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Ano V, n. 09 – setembro/2009 1 WATCHMEN: Ficção e Contexto Sociocultural Rafael Sanzio Borges Lima 1 Resumo O objetivo desse artigo é analisar como são configuradas as relações entre ficção e contexto sociocultural na Graphic Novel Watchmen. Os filmes, quadrinhos, livros, as mídias em geral são tentativas de representar a realidade. A mídia tenta transferir para o público o seu conceito de realidade. Nas histórias em quadrinhos tenta-se tornar realistas as tramas desenvolvidas, principalmente na época atual onde os quadrinhos estão sendo levados para o cinema. Em Watchmen são criadas uma série de anexos que servem de aprofundamento para a história como para criar uma sensação de verossimilhança de mundo real em seus personagens. Palavras – chave: História em quadrinhos. Mídia. Ficção. Contexto sociocultural. Introdução Uma história simples é fácil transferir para a realidade, mas quando colocamos componentes como super-heróis é preciso calcular e imaginar quais seriam as repercussões na realidade fora dos quadrinhos. Watchmen foi um marco no mundo das HQs (Histórias em quadrinhos) elevando o nível das histórias de super-heróis com temas como drama, sexo, violência, religião, ciência, uma trama envolvente e de qualidade que permitiu sua entrada na categoria de Graphic Novel. Para se ter uma idéia, os super-heróis como Super-Homem e Batman não foram colocados em localidades reais, a maioria de suas aventuras ocorrem em cidades fictícias como Metrópoles e Gotham City respectivamente. Ou seja, Watchmen ousa criar uma história com localidades reais e sem o medo de mexer com personalidades que existiram na época. Além de se destacar com o roteiro, a equipe de Watchmen inovou em seus métodos de impressão da “realidade”. Ou seja, com métodos que fazem com que o leitor acredite que a história não é absurda e pode ser real. Watchmen criou anexos, como se fossem hiperlinks, com os quais o leitor poderia se aprofundar na história. Esses anexos são elementos 1 Graduando de Comunicação Social da UFPB, habilitação Radialismo. Integrante do Grupo de Pesquisa em Humor, Quadrinhos e Games (GP-HQG), do NAMID – Núcleo de Artes Midiáticas (PPGC/UFPB).

WATCHMEN: Ficção e Contexto Sociocultural · seu Mito da Caverna, onde a realidade vista pelos prisioneiros seriam ilusões representadas por sombras. Mas deixando a filosofia um

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Ano V, n. 09 – setembro/2009

1

WATCHMEN: Ficção e Contexto Sociocultural

Rafael Sanzio Borges Lima1

Resumo O objetivo desse artigo é analisar como são configuradas as relações entre ficção e contexto sociocultural na Graphic Novel Watchmen. Os filmes, quadrinhos, livros, as mídias em geral são tentativas de representar a realidade. A mídia tenta transferir para o público o seu conceito de realidade. Nas histórias em quadrinhos tenta-se tornar realistas as tramas desenvolvidas, principalmente na época atual onde os quadrinhos estão sendo levados para o cinema. Em Watchmen são criadas uma série de anexos que servem de aprofundamento para a história como para criar uma sensação de verossimilhança de mundo real em seus personagens. Palavras – chave: História em quadrinhos. Mídia. Ficção. Contexto sociocultural.

Introdução

Uma história simples é fácil transferir para a realidade, mas quando colocamos

componentes como super-heróis é preciso calcular e imaginar quais seriam as repercussões

na realidade fora dos quadrinhos. Watchmen foi um marco no mundo das HQs (Histórias em

quadrinhos) elevando o nível das histórias de super-heróis com temas como drama, sexo,

violência, religião, ciência, uma trama envolvente e de qualidade que permitiu sua entrada na

categoria de Graphic Novel. Para se ter uma idéia, os super-heróis como Super-Homem e

Batman não foram colocados em localidades reais, a maioria de suas aventuras ocorrem em

cidades fictícias como Metrópoles e Gotham City respectivamente. Ou seja, Watchmen ousa

criar uma história com localidades reais e sem o medo de mexer com personalidades que

existiram na época.

Além de se destacar com o roteiro, a equipe de Watchmen inovou em seus métodos de

impressão da “realidade”. Ou seja, com métodos que fazem com que o leitor acredite que a

história não é absurda e pode ser real. Watchmen criou anexos, como se fossem hiperlinks,

com os quais o leitor poderia se aprofundar na história. Esses anexos são elementos

1 Graduando de Comunicação Social da UFPB, habilitação Radialismo. Integrante do Grupo de Pesquisa em Humor, Quadrinhos e Games (GP-HQG), do NAMID – Núcleo de Artes Midiáticas (PPGC/UFPB).

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midiáticos como jornais, matérias de revistas, trechos de livros, tudo com o linguajar

característicos dessas mídias.

Apesar de ser uma história com super-heróis, comerciais em sua maioria e essência,

Watchmen se destaca por retirar esse estigma e mostrar sua capacidade de fazer ficção com

referências fictícias no mundo real ou no contexto sociocultural com super seres na trama,

como por exemplo a própria Graphic Novel Watchmen, na trama que envolve um

personagem com super poderes. Dr. Manhattan, faz com que ocorram mudanças

significativas no contexto histórico, econômico e político dos Estados Unidos de 1985.

Richard Nixon teria conduzido os EUA à vitória na Guerra do Vietnã e em decorrência desse

fato, teria permanecido no poder por um longo período. O contexto da Guerra Fria contém

forte relação com os personagens principais, o autor Alan Moore foge do maniqueísmo

existente nas HQs de super-heróis da época. Não há heróis e vilões definidos, tece assim uma

crítica aos pensamentos da Guerra Fria, no qual EUA e a União Soviética tentavam cada um

vestir a capa de “heróis” e transformar seu oponente em vilões do mundo.

A ficção e o contexto sociocultural

O homem tenta definir o que é realidade, essa questão permeia até hoje, desde Platão e o

seu Mito da Caverna, onde a realidade vista pelos prisioneiros seriam ilusões representadas

por sombras. Mas deixando a filosofia um pouco de lado, o ser humano demonstra sua visão

de mundo quando cria algo. Geralmente os artistas em suas obras estão tentando representar

a realidade, uma escultura de uma mulher é uma representação de uma mulher real. Até

mesmo artes abstratas partem de uma realidade, nem que tenha como referência o mundo do

autor.

As mídias, como televisão, cinema, rádio também oferecem suas representação de

mundo. As notícias são representações da realidade por parte da televisão, rádio, jornal. Os

filmes também tentam trazer a realidade de nosso mundo para a trama, com o objetivo de

fazer com que o público dê crédito àquela realidade criada. “Os telejornais , os

documentários e os “direto” nos dão a impressão de serem testemunhas do mundo” (JOST,

2004, p. 33).

O mesmo acontece com os quadrinhos. Ao exemplo de quadrinhos que retratam a época

medieval, como Príncipe Valente, que possui elementos na trama e em seu visual que

remetem ao mundo fora quadrinhos. É a ficção e o contexto sociocultural unidos para criar

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esta representação da realidade, para colocar o leitor naquele universo criado. Em 1938, com

a publicação e o estrondoso sucesso da primeira história do Superman, surgiu o gênero dos

super-heróis, que se tornaria o paradigma dos quadrinhos norte-americanos. Em torno desses

heróis mascarados, a partir da década de 1940, desenvolveu-se uma verdadeira indústria do

entretenimento.

A Graphic Novel (“Romance Gráfico”) Watchmen se destaca por suas inovações no que

diz respeito a esse mecanismo de representação. Graphic Novel é um tipo de revista em

quadrinho, mais complexa, assemelhando-se com uma espécie de livro. Watchmen, foi criada

pelo escritor Alan Moore e pelo ilustrador Dave Gibbons, originalmente publicada em 12

edições pela editora DC Comics no período de 1986 e 87. A obra tem como ponto de partida

a premissa: qual seria o real impacto da presença de vigilantes e super humanos em nosso

mundo?

Watchmen expõe ao leitor galeria de combatentes do crime, em sua maioria detentores de

distúrbios mentais e sexuais, solitários, confusos e aterrorizados quanto à impotência de suas

ações frente ao iminente holocausto nuclear (a trama ocorre no ápice da Guerra Fria). Alan

Moore caracteriza seus personagens de forma tão realista e implacável que é difícil, após a

conclusão da série, levar o conceito de “super-herói” novamente a sério. Moore insere no

enredo diversos elementos do mundo “real”, modificando pontualmente o universo da HQ

(História em Quadrinhos) em conseqüência dos efeitos, naquela realidade, do surgimento dos

“super-heróis”.

Essa obra extremamente original chamada Watchmen levanta diversas questões, entre

elas a mais pertinente acerca do processo inovador utilizado por essa Graphic Novel para

configurar a realidade no universo da trama.

A guerra fria em Watchmen

Um dos pontos na trama de Watchmen que caracteriza a relação entre ficção e contexto

sociocultural são as repercussões criadas pela presença de vigilantes e super-seres no mundo.

A mais visível seria o modo como foi mudada a política e a estrutura da conhecida Guerra

Fria entre os Estados Unidos e União Soviética. Mas para observar essas mudanças é preciso

evocar uma revisão histórica dessa época, além de conhecer o legado do ex-presidente

Richard Nixon.

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Após o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo serviu de palco para a disputa

entre as duas superpotências: Estados Unidos e União Soviética. Os dois países estavam

impossibilitados de realizar uma guerra direta, pois envolveria um confronto nuclear, então

ao longo de mais de 40 anos (com início no ano de 1945) os EUA e a URSS disputaram seus

poderes de influência política, econômica e ideológica de todo o mundo. Entre essas disputas

estava a corrida armamentista. Essa corrida foi motivada pelo receio recíproco que o inimigo

passasse na frente e criasse um desequilíbrio internacional.

Em 61, o presidente norte-americano John F. Kennedy enfrentou algumas crises. A falha

em depor o governo de Fidel Castro e a construção do Muro de Berlim pelos soviéticos e

alemães orientais. Estes fatos obrigavam o presidente a tomar uma atitude para que os

Estados Unidos não fossem considerados um fracasso em deter a expansão comunista.

Devido a isso, comprometeu-se em ajudar o Vietnã do Sul (pró-capitalista) contra o Vietnã

do Norte. Kennedy era contra o envio de tropas americanas, acreditando que o Vietnã do Sul

era capaz de lidar com a guerra sozinho, sendo auxiliado apenas com a assistência militar de

treinamentos de soldados e fornecimentos de armas. Os EUA enviaram suas tropas em 65,

apesar de ser uma superpotência, a geografia e determinação do Vietnã do Norte acabaram

com o pensamento de uma vitória fácil e rápida.

Em 68, o candidato republicano Richard Nixon é eleito presidente dos Estados Unidos, a

guerra do Vietnã continua e se intensifica sob o comando do novo presidente. Com o tempo,

o movimento antiguerra crescia nos EUA com manifestações constantes, a revelação de

massacre de civis, mulheres e crianças principalmente, aumentaram a pressão pela paz. Com

a popularidade baixa e suas investidas estratégicas levadas ao fracasso, Nixon, em 1973

anunciou ao mundo a suspensão das operações ofensivas norte-americanas.

No dia 8 de agosto do ano de 1974, Richard Nixon foi o primeiro presidente em 200 anos

de história a renunciar o cargo. O motivo pelo qual o levou a tomar essa atitude foi a

iminência de um impeachment. Cinco dos seus funcionários da campanha de reeleição foram

presos colocando grampos na sede do Comitê Nacional Democrata de Washington. O famoso

caso Watergate. Esse escândalo teve uma grande repercussão nacional, fazendo com que

gravações feitas no salão oval fossem abertas ao público. No filme Frost/Nixon (2008) é

perceptível o quanto negativo foram os atos do presidente Nixon e como o Vietnã ajudou em

seu declínio político. Richard Nixon renunciou e tornou-se um dos presidentes mais

impopulares dos Estados Unidos.

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Com essas informações é interessante analisar o fato que na trama de Watchmen o

presidente em exercício é Richard Nixon, rumo ao seu terceiro mandato (Figura 01). Alan

Moore cria esse jogo de fazer um então impopular presidente em um adorado presidente. É a

ficção relacionando-se com o contexto sociocultural e alterando-o aos interesses do autor.

FIGURA 01: A mídia é usada constantemente como veículo de transmissão do contexto sociocultural

Diferente dos quadrinhos anteriores ao Watchmen onde relacionavam personagens a

acontecimentos marcantes do mundo, mas apenas como plataformas ideológicas:

O Super-Homem foi convocado pelo presidente

Roosevelt para ajudar na luta contra Hitler. O Capitão

América lutava contra o Caveira, que era líder dos

nazistas. Os super-heróis, além de defenderem aliados,

faziam apologia do patriotismo norte-americano. O que

ocorreu, posteriormente, foi que os super-heróis

ganharam a guerra e a indústria de quadrinhos cresceu

cada vez mais investindo nesse filão. (DA SILVA,

2002, p. 20).

Mas que contribuição ficcional foi capaz de criar esse novo contexto? O que foi

modificado para ser possível esta reviravolta? Que fatores contribuíram com essa nova

posição do presidente dos Estados Unidos? Quem ou “o quê” proporcionou essa nova

dinâmica tem um nome: Dr. Manhattan.

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O impacto causado pelo Dr. Manhattan e os vigilantes mascarados

Em 1959, o doutor em física nuclear John Osterman sofre um acidente durante uma

experiência feita para subtrair partículas de um padrão atômico, mas conservando intacto o

padrão eletromagnético governante. O doutor descobriu que tinha um corpo subtraído, mas

uma inteligência ainda viva. Depois de conseguir se reconstruir, ele descobriu que era uma

pessoa diferente, e possuía uma grande quantidade de habilidades ligadas ao universo

quântico (Watchmen Edição Definitiva, 2009, p. 424).

Em seu novo estado, John recebe um novo nome, Dr. Manhattan em alusão ao Projeto

Manhattan (plano secreto de desenvolvimento de armas nucleares por parte dos Estados

Unidos). Na sua nova concepção de ser, John começa a ser usado para fins políticos. Em

meio a Guerra Fria o super ser Dr. Manhattan era uma arma que a URSS não conseguiria

reproduzir:

FIGURA 02: Dr. Manhattan é motivo de orgulho e usado como ferramenta de intimidação aos inimigos

dos EUA.

Podemos observar então que o Dr. Manhattan pendeu a balança da Guerra Fria

favoravelmente para os Estados Unidos, evitando conflitos como a invasão do Afeganistão

pela União Soviética que originalmente foi em 1979, mas na trama apenas acontece em 1985

(devido ao auto-exílio de Manhattan). Contudo, a presença desse personagem no cenário da

Guerra Fria faz aumentar as pressões quanto a um combate iminente. Os EUA impõe uma

agressiva política externa com o comodismo de ter um super ser ao seu lado, pressionando

cada vez mais a URSS. Essa atitude faz com que analistas na história temam que o país

Soviético utilize-se da manobra Destruição Mútua Assegurada, conceito real criado na época

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no caso drástico de um confronto entre as duas superpotências culminando na destruição do

mundo por meio de armas nucleares.

Outra mudança ocorrida no contexto sociocultural foi a permanência de Nixon no cargo

de presidente dos Estados Unidos. Alan Moore teve a intenção de chocar o leitor ao fazer com

que um presidente derrotado politicamente virar um herói americano tão famoso ou mais

quanto foi John Kennedy, graças à intervenção do Dr. Manhattan. Podemos estremecer um

pouco ao conjecturarmos esse super-herói em nossa realidade e nas mãos de George W. Bush.

Em entrevista para este artigo, Manassés Alves da Silva Filho proprietário de uma Comic

Shop (loja especializada em histórias em quadrinhos) falou sobre o Dr. Manhattan: “Para mim

a presença dele é uma alegoria de que um Deus que caminha entre homens e foi fabricado por

um governo não é ética”.

Aprofundando mais na questão Nixon, Dr. Manhattan só participou militarmente na

política norte-americana em 1971, a pedido do presidente Richard Nixon para resolver a

guerra do Vietnã. Bastou dois meses para os vietnamitas do norte se entregarem ao poder do

Dr. Manhattan. Com essa vitória a popularidade de Nixon cresceu (Figura 03). A guerra foi

resolvida de forma intimidadora, reprimindo qualquer protesto sobre sua duração.Graças a

essa virada nos acontecimentos o caso Watergate não teve importância, seja porque Nixon

não precisou ou porque conseguiu sobreviver ao escândalo.

FIGURA 03: A vitória na guerra do Vietnã proporcionou a Nixon mais credibilidade.

Mas a mudança provocada pelo personagem não foi apenas política, a economia foi

afetada pelos desenvolvimentos tecnológicos proporcionados pelo poder avançado do super-

herói. Na realidade da HQ os dirigíveis são agora o meio de transporte mais viável e

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econômico, seguido dos carros elétricos. A genética e a produção de novos materiais também

sofreram influência dos avanços implementados por Manhattan.

Entretanto, nem todos os heróis gozavam do privilégio do Dr. Manhattan, os vigilantes

mascarados surgiram no ano de 38, com o primeiro herói mascarado: Justiça Encapuzada. A

seguir apareceram outros vigilantes que com sua presença também mudaram o contexto

sociocultural da época. Leis foram moldadas para acomodar os vigilantes, principalmente

depois do surgimento do Dr. Manhattan. A polícia se incomodou com a presença dos

vigilantes, provocando uma greve geral em 77, três dias violentos se seguiram até que uma lei

jogou os vigilantes mascarados de volta à ilegalidade.

Precisamos observar outra mudança que aconteceu nas próprias histórias em quadrinhos.

Na realidade de Watchmen os heróis haviam saído das revistas, portanto o apelo deles havia

acabado. David Gibbons em entrevistas para o documentário A história dentro da história: os

livros de Watchmen (2009), comenta acerca da escolha dos piratas como nova modo depois

dos super-heróis: “O que mais seria tão excitante, vívido e fanfarrão do que as histórias de

super-heróis? Piratas.”. Em Watchmen Alan Moore utilizou-se de uma história dentro de

outra história, ou seja, em meio a trama principal um garoto lê uma revista em quadrinhos de

piratas. A narração do gibi mescla com a da própria história principal (Figura 04), a equipe de

produção usou do pontilhismo como outro elemento de diferenciação, mas só pôde ser usado

na versão em tamanho grande de Watchmen. O próprio traço é diferenciado, Contos do

Cargueiro Negro (nome do gibi dentro de Watchmen) possui um desenho mais dinâmico e

empolgantes de certa forma e muito mais viscerais, também usando outro tipo de paleta de

cores.

FIGURA 04: A narrativa da trama secundária mescla-se de forma coesa com a trama principal.

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A Graphic Novel Watchmen possui um inovador sistema de impressão da realidade ao

longo de 11 das 12 edições. São anexos no final de cada edição que servem como

aprofundamento para história e personagens, utilizando-se de uma estrutura realista para

alcançar um maior grau de verossimilhança com o nosso mundo que convém chamar de

realidade.

Expressões do cotidiano: os anexos de Watchmen

Uma curiosidade é que esses anexos surgiram como uma feliz coincidência, na época da

produção a chefia da DC Comics decidiu não incluir propaganda na revista, porque o trabalho

era incomum em si, porém a decisão foi tardia deixando um espaço vazio nas páginas finais.

Até que surgiu a idéia para utilizar esse espaço para aprofundar a história. Paul Levitz,

presidente e editor da DC Comics na época da realização do documentário (o mesmo que

Gibbons realizou a entrevista), disse que criadores e equipe editorial de Watchmen se

juntaram para criar histórias secundárias, que evocavam o mundo que os Watchmen viviam.

Com os anexos, há essa interação com a percepção cotidiana do leitor, fazendo com que

essa nova realidade seja aceita. Mas precisa haver coerência para que ela seja bem recebida

pelo receptor. “Os signos da ficção fazem então referência a um universo imaginário, mental,

e nós exigimos que ele esteja disposto de tal maneira que a coerência do universo criado, com

os postulados e as propriedades que o fundam, seja respeitada.” (JOST, 2004, p. 37). O uso

das mídias para representar este fator de interação foi uma decisão precisa da equipe. A

influência exercida pelas mídias nos indivíduos deve-se ao fato de que a vida cotidiana é

dominada por um terceiro elemento, a mercadoria, os indivíduos não se relacionam

mutuamente ou entre si de forma plena, total. “Outro aspecto que é importante ser destacado é

o papel que os meios de comunicação têm na construção da percepção do cotidiano, criando

outra realidade e tentando construir a todo momento essa consciência cotidiana.” (DA

SILVA, 2002, p. 37). Em Watchmen cria-se a própria mídia para usar-se dessa percepção do

cotidiano.

Em A história dentro da história: os livros de Watchmen, o escritor Danny Fingeroth

(2009) faz uma comparação contemporânea dos anexos com os atuais hiperlinks: “Ter essa

narrativa em texto dentro da história é quase como precursor ou de previsão da internet. É a

história por trás da história, um comentário sobre ela.”. O leitor possui a independência de só

ler a trama principal, mas se quiser se aprofundar basta “acessar” os anexos no final da

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edição. As mídias fictícias tanto nos anexos como em passagens durante a história servem

para contextualizar a trama e seus personagens (Figura 05). Deve-se ficar atento durante a

leitura da obra, pois ela transmite mensagens com cartazes espalhados nas paredes e também

usa muito manchetes de jornais.

FIGURA 05: São usados noticiários, mas outros veículos da imprensa também são utilizados.

“Este recurso é fantástico e prima por gerar um clima de veracidade e profundidade ao

personagem bem como a toda narrativa.” (FILHO, 2009). Os anexos nas 11 edições são

compostos de um processo criativo com trechos de livros como da autobiografia de um

vigilante mascarado, do livro sobre o Dr. Manhattan, sobre o mercado dos quadrinhos de

pirataria, um artigo sobre corujas produzido pelo personagem Dan Dreiberg. Outros anexos

são reproduções realistas de documentos que são mencionados ou aparecerem na trama, como

a ficha criminal de Rorschach, esboço da produção da edição de jornal New Frontiersman,

livro de recortes de Sally Júpiter, planos de marketing da empresa de Adrian Veidt. Por

último uma entrevista com este último personagem. Todas essas informações contribuem de

certa forma a compreensão de algum personagem ou fato retratado na edição ao qual foram

anexados.

A autobiografia de Hollis Mason

Nos volumes 1, 2 e 3 de Watchmen são apresentados em seus anexos trechos da

autobiografia do primeiro Coruja, Hollis Mason (Figura 06), quando falamos “trechos” é de

um outro recurso de impressão da realidade usada pela equipe da Graphic Novel, não há um

livro completo. Os trechos “escolhidos” foram criados para motivos de compreensão da

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história. Segundo Jenette Khan, presidente e editora da DC Comics em 1981 – 2002, Sob o

Capuz (nome do livro) é o prólogo de Watchmen. A importância deste anexo deve-se ao fato

de que são personagens novos, não tendo uma história longa nos quadrinhos como Super-

Homem ou Batman, portanto era essencial essa visita ao passado, explicando o surgimento

dos heróis até a nova geração que a trama principal acompanha.

FIGURA 06: A imagem do clipe junto a primeira página totalmente em prosa aplica uma sensação de

realidade.

Gregory Noveck, VP sênior e membro da área criativa da DC Comics (outro entrevistado

no documentário) comenta que haveria um meio cultural totalmente novo com a chegada dos

vigilantes mascarados, eles assumiriam o posto de celebridades. Quando esse tipo de

celebridade se aposenta tende-se a querer compartilhar suas memórias. Noveck também fala

da inovação deste anexo, as histórias em quadrinhos são um meio visual e Watchmen aparece

com esse inusitado anexo com duas páginas de prosa em espaço único.

A primeira parte apresentada em Watchmen volume 1 conta nas próprias palavras do

autor como foi sua vida até a idéia de virar um herói mascarado concretizasse em sua mente.

Hollis Mason descreve sua vida na cidade com os pais após doze anos vivendo no campo.

Observemos que os valores morais do campo aos quais o personagem se sustenta, mas sem

deixar de ressaltar que ao envelhecer percebeu que havia imoralidades tanto na cidade como

no campo. Mas a influência descrita a biografia partiu dos gibis, com personagens como

Sombra, onde havia o maniqueísmo do bem contra o mal. O personagem faz menção ao

super-herói Super-Homem criado em 1938 e como ele o admirou ao ler, pois Super-Homem

possui os valores morais como o Sombra mas sem a escuridão e características ambíguas. A

equipe de Watchmen usou dos personagens da própria editora para criar a relação de ficção e

contexto sociocultural e ainda com a possibilidade de fazer propaganda de seus super-heróis.

Na parte final Hollis descreve o que sentiu ao saber que os heróis estavam saindo dos

quadrinhos para a realidade, relatando o caso do primeiro vigilante mascarado “Justiça

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Encapuzada”. Hollis que já era policial, com a ingenuidade maniqueísta mantida pelos

quadrinhos decide torna-se também um vigilante.

Alan Moore utiliza-se de uma linguagem clara e simples, com o sujeito em primeira

pessoa do singular, possibilitando ao leitor a capacidade de entender que ali é um livro

autobiográfico escrito por uma pessoa “comum”. Outro recurso sado são algumas imagens,

que para nós são desenhos, mas para a trama são fotos (Figura 07).

FIGURA 07: Foto adicionada ao livro Sob o Capuz no capítulo 1.

Em Watchmen volume 2 a autobiografia de Hollis Mason continua, com o relato sobre a

formação do primeiro grupo de vigilantes “Os Homens-Minuto”, com a descrição dos perfis

de cada membro. O anexo começa com o surgimento do próprio codinome de Mason, Coruja,

apelido que um colega policial havia dado para ele. Em seguida há uma descrição detalhada

da escolha de um uniforme, como por exemplo a falta de praticidade em usar uma capa,

Hollis comenta que ficava tropeçando o tempo todo. Com isso Alan Moore consegue criticar

as fantasias ilógicas de super-heróis que usam longas capas mas apesar de todo tipo de

combate, elas nunca atrapalham.

Na sua narrativa Hollis Mason expõe o perfil de seus futuros colegas da equipe como

também já mostra os distúrbios e problemas psicológicos desses mesmos indivíduos.

Notamos aqui que não há nenhum herói alienígena ou um super ser, são heróis bastante

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humanizados com os seus próprios problemas. “Seus personagens são complexos, repletos de

defeitos e com uma ética dúbia. Psicóticos, estupradores, assassinos, narcisistas.” (FILHO,

2009)

Entre eles estava o próprio Coruja, Silhouette que vestia um traje sadomasoquista e era

lésbica, provocando seu afastamento do grupo em 46. Havia o Capitão Metrópole que tinha

conhecimentos militares, Espectral (Sally Júpiter) sendo a primeira a perceber que poderia

haver benefícios comerciais em ser aventureiro mascarado. Dollar Bill que virou um herói

empregado por um banco pelo apelo publicitário e o Comediante que Hollis não esconde seu

desgosto por ele ser brutal e o fato de ter tentado violentar Sally. Justiça Encapuzada também

fazia parte do grupo e o Traça que conseguia planar (Figura 08).

FIGURA 08: Foto do grupo reunido, à esquerda o texto em prosa do livro.

Hollis observa que para vestir uma fantasia precisava ter uma personalidade extrema e

oito delas juntas não poderia durar muito. Silhouette foi expulsa, Comediante afastado depois

da tentativa de estupro e Sally saiu para casar-se com o próprio agente. Em 1949 os membros

restantes perceberam que a moda havia acabado, não existiam mais vilões à altura e

resolveram desfazer a equipe.

Podemos notar nesses anexos outros recursos de interação além do leitor/história.

Podemos ver a ligação entre a trama principal com os anexos, com esses últimos aparecendo

ou comentados na história principal. Como é o caso da autobiografia de Hollis Mason, Sob o

Capuz (Figura 09).

Em Watchmen, volume 3, a última parte da autobiografia vem com detalhes sobre os anos

cinqüenta e a nova era de heróis. De volta ao contexto sociocultural Hollis fala sobre o

Comitê de Atividade Antiamericanas do Congresso. Eram os políticos atrás de comunistas e

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com vigilantes mascarados essa relação parece natural, pois a paranóia faria com que

exigissem a revelação das identidades dos heróis.

FIGURA 09: Além de ser comentado, o livro Sob o Capuz pode ser visto na estante da casa de Mason.

Percebemos a mudança com que Hollis se refere aos anos cinqüenta, sem vilões

fantasiados, criminosos com atividades escusas e imorais, os casos que ele investigava e o

próprio clima tornavam-se cada vez mais deprimentes. Como os idosos de hoje falam sobre a

época deles de como era mais inocente, na autobiografia vemos o pedido de uma nova

geração de heróis que lidassem com essas mudanças e não fossem tão inocentes. Com o

surgimento de Dr. Manhattan, Hollis Mason percebeu que havia chegado a hora de se

aposentar.

Dr. Manhattan, piratas e corujas

Mais três anexos introduzem trechos de livros ou artigos produzidos pelos personagens,

auxiliando na compreensão das mudanças socioculturais realizadas pelo incremento da ficção

que molda a realidade, como também oferecem pistas para o enredo da trama.

Watchmen volume 4 apresenta em seus anexos trechos do livro do professor Milton Glass

(Figura 10) “Dr. Manhattan: O Super-Homem e as Superpotências”. Milton Glass trabalhava

com John Osterman antes deste último sofrer o acidente, o conteúdo deste anexo aborda

questões que já foram discutidas neste artigo sobre o impacto da presença do Dr. Manhattan

no mundo. A narrativa aqui é necessária para que o leitor compreenda mais sobre o problema

Manhattan, pois o professor Glass discute acerca das vantagens de ter um Deus caminhando

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entre os homens, concluindo que poderá acarretar no comodismo e na falsa confiança de que

o mundo está em paz.

FIGURA 10: Personagens secundários têm a oportunidade de contribuir com a história.

O anexo sobre pirataria é colocado no volume 5 de Watchmen, aqui mais uma vez a

editora DC Comics coloca o nome da própria editora no jogo de impressão de realidade. São

trechos do capítulo 5 do livro A Ilha do Tesouro – A Tesouraria dos Quadrinhos, uma

maneira que a equipe da Graphic Novel encontrou para aprofundar-se mais na série Contos do

Cargueiro Negro.

O capítulo fala da evolução dos quadrinhos de super-heróis para os de pirataria. O que se

segue é uma descrição tão detalhada que pela primeira vez fica difícil dizer o que é real ou

ficção. Falam da editora EC Comics, que atribuem a ela a iniciativa das revistas sobre piratas,

em seguida vem a DC Comics com Contos do Cargueiro Negro com desenhos de Joe Orlando

e roteiro de Max Shea. Há até uma foto do desenhista (Figura 11), mas o personagem Max

Shea é fictício. Com uma pesquisa mais detalhada, Joe Orlando realmente existiu e foi um

ilustrador e vice-presidente da DC Comics, ele desenhou a única imagem nas edições de

Watchmen que não foi feita por Gibbons.

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FIGURA 11: A editora e desenhista mencionados realmente existem.

O texto analisa o trabalho feito em Contos do Cargueiro Negro, relatando diversas

edições, apenas breves comentários que servem para que o leitor entenda qual o teor da

revista. O personagem Max Shea só aparece 3 edições depois.

Watchmen volume 7 o anexo expõe um artigo produzido pelo personagem Dan Dreiberg,

o novo Coruja (Figura 12). A narrativa iguala-se a de um artigo especializado sobre pássaros.

O recurso é utilizado para descobrirmos mais sobre o personagem como também há uma forte

analogia quando ele descreve o sentimento de impotência das presas paralisadas da coruja

perante o seu guincho de ataque, isso é comparável ao sentimento dos heróis ante uma guerra

nuclear, não pode ser evitada facilmente e muitos se paralisam com a perspectiva de um

ataque próximo.

FIGURA 12: Mais um exemplo de interação dos anexos com a trama.

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Criando mídias e realidades

Os demais anexos são providos de uma estética apurada que jogam com o próprio

espaçamento das páginas, no caso da ficha criminal, o jornal, livro de recortes, marketing de

Ozymandias.

Em Watchmen volume 5 o personagem Rorschach cai em uma armadilha e é preso pela

polícia. Na edição número 6 observamos o Dr. Malcolm Long fazendo testes no então

presidiário Walter Kovacs, vulgo Rorschach, no anexo deste volume é apresentado a ficha

criminal do personagem bem como documentos sobre o histórico de Kovacs e relatórios do

orfanato onde ele ficou quando criança.

Na primeira página do anexo já vemos a disposição da imagem para que notemos que é

uma representação de uma ficha policial (Figura 13), apresentando a foto frente/perfil e com

vocabulário fiel a de um oficial de polícia. No relatório relata com detalhes a captura do herói

e os pertences que ele possuía no momento da prisão.

FIGURA 13: Ficha criminal de Walter Kovacs.

Em seguida temos o histórico da vida de Kovacs feito pelo Hospital Psiquiátrico do estado

de Nova York. É perceptível a preocupação em aumentar o nível de veracidade do

documento, com o símbolo do hospital (Figura 14). Nas outras páginas possuem fotocópias de

duas redações escritas por Kovacs durante sua permanência no Lar Charlton, as fichas são

amontoadas uma em cima da outra, sobrepondo textos e imagens.

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FIGURA 14: Marcas de mancha de café, foto sobrepondo o texto, recursos de representação da realidade.

Watchmen 8 anexa uma edição do jornal sensacionalista New Frontiersman pronta para ir

para impressão (Figura 15). Na teoria a imprensa tem papel de informar, contudo, no caso do

New Frontiersman é de tentar formar opinião. A linha editorial segue a risca a rejeição à

União Soviética, colocando todos os acontecimentos ruins e estranhos como culpa dos

“comunas”.

FIGURA 15: Vemos aqui o editor trabalhando no jornal que vai aparecer nos anexos.

Sobre as páginas que representam o jornal são sobrepostas imagens reais de gilete e lápis

utilizados na formação do jornal. É como se o leitor estivesse olhando sobre a mesa de edição

do New Frontiersman (Figura 16):

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FIGURA 16: New Frontiersman em produção.

O anexo livro de recortes de Sally Júpiter, a primeira Espectral, está no volume 9 de

Watchmen. Da mesma forma que a ficha criminal de Kovacs, aqui podemos ver nas bordas o

formato de um álbum, os recortes nele contidos estão colados por adesivos ou suportes para

fotos. Há uma folha de jornal com uma matéria sobre a Espectral, no texto vemos que a mídia

aproveita-se das novidades com a possibilidade de um filme sobre Sally, na mesma página

está um recado do diretor do possível filme.

Em outra página está a carta convite do Capitão Metrópole para Sally, chamando-a para o

grupo dos Homens-Minuto que como pode-se ver na trama a personagem participou.

A seguir há uma carta de Larry, agente de Sally, descrevendo o declínio dos Homens-

Minuto, com revelações da homossexualidade do Capitão Metrópole e Justiça Encapuzada.

Existe também um recorte da resenha cinematográfica do filme com a Espectral. Na última

página há um recorte de entrevista da revista Probe sobre Sally. Com base nos escassos

estudos sobre técnicas de entrevista, esta se caracteriza como entrevista de espetacularização

com subgênero de perfil do pitoresco: “que se salienta quase exclusivamente a fofoca, o

grotesco, os traços sensacionalistas, o picante de acordo com os modismos sexuais.”

(MEDINA, 1990, p.16). Mas como deixar a entrevista nesse perfil e transmitir dados úteis

para o leitor? É suavizada o nível frívolo das respostas, mas as perguntas mantém-se no nível

sexual identificando o perfil pitoresco (Figura 17):

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FIGURA 17: Do lado esquerdo a borda do álbum, do lado direito marcas da página rasgada da revista.

Os dois últimos anexos de Watchmen volumes 10 e 11 são reservados para entender e

conhecer o mundo do “vilão” Ozymandias. É duvidoso usar os termos vilão e herói nos

personagens de Alan Moore pois todos possuem defeitos, códigos particulares e motivos para

agir da forma que agem. O primeiro anexo mostra projetos de marketing da empresa de

Adrian Veidt, Ozymandias, este personagem está vinculado com o uso das mídias e a força da

Indústria Cultural. Enquanto que o segundo anexo é uma entrevista com o personagem.

No volume 10 mostra-se no anexo primeiro uma carta de Leo Winston, presidente de

marketing e desenvolvimento das empresas Veidt, para o próprio Adrian Veidt. Na carta ele

sugere a criação de uma linha de bonecos (Figura 18) baseados nos companheiros de luta de

Ozymandias, revelando a vantagem de que Rorschach, Coruja e Moloch (inimigo que faleceu

durante a trama) não poderem exigir direitos autorais pois ser vigilante é ilegal. No contexto

sociocultural de Watchmen os super-heróis não são produtos culturais, fazem parte da

realidade daquele universo, representando a dignidade, a moral e a luta do bem contra o mal.

A marca da indústria cultural é baixar a cultura de seu pedestal e disseminá-la entre as massas.

FIGURA 18: O uso indevido de imagem para o lucro pessoal.

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Além dos bonecos, Veidt comanda a produção do perfume “Nostalgia”, que ao longo da

trama podemos ver propagandas, no anexo descobrimos o plano de Adrian para lançar um

novo perfume “Millenium” imaginando o sucesso de seu esquema de conseguir a paz

mundial. Por último, há a introdução do curso “O Método Veidt” algo relacionado a auto-

ajuda com um programa de exercícios.

A entrevista com Ozymandias é um híbrido entre espetacularização e aprofundamento.

Adrian concede entrevista para a revista Nova Express, graças a qualidade intelectual de

Veidt, a entrevista tende para o perfil humanizado “Esta é uma entrevista abera que mergulha

no outro para compreender seus conceitos, valores, comportamentos, histórico de vida.”

(MEDINA, 1990, p.18). Apesar de que em alguns momentos o repórter desvia as perguntas

para o campo da fofoca. É interessante observar os detalhes desse anexo com sua diagramação

igual a de uma revista com um cuidado especial de até indicar a fonte das fotos tiradas que

aparecem na entrevista: “Foto – Cortesia de Triângulo Ltda. 1975”.

Considerações Finais

Watchmen inovou com seus métodos de impressão da realidade, seus anexos relacionam

a ficção com o contexto sociocultural da época. O poder simbólico do uso de imagens que

remetem a nossa realidade criam uma interação maior com o leitor. O cuidado em recriar com

fidelidade documentos como ficha criminal, livros, artigos, jornais, destacam a qualidade

semiótica da Graphic Novel.

Impressiona a proeza de Alan Moore e equipe em construir uma relação de cotidiano entre

leitor e história, não só com os anexos mas com os próprios personagens, fazendo com que as

relações entre ficção e contexto sociocultural fossem absorvidas com naturalidade para quem

lesse a obra. O trabalho desenvolvido acerca da Guerra Fria e as conseqüências da existência

de super seres no mundo, demonstram o nível atingido pelos quadrinhos.

Ao longo dessa passagem pelos anexos incorporados a produção da Graphic Novel

podemos ver com clareza como são configuradas as relações de ficção e contexto

sociocultural. É criada uma dinâmica de interação entre o leitor e da história com a própria

história. “Elas são unificadas de forma coesa em que se torna possível certos rumos a

realidade narrada na HQ” (FILHO, 2009). Com essas observações concluímos que se não há

essa conexão com o leitor, este mesmo leitor vai ao menos perceber o cuidado e dedicação

para a criação destas ferramentas de impressão da realidade.

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Watchmen é uma obra com muitos significados e simbolismos sendo convergida

recentemente ao cinema, os conceitos dentro da trama permanecem atuais e intrigantes,

ocasionando sempre na revisita as suas páginas, ao seu mundo.

Referências

A HISTÓRIA dentro da história: os livros de Watchmen. Produção de EMP., INC. EUA:

2009, 1 dvd (25 min).

DA SILVA, Nadilson Manoel. Fantasias e Cotidiano nas Histórias em Quadrinhos.

ANNABLUME, 2002.

FILHO, Manassés Alves da Silva. Entrevista concedida para o artigo Watchmen: Ficção e

Contexto Sociocultural no dia 29 de julho de 2009.

JOST, François. Seis Lições sobre televisão. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 27 – 44.

MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Editora Ática,

1990.

WATCHMEN. São Paulo: Editora Abril, 1988.

WATCHMEN, Edição definitiva. São Paulo: Panini Brasil Ltda, 2009.