço público como estratégia de

produção e disputa de sentidos dos movimentos sociais na área da saúde.

Objeto empírico: Os discursos dos materiais de divulgação do Movimento Nacional

de Luta Antimanicomial em diferentes regiões do Brasil.

O tema e o objeto, assim delineados, buscam integrar-se e contribuir para a

consolidação de uma das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Informação e

Comunicação em Saúde (PPGICS), mais especificamente a linha nomeada Informação,

Comunicação e Mediações, que inclui, entre seus interesses, projetos que visam obter melhor

compreensão das mediações culturais, sociais e institucionais relacionadas a saúde. Os

estudos dos discursos sociais, tanto em sua vertente teórica como metodológica, mostram-se

como um dos caminhos a serem trilhados nessa direção. No entanto, a busca pelo

aprofundamento acerca da natureza e das práticas dos movimentos sociais da saúde só tem a

ganhar com estudos que privilegiem sua dimensão da comunicação, ainda pouco estudada.

Estabelecemos objetivos que permitiram compreender nosso objeto: a produção de

sentido por meio dos materiais de divulgação dos movimentos sociais com atuação na área da

saúde e nos discursos dos materiais de divulgação do Movimento Nacional de Luta

Antimanicomial.

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1.1 OBJETIVOS

Objetivo Geral:

Com base nos enunciados de materiais de divulgação da Luta Antimanicomial

brasileira, compreender como as vozes que têm transformado as práticas e as concepções

sobre a loucura organizam seu discurso e disputam sentidos no espaço público.

Objetivos Específicos:

1) Contextualizar o momento sócio-histórico-discursivo das peças de comunicação

analisadas;

2) Identificar a relação possível entre as mudanças nos eixos de debate ao longo dos

anos e as temáticas dos materiais;

3) Identificar, compreender e comparar os dispositivos de enunciação dos cartazes

analisados, tendo como contraponto sua dimensão temporal e geográfica;

4) Identificar e analisar as disputas de sentidos entre os diferentes discursos que se

manifestam nos cartazes.

A presente tese está dividida em capítulos. Seu núcleo principal é a Análise dos

Cartazes, capítulo 4. A análise é composta de três grupos de cartazes, cada um vinculado a

uma cena social, cuja atribuição é nos aproximar do momento sócio-histórico do movimento e

do grupo de cartazes em pauta. No primeiro grupo, analisamos cinco cartazes dos anos de

1970 e 1980. Os cartazes anteriores ao Congresso de Bauru foram escolhidos no intuito de

compreender, por meio de comparação histórica, as mudanças de sentidos ocorridas após o

evento. O segundo grupo é formado por cinco cartazes dos anos de 1990. Eles integram as

comemorações dos 10 anos de Luta Antimanicomial, que ocorreu em 1997. O terceiro grupo é

constituído de seis cartazes do ano de 2013. Os cartazes dos anos de 1990 e posteriores a 2000

compreendem, em sua seleção, um cartaz do CFP, uma vez que, no decorrer da pesquisa,

verificou-se a importância dos cartazes produzidos pelo conselho. Todos os grupos são

acompanhados de tabelas que permitem visualizar comparativamente os dados analisados

naquele grupo. Há, ainda, uma análise dos cartazes em sua totalidade.

Em seguida a esta Introdução, apresentaremos o caminho metodológico escolhido

para a consecução dos objetivos traçados. O item 2.1 se refere ao corpus extenso de análise

dos cartazes. No item 2.2, encontramos o corpus específico de análise. No item 2.3, são

apresentados os procedimentos complementares utilizados na pesquisa.

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No capítulo 3, revelamos alguns dos principais fundamentos que norteiam a reflexão

teórica da pesquisa, relativos aos campos da semiologia e da saúde mental. No item 3.1,

apresentamos os principais conceitos utilizados na pesquisa, localizando-os na obra dos seus

autores. No item 3.2, embarcamos em uma grande viagem simbólica para descortinar a

história dos loucos desde a Idade Média até o século XX. No item 4, analisamos os cartazes,

divididos em três grupos. No primeiro, foram analisados os cartazes dos anos de 1970 e 1980;

no segundo, os cartazes dos anos de 1990; e, no terceiro, os cartazes posteriores ao ano 2000.

Os grupos serão precedidos da cena social do período relacionado. A sistemática de

apresentação dessa análise compreende a descrição da cena social específica, primeira leitura

individual dos cartazes e segunda leitura comparativa. O item 5 traz a análise vertical dos

cartazes, comparando os achados específicos dos grupos de cartazes, além da observação a

respeito do modo de incorporar as mudanças nos eixos de debate ao longo dos anos.

Por fim, as conclusões, seguidas por apêndices e anexos. Nos apêndices, estão os

cartazes que compõem a pesquisa. O mapa de contato, o roteiro que serviu de base para as

entrevistas e o termo de consentimento encontram-se nos anexos.

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2 METODOLOGIA

Segundo Deslandes (2008, p. 39), “o tema de uma pesquisa indica a área de interesse

ou assunto a ser investigado”. Por ser uma delimitação bastante ampla, é possível observar

que a escolha de um assunto pode apontar para caminhos muito variados tanto de forma

teórica como metodologicamente.

Nossa pesquisa, que traz como grande tema a prática comunicativa do movimento

antimanicomial no Brasil, é de natureza qualitativa, uma vez que o campo de estudo é

permeado de significados particulares, os quais marcam as relações sociais do grupo estudado

com o restante da sociedade. Materiais de divulgação da Reforma Psiquiátrica brasileira

foram aqui analisados em seus discursos.

Os discursos têm “papel fundamental na reprodução, manutenção ou transformação

das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades com que se definem

numa sociedade” (PINTO, 2002, p. 28). Com base nessa premissa, o método de análise de

discursos propõe-se a desvelar os modos de produção dos sentidos dos objetos simbólicos,

sejam eles enunciados, texto, pintura, fotografia, música ou outro qualquer. Os sentidos,

porém, não se restringem aos objetos. Estão também, e principalmente, na relação em que

estabelecem com o exterior e em suas condições de produção, ultrapassando as intenções dos

sujeitos (PINTO, 2002; ARAUJO, 2000; ORLANDI, 2000).

De acordo com Pinto (2002, p. 11), a Análise Social de Discursos – método que se

apoia na Semiologia dos Discursos Sociais – tem por proposta “descrever, explicar e a avaliar

criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos” dos materiais

empíricos em seu funcionamento social. Araújo (2000) ressalta, na perspectiva do sentido, o

que realmente importa: o processo.

A análise de discursos encontra complementação no contexto, não se limitando ao

cartaz. Segundo Pinto (2002, p. 29), tratar os documentos independentemente dos contextos,

“esquecendo-se de sua ‘opacidade’ ideológica, que a análise de discurso coloca em primeiro

plano”, é considerar apenas seu valor documental. No texto, outros textos se fazem presentes.

O texto é sempre composto por vozes que se originam de textos preexistentes. Ao analista

cabe tentar entender o porquê de alguns textos terem sido escolhidos dentro de um universo

infindo de outros que poderiam ser citados. E, ainda, observar o lugar social de onde vêm os

textos citados, as condições históricas que os envolvem e criar hipóteses para a

heterogeneidade existente.

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Para além dos sujeitos e da situação, as condições de produção compreendem

também a memória. Pensada em relação ao discurso, ela é tratada como interdiscurso (o já

dito), que, além de determinar o intradiscurso (o que se está dizendo), permite ao analista, por

meio da historicidade, perceber o que é relevante para o atual discurso sob análise

(ORLANDI, 2000).

Toda produção, circulação e consumo dos sentidos de um texto, na análise de Pinto,

passa pelas dimensões da ideologia e do poder. Dimensões que formam a semiose social. As

condições de circulação só podem ser estimadas, o que se justifica por esse fato não ser, na

atual pesquisa, tão relevante quanto as condições de produção, uma vez que não se trata de

um estudo de recepção.

Verón (2004) considera o ideológico algo que emerge da relação entre o texto e suas

condições de produção e, por esse motivo, deixa marcas no texto. A cargo do analista está a

procura pelas marcas deixadas na superfície textual. O poder emerge da relação do texto com

seu "consumidor", propiciando condições de reconhecimento. Ao analista é possibilitado

observar os efeitos alcançados pelo texto em contextos sociais diferentes. Verón (2004, p. 60)

comenta: “O poder de um discurso só pode ser estudado sobre outro discurso que é seu

‘efeito’.”

Nossa análise dos cartazes, com olhar voltado para as premissas anteriores,

estabelece como principal eixo operatório a relação entre o texto (o cartaz) e suas condições

sociais, institucionais e históricas de produção. No plano microanalítico, buscamos identificar

as marcas deixadas por essas condições de produção deslindando os fios do tecido discursivo

em que se entrelaçaram vozes e discursos, ora em sinergia, ora em concorrência. Desse modo,

percebemos, no movimento dos sentidos, o movimento dos atores e da luta antimanicomial.

Uma das premissas da Análise Social de Discursos é a de que um dispositivo

discursivo só se apresenta como tal quando em situação comparativa (VERÓN, 1980). Ou

seja, somente pelo conjunto das regularidades e diferenças entre suportes materiais

discursivos é possível efetivamente identificar os dispositivos. Esse princípio fundamenta

nossa escolha de estudar de modo comparativo os cartazes em dois recortes: o histórico,

cotejando os dispositivos de três décadas de movimento, e o geográfico, confrontando

dispositivos de cartazes produzidos nas cinco regiões do país. A comparação, nesses casos,

possibilitou não só perceber o movimento das ideias através do tempo, mas também as

diferenças possíveis dos modos de apropriação do slogan do movimento antimanicomial e

suas implicações institucionais e sociais.

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As categorias analíticas utilizadas nessa pesquisa serão apreciadas no capítulo do

Contexto Teórico da Semiologia. Metodologicamente, os conceitos mais utilizados foram o da

enunciação, de Benveniste, que provê à semiologia uma teoria do sujeito, revelando a

unicidade de cada ato discursivo. Utilizamos as noções de sujeito da enunciação e enunciador

para recortar às vozes presentes no texto e o papel por elas ocupado. O sujeito da enunciação

mostra como o sujeito se define no discurso, e os enunciadores são as vozes chamadas a

participar (ARAÚJO, 2000). A existência de discursos concorrentes também aparece no

trabalho de pesquisa. Portanto, discursos antimanicomiais se confrontam com discursos

manicomiais e concorrem, ainda, entre si. Outro conceito usado foi o de comunidade

discursiva, para marcar aqueles que estão envolvidos na produção e circulação do discurso

antimanicomial.

Assim, nossa intenção é identificar metodologicamente os dispositivos de enunciação

dos cartazes comemorativos da luta antimanicomial, considerando-os textos que não só

expressam, mas também constituem essa luta marcada pela perspectiva contra-hegemônica.

Por várias vezes, no decorrer desta tarefa, mencionamos os "possíveis efeitos de sentido". Não

foi nosso objetivo descobrir quais os efeitos de sentido advindos desses materiais da Reforma

Psiquiátrica, até porque os sentidos só se constituem efetivamente na relação entre um texto e

seu leitor (VERÓN, 1980); um estudo da produção discursiva não permite, portanto, a

emergência desses efeitos. Todavia, a análise dos dispositivos de enunciação pede, em certos

momentos, o levantamento de algumas possibilidades, que são apenas uma aproximação com

esses sentidos, orientados por nossas premissas teóricas, categorias analíticas e conhecimento

da realidade empírica estudada. O analista, nesse caso, é um leitor e pode mencionar os

efeitos de sentido que ele reconhece para si.

2.1 CORPUS EXTENSO DE ANÁLISE

O corpus de análise da pesquisa foi formado pelos materiais de divulgação sobre a

Reforma Psiquiátrica brasileira. Mais especificamente, pelos cartazes coletados no acervo do

Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps) e com os

Núcleos Antimanicomiais das diversas regiões do Brasil.

É crescente o investimento do Laps na linha de pesquisa História dos Saberes e

Práticas no Campo da Saúde Mental. Como resultados desse investimento, destacam-se: o

projeto Memória da Psiquiatria no Brasil, vasto acervo de monografias, dissertações e teses,

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além de amplo acervo de materiais de divulgação relacionados ao Movimento de Reforma

Psiquiátrica brasileira.

O Projeto Memória da Reforma Psiquiátrica no Brasil propõe a reunião de um acervo

de documentos (escritos, iconográficos e orais) destinados à recuperação e preservação da

memória da Reforma Psiquiátrica brasileira. A intenção é criar um centro da memória desse

fundamental processo que marcou a história de nosso país, com vistas à conservação de

documentos que o contextualizem, além de sua divulgação para diferentes públicos. Há,

ainda, a perspectiva de disponibilizar o centro para fomento de pesquisas sobre o tema.

O acervo histórico iconográfico do Laps a respeito da luta por uma sociedade sem

manicômios já foi em grande parte fotografado; atualmente, já estão catalogados mais de 300

materiais – atividade relacionada aos objetivos de nossa pesquisa de tese.

No acervo do Laps, foram encontrados cartazes de 1970 até os dias atuais. São 15

dos anos de 1970 e 1980e predominam materiais da região Sudeste. Lá, estão cartazes de

conferências, debates, encontros, comemorações e congressos. Há, dentre os de 1980, dois

cartazes internacionais, um argentino e outro italiano. Aqui, são estabelecidas duas influências

importantes a serem mencionadas: o Movimento da Psiquiatria Democrática e da Rede

Alternativa à Psiquiatria. Ambas são influências europeias que ganharam forças no Brasil. Os

cartazes dos anos de 1970 utilizam o termo “Assistência Psiquiátrica”, e os de 1980

empregam, em suas chamadas, predominantemente “Saúde Mental”. Dos anos de 1990,

existem, no acervo do Laps, cartazes de diversas regiões do Brasil referidos a vários

acontecimentos. Os primeiros relacionam-se ao desenvolvimento de atividades culturais: da

Rádio TAM TAM, “A Rádio que não dá ouvidos para qualquer 1”, e o da exposição de obras

de Arthur Bispo do Rosário. Alguns cartazes vindos da Itália compõem a parte internacional

do acervo nos anos de 1990. Há cartazes das conferências de saúde mental, encontros do

movimento, de organizações da luta antimanicomial, de eventos acadêmicos e encontros para

discutir as práticas realizadas nos serviços. Nas datas comemorativas, os slogans afirmam a

liberdade, cidadania e os direitos humanos, introduzindo-nos assim em um mundo que se

pretende sem manicômios. Em 2000, um fórum nacional marcou sua realização sob o slogan

“Como anda a Reforma Psiquiátrica brasileira?”, mesmo ano em que ocorreu o II Encontro

Nacional de Serviços Substitutivos em Saúde Mental. Os cartazes dos anos posteriores têm

por foco, nos primeiros anos, o cuidado. Como resultado, encontramos slogans como “Cuidar

Sim, Excluir não”, “Liberdade é o melhor cuidado”. E o Movimento Nacional de Luta

Antimanicomial reflete sobre seus caminhos. Já na ocasião do V encontro, “Como estamos? O

que queremos? Para onde vamos?” demonstra questões que se mantêm presentes. O tema do

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cuidado se revessa com o da condenação aos manicômios. “Isolamento, Abandono, Maus-

Tratos, Descaso, Choques, Desrespeito, Esquecimento – tratar uma pessoa assim que é

loucura” e “De Volta Para Casa – Liberdade e Cidadania para quem precisa de cuidados em

Saúde Mental” são alguns slogans que fazem contraponto com as questões antimanicomiais.

A cultura, os eventos acadêmicos, os encontros antimanicomiais continuam presentes entre os

materiais de divulgação. Outras questões aparecem, e os slogans “Diversidade: o que é e qual

o seu significado para o campo da loucura e da saúde” e “Loucos pela Diversidade”

demostram que o movimento se aproxima de outras lutas e se coloca entre outros movimentos

sociais. O território ganha centralidade, assim como as boas práticas e as questões relativas

ao trabalho para os que são portadores de transtorno mental. Surge a Parada do Orgulho

Louco em vários locais do Brasil, e slogans elaborados de forma mais afirmativa como

“Loucura não é crime” ou “Enlouqueci. E daí?”. Os cartazes internacionais são de origem

argentina e italiana. No acervo, há ainda muito material comemorativo sem data, um costume

que permite vincular o mesmo cartaz por mais de um ano.

No entanto, as necessidades de nossa pesquisa não se bastaram aos cartazes do Laps,

já que tivemos a pretensão de fazer uma análise comparativa das cinco regiões do país, o que

nos levou a estabelecer contatos com núcleos antimanicomiais de todo o Brasil. A

comunicação foi organizada em um mapa, as cinco regiões do Brasil separadas por estados,

com seus respectivos contatos vinculados a eles, e enviados e-mails para todos. As mensagens

trocadas com os interlocutores, por todo o país, ficaram registradas no Mapa de Contato, o

que possibilitou recuperar o histórico dos contatos anteriores com facilidade, assegurando

fluidez às conversas estabelecidas. No anexo I, há uma amostra do mapa.

Os contatos foram obtidos de diversas formas: por intermédio de atores

antimanicomiais do Rio de Janeiro, doutorandos e mestrandos da Fiocruz residentes em outros

estados, colegas da Fiocruz e listagens da internet, como também em eventos acadêmicos e na

Conferência Estadual de Saúde Mental – Intersetorial. Apesar de terem sido muitas as

mensagens enviadas via e-mail, as respostas foram escassas.

Optamos por organizar em uma pasta, dividida por compartimentos, os materiais

coletados. Os encaminhamentos foram separados por estados, e, assim, fotos, documentos,

folders e cartazes vinculados ao respectivo estado puderam ser relacionados.

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2.2 CORPUS ESPECÍFICO DE ANÁLISE

Após o levantamento do material existente nos Núcleos Antimanicomiais e no acervo

do Laps, constituímos um corpus pautados em alguns critérios, basicamente da ordem

temática, geográfica e temporal.

Quanto ao tema, foram privilegiados cartazes comemorativos do Dia Nacional de

Luta Antimanicomial. Quando se configurou a impossibilidade de se localizar materiais

especificamente com essa característica, por causa da falta de prática, em vários lugares de

registro, para conservar esse tipo de documentação, ou pela ausência de respostas aos nossos

reiterados contatos, passamos a admitir, na composição do corpus, alguns materiais que se

referiam a outros eventos, mas guardavam certa relação histórica com as ocasiões

comemorativas.

A respeito da temporalidade, foram escolhidos cinco cartazes da década de 1990, seis

do ano 2013, quatro da década de 1980 e um do ano de 1978. A escolha das décadas pautou-

se pela realização do já mencionado evento de Bauru, marco histórico na luta antimanicomial.

Os cartazes dos anos de 1970, assim como da década de 1980, anteriores ao encontro,

representam o início da Reforma Psiquiátrica brasileira, e sua inclusão teve o propósito de

compreender mudanças na produção de sentidos ocorridas a partir do encontro.

No decorrer da pesquisa, identificamos uma grande e importante produção realizada

pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) com início na década de 1990, o que nos levou a

incluir seus cartazes no corpus de análise.

O Projeto Memória da Reforma Psiquiátrica do Brasil permitiu o acesso a materiais

da década de 1970, possibilitando-nos incluir o 19467113cartaz de 1978, ano considerado

emblemático por Amarante (1995), marco inicial da Reforma Psiquiátrica brasileira a partir da

crise da Dinsam (p. 51) e outros acontecimentos que promovem visibilidade ao Movimento de

Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM).

Sobre a localização geográfica, o cruzamento desse critério com o anterior resultou

em um cartaz por região, por década, e, em alguns casos, não foi possível preencher

adequadamente o critério. Os cartazes dos anos de 1970 e 1980 são raros e de difícil

localização. Por conseguinte, todos são da região Sudeste e pertencentes ao acervo do Laps.

A região Centro-Oeste não está representada nos cartazes da década de 1990; eles trazem as

outras regiões (Norte, Nordeste, Sul e Sudeste) e são completados por um cartaz do CFP. O

cartaz 6 é do Estado do Pará, o 7 foi produzido pelo CFP, o cartaz 8 pertence ao Estado de

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Minas Gerais, o 9 proveniente do Estado do Paraná, e o cartaz 10 tem sua origem no Estado

de Alagoas. O cartaz da região Nordeste é do IV Encontro Nacional do Movimento

Antimanicomial, realizado pelo Núcleo Antimanicomial de Alagoas, responsável pelo evento.

É o único dos cartazes dos anos de 1990 que não é comemorativo do Dia Nacional de Luta

Antimanicomial.

Para os anos de 1990, foram escolhidos prioritariamente os cartazes de 1997 por

marcar a comemoração dos 10 anos do encontro de Bauru. No entanto, não foi possível

localizar outros de acordo com essa mesma característica nas regiões Sul e Nordeste, sendo

substituídos por uma peça comemorativa do Dia Nacional de Luta Antimanicomial de 1998

(região Sul) e outra de 1999 (região Nordeste).

Nos cartazes posteriores ao ano de 2000, todos do ano de 2013 e em comemoração

ao Dia Nacional de Luta Antimanicomial, as cinco regiões do Brasil estão representadas e

também o CFP. Eles finalizam a pesquisa e nos aproximam das questões vivenciadas pelo

movimento na atualidade.

2.3 ENTREVISTA E ANÁLISE DOCUMENTAL COMO PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS COMPLEMENTARES

A análise dos discursos dos cartazes só pôde ser realizada em sua inteireza

considerando as condições de produção e circulação e lançando mão de outros procedimentos

metodológicos. Três pessoas que participaram de forma ativa do processo de produção dos

cartazes, Edvaldo Nabuco, Ermínia Celiberti e Miriam Abou-Yd, foram entrevistadas.

Completamos os dados por meio da troca de e-mails e conversas informais com participantes

do movimento de diversas localidades. Além disso, acompanhamos as reuniões para

preparação do Dia Antimanicomial no Rio de Janeiro. Essa experiência possibilitou que

conhecêssemos mais profundamente as condições de produção dos cartazes. O instrumento

específico para a entrevista está no Anexo II.

Foram analisados documentos históricos encontrados no Laps e documentos obtidos

com os participantes do movimento, que acrescentaram informações relevantes para a

pesquisa que acentuavam o contexto político e institucional de sua produção e circulação.

Basicamente, eram jornais relacionados aos eventos desenvolvidos pelos produtores dos

cartazes analisados, documentos iniciais ou finais de encontros ou congressos vinculados aos

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materiais de divulgação estudados, folders complementares aos cartazes selecionados,

documentos gerados pelos núcleos antimanicomiais vinculados aos materiais analisados.

Pode-se ressaltar, ainda, que o projeto de pesquisa, junto com o instrumento de

entrevista, respeitou todos os aspectos éticos em seus procedimentos. A aplicação dos

instrumentos ocorreu posteriormente à aprovação do projeto por um comitê de ética, e a

entrevista foi acompanhada de um termo de consentimento livre e esclarecido (Anexo III),

possibilitando gravar e transcrever as falas dos entrevistados.

A análise não teve a pretensão de conduzir à generalização, conforme a apreensão

universal que ocorre nos cartazes dos movimentos sociais que lutam pela cidadania da parcela

excluída dos seus direitos de cidadania. Ela esteve circunscrita a um grupo, mas a intenção

que permeou esta pesquisa foi, para além de seus objetivos específicos relacionados ao campo

da saúde mental, produzir um modo de acercamento da atuação de outros movimentos da área

da saúde.

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3 CONTEXTO

3.1 CONTEXTO TEÓRICO DA SEMIOLOGIA

Barthes (2007, p. 38) nos transporta para semiologia ao comentar que ela pode ajudar

certas ciências, assim a descreve como uma companheira de viagem, um “curinga do saber de

hoje”. É assim - como companheira de viagem e como abordagem interdisciplinar que

ilumina nosso objeto de pesquisa - que optamos por trilhar caminhos semiológicos.

O percurso da semiologia reabilita o lado humano e histórico da linguagem,

suprimidos pela abordagem original de Saussure5 e se inscreve em múltiplos universos

temáticos e se nutre de importantes disciplinas do saber contemporâneo, principalmente as

relacionadas às ciências sociais e humanas. Como aponta Araújo (2000, p. 116) a semiologia

é “uma ciência em constante transformação e construída historicamente no bojo dos

movimentos de crítica e contestação.” É essa sua gênese que faz com que ela ofereça

abordagens conceituais adequadas a uma pesquisa que enfoca um movimento social que se

caracterizou desde sempre (inclusive na sua denominação) como contra-hegemônico, o

movimento de luta antimanicomial.

A Semiologia, como outras ciências, comporta diversas abordagens e denominações,

que apontam para sutis diferenças, que têm o objetivo de destacar determinados aspectos.

Optamos por utilizar a abordagem proposta por Pinto (1994), que ele denominou Semiologia

dos Discursos Sociais, cujas principais características são: o entendimento de que discursos

são produzidos socialmente, fugindo assim de uma abordagem imanentista; e a articulação de

elementos próprios da tradição francesa, que privilegia a história e a intertextualidade

(Pêcheux, Foucault, Barthes, entre outros), com a tradição anglo-saxã (Peirce, Austin, Searle,

entre outros), que confere relevo à pragmática entre outras diferenças, a primeira destaca a

não intencionalidade do sujeito na produção social dos sentidos, enquanto a segunda confere

aos falantes o “estatuto de centro dos protocolos discursivos”, como explica Araujo (2000, p.

122).

Barthes (2007, p. 32) estabeleceu como ponto de partida para a ciência dos signos a

responsabilidade de ativar a crítica social, de “compreender (ou descrever) como uma

sociedade produz estereótipos”. Ao longo de seu percurso, que pode ser identificado com a

5 Linguista considerado o pai da linguística moderna, assim como do estruturalismo, institui a Semiologia como

ciência dos signos. O nome Semiologia deriva do termo grego Semeion, que significa signo.

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própria história da formação da semiologia (ARAUJO, 2000), sem abrir mão desse

pressuposto inicial de crítica à naturalização dos sentidos sociais, amplia formidavelmente sua

compreensão e chega a enunciar:

A semiologia seria, desde então, aquele trabalho que recolhe o impuro da

língua, o refugo da lingüística, a corrupção imediata da mensagem: nada

menos do que os desejos, os temores, as caras, as intimidações, as aproximações, as ternuras, os protestos, as desculpas, as agressões, as

músicas de que é feita a língua ativa. (BARTHES, 2007, p. 29).

Essa perspectiva, que se poderia dizer a mais avançada em termos de objetos

semiológicos, se somará aqui à noção de condições de produção (VERÓN, 1980; PINTO,

1994) e de formação discursiva (FOUCAULT, 2010; ORLANDI, 2008), para nos permitir

compreender que um analista nunca se aproximará dos dispositivos de produção de sentidos

de um determinado texto se não olhar esse mesmo texto em relação a todos os contextos que

possibilitaram sua emergência e configuração. Porém, uma vez reunidas essas abordagens

conceituais, o caminho semiológico favorece a análise dos suportes discursivos - no nosso

caso, os cartazes do movimento antimanicomial.

Um dos conceitos fundamentais na perspectiva que estamos adotando é o da

produção social de sentidos. Sentido é um conceito que, na teoria semiológica, se diferencia

de significado, este visto como fruto de uma abordagem imanentista da relação entre a língua

e o processo de significação, ou seja, a cada palavra corresponderia e apenas um significado,

podendo, portanto ser transferido de um emissor a um receptor. Ao contrário, sentido fala de

uma pluralidade de possibilidades de significação, pelo fato de não ser propriedade dos

sistemas simbólicos, mas de uma relação interlocutiva.

Diversos autores contribuem para o entendimento da complexidade do conceito de

sentido. Orlandi (2008, p. 58) explica que o sentido “não existe em si mas é determinado pelas

posições ideológicas colocadas em cena no processo sócio-histórico em que as palavras são

produzidas”. Isto permite compreender que uma unidade linguística comporta infinitos

sentidos, mas em condições de produção determinadas, alguns sentidos tornam-se dominantes

em relação a outros. A autora afirma que “a ‘naturalidade’ dos sentidos é, pois,

ideologicamente construída” (p. 102).

Para Orlandi (2008), um conceito central nessa perspectiva é o de formações

discursivas, fonte primeira dos sentidos e também lugar em que o sujeito ganha identidade.

São as formações discursivas que definiriam “o que pode e deve ser dito” (p. 58), observando-

se as condições sócio-históricas em que o discurso está inserido.

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Foucault (2010) também trabalha com a perspectiva das formações discursivas, mas

vai além, ao perceber nos contextos específicos de cada relação discursiva a incidência de

efeitos da localização de cada enunciador na topografia social. Daí decorre a noção de palavra

autorizada que, por sua vez, nos remete às ideias de legitimidade e poder simbólico, de

Bourdieu (2009). Por fim, na nossa mesma rede de encadeamentos conceituais, Araujo (2002)

reitera essas percepções e acrescenta o termo "lugar de interlocução", inteiramente

situacional, que referencia o lugar que cada interlocutor ocupa no ato da interlocução e que

lhe dá o grau de poder simbólico nessa relação.

Verón chamou a todos esses elementos de condições de produção dos sentidos e

Pinto ressaltou sua extrema importância, englobando-os no conceito de contexto. "A

capacidade de comunicar é a capacidade de contextualizar", afirmou o autor. Entre as

condições de produção não estão apenas as de natureza simbólica, mas também as materiais.

Assim, na análise de um cartaz precisamos considerar não somente as formações discursivas

que subjazem no seu texto, mas também os diversos tipos de enunciadores e sua relação entre

eles e as circunstâncias contextuais específicas históricas que formaram as condições de

possibilidade daquele texto.

Mas, toda análise discursiva deverá limitar sua ambição a deslindar o dispositivo de

enunciação do texto estudado, apontando possibilidades de efeitos de sentido. O caráter

dinâmico dos sentidos e sua natureza situacional, referida às especificidades dos

interlocutores e da situação interlocutiva, faz com que eles, apesar de inseridos em contextos,

não se limitem a estes, apesar de produzidos num ato verbal não se restrinjam a ele, apesar de

se realizarem na co-presença dos sujeitos não se reduzam a estes. O termo "efeito de sentido"

está diretamente relacionado com esta dinamicidade. Verón (1980) alerta para o fato de que o

sentido só pode ser estabelecido como efeito ou, mais propriamente, efeitos, restringindo-se

assim sua materialidade e dificultando sua "captura" pelos estudos de recepção e apropriação.

Ao considerar toda operação de produção de sentido como uma relação entre

relações, logo uma relação complexa, Verón (1980, p. 78) se encontra com a natureza

“compósita” dos discursos sociais, que observa como objetos nos quais várias matérias

significantes e vários códigos intervêm e explica que “a complexidade dos objetos discursivos

mostra bem a impossibilidade de se recorrer a noção de signo para dar conta dos fenômenos

de significação”. Assim, diante da complexidade da operação de produção de sentidos, que

abre os discursos para um número quase infinito de possibilidades, descarta-se a ideia de uma

mensagem fechada em si mesma e faz-se a opção pela noção de discurso, que remete

metodologicamente para a Análise de Discursos.

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A Semiologia dos Discursos Sociais tem como seu principal método analítico a

Análise de Discursos Sociais. Embora discípula de Pinto, Araujo (2000) promoveu uma

pequena alteração nessa denominação para Análise Social de Discursos, com a intenção de

afirmar melhor sua diferenciação em relação à análise textual, ou meramente linguística. Por

outro lado, como a perspectiva considera que todos os discursos são produzidos socialmente,

portanto sociais, não vê necessidade de afirmar isto explicitamente. É esta denominação -

Análise Social de Discursos - doravante referida como ASD, que adotamos em nossa

pesquisa.

Pode-se proceder a uma ASD de muitos modos. Optamos por trabalhar com algumas

categorias que permitissem obter elementos compreensivos do modo como os núcleos do

movimento antimanicomial produziram sentido a partir da apropriação do slogan “Uma

sociedade sem manicômios”. Mais especificamente, elegemos a identificação dos sujeitos da

enunciação e do enunciado, mas também dos enunciadores. Essas categorias emergem da

teoria da enunciação de Benveniste, que propiciou um novo vigor à subjetividade nos estudos

linguísticos. Benveniste (2005, p. 286) considera a enunciação como um processo de

apropriação da língua para dizer algo, assim a subjetividade é a “capacidade do locutor se

propor como ‘sujeito’ [...] a emergência no ser de uma propriedade fundamental da

linguagem. É o ‘ego’ que diz ego”. Para nós, é fundamental apreender o modo como os

participantes do movimento antimanicomial produzem publicamente sua presença, como

assumem o slogan, como se relacionam com as demais vozes convocadas discursivamente.

Apresentam-se como sujeitos da enunciação, ou como enunciadores? Qual a relação existente

entre estes? E que relação estabelecem com os discursos concorrentes, aqueles que

propugnam um modo de caracterização e tratamento dos transtornos mentais contrário aos

objetivos do movimento? Aqui cabe uma explicitação desses conceitos.

Há duas instâncias de constituição do discurso: a enunciação e o enunciado. Se o

enunciado ocorre no contexto socio-histórico (interdiscurso), a enunciação é o lugar da

intervenção do sujeito, instância do eu - aqui e agora (intradiscurso). Convive-se então com

uma dupla determinação: interna (autonomia, responsabilidade) e externa (histórico social)

(ORLANDI, 2008).

Mas, mesmo no intradiscurso, a autonomia do enunciador não é absoluta. Nessa

instância a fala do sujeito está envolta discursos já constituídos historicamente e produzidos a

partir de um lugar social (ideológico). Na fala do sujeito outras falas se fazem presentes,

assim encontra-se uma superfície discursiva heterogênea.

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Pelas mãos de Bakhtin (2006) compreendemos que a produção lingüística é

essencialmente dialógica, formada no processo de interação social. Nessa perspectiva, o

enunciado torna-se um ato histórico, único e não repetível. Bakhtin o observa como um

acontecimento que tem no outro um papel fundamental, assim o outro não pode ser dissociado

do sujeito da enunciação. Toda enunciação é resposta a alguma coisa, prolonga as que a

precederam e polemiza com suas antecessoras. A enunciação é socialmente dirigida, o meio

social que envolve o indivíduo destaca-se como centro enunciador. Assim a existência da

linguagem está relacionada a um complexo sistema de diálogos que nunca termina e a

enunciação um elo na cadeia de falas. Abordado por Bakhtin (2006, p. 125):

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo

ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação

verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

A rede interativa capaz de articular as vozes presentes no discurso recebeu de o nome

de dialogismo que, como explica Araújo (2000), é condição constitutiva do sentido, sendo

portanto fundamental no estudo das várias formas de discurso, da literatura e de outras

manifestações culturais.

A noção de dialogismo é intrinsecamente associada à de polifonia. Pode-se

entender polifonia como a multiplicidade de vozes que habitam um discurso, que se cruzam,

se complementam ou concorrem ou ainda se, no cartaz do ano de 1978, os grevistas

pretendiam pensar a realidade através de um debate, nos cartazes do ano de 1980 se

movimentaram pelas instituiçoes públicas, formaram movimentos sociais e receberam

influências do exterior. Os anos de 1990 foram anos de consolidação do movimento e das

práticas antimanicomais. Os cartazes do ano de 2013, realizados por forças da sociedade civil,

trazem um vigor que parece captar os acontecimentos do mês de junho de 2013

Outros autores fazem leituras dos conceitos e os integram aos seus. Jacqueline

Authier- Revuz articula formulações bakhtinianas com as teorias psicanalíticas, assim

desenvolve o conceito de heterogeneidade discursiva. Na sua divisão temos a

heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada. Na primeira, a subjetividade não

se restringe ao ego, mas se relaciona com outros discursos e os assimila no seu discurso. O

inconsciente se desvela no discurso do sujeito. O sujeito não detém o controle, apenas pensa

detê-lo, assim nunca sabe os momentos em que escolhe as palavras e os em que é por elas

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escolhido. Na heterogeneidade mostrada, a voz do outro é explicitada e pode ser identificada.

Aqui o falante tem expresso seu lugar de dominância, pois delimita o lugar do outro

Nesta pesquisa consideramos os termos “polifonia” e “heterogeneidade” são

equivalentes. E, antes de seguirmos buscando um maior entendimento do processo de semiose

social, convém destacar uma afirmação de Araújo com grande potencial de ressonância sobre

nosso objeto de pesquisa:

O mapeamento das vozes constitutivas permite sair da análise de certa forma

maniqueísta, que vê manipulação ideológica ou adesão solidária à causa dos receptores nas práticas discursiva, e perceber que cada discurso traz em si as

marcas do já vivido, já dito, já escrito: que história, que cultura ali se

expressam e que tipos de coerções exercem sobre o conjunto de vozes, aquelas visíveis na superfície do texto das vozes constitutivas. (ARAÚJO,

2000, p. 115).

A teoria dos signos peirceana6 tem como um dos seus principais objetos de estudo a

semiose, noção que ocupa lugar de destaque na moderna semiologia. Numa cultura todos os

objetos são revestidos de sentidos, objetos significantes que foram relacionados culturalmente

formam uma cadeia de interpretantes. Ao infinito, eles vão se remetendo uns aos outros. O

processo trabalha com "remissivas de significante a significante, produzindo efeitos de

sentido” (PINTO, 1994, p. 14), que na atualidade recebem o nome de intertextualidade.

Araújo (2000) explica que essa rede de remissivas não se restringe a palavras, assim

a remissão pode se aplicada a textos, enunciados ou discursos de qualquer tipo ou tamanho. A

história, a cultura e o momento que se vive estabelecem os limites do processo de associação

de representações. Este conjunto de parâmetros é constitutivo do que Foucault denominou de

prática discursiva e que outros autores, aos quais a autora se associa, designam como

formação discursiva, que se encontra relacionada com as condições de exercício da função

enunciativa, “reservando o termo prática discursiva para designar o exercício concreto dessa

função, que se traduz em discursos” (ARAÚJO, 2000, p. 132).

Pinto (2002) explica que definir os discursos como práticas sociais implica em

observar a linguagem verbal e outras semióticas com que se constroem os textos como parte

integrante do contexto sócio-histórico. Assim a “reprodução, manutenção ou transformação

das representações que as pessoas fazem e das relações e das identidades com que se definem

numa sociedade” (p. 28) adquire papel fundamental. Por meio dos textos se trava uma

6 Peirce (1839-1914), cientista, matemático e filosofo entre outros, fez contribuições importantes para a

semiologia, destacando-se a noção de semiose.

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batalha diária onde os participantes de um processo comunicacional buscam reconhecimento

por parte dos receptores.

Foucault (2010, p. 52) comenta que as relações discursivas “determinam o feixe de

relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos [...]. Essas

relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza não a circunstância em que ele se

desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática”. Então, nos caminhos semiológicos, se

encontra um discurso que forma sujeitos e objetos.

Foucault (2010, p. 122) define o termo discurso como “conjunto de enunciados que

se apóia em um mesmo sistema de formação”. Diz que assim é possível se falar do discurso

psiquiátrico, por exemplo. Ele afirma que há um conjunto de regras próprias de uma prática

discursiva e são estas que definem sua especificidade. O exemplo utilizado é a psicopatologia.

O autor explica que não são os objetos e nem domínios que permanecem constantes, mas “o

estabelecimento entre superfícies que podem aparecer, em que podem ser delimitados,

analisados e especificados” (p. 52-53). O filósofo comenta que as regras definem o regime

dos objetos e explica que o discurso faz mais do que utilizar os signos para designar as coisas.

Os discursos são observados “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que

falam” (p. 55) e que institui a posição dos sujeitos falantes.

A partir da definição de discurso podemos compreender que a relação entre texto e

discurso não é biunívoca. Texto e discurso não são iguais. “O texto é uma unidade de análise,

mas não é unidade de construção do discurso.” (ORLANDI, 2008 p. 59). O enunciado, é a

unidade de construção do discurso, mas ele tem de ser referido ao texto para poder ser

apreendido no processo de construção do discurso.

Passemos, entrementes, para o conceito de economia política do significante,

fundamental para uma análise dos discursos sociais. Araújo (2000) destaca que o campo da

Antropologia permitiu ao campo da Semiologia dos Discursos Sociais compreender o

funcionamento dos fenômenos culturais de acordo com a lógica de mercado. A assimilação do

conceito fez com que o espaço da comunicação fosse observado como um mercado simbólico.

Pinto (1994, p. 16) demarca que “todo objeto significante é produzido num dado contexto

histórico, circula no meio social e é consumido, real e simbolicamente”, processo que

permitem aos objetos adquirirem a condição de significante.

Verón (1980, p. 189) ensina que “analisando produtos, visamos a processos”, assim

trabalha com a hipótese que o sistema produtivo deixou traços nos produtos. O sistema

produtivo, considerado como conjunto de coerções encontra na descrição o caminho para

determinar suas condições de produção. A origem diversa, fundamentos variados e não

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estarem submetidos à mesma lei determina a não homogeneidade das coerções. Esta

compreensão conduz à rede semiótica. O autor apresenta o processo semiótico como aquele

que se interessa pelas coerções múltiplas. Nos mecanismos que dão base ao funcionamento

social encontram-se os vínculos com os sentidos. A manifestação “de investimento de sentido

nas matérias é o trabalho social” que não pode ser desvinculada da ordem do ideológico

(produção) e da ordem do poder (consumo/ reconhecimento).

Pinto (1994) posiciona o sentido de um objeto significante no contexto e nas

diferenças entre discursos. Ao assinalar que as diferenças existentes entre dois discursos

podem ser desvendadas a partir das diferenças existentes nas condições de produção, justifica

o uso de uma metodologia comparativa para a análise semiológica.

Tal compreensão encontra apoio em Verón (1980, p. 205) que demarca a semiologia

como “uma rede de relações entre o produto e sua produção”, que só pode ser compreendida

como um sistema relacional. O autor destaca a necessidade de se descobrir meios que

permitam reconstruir os processos de produção dos sentidos, que se escondem por trás do

efeito naturalizante do sentido produzido.

A necessidade de reconstituir o processo nos remete de volta ao conceito de

enunciação. As estratégias podem ser inferidas pelos dispositivos de enunciação, definido

por Araújo (2000, p. 136) como “forma particular pela qual os vários sujeitos (ou vozes) se

organizam e dialogam no discurso”. O dispositivo permite ao sujeito enunciador construir sua

própria imagem, desenhar uma imagem do receptor e propor uma relação entre eles. Ou ainda,

como explica Pinto (2002 p. 32), permite deslindar “as diferentes maneiras de construir

representação de uma determinada prática social ou área de conhecimento proposta pelos

sujeitos que aparecem no texto e que são assumidas ou não pelos participantes do evento

comunicativo”.

A organização textual, incluindo imagem, texto, diagramação, escolha do meio de

comunicação, formato do material e formas de circulação, é parte do dispositivo de

enunciação. Tudo aquilo que foi excluído pelo sujeito enunciador também participa dos

dispositivos. O que foi preterido se torna um fantasma do discurso escolhido e como excluído

participa dos efeitos de sentido. Os dispositivos de enunciação atravessam o discurso e

deixam marcas e tais marcas possibilitam ao receptor refazer as operações realizadas pelo

emissor, assim também negociando sentidos (ARAÚJO, 2000). O receptor, assim como o

emissor, vai se valer dos seus dispositivos. Nas diferenças de posição social, interesses,

cultura e outros vão se definindo diferenças nos dispositivos. As instâncias externas, para

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além das fronteiras materiais são referidas, mas o que interessa ao analista é o modo como as

marcas se manifestam no texto, que lhe permitem chegar às propriedades do discurso.

Enquanto pela contribuição francesa à Semiologia dos Discursos Sociais, os sentidos

são colocados em cena no processo sócio–histórico e têm determinações ideológicas, pela

Pragmática encontramos um sujeito que controla a produção de sentido pelos discursos.

Maingueneau (1997) explica que a pragmática designa várias correntes e está

envolta em muitas controvérsias. A semiótica (Pierce), os atos de linguagem (Austin), a

enunciação linguística (Benveniste, Culioli, Jakobson, Bally), certas teorias da comunicação

(Escola de Palo Alto) são algumas dessas correntes. Essa concepção da linguagem coloca em

evidência a força dos signos, o caráter ativo da linguagem, o caráter interativo e dimensão

jurídica entre outros.

Justamente tendo em vista essas oposições no âmbito teórico, Araújo (2000) sugere

que se desenvolva uma “atitude pragmática”, mais que uma pragmática, no intuito de

aproveitar dessa abordagem o mais relevante e capaz de diálogo com a teoria dos discursos.

Assim, sem abrir mão da compreensão histórica e linguística dos discursos, põe em destaque a

noção de contexto e o modo como os contextos influem na produção dos sentidos. Na análise

pragmática se observam diferentes variáveis relevantes para a compreensão de um enunciado.

Araújo (2000) conceitua os contextos como dinâmicos, capazes de moldar e serem moldados

pela fala. A autora explica que existem vários tipos de contextos e todos têm importância na

análise da prática social. Chama atenção, porém, para quatro contextos que merecem destaque

na prática comunicativa. São eles o contexto textual, o contexto intertextual, o contexto

situacional e o existencial (ARAÚJO, 2006).

O contexto textual ou cotexto pode ser entendido como uma relação que se

estabelece no espaço ou tempo de um texto com outros. A proximidade no espaço físico ou

temporal faz com que com que características de um sejam absorvidas pelo outro. Araújo

(2000, p. 141) comenta que “essas relações são mais que co-referenciais, são constitutivas da

rede semiológica de produção do sentido e podem ser inferidas pela análise da polifonia”.

O contexto intertextual refere-se a uma rede de remissões a outros textos,

desencadeada pelo acesso a um dado texto. Desvendar as redes intertextuais é entrar em

contato com os modelos e concepções que o autor acionou em sua rede particular. Esse

fenômeno se verifica tanto no polo emissor como no polo receptor, que também atribui

sentidos em remissão à sua rede particular, concepções e modelos.

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O contexto existencial se refere aos interlocutores. Para além de um perfil singular,

moldado por profissão, história familiar, relacionamento com o tema abordado e outros, pode

ser aplicado a grupos sociais, em seu modo de estar no mundo e na sociedade.

Berger e Luckmann (1985, p. 63) comentam que “o acervo social inclui o

conhecimento de minha situação e de seus limites”. A pessoa e seu(s) interlocutor(es) são

confrontados com as regras daquela situação. Alguns exemplos: general e soldado, médico e

paciente, chefe e subordinado. No percurso diário os indivíduos ocupam diversos lugares de

interlocução (ARAUJO, 2002). O subordinado pode ocupar o lugar de chefe de família,

presidente da associação de moradores e outros, assim sucessivamente.

A Análise Social de Discursos, na abordagem que aqui privilegiamos (PINTO, 2002;

ARAUJO, 2000) valoriza a natureza performática da linguagem. Admite-se o pressuposto

pragmático de que a língua ultrapassa o caráter instrumental e adquire possibilidades que

excedem a transmissão de informações. Ao lado das determinações ideológicas e do processo

sócio-histórico, valoriza-se também as características próprias dos indivíduos, ainda que

admitindo-se sua construção social.

As referências utilizadas pela pragmática são várias. No domínio do jogo, da

dramaturgia e do jurídico a pragmática retira elementos para compor sua concepção. Na cena

enunciativa, por exemplo, a prática discursiva pode ser observada como encenação, na qual os

atores representam papéis impostos pelo texto. Uma segunda utilização da ideia de cena

remete aos tipos de discursos. Maingueneau (1998, p. 21) a observa como “cenografia que

designa a cena instituída por um discurso”, assim: gêneros literários mobilizam a cena

literária, gêneros científicos mobilizam a cena científica. Nessa concepção, a situação de

enunciação é legitimada pelos desdobramentos dos conteúdos enunciados.

As instâncias de enunciação formuladas em termos de lugares é a utilizada pela

análise do discurso. A topografia social preexistente coloca o falante em um sistema de

lugares que o ultrapassa, a partir e no interior do sistema as identidades são estabelecidas

(MAINGUENEAU, 1997).

Araújo (2000) não se vê obrigada a considerar a prática discursiva como uma mera

encenação, funcionando como uma representação da realidade onde os papéis já estão

estabelecidos. A autora privilegia a noção de negociação e de disputa social através dos

discursos. Nessa perspectiva, apesar da idéia de jogo se sobressair, a opção pelo termo cena

foi mantida, pois ao valorizar a cena social (lugares sociais pré estabelecidos) e a cena

enunciativa (lugares constituídos pelos dizeres) ressalta-se as práticas de linguagem sendo

constituídas e constituindo os grupos sociais.

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No próximo tópico passaremos à relação entre discurso e poder, estabelecidas de

forma inequívoca e contundente nas palavras de Foucault (2009, p. 10): “O discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se

luta , o poder do qual nos queremos apoderar”.

3.1.1 Discurso e poder

A partir da premissa que os movimentos sociais disputam sentidos através de sua

prática comunicativa, em busca do poder de fazer ver e fazer crer nas suas ideias - portanto

em busca do poder simbólico (BOURDIEU, 2009) – vamos visitar alguns autores que tratam

da relação entre discurso e poder. Todos os que privilegiamos discutem o discurso como lugar

de reprodução dos sistemas de poder e alguns defendem a perspectiva de que é também lugar

de mudanças sociais. Aqui traremos apenas uma breve referência a cada um, o suficiente para

localizar seus pontos de vista que mais afetaram nossa percepção e abordagem do objeto desta

pesquisa.

Partimos de Michel Foucault, pelo seu modo de conceituar o poder. Na sua análise

genealógica7, o Estado perde a centralidade do poder. O olhar foucaultiano se embrenha nas

instituições, descobre estruturas de poder nos meandros sociais. O trabalho realizado de forma

ascendente, mostra micropoderes relacionados com a produção de saberes. O que Foucault

observa não é um prolongamento do modo de ação do Estado, mas micro poderes com

atuação própria e que se relacionam de diversas formas com o poder do Estado. Sem negar a

existência de um poder central, o autor nos oferece a visão de um poder periférico,

perspectiva conceitual que está na base da formulação da nossa problemática de pesquisa, que

trata de um movimento anti-hegemônico, que confrontou um poder mais central, mas que

também encerra em si mesmo estruturas de poder. Outro aspecto fundamental de sua teoria

que também iluminou nosso objeto é a afirmação de que o poder não é algo que se detenha,

não pode ser entendido como estático, pois está em permanente disputa, em permanente

exercício.

Pierre Bourdieu participa dessa construção conceitual que aqui buscamos

estabelecer, nos mostrando que as relações de comunicação são sempre relações de poder. O

autor nos conduz na percepção da luta simbólica, na qual cada grupo visa impor sua visão de

mundo. Nessa luta há de se notar que, enquanto instrumentos de comunicação, os sistemas

7 Análise dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência

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simbólicos cumprem uma função política, seja de instrumento de legitimação de dominação,

seja de dispositivo de subversão do discurso ortodoxo. Neste sentido, os sistemas simbólicos

são parte importante do exercício do poder simbólico (BOURDIEU, 2009).

O poder simbólico é considerado por Bourdieu como poder invisível de construção

da realidade, aquele que possibilita construir o dado pela enunciação, sendo capaz de afirmar

ou transformar a visão de mundo. Na “cumplicidade daqueles que não querem saber” (p. 8)

está a possibilidade de seu exercício. Ao dar ao mundo social uma aparência de

concordância, permite que a ordem social não questionada se reproduza. Essa perspectiva nos

ajuda a entender os modos de instituição e de consolidação tanto do discurso manicomial,

absolutamente hegemônico até meio século atrás, como seu antagônico, produzido pelo

movimento antimanicomial.

Na intersecção dos dois teóricos e bebendo em suas fontes, Inesita Araújo (2000)

desenvolve a ideia de centro e periferia discursivos, como posições de potencial poder

simbólico. A autora mostra que essa classificação, além de serem parâmetros máximos numa

escala de muitos tons, encerra extrema dinamicidade, referindo posições que não são

estanques, mas permanentemente em movimento. As posições se reproduzem nos diversos

campos, nas várias comunidades discursivas e nos diferentes grupos sociais. As pessoas

circulam entre o centro e periferia, conforme o seu “lugar de interlocução” (ARAUJO, 2002)

em um determinado momento, lugar que é relacional, referenciando a posição de quem fala

em relação ao seu interlocutor.

Centro e Periferia não são lugares exclusivos de poder, o poder está em todos os

lugares, ao modo foucaultiano. Araujo destaca que os núcleos centrais são possuidores de um

dispositivo de enunciação exacerbado e detêm a palavra autorizada, mas não são onipotentes,

porque a periferia é capaz de reação. Essa perspectiva nos permitiu inscrever a prática

comunicativa do movimento antimanicomial como parte da luta contra-hegemônica, como

uma das estratégias de mobilidade na escala de poder discursivo.

Entrementes, gostaríamos de trazer aqui outro autor que discute a relação entre

discurso e poder, Norman Fairclough (2001), que explora as transformações sociais em suas

relações com a mudança discursiva. O autor acredita que a prática discursiva, ao mesmo

tempo em que contribui para reproduzir a sociedade – nos seus sistemas de classificação,

relações sociais, sistemas de conhecimento e crenças – também contribui para transformá-la.

Há uma relação dialética. A linguagem, então, não tem somente o papel de reprodução das

relações de poder existentes, mas papel importante nas lutas e nas transformações sociais, que

também se dão em uma dimensão discursiva.

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A manutenção de uma determinada ordem societária, seja ela qual for, pressupõe

uma prática ideológica que se realiza, principalmente, através da comunicação e do discurso.

O conceito de ideologia não recebeu centralidade analítica na nossa pesquisa, mas foi

enfocado na sua relação com a teoria social do discurso, seguindo o rastro dos autores que

associam o conceito ao de poder, num enfoque discursivo.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Mikhail Bakhtin (2006) considera que os

signos são avaliados ideologicamente, assim os domínios do signo e do ideológico são

coincidentes. Alguns exemplos: o martelo e a foice como emblema da União Soviética, o Pão

e o vinho como símbolos religiosos. Os campos ideológicos são diversos, desde o religioso

até o científico. As diversidades imensas que formam os campos ideológicos encontram

regularidade no seu caráter semiótico, pois “tudo que é ideológico possui um valor semiótico”

(BAKHTIN, 2006, p. 30).

Bakhtin (2006) e Foucault (2010) são autores de fundamental importância para a

compreensão do ideológico no discurso. Enquanto, Bakhtin nos apresenta um território de

conflito e Foucault mostra que se constitui fortemente nas instâncias externas ao discurso,

Bakthin (2006) e Foucault (2010) amenizam um pouco essa perspectiva, o primeiro nos

posicionando em um mundo em processo, o segundo colocando o discurso na ordem da lei,

assim vemos sua materialidade tão temida ser abrandada.

Entre os semiólogos mais recentes, destacamos Verón (2004), que observa as

relações entre o discurso e suas condições sociais de produção. Ao sistema produtivo

denomina “ideológico” e o observa como uma dimensão de análise do funcionamento social.

O ideológico é uma dimensão que atravessa toda a sociedade, manifesta-se em qualquer nível

de comunicação e está presente em qualquer matéria significante (comportamento, imagem,

linguagem e objetos). Na nossa análise, ao seguirmos as marcas que o movimento

antimanicomial deixa nos cartazes produzidos, mais especificamente, ao mapearmos as

condições históricas, políticas e institucionais de produção, estamos também analisando a

dimensão ideológica de sua luta.

O próximo item vai nos permitir uma aproximação ao contexto teórico e histórico da

Saúde mental.

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3.2 CONTEXTO HISTÓRICO E TEÓRICO DA SAÚDE MENTAL

Na Narrenschiff, embarcamos em uma grande viagem simbólica. Não navegamos

pela fortuna. Longe disso! Buscamos a história dos loucos. De porto em porto, ultrapassando

o tempo e ressignificando a loucura. A nau peregrina é observada por Foucault. E é na Idade

Média, quando as séries médica e hospitalar não coincidiam, que se iniciou o olhar

foucaultiano.

O hospital, que funcionava na Europa naquela época, não pretendia, entre seus

objetivos, a cura. Segundo Foucault (2008a, p. 101), “houve, de fato, [...] duas séries não

superpostas; encontravam-se às vezes, mas eram fundamentalmente distintas: as séries médica

e hospitalar”. Apesar de ter sido um elemento que ocupa lugar de destaque na vida urbana, o

hospital não era uma instituição médica. A medicina era uma prática não hospitalar, o que

possibilita compreender como novidade a “medicina hospitalar ou um hospital médico,

terapêutico” no século XVIII (FOUCAULT, 2008a, p. 101).

Os hospitais eram apresentados como assistência aos pobres. Assim, o “personagem

ideal do hospital [...] não é o doente [...], mas o pobre que está morrendo”, que recebe

assistência espiritual e material de pessoas caritativas, interessadas em sua própria salvação; e

outro, o hospital geral, é “uma espécie de instrumento misto de exclusão, assistência e

transformação espiritual, em que a função médica não aparece”, pois doentes, loucos,

devassos e prostitutas são para ali destinados (FOUCAULT, 2008a, p. 101-102).

Não só os hospitais, mas também a historicidade do pecado ao ressaltar novos erros

nos fazem entender como se altera no tempo a condução da loucura.

Na Idade Média, o grande pecado, radix malorum omnium, foi a soberba. A

acreditar-se em Huizinga, houve um tempo, na aurora da Renascença, em

que o pecado supremo assumiu a forma da Avareza, a cicca cupidigia de

Dante. Todos os textos do século XVII anunciam, pelo contrário, o infernal triunfo da Preguiça: é ela agora que conduz a ronda dos vícios e os provoca.

Não nos esqueçamos de que, segundo o édito de criação, o Hospital Geral

deve impedir a mendicância e a ociosidade como fontes de todas as desordens. (FOUCAULT, 2008, p. 82).

A era clássica vinculou à categoria do internamento novas características, como

“reabsorver o desemprego ou pelo menos ocultar seus efeitos sociais mais visíveis”

(FOUCAULT, 2008a, p. 70). O fenômeno relacionou-se ao desenho de uma nova ética do

trabalho. O desemprego e a ociosidade foram repudiados e traçaram a linha de exclusão.

Foucault (2008) explica que a moralidade e a lei se uniram validando formas de coação. É

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interessante compreender que a concepção da miséria se transformou de experiência religiosa

passível de santificação em experiência moral passível de condenação. A partir da era clássica

– e pela primeira vez –, a loucura foi percebida por meio da condenação ética da ociosidade e,

em uma imanência social, garantida pela comunidade de trabalho.

Os loucos foram envolvidos na “grande proscrição da ociosidade”, o mundo do

trabalho baniu todos aqueles que desrespeitavam seus preceitos, voluntariamente ou não. Ao

negar a ordem burguesa e desafiar os preceitos sagrados do labor, a loucura adquiriu o

estatuto que perdura ainda nos dias atuais (FOUCAULT, 2008b, p. 73).

Foucault (2008b, p. 353) aponta a metade do século XVIII como a época na qual o

medo da loucura foi formulado em termos médicos, mas ressalta que é “animado, no fundo,

por todo um mito moral”. Coube ao médico o papel de guardião, protetor da população contra

os perigos que transpiravam do internamento. Os espaços ocupados pelas casas de internação

– muitas vezes, espaços reaproveitados, onde antes se tinham isolados os leprosos –

despertaram o imaginário popular. A associação entre casa de internação e contaminação

trouxe o “medo da estranha alquimia que fervia entre os muros do internamento, medo dos

poderes que ali se formavam e ameaçavam propagar-se” (FOUCAULT, 2008b, p. 356). Nessa

conjugação, o desatino e o pensamento médico se encontravam.

Em fins do século XVIII, na França, a medicina social se desenvolveu. As questões

que a suscitaram são relativas à extrema desordem que ocorria nas grandes cidades francesas.

O afrontamento entre a plebe, os pobres e a burguesia, as fábricas e oficinas que se

multiplicam, bem como os cemitérios misturados aos espaços urbanos, além, é claro, das

epidemias frequentes são algumas das causas da inquietude político-sanitária na qual viviam

os franceses moradores da cidade.

A classe burguesa, especialmente atingida pela confusão urbana, mas sem poder

político e com vontade de obtê-lo, passou a utilizar o modelo médico-político da quarentena.

Assim, as cidades foram divididas em bairros e os registros dos acontecimentos feitos em

relatórios. As pessoas, quando estivessem doentes, deveriam ficar em casa para que fossem

localizadas, já que eram comuns revistas às moradias dos habitantes da cidade. Além dessas

medidas, fazia-se uso de um sistema de desinfecção (FOUCAULT, 2008a).

À medicalização das cidades foi conferida extrema importância, pois estabeleceu

novas ligações para a medicina. A relação entre organismo e meio, portanto, foi instituída,

correlacionada com a noção de salubridade, propiciando o surgimento da noção de higiene

pública (controle e modificação dos elementos materiais do meio) e o contato da medicina

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com as ciências extramédicas (inserção da medicina no funcionamento geral do saber e do

discurso científico) (FOUCAULT, 2008a).

O grande movimento de reforma, desenvolvido na segunda metade do século XVIII,

teve aí sua primeira origem. Ele intencionava reduzir a contaminação, destruir as impurezas e

os vapores, diminuir todas essas fermentações e impedir que os males viciassem o ar e

espalhassem seu contágio pela atmosfera das cidades. O hospital, a casa de força, todos os

locais de internamento deveriam ser mais bem isolados, envolvidos por um ar mais puro.

Naquela época, existia uma completa literatura sobre o arejamento nos hospitais, que

delimitava longinquamente o problema médico do contágio, de modo mais preciso, visava aos

temas da comunicação moral (FOUCAULT, 2008b).

Em 1776, o grau de melhoramento dos diversos hospitais franceses foi decretado

pelo Conselho de Estado, e uma comissão nomeada para tal função. As acomodações asilares

foram incluídas nessa reformulação. O objetivo era manter as funções essenciais, mas

organizadas de forma a impedir a difusão de qualquer tipo de mal. Foucault (2008b, p. 357)

ressalta a finalidade da esterilização do asilo, “onde o desatino seria inteiramente contido e

oferecido em espetáculo, sem perigo para os espectadores, onde o desatino teria todos os

poderes do exemplo e nenhum dos riscos do contágio”.

Na segunda metade do século XVII, as casas destinadas unicamente aos loucos

tornaram-se prática regular em toda a Europa. Em Paris, surgiram as petites-maisons, que

abrigavam de 20 a 30 loucos. Porém, com o decorrer do tempo, transformaram-se em

hospitais de loucos. Onde não eram construídas casas para loucos, os hospitais dedicavam-

lhes um pavilhão isolado. Casas que comportavam grande número de hóspedes também

passaram a fazer parte do cenário, como, o St. Luke Hospital, Manchester e Liverpool Lunatic

Hospital. Tais instituições não eram médicas, algumas nem admitiam a presença de médicos,

mas fortaleceram a prática do isolamento. Na opinião de Foucault (2008, p. 382), “mais do

que por suas incidências quantitativas, o fenômeno é importante pelo que comporta de novas

significações”.

O desatino e a loucura passaram a não ocupar mais os mesmos espaços. Os poderes

imaginários que moviam o desatino encontraram libertação, experiência poética ou filosófica

para navegar (FOUCAULT, 2008b).

As categorias da loucura foram multiplicadas: alienação, fraqueza de espírito,

violência e furor dividiram os insensatos e se propagaram em muitas outras. A loucura passou

a ser observada com especial atenção, e, entre os insanos, aumentaram os registros de

categorias. Segundo Foucault (2008b), em Saint-Lazare, no ano de 1721, foram isoladas três

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ou quatro categorias; entretanto, em 1733, houve o registro de 16 categorias.

Concomitantemente, nesse mesmo ano, foi publicada a obra Nouvelles classes de Boissier de

Sauvages. As categorias de Saint-Lazare em nada se aproximavam das especificações de

Sauvages, mas ambas fizeram parte da organização do mundo asilar.

Foucault (2008b) nos conduz à “psiquiatria clássica”. No encontro entre as teorias

médicas e o espaço asilar, a loucura e afirmou como loucura, e, ao mesmo tempo, o sujeito

louco foi introduzido em seu novo papel: doente mental.

Mas de um lado, com a medicina, temos o trabalho do conhecimento que

trata as formas da loucura como outras tantas espécies naturais; do outro, um esforço de reconhecimento com o qual de certa forma se deixa a loucura

falar, ela mesma, e fazer ouvir vozes que, pela primeira vez na história do

Ocidente cristão, não serão nem as da profecia, nem as do transe ou da

possessão, nem as da bufonaria; vozes nas quais a loucura não fala nem por outra coisa, nem por outra pessoa, mas por si mesma. No silêncio do

internamento, a loucura conquistou estranhamente uma linguagem que é a

sua. (FOUCAULT, 2008b, p. 391).

A lei de 1790, da Assembleia Constituinte francesa, eliminou as lettres de cachêt.

Instrumento de administração do Antigo Regime, elas eram utilizadas principalmente para

autorizar a prisão de alguém. Em seu artigo nono, tal constituição determinou que pessoas

detidas por causa da demência deveriam ficar sob o cuidado dos procuradores, fossem

interrogadas por juízes e recebessem visitas de médicos, sob a supervisão dos diretores de

distrito. A definição da situação dos doentes, segundo a sentença proferida, poderia

determinar relaxamento ou tratamento nos hospitais destinados (CASTEL, 1978).

Castel (1978, p. 9) considera as características que comporão, por longo tempo, “o

encargo social e o status antropológico da loucura”, pela primeira vez determinadas. O cerne

da problemática moderna da loucura encontra-se nessa decisão.

A ciência médica da loucura estabeleceu como prática a medicalização, além de

instituir ao sujeito louco status de alienado. A relação medicina-hospitalização impôs-se como

principal. No asilo, desenvolveu-se uma nova tecnologia hospitalar. A introdução do médico

no cenário da loucura passou a ser sistematizada desde a metade do século XVIII. Castel

(1978, p. 56) aborda tal sistematização:

Inicialmente a partir da metade do século XVIII, aparecem numerosos

tratados médicos sobre a loucura, particularmente o Trate des affections vaporeusesdes deux sexes ou des maladies nerveuseus de Pomme (1760), o

Traité de l’epilepsie (1770) e o Traité des nerfs et de leurs maladies (1780)

de Tissot.. Diversos artigos da Enciclopédia (“demência”, “loucura”,

“hipocondria”, “mania”, “melancolia”, “frenesi”) insistem sobre o caráter curável da loucura.

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Já antes da revolução, havia sido inventado um dos grandes temores do século XIX,

intitulado “degeneração”. No que Tissot denominou “degeneração”, existia muito pouco

daquilo que o século XIX chamou de “degenerescência”, pois ela não comportava ainda

nenhuma característica de espécie.

Em virtude da tendência ao retorno fatal às formas rudimentares da vida e da

organização, nenhuma esperança ainda foi dada ao indivíduo regenerador. No entanto, Morel,

em seu Traité de La Dégénérescence, partiu dos ensinamentos que o século XVIII lhe

transmitiu: para ele, como ocorrera anteriormente para Tissot, o homem se degenera a partir

de um tipo primitivo, e isso não ocorre sob o efeito de uma degradação espontânea, de um

peso próprio à matéria viva. Porém, muito mais provavelmente sob a “influência das

instituições sociais em desacordo com a natureza” ou como consequência de uma

“depravação da natureza moral” (MOREL, 1857 apud FOUCAULT, 2008b, p. 372).

Castel (1978) destaca os resquícios absolutistas como impregnadores da psiquiatria

em seu formato institucional. Assim, de acordo com o autor, a ordem asilar da medicina

mental é uma sublimação das instituições totalitárias, que demarca a continuidade das

instituições disciplinares. Ao aproximar os governos das instituições dos governos despóticos,

Castel acentua a impossibilidade de se conduzir um governo absoluto sem a prática da

coerção. A psiquiatria resolveu o impasse mediante a tecnologia médica. A soberania médica

alicerçou a relação terapêutica, e ao louco só restou um ato de fidelidade. As sutilezas da

relação terapêutica estabelecida são comentadas pelo autor: “A nova fidelidade não se define

aos valores da sociedade feudal, mas em relação aos valores racionais da nova sociedade

contratual. O poder do médico, por hipótese, tem por fim o saber e se anula, enquanto

princípio de dominação, com a reconquista da autonomia racional pelo louco” (CASTEL,

1978, p. 89).

Foucault (2008b) nos apresenta o hospital do século XIX como lugar em que

espécies de doenças, por conta de serem compartimentadas, lembravam uma horta. O

diagnóstico e a classificação, segundo o autor, eram acompanhados por muitos procedimentos

– isolamento, disciplina, pregações morais, punições, dentre outros –, cuja finalidade era

ressaltar a função do médico, aquele capaz de produzir a verdade. No hospital de Charcot ou

Esquirol, essa produção era bem representada e extremamente valorizada. O grande poder

alcançado pelo médico no espaço asilar necessitou ser justificado e integrado à ciência

médica. As técnicas da hipnose e sugestão, as questões referentes à simulação e à

diferenciação pelo diagnóstico entre doenças orgânicas e psicológicas fundamentaram a

psiquiatria.

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Os alienistas obtiveram enorme sucesso, apesar de se alicerçarem em referências

arcaicas. Castel (1978, p. 101) atribui à força alienista “sua aptidão para instrumentalizar as

práticas dos higienistas e dos filantropos”. Cabe lembrar que a anatomia patológica

revolucionou os conhecimentos da época. De acordo com Foucault (2008), no século XVIII,

entre Morgani e Bichat, a medicina científica surgiu com o desenvolvimento da anatomia

patológica, em uma perspectiva histórica não individual, pois tinha por base certa tecnologia

do corpo. Na ordem inversa, estavam os alienistas, que souberam marcar “com o selo médico,

práticas que dizem mais respeito às técnicas disciplinares do que às operações de exploração

clínica da medicina moderna”, sem alterar a produção de conhecimento (CASTEL, 1978, p.

83).

Ao observar o trabalho realizado por Pinel, Castel valoriza como principal o

ordenamento do espaço hospitalar. Os enclausurados, separados em categorias tantas quantas

motivavam a assistência, permitiam que a singularidade da loucura se destacasse. A doença

mental tornou-se a especificidade do louco, os sintomas foram reagrupados e as síndromes,

subdivididas. A distribuição metódica foi determinante para a racionalidade da doença. Um

hospício de alienados “[...] é destituído de um objeto fundamental se, através de sua

disposição interior, não se mantiver as diversas espécies de alienados num tipo de

isolamento”, assim está escrito no Traité –philosophique sur l’alienation mentale (1809 apud

CASTEL, 1978, p. 83-84).

Pinel, nomeado para Bicêtre e, depois, para Salpêtrière, acompanhado de Esquirol,

compôs o centro do movimento alienista, reunido na Salpêtrière. A lei de 1790, da

Assembleia Constituinte francesa, votada em 1838, estabeleceu, a partir de sua promulgação,

o envio de jovens médicos para os departamentos. São então instituídos novos serviços, e

muitos dos que foram empossados saíram dos quadros formados no movimento alienista de

Salpêtrière.

O No restraint marcou a renovação do manicômio. A retirada das correntes dos

alienados parisienses, liderada por Pinel, determinou o ápice do movimento. Pessotti,

mediante uma descrição de Esquirol, permite-nos entrar em contato com o ato de Pinel e seus

reflexos.

Pinel quebrou as correntes que aviltavam, que mutilavam, que irritavam

esses infelizes. [...] dessa mudança resultou que muitos loucos, julgados

incuráveis, sararam e que todos os demais ficaram mais tranqüilos e mais

fáceis de dirigir. [...] No novo Bedlam instalou-se uma corrente em cada leito. Felizmente, depois de uma visita aos estabelecimentos de Paris, os

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visitantes fizeram ordenar a supressão das correntes (ESQUIROL, 1838, p.

535 apud PESSOTTI, 2001, p. 160).

A influência de Pinel no tratamento dos alienados é inquestionável. Apesar de sua

base iluminista, foi principalmente o fundamento médico-doutrinário que impulsionou Pinel.

O diretor de Bicêtre considerou que as correntes se traduziam como inimigas de um projeto

terapêutico, porque o imobilismo impedia observar a natureza da doença, o que dificultava o

diagnóstico e o tratamento. A reforma realizada permitiu uma observação cotidiana como

também a criação de registros. A presença constante do médico no espaço asilar instaurou,

como base terapêutica, a relação médico-paciente e a reeducação. Contudo, embora houvesse

um espaço não coercivo, trata-se de uma técnica bastante severa. O No restraint, todavia,

continuou a incluir o imobilismo dos pacientes mais agressivos, adotando dessa forma a

contenção por meio da camisa de força (PESSOTTI, 2001).

O asilo construído pelo escrúpulo de Pinel não serviu para nada e não

protegeu o mundo contemporâneo contra a grande maré da loucura. Ou

melhor, serviu, serviu muito bem. Se libertou o louco da desumanidade de suas correntes, acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Com isso, o

homem tem acesso a si mesmo como ser verdadeiro, mas esse ser verdadeiro

só lhe é dado na forma da alienação. (FOUCAULT, 2008b, p. 522).

Abalos e críticas acompanharam a condução da psiquiatria ao longo do século XIX.

A recém-inaugurada especialidade conviveu com formulações antipsiquiátricas. Foucault

(2008) encontra, no questionamento do poder médico, o cerne de todos os abalos que

atingiram a psiquiatria desde o fim do século XIX. Prática e pensamento psiquiátrico foram

reformulados a partir dessa relação de poder.

Ao alcançar o século XX, a nau peregrina se depara com críticas mais ferrenhas à

condução da psiquiatria. Após duas guerras mundiais, observa-se o desenvolvimento da

sociedade civil organizada. Na reconstrução social ocorrida depois do final da Segunda

Guerra Mundial, a dignidade humana adquire fundamental valor.

Cronologicamente, destacamos, em 21 de agosto de 1944, a realização da

Conferência para a Organização da Paz no Mundo do Pós-Guerra, que esboçava os primeiros

contornos para a estruturação internacional. Em 1945, a Conferência das Nações Unidas

apresenta-se com o propósito de formalizar uma organização internacional. No decorrer desse

evento, houve a elaboração da Carta das Nações Unidas, que, em 26 de junho de 1945, foi

assinada e, em 24 de outubro de 1945, ratificada por 51 países. No mesmo ano, criou-se a

Comissão dos Direitos Humanos da ONU com a missão de redigir o Projeto de Lei

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Internacional dos Direitos Humanos, cujo objetivo foi definir, com maior precisão, os direitos

e liberdades mencionadas no estatuto das Nações Unidas. Em 10 de dezembro de 1948, data

que posteriormente se tornou o Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi adotada e

proclamada, pela Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, a

Declaração Universal dos Direitos Humanos (ESPÍRITO SANTO, 2007).

O olhar dirigido ao hospício detecta as condições subumanas a que eram submetidos

os doentes mentais, a ausência de dignidade a que estavam subjugadas as pessoas que viviam

nas instituições, fazendo lembrar os horrores dos campos de concentração.

As críticas aos espaços manicomiais propiciam as primeiras experiências de reformas

psiquiátricas. Segundo Amarante (2008), foram muitas as experiências, porém algumas mais

marcantes e ainda hoje reconhecidas. O primeiro grupo, constituído pela comunidade

terapêutica e a psicoterapia institucional, acreditava que novas formas de gestão seriam

resolutivas. O segundo grupo, formado pela psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva,

requeria o esgotamento do modelo hospitalar, propunha a substituição gradual dos hospitais

por serviços comunitários. A psiquiatria, nesses segmentos, voltava-se para a prevenção dos

desvios, dos comportamentos de risco, buscava educar e produzir indivíduos saudáveis

(YASSUI, 2010).

No Reino Unido, as dificuldades ocasionadas pelos tempos de guerra fizeram surgir a

comunidade terapêutica. No hospital de Northfield, Bion e Rickman iniciaram uma

experiência inovadora: diante da escassez de pessoal, ocasionada pela guerra, organizaram

soldados com distúrbios mentais em grupos de discussão, e os incluíram na direção do

hospital. A experiência foi tão bem-sucedida que a Organização Mundial de Saúde (OMS),

em um relatório datado de 1953, recomendou que todos os hospitais psiquiátricos se

tornassem uma comunidade terapêutica (DESVIAT, 1999).

O processo de reformas institucionais, que privilegiava uma organização não

hierarquizada, propunha a comunicação livre em diversos níveis e direções, decisões

administrativas tomadas pelo coletivo, psicoterapia de grupo, assembleias e reuniões diárias.

O desenvolvimento de um “conjunto orgânico não hierarquizado de médicos pacientes e

pessoal auxiliar” (SCHITTAR, 1985, p. 139) estava vinculado a um dos seus mais destacados

impulsionadores, o psiquiatra Maxwell Jones.

Os princípios da comunidade terapêutica são próximos da psicoterapia institucional,

pois, apesar de bases teóricas diferentes, ambas problematizaram as contradições existentes

nas instituições psiquiátricas. Com base nos princípios da comunidade terapêutica e da

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psicoterapia institucional, novas experiências foram conformadas. A antipsiquiatria e a

psiquiatria democrática romperam com o paradigma psiquiátrico tradicional.

A psicoterapia institucional é influenciada pela psicanálise. Desviat (1999) acredita

que essa é a tentativa mais rigorosa de salvar o manicômio. A adoção da psicanálise nos

hospitais franceses tem como principal personagem um discípulo de Mira y Lopez:

Tosquelles. O jovem catalão, exilado depois da Guerra Civil Espanhola, fora trabalhar no

Hospital Psiquiátrico Saint Alban. Durante o longo período em que lá permaneceu, ocupou

vários cargos, inclusive o de diretor.

A psicoterapia institucional desenvolveu-se em plena ocupação nazista, em um asilo

rural localizado nos Pireneus franceses. A experiência agrupou residentes do hospital e

refugiados de prestígio no mundo da cultura. Sua hipótese inicial era que, na instituição, todos

estavam doentes. Não eram os muros que faziam o hospício, mas sim os que viviam e

trabalhavam ali. Logo, a terapia deveria abarcar o hospital por completo, ou seja, em sua

totalidade. “A psicoterapia institucional pode ser definida como um conjunto de ações que

permitem a criação de campos transferências multifocais” (DESVIAT, 1999, p. 26).

O germe que nasceu ao longo da ocupação alemã surgiu como um fundamento

teórico no período posterior à ocupação. As instituições psiquiátricas francesas adotaram a

psicanálise na forma aplicada ou institucional.

O Movimento de Reforma da Psiquiatria francesa procurou reinventar, revolucionar

as formas terapêuticas de institucionalização, além de criar novas instituições intermediárias e

extra-hospitalares ao desenvolver a política de setor.

A psiquiatria de setor se estabeleceu a partir das limitações oriundas da experiência

da psicoterapia institucional. Os anos de 1960 mostraram a necessidade de medidas de

continuidade ao trabalho manicomial. Assim, foram criados centros de saúde mental,

distribuídos em conformidade com a população de cada região. O setor foi definido de forma

circular, como área geográfica delimitada, de cerca de 70 mil habitantes, com leitos

hospitalares e recursos extra-hospitalares para cada serviço. Desviat (1999) mostra que houve

desenvolvimento desigual das novas estruturas, algumas zonas receberam pouco investimento

e não se adequaram ao novo modelo. De acordo com o autor, a criação do setor da psiquiatria

se distinguiu do restante do sistema francês, altamente centralizado. Houve também

dificuldade em integrar a psiquiatria infantil, além de uma cisão das práticas motivada pela

criação de atendimentos por faixa etária ou patologia. O estabelecimento de dois vínculos de

financiamento um municipal e outro da previdência social, respectivamente para os

dispensários e os hospitais, fez com que as estruturas ambulatoriais não se desenvolvessem.

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Os hospitais continuaram acumulando muito poder, assim as estruturas asilares se

fortaleceram com o passar dos anos.

O modelo americano tem suas bases teóricas explicitadas no livro Princípios da

Psiquiatria Preventiva, de Caplan, considerado um dos fundadores dessa corrente.

O censo realizado no ano de 1955 teve papel de grande impulsionador na psiquiatria

preventiva. Ao detectar as péssimas condições de assistência prestada em todos os hospitais

psiquiátricos dos Estados Unidos, houve ampla visibilidade a respeito das condições de

assistência.

O decreto do presidente Kennedy, no ano de 1963, modificou os objetivos da

assistência psiquiátrica americana. As comunidades se tornaram seu principal foco de atenção.

O contexto histórico contribuiu bastante para que tais mudanças fossem implementadas. Os

problemas sociais e políticos marcavam aqueles anos. Os black power, beatnik, as gangues, o

uso de drogas pelos jovens e as consequências da guerra do Vietnam faziam parte de uma

realidade de difícil enfrentamento.

A medicina preventiva usou um modelo da História Natural das Doenças, de Levell

e Clark. A prevenção das doenças mentais, por meio do reconhecimento precoce, tornou-se a

chave dessa compreensão. Os conceitos de crise e desvio ganharam importância para a

interpretação dada ao modelo por Caplan. Tais conceitos se pautaram principalmente em

questões adaptativas retiradas das ciências sociais (AMARANTE, 2008).

Os serviços de desospitalização foram estratégicos na efetivação desse modelo.

Número menor de pacientes internados em instituições psiquiátricas, menor tempo de

permanência e promoção de altas hospitalares compunham essa estratégia. O conceito de

desinstitucionalização surge com a saúde mental comunitária. Os centros protegidos, lares

abrigados, hospitais-dia, hospitais-noite, enfermarias e leitos em hospitais gerais objetivavam

tornar os hospitais obsoletos (AMARANTE, 2008).

As estratégias desospitalizantes não colaboraram para diminuir a demanda

psiquiátrica nos Estados Unidos. Amarante (2008) ressalta a divergência entre os autores, pois

alguns consideram que ocorreu um projeto de medicalização do social, já outros acreditam

que os preceitos foram revolucionários.

Segundo Foucault (2008b, p. 127), o ciclo da antipsiquiatria intencionava romper o

mandato médico com valor de decreto, significando “direito absoluto da não loucura sobre a

loucura”. Ao indivíduo louco, o direito de viver a experiência de loucura, com contribuições

de outros, mas não sem sua cidadania.

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A antipsiquiatria inglesa, nos anos de 1970, ao questionar a doença mental e a

psiquiatria não apenas se tornou um movimento de contracultura, como também teve grande

influência da opinião pública, além de importantes contribuições teóricas. Desviat (1999)

destaca os estudos sobre as relações familiares realizados por Laing, Cooper e Esterson. O

autor cita, ainda, os estudos acerca das relações institucionais desenvolvidos por Mannoni.

Merece especial consideração o estudo do “Eu Dividido”, de Ronald Laing (1960),

por sua contribuição à fenomenologia existencial. Ao expor a compreensão subjetiva dos

pacientes classificados como esquizofrênicos, Laing constatou o caráter social da

subjetividade. Os estados esquizoides surgiram como resultado de uma constituição

defeituosa do eu que não conseguia conjugar a pluralidade dos papéis que lhe competiam

desempenhar.

Na antítese feita com a teoria psiquiátrica, a antipsiquiatria ampliou a compreensão

da experiência compreendida como patológica para além do indivíduo, propôs entender tal

experiência não como corpo e mente doente, mas sim nas relações estabelecidas entre o

indivíduo e a sociedade. O marco teórico-conceitual da psiquiatria recebeu críticas, pois a

adoção do modelo das ciências naturais produziu um engano metodológico.

A doença mental seria uma experiência do sujeito em sua relação com o ambiente

social. Descartou-se o sentido clássico de tratamento. Ao sujeito foi permitido vivenciar sua

experiência. Viver o sintoma trouxe uma reorganização interna, e coube ao terapeuta o auxílio

para a vivência e superação do processo (AMARANTE, 2008).

O embate que determinou o início da psiquiatria democrática ocorreu no espaço

asilar e objetivava alcançar a instituição e atingir o poder médico. Basaglia (1985, p. 159)

explica “a contradição fundamental entre a instituição como mecanismo e o doente enquanto

objeto de cura, esta sim, faz com que o poder esteja totalmente localizado no primeiro dos

dois termos”, ao falar de Gorizia.8 É a perspectiva da ausência de direitos do doente mental

conformando um não cidadão, observada por Basaglia no século XX, que iniciou a psiquiatria

democrática na Itália.

Nos primeiros anos de 1960, as experiências da comunidade terapêutica e da

psicoterapia institucional assinalaram a atuação de Basaglia. Na direção do pequeno hospital

ao norte da Itália, com a colaboração de Jervis, Slavich, Pirella e Casagrande, Basaglia

conheceu as limitações impostas por uma instituição fechada e começou um processo de

desarticulação dos manicômios.

8 Hospital psiquiátrico que Franco Basaglia, precursor do Movimento de Reforma Psiquiátrica italiana, dirigiu de

1961 a 1972.

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O desmonte da estrutura manicomial converteu-se em ação política. As regiões de

Noccera Superior e Peruggia acompanharam as mudanças iniciadas em Gorizia. O movimento

estudantil e o do sindicato dos trabalhadores apoiaram o movimento antimanicomial. O não

aos manicômios se inseriu entre as lutas realizadas por uma sociedade civil vigorosa, como

era percebida a italiana dos anos de 1960 e 1970. A inserção nas lutas sociais levou a

sociedade italiana a condenar os manicômios e aprovar a Lei n.180, de 1978 (DESVIAT,

1999).

O Movimento da Psiquiatria Democrática se constituiu em 1973. Em sua plataforma,

manifesta-se a extensão do não aos manicômios em toda a Itália. Pelo Partido Radical foi

proposto um plebiscito visando à revogação da legislação psiquiátrica de 1904. O Estado, por

sua vez, compôs uma comissão para rever a legislação vigente. Em 1978, com a aprovação da

Lei n.180, foram criadas as condições para o processo de desinstitucionalização. Assim,

determinou-se: o fim de novas internações em hospitais psiquiátricos do momento da criação

da lei; nenhum paciente internado a partir de dezembro de 1981; serviços psiquiátricos

comunitários; nos hospitais gerais, unidades psiquiátricas com até 15 leitos, foi abolido o

estatuto de periculosidade social do doente mental; e os direitos dos doentes, em caso de

tratamento obrigatório, passaram a ser tutelados e garantidos por um juiz (DESVIAT, 1999).

“Na realidade, parece que somente agora o psiquiatra está redescobrindo que o

primeiro passo para a cura do doente é a volta à liberdade, da qual vem sendo privado até o

dia de hoje pelo próprio psiquiatra” (BASAGLIA, 1985, p. 114).

Da Narrenschiff, desembarcamos de uma grande viagem simbólica. De porto em

porto, ultrapassando o tempo e ressignificando a loucura, nossos navegantes desembarcam em

busca das rotas antimanicomiais brasileiras. Nessa jornada são conduzidos pelos cartazes

produzidos pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Os diferentes modos pelos quais os atores do

movimento da luta antimanicomial utilizam esses dispositivos no seu empenho por combater

o estigma e agir numa perspectiva contra-hegemônica demarcam sua rota. Passemos, então, à

pesquisa.

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4 ANÁLISE DOS CARTAZES

A análise foi dividida em grupos: cinco cartazes no primeiro grupo, cinco cartazes no

segundo e seis cartazes no terceiro grupo. Os grupos serão precedidos da cena social do

período relacionado. A apresentação terá como sistemática uma primeira leitura individual

dos cartazes e uma segunda leitura comparativa seguindo o principio metodológico da Análise

do Discurso. Uma análise vertical entre os grupos contemplará a dimensão temporal dos

cartazes observando as mudanças nos eixos de debate ao longo dos anos.

4.1 GRUPO I

No primeiro grupo foram analisados os seguintes cartazes:

O que é a “Assistência” Psiquiátrica no Rio de Janeiro (1978);

I Encontro da Rede de Alternativas a Psiquiatria- SP (1982);

Saúde Mental e Constituinte – CPPII - 41 anos (1985);

II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste (1987);

3º Encontro Estadual de Trabalhadores em Saúde Mental (1987).

Todos os cartazes são da região sudeste. Não conseguimos localizar cartazes de

outras regiões, mas por pesquisa foi possível encontrar eventos em outras regiões. No ano de

1980 ocorreu em Salvador (BA) o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental,

no ano de 1981; no ano de 1985 ocorreu o I Simpósio de Saúde Mental da Amazônia

realizado em Santarém (PA) e, em 1987, I simpósio Internacional de Saúde Mental

Comunitária em Santa Maria (RS). A partir dessa exemplificação se pode observar que os

eventos na área da saúde mental não eram restritos à região sudeste. As propostas de

mudanças começaram a circular por todo o Brasil.

Aqui apresentamos os cartazes selecionados:

O cartaz 1 foi produzido na cidade do Rio de Janeiro e circulou no ano de 1978. O

cartaz 2 foi produzido em São Paulo e não registra o ano de circulação, mas através de

documentação histórica sabemos que foi produzido no ano de 1982. O cartaz 3 foi produzido

no Rio de Janeiro, no ano de 1985. Os dois cartazes restantes são do ano de 1987. O cartaz 4

foi produzido para um evento nacional ocorrido na cidade de Barbacena, Minas Gerais e o

último cartaz foi produzido na cidade do Rio de Janeiro, antecedendo o Encontro de Bauru.

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Figura 1 – Cartaz 1 Figura 2 – Cartaz 2

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

Figura 3 – Cartaz 3

Fonte: Arquivo Laps.

Figura 4 – Cartaz 4 Figura 5 – Cartaz 5

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

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4.1.1 Cena social 1

Os cartazes do grupo 1, que correspondem às décadas de 1970 e 1980, retratam o

início do Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. Um cartaz que data de 1978 e outros

quatro da década de 1980 acompanham um dos momentos mais efervescentes da nossa

história. Carvalho (2001, p. 192) nos conduz por uma época em que o crescimento urbano,

estabelecido durante o regime militar, criou condições para a “ampla mobilização e

organização social que ocorreram após 1974”. De acordo com o autor, “se a manutenção de

eleições conjugada ao esvaziamento do papel dos partidos e do Congresso era

desmoralizadora” (p. 192), no momento adequado, a população foi capaz de utilizar a

representação contra o governo. A esmagadora vitória da oposição nas eleições marcou o ano

de 1974. O fim do milagre econômico foi seguido pelosvotos de protesto contra o regime

militar (NUNES; JACOBI, 1983).

Na retomada da luta pelo Estado de Direito, diversos setores da sociedade se

organizaram. O cartaz1, produzido em 1978, apresenta acontecimentos que marcam a

organização do setor saúde. Ele convoca para o debate marcado depois de um episódio de

repercussão na área da saúde mental. A “crise na Dinsam”, referida no cartaz, trouxe à luz as

precárias condições a que eram submetidos os pacientes nos hospitais pertencentes à divisão.

O evento desencadeou uma greve histórica ocorrida nas quatro unidades psiquiátricas do Rio

de Janeiro pertencentes ao Ministério da Saúde. A primeira greve do setor público após o

começo do regime militar. Amarante (1998) considera o evento detonador do Movimento da

Reforma Psiquiátrica brasileira.

A saúde destaca-se por uma significativa participação política na conjuntura

nacional. Várias entidades da saúde escreveram e escrevem seu nome na história recente do

país, como também se distinguem pelo apoio conferido aos movimentos que surgem em

algumas áreas da saúde. Dentre eles, destacamos o Movimento de Trabalhadores em Saúde

Mental (MTSM).

O cartaz 1integra esse importante momento do processo inicial do movimento. Nele,

deparamo-nos com entidades historicamente conhecidas por sua participação em lutas pela

retomada do Estado de Direito e que afirmam o apoio dispensado aos grevistas da Dinsam. O

Cebes, por exemplo, destacou-se em razão de sua forte atuação na Reforma Sanitária. A

elaboração do documento histórico A Questão Democrática na Área da Saúde, apresentado

no I Simpósio sobre Política Nacional, na Câmara dos Deputados, demarca sua importância.

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Esse documento tornou-se a base da plataforma programática do Movimento Sanitário. A

Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), apesar de seu caráter mais conservador, realizou,

em Camboriú, Estado de Santa Catarina, ainda no ano de 1978, o V Congresso de Psiquiatria.

Ao final do evento, uma das moções aprovadas referia-se ao pedido de anistia ampla, geral e

irrestrita (YASSUÍ, 2010).

Em 1979, São Paulo sediou o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores

em Saúde Mental, cujas discussões vincularam esse esforço aos dos demais setores sociais.

Afinados com seu tempo histórico, além da luta pelas liberdades democráticas, os

trabalhadores tornaram esse encontro um momento de reflexão sobre as questões da sua

prática (AMARANTE, 1998).

O movimento pelas eleições diretas, de dimensões inéditas na história do Brasil, foi

acompanhado por mobilizações de diversos setores. Nesse bojo, tivemos a eclosão do

Movimento Sanitário na década de 1970, a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986 e a

elaboração da Constituição de 1988. Esses acontecimentos interagiram com a Reforma

Psiquiátrica intensamente, pois eram contemporâneos ao início desse movimento. Os temas

relativos à Reforma Sanitária e à Constituinte são abordados nos cartazes 3 e 4.

Os ideais reformistas, desde a década de 1970, foram nutridos por importantes atores

internacionais, tais como: Franco Basaglia, Michel Foucault, Ronald Laing, Felix Guattari e

Robert Castel. Todos participaram de vários eventos no Brasil (PITTA, 2011). A Rede

Internacional de Alternativas à Psiquiatria, fundada em Bruxelas em 1975, tornou-se uma

influência importante no Brasil e em diversas áreas da América Latina. A rede, composta de

personalidades de muitas áreas, nasceu da necessidade da troca de experiências que estavam

em andamento naquele momento e se expandiu para a América Latina. Suas ideias ganharam

força no Brasil. Notadamente, houve influência das ideias vinculadas à psiquiatria

democrática (ELKAIM, 1977). O cartaz 2 é parte da constituição da rede no Brasil.

A Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria promoveu três encontros latino-

americanos. O I Congresso Latino-Americano de Alternativas à Psiquiatria ocorreu no ano de

1981, em Cuernavaca, no México. O II Encontro Latino-Americano e VI Internacional da

Rede de Alternativas à Psiquiatria foi realizado no ano de 1983, em Belo Horizonte, e o III

Encontro Latino-Americano em Buenos Aires, Argentina, de 17 a 21 de dezembro de 1986.

Nos encontros, foram repudiadas as ditaduras e sistemas totalitários que, à época, vigoravam

na América Latina. Os participantes se posicionavam pela conquista das liberdades

democráticas e se propuseram a lutar pela destruição da instituição manicomial. O slogan

“Por uma Sociedade sem Manicômios” presente em muito dos cartazes analisados e lema do

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Movimento Nacional de Luta Antimanicomial tem sua origem vinculada a Rede de

Alternativas à Psiquiatria.

Desde a década de 1960, o Estado compra serviços psiquiátricos do setor privado, e

assim pressões sociais e interesses empresariais são conciliados. Os hospitais privados

ampliam de modo expressivo a oferta de vagas, a ponto de a Previdência Social ter grande

parte de seus recursos destinados à saúde mental. Diante das dificuldades financeiras do

Estado, surgem diversas propostas, e algumas delas buscam alternativas não manicomiais,

como o plano de psiquiatria preventiva e comunitária, comunidades terapêuticas e propostas

de atenção primária. Tais proposições não são bem-aceitas pelo setor privado e por seus

representantes no aparelho estatal (AMARANTE, 1994).

Em grande parte por conta da ganância e das constantes fraudes advindas do setor

privado em diversos setores da saúde, instalou-se, nos anos 1980, uma enorme crise financeira

na Previdência Social, que fez com que o Estado procurasse ações que disciplinassem o setor

privado e reorganizassem o setor público. Para isso, foi implantado um processo de cogestão

entre os Ministérios da Saúde e da Previdência Social e criado o Conselho Consultivo da

Administração de Saúde Previdenciária (Conasp). As Ações Integradas de Saúde (AIS), os

Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (Suds) e o Sistema Unificado de Saúde

foram algumas das ações racionalizadoras (AMARANTE, 1994).

Ao longo de 1987, ocorreram muitos eventos importantes. Durante o mês de março,

na cidade de São Paulo, foi inaugurada uma experiência paradigmática: o Centro de Atenção

Psicossocial (Caps) Professor Luiz da Rocha Cerqueira – que influenciou a criação e a

transformação de vários serviços por todo o país (AMARANTE, 1998).

Em abril, foi realizado o II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região

Sudeste, focalizado no cartaz 4. Os dois encontros, ocorridos respectivamente em Vitória e

Barbacena, nos anos 1985 e 1987, foi comentado por Amarante (1998). Eles registram uma

conquista dos espaços dentro do aparelho estatal por parte de atores ligados ao Movimento

dos Trabalhadores em Saúde Mental. Entre os gestores, observa-se a presença de vários

militantes do movimento.

No mês de junho de 1987, na cidade do Rio e Janeiro, houve a I Conferência

Nacional de Saúde Mental, organizada pela Coordenação de Saúde Mental do MS sem a

participação do movimento social. De acordo com Pitta (2010), tratou-se de um cenário de

desobediência civil pelo movimento da reforma. Disposto como um congresso psiquiátrico, o

programa não vingou, pois a sociedade civil tomou o poder. A ocasião deu lugar a uma

assembleia popular, com a mesa diretora escolhida pela maioria, além de uma relatoria

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representativa das cinco regiões brasileiras. Yassuí (2010, p. 43) chama a atenção para a

“ênfase em proposições políticas e ideológicas”, com clara proposição antimanicomial.

O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental realizou, ainda no ano de 1987,

no Estado do Rio de Janeiro, seu segundo encontro. O cartaz 5 faz referência à essa ocasião.

Considerado uma preparatória para o Congresso Nacional, o evento, de âmbito nacional,

ocorreu na cidade de Bauru, São Paulo, e o local escolhido por sua administração progressista.

Figuras emblemáticas do Movimento da Reforma Sanitária, como David Capistrano e

Roberto Tykanori, compunham a administração pública. Eles inclusive tomaram parte na

implantação de um Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps).

Um conjunto de fatores agregados caracterizou esse momento como de intensa

renovação. O slogan “Por uma sociedade sem manicômios” tornou-se lema do movimento, o

que nos possibilita articular os caminhos do movimento à Rede de Alternativas à Psiquiatria e

à Psiquiatria Democrática. A definição da posição antimanicomial, ao mesmo tempo, induz a

discussão a respeito dos males institucionais e indica uma ruptura com o modelo hegemônico

hospitalar, tornando possível um olhar complexo sobre o adoecer. A prática do novo, do

inventado, do inusitado se apresenta e disputa espaço com o “saber técnico” tradicional.

O congresso foi movimentado por uma composição heterogênea. A partir dele, houve

uma sucessão de novos eventos. Lideranças municipais, técnicos, usuários familiares

estudantes entre outros estiveram presentes ao congresso.

Alguns marcos determinados durante esses eventos: o estabelecimento de 18 de maio

como Dia Nacional de Luta Antimanicomial; o manifesto de Bauru, que, aprovado na

plenária, configurou a criação do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial; e uma

passeata cujo objetivo era a extinção dos asilos, que contou com a participação de mais de 300

pessoas pelas ruas de Bauru.

Yassuí (2010, p. 46) comenta a respeito do MLA:

O Movimento da Luta Antimanicomial (MLA) buscou manter, ao longo dos

anos, uma singular e importante peculiaridade: a de existir como um

movimento, sem se tornar uma instituição: não há uma sede, fichas de

inscrição ou rituais de filiação. Existe como uma utopia ativa, prenha de desejos e ideais de transformação, e como materialidade na prática cotidiana

de profissionais, familiares, usuários, e tantos outros que se identificam com

seu ideário. É fundamentalmente um dispositivo social que congrega e articula pessoas, trabalhos, lugares.

O capítulo da saúde na Constituição de 1988 trouxe impulso à participação social nas

políticas de saúde, inclusive na saúde mental. A Lei 8.080, que institucionalizou o SUS, e a

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Lei 8.142, que estabeleceu a participação da comunidade na gestão do sistema, ambas de

1990, marcam os avanços ocorridos (AMARANTE, 1994).

No ano de 1989, ocorreu a intervenção da Casa de Saúde Anchieta pela

Secretaria mediante a organização de serviços substitutivos à internação psiquiátrica.

Ainda no mesmo ano, o deputado Paulo Delgado apresentou o Projeto de Lei nº

3.657-B, que tramitou no Senado sob o número 8.191 e dispõe a respeito da extinção

progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais, além de

regulamentar a internação psiquiátrica compulsória (CRP-6ª R, 1997).

A I Conferência sobre a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica na América

Latina, realizada em Caracas, Venezuela, em 1990, foi o evento que encerrou a década de

1980. A Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde

(Opas/OMS) apoiaram a conferência, na qual também tomaram parte as delegações do Brasil,

Argentina Chile, México, Uruguai, Nicarágua (DEVERA; COSTA-ROSA, 2007).

Na Declaração de Caracas 1990, p. 1), aprovada por aclamação no último dia da

conferência, destaca-se “o reconhecimento que a reestruturação da assistência psiquiátrica

implica revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na

prestação de serviços”. Há de se observar que os anseios antimanicomiais não são atendidos

pelas resoluções da conferência.

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4.1.2 Análise particularizada sobre cada cartaz

Figura 6 – Análise do Cartaz 1

Fonte: Elaboração própria.

No tópico anterior, observamos que o momento da emergência deste cartaz foi

histórico, considerado mesmo a etapa inicial do Movimento da Reforma Psiquiátrica

brasileira. Ele traz à tona uma crise ocorrida na Dinsam, como já mencionado.

Estamos, agora, diante do cartaz cujo objetivo é convocar para um debate.

Deparamo-nos com os elementos que o constituem e passamos a desenhar um campo de

possíveis efeitos de sentido. Os lugares de profissional de saúde mental e de pesquisador em

formação marcam esta leitura.

A cena social possibilita compreender que o tema do debate enunciado se

estabeleceu a partir de uma crise ocorrida na Dinsam – que acarretou uma greve. Contudo, na

cena discursiva materializada no cartaz, os grevistas não se assumiram como sujeitos da

enunciação, ou seja, os que pautaram e convocaram o debate. Eles se apresentaram apenas

como responsáveis pela greve. A convocação para o debate, no cartaz, ocorreu então

anonimamente. Embora esse fato possa ter resultado de uma inadequação ao ser elaborado o

material, torna propenso um campo de efeitos de sentido que, de certa forma, esvazia a

convocação como um ato autoral de luta dos grevistas. Por outro lado, os patrocinadores

ganharam destaque diante do anonimato dos possíveis convocadores do debate, ocupando o

lugar de sujeito da enunciação: o Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, o Centro

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Brasileiro de Estudos de Saúde, Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação

Profissional dos Psicólogos do Rio de Janeiro.

Ao ser usado o substantivo “patrocínio”, produziu-se um sentimento de ajuda, que

reverte em termos simbólicos positivamente para quem patrocina ou, ainda, propicia

condições para que determinado evento ocorra, guardando sempre o aspecto positivo. Todas

as entidades eram importantes na área da saúde – a maioria ainda é – e foram dispostas em

negrito na intenção de que o debate ganhasse peso em virtude de seu apoio. Na cena social, o

respaldo dessas entidades alterou o jogo de forças a favor dos grevistas.

A palavra “assistência” foi escrita entre aspas, e seu sentido modificado. O

enunciador não compartilha o real significado do termo e deixa isso claro ao fazer uso das

aspas, cujo efeito é instaurar uma polêmica com aqueles que realizam a referida assistência. O

discurso antagonista da assistência é trazido para a cena discursiva, o que torna o cartaz um

espaço dialógico no sentido bakhtiniano.

Os emissores pretendiam demarcar seu lugar de poder a partir da fala direcionada à

Dinsam, buscando interlocução com outros trabalhadores da saúde mental e a sociedade em

geral. Escolheram como forma de interlocução o debate e vincularam sua atuação a uma

postura democrática. No questionamento que nomeia o debate, podemos encontrar os

antagonistas – aqueles que intencionam preservar a assistência psiquiátrica nos moldes

existentes à época.

É possível ver que os grevistas da Dinsam conseguiram apoio de instituições

detentoras de grande força política. As forças classistas se destacavam: os médicos, por meio

do sindicato e da ABP, e os psicólogos, pela Associação Profissional dos Psicólogos do RJ. O

Sindicato dos Médicos do RJ configurou um apoio local que perdurou no tempo, uma vez

que, nos dias de hoje, ainda é importante para o movimento local antimanicomial. Os

psicólogos, ali presentes por intermédio de uma associação e, posteriormente, pelo conselho

federal e os regionais, tiveram forte atuação durante todo o percurso antimanicomial.

O Cebes destacou-se por sua presença marcante entre todos os movimentos

organizados e que se manifestaram contra a ditadura militar, além de apoiar lutas que se

estabeleceram naquela época, na área da saúde. Da mesma forma que o apoio político dessas

entidades como patrocinadores propiciou consistência ao movimento, o local em que ocorreu

o evento também contribuiu nesse sentido. A ABI notabilizou-se ao longo do governo militar,

pois não cessou de lutar pela defesa da liberdade de expressão.

Um elemento relevante observado no cartaz é a pergunta que nomeia o debate:

inserida de modo enviesado, com letras maiúsculas e garrafais, diferencia-se do restante das

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informações. Sua diagramação introduziu movimento ao material, além da quebra do padrão

linear. Notamos de imediato o desejo por mudanças manifestado na inscrição das palavras.

Os autores do cartaz tentaram especificar o tema do debate valendo-se das aspas que ladearam

a palavra “assistência”, ou seja, utilizaram um detalhe sutil para se fazer entender. Os

grevistas não se identificaram como autores do debate, mas sim em razão de um episódio,

inserido abaixo do título, do lado direito, em letras pequenas e sem grifo.

Na parte superior do cartaz, as informações foram dispostas de forma assimétrica. Já

na parte inferior, outros dados, como local do debate (ABI) e patrocínios, diferentemente

foram destacados e centralizados. Entendeu-se, portanto, que eram considerados de muita

relevância pelos autores dos cartazes. As informações, apesar de estarem emolduradas e

formarem um único cartaz, poderiam ser divididas em duas partes: a superior apresentando

organização menos formal referida aos grevistas, e a segunda metade, centralizada, referida

aos patrocinadores.

Quanto à circulação, essa adquire um tom especulativo, pois é difícil obter

informação precisa sobre como ocorreu, uma vez que se passaram tantos anos. Podemos

imaginar que houve grande circulação no Rio de Janeiro em virtude do apoio de várias

entidades importantes. Possivelmente, circulou na ABI e nas entidades ligadas à imprensa,

além da distribuição realizada pelos grevistas.

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Figura 7 – Análise do Cartaz 2

Fonte: Elaboração própria.

O sujeito da enunciação é a Rede de Alternativas à Psiquiatria pelo núcleo de São

Paulo. Os outros enunciadores são J.A. Guilhon de Albuquerque, Gabriel R Figueiredo,

Marcos Pacheco Toledo Ferraz, palestrantes do evento. Mediante documentação do Projeto

Memória da Reforma Psiquiátrica do Brasil, soubemos que o encontro reuniu “trabalhadores

de saúde mental e interessados de outros setores da sociedade” (Rede de Alternativas à

Psiquiatria, Boletim nº 2 – junho de 1982) e, paralelo a esse evento, ocorreram reuniões em

Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Nesse boletim, consta a divulgação do encontro em

Campinas, no dia 9 de julho. Naquela ocasião, foi efetuada uma avaliação da rede em nível

nacional e uma preparatória para o I Encontro Nacional da Rede de Alternativas à Psiquiatria,

que seria realizado no Rio de Janeiro paralelamente ao 7º Congresso da Associação

Psiquiátrica Brasileira (ABP). No Boletim 3 da rede, há o registro de que o evento não

transcorreu como previsto (Rede de Alternativas à Psiquiatria, Boletim nº 3 – novembro de

1982).

O encontro de São Paulo ocorreu, então, no bojo da organização de uma rede

nacional, com derivações latino-americanas e conexão internacional por seus vínculos com a

Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria, fundada em Bruxelas em 1975. A rede,

contemporânea do Movimento de Psiquiatria Democrática, era composta de personalidades de

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diversas áreas. Ela nasceu da necessidade da troca de experiências que estavam sendo

desenvolvidas naquele momento (ELKAIM, 1977). Em seu texto constitutivo afirmou:

“Consideramos que as lutas na área de saúde mental devem-se inserir no conjunto das lutas

dos trabalhadores para a defesa de sua saúde, conjuntamente com todas as forças sociais e

políticas para transformação da sociedade” (KOLTAI, 1984). A rede se expandiu para a

América Latina e, no ano de 1981, realizou o primeiro congresso latino–americano, em

Cuernavaca, no México. A partir daí, as ideias da Rede Internacional de Alternativas à

Psiquiatria ganharam força na América Latina.

Os emissores do cartaz construíram seu lugar enunciativo lançando mão de alguns

elementos discursivos: a escolha da cor vermelha para cobrir o cartaz e a figura de uma

pessoa algemada. Ao mesmo tempo, instauraram uma polêmica discursiva quando trouxeram

para o contexto textual os signos dos discursos concorrentes, o de seus antagonistas, aqueles

que defendiam as instituições fechadas, os manicômios e os que se utilizavam de tratamentos

violentos. A cor vermelha, característica dos movimentos de esquerda naquele momento,

intenciona a busca de identidade com seus interlocutores, os que desejavam encontrar formas

alternativas de tratamento para os com transtornos mentais. A figura de um homem negro

acorrentado remetendo à escravidão traz consigo uma forte expressão de sofrimento. Desse

modo, o discurso antagonista foi inscrito na cena discursiva, porém sob uma conotação

crítica. A consciência de luta e o debate estavam, portanto, construídos no plano simbólico.

A ausência do slogan “Por uma Sociedade sem Manicômios” despertou curiosidade

analítica, pois se tornou uma das marcas da rede. Mas, em virtude da impossibilidade de

localizar os idealizadores do cartaz, não nos é facultado o entendimento desse silêncio. É

possível supor que o sentido do slogan foi traduzido na figura do ser humano algemado, em

estado de sofrimento. Naquele momento histórico, em especial, essa imagem estava

semanticamente relacionada com o sistema de saúde mental baseado no confinamento.

Nas marcas deixadas no cartaz, podemos aprofundar a compreensão do grupo que

organizou a Rede de Alternativas à Psiquiatria em São Paulo. Ele se apresenta de maneira

ideológica nas temáticas escolhidas para compor o painel, formado por instituições

psiquiátricas e suas problemáticas. Nos diferentes enunciados do grupo de discussão –

distintos entre si e em relação aos temas do painel –, percebe-se a abertura para a pluralidade

de interesses, o que provavelmente reflete o investimento na ampliação da rede e sua

influência no debate público. As temáticas tendem para uma formulação em princípio despida

de forte significação ideológica: instituições psiquiátricas, assistência ao menor, trabalhos

comunitários e formação profissional, sem neles inserir nenhum peso ideológico. No painel,

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os temas são estruturados em associações de palavras que Maingueneau (1997) chamou de

plenas, ou seja, investidas historicamente de disputas por seus sentidos: Instituição e Poder,

Psiquiatria e Política e Destino dos Insanos.

Com base nas informações expressas no cartaz e o conhecimento do momento

histórico, discorremos a respeito de algumas observações sobre os discursos em cena. O

encontro refletiu uma reorganização de influências que estavam ocorrendo no cenário

nacional. Se, nos anos 1970, a Psiquiatria Comunitária tornou-se símbolo da modernização na

área da saúde mental, nos anos 1980, a influência da Rede de Alternativas à Psiquiatria

ganhou destaque. A partir do I Congresso Latino-Americano de Alternativas à Psiquiatria, já

mencionado, iniciou-se a implementação da plataforma então aprovada: a constituição da rede

da América Latina. Como resultado, no Brasil, foram realizados encontros estaduais que

fortaleceram a presença da Psiquiatria Democrática e do pensamento de atores ligados à rede.

Essas são algumas das condições de circulação possíveis de identificação.

O cartaz, é provável, deve ter circulado em instituições psiquiátricas, serviços de

saúde, universidades e faculdades de São Paulo, capital e interior. A vinculação a uma rede

internacional, que conta com a colaboração de nomes importantes em diversas áreas, pode ter

auxiliado na distribuição. No entanto, não houve, talvez, uma distribuição muito ampla, pois

se tratava de uma rede ainda em fase de instalação no Brasil. Por outro lado, no cartaz

estudado, constatamos duas vezes carimbado o nome Associação Médica Brasileira, levando-

nos a considerar que sua circulação ocorreu em entidades de classe.

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Figura 8 – Análise do Cartaz 3

Fonte: Elaboração própria.

No ano de 1985, foi eleito o primeiro presidente civil após o regime militar. A

proximidade da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e da Assembleia Nacional

Constituinte (1987-1988) criou um forte ativismo na área da saúde. Naquele período, o Centro

Psiquiátrico Pedro II (CPPII), que, na década 1970, havia protagonizado a crise da Dinsam,

passou por uma fase de reestruturação. No ano de 1984, foi realizado concurso interno,

resultando na aquisição de novos funcionários. Concomitantemente, alguns serviços sofreram

remodelação e foram implementadas supervisões com professores renomados, tais como

Jurandir Freire e Benilton Bezerra. Com a reativação do Centro de Estudos, ali passaram a

ocorrer cursos, palestras e apresentações com vistas a desenvolver um novo olhar sobre a

assistência. Além disso, foram firmados convênios para que os profissionais se reciclassem. A

comemoração dos 41 anos do CPPII – motivo do cartaz – ocorreu em meio a esse movimento

de renovação.

O centro, que pertencia à rede de hospitais do MS, foi contemplado, pela ocasião da

celebração do seu aniversário, com um cartaz de papel diferenciado, provavelmente custeado

pelo governo federal. Em seu cabeçalho, estão registradas todas as instâncias federais

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vinculadas ao centro: uma forma de demonstrar apoio à comemoração. Apesar de o tema

escolhido para a ocasião ter sido Saúde Mental e Constituinte, não há nenhuma explicitação a

respeito do tipo de evento; se não viesse acompanhado por uma programação, possivelmente

seria confundido com um slogan. Dividida em três dias, a atividade reservou um dia para cada

questão específica: A Saúde Mental na 8ª Conferência: a inserção na AIS (11-12); Legislação

e Doença Mental (12-12); e Saúde Mental como Direito e Cidadania (12-13).

A discussão implícita nos temas espelhava a abertura política em andamento, e a

composição do temário orientava sobre como se desenharam as preocupações dos que

trabalhavam na área da saúde mental no momento de retomada da democracia. O local para

realização do evento foi o auditório do Centro de Estudos da própria instituição. O incentivo à

participação ocorreu na forma de inscrições gratuitas e certificação.

No cartaz, estão registrados os nomes do Ministério da Saúde, da Secretaria Nacional

de Programas Especiais de Saúde, da Divisão Nacional de Saúde Mental, da Campanha

Nacional de Saúde Mental, da Cogestão MS – MPAS e do CPPII. Não há divisão entre

organizadores e apoiadores; todavia, pela ordem de apresentação, percebemos estabelecida a

questão hierárquica entre poderes federais. A instituição realizadora do evento foi enfatizada

com seu nome escrito em letras maiores, o que caracteriza o sujeito da enunciação.

A ótima qualidade do papel ressalta o cartaz perante os outros da época, indicando

provável apoio financeiro dos poderes supracitados. O nome do CPPII recebeu destaque tanto

no quadro superior direito, em letras maiores, como no quadro inferior direito, quando foram

usadas letras relativamente enormes e em negrito. O efeito de sentido que se percebe,

considerando-se os contextos, é da grande importância dada à instituição por ocasião de seu

aniversário de 41 anos, também grafado em negrito. O tema do evento, situado na porção

central do lado esquerdo do cartaz, ganhou relevância.

Além do sujeito da enunciação – o CPPII – e de outros enunciadores, o cartaz põe em

cena os sujeitos de quem se fala, os internos da instituição, cujas vozes não estão ausentes,

porém são mediadas. Eles aparecem no desenho do cartaz, amontoados atrás de grades.

O uso dessa ilustração requer algumas observações. É muito provável que a intenção

tenha sido justamente a de trazer à tona uma realidade que se considerava em processo de

superação. O cartaz, no entanto, informa sobre uma comemoração, e a imagem é antagônica

ao motivo do evento. A representação de uma multidão atrás de grades “contamina” o nome

da instituição aniversariante com a identidade manicomial. O discurso que, ao mesmo tempo,

produz e é produzido pela imagem, em razão de ela ocupar a maior parte do cartaz, “invade”

semiologicamente o espaço. Como não há nenhum elemento discursivo que expresse oposição

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àquela realidade, o efeito de sentido que resulta é o inverso, ou seja, o do elogio do

confinamento, agravado por más condições. O Centro Psiquiátrico acaba então por ser

identificado do ponto de vista semântico com a não superação das condições degradantes dos

espaços manicomiais.

Os emissores, o tema do encontro e o nome da instituição aniversariante foram

dispostos em compartimentos separados pelo desenho da multidão de rostos confinados e

amontoados. Assim, inseridas em posições contrárias, as informações comemorativas da

instituição e as do evento “Saúde Mental e Constituinte” foram simbolicamente distanciadas

pelo elemento discursivo, que evoca o cenário da saúde mental a ser superado. É possível

observar maior destaque ao aniversariante e à quantidade de anos de existência – CCPII e 41

anos grafados em letras bem maiores que as demais – ocupando o lugar da informação que

ressalta primeiro, e os efeitos de sentido aos poucos estabelecidos.

Sobre a circulação do cartaz, acredita-se que ocorreu de forma institucional no

próprio CPPII, e presume-se que tenha sido afixado em órgãos vinculados aos enunciadores.

Podemos supor, pela prática da época e a temática em questão, que também circulou em

faculdades e universidades relacionadas com a área da saúde. Além do Rio de Janeiro, o fato

de ser um hospital de âmbito federal nos permite considerar sua provável circulação também

na capital federal.

O cartaz institucional captou um momento histórico no qual duas realidades

conviviam. Por um lado, apresenta-se o ufanismo governamental valorizando suas instituições

e garantindo requinte ao cartaz comemorativo. Detentores de poder material e simbólico, os

enunciadores, listados na parte superior do cartaz, eram os responsáveis institucionais pelo

CPPII e estavam comemorando algumas vitórias.

Os temas do evento resultam da parcela dos discursos que construíam as mudanças,

traziam ressonâncias dos ares democráticos que as estavam propiciando. Por outro lado, os

desenhos de confinados conduzem à cena discursos antagônicos e produzem o efeito de

comemoração da existência das instituições de internamento psiquiátrico.

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Figura 9 – Análise do Cartaz 4

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz faz referência a um encontro de coordenadores de saúde mental da região

Sudeste, que intencionava avaliar a situação da rede pública naquele momento, além das

propostas e desdobramentos que ocorreram no encontro anterior. O I Encontro de

Coordenadores de Saúde Mental, realizado em setembro de 1985, em Vitória, teve caráter

participativo, seu documento final foi denominado Carta de Vitória e obteve grande

repercussão. O relatório incluiu propostas objetivas, tais como:

[...] a não expansão dos leitos manicomiais/hospitalares na região, a

implantação das Comissões Inter-institucionais de Saúde Mental (CISMEs) nos 4 estados [...], o fortalecimento da articulação inter-institucional no sub-

setor e uma inegável expansão da rede ambulatorial e de outros recursos. (II

ENCONTRO DE COORDENADORES DE SAÚDE MENTAL DA

REGIÃO SUDESTE, 1987 – Parte introdutória).

Com base nas condições de produção do cartaz, podemos afirmar que o lugar do

sujeito da enunciação é ocupado pelos coordenadores da Região Sudeste. No entanto, é na

figura dos enunciadores que sua presença se faz mais forte, ou seja, afirmam-se duplamente

na convocação e legitimação do encontro. Mas é possível observar outro enunciador: a

Biogalênica Produtos Ciba-Geigy. A ela é atribuído o papel de apoiador. A presença no cartaz

de uma indústria multinacional relacionada com os enormes lucros oferecidos aos laboratórios

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pela rede pública de saúde mental, sobretudo caracterizada como apoio a um evento no qual

pessoas que estavam à frente do movimento antimanicomial já se encontravam envolvidas,

traz à cena uma situação que se perpetua por décadas e, de modo eventual, é visível nos

materiais de comunicação. Interesses antagônicos convivem publicamente e de forma

associada, o que, por um lado, evidencia a intensa concorrência simbólica em torno do tema,

mas, por outro, permite a dúvida sobre a real autonomia do movimento.

Os sujeitos da enunciação deixam claro seu lugar de poder, pois eram os

coordenadores de saúde mental da Região Sudeste. O mapa da região ocupa o plano de fundo

do cartaz, delimitando e reafirmando a área de atuação dos emissores. Em consequência do

apoio disponibilizado por uma indústria farmacêutica, foi possível correlacionar o uso de

medicamentos em pacientes portadores de transtorno mental no serviço público com as

coordenações de saúde mental. A cena discursiva, portanto, remete para uma questão ética:

não convinha aos coordenadores, prováveis compradores de medicamentos e servidores

públicos, manter contato tão estreito com a indústria farmacêutica. Os interesses dos

enunciadores deveriam ser conflitantes. Tal situação é negada pelo dispositivo de enunciação

do cartaz, uma vez que o efeito de sentido produzido é o da convergência de interesses.

Esse encontro, destinado a um público restrito, ou seja, os coordenadores de saúde

mental da Região Sudeste, foi o único evento, dentre os que foram analisados em relação a

esse grupo específico, realizado em um hotel. Cabe aqui o questionamento sobre a real

necessidade de se produzir um cartaz, pois, como meio de comunicação, ele é mais adequado

para eventos abertos que acolhem inscrições de todos os interessados. No plano das

suposições, poderíamos pensar que operou como uma estratégia a fim de tornar perceptível a

atuação do grupo de coordenadores. A visibilidade relativa dos temas também produz efeitos

de sentidos: o primeiro – Saúde mental na rede pública: situação atual e avaliação das

propostas e desdobramentos do 1º Encontro de Coordenadores – ocupa grande parte da

metade inferior do cartaz. Já o segundo – A saúde mental na reforma sanitária – preenche um

quarto do espaço, apesar de sua importância naquele momento. Logo, é possível retornarmos

à análise do início do parágrafo: a atuação dos coordenadores é o centro da atenção.

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Figura 10 – Análise do Cartaz 5

Fonte: Elaboração própria.

Semelhante ao ocorrido no cartaz 4, um mesmo ator político ocupa aqui o lugar de

sujeito da enunciação (emissor) e de enunciador. Trata-se do Movimento dos Trabalhadores

em Saúde Mental RJ, cujo nome surge intimamente associado ao slogan “Por uma sociedade

sem manicômios”, que, como já mencionado, originou-se na Rede Latino-Americana de

Alternativas à Psiquiatria e foi assimilado pelo Movimento Nacional de Luta Antimanicomial.

Tendo em vista a associação com o lema, esses trabalhadores imprimiram um caráter político

ao evento, posicionaram-se como movimento social e apresentaram um histórico de suas

lutas, instaurando assim seu lugar de poder.

O dispositivo de enunciação do cartaz, ao dar visibilidade ao movimento, traz à cena

– embora de maneira implícita – o discurso daqueles que acreditavam ser possível uma

sociedade sem manicômios. De maneira bastante explícita, faz isso utilizando o slogan, que se

destaca visualmente. Entretanto, ao se valer dessa expressão também expõe, por oposição,

seus antagonistas, aqueles que defendiam os manicômios. Com isso, o cartaz se converte em

espaço de embate de forças e interesses divergentes. A seu favor, convoca ainda, por meio da

programação, outros enunciadores: a CUT, a CGT e os palestrantes Pedro Gabriel Delgado e

Jurandir F.Costa. A participação dos movimentos sindicais – CUT e CGT – marcou os

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vínculos sindicalistas do movimento, além da procura de um caráter organizacional não

amador. No cartaz, não há referência a outros atores sociais. O encontro pareceu ser

direcionado somente para os trabalhadores em saúde mental, apesar de preceder o Encontro

de Bauru, quando outros atores incorporaram-se ao movimento.

Não foi possível recuperar informações objetivas sobre a circulação do cartaz. No

entanto, podemos supor, com base na prática do setor, que ela ocorreu principalmente no

Estado do Rio de Janeiro, nas universidades, faculdades, serviços de saúde públicos e

privados, conselhos de classe, sindicatos e também na Rede de Alternativas à Psiquiatria no

Estado do Rio de Janeiro.

Ao buscarmos uma rede de significações, outros elementos do texto foram

enfocados. A denominação “encontro” oportunizou distinguir o evento, ou seja, caracterizou-

o como um momento de interlocução. O planejamento contemplou plenárias e grupos de

trabalho, propiciando uma forma de participação democrática para a tomada de decisões. As

centrais sindicais atuaram na organização dos participantes trabalhadores, o que reforçou o

caráter trabalhista do encontro.

As informações foram dispostas de forma convencional até o terço final do

documento. A seguir, houve um corte em diagonal, que introduziu o slogan e os enunciadores

do cartaz. O slogan de uma sociedade sem manicômios indica que se estabeleceu uma relação

direta do movimento com a Rede de Alternativas à Psiquiatria. Tal relação se apresentou,

naquele evento, por meio dos temas abordados pelos grupos de trabalho: Por uma Sociedade

sem Manicômio e Análise e Reflexões Críticas das Práticas dos TSM, em que os

trabalhadores não só procuraram refletir criticamente sobre suas práticas, mas também

demonstraram a intenção de criar projetos alternativos ao asilar.

Como se pode observar, as marcas das questões relativas aos participantes dividiram

espaço com aquelas que prenunciaram as mudanças ocorridas na dinâmica interna do

movimento. A posição em diagonal do slogan sugere atitude de quebra de um padrão

convencional. Sob nosso ponto de vista, esse encontro situou-se exatamente numa época de

transição. Assim, um movimento antes imbuído de outros interesses, assumiu uma postura

ideológica que abriria caminho para a incorporação de novos valores. Era um momento

histórico de transição, a aproximação com a Rede de Alternativas à Psiquiatria ampliara as

perspectivas do movimento, tornando as orientações culturais mais presentes. O cartaz traduz

o posicionamento do Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental, que descortinou formas

de opressão que ultrapassavam as relações trabalhistas. O evento informado se apresentou

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como preparatória do Encontro de Bauru, quando foram consolidadas as novas bandeiras de

luta antimanicomial, com a inclusão de novos atores ao movimento.

4.1.3 Síntese dos principais elementos analíticos

Para efeito comparativo, os dados analisados até aqui foram organizados nos

quadros a seguir:

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Grupo I

Quadro 1 – Sujeito da enunciação, enunciadores e dispositivos de enunciação

Cartaz 1 Cartaz 2 Cartaz 3 Cartaz 4 Cartaz 5

Sujeito da

enunciação

Patrocinadores Rede de Alternativas à Psiquiatria

Centro Psiquiátrico Pedro II.

Coordenadores de Saúde Mental da

Região SE

Movimento dos Trabalhadores em

Saúde mental RJ

Enunciadores

Grevistas / DINSAM Palestrantes

-Ministério da Saúde,

- Secretaria Nacional de Programas

Especiais de Saúde,

- Divisão Nacional de Saúde Mental,

-Campanha Nacional

de Saúde Mental,

-Co-gestão MS – MPAS

Biogalênica Produtos

Ciba-Geigy

CUT E CGT

Palestrantes

Rede de Alternativas

`à Psiquiatria

Enunciado

O debate: O que é a

“Assistência” Psiquiátrica no RJ ?

Impasses da

assistência.

I Encontro da Rede de

Alternativas à Psiquiatria - SP

Fundo vermelho e

figura aprisionada

formam enunciação

Enunciado verbo-

visual.

Figura ocupa

importante lugar

enunciativo

O Encontro de

Coordenadores de SM da Região Sudeste

Encontro trabalhadores

de Saúde Mental

Slogan determina

enunciação

Por uma sociedade sem

manicômios Fonte: Elaboração própria.

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Quadro 2 – Emissores, destinatários e antagonistas

Cartaz 1 Cartaz 2 Cartaz 3 Cartaz 4 Cartaz 5

Emissores

Patrocinadores Rede de Alternativas à

Psiquiatria - SP

CPPII Coordenadores de saúde

mental da região

sudeste

MST

Destinatários

Trabalhadores em saúde

mental, Imprensa e

Movimentos Sociais

Trabalhadores em saúde

mental Trabalhadores da saúde

mental e estudantes Público em geral Trabalhadores em

Saúde Mental

Antagonistas

DINSAM Instituições fechadas –

respondida com a figura

sofrida de um negro

algemado.

Desenho de pacientes

amontoados. Manicômios

Fonte: Elaboração própria.

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Quadro 3 – Condições de produção

Produção Cartaz 1 Cartaz 2 Cartaz 3 Cartaz 4 Cartaz 5

Local do evento ABI (RJ) Instituto Sedes

Sapientiae (SP) Auditório do Centro de Estudos CPPII

Hotel Grogotó Barbacena -MG

UERJ

Público Interessados/ gratuito Interessados / pagantes Interessados/

gratuito/certificado Coordenadores de saúde

mental Trabalhadores em saúde

mental

Forma: Organização /

Temas

Debate

O que é a “assistência”

Psiquiátrica no RJ

Painel/apresentação

trabalho/grupo de

discussão

Painéis (instituição e

poder; Psiquiatria e

Política ; O destino dos

insanos) , G discussão(Instituição,

assistência , trabalho de

comunidade, formação profissional)

Forma de organização –

não especificada

Tema – SM e

constituinte(8ª

conferência: a inserção AIS, legislação, Direito

e cidadania)

Forma de organização –

não especificada

SM na Rede Pública : Situação atual e

avaliação das propostas

e desdobramentos do1º

Encontro de Coordenadores e “A

saúde mental na

reforma sanitária”, ocupa parte reduzida,

apesar da importância

do tema.

Plenárias e GT – itens

têm participações

Histórico MTSM (TSM); Por uma

sociedade sem

manicômios (Pedro

Gabriel Delgado); Analise e Reflexões

Críticas das Práticas dos

TSM (Jurandir Costa); Relatório dos Encontros

Regionais –

Organização TSM

(CUT E CGT); Plenária Final.

Participação proposta

ao público

Direta Alterna participação

direta e ouvinte passível de participação

Ouvinte passível de

participação Direta Direta

Destaques Tema debate Cor vermelha e imagem CPPII e papel de boa

qualidade Seta com a palavra tema Slogan

Fonte: Elaboração própria.

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4.1.4 Análise comparativa dos cartazes

Os sentidos são provisórios, não têm estabilidade. Portanto, somos conduzidos por

uma rede infinita de sentidos. As vozes se articulam no texto e entre os textos, o que nos

possibilita produzir sentidos. Apesar de adotarmos intertextualidade, os termos semiose

infinita e dialogismo podem também ser utilizados para compreender as articulações que

ocorrem nos cartazes e entre eles.

Brait (2009) nos lembra que, em Metodologia e Ciências Humanas, último trabalho

de Bakhtin, a atividade participativa dialógica foi apresentada com três movimentos, o ponto

de partida, os contextos passados e o contexto futuro. A visão acêntrica do pensamento

bakhtiniano nos posiciona frente ao outro. Assim, obtemos uma enunciação que responde,

prolonga e polemiza com as precedentes.

No cartaz 1 (1978), está expressa claramente a ideia de que os grevistas da Dinsam

formularam a questão O que é a “Assistência” Psiquiátrica no RJ com o propósito de

questionar a estrutura institucional. A palavra “assistência” foi inserida entre aspas, dando-lhe

o sentido de não assistência, uma vez que, valendo-se do uso desse artifício, fizeram supor sua

inexistência. De fato, se voltarmos um pouco no tempo, poderemos encontrar as condições

históricas que ocasionaram tal pergunta, como também entender por que esses atores sociais

se confrontaram com a Dinsam. Sua estrutura arcaica foi o alvo de tal confrontação. A divisão

passou longos anos sem contratações9 e encontrou nos bolsistas uma forma de suprir parte de

suas deficiências.

As primeiras denúncias, que resultaram no início de uma greve em todas as

unidades10

da Dinsam do Rio de Janeiro, partiram de três médicos bolsistas do CPPII. O apoio

de entidades importantes ajudou o movimento a se constituir. A partir do convite ao debate

divulgado no cartaz dos grevistas e das entidades apoiadora, direcionamo-nos para o futuro,

para um novo contexto. Os quatro cartazes também presentes neste estudo, entre outros,

dialogavam com essa pergunta, sejam eles referentes aos movimentos sociais ou às

instituições públicas.

9 Amarante (1995) comenta que a Disam não realizava concurso público desde 1956/1957 e, a partir de 1974,

contratou bolsistas utilizando o recurso da Campanha Nacional de Saúde Mental. Esses profissionais passaram a

ocupar os mais diversos cargos nas instituições de saúde mental do MS (médicos, psicólogos, assistentes sociais,

inclusive cargos de chefia). 10 Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira (CJM) e Manicômio Judiciário

Heitor Carrilho.

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No cartaz 2 (1982), o evento levanta assuntos relacionados com a assistência, as

instituições e a formação profissional em seus grupos de discussão, reflexões que abordavam

de forma direta as necessidades de transformação trazidas pelos grevistas, além de retratar a

implantação da Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria no Brasil, que muitíssimo

influenciou os rumos do MTSM. Os diálogos do cartaz 2 se estabelecem nacional e

internacionalmente, pois a rede possui ligações em várias partes do mundo, além de promover

a integração do movimento brasileiro com tendências internacionais. O encontro, divulgado

no cartaz 2, dialoga com a recente formação do MSTM, ao mesmo tempo que influencia os

rumos futuros do movimento. O cartaz 5 traz em seus grupos de trabalho temas que se

referem à prática profissional. O evento do cartaz 5 se relaciona diretamente com o do cartaz

1. O primeiro registra o início do MTSM, e o quinto faz referência à preparação para o II

Encontro Nacional de TSM. O cartaz 5 também dialoga com o cartaz 2, pois utiliza o mesmo

slogan da rede internacional que, em 1982, se articulava em São Paulo. O discurso da Rede de

Alternativas à Psiquiatria foi incluído no projeto discursivo do MTSM, registrado abaixo do

nome do movimento.

Os cartazes 3 e 4 também conversam com os cartazes 1 e 2. Assim, as instituições

públicas saíam do lugar de inércia, que ocupavam há muito tempo, para responder ao

movimento social que se delimitou no cartaz 1. Ao mesmo tempo, as instituições eram

questionadas em seu âmago pela rede que se instalou no Brasil. O cartaz 2, em seus painéis,

desenvolve temas como, Instituição e Poder; Psiquiatria e Política; O Destino dos Insanos. O

cartaz 3 traz, entre seus temas, Saúde Mental como direito e Cidadania, e o cartaz 4 apresenta

um encontro de coordenadores para discutir a rede pública. O cartaz 3 e 4 estão ligados ao

setor público e, apesar de destinados a públicos diferentes, seus enfoques são semelhantes.

Ambos evidenciam os acontecimentos históricos daquele momento: o cartaz 3 sinaliza para o

tema SM na 8ª Conferência Nacional de Saúde,11

a legislação e a doença mental; já o cartaz 4

trata do desdobramento do 1° Encontro de Coordenadores e a SM na Reforma Sanitária. O

cartaz 5 dialoga com todos seus antecessores, ainda oscilando entre “projeto de transformação

11A 8ª Conferência de Saúde, realizada em 1986, foi um dos principais momentos da luta pela universalização da

saúde no Brasil, e contou com a participação de diferentes atores sociais implicados na transformação dos

serviços de saúde. A 8ª CNS foi o grande marco nas histórias das conferências de saúde no Brasil. Foi a primeira

vez que a população participou das discussões da conferência. Suas propostas foram contempladas tanto no texto

da Constituição Federal/1988 como nas leis orgânicas da saúde, nº. 8.080/90 e nº. 8.142/90. Participaram dessa

conferência mais de 4.000 delegados, impulsionados pelo movimento da Reforma Sanitária, e propuseram a

criação de uma ação institucional correspondente ao conceito ampliado de saúde, que envolve promoção,

proteção e recuperação.

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psiquiátrica e organização corporativa” (AMARANTE, 1995),e anuncia um novo momento

na saúde mental.

Há de se destacar que os cartazes 3 e 4 foram organizados de forma esquadrinhada,

divididos em quadrados, ambos com enunciadores do setor público. Os dois cartazes também

enfocam a Reforma Sanitária como tema, mas a chamada ocupou espaço secundário. No

cartaz 3, ocorre um fenômeno singular: o sujeito falado acaba por tomar o cartaz. A presença

de muitos rostos colocados lado a lado estabelece crítica aos enunciadores ao informar que as

condições de internação eram precárias. A imagem questiona os enunciadores e sua

comemoração. Os dois cartazes do movimento social têm seus destaques dispostos de forma

parecida, ou seja, enviesada – o cartaz 1, na parte superior, e o cartaz 5, na parte inferior.

Diferentemente do cartaz 3 e 4, os cartazes 1 e 5 transmitem a impressão de estarem

inclinados a subverter a ordem.

Quatro dos cinco eventos foram organizados com a intenção de que os participantes

tivessem atuação direta. O cartaz 1 anuncia um debate, o cartaz 2 traz grupos de discussão, o

cartaz 4 propõe uma avaliação, e o cartaz 5conta com plenária e grupos de discussão. A

participação direta se contrapôs ao momento histórico ditatorial.

O cartaz 1 destaca em sua produção o título do debate, colocado enviesado. Também

dessa forma foi inserido o slogan do cartaz 5. A cor vermelha e a figura de uma pessoa

acorrentada sobressaem no cartaz 2. Na produção do cartaz 3, atribui-se destaque ao nome da

instituição, além de utilizado um papel de qualidade superior. No cartaz 4, os temas ganham

relevância. Os cartazes 3 e 4 estão marcados com linhas retas.

Ao observar os cartazes, foi possível notar que o processo de redemocratização do

país e o Movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira estavam em interação. Nos cartazes

institucionais, o retorno da democracia surge como legitimação para possíveis mudanças na

área da saúde mental. No cartaz de 1985, por exemplo, um dos temas do evento, A Saúde

Mental na 8ª Conferência, notifica a possibilidade de participar das discussões previstas para a

ocasião, que ocorreu em 1986. Assim como naquele importante evento da sociedade, que

resultou em grandes mudanças na saúde,12

o cartaz traduz a reemergência das forças

progressistas, que, embora coagidas efetiva e simbolicamente pelos interesses conservadores,

já podiam trazer a público suas lutas a partir de mudanças nos poderes instituídos.

No cartaz de 1987, o foco recai sobre a Reforma Sanitária, pois, seguindo o exemplo

da 8ª Conferência ela se tornou referência nos dois cartazes institucionais, que sinalizam

12 A 8ª Conferência, com seus 4.000 delegados, demonstrou a capacidade da área da saúde de se organizar e se

articular com as demais forças sociais.

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mudanças nas forças políticas. O movimento da Reforma Psiquiátrica conversou e se

articulou, naquele momento, com outras forças contra-hegemônicas que vinham atuando.

Constatamos, então, a presença de forças sindicais, associações profissionais e uma rede

internacional se articulando com as forças antimanicomiais, em um movimento de

legitimação.

O cartaz 1 caracteriza esse movimento das forças contra-hegemônicas que se

propunham a desestabilizar a visão de mundo dominante, sinalizando sua inadequação aos

interesses da sociedade. Outras forças, a dos patrocinadores, buscaram fortalecer sua visão de

mundo ao apoiarem os grevistas. No cartaz 2, a cor vermelha e o desenho de um homem

algemado marcam o tom político da rede, configurando sua insatisfação em relação às forças

dominantes. A rede, ao se apresentar como alternativa, procurou mostrar que trazia uma nova

abordagem e pontuou sua visão crítica à via dominante. Já o cartaz 5 sinaliza o desejo dos

trabalhadores: uma sociedade sem manicômios. Aqui as forças contra-hegemônicas

construíram a realidade contando sua história. Apresentaram-se como classe, organizaram-se

como movimento social e refletiram suas práticas, ratificando que acumularam poder e

ganharam conteúdo e forma desde o debate realizado no cartaz 1.

Foi possível localizar a dinamicidade centro-periferia nos cartazes institucionais.

Portanto, no cartaz 3, fica evidente a divisão entre as forças mais conservadoras, inseridas à

direita e ocupando maior espaço, e as forças desejosas de mudanças, dispostas à esquerda e

preenchendo menor espaço. Tornou-se visível uma luta simbólica para definir o mundo

conforme seus interesses. As imagens dos segregados no cartaz comemorativo imprimem

grande vigor ao discurso não hegemônico. Quase perguntam se há motivo de comemoração

(BOURDIEU, 2009). No cartaz 5, as informações são apresentadas em desalinho, com uma

seta enviesada da direita para a esquerda, apesar do esquadrinhamento das linhas. Há de se

pensar que cargos públicos importantes estavam sendo ocupados por atores do MTSM. O

apoio da indústria farmacêutica ao evento descortinou o modo como as relações de poder na

saúde mental pública funcionavam naquele momento.

Esse momento histórico nos remete à abertura política. Comprovamos a existência de

um centro que passou por modificações e no qual adentraram forças que se identificavam

como contra-hegemônicas. A década de 1980 foi marcada por uma conformação flutuante, o

que veio a facilitar o crescimento de movimentos sociais que propunham o estabelecimento de

uma nova visão de mundo.

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4.2 GRUPO II

Para o grupo 2, foram escolhidos prioritariamente cartazes de 1997, quando se

comemorou os 10 anos do encontro de Bauru, ocasião que, como já mencionado, se tornou

um marco na história do Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. Dentre suas

principais realizações: a criação do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial e o

estabelecimento do Dia Nacional de Luta Antimanicomial.

Os cartazes foram selecionados no acervo do Laps, pois, apesar das inúmeras

solicitações, nenhum dos contatos efetuados para a pesquisa disponibilizou cartazes dos anos

de 1990. Encontramos cinco cartazes comemorativos dos 10 anos de luta antimanicomial.

Três deles relacionados diretamente à nossa análise: um do Pará trazendo o slogan Loucos

pela cidadania; um do CFP com o slogan Intervindo na cultura, construindo a cidadania!; e

um de Minas Gerais, Liberdade ainda que TAM-TAM. Não identificamos, nas regiões Sul e

Nordeste, cartazes que remetem à celebração do encontro de Bauru. O cartaz escolhido para

representar a região Sul apresenta o slogan Trancar não é Tratar, porém faz parte das

comemorações do ano de 1998; na região Nordeste, o cartaz selecionado é de 1999 e refere-se

ao IV Encontro Nacional do Movimento de Luta Antimanicomial.

Apesar de ter sido um evento de âmbito nacional, o lugar de promoção e realização

foi Paripueira, em Alagoas, sob o slogan Novas formas de produção de sentido. Não foram

descobertos cartazes da década de 1990 na região Centro-Oeste, e o cartaz do CFP, já

mencionado, embora produzido no Distrito Federal, é de abrangência nacional.

As imagens dos cinco cartazes são reproduzidas a seguir.

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Figura 11 – Cartaz 6 Figura 12 – Cartaz 7

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

Figura 13 – Cartaz 8

Fonte: Arquivo Laps.

Figura 14 – Cartaz 9 Figura 15 – Cartaz 10

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

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Loucos Pela Cidadania – Belém, PA (1997)

Intervindo na Cultura, Construindo a cidadania - CFP (1997)

Liberdade Ainda que TAM –TAM – Belo Horizonte, MG (1997)

Trancar não é Tratar – Londrina, PR (1998)

Novas formas de produção de sentido – Paripueira, AL (1999)

4.2.1 Cena social 2

No Brasil, a década de 1990 inicia-se com o governo Collor. Primeiro presidente

eleito desde 1960, Fernando Collor desenvolveu uma política neoliberal que ocasionou um

desmonte das políticas públicas. Claramente esse processo retardou os avanços da Reforma

Sanitária brasileira.

Na saúde mental, a década começou com avanços. Em 1991, foi reformulada a

transferência de recursos financeiros até então vinculados à internação e ao atendimento

ambulatorial. A publicação da Portaria n.189/1991 pela Secretaria Nacional de Assistência à

Saúde do Ministério da Saúde modificou a remuneração das internações hospitalares,

estabelecendo número máximo de diárias por AIH, e contemplou novos procedimentos.

Complementando tal avanço, é criada a Portaria n.224/1992, que promoveu diretrizes e

normas para a assistência em saúde mental (YASSUI, 2010).

Em dezembro de 1992, ocorreu a II Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM),

com expressiva participação de usuários e familiares, além de gestores, trabalhadores,

políticos e outros setores da sociedade. Aproximadamente mil pessoas, entre observadores

credenciados (320), participantes (150) e convidados (100) estiveram presentes ao evento. Ao

final, de acordo com Yassui (2010), foi produzido um relatório extenso e específico sobre as

questões da saúde mental, com poucas citações ao momento político em curso. Segundo Pitta

(2011), o relatório desempenhou papel de diretriz oficial para a gestão de Domingos Sávio

Alves, e as coordenações seguintes de saúde mental no Ministério da Saúde. De fato, como

esclarece Yassui (2010), muitas propostas apresentadas se concretizaram. O autor cita, por

exemplo, a criação da Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica no ano de 1993.

Nesse mesmo ano, em Salvador, foi realizado o I Encontro Nacional da Luta

Antimanicomial. Naquela ocasião, ocorreu, ainda, a I Feira Nacional de Experiências e

Produções Antimanicomiais, com a presença de 480 participantes de 18 estados inscritos, e,

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desse total, 25% eram usuários e familiares. Durante sua apresentação, o Núcleo de Estudos

pela Superação dos Manicômios/BA, coordenador do encontro, demonstrou a “intenção de

reinventar a ideia de encontro” (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 1997, p. 83)

afastando formalismos e burocracia, garantindo, portanto, qualidade aos trabalhos de

preparação. Na plenária final, foi redigida a carta de Piatã. Alguns dos seus trechos nos

permitem observar o olhar dos participantes sobre o fórum, assim caracterizado:

“democrático, independente, autônomo e com ampla inserção social”. A carta sinaliza para

distintas conquistas realizadas desde o Encontro de Bauru e sublinha a construção conjunta de

usuários, técnicos e familiares. Na luta contra a exclusão, propõe-se Brasil, Sem Manicômios

no ano 2000! (CONSELHO..., 1997).

Ainda em 1993, na cidade de Santos (SP), ocorreu o III Encontro Nacional de

Usuários e Familiares. O I Encontro havia sido realizado no ano de 1991, na cidade de São

Paulo, e o II no ano de 1992, na cidade do Rio de Janeiro. Com as mobilizações de usuários e

familiares, o movimento se fortaleceu e reuniu condições objetivando uma preparatória para o

III Encontro, que ocorreu ao longo do I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial.

Essa reunião deu voz à cerca de 85 pessoas, em sua grande maioria com experiências

de usuários, que constataram a necessidade de elaborar uma carta contendo seus direitos.

Participaram do evento 388 pessoas, sendo 234 usuários, 29 familiares e 125 técnicos

representando nove estados (BA, ES, MG, PE, DF, RS, RJ, SC e SP). Na carta de Direitos,

foram sintetizados os principais aspectos da luta antimanicomial (CONSELHO..., 1997).

No início dos anos de 1990, como assinalado por Maia e Fernandes (2002), os

representantes administrativos do Estado se posicionaram a favor da inversão do tratamento

hospitalar para o atendimento que privilegiasse a não internação. O Ministério da Saúde não

concordou com os pedidos de aumento do número de leitos manicomiais, as inspeções

sanitárias do governo estadual foram intensificadas, as investigações de denúncias variadas,

tais como maus tratos, superlotação, cela forte e outros se tornaram mais frequentes. Em

1992, o Ministério da Saúde marcou sua posição com a campanha “Doença Mental não é

crime”. Segundo os autores, os agentes governamentais, ao se posicionar pela extinção dos

manicômios, criaram forte atrito com os donos de clínicas privadas e hospitais conveniados.

Maia e Fernandes (2002) explicam que, quando a polêmica se acirrou, os proprietários de

clínicas, em vez de afirmar o valor do atendimento hospitalar, preferiram utilizar lobbies com

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congresso. A Federação Brasileira de Hospitais/FBH13

– entidade representante dos donos de

hospitais particulares –, em 1991, por meio de abaixo-assinado, conseguiu que as votações do

projeto Paulo Delgado fossem adiadas por diversas vezes. Na ocasião, o Ministério da Saúde,

representado pelo ministro Adib Jatene, colocou-se favorável à aprovação do projeto.

No ano de 1995, ocorreu o II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial realizado

em Belo Horizonte, coordenado pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental, o qual se apresentou

como continuidade do I Encontro (CRP-6ª, 1997). No Encontro a questão da exclusão

presente e passada foi privilegiada como forma de reconhecer as forças que organizam o

campo.

Os 10 anos de luta antimanicomial foram comemorados no ano de 1997. A data,

simbolicamente muito significativa, direcionou nossa escolha pelos cartazes. Além dessa

celebração, ocorreu o III Encontro da Luta Antimanicomial em Porto Alegre. No evento,

denominado “Por uma sociedade sem exclusões”, destaca-se a preocupação com a inserção do

usuário na sociedade, estabelecida em uma proposta visando superar as dificuldades de

moradia e manutenção dos ex-internos dos hospitais psiquiátricos por meio de lares abrigados

e pensões protegidas (MAIA; FERNANDES, 2002). Segundo os autores, os representantes do

movimento, ao enfocar a necessidade da desospitalização e fazer a defesa de uma rede

substitutiva como a melhor forma de atendimento, não perderam de vista a importância da

qualidade oferecida no novo modelo. O slogan Em defesa do SUS, utilizado em diversos

momentos pelo movimento, é ainda hoje símbolo da luta por assistência estatal gratuita e de

boa qualidade.

No ano de 1999, a PL 3657 saiu do Senado e retomou à tramitação na Câmara; no

mesmo ano, foram liberados recursos para 400 Caps e incentivo-bônus para a

desinstitucionalização (PITTA, 2011).

Devera e Costa-Rosa (2013) enumeram algumas das portarias regulamentadas no

final da década de 1990. São elas: Portaria/GM 1077, em 1999, dispõe sobre a assistência

farmacêutica na atenção psiquiátrica; Portaria/GM 106, em fevereiro de 2000, institui os

serviços de residência terapêutica; a Portaria 1220/GM, em novembro de 2000, implementa os

programas terapêuticos na modalidade de residências terapêuticas, incluindo, na tabela de

13 FBH foi criada em 1966 inicialmente com o nome de Federação Brasileira de Associações de Hospitais,

insere-se no contexto do golpe militar, período em que ocorre um grande processo de privatização da assistência

médica previdenciária. O Estado faz uma opção pela compra de serviços privados. Em 1973, é rebatizada com o

nome Federação Brasileira de Hospitais. As clínicas privadas se multiplicam, pois são consideradas de fácil

montagem. No final da década de 1970 e inicio da década de 1980, tem seu domínio ameaçado pelo processo de

redemocratização e os altos custos ocasionados pelo modelo previdenciário de privatizção (AMARANTE,

2013a).

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atividades profissionais do SIA/SUS, o código para cuidador em saúde, além de criar o

Serviço Residencial Terapêutico em Saúde Mental na tabela de serviços. Em julho de 2000, a

Portaria 799 propõe atuação, no âmbito do SUS, de um Programa de Organização e

Acompanhamento das Ações Assistenciais em Saúde Mental.

Os cartazes do grupo 2 retratam o avanço antimanicomial em todas as regiões do

Brasil. Eles adquiriram um novo padrão. As cores, o lúdico e a irreverência são

preponderantes. A cidadania, a liberdade e as questões culturais compõem os temas enfocados

nos slogans.

4.2.2 Análise particularizada de cada cartaz

Figura 16 – Análise do Cartaz 6

Fonte: Elaboração própria.

O sujeito da enunciação é o Fórum de Saúde Mental, com o papel de realizador.

Como enunciadores, apresentam-se a Prefeitura de Belém – governo do Pará –, Secretaria de

Saúde e Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel), que se posicionaram como

apoiadores.

Aqui, os enunciadores comemoraram os 10 anos de luta antimanicomial e, para tal,

adotaram o slogan Loucos pela Cidadania. No cartaz, foi informada a realização de um

evento cultural com o intuito de celebrar o aniversário da luta. Os emissores instauraram seu

lugar de poder a partir da fala sobre o manicômio, caracterizado como um quadro na parede,

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ou seja, algo que faz parte de uma lembrança, um fato já passado. O aviãozinho sai das

grades, e o pássaro traduz o sentimento de liberdade. O antagonista foi trazido para a cena

discursiva, porém como algo ultrapassado (comemora-se justamente a vitória obtida).

Podemos afirmar que a população foi o público-alvo do cartaz, uma vez que o

evento, organizado na intenção de comemorar os 10 anos antimanicomiais, ocorreu na forma

de ato show em praça pública de Belém. Loucos pela Cidadania traz para a cena discursiva os

loucos, mas não o louco confinado, amontoado e em grilhões, conforme marcado nos cartazes

da década de 1980. O louco presente no cartaz da década de 1990 informa de modo lúdico seu

desejo de cidadania, bem como reafirma a bandeira de luta. Esse cartaz remete à reflexão de

Pealbart (1990, p. 137) quando enfatiza que o direito à desrazão significa “devolver um

direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao

impensável”.

O Fórum de Saúde Mental conseguiu apoio da Secretaria de Saúde e da Fundação

Cultural do município para a produção do cartaz e do ato show. Referente ao cartaz, os

enunciadores escolheram cores alegres, a imagem aponta o opositor como ultrapassado, e o

slogan lúdico brinca com as palavras. O ato show corroborou a ideia do slogan, pois o espaço

público selecionado se caracteriza historicamente como local de manifestações dos cidadãos

por seus direitos e demandas. A ocupação desse espaço pelos loucos demonstra ser um ato

simbólico de conquista da cidadania.

A circulação desse cartaz provavelmente ocorreu de forma restrita à cidade de

Belém. Os Serviços de Saúde Mental, a Secretaria de Saúde, a Fumbel, os espaços

acadêmicos e os espaços da sociedade civil organizada vinculados à luta antimanicomial ou

temáticas congêneres foram prováveis locais de circulação.

A cor pastel, ao fundo, determina suavidade ao cartaz e simultaneamente ressalta os

elementos do texto. O passe-partout verde, o pássaro amarelo e o slogan vinho contrastaram

com o tom pastel e assim ganham realce. O desenho da grade recebeu como fundo um espaço

branco e vazio de aparência asséptica. O quadro e a corda que o prendem ao prego foram

acompanhados por uma sombra cinza, ou mesmo de outro quadro, ocupando o espaço

embaixo do quadro atual. Apesar de não ser fácil compreender, temos a impressão de algo

pensado com o objetivo de desqualificar duplamente o antagonista, tratando os manicômios

como fato ultrapassado. Nos novos tempos, resultado de 10 anos de luta antimanicomial, em

consonância com a produção de novos sentidos, encontramos os loucos pela cidadania, o

sujeito louco desinstitucionalizado.

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Figura 17 – Análise do Cartaz 7

Fonte: Elaboração própria.

A Lei 5766, de 1971, criou o Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos

Regionais. Ao CFP foi atribuída jurisdição em território nacional e supremacia sobre os

Conselhos Regionais, assim distribuídos: 1ª Região, CR P-01, com sede em Brasília,

abrangendo o Distrito Federal, estados do Acre, Amazonas, Goiás, Pará e Territórios Federais

do Amapá, Roraima e Rondônia; 2ª Região, CR P-02, com sede em Recife, abrangendo os

Estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão e

Território Federal de Fernando de Noronha; 3ª Região, CR P-03, com sede em Salvador,

incluindo Bahia e Sergipe: 4ª Região, CR P-04, com sede em Belo Horizonte, abrangendo

Minas Gerais e Espírito Santo; 5ª Região, CR P-05, com sede no Rio de Janeiro,

compreendendo a Guanabara e o Rio de Janeiro; 6ª Região, CR P-06, com sede na cidade de

São Paulo, abrangendo São Paulo e Mato Grosso; 7ª Região, CR P-07, com sede em Porto

Alegre, incluindo Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

No ano de 1973, o CFP empossou seu primeiro conselho, e, em 1974, o CRP

contabilizava 895 psicólogos inscritos. No ano seguinte, contavam-se 4.951. Na década de

1980, o número estimado de inscritos foi em torno de 50 mil profissionais (SOARES, 2010).

O CFP destacou-se, nos anos de 1990, como apoiador, patrocinador e realizador não

só de cartazes, mas também de eventos e publicações relacionadas ao Movimento

Antimanicomial. O símbolo do Conselho Federal de Psicologia - - tornou-se presente em

grande número de cartazes do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial. Uma das ações

mais relevantes do CFP foi a distribuição de cartazes comemorativos do Dia Nacional de Luta

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Antimanicomial por todo o Brasil. Maria Ermínia Ciliberto, presidente do CFP, em entrevista

a nós concedida, comentou que a função dos cartazes é integrar o movimento.

Algumas vezes, o logotipo do CFP, nesses cartazes, é inserido em parceria com

outras entidades, tais como conselhos regionais. Segundo Ciliberto, o Conselho de Psicologia,

diferentemente de outros, estabelece uma política de desenvolvimento da psicologia por igual

em todo o país (assim como apoio aos movimentos sociais no Brasil). No caso dos cartazes,

aqueles que possuem condições financeiras são seus próprios produtores, já aqueles que não

dispõem de recursos podem utilizar os cartazes do CFP. “A gente tem uma possibilidade de

apoio ao movimento dentro do que é permitido pelo tribunal de contas, em tudo que possa ter

três orçamentos. Assim, podemos pagar algumas coisas e outras não. Não é o apoio ideal, mas

o apoio possível”, afirma.

Normalmente, os cartazes do CFP não apresentam identificação do ano e, por essa

razão, é possível repeti-los por diversos anos. A seguir, trazemos alguns exemplos desses

cartazes:

Figura 18 – Montagem com cartazes do CFP

(7a) (7b) (7c) (7d)

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz analisado é de 1997, e a identificação da data é possibilitada pela

informação dos 10 anos de luta antimanicomial. No centro, há o registro de uma pintura; na

parte de cima, informações sobre a data comemorativa; já na parte de baixo, um slogan, uma

faixa branca a ser preenchida e o apoio. A figura do realizador não foi mencionada. Assim,

consideramos como enunciadores: o pintor Darcângelo, autor da pintura; o fotógrafo Antônio

Viana Alves, que a fotografou para o cartaz; o Museu de Imagens do Inconsciente, em cujo

acervo encontra-se a obra; e o CFP que atuou como apoiador.

O espaço em branco poderia ter sido preenchido por algum serviço, Secretaria de

Saúde ou núcleo do movimento antimanicomial de qualquer lugar do Brasil, tornando-se

assim o sujeito da enunciação. O exemplar do cartaz analisado, no entanto, trouxe o espaço

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em branco, vazio, propiciando que o lugar do sujeito da enunciação seja ocupado por duas

entidades. Em primeiro plano, o Movimento Antimanicomial preenche boa parte do espaço e

se destaca no conjunto dos elementos gráficos. É ele o aniversariante que comemora 10 anos

de luta. Todavia, o CFP também dessa forma se enuncia, embora com letras pequenas, ao pé

do cartaz. Tal fato ocorre pelo uso da mesma cor e a proximidade espacial com o slogan

Intervindo na cultura e construindo a cidadania, tornando-se, portanto, o agente dessa

intervenção. Se, na cena social, o CFP é um dos principais agentes do movimento, na cena

discursiva estabelece-se uma concorrência entre ele e o movimento pelo lugar do sujeito da

enunciação.

O emissor busca instaurar seu espaço de poder a partir da forma de intervenção

proposta. Ele aponta a cultura como instrumento para se adquirir cidadania. A pintura, ao

mesmo tempo, retrata o infortúnio ocasionado pelo manicômio, o antagonista representa o

modo de intervenção proposto no slogan. Seus destinatários foram os Conselhos Regionais de

Psicologia, determinantes da circulação dos cartazes. Coube a eles não só sugerir a melhor

forma de atuação, como também instigar a realização de um evento comemorativo, além de se

tornarem ainda emissores antimanicomiais.

A produção do cartaz permitiu sua afixação divulgando o dia antimanicomial ou

servindo para tornar público um evento organizado no âmbito local, que pode ter tido

participação direta das pessoas ou não, ter sido gratuito ou pago, obedecido à sugestão do CFP

ou não.

Para comemorar os 10 anos de luta antimanicomial, o CFP escolheu um cartaz de cor

vibrante e inseriu nele a imagem do sofrimento trazido pelo manicômio. De forma didática,

porém artística, mostrou como deveria ser a ação antimanicomial.

A circulação provavelmente atingiu diversas regiões do Brasil ou até mesmo todas.

Na explicação de Ciliberto, os cartazes foram distribuídos para os conselhos regionais. Alguns

os receberam, mas os destinaram às gavetas. Outros farão um evento, irão encaminhá-los para

núcleos ligados ao movimento, irão propor uma parceria com os usuários, configurando-se

um processo de adaptação aos interesses e contextos locais.

Uma rede de significações emerge do cartaz. O destaque fica por conta da cor

abóbora muito viva, fazendo com que ele chame a atenção. A atenção do leitor se divide entre

o nome do movimento e a pintura, protagonista e antagonista disputam espaço. O nome do

movimento foi escrito em letras brancas grandes. A pintura que retrata o manicômio, apesar

de melancólica, recebeu o lugar central, ou seja, no meio do cartaz, e traz muitas cores vivas.

Ela retrata um rosto com lágrimas preso atrás das grades, observando o que restou de si. A

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leitura que se deseja estabelecer, a partir da pintura, é a dos males ocasionados pelo

aprisionamento manicomial, que, além disso, serve de ponte para o slogan, seu maior

destaque, na parte inferior do cartaz, sobressaindo menos. A cor azul foi escolhida para o

slogan e o apoio, e, entre eles, há uma faixa branca que permite uma intervenção. O CRP,

valendo-se de letras pequenas no final do cartaz, apresentou-se de forma discreta como

apoiador.

Figura 19 – Análise do Cartaz 8

Fonte: Elaboração própria.

O Fórum Mineiro da Saúde Mental (FMSM), composto de trabalhadores, usuários e

familiares da rede de saúde mental de todo o estado e a Associação dos Usuários dos Serviços

de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam), idealizadores do cartaz que agora analisamos,

são organizações antimanicomiais de grande atuação no Estado de Minas Gerais. Criadas em

1994, o impulso para seu estabelecimento ocorreu a partir da participação de uma delegação

de Minas Gerais no I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, em Salvador, no ano de

1993, bem como da escolha do estado mineiro para sediar o II Encontro Nacional da Luta

Antimanicomial.

Miriam Abou-yd, participante do FMSM desde seu início, relatou que, em Minas, até

então, existia apenas o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, mas não entidades de

controle social, com a participação de usuários e familiares. O fórum mantém, a datar de sua

criação, distintos princípios e ações como a defesa incondicional de uma sociedade sem

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manicômios e do SUS, fiscalização do poder público quanto à implantação e consolidação de

políticas públicas antimanicomiais, denúncia de violações de direitos humanos envolvendo os

portadores de sofrimento mental, intervenção na cultura, haja vista a mudança do olhar da

sociedade sobre os ditos loucos, entre outros. A Asussam–MG compreende os seguintes

objetivos: cultivar a mais ampla e perfeita cordialidade entre seus sócios; promover atividades

sociais, culturais e desportivas; firmar convênios com associações congêneres, autarquias,

fundações, entidades, religiosas, poderes públicos federal, estadual e municipal e outras;

defender seus membros em toda e qualquer instância; fazer cumprir as deliberações da Carta

de Direitos e Deveres dos Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental; divulgar e

defender os princípios e propostas do Movimento de Luta Antimanicomial; sensibilizar os

familiares para garantir participação efetiva e defesa dos princípios da Luta Antimanicomial.

Desde a sua estruturação, o FMSM e a Asussam elaboram cartazes comemorativos

do Dia Nacional de Luta Antimanicomial. A produção das organizações remonta à sua

fundação; a partir de então, distribuem cartazes no dia 18 de maio anualmente. A seguir,

registramos outros cartazes produzidos em parceria pelas duas organizações.

Figura 20 – Montagem com cartazes do FMSM e Asussam

(8a) (8b) (8c) (8d)

Fonte: Elaboração própria.

Nos primeiros anos, os cartazes anunciavam a comemoração do dia 18 de maio sob

circunstâncias mais discretas, envolvendo poucos atores sociais. Com o decorrer dos tempos,

a partir da ampliação dos serviços substitutivos e da transformação da cidade no sentido de

acolher os portadores de sofrimento mental no campo dos direitos, a manifestação ampliou-se.

No dia 18 de maio de 1998, sob o tema dos 50 anos da Carta de Direitos Humanos, foi

realizado, pela primeira vez, o desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam-Tam,

nas principais avenidas da cidade. Desde então, o evento ocorre regularmente todos os anos

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nessa data, tornando-se uma manifestação político-cultural conhecida na cidade. É possível

localizar, na internet, notícias de jornais, comentários em sites e crônicas sobre o evento.

A confecção e a escolha dos cartazes do Dia Nacional de Luta Antimanicomial, ao

longo dos anos, variaram conforme os recursos obtidos, mas sempre passaram pelo crivo final

de pessoas diretamente envolvidas com o Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Asussam. No

início, de forma permanente, receberam a contribuição de um artista plástico com seus

trabalhos; algumas vezes, inclusive, não remunerados. Já outros cartazes foram produzidos

por empresas responsáveis pela Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Betim.

Atualmente, são convidados mais artistas, que apresentam suas propostas. A decisão, porém,

compete a uma comissão formada por membros do FMSM e Asussam.

O cartaz aqui analisado traz, do lado direito, uma enorme bandeira com os dizeres

Liberdade Ainda que TAM-TAM. A bandeira símbolo do FMSM recebeu destaque no cartaz.

O nome do fórum surge no meio do cartaz, do lado esquerdo, com o da Associação dos

Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais. Na parte inferior, do lado esquerdo,

estão os logos das Secretarias de Saúde de Belo horizonte e de Betim. Tal disposição nos

propicia considerar nossos enunciadores o FMSM, a Asussam, a Secretaria de Saúde de Belo

Horizonte e a Secretaria de Saúde de Betim. Não há, no cartaz, nenhuma informação

explicitando quem são os realizadores e os apoiadores; assim, pela posição ocupada e as

modalidades (texto e logomarca), podemos entender que as organizações da sociedade civis

são os realizadores, e as Secretarias de Saúde dos municípios os apoiadores. Já como sujeitos

da enunciação apresentam-se o Fórum Mineiro de Saúde Mental e a Associação dos Usuários

dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais.

Os emissores buscaram instituir sua fala autorizada (portanto, seu lugar de poder)

pelo mecanismo da intertextualidade, produzindo um paralelo entre a inconfidência mineira e

a luta antimanicomial. A bandeira, com o triângulo vermelho, trouxe um rosto gaiato e o

slogan que parafraseia o slogan inconfidente. Os emissores se posicionaram por meio da

irreverência, mas, ao mesmo tempo, produziram uma “contaminação” de ações em confronto

lançando mão da legitimidade de um dos maiores símbolos da luta pelo rompimento das

estruturas de dominação e pela liberdade – a Inconfidência Mineira. Assim, buscaram

produzir o efeito de neutralização de uma possível rejeição ou antagonismo. A metáfora

“bandeira de luta” emerge com força total dessa produção gráfica.

Com base na análise do dispositivo, é possível afirmar que os destinatários foram a

população em geral, e os antagonistas aqueles que defendem os manicômios, ainda que

apenas explicitados no slogan do movimento: ao pedir uma sociedade sem manicômio, os

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antimanicomiais revelam a existência dos manicômios. Os enunciadores trouxeram para a

cena novos enunciadores, os inconfidentes, e os TAM-TAM entraram em cena

respectivamente afirmando e reclamando a liberdade como um bem inalienável.

A produção aqui analisada não menciona nenhum evento, somente à divulgação da

data comemorativa e das bandeiras de luta antimanicomiais. Miriam Abou-Yd, participante do

Fórum Mineiro de Saúde Mental desde o início de sua composição, explicou que nos cartazes

são incluídos todos os principais parceiros que ajudaram a realizar o 18 de maio daquele ano,

e não só os envolvidos na confecção do cartaz. A entrevistada não soube dar informações

específicas sobre se ocorreram ou não eventos no ano de 1997. Os cartazes do Dia Nacional

de Luta Antimanicomial variaram conforme o auxílio obtido. No processo para obter

recursos, contavam com assessores, convidavam três ou quatro artistas, faziam uma proposta

e criavam uma comissão julgadora. Alguns cartazes foram produzidos pela Assessoria de

Comunicação da Prefeitura de Betim em discussão com o fórum e a Asussam. Outros ainda

foram elaborados por um artista amigo do fórum.

A circulação do cartaz analisa por ser datado restringiu-se particularmente ao ano de

1997. Segundo, Abou-Yd são rodados, normalmente, cerca de dois mil cartazes, que são

distribuídos para a rede de saúde mental (Caps, Centros de Convivência, Centros de Saúde

etc.) das prefeituras de Minas Gerais, instituições formadoras em especial no campo da saúde,

todas as regionais dos conselhos de classe da área da saúde, Ministério Público, Conselhos de

Saúde, Secretarias de Educação, Assistência Social, Cultura etc., entidades dos direitos

humanos, inclusão produtiva, população de rua e as demais parcerias que se estabeleceram ao

longo do tempo.

Nas redes de significações que surgiram a partir do cartaz, destacou-se a bandeira.

Diferentemente de outros produzidos pelas duas organizações, ela não ocupa o lugar de

logomarca do fórum. Uma pequena bandeira, com o nome do fórum, na parte de baixo, foi o

formato encontrado em outros cartazes elaborados pelas duas organizações. Já no cartaz

analisado, ela ocupa espaço privilegiado. A cor vermelha relacionada aos movimentos

revolucionários preencheu o dia de comemoração e o triângulo. A bandeira do Estado de

Minas Gerais tornou-se referência na escolha da cor. Ambas as bandeiras apresentaram forte

alusão à da Inconfidência. O bom humor demarcou a atuação antimanicomial, e os autores

brincaram com a nominação do sujeito com transtorno mental. A denominação popular TAM-

TAM promoveu um tom leve à reivindicação de liberdade, bem como a forma quase infantil

retirou a carga semântica negativa histórica e socialmente constituída da palavra “louco”, que

poderia causar rejeição e polêmica. O termo TAM-TAM ofereceu sentido alegre e inofensivo

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aos loucos, desarticulou a relação entre loucura e perigo. Abaixo da bandeira do fórum, foi

incluída uma menção aos anos de luta e o slogan do Movimento Nacional de Luta

Antimanicomial, produzindo-se assim o reiteramento do slogan da bandeira.

A intertextualidade com a bandeira utilizada na Conjuração Mineira e,

posteriormente, no Estado de Minas Gerais não deixa esquecer que a questão da liberdade

perpassa a história do Estado de Minas Gerais. A cor vermelha, que também consta na

bandeira do estado, fortaleceu a importância que o olhar revolucionário adquiriu para os

mineiros. Nas repetições, as questões antimanicomiais se aproximaram daquelas valorizadas

pela população, sendo atingida nos aspectos que lhe causam grande orgulho.

Figura 21 – Montagem com imagens relacionadas à logomarca do FMSM

(8e) Bandeira da Inconfidência

Mineira

(8f) Bandeira do estado de

Minas Gerais

(8g) Bandeira do Fórum Mineiro

de Saúde Mental Fonte: Elaboração própria.

Figura 22 – Análise do Cartaz 9

Fonte: Elaboração própria.

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A região Sul do Brasil, como as outras, conta com grande número de organizações da

sociedade civil (ONGs)14

vinculadas ao MLA. As ONGs, formadas principalmente por

usuários, familiares e profissionais, estão distribuídas nas capitais e no interior, em todos os

estados da região Sul.

Uma dessas organizações é a Associação Londrinense de Saúde Mental (ALSM).

Não governamental e sem fins lucrativos, foi fundada em 1997 por familiares e profissionais,

que, preocupados com a qualidade da atenção oferecida na área da saúde mental, resolveram

se organizar. Seu principal objetivo é a luta pelos direitos de dignidade e cidadania dos

portadores de sofrimento psíquico e de seus familiares

(http://alsaudemental.blogspot.com.br/2011/08/novidade-no-site-da-alsm.html).

O cartaz analisado divulgou o evento que ocorreu nos dias 18 e 20 de maio,

provavelmente no ano de 1998. Aqui, conjugamos a informação do calendário e do professor

Paulo Amarante. Para a comemoração do Dia Nacional de Luta Antimanicomial, foi realizada

uma atividade cuja programação apresentava-se no cartaz: uma exposição, um ato público,

palestra com o pesquisador Paulo Amarante abordando o tema Políticas de Saúde Mental no

Brasil, além da mesa-redonda que trouxe o tema Saúde Mental e Cidadania, a mudança do

modelo assistencial, com a presença de atores destacados do movimento.

Em uma faixa, ao final do cartaz, encontramos como organizadores a Associação

Londrinense de Saúde Mental e a vereadora Elza Correa; como patrocinadores a Secretaria

Municipal de Saúde da Cidade de Londrina, o Banco do Brasil e o Hotel Bourbon; na função

de apoiadores, Acesf, Associação Odontológica do Norte do Paraná, Associação Médica de

Londrina, CRP, Jabur, Toyopar, Café coral, O Casarão, Secretaria de Administração – PML,

Universidade Estadual de Londrina (UEL) - Núcleo de Tecnologia Educacional.

A ALSM, no ano seguinte de sua criação, procurou marcar o Dia de Luta

Antimanicomial com um importante evento. Notamos que houve um esforço da organização

em prol da realização do evento, revelado pelos seguintes fatores: os organizadores

requisitaram a presença de personalidades da academia; criaram um ato público com

panfletagem; conseguiram patrocínio, aqui aparentemente financeiro; além de apoio de

diversos segmentos. Consideramos sujeitos da enunciação os organizadores do evento,

portanto: Associação Londrinense de Saúde Mental. Os nomes foram dispostos na parte de

14 No Paraná, localizamos ONGS antimanicomiais em Curitiba, Londrina, Maringá, Piraquara, Pitanga. No Rio

Grande do Sul, em Cruzeiro do Sul, Encruzilhada do Sul, Ijuí, Lajeado, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul. No

Estado de Santa Catarina, em Florianópolis, Herval do Oeste, Indaial, Joinville, Palhoça.

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cima da faixa branca com destaque. Há, na figura da vereadora como organizadora, o

entendimento de que ela foi capaz de tornar o evento exequível.

Ao conseguirem organizar um evento com diversas etapas, ocupando vários locais da

cidade e contando com a colaboração de muitos segmentos sociais, os emissores instituíram

um lugar de poder para si. Tiveram variados interlocutores de acordo com a etapa do evento,

algumas delas abertas a um público amplo, e outras destinadas a um público interessado nas

questões da saúde mental. Os antagonistas, como ocorre em outros cartazes analisados, são

aqueles que fazem circular uma fala pró-manicomial, representados discursivamente como os

que não tratam, mas trancam.

Os enunciados são dois e se completam. No primeiro, afirma-se por meio da

negação. As palavras “trancar” e “tratar” opõem-se entre si. Apesar de ambas terem sido

escritas com letras maiores comparadas ao restante, a oposição existente, ou seja, “tratar”,

recebeu letras menores. O enunciado principal nega que o tratamento possa ocorrer por meio

do confinamento. Deixa ao receptor a pergunta: Se tratar não é trancar, então qual forma e

tratamento devem ser adotados? O desenho e o enunciado, inseridos na parte de baixo,

complementam o primeiro enunciado, pois indicam como remédio a liberdade.

A circulação dos cartazes, é provável, deve ter sido realizada em Londrina e regiões

circunvizinhas de forma ampla, pois algumas das etapas possibilitavam a participação do

público em geral.

O cartaz aparenta leveza; tal aspecto é proporcionado pela figura do pássaro branco,

estilizado, em sua parte central, fazendo referência à liberdade. Incluído entre o slogan

principal e a data comemorativa, o pássaro reforça o slogan secundário Liberdade: o melhor

remédio.

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Figura 23 – Análise do Cartaz 10

Fonte: Elaboração própria.

O IV Encontro Nacional do Movimento de Luta Antimanicomial ocorreu no período

de 22 a 26 de setembro de1999, em Maceió. Cerca de 1.500 usuários, familiares e técnicos

participaram do evento, uma homenagem à dra. Nise da Silveira.15

Na ocasião, foram

abordados alguns temas, tais como: alternativas de moradia para os usuários, cooperativas

sociais, financiamentos e redirecionamento dos recursos pertinentes à Saúde Mental para os

serviços substitutivos; aprovação, na Câmara dos Deputados, do texto que propõe a extinção

15

Nise da Silveira, médica psiquiátrica, natural do estado das Alagoas, falecida aos 94 anos, no mês de outubro

de 1999, desenvolveu, na cidade do Rio de Janeiro, grande parte do seu trabalho. No Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), desenvolveu ateliês de modelagem e pintura para os internos, privilegiando formas de tratamento não

agressivas, e lá viu surgir artistas plásticos que adquiriram renome internacional. Em 1952, no CPPPII, fundou o

Museu do Inconsciente, um centro de estudo e pesquisa destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos

ateliês da instituição. Em 1956, desenvolveu o projeto da Casa das Palmeiras, uma clínica voltada para o

tratamento de pacientes externos. Foi membro fundadora da "Societé Internationale de Psychopathologie de

l'Expression", sediada em Paris. As suas pesquisas a tornaram reconhecida internacionalmente e agraciada com

prêmios e condecorações em diversas áreas da ciência.

(www.museuimagensdoinconsciente.org.br/html/nise.html).

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progressiva dos manicômios.16

As mesas-redondas possibilitaram o debate de questões

significativas ao movimento e orientadoras das práticas institucionais realizadas em todo o

país, questões que colocavam em pauta o amparo legal e a viabilização de produções de novos

sentidos na construção da identidade de indivíduos portadores de sofrimento psíquico

(PORTO, 1999).

O cartaz anunciava o IV Encontro Nacional do Movimento de Luta Antimanicomial.

Para tanto, lançava mão de uma obra do pintor Emygdio de Barros e o slogan “Novas Formas

de Produção de Sentidos”. Como ocorreu em outras peças já analisadas, os emissores desse

cartaz não assumem com clareza o lugar de sujeitos da enunciação, que é percebido de

maneira indireta pelo título do evento (Encontro do Movimento) e pelo endereço da sua

página na internet, www.movimentoantimanicomial.org.br, inserido de forma discreta.

Também os enunciadores têm sua presença graficamente minimizada: os patrocinadores

(CFP, CRP- 06, CFM), os apoiadores (Ministério da Saúde/Corpo de Bombeiros de

Alagoas/Polícia Municipal de Alagoas, CRP 15/ Sun Net-Provedor de Internet/ Secretaria

Municipal de Saúde Mental/ Secretaria de Estado de Saúde de AL /SEsau UNipsico-AL), os

realizadores do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial e Emydio, autor da tela. O

apoio, realização e patrocinadores foram colocados numa faixa azul do lado direito.

Acompanham o sentido das informações do cartaz apenas os patrocinadores. Os apoiadores e

realizadores, inseridos verticalmente, são de difícil leitura, ao contrário do que ocorre com os

nomes dos patrocinadores, que são fáceis de serem entendidos.

O emissor procura instaurar seu lugar de poder, mas, ao propor novas formas de

produção de sentido, coloca-se de forma hermética. O slogan não é de fácil compreensão,

entre outros, trata-se de um conceito da análise de discurso. Em seu uso, uma associação com

a construção da identidade de indivíduos portadores de sofrimento psíquico. Há de se lembrar

que é no ano de 1999 que a Lei n. 10 216 volta a tramitar na câmara, são liberados, ainda,

recursos para 400 Caps e estabelecido um bônus de incentivo para a desinstitucionalização.

Baseados nessas condições históricas, os atores antimanicomiais objetivam transformar a

relação da sociedade com as pessoas em sofrimento mental. Entre os temas discutidos no

encontro estão alternativas de moradia para os usuários, cooperativas sociais e os serviços

substitutivos evidenciando a criação de um novo processo de significação, com a proposta de

novas formas de produção de sentido. O slogan, presente neste e em outro cartaz do encontro,

16 Este projeto, de autoria do Deputado Paulo Delegado (PT/MG), em tramitação desde 1989 no Congresso

Nacional, já obteve aprovação nas duas casas, Câmara e Senado, havendo retornado para a Câmara dos

Deputados para votaçãofinal e definitiva junto a substitutivo do senador Sebastião Rocha (PDT/AP). A votação

será em acordo entre o texto do projeto original de 1989 e esse substitutivo.

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foi o tema do IV Encontro Nacional de Luta Antimanicomial. Os destinatários foram os

técnicos, usuários e familiares, aqueles que desejavam participar do encontro e os que

pensavam em produzir novas formas de sentido na construção da identidade dos indivíduos

com transtorno mental. Uma marca comum, seguida em todos os cartazes do movimento, é a

polêmica implícita no enunciado do slogan, que, ao propugnar novas formas de produção de

sentido, traz para a cena enunciativa os responsáveis pelas antigas formas de sentido,

anunciando e possibilitando prever o tom do debate.

A pintura de Emygdio, pertencente ao acervo do Museu das Imagens do Inconsciente

e escolhida para apontar os novos caminhos propostos, recebeu grande destaque na concepção

do cartaz.

Artista reconhecido internacionalmente por seu trabalho, sua obra imprime

significação ao slogan “Novas Formas de Produção de Sentido” por representar não só o

potencial artístico de pessoas com transtornos mentais, geralmente consideradas incapazes,

como também novos métodos de tratamento desses transtornos.

4.2.3 Síntese dos principais elementos analíticos

Para efeito comparativo, os dados analisados até aqui foram organizados nos quadros

abaixo:

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Grupo II

Quadro 4 – Sujeito da enunciação, enunciadores e dispositivos de enunciação

Cartaz 6 Belém (PA)

Cartaz 7 (CFP) Cartaz 8 (MG) Cartaz 9

Londrina (PR) Cartaz 10 – (Al)

Sujeito da

Enunciação

Fórum Saúde Mental Conselho Federal de

Psicologia Fórum Mineiro de

Saúde Mental e

Associação dos Usuários dos

Serviços de Saúde

Mental de Minas Gerais

Associação

Londrinense de

Saúde Mental e

Vereadora Elza

Correa

Movimento Antimanicomial

Enunciadores

Prefeitura de Belém

FUMBEL

Espaço em branco

possibilitando a

inclusão dos organizadores de

eventos em qualquer

local do Brasil.

Museu do

Inconsciente e

Darcãngelo (autora da obra) e Antônio

Vianna Alves (foto).

Secretarias de saúde

de Belo Horizonte e

Betim

Vereadora Elza

Correa

Banco do Brasil Hotel Bourbon

Secretaria Municipal

de Saúde

Paulo Amarante

Adélia F. Buranell,

Ana Maria Cruz, Elza Correia, Drª Patrícia

D. de Castro, Dr

Paulo Tavares, Dr

Percy A. Galimberty.

ACESF

Assoc. Odontológica

do Norte do Paraná Assoc. Médica de

Londrina; CRP;

Patrocinadores:

CFP; CRP 06; CFM

Apoio:

Ministério da Saúde/Corpo de

Bombeiros de Alagoas/Polícia

Municipal de Alagoas, CRP 15/ Sun Net- Provedor de Internet/

Secretaria Municipal de Saúde

Mental/ Secretaria de

Estado de Saúde de Alagoas

/SESAU / Unipsico (AL).

Realização:

Secretaria Nacional do Movimento da Luta

Antimanicomial,

Núcleo Estadual de Saúde Mental Alagoas

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Jabur; Toyopar;

Café Coral; O

Casarão; Secretaria de Administração

PML; UEL - Núcleo

de Tecnologia

Educacional

Emygdio

Núcleos da luta antimanicomial

Site Movimento Antimanicomial e emails:

[email protected] e

[email protected]

Chama a

atenção

O sujeito da

enunciação se coloca

de forma discreta como apoiador.

Grande bandeira que

ocupa o lado direito. Mobilização de

diversos segmentos

da sociedade para o evento.

A pintura que ocupa grande

parte do cartaz e o slogan não é

de fácil compreensão.

Enunciado

“Loucos pela

cidadania”

Acompanhado de quadro de janela

gradeada colocado na

parede.

Pássaro e avião com

pontilhado para fora

das grades.

Enunciado verbo- visual.

“Intervindo na

cultura, construindo a

cidadania”.

Slogan vem

acompanhado de uma

pintura representando a loucura e seu

confinamento.

Enunciado verbo-

visual.

“Liberdade ainda que

TAM TAM”.

Enunciado colocado em uma bandeira.

Enunciado verbo-

visual.

“Trancar não é

tratar”;

“Liberdade o melhor remédio”.

Slogan vem

acompanhado de um pássaro.

Enunciado verbo-

visual.

Enunciado verbo- visual.

Slogan “novas formas de

sentido” complementado por imagem do quadro.

Fonte: Elaboração própria.

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106

Quadro 5 – Emissores, destinatários, antagonistas

Cartaz 6 Cartaz 7 Cartaz 8 Cartaz 9 Cartaz 10

Emissores Fórum de Saúde Mental CFP Fórum Mineiro de

Saúde Mental -

ASUSSAM

ALSM e Vereadora Elza Correia.

Movimento Antimanicomial

Destinatários

Sociedade em geral Público no geral Público no geral Público no geral

Público vinculado a

saúde mental

CRP São Paulo

Técnicos, usuários e familiares dos serviços

de saúde mental

Antagonistas Defensores dos

manicômios Defensores dos

manicômios Defensores dos

manicômios Defensores dos

manicômios Defensores dos

manicômios

Representação

Antagonista

O antagonista representado como um

quadro na parede.

O antagonista representado como

aprisionador.

Antagonista representado como o

que nega a liberdade.

Antagonista tratado como quem não trata e

tranca

Antagonista apontando para os defensores das

velhas formas de

produção de sentidos na construção da

identidade dos

indivíduos com

transtorno mental

Fonte: Elaboração própria.

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107

Quadro 6 – Condições de produção

Produção Cartaz 6 Cartaz 7 Cartaz 8 Cartaz 9 Cartaz 10

Local

Praça da República

(local do evento)

Belém (circulação)

Qualquer local do

Brasil (circulação ou

evento)

Belo Horizonte e

região metropolitana.

(circulação)

Londrina (PR) -

Diversos locais

Paripueira /Alagoas

Público

Interessados/ gratuito Qualquer serviço,

Secretaria de Saúde ou

Núcleo do Movimento Antimanicomial de

qualquer lugar do

Brasil

Público no Geral Algumas atividades

comportam público

geral outras público específico.

Trabalhadores usuários

e familiares dos

serviços de saúde mental de todo o

Brasil.

Forma Organização /

Temas

Forma org.: Ato show

com tema: Cidadania

Indefinido - Pode-se

afixar o cartaz e não se

realizar eventos ou

pode se realizar eventos –

O tema proposto foi

cultura e cidadania

Tema: liberdade Exposição de painéis,

ato público, palestra,

mesa redonda

Mesas redondas, fóuns

de debate, encontro

entre delegações, e

produções culturais

Participação proposta

ao público

Platéia Pode variar Conhecimento da causa através da leitura

do cartaz

Várias Direta

Destaques Quadro na parede retratando fim dos

manicômios

Quadro retratando condições manicomiais

Bandeira similar a da inconfidência mineira

e slogan

Cor vermelha e pássaro colocado no centro

Slogan

Fonte: Elaboração própria.

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4.2.4 Análise comparativa dos cartazes

As vozes presentes nos cartazes escolhidos vieram a público para realizar eventos,

organizar atos públicos, apoiar, patrocinar ou promover a luta antimanicomial. Na década de

1990, a presença da sociedade civil organizada é o maior destaque. Fóruns, associações e a

figura do movimento são realizadores e organizadores dos eventos antimanicomiais. Os

cartazes e os eventos a eles relacionados não ocorrem sem apoio. Predominam como

apoiadores os estados, municípios e o Conselho de Psicologia, que marcam forte presença no

movimento. Algumas vezes, o apoio se divide por importância. No cartaz 9, notamos a

atuação de uma vereadora na categoria dos organizadores, além de enumerados muitos

apoiadores. Nos cartazes 9 e 10, há também a figura do patrocinador. Assim, formamos um

painel das vozes participantes da enunciação, aquelas que, apesar de não falarem, expressam

seu ponto de vista a partir da enunciação (MAINGUENEAU, 1997).

Os cartazes do grupo 2 estabelecem uma continuidade com seus antecessores, os

cartazes do grupo 1. Nos anos de 1970/1980, eles não eram pródigos em imagem, mas havia o

predomínio de figuras de pessoas em sofrimento. O cartaz 2 mostra a imagem de um homem

negro preso em grilhões, e o cartaz 3 apresenta pessoas amontoadas e confinadas na

comemoração dos 41 anos do CPPII. A necessidade de mudança acompanhou todos os

cartazes do grupo 1, que questionaram “O que é a ‘Assistência’ Psiquiátrica no Rio de

Janeiro”, trouxeram experiências que estavam sendo implementadas em outros países,

comemoraram o aniversário do hospício mostrando a triste realidade dos que ali habitavam,

criaram políticas públicas e se organizaram como movimento social.

No grupo 2, encontramos cartazes de um movimento presente nas diversas regiões do

Brasil. O Fórum de Saúde Mental (PA), o CFP, Fórum Mineiro de Saúde Mental, a Asussam

(MG), Associação Londrinense de Saúde Mental (PR), o Núcleo Estadual de Saúde Mental

Alagoas, as Secretarias de Saúde, Ministério da Saúde, CRPs e o Movimento Nacional foram

algumas das vozes que se articularam para produzir sentidos antimanicomiais na década de

1990.

A luta “Por uma sociedade sem manicômios” apresentou-se com avanços. Alguns

temas se repetem nos cartazes. O momento impôs discussões sobre formas de intervenção

(cartazes 7, 9 e 10). Os cartazes 7 e 10 foram acompanhados de pinturas realizadas por artistas

do Museu das Imagens do Inconsciente. Aqui se estabeleceu um diálogo com trabalhos

pioneiros e cartazes da década de 1980, que questionam a assistência. O cartaz do IV

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Encontro Nacional do MLA (1999) dialogou com o cartaz do CRP (1987). Percebe-se a

questão da intervenção proposta nos dois cartazes, ambos escolheram para falar do tema

imagens da mesma origem. O cartaz 7 (CRP) estabeleceu que, ao se intervir na cultura, a

cidadania é construída; já o cartaz 10 trouxe para o Encontro Nacional a discussão sobre as

“Novas formas de produção de sentido”. Há de se ressaltar que ambos alcançaram o

movimento antimanicomial nacionalmente.

As questões do encarceramento e da liberdade permearam os cartazes. Se o slogan

usado foi “Por uma sociedade sem manicômios” e se explicou que “trancar não é tratar”,

também se empunhou uma bandeira pela liberdade, apresentando-a como remédio, além de

ser feito um caminho para fora do confinamento (cartaz 6).

A proposta de discussão do cartaz 3 “Saúde Mental como Direito e Cidadania”, no

ano de 1985, dialoga com os cartazes da década de 1990. A cidadania apareceu como um

desejo (cartaz 6), uma construção (cartaz 7) e luta revolucionária (cartaz 8). Os cartazes

traçam caminhos possíveis aos anseios da década de 1980 e, ao mesmo tempo, conversam

entre si.

Eles levaram para a esfera pública a questão da cidadania daqueles que são

portadores de transtorno mental. Os limites entre os direitos e as práticas sociais foram

questionados. Há, nos cartazes da década de 1990, a nítida preocupação de se recolocar na

esfera pública a questão da cidadania. No cartaz 7, articula-se a questão da cidadania com a da

intervenção. A articulação, no cartaz 6, foi estabelecida com a liberdade. A conjuração

mineira, ressaltada no cartaz 9, não nos deixa esquecer que cidadania e liberdade são

conceitos que se encontram. O conceito construído em bases iluministas imprime à

racionalidade grande importância. O sujeito louco, não sendo portador da racionalidade, sofre

exclusão da cidadania. A reivindicação, marcada nos cartazes, objetivou ampliar o conceito de

cidadania, buscou construir uma sociedade mais tolerante, que aceitasse a participação do

diferente.

Os cartazes 6, 7 e 8 conversam entre si, comemoram 10 anos de luta antimanicomial

com seus antecessores, que originaram o movimento antimanicomial, e seus sucessores, que

devem criar compromissos sociais para superar definitivamente as questões manicomiais.

O uso de imagens conjugadas a frases de efeito é uma característica dos cartazes da

década de 1990. Em todos eles, as condições de confinamento são lembradas, assim como

aquelas que envolvem a situação de não confinamento. Imagens e frases dialogam entre si e

alternam as referências.

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110

Os cartazes de Minas Gerais, Londrina e Belém estabelecem uma interação.

Utilizam-se bastante das cores, dos desenhos leves e slogans fortes, aproximando-se em sua

estratégia discursiva.

4.3 GRUPO III

No terceiro grupo, analisamos os seguintes cartazes:

Dia Nacional da Luta Antimanicomial 18 de maio – RJ (2013)

Por uma Sociedade sem Manicômio – MT (2013)

Semana Saúde Mental – SC (2013)

No CAPS, somos todos loucos... uns pelos outros – TO (2013)

Se não nos deixar sonhar, não os deixaremos dormir – CFP (2013)

VI Semana da Luta Antimanicomial – PB (2013)

As cinco regiões do Brasil foram representadas no grupo 3. Os cartazes são todos

comemorativos do Dia Nacional da Luta Antimanicomial do ano de 2013. Há, ainda, o cartaz

do CFP, com circulação nacional.

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111

Figura 24 – Cartaz 11 Figura 25 – Cartaz 12 Figura 26 – Cartaz 13

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

Figura 27 – Cartaz 14 Figura 28 – Cartaz 15 Figura 29 – Cartaz 16

Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps. Fonte: Arquivo Laps.

4.3.1 Cena social 3

Os anos de 2000 trouxeram avanços normativos importantes para a Reforma

Psiquiátrica brasileira. Em 6 de abril de 2001, o Congresso Nacional decretou e a Presidência

da República sancionou a Lei 10.216. A aprovação ocorreu na forma de um substitutivo do

Projeto de Lei Paulo Delgado. Em seu formato original, o projeto tramitou por 12 anos no

Congresso Nacional. A lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtorno

mental, redireciona o modelo assistencial oferecendo preferencialmente serviços de base

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comunitária para o tratamento do transtorno mental, mas não institui mecanismos precisos

direcionados à progressiva extinção dos manicômios.

Realizado em outubro de 2001, o V Encontro Nacional do Movimento da Luta

Antimanicomial trouxe o lema “Como estamos? O que queremos? Para onde vamos?”. A

intenção era mostrar a busca pela identidade do movimento por parte de seus atores políticos.

Ao encontro, compareceram delegações de 17 estados da federação com aproximadamente

600 participantes. Durante a Plenária Final, não houve uma consolidação por temas, assim

optou-se pela elaboração de um único relatório com dois subtítulos: “Propostas de

Organização do Movimento" e "Propostas para a III Conferência Nacional de Saúde Mental".

As discussões relacionadas à organização do movimento apresentavam proposições

excludentes entre si. Os ânimos alterados impossibilitaram a finalização dos trabalhos naquele

dia. O relatório “Propostas de Organização do Movimento” não foi concluído, tampouco se

chegou a um consenso. Decidiu-se, portanto, que essa parte do relatório, as escolhas a respeito

do estado que se tornaria sede da nova Secretaria Executiva Nacional e dos representantes na

Comissão Nacional de Saúde Mental seriam efetuadas em outra plenária nacional.

Março de 2002 foi a data escolhida para o novo encontro, que ocorreu no município

de São Paulo/SP, com representantes dos estados de Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Goiás,

Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins. Ao

longo do debate, foi “identificada uma ‘crise interna’, instaurada a partir dos encontros

nacionais anteriores e com repercussões e desdobramento no V Encontro Nacional e na

Plenária Nacional de sua continuidade” (ENCONTRO NACIONAL DO MOVIMENTO DA

LUTA ANTIMANICOMIAL, 2004, p. 8). Os representantes na Comissão Nacional de Saúde

Mental foram escolhidos, nenhum estado, porém, apresentou candidatura para sediar a

Secretaria Executiva Nacional na gestão 2002-2004. Com o intuito de formar uma secretaria

ampliada, composta de representantes dos estados presentes, organizou-se uma nova plenária.

Coube aos núcleos locais a escolha da representação de cada estado, e o relatório da “Proposta

de Organização do Movimento” foi rediscutido.

Em outubro de 2002, no município de São Paulo, SP, ocorreu a II Plenária Nacional.

Os representantes dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Paraná e Santa Catarina

estavam presentes e coordenaram em conjunto o encontro. “Os militantes presentes à II

Plenária Nacional consensualmente avaliaram o Movimento Antimanicomial enquanto força

social de transformação, sendo o espaço de Plenária Nacional considerado legítimo e

preferencial para a definição dos rumos do movimento” (ENCONTRO..., 2004, p. 9). Com a

pauta redefinida, discutiu-se: a avaliação da conjuntura política nacional e sua relação com o

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movimento antimanicomial; o formato da Secretaria Executiva Nacional na gestão 2002-

2004; o VI Encontro de Usuários e Familiares; e participação do movimento no Fórum Social

Mundial/2003/Porto Alegre.

As propostas inconciliáveis determinaram mudanças na estrutura do movimento.

Segundo Lobosque (2003), houve crescimento no número de participantes, mas sem a devida

preparação política. O excesso de participantes desprovidos de reflexão necessária para as

tomadas de decisão dificultou os debates e ocasionou o engessamento das propostas. Mourão

(2012, p. 60) atribui a discussão sobre a forma de organização do movimento “para se

enfrentar a conjuntura e a atuação direta nas esferas políticas mais amplas” como disparador

do rompimento entre os dois grupos.

O grupo que acreditava na formação de núcleos para promover a articulação e

facilitar a circulação de informações tornou-se, após o rompimento, a Rede Nacional

Internúcleos de Luta Antimanicomial (Renila), constituída em 2003 a partir de uma decisão

coletiva.

O MNLA empenhava-se na “defesa de projetos e serviços inovadores de base local e

da organização de base de empoderamento dos usuários e familiares contra formas de

aparelhamento, politização e centralização excessivas e verticalizadas” (VASCONCELOS,

2012, p. 60). Na opinião do autor, tais posições só ficaram claras com o passar do tempo.

Mourão avalia que a diminuição da capacidade de luta nas esferas mais altas não foi

totalmente prejudicada, pois Pedro Gabriel Delgado, uma dentre as importantes lideranças,

esteve à frente da Coordenação de Saúde Mental, no Ministério da Saúde, durante todo o

governo Lula, o que, como observaremos mais à frente, garantiu importantes conquistas

políticas.

Vasconcelos (2007, p. 188) faz um paralelo entre as duas correntes. A divisão,

conforme o autor explica, tem bases geográficas muito definidas. Com poucas exceções, uma

vez que não há correntes opostas nos estados, considera o embate polarizado e o

enfrentamento “com forte nível de pessoalização”. Ao analisar a cisão, Mourão comenta o

fato de que as lideranças que se uniram à Renila estavam mais ligadas ao Sistema Conselhos

de Psicologia – Conselho Federal e Conselhos Regionais de Psicologia – e assim puderam

contar com a base organizacional proveniente do Sistema de Conselhos de Psicologia, vindo a

favorecer maior articulação nacional e “eficácia na luta política dentro das diversas instâncias

do Estado”. O autor pondera se as condições econômicas e organizacionais estáveis, a

centralidade e o apoio baseado somente em uma categoria não poderiam suscitar o

afastamento entre lideranças e bases. A corrente MNLA não dispõe de meios organizacionais

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próprios, possui rede de comunicação precária, posicionamentos com baixa visibilidade

pública e postura explícita visando à organização de grupos de usuários e familiares.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental foi realizada em Brasília (DF), em

dezembro de 2001. Sua convocação ocorreu logo após a promulgação da Lei 10.216. No

decorrer do encontro, recebeu destaque a preocupação com a efetivação dos avanços

propostos na lei. O lema “Cuidar sim, excluir, não – efetivando a Reforma Psiquiátrica com

acesso, qualidade, humanização e controle social” foi discutido por meio do financiamento,

recursos humanos, controle social, acessibilidade, direitos e cidadania. As etapas municipal e

estadual envolveram cerca de 23 mil pessoas, e a fase nacional 1.480 delegados

(RELATÓRIO FINAL DA III CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 2002).

A III Conferência Nacional foi precedida por centenas de conferências estaduais e

municipais, além da ampla participação de representantes dos diversos setores envolvidos

com a Reforma Psiquiátrica (PITTA, 2011). As mesas-redondas, painéis específicos,

proposição de moções, 35 grupos de trabalho e plenária final assinalaram o aspecto relevante

da agilidade para efetivar a Reforma Psiquiátrica, com a superação dos hospitais psiquiátricos

e, ao mesmo tempo, criação da rede substitutiva. A importância dos municípios foi reforçada

tendo em vista a implementação de uma rede de serviços territorializados e integrados à rede

de saúde. Também marcada de forma enfática a questão da elaboração de leis que

regularizassem as políticas municipais de atenção integral à saúde mental. Durante a

conferência, foi proposta, ainda, a regulamentação de instâncias colegiadas de participação no

campo da saúde mental. Ações de fiscalização dos serviços de saúde mental receberam efetiva

defesa por meio da procura por respaldo jurídico. Para esse intuito, sinalizou-se ser

fundamental concretizar parcerias com o Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil

e organizações de direitos humanos que favoreçam a não violação dos direitos dos portadores

de transtorno mental.

No ano de 2002, uma série de normatizações do Ministério da Saúde instituíram

mecanismos para a redução de leitos psiquiátricos em todo o Brasil. Não se deve, porém,

desconsiderar que as mudanças ocorreram de forma diferente em cada região do Brasil e

dependeram da pactuação realizada entre as três esferas do governo e da aceitação das

transformações localmente.

Há de se destacar o Programa Nacional de Avaliação do Sistema

Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reconstrução da

Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PHR) e o Programa de Volta para Casa.

(Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil).

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A Renila promoveu seu primeiro encontro em 2004. Naquela ocasião, foi

apresentado o manifesto contendo os princípios, a estruturação, o funcionamento e as

diretrizes da coordenação (BARBOSA; COSTA; MORENO, 2012). A Rede Nacional

Internúcleos da Luta Antimanicomial constituiu-se a partir da decisão coletiva de

representantes de 13 núcleos da luta antimanicomial de todo o Brasil, reunidos em dezembro

de 2003, em Brasília, quando foi divulgado o Manifesto pela Luta Antimanicomial. O IV

Encontro Nacional da Renila ocorreu em Belo Horizonte, Minas Gerais, outubro de 2013

(http://osm.org.br/osm/sobre/).

Os Encontros Nacionais da Luta Antimanicomial vêm se repetindo. No ano de 2005,

foi realizado, em São Paulo, o VI Encontro, que trouxe o lema “Autonomia do movimento:

fortalecendo ideais, revendo práticas”. O VII Encontro Nacional e o VIII Encontro de

Usuários e Familiares, em 2007, ocorreram em Vitória, no Espírito Santo, e marcaram a

comemoração pelos 20 anos de luta antimanicomial.

Nesse mesmo ano, outro evento antimanicomial de grande relevância foi a "Oficina

Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para pessoas em Sofrimento Mental e

em situação de Risco Social". Realizado no Rio de Janeiro, estiveram presentes ao encontro o

Ministério da Cultura (Minc), por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural,

e o Ministério da Saúde, representado pela Fundação Oswaldo Cruz. A oficina resultou na

política da diversidade cultural, observando objetivos e princípios da Convenção sobre a

Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.17

A proposta da oficina foi

construir diretrizes e ações para subsidiar a elaboração de políticas públicas do Minc em

relação aos sujeitos e grupos em sofrimento mental e em situações de risco social. Como um

dos resultados práticos mais importantes da Política Nacional Loucos pela Diversidade,

citamos a criação do prêmio de iniciativas artísticas culturais inovadoras, com foco em

fortalecer e dar visibilidade ao trabalho que vem sendo realizado por pessoas, grupos,

organizações ou instituições envolvidas com os portadores de algum sofrimento psíquico.

No ano de 2009, ocorreu a Marcha dos Usuários, em Brasília (DF), organizada pela

Renila. O evento ganhou repercussão nacional ao reunir cerca de 1.800 usuários de saúde

mental de todo o Brasil. A marcha significou um espaço de visibilidade e expressão política

dos usuários de saúde mental, com a finalidade de: defender o SUS; defender a Lei 10.216/01;

reivindicar a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental; reivindicar a Reforma

Psiquiátrica Antimanicomial; exigir a efetiva implantação do Programa De Volta Para Casa.

17 Convenção adotada pela Assembleia Geral da Unesco, em outubro de 2005, e promulgada no Brasil pelo

Decreto-Lei 6.177, de agosto de 2007.

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Na Esplanada dos Ministérios, os usuários fizeram pronunciamentos e participaram de

diversas atividades culturais. Diversos políticos e gestores públicos receberam um grupo de

representantes dos usuários. Dentre as várias audiências com ministros e deputados, foram

recebidos pela ministra interina da Saúde, Márcia Bassit, o ministro dos Direitos Humanos,

Paulo Vanuchi, e o secretário Américo Córdula, da Secretaria de Identidade e Diversidade

Cultural (SID/Minc). Pedro Gabriel Delgado considerou a Marcha dos Usuários pela Reforma

Psiquiátrica Antimanicomial um “momento histórico”, pois, pela primeira vez na história, um

grupo de usuários de saúde mental foi recebido por gestores do Ministério da Saúde.

(http://www.redehumanizasus.net/node/8188).

O VIII Encontro Nacional da Luta Antimanicomial e o IX Encontro Nacional de

Usuários e Familiares ocorreu em São Bernardo, São Paulo, no ano de 2009, com o tema

“Reforma Psiquiátrica: a revolução na Comunidade! É hora de se firmar”.

O ano de 2010 marcou o início da IV Conferência Nacional de Saúde Mental –

Intersetorial (CNSM-I), com sua etapa nacional realizada em Brasília. O curto tempo entre

sua convocação e realização, de abril a julho, não impediu que 46 mil pessoas participassem

do processo em suas três etapas (municipal, regional e nacional), 1.220 municípios estivessem

presentes nas 359 conferências municipais e 205 conferências regionais (Relatório Final IV

CNSM-I).

O tema da IV Conferência, “Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolid

ar avanços e enfrentar desafios”, convocou setores diretamente envolvidos com as políticas

públicas na área da saúde mental. A participação intersetorial respondeu às novas exigências

ocasionadas pelas mudanças no modelo de atenção, com avanços concretos na expansão e

diversificação da rede de serviços de base comunitária.

As decisões da conferência foram ao encontro de um cenário que trouxe novas

demandas. Dentre elas, mencionamos: terceirização e precarização do emprego; surgimento

de tendências internas organizadas; participação ativa e autônoma dos usuários e familiares;

presença de atores e agências intersetoriais; novas características adquiridas pelo trabalho e

novas tecnologias em saúde mental no SUS; a apresentação do serviço de internação como

única forma de combate ao crack; as limitações de tempo ocasionadas pelo calendário político

eleitoral.

A conferência, em seu relatório final, afirmou os princípios mais gerais da Reforma

Psiquiátrica, com a superação do modelo asilar pela construção de uma rede substitutiva

diversificada e a cidadania das pessoas com transtorno mental e seus familiares. Além disso,

manifestou-se contrária a todas as propostas de privatização e terceirização de serviço;

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afirmou a importância de um sistema público e estatal para serviços de saúde mental;

classificou como essencial a participação dos usuários na rede de serviços, na produção do

próprio cuidado em saúde mental e no ativismo, com os serviços e os dispositivos de controle

social.

Em 2011, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, foram realizados o IX Encontro

Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial e o X Encontro Nacional de Usuários e

Familiares. Sob o tema “Luta Antimanicomial e a intersetorialidade no contexto do SUS”,

confirmaram a construção ampla do campo da saúde mental, não podendo, assim, deixar mais

de apreendido como transversal a outros setores sociais e outras políticas públicas.

Figura 30 – Análise do Cartaz 11

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz da região sudeste veio do Rio de Janeiro, capital. Durante as semanas que

antecederam o Dia Nacional as reuniões do Movimento Antimanicomial ocorreram em uma

sala do Sindicato dos Médicos. Os participantes eram em torno de 30 pessoas. Usuários,

familiares, técnicos, representantes de políticos, de conselhos de classe, de coordenações de

Saúde Mental (estado e alguns municípios) e da secretaria de trabalho do estado compunham

as reuniões. No início, as pessoas se apresentavam, eram dados informes e se iniciava a

reunião. Alguns momentos das reuniões foram acalorados outros transcorreram sem

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118

sobressaltos18

. Consideramos que o sujeito da enunciação, neste cartaz, é a Luta

Antimanicomial, pois não há nenhuma entidade assumindo esta convocação. De forma

intertextual, podemos considerar o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial,

historicamente associado à luta antimanicomial. O outro enunciador, que ocupa esse lugar

através de sua assinatura, é o autor do desenho. A ausência de uma assinatura do realizador

do evento, aquele que convoca através do cartaz, nos permite algumas reflexões.

Os eventos comemorativos do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, na cidade do

Rio de Janeiro, não se restringiram ao ato da Praça XV, assim a ausência do realizador do ato

pode causar confusão. A Prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, realizou um evento no

Parque Garota de Ipanema. O núcleo, que se coloca contra a privatização da saúde, tem um

embate com a prefeitura, que vem terceirizando os serviços de saúde mental. O mesmo

slogan é apropriado por diferentes atores políticos e no processo da luta antimanicomial há

discordâncias variadas entre os múltiplos atores que se incorporam a causa antimanicomial.

A enunciação conjuga o verbal e a imagem. O indivíduo que distribui bandeiras com

o lema "cidadania" complementa os slogans “Pelas ruas e becos da cidade: liberdade! e “Não

à privatização e encarceramento da vida”. A cidadania e a liberdade são exaltadas a

privatização dos serviços e o encarceramento é rejeitado. Considerando a conjuntura política e

social daquele momento e os fatos públicos ocorridos pouco depois, podemos conjecturar que

a ocupação das ruas por bandeiras cidadãs aponta para um momento em que a cidadania

estava potencializada, como se o desenho estivesse conectado aos acontecimentos de junho de

2013. Haveria um diálogo entre a enunciação e os acontecimentos que se avizinhavam? As

manifestações que tomaram as ruas em junho de 2013 guardam uma relação de contiguidade

com o enunciado do cartaz? Impossível responder com certeza. O que estamos querendo

relevar é que cada cartaz desses que analisamos se inscrevem em uma rede simbólica

intertextual que, por vezes, transcende o movimento antimanicomial, estritamente,

estabelecendo conversação com outras lutas sociais..

O diálogo também ocorre com outros cartazes da região sudeste do mesmo ano. O

tema da liberdade e a questão da privatização conformam o slogan do cartaz de São Paulo (a).

Slogans que têm como tema a liberdade ocupam os cartazes do Espírito Santo (b) e da

Prefeitura do Rio de janeiro (c).

18 Durante as reuniões pude acompanhar a organização do evento, as parcerias realizadas, os desafetos

manifestados, da divisão de tarefas, a escolha do desenho do cartaz, as decisões envolvendo a diagramação do

cartaz, a forma de distribuição, enfim as diversas etapas da confecção dos cartazes, da elaboração dos demais

materiais e do evento.

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Figura 31 – Montagem com cartazes da região sudeste de 2013

(11a) (11b) (11c)

Fonte: Elaboração própria.

O emissor do Cartaz 11 é o Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial, mas sabemos

isto por ter acompanhado o processo de sua produção, pois ele não se enuncia como visto

acima. Sendo parte de um movimento social, sua identificação explícita determinaria o

caráter político do evento e reafirmaria seu lugar de poder, no entanto eles não se apresentam.

Consideramos que o emissor, ao abrir mão do seu lugar de poder como a voz que convoca,

que mobiliza, inclui a sua luta no conjunto de lutas da sociedade, como nos mostra o desenho

do cartaz. Ou seja, o movimento é dialético: ao sair de cena, ele imprime mais universalidade

à luta antimanicomial.

Os antagonistas são aqueles que encarceram a vida e privatizam os serviços públicos.

Os destinatários do cartaz são os trabalhadores de saúde, usuários, familiares, conselhos de

classe, faculdades da área da saúde e outros movimentos sociais.

A produção do cartaz foi realizada através de um processo coletivo. Os sentidos

dados ao cartaz foram produzidos através dos olhares dos diversos atores antimanicomiais,

que vinculados a organização do evento participavam das reuniões e do grupo de e-mails. O

processo envolveu um concurso de desenhos realizados por usuários e a feitura do cartaz

vencedor do certame.

Os cartazes foram impressos pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de

Janeiro. Nas reuniões, os atores políticos do movimento se manifestaram contra a colocação

de apoios nos espaços dos materiais gráficos. Ao contrário do cartaz, o folder que contém a

carta de apresentação, distribuída durante o evento, trouxe o nome do Núcleo e do apoio. Não

é possível saber se houve uma intencionalidade ou uma divergência, mas para a análise de

discurso o que importa são os efeitos de sentidos que vão provocar. A relação entre texto e

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contexto é necessária ao analista, mas quando o cartaz circula, as marcas do processo

produtivo desaparecem.

Os cartazes foram levados para a reunião e entregues aos participantes que se

incumbiram de distribuir em diversos locais. Pode-se pensar que a ausência de um realizador

no espaço do cartaz esteja relacionada aos seus locais de distribuição. Serviços de saúde

mental, associações de usuários e familiares, faculdades de saúde locais onde aparentemente o

evento realizado na Praça XV será associado ao Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial por

conhecimento prévio.

Figura 32 – Análise do Cartaz 12 (frente)

Fonte: Elaboração própria.

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Figura 33 – Análise do Cartaz 12 (verso)

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz 12 apresenta como sujeito da enunciação a Prefeitura de Cuiabá / Secretaria

Municipal de Saúde / Coordenação Estadual da Rede de Saúde Mental em Cuiabá, e o CRP

18 MT é o enunciador. No verso, são listados os serviços de Saúde Mental em Cuiabá. A

prefeitura se coloca na parte inferior esquerda do cartaz, sem nenhuma especificação, e o CRP

se posiciona como apoio. No lado do verso, os serviços em saúde mental do município têm

sua função explicada e seus endereços fornecidos.

O município de Cuiabá é também o emissor do cartaz. Como tal e ainda sujeito da

enunciação, apropria-se do slogan tradicional do Movimento Nacional de Luta

Antimanicomial e o associa a uma imagem de liberdade e conversa com o público para

questionar o que é a luta antimanicomial. Seu destinatário é o público em geral, aqueles que

desconhecem o Movimento Antimanicomial. Ele procura construir o outro como aquele que

não faz parte do movimento.

O texto explicativo sobre o movimento também constrói o discurso concorrente,

antagonista ao do movimento por meio de estratégias de desqualificação, criando uma

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situação de oposição entre o “bem” e o “mal”. Nesse último caso, estão situados os que

defendem o tratamento manicomial.

O cartaz 12 deve ter circulado em diversos locais da cidade de Cuiabá, já que

objetivava um público maior. O cartaz não só foi colado nos murais, como distribuído para as

pessoas interessadas em informações a respeito dos serviços de saúde.

Figura 34 – Análise do Cartaz 13

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz 13 chegou para nós em resposta a um dos muitos e-mails enviados. Foi

encaminhado por um trabalhador em saúde mental de Joinville com inserção nos Conselhos

Municipais de Saúde e Cultura. Ele gerencia um site com enfoque no Caps III de Joinville

(http://www.folhadelirio.com.br/index.php?q=_rea%20de%20atua_o) e nos conta que, no

período que antecedeu o dia 18 de Maio, ocorriam embates entre a gestão municipal e os

servidores públicos. Naquele momento, os servidores se encontravam em estado de greve, o

que refletiu, de acordo com sua percepção, certa desarticulação dos serviços substitutivos. As

circunstâncias inviabilizaram a impressão de materiais gráficos específicos.

O material enviado para nós foi realizado pelo Núcleo de Luta Antimanicomial Nise

da Silveira. Não há referência disponível a tal núcleo na internet, mas ele é mencionado no

site do Governo Municipal de Joinville

(http://www.joinville.sc.gov.br/noticia/4435N%C3%BAcleo+%E2%80%9CNise+da+Silveira

%E2%80%9D+comemora+Dia+da+Luta+Antimanicomial+neste+s%C3%Albado+%2818+5

%29.html) , em que é comentada a celebração realizada pelo núcleo no dia 18 de maio de

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2013. Também o site do Centro de Direitos Humanos de Joinville

(http://www.centrodireitoshumanos.org.br/nucleo-antimanicomial/), em alusão ao fato, traz a

bandeira (Figura 13 a) do núcleo e seus objetivos. No site da Rede Humaniza SUS

(http://www.redehumanizasus.net/taxonomy/term/1704), encontramos registros dos

acontecimentos de 2013 relacionados ao Dia Nacional de Luta Antimanicomial (Figura 13 b).

A fundação do núcleo data de 2008, realizada por entidades não governamentais,

trabalhadores de saúde mental, estudantes, usuários e familiares dos serviços de saúde mental.

O movimento reúne os que lutam “Por uma sociedade sem manicômios”, por um novo modo

de lidar com o sofrimento psíquico e almejam a ampliação de espaços de saúde e

socioculturais que acolham a diversidade. A sua bandeira de luta é “Saúde Mental: Samu sim,

Polícia não!” (Figura 13 c).

Composto somente de texto, os destaques do cartaz estão em vermelho. Na parte

superior, o título do evento com letras tridimensionais “Semana Saúde Mental” e, na parte

final, o slogan tradicional do movimento “Por uma sociedade sem Manicômios”.

O sujeito da enunciação é o realizador do evento, o Núcleo Nise da Silveira. Como

enunciadores, Ana Paula Muller e também o Núcleo Nise da Silveira. Não há, no espaço do

cartaz, informações sobre quem são os “experientes”. Eles são citados como ordenadores de

uma roda de conversa, aqueles que dão a perspectiva da mesa “Sujeitos e (m) movimentos:

uma análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira”, mas não se dá especificidade aos

sujeitos. O currículo profissional da palestrante é detalhado ao extremo. Tais informações

acabam por ocupar grande parte do cartaz. Estabelece-se uma valorização da sua formação

acadêmica. O slogan tradicional do Movimento Antimanicomial fecha o texto. O espaço

abaixo do slogan é ocupado pelo nome do realizador e seu e-mail de contato.

O enunciado é bastante confuso. O título “Semana Saúde Mental” não é confirmado

pelas informações posteriores, e os eventos anunciados logo abaixo do título remetem aos

acontecimentos restritos ao dia 18 de Maio.

Os destinatários são técnicos, estudantes, usuários e familiares, e o antagonista, a

exemplo de grande parte dos demais cartazes, está implícito no slogan da luta antimanicomial:

trata-se do discurso dos que defendem os manicômios.

Situada abaixo do título, encontramos uma explicação para o público leigo. Os

realizadores expõem o objeto de comemoração do dia 18 de maio e equiparam Joinville a

outras cidades do país. As informações destinadas a um público que desconhece o movimento

não se aprofundam, não compõem o conteúdo principal do material, parecendo ser o foco a

inclusão da cidade em um movimento de caráter nacional. Os realizadores divulgam um

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evento voltado ao público que conhece as questões manicomiais. As informações restantes

são relativas ao evento que ocorrerá no dia 18 de Maio. As palavras Demo mode aparecem na

forma de marca d’água, por baixo do texto e aparentemente não guardam relação com o

conteúdo do cartaz.

O cartaz, de aparência simples e escrita confusa, sugere ser o resultado de um esforço

do núcleo para não deixar passar em branco o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Com

base nas informações anteriores sobre a desarticulação dos serviços substitutivos ocasionados

pela greve e a ordem de corte de gastos, podemos considerar que a produção procurou se

adequar às condições do momento. O cartaz não tem apoio e, portanto, concluímos que foi

realizado e impresso por conta própria.

A distribuição deve ter sido limitada em razão da citada desarticulação nos serviços

substitutivos. No entanto, o cartaz, é provável, circulou em redutos antimanicomiais. Foram

encontrados também convites realizados via internet, como o inserido nos seguintes sites:

www.joinville.sc.gov.br/.../4435-Núcleo+”Nise+da+Silveira”+comemora e

www.passeiaki.com/.../nucleo-nise-silveira-comemora-dia-luta-antimanic .

Figura 35 – Montagem com imagens relacionadas ao cartaz 13

(13a) (13b)

(13c)

Fonte: Elaboração própria.

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Figura 36 – Análise do Cartaz 14 (frente)

Fonte: Elaboração própria.

Figura 37 – Análise do Cartaz 14 (verso)

Fonte: Elaboração própria.

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O cartaz 14 é bastante colorido, o que lhe proporciona um ar alegre. O fundo branco

rodeado por uma moldura pouco coordenada valoriza as cores utilizadas. A imagem de um

coração feito com os dedos é de fácil identificação, além de ser muito utilizada na televisão.

As mãos de várias cores falam da diversidade. O slogan brinca com a palavra “loucos” e

estabelece duplo sentido. O cartaz se vale da parte do verso para dialogar com a população; a

partir de diversas perguntas, as pessoas são chamadas a conversar, a conhecer a luta

antimanicomial e os serviços oferecidos pelo Caps.

O Caps, mencionado no título e ocupando o lado esquerdo da parte final do cartaz,

apresenta-se fortemente como o sujeito da enunciação, um sujeito que desmonta o princípio

de estigmatização da loucura e dos loucos ao estender a todos essa classificação e associá-lo

ao afeto. Ele é também o emissor, o que acentua a força política de sua presença na cena

discursiva. Como enunciadores, temos o governo de Paraíso e a Secretaria Municipal de

Saúde da cidade. Novamente se fortalece o Caps como sujeito da enunciação, uma vez que ele

integra a estrutura da secretaria, e esta o governo municipal.

O emissor do cartaz não dirige sua fala a alguém específico e, por esse motivo supõe-

se que seu destinatário seja a população em geral. O slogan “No Caps somos todos loucos ...

um pelos outros”, complementando pela imagem de mãos coloridas que formam um coração,

trazem à cena discursiva o Caps como local de acolhimento do diverso. O sentido do

desequilíbrio mental, tradicionalmente aplicado à palavra louco, foi esvaziado. Torna-se

referência ao Caps ao mesmo tempo em que efetiva um sentido amoroso. O opositor é citado

na palavra antimanicomial e no verso, quando se explica os atendimentos anteriores aos

serviços substitutivos.

O cartaz tem dupla função. Simultaneamente, serve de material comemorativo, com

a finalidade de construir com o outro as transformações que ocorreram no tratamento do

transtorno mental e firmar sua presença pública como um agente dessa transformação.

O apoio dado aos serviços de saúde mental é revelado pela qualidade do material e

pela produção esmerada.

Quanto à circulação, não temos informação nem nenhuma marca específica que nos

permita levantar alguma hipótese. Como foi dirigido ao grande público, é possível que tenha

circulado de inúmeras formas, mas só podemos especular a respeito.

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Figura 38 – Análise do Cartaz 15

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz 15, distribuído pelo CFP para todo o Brasil, foi produzido pelo Fórum

Mineiro de Saúde Mental. Ciliberto, membro do Conselho Federal de Psicologia, explica o

interesse do CFP “por ser uma produção de cartazes mais aproximada dos usuários”. Os

sujeitos da enunciação são a Renila e o CFP. Já o enunciador é o autor da pintura escolhida

para compor o cartaz, Rogério Sena, cuja arte valoriza o capital simbólico dos sujeitos da

enunciação. A produção é do Fórum Mineiro, como explica Ciliberto, mas seu nome não

aparece entre os sujeitos da enunciação. Ciliberto comenta “Não é a Renila toda que se reúne,

mas é a Renila, porque o fórum é vinculado à Renila” e, ainda, especifica “quem tem um

histórico na questão cultural é Minas Gerais”. A ausência de referência ao nome do Fórum

Mineiro nos faz crer que existe enorme identificação do fórum com a Renila. O todo, aqui,

aparece representando a parte; a organização nacional, formada por núcleos da luta

antimanicomial, constitui-se como um dos seus núcleos. O sujeito Renila, então, produz

sentido ao se mostrar como unidade e ocupar uma posição no sistema de representação

antimanicomial.

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A respeito do slogan anunciado, “Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos

dormir”, Celiberto comenta: “Nesse ano, queria se cutucar pelas mobilizações e as questões

que aconteciam no Congresso Nacional. [...] tinha um pouco o barulho das mobilizações,

além da política de álcool e drogas”.

O dispositivo de enunciação conjuga o slogan e a imagem borrada de um homem

tocando bumbo. O discurso ali dialoga com a política de álcool e drogas adotada pelo MS. Tal

fato, porém, só é entendido por quem conhece profundamente os meandros do movimento e

as lutas que estão sendo travadas na área da saúde.

Entre as medidas mais polêmicas está o financiamento das novas comunidades

terapêuticas. Na retomada do modelo de internação para o tratamento de álcool e drogas,

encontram-se interesses econômicos poderosos que corroem os princípios da reforma

psiquiátrica e a política antimanicomial. No artigo “Política anti-crack: Epidemia do

Desespero ou do mercado anti-droga?”, Amarante (2014, s/pág.) expõe o descompasso entre a

ação do governo e as lutas desenvolvidas pela sociedade civil organizada com atuação na área

da saúde

[...] tanto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental quanto na recém

realizada XIV Conferência Nacional de Saúde, a proposta de financiamento público das “comunidades terapêuticas” foi rejeitada por meio de moções e

de propostas alternativas bastante fundamentais. Não adiantou! Poucos dias

após o encerramento da XIV Conferência, que envolveu cerca de 50 mil

pessoas diretamente, entre profissionais, gestores, prestadores de serviços, usuários, familiares, dentre muitos outros ativistas de lutas sociais e

políticas, o governo anunciou o plano de combate ao crack, que implica o

financiamento das “comunidades terapêuticas”.

Na aprovação do Decreto n. 7.179/2010, o MS, em conjunto com a Secretaria

Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), fomenta editais cujas destinações, entre outras,

apóiam financeiramente projetos de acolhimento para usuários de crack e demais drogas em

comunidades terapêuticas. Em um esquema não muito diferente do ocorrido nos anos de

1970, “indústria da Loucura”, o público financia leitos privados.

Os destinatários do cartaz são os CRPs de todo o Brasil, conforma nos informa

Ciliberto. Eles circulam nacionalmente e a circulação regional envolve o interesse de cada

CRP. A distribuição pode ocorrer de forma ampla ou restrita dependendo do empenho local.

Ciliberto comenta ser a arte entregue a CRPs quando solicitada, permitindo assim que outras

entidades sejam incluídas no apoio. O cartaz a seguir nos mostra como novos apoios podem

ser acrescidos (Figura 15 a). Um duplo movimento é realizado e ocorre uma centralização do

poder. O cartaz é produzido pelo Conselho Federal, mas também há o processo de

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compartilhamento de poder e descentralização quando a arte é entregue às regionais e podem

ser incluídos apoios locais.

Figura 39 – Cartaz relacionado ao cartaz 15

(15a)

Fonte: Arquivo Laps.

Uma rede de significações emerge do cartaz, que parece ter sido produzido em um

pedaço de jeans rasgado. O tocador de bumbo traz a impressão de que pula no cartaz. A cor

vermelho com que o “Dia Nacional da Luta Antimanicomial” foi grafado deveria produzir

destaque, mas sofreu efeito contrário por ter sido usada uma letra pequena e fina. Já o

vermelho da frase de efeito obtém bom rendimento visual, assim como as palavras em branco.

O bumbo recebe destaque pela cor branca utilizada em seu interior e o tocador nos remete

para o chamamento do circo, do espetáculo.

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Figura 40 – Análise do Cartaz 16

Fonte: Elaboração própria.

O cartaz das cidades de João Pessoa e Cabedelo convoca para a IV Semana de Luta

Antimanicomial. O realizador do evento, que também se apresenta como sujeito da

enunciação, é o Coletivo Canto Geral. No site http://coletivocantogeral.blogspot.com.br/ , o

grupo se identifica como um coletivo “formado por estudantes de psicologia implicados com

a formação (im) posta na universidade. Nos reconhecemos como grupo político e como

militantes atuantes para além dos muros da UFPB”. A logo do coletivo é acompanhada pela

especificação: “Coletivo Antimanicomial”.

Os enunciadores são todos os apoiadores e mais o realizador. No cartaz, aparecem

muitos apoiadores, divididos espacialmente entre os que têm seu nome escrito e os

apresentados na logomarca. Coordenação Municipal de Saúde Mental, Coordenação Estadual

de Saúde Mental, Centro de Ciências Humanas e Letras – UFPB, Departamento de Psicologia

– UFPB, Centro Acadêmico de Serviço Social – UFPB, Fundação Casa de Cultura,

Companhia da Terra e Complexo Juliano Moreira são os apoiadores de maior destaque, com

seus nomes escritos. Os apoiadores restantes têm sua logomarca no cartaz. São eles: Loucura

e Cidadania, Codisma, Ipei, NEP, Alfenin, Ateliê, Secult, Adufpb, Ensaio, Conselho Regional

de Psicologia, Desentoca, Secretaria de Saúde João Pessoa, Prefeitura de Cabedelo, Piollin,

UFPB, Sindisfisco, Sindespb, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba.

Há ainda, logomarcas que, apesar de grafados no cartaz, não permitem reconhecimento.

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O dispositivo de enunciação conjuga imagem e slogan para apresentar a VI Semana

de Luta Antimanicomial. A palavra luta recebe destaque tanto pelo tamanho como pela cor

vermelha. O slogan “Uma flor que rompe o asfalto a loucura como (r) existência” é reforçado

pela imagem que aparece no meio da cidade. Um pássaro voando também compõe a imagem.

No site http://semanadalutaantimanicomial.blogspot.com.br/ , os realizadores

explicam a natureza do tema. Informam que ele nasce da escassez de liberdade para expressão

da loucura e da visão que as subjetividades não devem ser estranguladas. Saem em defesa de

que os direitos individuais não devem ser relegados em nome de uma norma que preza pelo

bem-estar do coletivo. No entanto, se considerarmos apenas o cartaz, o que vemos é uma

combinação de duas metáforas: a do pássaro voando, sinal inequívoco de liberdade, e a

metáfora das flores rompendo o asfalto. Sobre ela, se restasse dúvida, o texto complementaria

indicando-a como sinal de resistência / existência. Essa metáfora é consolidada pelo desenho

das flores e pelo destaque conferido à palavra “LUTA”.

A produção permite observar que o grupo realizador fez grande esforço para que o

evento proposto no cartaz se realizasse. O coletivo conseguiu significativo número de

apoiadores de diversas áreas para o evento, o que possibilitou afixar o cartaz em diversas

localidades das cidades sedes. Por ter sido amplo o número de apoiadores, é possível inferir

que o cartaz teve a distribuição farta e ultrapassou os limites da saúde mental. A UFPB, nos

serviços de saúde, Secretarias Municipais de Saúde das duas cidades, Secretaria de Saúde do

Estado, Secretaria de Cultura do Estado e Municípios, Secretaria de Direitos Humanos do

Estado e Municípios, os apoios e diversos estabelecimentos da cidade foram alguns dos

lugares prováveis de circulação dos cartazes.

O cartaz destinado a um público amplo, como mencionado pelos realizadores no site

do evento, não é de fácil compreensão. Também o slogan tem seu entendimento caracterizado

pela complexidade, até por quem conhece as questões vinculadas à saúde mental. A pintura

apresenta aspecto brilhoso. O fundo escuro é amenizado pela cor branca dos prédios e de

riscos que cortam o desenho dos prédios. Ele e as flores reforçam o slogan, mas não permitem

que seja compreendido com facilidade. As flores e o pássaro dão colorido ao cartaz, que

carrega em si certa melancolia. O pássaro no ar transmite a ideia de movimento. As letras são

brancas, pretas e vermelhas.

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4.3.2 Síntese dos principais elementos analíticos

Para efeito comparativo, os dados analisados até aqui foram organizados nos quadros

abaixo:

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Grupo III

Quadro 7 – Sujeitos da enunciação, enunciadores e dispositivo de enunciação Cartaz 11 Cartaz 12 Cartaz 13 Cartaz 14 Cartaz 15 Cartaz 16

Sujeito da

Enunciação

Luta Antimanicomial

Intertextualmente

Autor do desenho

Prefeitura de

Cuiabá

Núcleo Nise da

Silveira

CAPS Renila e CFP Coletivo Canto Geral

Enunciadores

Autor do desenho CRP 18 MT Ana Paula Miller O governo de

Paraíso e a

Secretaria

Municipal de Saúde

da cidade

Rogério Sena Coletivo Canto Geral –

Coordenação Municipal

de Saúde, a

Coordenação Estadual

de Saúde Mental, Centro

de Ciências Humanas e

Letras – UFPB,

Departamento de

Psicologia – UFPB,

Centro Acadêmico de

Serviço Social – UFPB,

Fundação Casa de

Cultura Cia. Da Terra,

Complexo Psiquiátrico

Juliano Moreira + apoio

logos

Chama a

atenção

Ausência do convocador do

evento

Excelente

produção A associação Renila e

CFP

Dispositivo de

enunciação

A enunciação conjuga o

verbal e a imagem. O

indivíduo que distribui

bandeiras com lema cidadão

se conjuga aos slogans

“Pelas ruas e becos da

cidade: liberdade !” e “Não à

privatização e

encarceramento da vida”

A enunciação

conjuga o verbal e

a imagem “Por

uma sociedade

sem manicômios”

Conjugada a

imagem da pessoa

de braços abertos

Semana Saúde

Mental e “Por

uma Sociedade

sem

manicômios”

A enunciação

conjuga o verbal e a

imagem. No CAPS

somos todos loucos

... Mãos coloridas

formato coração...

uns pelos outros

A enunciação conjuga o

verbal e a imagem –

Pintura de homem

tocando bumbo

conjugada com o slogan

“Se não nos deixar

sonhar, não os

deixaremos dormir. 18

de Maio”

A enunciação conjuga o

verbal e a imagem –

como reforço

“Uma flor eu rompe o

asfalto a loucura como

(r) existência

Fonte: Elaboração própria.

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Quadro 8 – Emissores, destinatários e antagonistas

Cartaz 11 Cartaz 12 Cartaz 13 Cartaz 14 Cartaz 15 Cartaz 16

Emissores Núcleo Estadual Prefeitura de

Cuiabá Núcleo Nise da Silveira CAPS Renila e CFP Coletivo Canto

Geral

Destinatários

Serviços de saúde mental,

associação de usuários e familiares, faculdades de

saúde

Público em

geral Usuários, familiares,

trabalhadores em saúde mental e estudantes da

área da Saúde

Usuário dos serviços de

saúde e redutos antimanicomiais

CRPs Público variado

Antagonistas Os que querem a

privatização e o encarceramento da vida

Manicômios Manicômios Manicômios Os que defendem

o internamento Encarceramento e a

exclusão

Fonte: Elaboração própria.

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Quadro 9 – Condições de produção

Cartaz 11 Cartaz 12 Cartaz 13 Cartaz 14 Cartaz 15 Cartaz 16

Local do evento

Praça XV Não há Salão comunidade

luterana

Não há evento Não há evento Cidades de

Cabedelo e João

Pessoa

Público

Público no geral Trabalhadores em

saúde mental,

usuários e

familiares

Público variado

Forma

organização /

temas

Ato (shows,

distribuição de

panfletos, oficinas

e brechó)

Rodas de

conversas,

debates,

esclarecimentos e

troca de saberes

Roda de abertura,

oficinas, esporte,

cultura e ato

público

Participação

proposta pelo

público

Alterna

participação direta

e passiva

Alterna direta e

passiva

Alterna direta e

passiva

Fonte: Elaboração própria.

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4.3.3 Análise comparativa dos cartazes

Os seis cartazes escolhidos comemoram o Dia Nacional da Luta Antimanicomial no

ano de 2013. A sociedade civil organizada está presente em quatro dos cartazes, o município

em três dos cartazes e o Conselho de Psicologia em três cartazes.

O cartaz de Joinville tem como enunciador o Núcleo Nise d Silveira e o seu evento é

realizado sem nenhum apoio. Como nos foi explicado por e-mail o momento era de embate

entre os trabalhadores de saúde mental e a Prefeitura. O cartaz de João Pessoa e Cabedelo tem

como enunciador o Coletivo Canto Geral que consegue muitos apoiadores para o evento que

realiza. O cartaz realizado pelo Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial RJ tem o apoio do

CRP RJ, mas no cartaz aparece somente o nome da Luta Antimanicomial.

No cartaz de Cuiabá a prefeitura é o enunciador. A prefeitura conversa com a

população sobre a luta antimanicomial. No verso apresenta os serviços de saúde mental em

Cuiabá. O cartaz é bem elaborado e a função de informar a população é cumprida de forma

exemplar. O cartaz de Tocantins é enunciado pelo serviço, é alegre e aponta para a aceitação

da diversidade. O seu verso tem função informativa. É o único dos cartazes que carrega a

alegria dos anos 1990.

Os cartazes do grupo 3 são mais sérios que os do grupo 2. A leveza apresentada nos

cartazes do grupo 2 só se repete no cartaz de Tocantins. Os demais cartazes ganham um ar

mais sóbrio e denotam um novo momento da luta antimanicomial e da sociedade brasileira.

As vozes presentes no discurso dos cartazes do grupo 3 se articulam entre si e criam

uma rede interativa com os acontecimentos do seu tempo.

Alguns dos cartazes têm uma sobriedade próxima ao dos cartazes da década de 1980.

Os cartazes 11 (RJ) e o cartaz 15 (CFP e Renila) prenunciam os eventos que ocorreram em

junho de 2013. No Rio de Janeiro o enunciador é a própria luta antimanicomial que na sua

enunciação se coloca pelas ruas e becos com bandeiras de cidadania. Os antimanicomiais se

apresentam como uma luta que se integra a outras lutas da sociedade. No cartaz 15 um

tocador de bumbo enuncia “se não nos deixam sonhas, não os deixaremos dormir”. Ambos

estão em sintonia com as manifestações que reuniram no mês seguinte as comemorações

antimanicomiais milhões nas ruas do Brasil. Ainda é possível remeter os nossos atores

antimanicomiais que enunciam os cartazes do grupo 3 aos atores antimanicomiais que iniciam

a greve nos hospitais da Dinsam e aqueles que prenunciam o processo de lutas por uma

sociedade sem manicômios nos cartazes do grupo 1.

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O lema do Movimento “Por uma Sociedade sem Manicômios” que aparece no cartaz

5 (TSM RJ) e no cartaz 8 (BH) está presente no cartaz 12 (Cuiabá) e no cartaz 13 (Joinville).

A história da Luta Antimanicomial é recontada no verso dos cartazes 12 e 14.

No cartaz 11 o slogan exalta a liberdade e diz não ao encarceramento, tema que surge

no cartaz 2 ( Rede de Alternativas à Psiquiatria ) e no cartaz 3 (CPP II) da década de 1980;

nos cartazes 6 (PA), 7 (CFP), 8 (MG) e 9 (PR) há uma repetição do tema.

O cartaz 11 (RJ) conversa diretamente com o cartaz 6 (Belém) que enuncia-se

“Loucos por Cidadania”, com o cartaz 7 (CFP) “Intervindo na Cultura e construindo

cidadania” e com o cartaz 3 (CPP II) que tem no sub tema saúde mental como direito e

cidadania. No cartaz 14 a questão da cidadania é apresentada pela vertente da diversidade. Os

limites entre os direitos e as práticas sociais foram interrogados no cartaz 16 e no cartaz 15.

Nos cartazes do grupo 3 os nossos atores procuram novos vocabulários na reivindicação de

uma sociedade mais tolerante que aceite a participação do diferente.

O tema da assistência acompanha os cartazes dos três grupos. Os cartazes do grupo I

têm como foco a preocupação com a assistência que ocorre em instituições fechadas. Nos

cartazes do grupo 2 torna-se presente as discussões sobre formas de intervenção nos serviços

se substitutivos se apresentarem para a população, informarem suas funções e seus vínculos

antimanicomiais.

Os cartazes 11, 12, 13, 14 e 16 chamam o leitor a participar ou conhecer a Luta

Antimanicomial. Os cartazes 11, 13 e 16 registram eventos antimanicomiais e os cartazes 12 e

14 convidam o leitor a conhecer a luta antimanicomial e os serviços substitutivos.

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5 ANÁLISE TRANSVERSAL DOS CARTAZES

Com o propósito de compreender como as vozes transformadoras das práticas e das

concepções sobre a loucura organizam seu discurso e disputam sentido no espaço público,

utilizamos os enunciados dos cartazes antimanicomiais. Para alcançar os objetivos do

trabalho, reunimos materiais elaborados ao longo de mais de 30 anos e os analisamos não só

de forma isolada, mas também em referência ao grupo da década considerada. Agora,

propomo-nos a olhar comparativamente os diversos grupos.

O primeiro cartaz analisado foi do ano de 1978, e os últimos cartazes do ano de

2013. Inicialmente, identificamos que os materiais não são estranhos ao seu tempo, pois o

momento sócio-histórico deixou impressões nos cartazes dos três grupos.

As marcas da organização de um movimento de trabalhadores durante o regime

militar estão registradas nos cartazes do grupo I. O fortalecimento de um discurso contra os

manicômios ocorreu no decorrer do período de redemocratização do país. Por meio desses

materiais, houve a possibilidade de acompanhar as mudanças construídas no cenário social. O

sistema manicomial sofreu abalos ao ser atingido por um discurso que o desqualificava.

Iniciou-se uma reorganização de poderes entre as forças manicomiais, que sustentavam a

determinação instituída de tratar o transtorno mental, e as forças antimanicomiais, que

buscavam uma nova forma de a sociedade lidar com a loucura.

Um exemplo relevante desse fato pode ser constatado ao observarmos o lugar

ocupado pelos trabalhadores de saúde mental nos cartazes no. 1 e nº 5. Na sequência

temporal, os atores políticos encontravam-se em diferentes posições enunciativas. Se, no

cartaz no. 1, os grevistas da Dinsam não se assumem como sujeitos da enunciação,

verificamos que, no cartaz nº 5, eles se consideraram movimento social e tomaram a

enunciação para si.

No grupo 2, vários elementos nos posicionaram no tempo e mostraram as

transformações ocorridas. Os cartazes realizados pela sociedade civil organizada para a

comemoração dos 10 anos da Luta Antimanicomial são alegres e com cores fortes. Todos

sinalizaram a conquista da liberdade pelos portadores de transtorno mental. Nos anos de 1990,

a sociedade civil organizada local assinou os cartazes, principalmente os fóruns e as

associações compostas de trabalhadores, usuários e familiares. Nas diversas regiões do Brasil,

utilizou-se padrão semelhante. Os principais apoiadores foram as prefeituras. Em uma

pequena variação, o cartaz de Alagoas, apesar de produzido pelo núcleo local, recebeu forte

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influência central. No âmbito nacional, destacaram-se a presença do CFP e a preocupação

com os caminhos escolhidos nos serviços. O trabalho pioneiro do Museu do Inconsciente

norteou os cartazes que representaram as forças nacionais do movimento. Os encontros,

realizados de dois em dois anos, proporcionaram unidade ao movimento, que sistematizou de

uma forma similar os cartazes produzidos localmente. Os slogans e figuras neles contidos

valeram-se da irreverência para tratar o tema e buscaram simpatia do receptor idealizado.

Nos cartazes do ano de 2013, em sua maioria, os temas foram abordados com

seriedade. As cores mais escuras ou neutras dominaram as produções. Trataram problemas do

seu tempo com abordagens relacionadas aquele período. Embora tenha havido uma dispersão

referente aos temas escolhidos, manteve-se a semelhança de problemas. Os trabalhadores de

Joinville estavam em greve, e o cartaz da luta antimanicomial do Rio de Janeiro levantou a

bandeira da não privatização. A questão do encarceramento ali disposta também esteve

presente em outros cartazes produzidos em 2013. Nos materiais da Paraíba e do CFP / Renila,

observa-se a discussão a respeito do lugar social dos portadores de transtorno mental. Os

slogans foram contundentes. A parceria entre a Renila e CFP recebeu destaque pela junção de

forças. Os dois cartazes, organizados pelas prefeituras, foram de cunho didático, e o Rio de

Janeiro em sintonia com as manifestações ocorridas em junho de 2013.

Nos diversos momentos históricos, deparamo-nos com o que é possível ser

mencionado e o que é indizível sobre aquele contexto. Os cartazes analisados buscaram

reverter um discurso cristalizado, mas, apesar de sinalizarem a necessidade de reverter alguma

situação, os argumentos foram os possíveis para a sociedade de cada época. Há, no grupo 1 –

nos anos de 1980 - , uma escolha pelas imagens para revelar o aprisionamento e os maus

tratos característicos das instituições psiquiátricas. As imagens substituíram as palavras e se

confrontaram com a impossibilidade de falar, como ocorreu no cartaz no. 3. A assistência,

colocada entre aspas, foi debatida, abordaram-se alternativas à psiquiatria e discutiu-se a rede

pública de saúde mental. Não foram usados, contudo, argumentos verbais para condenar as

práticas manicomiais.

Os cartazes do grupo 2 – dos anos de 1990 – lançaram mão de palavras e imagens

para descortinar o aprisionamento e maus tratos ocorridos nos manicômios. Houve ali uma

tentativa de reverter os sentidos históricos da loucura, romper com os estereótipos. Os novos

sentidos foram explorados, novas combinações realizadas e o convencional desafiado. Nessa

reunião dos sentidos tradicionais com novos sentidos, procurou-se modificar a visão do leitor,

fazer com que ele aceite e compartilhe o novo sentido.

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No grupo 3 – dos anos posteriores a 2000 -, a ( R ) existência, percebida no cartaz no.

16, ocorreu diante do impedimento que se estabeleceu quando se optou por exercer uma

subjetividade diferente daquela existente, ou seja, do senso comum. Aqui, no cartaz no. 15,

argumentou-se pelo direito de sonhar. O movimento se posicionou em becos e ruas e espalhou

neles bandeiras de cidadania, demonstrando assim, com o exemplo do cartaz no. 11, sintonia

com o seu tempo. Houve a necessidade de explicar à população em geral, nos cartazes no. 12

e no. 14, o significado da Luta Antimanicomial e quais serviços são prestados pelos Caps. O

cartaz no. 13 enfatiza o debate, esclarecimentos e trocas de saberes.

Em nossa análise, deparamo-nos com as determinações históricas que envolveram os

enunciadores. Nos cartazes observados no primeiro grupo, foram três os sujeitos da

enunciação: a sociedade civil organizada, as entidades de classe e o poder público. Os dois

primeiros não contaram com o apoio do poder público, mas naqueles pertencentes a esse

poder, foi possível encontrar marcas deixadas pela sociedade civil, que, em processo de

ordenação ocupou postos no governo.

Nos cartazes do segundo e terceiro grupos, verificamos que o CFP e as prefeituras

foram os enunciadores ocupantes de diversas posições. Muitas foram as posições nas quais o

CFP alternadamente esteve presente, por exemplo, no lugar de patrocinador, apoiador e

realizador.

O CFP se posicionou nos materiais distribuídos nacionalmente nos anos de 1990 e

posteriores a 2000. Os CRPs desempenharam em especial o papel de apoiadores dos cartazes

locais, mas alguns deles também produziram materiais, como nos foi relatado por Celiberti e

comprovador por nossa pesquisa no acervo do Laps.

As prefeituras de várias localidades do Brasil ocuparam também diversos lugares

enunciativos nos cartazes; algumas vozes, posicionaram-se como realizadoras e outras como

apoiadoras. Seu lugar de fala pôde concorrer ou apoiar, ou mesmo complementar o discurso

da sociedade civil organizada. Nos cartazes posteriores ao ano de 2000, a concorrência se fez

mais evidente, questões como a privatização a saúde e as internações compulsórias passaram

a ocupar espaço nos cartazes de núcleos antimanicomiais. Ao mesmo tempo, as prefeituras de

diversos locais do Brasil tornaram precários os vínculos de sés funcionários, e o poder público

acolheu os serviços prestados pelas comunidades terapêuticas – fatos que também reverberam

nos materiais.

Os cartazes nos apresentaram os atores políticos do Movimento Antimanicomial,

seus lugares de fala e suas lutas pelo poder. Nos primeiros cartazes, observamos o nascimento

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do MTSM, as alianças e principais influências. O material analisado também oportunizou

perceber que muitas das lideranças iniciais ocuparam lugar no aparelho do Estado.

Nos cartazes dos anos de 1990, percebemos a ampliação do MNLA e pelos diversos

grupos locais do Brasil e sés principais atores políticos. Presente ali a homogeneidade nos

rumos tomados pelo movimento, respeitadas as diferenças locais.

A divisão do MNLA e Renila está demarcada nos cartazes de 2013. Notou-se que o

núcleo do Rio de Janeiro, vinculado ao MNLA, trouxe, em seu cartaz, uma imagem que o

aproxima de outras lutas.

Constatamos que os slogans antimanicomiais que circularam nos cartazes, como

“Cuidar sim, excluir não” , “Trancar não é tratar” , “Manicômios Nunca Mais” , “Liberdade é

o Melhor Remédio” , foram apropriados por outros atores antimanicomiais, muitas vezes

reproduzidos em novos cartazes. A mesma situação ocorreu com as imagens.

Imagens e slogans foram reaproveitados, introduzidos na fala de outros atores

antimanicomiais e receberam novas interpretações. Algumas vezes, slogans sofreram

pequenas mudanças, imagens adaptadas a novos slogans e slogans colocados ao lado de novas

imagens. Os cartazes apresentados a seguir mostram como a fala de um ator antimanicomial

pode ser revertida para novos enunciadores; reaproveitada em parte com outra imagem,

transformar o slogan e ganhar novos enunciadores, como um slogan reaproveitado pode

ganhar uma imagem também reaproveitada e novos enunciadores.

Figura 41 – Montagem com cartazes com mesma imagem ou slogan

(17a) (17b) (17c) (17d)

Fonte: Elaboração própria.

No discurso antimanicomial, os slogans e as imagens transitaram, algumas vezes,

apropriados por novos enunciadores; outras vezes, reaproveitados em alguns aspectos e

acrescidos de elementos próprios dos novos enunciadores; em outras, ainda, o discurso dos

enunciadores foi elaborado com fragmentos de discursos circulantes, em uma ciranda que

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comprovou que, no plano discursivo, as possibilidades de conversação são infinitas, limitadas,

entretanto, pela prática discursiva, que por sua vez, encontra seus limites nos contextos

históricos, sociais e institucionais.

Evidenciamos essa contaminação discursiva na contraposição dos dispositivos de

dois cartazes, um da década de 1980 (cartaz 18 a) e outro da década de 1990 (cartaz 18 b),

com os dispositivos de cartazes do nosso corpus analítico.

Figura 42 – Montagem com cartazes com imagens semelhantes

(18a) (18b) Fonte: Elaboração própria.

No ano de 1997, um cartaz da cidade de Assis – São Paulo (cartaz 18 b) remontou e

deu materialidade à junção de forças acadêmicas, da gestão de saúde, classistas e da iniciativa

privada farmacêutica na comemoração dos 10 anos de Luta Antimanicomial. O carimbo

“Manicômio nunca mais”, aposto sobre a forte imagem do confinamento, trouxe para a cena

discursiva o embate que ocorria na vida real entre duas abordagens antagônicas. O carimbo,

que evoca para si o poder da lei, procurou fazer crer que a situação apresentada na imagem

não se repetiria. A mesma intenção pode ser percebida no cartaz nº 6 do nosso corpus de

análise, que enquadrou a imagem do aprisionamento na parede. O cartaz argentino (18 a), já

mencionado, apresenta grande relevância histórica com o anúncio do III Encontro Red

Latinoamericana de Alternativas a la Psiquiatria. O ano foi de 1986, quatro anos depois do

primeiro encontro paulista da rede e um ano antes do 3º. Encontro Estadual de Trabalhadores

em Saúde Mental. O cartaz argentino e o cartaz nº2 pertencem à Rede de Alternativas à

Psiquiatria. Ele traz, pichado na parede do hospício, um aviso de breve saída da prisão, além

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do slogan “Por uma sociedad sin Manicômios” – lema adotado no cartaz nº 5 e pelo

Movimento Nacional de Luta Antimanicomial. Encontramos o mesmo slogan nos cartazes

nº5, nº8, no. 12 e nº13.

A imagem também nos aproxima da pintura do cartaz no. 7, cuja imagem têm forte

apelo emocional. O cartaz paulista conversa ainda com o slogan “Por uma Sociedade sem

Manicômios” e “Trancar não é Tratar”, observados nos cartazes no. 8 e no. 9.

5.1 A RELAÇÃO ENTRE DISCURSO E ESTRUTURA SOCIAL

Para a análise dos três grupos de cartazes, escolhemos considerar dialética a relação

entre discurso e estrutura social. Os materiais foram examinados utilizando a Semiologia dos

Discursos Sociais (PINTO, 1994). Os conceitos advindos da escola francesa e da escola

pragmática foram empregados completamente, conforme sua importância para o trabalho

desenvolvido.

Como propugna Norman Fairclough (2001), foi possível confirmar, durante o estudo,

que as combinações de convenções discursivas fazem surgir novas ordens de discurso. Assim,

buscamos entender como se dão as mudanças. Observamos (cartaz no. 1) que grupos

subordinados ( Residentes ) são capazes de desenvolver focos de luta. Ou pensar que o centro

(Manicomial) e a periferia (Antimanicomial) são passíveis de mudança. Assim,

compreendemos que as estruturas podem ser transformadas, dependendo de como são

estabelecidas as relações de poder.

No decorrer de nosso estudo, encontramos o discurso como prática idelógica, capaz

de transformar os significados estabelecidos socialmente, e o discurso como prática política,

modificando as relações de poder e as entidades.

Ainda segundo Fairclough (2001, p. 94), “o discurso como prática política

estabelece, matem e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos,

comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder”.

Os diálogos entre os cartazes revelam que os avanços conseguidos trazem sempre

novos desafios. Percebendo-se em desvantagem, as forças manicomiais foram capazes de

assumir novos discursos e se reapresentarem socialmente captando os novos anseios sociais.

N luta pelo poder simbólico, observamos os manicomiais expropriarem termos,

historicamente relacionados à luta antimanicomial, do seu sentido original. O termo

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Comunidade Terapêutica e o uso que dela é feito evidencia que, no “mercado das palavras”

elas podem se tornar “palavras do mercado”.

Conforme as posições antimanicomiais foram dispostas em cena, as palavras

adquiriram sentido e o sujeito, identidade. Então, novos desafios lançados e novas cenas

sociais e discursivas formadas.

Essas considerações servem para que possamos compreender melhor as atuais

práticas discursivas do Movimento Antimanicomial, que adquiriu proporções nacionais,

formou núcleos de militância nos mais diversos locais do país aos moldes da experiência

italiana, cuja atuação de seus profissionais constitui um importante alicerce. Na organização

de núcleos de usuários e familiares, um avanço em sua abrangência. Nas atividades culturais,

artísticas e científicas, uma forma de difundir sua luta.

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6 CONCLUSÕES

No primeiro momento, encantamo-nos pela criatividade e irreverência contida em

alguns dos cartazes antimanicomiais. Ao ficarmos mais próximos deles, passamos a observá-

los com os olhos de pesquisador. Detivemo-nos aos detalhes, visitamos o acervo do Laps,

interagimos com pessoas envolvidas com questões antimanicomiais, pesquisamos em diversos

sites e recorremos aos materiais do projeto Memória.

Nosso objetivo foi compreender, baseados em enunciados dos cartazes de divulgação

da Luta Antimanicomial brasileira, como as vozes que vêm transformando as práticas e as

concepções sobre a loucura organizam seu discurso e disputam sentidos no espaço público.

Trilhando esse caminho, iniciamos nosso estudo.

A pesquisa, cuja análise foi diferenciada aos cartazes produzidos desde o ano de

1978, na intenção de compreender mudanças na produção de sentidos sobre a luta

antimanicomial, ocorridas a partir do histórico evento de Bauru, encontrou evidências que o

Dia Nacional da Luta Antimanicomial é lembrado nas mais distintas localidades do Brasil, e a

divulgação se faz presente por meio de faixas, cartazes, notícias em veículos de comunicação,

eventos e postagens na internet. Os cartazes desempenharam papel estratégico na divulgação

da data de comemoração, propalando os discursos que mobilizam para uma sociedade sem

manicômios.

Ao analisarmos o material, deparamo-nos com o Movimento Antimanicomial e

compreendemos que os cartazes, subliminamente, resguardam muito mais que a disseminação

da causa antimanicomial. Neles, encontrava-se retratada a dimensão simbólica na qual os

participantes do movimento estavam envolvidos. Os meandros da pesquisa propiciaram

também o entendimento de que a luta não ocorria somente contra o rigor manicomial, pois

existia sim uma disputa entre as forças que compunham esse movimento. Vimos que, no

movimento antimanicomial, havia diversas correntes que, apesar de lutarem pela mesma

causa, disputavam o poder por torná-la mais de acordo com os seus interesses específicos.

Percorremos os caminhos sociais do movimento, observamos sua estrutura e fomos

ao encontro de uma produção de saberes sujeitados que se opunham ao discurso científico

vigente. Atestamos esses saberes se libertarem da “sujeição que emerge desta discursividade”

(FOUCAULT, 2008a, p. 172). Nos anos de 1990, constatamos a significativa transformação

na forma de conduzir as questões da área da saúde mental. Cultura, liberdade e cidadania nos

conduzem pelas novas formas de produzir sentidos.

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São diversos e surpreendentes os recursos utilizados pelo movimento para se

relacionar com o poder do Estado. Um exemplo interessante, no primeiro grupo, que

confirmou nossa pesquisa foi o cartaz no. 3, comemorativo do aniversário co CPP II. Na

década de 1970, o CPP II havia protagonizado a crise da Dinsam e, durante a comemoração

dos seus 41 anos, foi contemplado com um cartaz de papel diferenciado, provavelmente

respaldado pelo governo federal. Em seu cabeçalho, traz registrado todas as instâncias

federais vinculadas ao centro, demonstrando assim o apoio ao evento. O nome do CPP II

recebeu destaque. É de grande importância o efeito de sentido referido à instituição por

ocasião de seu aniversário. A imagem exibida no cartaz, no entanto, é antagônica ao motivo

do evento, pois apresenta uma multidão atrás das grades, associando a identidade manicomial

ao aniversariante. O discurso, produzido pela imagem, ocupa a maior parte do cartaz, e não há

elementos discursivos que se contraponham a ela.

As posições centro e periferia discursivas não ocorreram somente nas relações que o

movimento estabelecia com forças externas. Também dentro do movimento se estabelece a

situação de mobilidade e alternância entre as posições. Algumas forças do movimento – CFP,

Secretarias de Saúde, CRPs -, em certos momentos, produziram cartazes e, em outros,

apareciam na figura de apoiadoras. Os grevistas que, nos anos de 1970, não se intitulavam

sujeitos de enunciação, germinaram no MTSM nos anos de 1980. Nos cartazes desses

períodos, é possível observar a ocupação de cargos públicos por atores políticos

antimanicomiais. Acompanhamos, nos anos de 1990, os avanços alcançados pelas forças que

eles representavam. É nessa época que se constata a criação de muitas organizações não

governamentais nos mais diversos lugares do país. Percebemos, ainda, o crescimento da

influência do CFP dentro do movimento e sua estratégia de ação. No decorrer dos anos de

2000, forças que apareciam como apoiadoras se tornaram produtoras de cartazes, como as

Secretarias de Saúde. Encontramos bandeiras de luta que nos fizeram retornar ao tempo. Além

disso, o discurso manicomial se apresenta como novo e capaz de atender aos anseios sociais.

Um avanço da privatização da saúde caracteriza o momento.

Observamos os produtos, divisamos as condições de produção do discurso, como os

atores antimanicomiais em cada época conformaram ideologicamente sua fala, quais

representações utilizaram, de que forma se organizaram e com quem se associaram na

intenção de fazer circular seu discurso.

As estratégias ideológicas usadas por esses atores caracterizaram-se como elementos

de nossa análise. Nos anos de 1980, as táticas como “veja você mesmo” (PÉCHEUX, 1996)

são utilizadas pelos antimanicomiais para provocar indignação sobre o horror dos

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manicômios. Na década de 1990, o uso de símbolos do aprisionamento é confrontado com os

símbolos de liberdade. Frases afirmativas completam o discurso antimanicomial da época.

Nos anos de 2000, posturas mais incisivas e representações mais contundentes a respeito das

bandeiras de luta se alternam com o caráter informativo de outros cartazes.

Nos anos de 1970 e 1980, as associações são com forças sindicais, associações

profissionais, instituições da saúde que se organizam contra a ditadura e se agregam a

movimentos internacionais. Há, ainda, relações estabelecidas com a indústria farmacêutica.

Nos anos de 1990, os principais apoios são prefeituras, CRPs e CFP. Fica clara a retirada dos

apoios vinculados à área médica; em contrapartida, torna-se ampla a influência do Conselho

de Psicologia.

Ao longo do trabalho, encontramos participantes da comunidade antimanicomial.

Entrevistamos algumas pessoas responsáveis pela produção e circulação dos cartazes.

Portanto, as transformações e disputas que marcaram essa comunidade internacional

ganharam contornos. Questões como a formação do movimento nos anos de 1980, as

conquistas ocorridas nos anos de 1990, o crescimento do CFP como força pública dentro do

movimento e a expansão dos núcleos antimanicomiais, fóruns e associações foram reveladas.

Nos anos posteriores a 2000, houve a aprovação da Lei 10.216. A partir daí, os avanços foram

acompanhados por disputas de poder entre as forças antimanicomiais, resultando na criação

da Renila em conseqüência do racha ocorrido no movimento. A Renila, com uma estrutura

formada por núcleos antimanicomiais, caracteriza-se por um perfil mais centralizado. Já o

MNLA, de estrutura aberta a todos os interessados, individuais e coletivos, propicia a

participação mais direta de seus membros. A associação do CFP ao Renila foi outro evento

observado por meio dos cartazes. Tal ligação não só os fortaleceu como interlocutores

importantes das diversas discussões em vários níveis, como também os tornou referência em

termos de apoio dentro do movimento. O suporte dos CRPs aos Núcleos Locais,

independentemente de suas vinculações com a Renila ou o MNLA, também é visível nos

dispositivos dos cartazes.

Um dos nossos pressupostos foi que o movimento poderia não ter sido apropriado e

vivido de forma idêntica em todo o país por causa da diversidade regional que nos habita.

Uma pesquisa que embasou nossa visita às diversas regiões do Brasil, quando verificamos

inicialmente esse pressuposto, foi por nós intitulada “Movimentos Sociais e Novas

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Tecnologias: o Youtube e a Luta Antimanicomial”19

. Realizada durante o período de

doutoramento, ela marcou manifestações do Dia Nacional de Luta Antimanicomial postadas

no You Tube20

, nas cinco regiões do Brasil, capitais e interior. Constatamos ser o Dia

Nacional de Luta Antimanicomial realmente comemorado nos mais diversos lugares do país.

Nas postagens, pudemos distinguir que os eventos organizados tiveram características locais.

Por exemplo, nas da região Sul, havia grande número de vídeos relacionados a eventos

fechados, que divulgam explicativamente a luta antimanicomial; poucos eventos, porém

realizados em espaços públicos. Os eventos da região Sudeste, esse papel foi ocupado pela

sociedade civil organizada. Outra questão observada foi que as cidades pequenas ou disantes

dos grandes centros têm nos serviços o principal alicerce da luta antimanicomial.

Nos cartazes analisados, entretanto, não obtivemos evidências de diferenças

significativas no modo de apropriação local das diretrizes nacionais. Esse foi um dos pontos

iniciais da pesquisa, considerando-se o âmbito nacional do movimento, com núcleos dispostos

em todas as regiões do Brasil. Um dos questionamentos buscava saber se as diversidades

regionais produzem diferenciações no discurso antimanicomial e, em caso positivo, como elas

ocorrem. De modo geral, essa hipótese não se confirmou, embora tenha sido possível

constatar outro padrão de diferenciação.

Nos cartazes dos anos de 1990, não achamos distinções expressivas entre as regiões

brasileiras. Os materiais mostram que os núcleos, associações e fóruns antimanicomiais se

espalharam por todo o Brasil. Há de se registrar um esforço para criar eventos que

divulgavam a causa, como também o fato de as forças nacionais terem instaurado novas

formas de intervenção com o uso de cartazes e eventos que atingiram o país

inteiro.Constatamos assim que os avanços ocorridos foram bem assimilados em todo o nosso

território de modo uniforme, apesar de ser ele bastante variado.

Os cartazes posteriores ao ano de 2000 se tornaram mais diversificados. Há uma

variedade na qualidade dos materiais utilizados. A nosso ver, essas variações apontam para

diferenças municipais, aquisição de apoios e condição financeira dos núcleos, o que

consideramos natural diante da existência de conformações locais. Os Caps, e dessa forma as

prefeituras, firmam-se como sujeitos da enunciação de parte dos cartazes antimanicomiais. No

entanto, não podemos esquecer que, naquele momento, havia forças contrárias à Reforma

19 Resultou artigo de mesmo nome publicado na RECIIS – R. Eletr. De Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.

6, n. 4, Dez, 2012. 20 Site que permite a seus usuários carregar e compartilhar vídeos em formato digital. Fundado em fevereiro de

2005, hospeda grande variedade de materiais e se tornou espaço de visibilidade de enorme pluralidade de atores

sociais, institucionais e políticos.

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Psiquiátrica, bem como um processo de privatização que atingia a saúde em sua totalidade. Os

cartazes, produzidos por núcleos atrelados ao aparelho estatal, não se levantavam contra as

bandeiras manicomiais ou propostas de mudanças no sistema de saúde. Já os elaborados pelos

serviços e municípios são comemorativos, mas seus vínculos limitam sua atuação, sendo seu

principal enfoque a divulgação dos serviços prestados na localidade. Somente a sociedade

civil organizada poderia responder às questões políticas a respeito dos avanços das forças

conservadoras. O cartaz do Rio de Janeiro (nº 11) informa com transparência essas duas

questões.

A organização do movimento,naquele período, é desigual entre as regiões e dentro

delas. Na região Norte, o Pará apresenta produção diferenciada dos demais estados.

Localizamos cartazes de diversas épocas, além de vídeos postados na internet provenientes

daquele estado. No Amazonas, existem atores políticos que transitam nacionalmente, mas sua

sociedade civil organizada atua de forma precária. Sobre Roraima, Rondônia e Acre, não

obtivemos informações, nem por meio do CRP, tampouco pela internet. Tocantins iniciou

uma organização a partir de atores políticos do sudeste do país, que passaram a atuar no local.

Na região Nordeste, encontram-se cartazes de quase todos os estados, tanto de capitais como

de cidades do interior. Já na região Sul, todos os estados foram contemplados, e o Rio Grande

do Sul se destaca pela maior produção. Em relação ao Sudeste, Minas Gerais e Rio de Janeiro

sobressaem na produção de cartazes e liderança no movimento, e o Espírito Santo apresenta-

se também organizado. Não foi possível constatar outras diferenças regionais além de forte

atuação em nível nacional das forças políticas procedentes do sudeste do Brasil.

Poucos cartazes do acervo do Laps, estabelecidos como nosso contraponto durante

toda a análise, apresentam características regionais. Minas, detentora de grande produção

desses materiais, traz, em alguns de seus cartazes, aspectos locais, tais como os elementos da

bandeira da Inconfidência Mineira. Um dos cartazes do Mato Grosso utiliza o artesanato

local. Também o Nordeste e o Sul mostram traços regionais do conjunto de cartazes, há

alguns que se destacam pelas características regionais, mas não foi notado um padrão

diferenciado entre as regiões.

As mudanças ocorridas nos eixos de debate ao longo do tempo influíram claramente

nas temáticas dos materiais. Nos anos de 1980, poucos cartazes têm imagens, as

representações retratam o sofrimento do aprisionamento. As marcas da organização de um

movimento de trabalhadores durante o regime militar, a influência dos movimentos europeus,

as forças antimanicomiais atuando nas instituições públicas e o fortalecimento de um discurso

contra os manicômios delineiam um período que inicia com ditadura militar e se estende até a

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redemocratização do país. Nos anos de 1990, podemos observar que a sociedade civil

organizada localmente assina grande parte dos cartazes. Eles se apresentam alegres e com

cores fortes; todos sinalizam a conquista da liberdade pelos portadores de transtorno mental e

transmitem a necessidade de interação com a sociedade. Há cartazes nacionais que direcionam

sua fala ao público interno do movimento, focando nos novos tipos de intervenção. A época

foi de construção de novas práticas, e as experiências consagradas utilizadas como referência.

A cultura ganhou enorme importância, principalmente por ampliar as possibilidades de

cidadania dos portadores de transtorno mental. Nos anos posteriores a 2000, as temáticas da

sociedade civil apresentam aqueles que têm transtorno mental em uma posição mais

autônoma, reivindicando o direito à diferença.

Ao estudarmos os cartazes, consideramos que, nos anos de 1970 e 1980, eles se

dividiam entre originados da sociedade civil organizada e relacionados aos serviços públicos.

Nos anos de 1990, há a predominância de cartazes produzidos pela sociedade civil organizada

localmente, além do CFP e do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, registrados

como forças nacionais nessa produção. Os anos que se seguiram ao ano 2000 trouxeram

núcleos antimanicomiais, as Secretarias de Saúde Municipais e alguns CRPs produzindo

cartazes locais. A associação CFP e Renila apareceram como produtores dos cartazes

nacionais.

Diversos aspectos das transformações na dinâmica do Movimento da Reforma

Psiquiátrica foram abordados em seu material de divulgação. Na materialidade das superfícies

textuais, muitas foram as questões que se presentificaram. Com base na comunicação, tornou-

se possível reconhecer o contexto sócio-histórico e relacioná-los aos processos em que o

movimento da Reforma esteve inserido. Ao analisarmos as idéias expressas no material de

divulgação, compreendemos para quase outras forças políticas os militantes dirigiam seu

discurso, quem eram seus opositores e de que maneira pretendiam transformar a realidade

daquele momento.

Se, no cartaz do ano de 1978, os grevistas pretendiam pensar a realidade por meio de

um debate, nos anos de 1980, eles se movimentaram pelas instituições públicas, formaram

movimentos sociais e receberam influências do exterior. Os anos de 1990 se estabeleceram

como de consolidação do movimento e das práticas antimanicomiais.

Os cartazes do ano de 2013, realizados por forças da sociedade civil, trouxeram um

vigor que parece captar os acontecimentos de junho de 2013. Naquele mês, ocorreram

manifestações em várias cidades do país. Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília tornaram-se

palco de manifestações que reuniram milhões na rua. Dezenas de outras cidades, nas capitais

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e no interior, também saíram às ruas para mostrar suas insatisfações. Os espaços urbanos

foram ocupados por jovens que, sem lideranças claras, procuravam se manter organizados por

meio de plenárias coletivas.

O cartaz nº 11 do Rio de Janeiro parece ter tido essa percepção. O movimento foi

colocado na rua com bandeiras de cidadania. O Núcleo o inseriu na luta por uma sociedade

mais justa. “Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir” e “Loucura como ( R )

existência” trazem a necessidade de contestação que abarca a sociedade civil antimanicomial

e a exigência de ser aceito com sua diferença. Os cartazes da sociedade civil organizada

apontam a conformação de um novo momento. O do Rio de Janeiro orienta que a situação

requer o engajamento nas lutas populares democráticas que vêm se conformando. Os valores

universais, como direitos humanos e diversidade, entre outros, já norteavam o movimento e

também aproximavam os antimanicomiais de outros movimentos que defendiam as

subjetividades.

As questões consideradas nos cartazes do ano de 2012 e 2013, valendo-se dos

slogans “Saúde não se vende, gente não se prende” , “Trancar não, acolher sim” , “Não à

privatização e encarceramento da vida”, são temas que surgem nas regiões Sul e Sudeste do

país e também por meio do CFP / Renila. Os temas nos remetem ao crescimento de uma

política que oferece vagas de instituições privadas pelo sistema público e a terceirização de

servidores que trabalham na área pública da saúde.

Os serviços de atenção psicossocial, em sua construção, priorizaram os usuários com

quadros mais graves, psicóticos ou neuróticos, aqueles que poderiam estar fadados a longos

internamentos. Nesse segmento, registram-se enormes avanços da desinstitucionalização. Os

antigos manicômios foram, em parte, desativados, e os usuários dos serviços reinseridos no

convívio social. Hoje, existe a preocupação, por parte dos trabalhadores de saúde mental,

relacionada à consolidação da rede de atenção psicossocial, principalmente diante do avanço

da precarização dos vínculos no setor público e da possibilidade de investimentos parcos no

serviço desinstitucionalizada.

Os caminhos parecem apontar para maior resistência a partir da união com outros

setores, seja na atenção ou no movimento social. O fortalecimento com ações intersetoriais –

como proposto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental – e o engajamento com

movimentos que defendem os diferentes sujeitos, os direitos humanos e a construção de uma

vida mais digna para a população podem prover ao Movimento de Luta Antimanicomial a

firmeza necessária para enfrentar novos desafios. Não nos esqueçamos das ameaças de

privatização no setor saúde e a precarização dos vínculos que têm se disseminado nos serviços

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públicos. Para o movimento e os serviços, existe uma demanda de trabalho com grupos

externos que, aparentemente, trazem avanços ao movimento e aos serviços. Estar junto a

outras forças sociais que acarretam o fortalecimento das posições do movimento

antimanicomial e lutar para uma sociedade mais justa em seu conjunto são caminhos que vêm

se conformando.

O movimento precisa estar apto a dar respostas necessárias às ofensivas

conservadoras, porque o poder é móvel e disputado. As forças estão em constante

acomodação. Em sua área interna, o movimento possui vários segmentos que tomam a causa

antimanicomial para si. Há, em seu íntimo, disputas acirradas que determinam a forma de

condução. Existem diferenças. Uma questão que só se apresenta em um dos cartazes do ano

de 1980 é a dos medicamentos. A indústria farmacêutica obtém lucros fabulosos com a área

da saúde mental. Apesar dos enormes avanços científicos, a contenção química continua

muito usada no tratamento mental. Registra-se aqui uma força simbólica que interage com as

forças a favor e contra a Reforma Psiquiátrica. Os avanços ocorridos no conhecimento

científico das doenças psiquiátricas e os novos medicamentos que decorreram desses avanços

trazem à medicina biológica um novo capital simbólico. Existe aqui um embate pelo estatuto

da verdade. Por um lado, o discurso científico vigente e, por outro, saberes libertos que

causaram enorme transformação na condução das questões da área da saúde mental.

Entre os cartazes analisados, somente o cartaz nº 8 propicia conhecer a associação de

usuários que ocupa o lugar do sujeito da enunciação. No entanto, nos núcleos e fóruns de

saúde mental, há provável participação de usuários e familiares. Nos materiais de divulgação,

os usuários ocupam o lugar de quem se fala. A importância de eles preencherem esses lugares

é fundamental na condução do movimento, para que suas questões não sejam discutidas

verticalmente, e as decisões sejam democráticas e tomadas pelo maior número de

participantes.

No campo da saúde mental há muitos desafios a serem superados. As posições

diversas existem e são salutares. Não se pode, entretanto, esquecer das questões que

perpassam o movimento antimanicomial em sua base. Os cartazes do ano de 2013 nos trazem

o entendimento de que, apesar da condução diferente, as questões que formam o âmago do

movimento são abarcadas por todos os grupos da sociedade civil organizada, que milita no

movimento antimanicomial.

Todos os cartazes analisados nas mais distintas épocas trazem questões que

envolvem o transtorno mental, principalmente, psicóticos e neuróticos graves. A saída dos

manicômios e as questões relacionadas à cidadania e ao direito de ser diferente convergem

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para os sujeitos com transtornos mentais graves. Outros temas que compõem o interesse da

saúde mental não são recorrentes nos cartazes antimanicomiais.

Note-se que as ações dos setores conservadores da psiquiatria vêm se desenvolvendo

em áreas pouco privilegiadas nos cartazes. As forças conservadoras que lucraram, por muitos

anos, com hospitais que amontoavam pacientes psiquiátricos e obtinham fabulosos lucros,

mas foram desacreditados cientificamente e condenados sob o juízo ético, voltam para tentar

impor sua visão de mundo. No uso do poder invisível de construção da realidade, elabora-se o

dado pela enunciação: o internamento para o crack é apresentado de forma positiva. O

desenvolvimento de tal afirmativa, circulando no mercado simbólico dos sentidos sociais,

pode ser capaz de transformar e / ou direcionar a visão das pessoas sobre o tema. Como

explica Bourdieu (2009, p. 8), a “cumplicidade daqueles que não querem saber” permite que

se cumpra a máxima teórica de que o dado se produz pela enunciação, quando ocorre a

possibilidade do exercício do poder simbólico. As forças conservadoras reaparecem

organizadas, contam com apoio político, com a midiatização dos fatos e argumentos, além de

apresentarem seus serviços como altamente resolutivos.

Acreditamos que os objetivos que estabelecemos para nossa pesquisa foram todos

cumpridos. No início da análise, para cada grupo de cartazes, foi realizada a contextualização

do momento sócio-histórico-discursivo, na qual buscamos identificar a relação possível entre

as mudanças nos eixos de debate ao longo dos anos e as temáticas dos materiais. Também

procedemos à identificação, compreensão e comparação dos dispositivos de enunciação dos

cartazes analisados, tendo como contraponto sua dimensão temporal e geográfica, assim como

a identificação e análise das disputas de sentidos entre os diferentes discursos que ali se

manifestavam.

O Objeto foi plenamente alcançado. Privilegiamos três entrevistas com atores que

tiveram percurso importante no movimento. Enfim, o processo de identificação, obtenção e

seleção final dos cartazes para compor o corpus analítico revelou-se extremamente longo, o

que contribuiu para reduzir o tempo de análise e escrita desta tese.

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Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista, Assis, São Paulo,

1999.

______. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. 2006. Tese

(Doutorado em Saúde Pública) – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública

Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2006.

______. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro:

Editora Fiocruz, 2010.

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ANEXOS

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Anexo I

Mapa dos Contatos

SUDESTE

São Paulo

[email protected], (Região do ABC Paulista)

[email protected], (Região ABC Paulista)

[email protected] (Pedro Carneiro - São Bernardo do Campo)

[email protected] (Patricia - São Paulo)

Rio de janeiro

[email protected], (João Batista - Angra dos Reis)

[email protected] 07/05/13

OI Márcia, Voltei sábado de viagem e estou retomando minhas atividades.

Acompanhei as discussões por e-mail e hoje recebi o cartaz. Gostaria muito

de obter informações mais detalhadas sobre o processo de confecção e

distribuição. Posso contar com sua colaboração? Um grande abraço, Wanda

Telefonei para Daniela (21) 88 87 89 99 ( 14/05/2013)

Boletim nº85 - Marcelo Freixo – divulga evento antimanicomial - 16 de maio

Espírito Santo

[email protected], (Eduardo - Espírito Santo)

[email protected], (Andréa - Espírito Santo)

Minas Gerais

joao991@pop. com.br, (João - Minas Gerais)

[email protected] ( minas gerais - TV Parabolinoica) – e-mail que o João

mais utiliza

João me telefonou no dia 25 de agosto de 2011, me disse que me encaminharia por pdf alguns

arquivos da TV Parabolinoica. Me deu o nome do designer da página parabolinoica Roney

Sampaio (31) 85 55 93 33 e 25 11 48 01 , além de ter comentado sobre estagiária que fez

logo. Disse que projeto foi desenvolvido apartir Edital Loucos pela diversidade. Instituto

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CA, agencia de Comunicação solidária. Projeto Imagem Comunitária estão relacionados

com a TV.

Enviei 25 de agosto de 2011 e-mail

Oi, João agradeço o contato, sua colaboração e aguardo o envio do material. Ainda

peço mais um favor,se você conhecer alguém que participa ou participou do Fórum Mineiro

de Saúde Mental ou da

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Anexo II

Roteiro de entrevista

Perfil :

1- idade:_________________

2- sexo:

( ) feminino ( ) Masculino

3- local de atuação:

( ) Cidade ____________( ) Estado __________________

Outro:______________________

Nas partes seguintes a entrevista será semi-dirigida:

Eixo I: O movimento antimanicomial

4-Faz quantos anos você participa da Luta Antimanicomial?

5- Fale um pouco da sua inserção no movimento?

Como você descobriu a Luta Antimanicomial? E por que você se interessou em

participar do movimento? Como sua participação influiu ou influi na sua vida

pessoal? Eventos ou acontecimentos que considera importantes. Núcleo a que está

vinculado se houver

6-Você tem ou teve inserção em outro movimento social? Qual? Por quanto tempo?

7-Quais os principais problemas do Movimento da Luta Antimanicomial? Como você

acredita que estes problemas possam ser resolvidos?

8-Você acha que as ações desenvolvidas são as mais adequadas para os usuários de Saúde

Mental? Em caso negativo, que ações devem ser implementadas?

9-Você acha importante participar das atividades do Movimento de Luta Antimanicomial?

Por que?

EIXO II : Os Materiais de Divulgação

10-Você criou ou ajudou a criar cartazes ou algum outro material de divulgação para o

movimento da Luta Antimanicomial?

Se positivo responder as perguntas 17- 22. Se negativo ir diretamente a pergunta 23

11- Qual o material? Ocasião específica - data

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12 -Foi criado material semelhante em outros locais do Brasil ou mesmo no seu estado para

divulgar o mesmo evento ou data comemorativa? Em caso positivo diferenças e semelhanças

entre os materiais.

13-Como foi o processo criativo? Individual ou coletivo.

14-Algum item não saiu como o esperado?Qual?

15-Quem foram os patrocinadores? Eles influíram no processo?

16- Como você observa o resultado do trabalho? O resultado foi o esperado? Você se lembra

da repercussão do material?

17- Você observa mudança na forma de elaboração dos materiais de divulgação durante o seu

tempo de participação no movimento?

18-O que você acha dos materiais de divulgação do Movimento?

19-Algum em especifico lhe chama a atenção?

20-Você tem hábito de usar camisetas, bottons ou bolsas que informem de eventos ou

divulguem o movimento?

21-Você distribui materiais de divulgação do movimento?

22- Você guarda materiais de divulgação de eventos que você participou?

23-Como você vê a divulgação da Luta Antimanicomial?

24- Você é capaz de detectar mudanças ocorridas no movimento durante o seu tempo de

participação?

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Anexo III

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Você está sendo convidado para participar da Pesquisa Comunicação e Movimento da Reforma

Psiquiátrica no Brasil: no reclame da liberdade o novo lugar da loucura.

O objetivo da pesquisa é compreender as relações entre práticas de comunicação e articulação

política dos movimentos sociais na área de saúde. A sua participação será através de uma entrevista com o

tempo aproximado de uma hora, a entrevista será gravada e os dados serão transcritos. O seu nome estará

associado ao seu depoimento com a finalidade de divulgar a história do Movimento da Reforma Psiquiátrica no

Brasil.

O estudo pretende fornecer um maior conhecimento sobre o Movimento de Reforma Psiquiátrico no

Brasil e seus materiais de divulgação. A entrevista não apresenta risco, mas o entrevistado terá acesso as

gravações e a garantia que poderá desautorizar o seu uso a qualquer momento. A sua participação não é

obrigatória e sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou o Programa de Pós

Graduação de Comunicação, Informação e Saúde (PPGCIS). Por intermédio desse Termo são garantidos os

seguintes direitos: (1) solicitar, a qualquer tempo, maiores esclarecimentos da Pesquisa; (2) recusar a responder

qualquer pergunta ou a fornecer informações que julgue prejudiciais à sua integridade física, moral e social; (3)

solicitar que determinadas falas e/ou declarações não sejam incluídas em nenhum documento; (4) desistir, a

qualquer tempo, de participar da pesquisa; (5) escutar a entrevista que será gravada e desautorizar o seu uso após

a escuta.

A entrevista só será gravada mediante esta autorização. Os resultados caso queira serão a você

disponibilizados. Uma cópia desse Termo permanecerá arquivada com a Pesquisadora responsável e outra será

entregue ao entrevistado. No final do termo consta o telefone e o endereço institucional da pesquisadora

principal e do CEP, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação , agora ou a qualquer

momento.

Rio de Janeiro, ____de _____________de 201( ) .

Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na pesquisa e concordo

em participar.

Participante: _______________________________________________________________

Assinatura do Pesquisadora: ___________________________________________________

Profa Wanda Espirito Santo

Doutoranda do Programa de Pós Graduação de informação comunicação e saúde

Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

Tel – 96 26 05 16 Av. Brasil, 4036/2º andar - Manguinhos

Rio de Janeiro (RJ) - Brasil

Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)/

Fiocruz : Av. Brasil - 4365 - Manguinhos –EPSPJV, sala 316 Rio de Janeiro - RJ - CEP 21040-900 Tel.:

(21) 3865-9710 – email: [email protected]).