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200 anos de augusto comte mozart pereira soares UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Reitora Wrana Maria Panizzi vice- Reitor Nilton Rodrigues Pai- Pró-Reitor de Extensão Luiz Fernando Coelho de Souza Vice-Pró-Reitora de Extensão Rosa Blanco EDITORA DA UNIVERSIDADE Diretor Geraldo F. Huff CONSELHO EDITORIAL Anna Carolina K. P. Regner Christa Berger Eloir Paulo Schenkel Georgina Bond-Buckup José Antonio Costa Livio Amaral Luiza Helena Malta MOI[ Maria da Graça Krieger Maria Heloísa Lenz Paulo G. Fagundes Vizentini Geraldo F. Huff, presidente EDITORA AGE LTDA. Rua Dr. Ramiro d'Avila, 20, conj. 302 - Fone/Fax (051) 223-9385 90620-050 Porto Alegre, RS, Brasil Home page: www.age.com.br - E-mail: agegnetl.com.br EDITORA DA UNIVERSIDADE / UFRGS Av. João Pessoa, 415 - 90040-000 Porto Alegre, RS, Brasil Fone/Fax (051) 224-8821, 316-4082 e 316-4090 http://www.ufrgs.br/editora - E-mail: editoraQorion.ufrgs.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil MOZART PEREIRA SOARES 200 anos de Augusto Comte Editora EDITORA da Universidade Universidade Federal do Rio Grande do Sul PORTO ALEGRE, 1998 de Mozart Pereira Soares, 1998 1ª edição: 1998 Reservados todos os direitos de publicação a: Editora AGE Ltda. e Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa: Nelson Pinto Fotos da Capela Positivista de Porto Alegre: Luciana Mielniczuk Editoração eletrônica: AGE - Assessoria Gráfica e Editorial Ltda. Diagramação: Lauri Hermógenes Cardoso Supervisão editorial: Paulo Flávio Ledur S676p Soares, Mozart Pereira O positivismo no Brasil : 200 anos de Augusto Comte / Mozart Pereira Soares. - Porto Alegre : AGE : Editora da Universidade. 1998. 206p. ; il. ; 14x21cm. 1. Positivismo - Brasil. I. Título. CDU 165.731:981 Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima CRB 10/1373 Editora da Universidade / UFRGS ISBN 85- 7025-458-X F a~ora AGE Ltda. ISBN 85-85627-56-5 SUMÁRIO Das intenções do autor 9

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200 anos de augusto comte mozart pereira soares UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Reitora Wrana Maria Panizzi vice-Reitor Nilton Rodrigues Pai- Pró-Reitor de Extensão Luiz Fernando Coelho de Souza Vice-Pró-Reitora de Extensão Rosa Blanco EDITORA DA UNIVERSIDADE Diretor Geraldo F. Huff CONSELHO EDITORIAL Anna Carolina K. P. Regner Christa Berger Eloir Paulo Schenkel Georgina Bond-Buckup José Antonio Costa Livio Amaral Luiza Helena Malta MOI[ Maria da Graça Krieger Maria Heloísa Lenz Paulo G. Fagundes Vizentini Geraldo F. Huff, presidente EDITORA AGE LTDA. Rua Dr. Ramiro d'Avila, 20, conj. 302 - Fone/Fax (051) 223-9385 90620-050 Porto Alegre, RS, Brasil Home page: www.age.com.br - E-mail: agegnetl.com.br EDITORA DA UNIVERSIDADE / UFRGS Av. João Pessoa, 415 - 90040-000 Porto Alegre, RS, Brasil Fone/Fax (051) 224-8821, 316-4082 e 316-4090 http://www.ufrgs.br/editora - E-mail: editoraQorion.ufrgs.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil MOZART PEREIRA SOARES 200 anos de Augusto Comte Editora EDITORA da Universidade Universidade Federal do Rio Grande do Sul PORTO ALEGRE, 1998 de Mozart Pereira Soares, 1998 1ª edição: 1998 Reservados todos os direitos de publicação a: Editora AGE Ltda. e Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa: Nelson Pinto Fotos da Capela Positivista de Porto Alegre: Luciana Mielniczuk Editoração eletrônica: AGE - Assessoria Gráfica e Editorial Ltda. Diagramação: Lauri Hermógenes Cardoso Supervisão editorial: Paulo Flávio Ledur S676p Soares, Mozart Pereira O positivismo no Brasil : 200 anos de Augusto Comte / Mozart Pereira Soares. - Porto Alegre : AGE : Editora da Universidade. 1998. 206p. ; il. ; 14x21cm. 1. Positivismo - Brasil. I. Título. CDU 165.731:981 Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima CRB 10/1373 Editora da Universidade / UFRGS ISBN 85-7025-458-X F a~ora AGE Ltda. ISBN 85-85627-56-5

SUMÁRIO

Das intenções do autor 9

CAPÍTULO I - Vida heróica e atormentada 11 1.Afamília 11 2. Educação 12 3. Definitivamente na cidade-luz 19 4. Estados Unidos: um sonho desfeito 21 5. Secretariando Saint-Simon 23

CAPÍTULO II - A obra fundamental 33 1. Prelúdio amoroso 33 2. Tempestade 35 3. Ressurreição 42 4. A Lei dos Três Estados, espinha dorsal do sistema 43 5. A classificação das ciências 48 6. Entre o mundo e o homem 50 7. Nasce a sociologia 56 8. A ruptura indesejada 62 9. Homem versus mulher 66 10. Adesão de Littré 69

CAPÍTULO III - A religião da Humanidade 72 1. Universo do Positivismo 72 2. Clotilde de Vaux 73 3. O Calendário Positivista 79 4. Os sacramentos 83

CAPÍTULO IV - A difusão do Positivismo 87 1. Ingresso da doutrina no Brasil 87 2. Nisia Floresta 88 3. Um positivista independente 90 4. Segond, um discípulo direto de Comte no Brasil 92 5.

O Positivismo e a República brasileira 94 6. Participação de Demétrio Ribeiro 97 7. Outras influências na Constituição Republicana 100 8. Proteção aos índios 104 9. Liberdade de cultos 105 10. Irradiação do Positivismo no Brasil 109 11. O Apostolado Positivista e a Religião da Humanidade 117

CAPÍTULO V - O Positivismo no Rio Grande do Sul 126 1. O ambiente político 126 2. A luta pela cultura 127 3. Júlio de Castilhos e sua geração 132 4. O Governicho 137 5. Abolição e República 139 6. Castilhos e a Ditadura Científica 143 7. A consolidação da República 146 8. Castilhos e Silveira Martins 148 9. A Revolução de 93 151 10. O Governo Castilhista 156 11. A Constituição Positivista 160

CAPÍTULO VI - O Positivismo Religioso no Rio Grande do Sul 164 1. O Positivismo e a colonização 166 2. Os positivistas políticos e os religiosos. Borges de Medeiros 172

CAPÍTULO VII - A Capela Positivista de Porto Alegre 178

CAPÍTULO VIII - A contribuição educacional 195

CAPÍTULO IX - Através da arte 199

DAS INTENÇÕES DO AUTOR "Uma concepção qualquer não pode ser bem conhecida senão pela sua história." A afirmação é de Augusto, no pórtico do Curso de Filosofia Positiva, pedra angular de seu sistema filosófico, científico, político e religioso. Quando ele veio ao mundo, seu país, que já se colocara na vanguarda da civilização ocidental, se debatia entre as ruínas da Grande Revolução que esfacelara o antigo regime, subjugando o clero e a nobreza e destruindo o quadro social até aí dominante. Em torno à sua adolescência tudo era desafio. Os espíritos de elite dividiam-se em dois campos: de um lado, Chateaubriand, De Maistre, De Bonald, Lamennais e os restauradores, que pretendiam reconstruir a velha ordem; de outro, os revolucionários Saint Simon, Owen e Fourrier, que aspiravam vagamente criar novas formas políticas e sociais, sem no entanto evidenciar nenhum espírito de verdadeira unidade. Entre essas duas facções antagônicas, os retrógrados, que nada podem impulsionar e os anárquicos, incapazes para reter, como diria mais tarde, Comte adotou um terceiro caminho: não reconstruir com materiais desgastados, nem destruir, sem saber o que construir, mas conservar o que fosse digno de preservação e melhorar tudo quanto fosse perfectível. Em suma: não apenas reconstruir, com o só concurso da Razão, sem Deus nem Rei, mas edificar com uma religião fundamentada no amor universal, tendo como alvo final a conquista da unidade humana e da Paz estável. A concretização dessa utopia suprema exige uma linguagem inteligível por todos os povos, baseada em princípios invariáveis que só podem ser oferecidos pela ciência, cuja escala revisou e completou, preenchendo lacunas e extirpando vícios lógicos. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 9

Religião, para Augusto Comte o mais bem composto dos vocábulos, significa ligar duas vezes: primeiro, o interior, pelo Amor e, depois, religá-lo ao exterior, pela Fé racional. A fim de perpetuar sua mensagem, condensou-a na conhecida fórmula: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. As palavras de seu lema têm sentido especial. O amor, simpatia universal, é o sentimento que melhor explica a unidade humana: o homem é um ser que gravita compulsivamente para seus semelhantes pelo afeto. Não há, por isso, castigo mais cruel do que o isolamento. Ordem, na frase, não significa disciplina, mas respeito aos princípios invariáveis ou conjunto de leis que regem. o mundo e a humanidade; finalmente, progresso tem sua semântica particular. Não significa desenvolvimento material, mas aperfeiçoamento das instituições sociais. Resta dizer ao leitor os motivos que levaram o autor a endereçar-lhe estas linhas muitíssimo despretensiosas. Não o moveram intuitos acadêmicos, como quem escrevesse para letrados, mesmo que tivesse capacidade para tanto, mas o cumprimento de um voto de Augusto Comte, quando sonhou ver difundida sua doutrina. Aos maiores doutos de seu tempo, Blainville, Claude Bernard, Alexandre Von Humboldt e outros, dedicou a explanação do Curso de Filosofia Positiva. Mas quando entendeu levá-la ao Povo, nas conferências sobre Astronomia Popular, escolhendo a ciência que melhor poderia oferecer uma imagem da invariabilidade das leis que nos permitem o entendimento mais claro do mundo, preferiu um auditório de mulheres e proletários, "livres de toda cultura artificial". Pretendendo suplantar a moral egoística, sob a qual vivemos há milênios, sonhou com a moral do altruísmo, termo por ele criado para exprimir a concepção final do entendimento humano. Seria possível batalhar-se por ideal mais elevado? Porto Alegre, setembro de 1998. Mozart Pereira Soares 10 MOZART PEREIRA SOARES

Capítulo I VIDA HERÓICA E ATORMENTADA

1. A FAMÍLIA

Comte, cujo nome completo era Isidore Auguste Marie François Xavier, nasceu na cidade francesa de Montpellier a 19 de janeiro de 1798 e faleceu em Paris a 5 de setembro de 1857. Era o primeiro filho do casal Luiz Comte (1776 - 1859), tesoureiro da Recebedoria de Herault, e de Felicidade Rosália Boyer (1764 - 1837). As núpcias do casal realizaram-se a 31 de dezembro de 1796, quando Luiz contava 20 anos e Rosália 32. O filho ilustre veio ao mundo quando ela cumprira já 34 anos. Augusto Comte, fundador do Positivismo. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 11

O pai era austero, algo taciturno e extremamente metódico. Funcionário modelo, só pensava em exercer com dignidade seu oficio e educar os filhos, para os quais aspirava apenas uma honrada posição burocrática. Não tomara ciência dos tumultos vividos pela França em sua mocidade. Quando casou e quando nasceu o grande filho, as barricadas ainda fumegavam. Mas ele ignorava a Enciclopédia, não freqüentava clubes, não jogava, não pertencia a grupos.

Era católico sincero e monarquista convicto, duas posições que o sistematizador do Positivismo passaria a vida a contestar. Em contrapartida, Rosália Boyer era hipersensível e sentimental. Quando nasceu Augusto, Montpellier estava em "estado de sítio", o que impedia que o menino se batizasse, a não ser em país estrangeiro ou em caráter secreto. Foi nessa condição que ela celebrou sua união religiosa, afrontando riscos em nome de sua fé. Todas essas circunstâncias não impediam sua extraordinária atividade de verdadeira chefa do lar. Alix Marie Charlote Comte era dois anos mais moça do que Augusto, que com ela não simpatizava, chegando a chamá-la de "fanática, ávida e hipócrita", ela que, por sua vez, não aceitava a missão social e religiosa do filósofo. Adolfo Luiz Marie Comte, nascido em dezembro de 1802, informa-se que fora um dissoluto, apesar de estudante de Medicina. Desajustado no ambiente familiar, tentou "fazer a América", vindo a falecer aos 19 anos, na Martinica, acredita-se que de febre amarela.

2. EDUCAÇÃO

As primeiras letras aprendeu-as com a mãe e, a seguir, com um preceptor particular. Aos nove anos foi internado no Liceu de Montpellier. É importante conhecer-se a origem e o caráter dessa instituição para entendermos sua influência no desenvolvimento da personalidade de Augusto Comte. A 3 de novembro de 1804, o Império, sob Napoleão, determinava a abertura do Liceu. Um decreto de 6 de maio do ano anterior havia organizado militarmente aqueles educandários. Bonaparte, ocupado com a conquista da Europa, necessitava de carne para canhão. Os internos, desde cedo, se familiarizavam com uma rígida disciplina castrense, metidos num uniforme cinzento, distribuído em 12 MOZART PEREIRA SOARES

pelotões, sob o comando de quartéis-mestres, cabos ou sargentos, vigiados por chefes de disciplina, que controlavam desde as mesas de refeição às salas de estudo. Os chefes eram escolhidos entre os que revelassem melhores aptidões para o mando. Aí eram quase mais um número do que pessoas. Comte começou a ver nisso uma forma de despotismo que devia ter sido extinta pela Revolução em 1789. Tudo se agravava pelo clima de espionagem e pelos castigos corporais aos possíveis infratores.l Nesse ambiente ingressou o menino excepcional. Seu aproveitamento deixava-lhe tempo para incursionar nos vários campos do saber. Ao passo que estudava e lia infatigavelmente, começava a desobedecer ao regulamento liberticida do Liceu. Não tardou a exercer certa liderança entre os colegas, que o viam suportar estoicamente os castigos, a abandonar as idéias sobre entes sobrenaturais, a amar a liberdade e a sentir que nele despertava um republicano capaz de manter-se vivo durante a existência inteira. Tudo se agravou com um decreto-lei de 1808 segundo o qual o Liceu devia adotar oficialmente a religião católica e cultivar a fidelidade ao Imperador. Havia mais: o Estatuto, de março do ano seguinte, estabelecia que o despertar e as refeições fossem acompanhadas de pregações e que os alunos aprendessem todos os dias três versículos do Novo Testamento, em francês, latim ou grego, conforme os cursos seguidos. Tais normas não foram aceitas passivamente. Se a maioria, como sempre, se acarneirava, o grupo dos rebeldes de pronto reconheceu um comandante, num pré-adolescente frágil, de aspecto até doentio, que não havia crescido muito, exceto na parte superior do corpo, especialmente na cabeça, onde luziam dois olhos brilhantes e profundos, a traduzirem uma energia incomum. Não escondia suas opiniões. Antes as proclamava com ousadia, em público. Era natural que despertasse as

iras dos vigilantes, com os quais muitas vezes discutia. Numa das ocasiões em que provocou grande alvoroço, teve o pavilhão da orelha direita picado por um pontaço de sabre.

1 - O autor conheceu regime semelhante como interno de um educandário agrícola instalado no Rio Grande do Sul pela "Escola de Engenharia de Porto Alegre (instituição universitária de orientação positivista, que evoca no livro de memórias Meu Verde Morro). Numa certa fase tais cursos compuseram o "Liceu Agrícola", título inspirado no educandário francês. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 13

Aí aprendeu que, além do poder espiritual, havia outro, de eficácia instantânea, capaz de fazer sangue! Aos quatorze anos e meio completou Comte os cursos do Liceu, já com uma considerável soma de conhecimentos. Não tendo ainda idade para ingressar na Escola Politécnica, o Diretor do Liceu pediu autorização de seu pai para que continuasse no educandário e começasse o estudo das ciências. Aqui uma das circunstâncias mais felizes em sua carreira intelectual: o conhecimento, entre outros mestres, do pastor protestante Daniel Encontre, professor de Matemática, além de humanista, botânico e literato. Foi este que, conhecendo as extraordinárias aptidões mentais daquele jovem, cuja memória lhe permitia repetir centenas de versos após uma audição apenas, ou recordar fielmente as palavras de uma página recentemente lida, descobriu e cultivou-lhe as faculdades de abstrair e coordenar dois elementos de suma importância na carreira do futuro sistematizador das ciências. Tal foi o proveito de Comte em matemática que Daniel Encontre confiou-lhe sua cadeira durante uma longa enfermidade que então sofreu. O desempenho de Comte não apenas foi notável, mas adquiriu outro sentido: a revelação de um professor nato, de grande futuro e não apenas um simples instrutor de cálculos. A rara capacidade de comunicação somava um grande discernimento. O episódio ainda salientou outra qualidade inestimável de Comte: a veneração que, no caso de Daniel Encontre, perdurou por toda a vida, tanto que dedicou a seu mestre sua última obra filosófica, a Síntese Subjetiva. Nunca deixou de merecer as simpatias de seus colegas, que, por essa época, passam a chamá-lo de "o filósofo". Não obstante contar apenas 15 anos, Comte começou a fazer uma idéia muito clara sobre o universo tumultuário que o cercava, a tomar posição decisiva sobre a República, a bater-se pela liberdade e pela igualdade. Em 1814, aos 16 anos, está em Paris para matricular-se na Escola Politécnica. Fora o primeiro classificado na lista do examinador para o sul da França, Francoeur. Na ficha de ingresso consta: Estatura: 1m59cm, marcado de varíola, uma cicatriz na orelha direita (aquela produzida pelo golpe de sabre antes referido). O novo aluno está radiante. Não só vai realizar o grande sonho de ser um sábio, na Escola que mais tarde chamará a me- 14 MOZART PEREIRA SOARES

lhor do mundo, como se encontra na Meca do saber, a cidade da qual um dia também dirá: "Paris não é uma cidade; Paris é a França, o Ocidente, a Terra." Tal é, em seu juízo, a capital da Nação que, por efeito de um conjunto peculiar de antecedentes históricos, assumiria o papel de nação diretora do progresso humano. A 2 de janeiro de 1815, escreve a seu amigo Valat, então aluno externo do Liceu de Montpellier, induzindo-o a ingressar em sua escola, o que lhe parece excelente como oportunidade de aprender. Um detalhe importante ele anota: Às duas horas e meia fecham-se os refeitórios e entramos no recreio até as cinco; nesse intervalo vai-se à Biblioteca, que é belíssima, ou à sala de diversões, ler os jornais. E ele o fazia com avidez,

em qualquer minuto disponível, nos intervalos das aulas, durante as refeições e muitas vezes pela noite a dentro. Foi assim precocemente informado de tudo quanto se pas- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 15

sava no seu tempo. Em sua mesa de estudo viam-se mapas, as Constituições da França e dos Estados Unidos da América, discursos e manifestos dos homens da Revolução Francesa, que passou a conhecer desde esse tempo. Os contemporâneos, colegas o professores logo passaram a ver naquele adolescente, não obstante seus traços ainda infantis, a maturidade de um adulto, com opiniões formadas sobre questões políticas o sociais, assim como sobre os grandes homens, cujas vidas e lições o fascinavam. Conta Pierre Laffitte, reproduzindo depoimento de um colega de Comte: "Muitas vezes redigia imediatamente a lição do professor e ocupava-se em seguida de estudos políticos, sobretudo de história das constituições; estava sempre pronto, aliás, a dar a seus camaradas, com a madureza de um professor, todas as explicações científicas que eles pudessem desejar".Z Muito cedo manifestou-se republicano e partidário exaltado da Convenção, a que se deviam as principais conquistas nacionais: abolição da realeza, encerrando o antigo regime; supressão legal da religião de Estado com a conseqüente liberdade de cultos; a dissolução das corporações oficiais de cientistas e legistas, para fundar a liberdade de ensino; enfim, a mobilização nacional para a defesa de sua Pátria, ameaçada pelas nações da Europa, que se haviam aliado contra ela. A sensibilidade política do jovem permitiu-lhe avaliar a enorme importância dos avanços sociais que se inauguravam. A ascensão popular era um fato e, mais: a grande assembléia republicana levantava o povo sem o corromper e, no momento em que seu país era olhado com temor pela Europa, em face das ameaças de Napoleão, tratava de expor claramente aos olhos de todos a fraternidade universal como grande alvo da Revolução. Ainda relativamente à Convenção, creditava-se a ela uma atitude da mais alta importância para o futuro roteiro de Comte: o esboço da separação entre os poderes temporal e espiritual, que mais tarde ele iria erigir em "princípio capital da política moderna". Nessa época já começava a fazer um juízo claro sobre homens e programas. Ao mesmo tempo depositava suas esperanças nos jacobinos, que mantinham acesa a chama do civismo nacional, instalando uma tribuna em cada aldeia.

2 - Lochampt, J. Epítome da Vida e dos Escritos de A. Comte. Tradução de Miguel Lemos - Templo da Humanidade. Rio, ???19sy, pag. 127, segunda edição. 16 MOZART PEREIRA SOARES

Quanto a Robespierre, repudiava sua ambição sanguinária e o assassinato de Danton, o poderoso verbo que armara a Nação contra os perigos que a rondavam. Igualmente, desde muito cedo, Augusto Comte começou a formular um julgamento bastante severo sobre Napoleão Bonaparte. Reconhecia naquele homem de ferro o que nele era tão evidente: a prodigiosa atividade, as decisões-relâmpago e a sagacidade do estrategista, que explicavam seus triunfos militares. Mas não participava do entusiasmo geral quanto à sua inteligência e seus sentimentos para com a França. Antes lamentava que sua pátria tivesse caído em mãos de um estrangeiro oriundo de uma população atrasada e sobretudo incapaz de compreender o sentido mais profundo da grande Revolução, que não seria o domínio material da Europa, através de extravios guerreiros, cujo balanço final foi tão negativo. A grande glória da França não estaria em "atirar-se sobre as outras nações para curvá-las a seu jugo, mas sim merecer sua estima e aprovação ".3 quanto à sua pretendida capacidade de organização, Comte

recusava-a. Antes entendia que a obra do corso, toda retrógrada, consistiu em ter reerguido sobre a igualdade revolucionária todas as ruínas do antigo regime. O que ele conseguiu internamente foi à custa da opressão. Os frutos de sua atividade exterior foram bem amargos: atrair as iras cada vez maiores entre as nações sobre as quais deixara seus rastros de sangue. Todavia, o "réprobo social", como o chamaria mais tarde, permanecia longe, no seu confinamento na ilha de Elba. Apesar disso, a França não estava livre de suas cruentas orgias. Comte iria assistir à ascensão e à queda de Bonaparte nos Cem Dias. Nesse momento, os franceses, exacerbados em seu nacionalismo, apaixonavam-se pelo Imperador que havia desembarcado em Toulon e de novo tomava as rédeas do poder para defender a liberdade ameaçada. O entusiasmo do povo contagiava também a Escola Politécnica e até o jovem Comte redigiu uma mensagem ao Imperador, seguido de assinaturas de seus colegas, pedindo para se exercitarem na defesa do país, no que foram atendidos, com o envio de armas e de alguns canhões. Apesar disso, deplorável incidente começaria a agravar a inadaptação de Comte ao espírito de caserna da Escola. Os alunos tinham direito de apenas uma saída por semana para seus lazeres, a que os descontentes começaram a desobedecer, e à frente deles o "filósofo". E ele começou a receber reprovações que se acumula-

3 - Lochampt, J. - Op. cit., pág. 5. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 17

vam: por haver regressado à noite após a hora de recolher-se, por haver se dedicado à leitura durante a aula de desenho, por haver cantado na sala de estudos, por haver abandonado o anfiteatro durante as lições, por haver desrespeitado um inspetor. Um destes havia tratado mal a um calouro. Os veteranos tomaram-lhe a defesa. Comte foi incumbido de pedir por escrito uma audiência para um protesto em nome dos colegas. Dias depois o Inspetor recebeu-o desprezivelmente, com os pés sobre a mesa. Tomando a mesma atitude, Comte recebeu veemente reprovação, não apenas pela conduta presente, mas por encabeçar pedido de afastamento do Inspetor em termos pouco amistosos: Senhor: Conquanto nos seja penoso tomar essa medida em relação a um antigo aluno da escola, nós vos intimamos a que não torneis a pôr os pés aqui. Todos os colegas assinam a veemente proposição. Em conseqüência, a Escola foi licenciada e Comte, redator e primeiro signatário da intimação, foi excluído da Escola e mandado entregar à família, sob vigilância da polícia. Bem se pode avaliar a dureza do golpe que acabava de sofrer aquele que já era considerado a melhor cabeça de sua turma, destinado ao mais brilhante futuro, apesar de, como diria sua ficha, "medíocre em desenho e um faccioso insubordinado". justamente agora que punha a melhor atenção na Geometria Descritiva, a cargo de Arago, nos estudos de mecânica, cálculo diferencial e integral com Poinsot, em que manifestava sua devoção pela química e pela Física, ao mesmo tempo em que escutava com profundo interesse o naturalista Blainville (mais tarde seu companheiro de idéias em Biologia), bem como outros, inclusive humanistas! Imensa foi a dor da família ao ver truncada a carreira do filho, de cujo valor, a essa altura de sua vida, tinha já uma consciência muito nítida. Novamente na cidade natal, Comte não perdeu tempo, mas procurou acompanhar o curso de Medicina que aí funcionava. Foi o gérmen de seu interesse pelos problemas biológicos e médicos, sobre os quais futuramente iria se debruçar, rasgando-lhes insuspeitados horizontes. Mas, por hora, não pretendia confinar-se no ambiente que lhe parecia acanhado diante das perspectivas que mam se abrir, 18 MOZART PEREIRA SOARES

em Paris, onde poderia, por pior que fosse sua situação, conviver com mestres e com discípulos que o estimavam e admiravam, acima das birras oficiais da Politécnica. Demais, não sentia nenhuma afinidade com o ambiente doméstico, monótono e pontilhado de malquerenças, exceto por parte da mãe. E foi com grande pesar desta que ele partiu para a Capital, sem recursos, sem emprego e até, por hora, sem programa de vida.

3. DEFINITIVAMENTE NA CIDADE-LUZ

Em Paris, desejando viver no foco da vida intelectual, que era o Bairro Latino, instalou-se na Rua Richelieu, em frente à Sorbonne, local que depois viria receber sua estátua. Aí viveu pobremente nos primeiros tempos, à custa de lições de matemática a alunos particulares e das pequenas economias que periodicamente lhe enviava a preocupada mãe. De Montpellier ele traz muitos sonhos e um primeiro esboço em que lança suas reflexões, seguidas de românticos e ambiciosos subtítulos: Pátria, Humanidade, Verdade, justiça, Liberdade, Similitudes entre o regime de 1793 e 1816 Expostos ao Povo francês por Comte, Aluno da ex-Escola Politécnica. (Junho de 1816) Entre seus ouvintes dessa época teve um inglês que nos deixou, pelo Chambérs Journal de Dublin, um perfil do mestre Augusto Comte: Todos os dias, pontualmente às oito horas, abria-se a porta de sala de aulas e por ela entrava um moço de pequena estatura, mas forte, escrupulosamente barbeado, vestido de preto, como quem fosse cear fora de casa, gravata branca tão lisa como se saísse das mãos de uma passadora e chapéu lustroso como o pêlo de um cavalo de carreira. Durante três quartos de hora desenvolvia suas demonstrações. Findas estas, fazia anotações, corrigia exercícios da aula anterior e passava outros para a seguinte. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 19

Uma curiosa informação do comentarista: ao contrário de tantos mestres que conhecera, habituados a perder tempo em comentários extraclasse, jamais ouviu de Comte qualquer frase que não fosse exclusivamente ligada a seu oficio de professor. Empregava seu tempo religiosamente na tarefa de ensinar e, concluiu o afetuoso aluno: "pela mísera soma de três francos". Só ele não sabia que o escrupuloso mestre, nesse tempo, até fome passava. O clima de miséria não foi suficiente para quebrar-lhe o ânimo. Antes pareceu estimular a vontade de ferro com que se atirou a seus estudos e à redação dos ensaios que então iniciava. Os licenciados da Escola Politécnica reconheceram a necessidade de entreproteger-se, mantendo a coesão do grupo através de uma entidade que tomou o titulo de Associação dos Alunos Licenciados da Escola Politécnica. Comte foi encarregado de redigir-lhe os estatutos, em cujo artigo 2º se definia sua finalidade: Seu objeto é organizar o socorro recíproco entre seus membros. Todos eles deverão comunicar-se, pelo menos uma vez a cada seis meses, com a sede central. O artigo 9º vedava discussões sobre política. Foram designados cinco secretários para Paris, Lyon, Metz, Saint Jean de Angely e Montpellier. Os trâmites para constituir-se a organização não consumiram mais que três dias entre a insurreição e o licenciamento. Tal fato levou o Ministério da Polícia a investigar sobre os verdadeiros fins da associação da qual, mais uma vez, Comte era o líder. Não por acaso Montpellier figurava como uma das localidades a exigir severa vigilância, pelo fato de ser a residência do jovem insurreto Isidoro Comte. Sua correspondência foi censurada. Disso resultou a informação do Prefeito do Departamento de

Herault, ao qual pertencia Montpellier, de que na localidade não havia associações secretas nem conspiradores politécnicos. Entre os amigos e protetores com que contava em Paris e até o ajudava a obter alunos particulares figurava o general Campredon, que o colocou em contato com o General Bernard, um ex-aluno da Politécnica e ora encarregado, como chefe da missão militar francesa, de organizarem Washington, uma escola nos moldes da Politécnica. Ao recomendado de Campredon, em face de sua forte cultura 20MOZART PEREIRA SOARES

matemática, Bernard prometeu contratá-lo para reger a cadeira respectiva, com um soldo anual de 20 mil francos.

4. ESTADOS UNIDOS: UM SONHO DESFEITO

E o sonho de viver na "pátria de todos os republicanos do mundo", como já dissera, refúgio da liberdade e da igualdade, onde poderia desenvolver-se o regime que então já premeditava, de regeneração social da humanidade, através de uma profunda revolução de costumes e de crenças, começou a empolgá-lo diuturnamente. Escreve a seu amigo Valat, não só lhe comunicando a novidade, mas confessando-lhe que sua felicidade seria completa se pudesse levá-lo consigo como desenhista. Ao mesmo tempo, preparava-se febrilmente para a nova missão. Aperfeiçoa seu inglês, língua que conseguiu dominar completamente (como o italiano e o português, além do espanhol), estuda a história e a geografia dos Estados Unidos, seus grandes homens, Washington, Jefferson, Lincoln, Benjamin Franklin, e ainda a Constituição dos Treze Estados Unidos da América, edição de 1783. Ao mesmo tempo em que se prepara intelectualmente para a nova missão, trata de analisar-se e disciplinar-se moralmente. A propósito, escreve a seu confidente Valat: Não ignoras como em mim é avassaladora a paixão pelas mulheres e as loucuras que por elas tenho cometido. Não te assombres se confesso que, há mais de três meses, nada tenho a reprovar-me nesse sentido. Desafortunadamente, o sonho da América duraria muito pouco. Chegam-lhe notícias de que a Politécnica, embora autorizada, tinha sua instalação adiada indefinidamente. Um lucro, porém, e bastante grande, havia ficado dessa embaladora ilusão: o conhecimento da história, da geografia, das instituições políticas de uma grande nação que, ao lado da França, marchava na vanguarda das demais. Dali por diante a república presidencialista e o federativismo dos Estados Unidos não mais se afastariam de seu roteiro político. Com a frustração do sonho de independência econômica, a perspectiva de garantir o suporte material que lhe permitisse perseguir suas metas de reformador social novamente se esfuma. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 21

Mas não desiste de lutar por seu ideal, que, nesse momento, sentia definir-se. E raciocinava: Franklin, agora um de seus modelos, sonhara, aos 25 anos, ser um sábio e o conseguira! E ele tinha apenas 20. Como profissão escolheria a de professor, ainda que resignado a um pequeno grupo de alunos. Uma oportunidade com que a família contava ardentemente, ele a desprezaria. O jornal Le Moniteur, de 14 de setembro de 1816, publicava um édito real que reorganizava a Escola Politécnica. Sobravam-lhe condições intelectuais para a admissão: além da aplicação ao estudo, exigia-se boa conduta e afinidade com a Direção. Por isso, Comte não

acredita que pudessem aceitá-lo. Para lograr o ingresso teria de submeter-se a concessões humilhantes (com que, de resto, sua família até concordaria em face das vantagens de prosseguir em seus estudos), mas ele era demasiado altivo para ceder a exigências tais. Assim, pedia aos amigos que guardassem o mais rigoroso segredo sobre sua recusa a um possível reingresso. Demais, que lucraria ele em sendo um Engenheiro militar, ao sair da Politécnica? Apenas um emprego público e a conseqüente anulação de uma carreira filosófica e política, capaz de florescer unicamente num clima de liberdade crítica. Por algum tempo suas aperturas econômicas iriam encontrar alívio com os serviços que passou a prestar a M. Hachette, professor da Faculdade de Ciências, que conhecia muito bem as condições intelectuais de seu ex-aluno. Para ele Comte acompanhou primeiramente a publicação do Segundo Suplemento de Geometria Descritiva e, após, traduziu a Análise Geométrica, de John Leslie, Professor de Matemática na Universidade de Edimburgo. Além da tradução, Comte acrescentou ao livro numerosas notas esclarecedoras, o primeiro trabalho de sua autoria que viu publicado. Esse foi o esforço que lhe deu alguma satisfação intelectual. Mas quando chegou à etapa seguinte, que seria reeditar o Tratado de Máquinas, de Hachette, Comte suspendeu sua colaboração, visto, como declarou, não encontrar nenhum estímulo mental em tarefas daquela natureza. A seu amigo Valat confessou que havia feito com M. Hachette um mau livro, que ninguém relatou.4

4 - Comte, A. Carta a Valat, em 17.4.1818. 22 MOZART PEREIRA SOARES

5. SECRETARIANDO SAINT-SIMON Aos vinte anos, só e sem emprego, Augusto Comte se debate numa das fases mais angustiantes de sua vida. Se no domínio material se encontra em total indefinição de rumos, no espiritual cada vez melhor se definem seus ideais de reorganizador social. Foi justamente nessa encruzilhada que veio a conhecer uma figura extremamente curiosa, a cuja influência, a princípio, não se pôde subtrair: o excêntrico Saint-Simon, "um homem que se adaptou a todos os meios e todas as épocas"5, em cuja obra Comte vislumbrou muitas semelhanças com o seu roteiro inovador. De origem nobre, o Conde Henrique Saint-Simon, nascido em Paris em 1760, teve uma existência aventurosa, sem dúvida fascinante para qualquer jovem ambicioso. Procedente da linhagem de Carlos Magno, teve infância e adolescência extremamente agitadas. Recolhido pelo pai ao Convento de Saint Lazare, de lá evadiu-se após atacar um guarda e se apoderar das chaves de seus aposentos. Atilado e precoce, coronel aos 23 anos, participou da Guerra da Independência dos Estados Unidos, quando foi ferido e feito prisioneiro. Novamente em Paris, segue uma vida pontilhada de lances novelescos entre aventuras financeiras, propaganda de idéias e paixão pelo jogo e pelas mulheres. Seu extremado republicanismo leva-o a renegar o título de Conde, adotando apenas o de cidadão, para "limpar a mancha do pecado original". Figura insinuante, obtém empréstimos para grandes empreendimentos comerciais. Uma de suas maiores armas, que maneja com extrema eficácia, é a publicidade. Para isso, dispõe de uma impressora, através da qual se dedica à propaganda das idéias lucrativas ao lado de manifestos revolucionários. Assim como cultiva a amizade de sábios, freqüenta casas de jogos e salões elegantes. Seus negócios vão desde a transação com imóveis, empreendimentos industriais, comissões ou comércio de bebidas, em Paris, em Somme, em Calais, até que um dia se vê às voltas com a Polícia, para explicar a venda da coberta de chumbo da Notre Dame, ao que parece escusa. Mais de uma vez esteve encarcerado. Não obstante, precursor ousado, continua comerciando, mesmo na prisão, através de intermediários.

5 - Prieto, justo - Op. cit., pág. 94. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 23

Homem de múltiplas iniciativas, hei-lo a inventar um curioso jogo de cartas em que o Rei, a Dama e o Valete, figuras que evocam a monarquia, são substituídas pelo Gênio, a Igualdade e a Liberdade, "porque não é do espírito republicano evocar constantemente imagens que recordem o despotismo e a desigualdade".6 Como os lances de seu existir, o seu roteiro político segue oferecendo surpresas: assim, primeiro é partidário da Monarquia; logo a seguir é adepto do Diretório. Posteriormente proclama o grande Napoleão protetor da Enciclopédia e, após, o reconhece como "Tirano Imperador", quando, então, passa a ver a Monarquia como causa da liberdade e, em conseqüência, a saudar entusiasticamente Luís XVIII, que a encarnava. Em meio a esses extravios, difunde idéias e princípios inovadores. Com o concurso de seu secretário Augustin Thierry, publica um livro de título ambicioso: "Da reorganização da sociedade européia ou da necessidade e dos meios de reunir os povos da Europa em um só corpo político, conservando cada um sua independência". Sem dúvida, uma gigantesca confederação inspirada no seu conhecimento da República dos Estados Unidos da América. Essas e outras iscas terminam por atrair para seu convívio O jovem cheio de idéias originais, que então começava a esboçar os primeiros trabalhos, germes de toda sua obra futura. Por enquanto, Augusto Comte, que inicia sua colaboração com Saint-Simon em agosto de 1817, não assina seus trabalhos, mas permite que sejam difundidos com o selo de seu patrão, a quem considera, nesta altura, um "digno filósofo". Conta-se que teria sido um colega de Augusto Comte, admirador da semelhança de suas idéias com as de Saint-Simon, que tomara a iniciativa de aproximá-los. Entre o pensamento de ambos existiam grandes afinidades, como também profundas divergências. A vida de Saint-Simon (Paris, 1760-1825) transcorre justamente durante a crise que preparou e desencadeou a Revolução Francesa. Em seu espírito, porém, ao lado das conquistas do Século XVIII, científico e revolucionário, permaneciam resíduos das centúrias anteriores, especialmente do Século XVII, em que a Europa, e nela a França, pareciam ter encontrado o segredo da harmonia final, em todos os campos. A vida política dava impressão de haver atingido,

6 - Prieto, justo - Op. cit., pág. 99. 24 MOZART PEREIRA SOARES

com a Monarquia, o regime ideal e insuperável em luxo, pompa e poder. Escritores e artistas de todos os ramos eram alvo, como nunca dantes, de admiração e prestígio. Ninguém admitia discutir ou negar o pensamento político e filosófico de Bossuet, Fenelon, Fontenelle e tantos outros que viam em Descartes o grande regente da orquestra intelectual. Admitia-se que ele sintetizava todos os avanços mentais da humanidade até então. O estilo literário conheceu o esplendor das obras-primas de Racine, Moliére, Corneille, La Fontaine, Boileau, enquanto junto das famosas madames Sèvigné, Maintenon e Lafayette, respirava-se uma atmosfera de insuperável refinamento. A esse lindo sonho da época da arte pela arte, em que os grandes espíritos se compraziam em viver uma ociosidade descomprometida com os dramas que já os cercavam, sucedeu o pesadelo do século XVIII, analítico e revisionista, com a revelação da massa de proletários urbanos e rurais mergulhados em funda miséria, a sustentar uma corte

faustosa, entretida em construir palácios e monumentos e a dissipar displicentemente o fruto de impostos que esmagavam a plebe. Entretanto, a ordem injusta estava com seus dias contados. Em breve sopraria sobre ela o furacão da Enciclopédia, remate da revisão de valores trazida pelo espírito da Renascença. Quando surgiram os dois primeiros volumes em 1751, a obra capitaneada por Diderot e Dalambert encontrou uma séria reação das classes dominantes, que impediram fosse ela continuada durante trinta anos. Não aceitaram a iconoclastia, que se propunha a arrasar o comando teológico da sociedade representada pela nobreza, pelo clero, pela aristocracia, pelos reis de origem divina. Afinal, em 1780, sob a proteção de Madame Pompadour, os 35 volumes, nos quais colaboraram, entre outros, Voltaire, Montesquieu e Rousseau, puderam ser concluídos e publicados. Tal foi a herança que recebeu Saint-Simon. Do espírito da Enciclopédia extraiu ele uma conduta prática, embora nem sempre coerente. A ciência havia destronado a teologia, colocando no altar a deusa da Razão. Saint-Simon acreditava encontrar-se numa situação similar à de Sócrates, que havia suplantado as deidades do politeísmo em favor do monoteísmo. Assim como nos tempos do filósofo grego, não seria mais possível aceitar-se a multidão dos deuses, praticamente um para cada fenômeno ou acontecimento, a povoarem o Olimpo, após a Enci- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 25

clopédia; um espírito emancipado não poderia mais acreditar em Deus, no céu povoado de anjos ou no inferno com seus demônios. Era preciso acreditar na ciência, a presidir, não apenas os fenômenos cósmicos, mas também os espirituais. A psicologia seria uma ciência positiva como as demais, capaz de reger a moral e a política. Esta, de acordo com os princípios fundamentais de seu livro História do Homem, contestava os conceitos vigentes de igualdade, realmente impossível, dadas as profundas diferenças sociais e outras, entre os seres humanos. Do mesmo passo, fazia restrições ao voto universal limitando os eleitores aos cidadãos ou proprietários. Os ignorantes levam ao poder a sua inépcia, entregando os países à miséria e ao despotismo militar, pensava ele. Reconhecia a existência de dois poderes, o espiritual e o material ou industrial. O primeiro caberia aos sábios, que seriam os sacerdotes. O poder dos industrialistas, detentores da riqueza, deveria manter o sacerdócio, para que este orientasse os negócios humanos rumo ao entendimento final. Toda essa vasta organização seria regida pela Enciclopédia Positiva, uma espécie de sucessora da Bíblia, que estava tratando de criar, como Supremo Conselheiro dos povos, chamado pelo destino para cumprir a grande missão. Quem sustentaria tão amplo conjunto? Os capitães da indústria, donos do dinheiro. A eles caberia manter os sábios, encarregados de colocar a ciência a serviço do progresso industrial. E o jovem filósofo passou, desde agosto de 1817, aos 20 anos incompletos, a colaborar com Saint-Simon, em cuja companhia permaneceu cerca de cinco anos. Que idéias e que bagagem intelectual possuía por esse tempo O futuro criador da Religião da Humanidade? Quando passou a colaborar com Saint-Simon, ele já havia revisado a escala enciclopédica das ciências, exceto as duas últimas, a Sociologia e a Moral científica, que mais tarde, seriam por ele fundadas. Desde a Escola Politécnica trazia uma forte cultura matemática, aprofundara-se no estudo da Astronomia, da Física, da Química, cujos métodos esclarecera e lhe serviriam pouco adiante para estabelecer a classificação das ciências. Descartes e os grandes matemáticos do tempo robusteceram sua capacidade de raciocínio e sua coerência lógica. Os biólogos e naturalistas Lamarck, Cuvier, Bichat, Broussais, Gall e Cabanis emprestavam-lhe as luzes para entender os três aspectos fundamentais da ciência dos seres vivos, que nesse momento ele denominava fisiologia: o estudo da forma (ana- 26 MOZART PEREIRA SOARES

tomia ou biotomia), o exame das funções orgânicas (fisiologia ou bionomia) e a seriação dos seres vivos (ou biotaxia). Pretendendo abarcar todo o conjunto dos conhecimentos humanos, dedicou-se à Filosofia da História, futura base para sua Política Positiva, amparado por Condorcet, Montesquieu, Diderot, D'Alambert, Heine e Adam Smith. Os últimos seriam seus sinalizadores nos caminhos da Economia Política, os mentores de que necessitava para suas primeiras tarefas junto a Saint-Simon, preocupado em obter a adesão e o auxílio dos industrialistas. No domínio religioso, apesar de sua definitiva contestação do teologismo, procurava conservar o que havia de orgânico no catolicismo em sua forma liberal, segundo o pensamento de Lamennais, De Maistre e De Bonald. Uma nova realidade, fundamentada nas ciências experimentais, de acordo com os dados objetivos, permita-lhe sustentar que até os fenômenos espirituais podem ser regidos por leis semelhantes às que se verificam nas ciências físicas. Seria a Física Social, denominação que nesse momento usava para as ciências do homem, mais tarde cindidas na Sociologia, dedicada ao homem coletivamente encarado, e na Moral, concernente ao homem isolado ou individual. O século anterior, pensava, filosófico e revolucionário, produzira um resultado dissolvente. Sua missão, ao contrário, seria construir, porém não com os elementos gastos do regime anterior, como admitia Saint-Simon, aceitando uma nova teocracia ou um ressurgimento do cristianismo. Para Comte - e isso se foi acentuando constantemente - tal atitude era retrógrada, numa clara divergência com o seu suposto orientador. Esse, em essência, o pensamento que então sustentava Augusto Comte e que lhe permitiu levar a Saint-Simon suas primeiras idéias sobre uma política científica e uma filosofia das ciências. Seus trabalhos iniciais nessa direção, mais tarde recolhidos no livro Opúsculos de Filosofia Social, 7 tem por títulos: "Separação entre as opiniões e os desejos" (1819); "Sumária apreciação do passado humano", (1820); "Plano de trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade" (1822); "Considerações filosóficas sobre as ciências e os cientistas" (1825); "Considerações sobre o poder espiritual" (1828); "Exame do Tratado de Broussais sobre a Irritação" (1828).

7 - Comte, Augusto - Opúsculos de Filosofia Social, tradução de João Francisco de Souza e Ivan Lins. Editora Globo S/A. Porto Alegre, 1972. O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 27

Nos primeiros tempos Saint-Simon exerceu sobre Comte um fascínio extraordinário. Era um semeador de idéias de liberdade, não aceitava a anarquia reinante e, como ele, pretendia reorganizar a sociedade em moldes científicos. L'Industrie é o periódico de sua iniciação no seu novo emprego. É com ele que Saint-Simon espera sensibilizar os possuidores da riqueza para lograr a publicação da Enciclopédia das Idéias Positivas com o concurso de seu jovem colaborador. No último caderno de L'Industrie, saído em outubro, Comte publica sua interpretação da história, qualificando a época como um período de transição, que irá evoluindo naturalmente, sem violência. O que há de ameaçador e preocupante nesse trabalho é seu prognóstico de que, ao fim, os monarcas e os sacerdotes do regime anterior devem perecer lentamente, "por morte natural". Duas questões nos interessam no período em que Augusto Comte serrou como secretário de Saint-Simon e elaborou seus ensaios iniciais: primeiro, a finalidade daqueles trabalhos e, segundo, a influência exercida sobre seu espírito pelo seu então Diretor. Sobre a primeira, nada melhor do que o juízo do próprio Comte. Em

1850, ao terminar o 4º e último volume do Sistema de Política Positiva, Comte agregou-lhe um Apêndice geral, do qual consta o "Prefácio Especial", destinado ao exame de seus primeiros opúsculos. Seu objetivo, em suas próprias palavras, era "facilitar a iniciação positivista dos espíritos dispostos a seguir exatamente marcha idêntica à minha". Mas não ficava apenas nisso. Conhecendo bem os propósitos de seus adversários ideológicos, a essa altura numerosos, de apontarem contradições entre as bases científicas da primeira parte de sua obra, condensadas nos seis volumes do Curso de Filosofia Positiva e a Religião da Humanidade Instituída na Política, tratou de prevenir futuros equívocos e deturpações. Este Apêndice, diz ele, é sobretudo destinado a manifestar a perfeita harmonia entre os esforços que caracterizam minha juventude e os trabalhos realizados em minha idade madura.8

8 - Comte, Augusto - Opúsculos, tradução de João Francisco de Souza e Ivan Lins, pág. 1. 28 MOZART PEREIRA SOARES

Quando, continua, não se apercebe nela a relação necessária entre a base filosófica e a construção religiosa, as duas partes de minha carreira parecem obedecer a direções diferentes; convém, pois, fazer sentir que a segunda se limita a realizar o objetivo preparado pela primeira. Este apêndice deve espontaneamente inspirar tal convicção, fazendo verificar haver eu tentado, desde o meu início, fundar o novo poder espiritual que hoje instituo.9 Depois de algumas considerações sobre o tema, examina o conteúdo e o significado dos opúsculos, começando pela menção ao único princípio absoluto: tudo é relativo, disse ele, na citada publicação. A segunda (1818) ocorreu quando ele apontou a liberdade como propiciadora a "todos os cidadãos", de autoridade consultativa. Tais são as únicas menções, conclui, que lhe parecem significativas em seus trabalhos anteriores aos seis opúsculos enfeixados em seu primeiro livro. Mais uma vez ele condena as publicações anteriores ao Apêndice da Política Positiva: (...) desautorizo, de antemão, qualquer outra reprodução de trabalhos meus publicados e já destruí os meus escritos inéditos. Com essa autocensura exemplar, procurou reduzir seu pensamento ao que considerava autêntico. Apreciando, a seguir, um a um dos seis opúsculos, esclarece: O primeiro, foi composto em julho de 1819, para o periódico "o Censor", onde jamais constou. Publico-o agora aqui não só para indicar como eu tendia, aos 21 anos, para a divisão dos dois poderes, como também visando à utilidade que tal esclarecimento conserva ainda hoje.

9 - Comte, Augusto - Opúsculos, Prefácio Especial, pág. 1. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 29

O segundo opúsculo é publicado em abril de 1820, no periódico O Organizador, sob o nome de Saint-Simon. Comte mais tarde reivindicou sua autoria, conhecida então somente de alguns poucos, e deu-lhe seu verdadeiro título: Sumária Apreciação do Conjunto do Passado Moderno. Aí ele retrata os dois movimentos, um demolidor ou negativo, outro construtor ou positivo, cujo concurso caracteriza a revolução ocidental. Aprecia, ainda, o contraste histórico entre a França e a Inglaterra, de acordo com o prevalecimento do poder central ou da força local, origem, respectivamente, do Presidencialismo e do Parlamentarismo. Maio de 1822 é a

data do terceiro estudo, bastante ambicioso desde o titulo: Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade. Nele esclarece ficar irrevogavelmente determinada sua direção ao mesmo tempo filosófica e social. Foi aí que surgiu sua descoberta das leis sociológicas. A propósito desse trabalho, A. Comte tece algumas considerações que devemos referir como documentos de sua evolução intelectual: seu próprio título está a indicar a íntima combinação entre os pontos de vista científico e político que o haviam preocupado, até então, mas em separado. Sua publicação inicial foi de cem exemplares, gratuitamente comunicados comoprovas. Em 1824 foi reproduzido em mil exemplares, com alguns acréscimos secundários. "Acreditei dever superpor ao seu título especial o de `Sistema de Política Positiva' (prematuramente usado, esclarece), desde então destinado ao conjunto de suas concepções. A partir daí, não se poderia desconhecer a unidade de sua carreira, vendo-se assim prometida, desde seu início, a sistematização que só o Tratado de Política Positiva poderia realizar. No quarto opúsculo, de 1825, manifesta uma tendência mais direta para o estabelecimento de nova autoridade espiritual, baseada numa filosofia fundamentada sobre a ciência. É nesse trabalho, que intitulou Considerações Filosóficas sobre a Ciência e os Cientistas, que ele desenvolve sua teoria sobre a "Lei dos Três Estados". Dois opúsculos seguintes foram publicados no mesmo periódico, O Produtor. No quinto ele expôs, de maneira decisiva, declara, a divisão filosófica e social dos dois poderes elementares, o temporal e o espiritual. Basta comparar estes cinco opúsculos, e sobretudo os três últimos, para neles reconhecer uma progressão constante, onde o termo final caracteri- 30 MOZART PEREIRA SOARES

za o seu objetivo geral: a reorganização do poder espiritual adaptado à renovação da filosofia. Finalmente, em agosto de 1828, no Jornal de Paris, ele publica seu sexto e último trabalho dessa série, onde se percebe a passagem de sua estréia social para a carreira intelectual. Encerrando seus compromissos com Saint-Simon, recobrou Comte a liberdade para entregar-se exclusivamente a seus trabalhos. O primeiro fruto dessa situação é o Curso de Filosofia Positiva em seis alentados volumes, publicados entre 1830 e 1842. Desde 1826 ele planejava submeter suas idéias aos principais pensadores da época, tarefa que levou a efeito, iniciando nesse ano o aludido curso, logo interrompido por uma severa crise cerebral. Eis o programa de tal atividade, que fez circular em manuscrito no começo de 1826: CURSO DE FILOSOFIA POSITIVA (em 72 aulas, de 1º de abril de 1826 a 1º de abril de 1827) Preliminares gerais (2 aulas): 1ª - exposição do objetivo deste curso; 2ª - exposição do plano. Matemática (16 aulas): Cálculo (7 aulas); Geometria (5 aulas); Mecânica (4 aulas). Ciência dos Corpos Brutos: Astronomia (10 aulas); Geometria (5 aulas); Mecânica (5 aulas); Física (10 aulas); química (10 aulas). Ciência dos Corpos Organizados: Fisiologia (10 aulas); Física Social (14 aulas). Sua crise mental ocorrida ao início do Curso, em 26, serviu-lhe para avaliar o conteúdo do sexto opúsculo: Exame do Tratado de Broussais sobre a Irritação e a Loucura. Esse breve relato basta para fazer compreender a importância dos "Opúsculos" para a obra comtiana. Entretanto, somente sua leitura direta nos pode dar uma idéia clara da riqueza e da maturidade intelectual de Comte antes dos trinta anos. A outra parte de nossa indagação diz respeito à influência de Saint-Simon sobre Augusto Comte, durante os cinco anos em que este serviu àquele. Suas relações começaram sob uma expectativa bastante simpática e esperançosa. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 31

A princípio Comte chamou, como se viu, a Saint-Simon "um digno filósofo". E a propósito escreve a seu colega e confidente Valat, em 1818: Estou trabalhando com Saint-Simon, um

homem cujo liberalismo é bem conhecido, (...)10 Mais tarde iria considerá-lo um escritor vago e superficial, "cuja vida estaria consagrada à compra e venda de idéias". Desse modo, não seria dificil prever-se que terminassem rompendo, após crescentes desentendimentos. Comte chegou a concordar passivamente com a publicação de trabalho seu sob o nome do Diretor. Por essa época escrevia, como sempre, a Valat: Mais tarde esclarecerei o que, nesta colheita, é meu trabalho e o que é dos outros. Ao fim de sua carreira, Augusto Comte iria expressar um juízo, naturalmente ressentido, sobre a influência de Saint-Simon, que ele considerou nefasta. Há, porém, outros aspectos dignos de exame nessas relações. O fato é que, materialmente, Comte lucrou. O emprego com Saint-Simon livrou-o temporariamente da quase miséria em que se via. E intelectualmente? Não se pode admitir uma influência perturbadora ou nefasta sobre seu pensamento. Saint-Simon era um espírito superficial e incoerente, incapaz de marcar um engenho superior como o de seu secretário, cujas idéias aceitava sem exame, chegando a publicá-las sem alteração de uma só vírgula, como depois o criador do Positivismo informaria. Talvez a palavra nefasta fosse usada na conotação moral ou mais precisamente, ética, que Augusto Comte passou a levar cada vez mais à risca. Enfim, até pelo contraste ideológico Saint-Simon serviu para aguçar e polir mais e melhor suas convicções, a essa altura já firmemente estabelecidas. As divergências deles eram irreconciliáveis: Saint-Simon pretendia reorganizar a sociedade restaurando a velha ordem católica e Comte intentando substituí-la inteiramente, através da Religião demonstrável ou Positiva.

10 - Prieto, justo - Op. cit., pág. 118. 32 MOZART PEREIRA SOARES

Capítulo II A OBRA FUNDAMENTAL 1. PRELÚDIO AMOROSO Embora pareça deslocada cronologicamente, torna-se necessária uma digressão sobre os problemas sentimentais de Augusto Comte, em face das repercussões que vieram a ter em sua obra. Seus quatro amores principais, pelo menos os que a história registra, foram romances mal sucedidos. Nenhum deles levou-o à felicidade que sua exaltada afetividade aspirava. Nesse sentido, a vida do grande amoroso insatisfeito que ele foi nos oferece lances curiosos e surpreendentes, que têm dado margem às mais contraditórias interpretações de biógrafos e analistas. Teve Comte uma consciência precoce dos extravios a que o coração poderia conduzi-lo. E disso nos deixou testemunho nas confidências a seu amigo Valat que parecem ter sentido premonitório, quando escrevia de Paris para Montpellier, a 29 de outubro de 1816, aos dezoito anos: Não ignoras como é avassaladora minha paixão pelas mulheres e as loucuras que elas me têm feito cometer. 11 A primeira de suas inclinações amorosas é dos quinze anos. A protagonista era mulher casada, cinco anos mais velha do que ele, Madame Monfort, em solteira Josefina Joana Ernestina Gay. Era mulher bastante sagaz para entender que despertava o coração de Comte, para quem tocava romanzas em sua harpa. Ao mesmo tempo, estimulava-o: Tu serás um grande homem e teu nome brilhará ainda mais do que esses que vives a exaltar.

11 - Comte, Augusto -Lettres de Augusto Comte alYl Valat. Paris - Dunod, 1870, pág. 19. O POSITIVISMO no BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTOCOMTE 33

Essa opinião só poderia provir dos comentários sobre acontecimentos políticos e teorias científicas que ambos trocavam em suas ???Isões de amizade amorosa. De quando em quando as horas ???mo ,tonas de Ernestina eram alvoroçadas por algum impulso menos eido de Comte: Tua carta me deu uma grande alegria: foi como estar contigo; porém o triste foi que ao terminar de lê-la tive a impressão de que me deixavas sem ao menos despedir-te. Não sei se poderei continuar resistindo sem trair-me, o imenso pesar de não ver-te... Ela, por sua vez, deixava que seu coração também falasse e, já quando avó, ainda recordava: você...

... esta Ernestina que tanto loqueou com Essa primeira inclinação afetiva teve seu fim natural quando O jovem filósofo deixou Montpellier e o Liceu, para ingressar na Politécnica de Paris. Na cidade natal ficava ainda outra pessoa importantíssima em sua formação, o Pastor Daniel Encontre. O segundo episódio amoroso acontece em Paris, na fase de Saint-Simon, quando ele contava 20 anos. Dele ficou a lembrança de Paulina, que lhe deu uma filha, de nome Luíza, nascida em ???bunho ? e 1818 e falecida de crupe em 1829. A notícia desse amor Comte comunicou a seu amigo Valat em carta de 17 de abril de 1818. Paulina é retratada como uma jovem dama de 25 anos, de origem italiana, cheia de espírito, fina educação, excelente caráter, muito bom coração, uma vez que chega à alma, além de musicista que o encanta ao piano. Enquanto ele lhe ensinava inglês, ela retribuía com lições de italiano. 34 MOZART PEREIRA SOARES

Somos obrigados a tomar algumas precauções, comenta na mesma carta, porque Paulina é casada, não tanto pelo marido(...) mas por uma filhinha de 7 ou 8 anos que não convém escandalizar. Dois anos depois o amor já não é mais a paixão de início. Paulina sente que foi destronada pela filha, mas entre eles se estabelece uma tranqüila amizade, que perdurou, admitia ela, graças à honorabilidade e à delicadeza de Comte. Este devia ter feito sentir à sua amante o conceito que transmitia a Valat em carta de 24 de setembro de 1819: As mulheres em geral e coletivamente têm tanto que sofrer com os machos de sua espécie que particularmente acredito-me na obrigação de compensar, no possível, os erros comuns do meu sexo.

2. TEMPESTADE

O terceiro capítulo, amor da virilidade, é o trágico na vida de Comte. A data de seu começo ficou registrada: 3 de maio de 1821, festa oficial do batismo do Duque de Bordeau. Rompido com Saint-Simon, solitário, sem emprego, longe da família, Comte errava, à noite, pelas "galerias de madeira", o mercado das mulheres de vida fácil, quando encontrou uma jovem em seus 19 anos, com todos os adjetivos da sedução: bonita, graciosa, vivaz e inteligente. Atraído pelos seus encantos, deixou-se levar para sua casa. Quatorze meses depois, surpresa: entrando numa livraria, encontrou ao balcão a moça das galerias de madeira. E o convívio não só se restabeleceu, como se acentuou e consolidou. A partir daí Comte passou a inteirar-se da vida de Carolina Boudelet Massin, cujas vicissitudes o comoveram. Filha ilegítima de um par de comediantes de província, foi criada pela avó materna até a idade de 11 anos, quando esta, tendo enviuvado, não pôde mais sustentar a neta e a devolveu à mãe. Ana Boudelet, mulher acostumada a uma vida errante, não hesitou em pôr preço a Carolina, quando ela cumpria apenas 16 anos. Um jovem advogado do foro parisiense pagou por ela a quantia de um mil

escudos. Um ano depois de usufruí-la, abandonou-a a seu fado. Carolina em vão buscou trabalho em lojas e restaurantes, até que se decidiu pela profissão mais antiga do mundo. Obtém uma cartilha de O POSITIVISMO no BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 35

meretrício e registra seu nome no livro de controle sanitário da Polícia. Foi essa a fase na qual Augusto Comte a encontrou. E quando ela desapareceu de suas vistas, foi porque seu ex-amante Antônio Cerclet gestionou a obtenção de um livros e uma licença para Carolina gerenciá-lo. O reatamento da amizade entre Comte e Carolina logo transformou-se em amor. Por enquanto, o único obstáculo a seu pleno desenvolvimento era a diferença entre a educação e a cultura de ambos. Não escapou a Carolina essa circunstância. A intuição feminina levou-a a pleitear as lições do professor tão capaz e disponível. Carolina não se limitava apenas ao papel de aluna e amante: sentindo a dedicação e a ternura de Comte, foi tecendo o plano de se tornar sua esposa, visto que ambos eram solteiros. Ademais, haviam passado a viver como marido e mulher. Não haveria surpresa se legalizassem essa condição. A seu amigo Valat escreve, radiante: posto de venda de Tu recordarás haver-me ouvido falar este outono de uma amável dama a quem eu dava lições de álgebra. Pois bem: as lições deram frutos e o ensino foi mútuo, ao ponto de que desde dez de fevereiro vivemos juntos, como marido e mulher. Sinto-me feliz com esta vida nova e sou mais ditoso que nunca. Minha Carolina me atormenta um pouco (...) no desejo de que façamos realidade esta ficção matrimonial, mas espero que se tranqüilize. Estou decidido a não ir além neste terreno, pois embora não cultive preconceitos, como bem sabes, penso que nesta circunstância especial o assunto não me convém. Esse modo de pensar mudaria muito em breve. Tendo Carolina vendido a livraria, continuou a receber, na companhia inconstante de Cerclet, as lições de álgebra, à Rua Traci, onde passou ela a viver. Apesar de não freqüentar assiduamente as aulas, Cerclet pagava-as pontualmente. Carolina, pobre, desditosa e sozinha, três condições que tocaram fundamente o altruísmo de Comte, não desiste de seu projeto matrimonial. O filósofo, por sua vez, havia mudado radicalmente seu modo de pensar sobre o assunto, tanto que escreve a Valat estas 36 MOZART PEREIRA SOARES

palavras, nas quais se revela uma das primeiras grandes vozes em defesa da mulher, nesse tempo tão desconsiderada: Em verdade, amigo, a horrível lei do mais forte(...) se aplica pela massa dos homens à massa das mulheres. Na ordem social atual, a mulher é considerada pelas leis (...) como um objeto, um brinquedo, destinado eternamente ao prazer e ao uso de Sua Majestade o Homem, que pela graça de Deus e a força de seus músculos se erigiu em proprietário do animal doméstico chamado Mulher, da mesma forma que, nas colônias, um branco é proprietário de um negro... Para levarem a termo o projeto, eram necessárias duas medidas: a retirada do nome de Carolina do registro profissional, de que se encarregou Antônio Cerclet (não obstante estar ela em atraso com a Inspeção Sanitária), e depois obter o consentimento dos pais. Luiz Comte tratou de investigar e ficou sabendo que seu filho vivia em concubinato com sua pretendida havia dez meses. Resultado: recusa da família. Mas Comte insistiu, terminando por conseguir, passada em cartório, a licença que pleiteava. E no dia 19 de fevereiro de 1825 o notário Jorge Champion declara unidos em matrimônio Isidoro Maria Francisco Xavier Comte, professor de Matemática de 27 anos, e Ana Carolina Massin, costureira, de 22 anos. São testemunhas, por parte de Comte, João Maria Duhamel, ex-aluno da Escola Politécnica, e Olinto Rodrigues. De Carolina foram Louis Oudam, comerciante, e Antônio Cerclet, advogado. Com o casamento, Comte sonhava tranqüilizar e ordenar a vida

para realizar a obra que, a essa altura, já delineara. Mas, a tranqüilidade não chegou. Antes, multiplicaram-se as dificuldades. Se já eram escassos seus rendimentos para manter-se quando só, agora devia prover a existência de dois. Os alunos particulares com os quais contava reduziram-se a um somente. Apesar do acúmulo de obstáculos, ele prosseguia estudando as obras marcantes, cujo conhecimento julgava indispensável à construção da obra a que se dedicava. Mais do que nunca necessitava de paz e tranqüilidade. Para tanto, sonhou retornar ao seio da família, em Montpellier. Resolvendo apresentar aos pais a jovem esposa, partiram para sua terra natal, ele cheio de esperanças e ela, de dúvidas. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 37

Carolina, pela sua graça e desenvoltura, encantou a todos. Mas recusou-se a viver na Província, o que seria natural para uma mundana de Paris. Mais um sonho frustrado. Era imperioso retornar à Capital, onde esperava ainda contar com alunos particulares em número suficiente para viver, mesmo que modestamente. Com essa perspectiva instalou-se num grande apartamento na Rua do Faubourg Montmartre, nº 13, onde passou a receber os antigos camaradas e a aumentar o círculo de suas relações. Encontrava-se agora mais tranqüilo e amadurecido intelectualmente. Na opinião dos biógrafos mais autorizados, Comte se achava em posse de todos os elementos fundamentais para construir sua obra, antes de passar a Secretário de Saint-Simon e melhor preparado, sem dúvida, após a ruptura com este, como atestam os escritos reunidos nos "Opúsculos Fundamentais". Os estudos de Biologia e Medicina, iniciados em Montpellier, ele os desenvolveu e completou ao analisar a obra de Bichat, Recherches Physiologiques sur la Vie et la Mort eAnatomie Generale, cujas concepções sobre a divisão entre funções vegetativas e vida animal, bem como a teoria sobre as propriedades específicas dos tecidos, habilitavam-no a entender melhor a natureza dos fenômenos biológicos. O conhecimento da obra de Gall, Le Cerveau et ta Inervation, na qual coloca as manifestações intelectuais, afetivas e motores sob o comando do cérebro, possibilitou-lhe elaborar sua teoria cerebral do homem, correta em suas grandes linhas, como hoje se reconhece. Dedutivamente não seria possível avançar-se mais nos dias de Comte. Somente cinco anos depois de sua morte foi que Broca descobriu a localização do centro verbal, ao conhecer a lesão sofrida pelo célebre "fere Tan", ao pé da terceira circunvolução frontal ascendente. A esse achado patológico sucedeu a importante conquista experimental de Fritz e Hitzig (1870), obtendo respostas precisas e constantes mediante excitação de pontos bem definidos na cortiça eletromotora, em cães com o cérebro exposto, após a retirada da coberta óssea da região temporal. A excitação se processa depois do efeito anestésico, visto que a cortiça cerebral é insensível ao toque mecânico, mas sensível à corrente elétrica. Completados seus estudos, sente-se Augusto Comte em condições de redigir seu tratado. Antes, porém, procurou submeter suas idéias aos espíritos mais eminentes de Paris. Os ouvintes que acorreram a seu chamamento entusiasmaram no. Sentavam-se na ???p ~Ila intelectuais consagrados, como 38 MOZART PEREIRA SOARES

Broussais, Blainville, Poinsot, J. Tourrier e o sábio Alexandre Von Humboldt. Em seguida alguns médicos e vários condiscípulos seus. Não faltava Antônio Cerclet, diretor de O Produtor, em que Augusto Comte vinha colaborando. Animado pela qualidade do auditório, Augusto Comte expôs com notável segurança o espírito da nova doutrina, lição que foi conservada, quase textualmente, no primeiro capítulo do Curso de Filosofia Positiva. Parecia, enfim, estar dando os primeiros passos na longa estrada que pretendia percorrer. Depois de haver exposto O

objetivo de seu ensino e o espírito da nova doutrina, Comte desenvolveu na segunda lição o plano de seu curso e a hierarquia das ciências. Dedicou a 3ª edição ao exame em conjunto da primeira das ciências em sua classificação, a matemática. O desenvolvimento dessas idéias é tão longo, que preenche completamente o primeiro dos seis volumes de seu curso. Os ouvintes que chegavam, no dia seguinte, para a 4ª lição, encontraram a casa fechada e a notícia de que o conferencista adoecera. Pouco depois se sabia de tal doença. De há tempos vinha se preocupando ele com a difícil situação financeira, que se agravara com o casamento. Sua mulher, ante a insuficiência de recursos, não teve receio de buscar ajuda de seu antigo amante, Antônio Cerclet. Primeiro escreveu-lhe, depois visitou-o, violando o compromisso que assumira de renunciar completamente a qualquer contato com ele, condição ajustada para o casamento. E após violenta discussão, concordaram em separar-se. Havia dias que Carolina se ausentara. Começa aqui seu calvário, o período mais perturbador de sua existência. Após encontrar-se a sós, Comte sai à rua, com a cabeça em fogo, caminha a esmo e, de repente, se detém à frente da casa de Lamennais. O encontro com o Sacerdote, que na ocasião recebia o Padre Gerbert, foi dramático. Ao deparar-se com os dois religiosos, Comte se ajoelha e abre-lhes o coração, em minúcias confidenciais sobre seu desastrado casamento, terminando pela evidência da traição. As lágrimas que derrama são insuficientes para suavizar-lhe o sofrimento. Ao sair, põe-se a andar, sempre a esmo, sem as mínimas condições para preparar a conferência seguinte. Recusa-se a retornar ao lar, agora teatro de sua infelicidade. À medida que seu tumulto emocional aumenta, cresce a sua desintegração mental. Mesmo assim, ainda procura refugiar-se no hotel Cheval Blanc, de onde passa a dirigir cartas incoerentes a seus amigos. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 39

Na de 15 de abril, dirigida a Blainville, faz o autodiagnóstico de sua enfermidade e declara que será seu próprio médico. Carolina também recebe uma dessas mensagens delirantes. E reconsidera seu gesto, saindo à procura do esposo, que encontra no hotel citado, em completo desalinho. Vai em companhia de Blainville e de um médico, a quem pediu que a acompanhasse. - Não pensava que seu arrebatamento fosse fruto de uma doença, disse ela, e tive medo. À vista de Carolina e de Blainville, Comte parece emergir dos sonhos. Delira às vezes. Mas também manifesta longos períodos de lucidez. Carolina propõe então um passeio, com que intentava acalmálo e reconduzi-lo à razão. - Sim, mas não pelo parque, diz ele. Prefiro refrescar minha cabeça à beira do lago. Pondo-se a caminhar cada vez mais próximo da margem, conduzindo Carolina pelo braço, num dado momento precipita-se em direção à água, tentando arrastar a companheira. Não consegue, porém, seu intento. Carolina teve a sorte de apanhar um galho de salgueiro da margem, retendo Comte. . Compreenderam então ser impossível controlar os desatinos do enfermo e resolveram interná-lo. Auxiliados por um gendarme, Blainville, Antônio Cerclet e Carolina levaram-no à Casa de Alienados do Dr. Esquiról, que formulou um diagnóstico favorável. Com o tratamento convencional, com duchas e sangrias, em breve o cliente recobraria a saúde. Nessa hora de aprêmios, Carolina busca e encontra seu pai, Luiz Hilário Massim Chambreuil, que agora, em dificuldades, vivia de expedientes e a quem a filha deixara de socorrer financeiramente desde o casamento. Sem que ela soubesse, seu pai escreve uma carta a Luiz Comte, em Montpellier, opinando que seria necessário o auxílio da família na assistência ao demente. É Rosália quem parte para Paris à procura do filho. Sua intenção é retirá-lo da Casa de Saúde e levá-lo a convalescer em Montpellier. Carolina se opõe e, ademais, o Dr. Esquiról declara entregar o enfermo somente a quem o internou. Rosália não desiste e reivindica seu filho sob o argumento de que seu

casamento é inválido: não fora consagrado pela Igreja. O desfecho, imprevisto, é curioso. Rosália, não obstante a insanidade 40 MOZART PEREIRA SOARES

mental do filho, convence Carolina a casar-se pelo rito católico. Antes havia intentado retirá-lo da casa de alienados e interná-lo num estabelecimento religioso. Frustrada, mais uma vez, desejou conduzi-lo a Montpellier. Afinal, Carolina propõe levar o esposo a seu próprio lar, na convicção de que um regime de benevolência e liberdade seria mais útil do que o confinamento. Deseja ela apenas duas semanas para comprovar a certeza de sua conduta. E "ainda que ninguém acreditasse em sua cura, nem o próprio Dr. Esquiról, comenta um biógrafo 12 , Carolina fará o milagre em pouco tempo. Sua coragem e sua abnegação prontamente receberiam seu prêmio". Comte e Carolina deixam a clínica em companhia de um condiscípulo daquele, Mallet. Ao passarem pela ponte de Austerlitz, tiveram os condutores do enfermo a confirmação de que não devia ser contrariado e, ao mesmo tempo, uma antecipação dos tormentos a que estaria exposta Carolina, em sua dificil missão de enfermeira de um demente agressivo. Comte delirava, descrevendo a suposta paisagem de Constantinopla, quando foi advertido por Mallet de que estavam em Paris. A resposta foi uma violenta bofetada do alienado. Chegam, enfim, à casa do filósofo, onde o aguardavam Lamennais e o abade Salles. Rosália havia removido toda classe de dificuldades para o casamento religioso, inclusive uma possível resistência de Carolina. O casamento, em tais circunstâncias, seria apenas uma farsa para Augusto Comte, que, embora deprimido, não cessava de verberar contra a teologia. Ao terminar a cerimônia, surpresa: Comte não se opunha a firmar a ata respectiva e assina: Brutus Bonaparte Comte. Após um ano de sua grande crise, isolado em sua própria casa, apesar de reconhecer o ambiente familiar, os seus livros, os móveis, a mulher e um que outro amigo, conservava-se taciturno, arrojando tudo quanto encontrava pela frente. É indiscutível: quem o salvou nessa dramática emergência foi Carolina, fato afinal reconhecido por Rosália Boyer. Os dias trágicos do filósofo, todavia, não tinham chegado ao fim. Readquirindo lentamente a razão, ao dar-se conta do que lhe acontecera, chegou à conclusão de que jamais seria o homem capaz de cumprir a missão que se impusera. E resolveu, pela segunda vez, tentar contra a vida, arrojando-se de uma ponte ao Sena. Um guar-

12 - Prieto, justo - Op. cit., pág. 206. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 41

da, ainda uma vez, o salvou. Ao final do incidente, como que ressuscitou. E se reintegrou plenamente a seu mundo. Breve ele retornará a seus livros, a seus amigos, às suas meditações. E uma dessas, enfocando precisamente sua crise cerebral, é bastante fecunda como lição. Comte jamais negou sua demência, nem se recusou a examiná-la, convencido que essa atitude seria antes benéfica do que prejudicial a seus discípulos, a seus colegas e, por fim, a toda a humanidade. Seu retorno à atividade pública é assinalado pela publicação de um trabalho em que aproveita sua própria experiência e tem por objeto o exame do trabalho de Broussais sobre a irritação e a loucura. Por aí se verifica não apenas sua recuperação mental, mas ainda o fato de que sua criatividade e coordenação permaneceram intactas. Entretanto, algo havia mudado nele. Antes da crise, Comte era brilhante, loquaz, excepcionalmente entusiasmado ao expor suas idéias. Depois tornou-se reservado, demonstrando certa pesadez. Na atmosfera

doméstica passou a exibir uma aspereza de caráter que tornou muito difícil seu convívio com Carolina. Os adeptos mais exaltados de Comte nunca aceitaram a conduta dela, a quem chamam "a esposa indigna". Comte, no entanto, sabia muito bem com que espécie de mulher havia casado. Tanto que, mais tarde, iria confessar que tal passo constituiu seu único erro verdadeiramente grave. Durante muito tempo após sua cura, Carolina assistiu-o, não obstante as dificuldades materiais do marido e sua perigosa irascibilidade. É certamente injusto atribuir somente a ela a culpa do fracasso matrimonial, bem como uma série de defeitos, entre os quais a ingratidão de que o acusam. Se houve alguém que merecesse reconhecimento durante o pior período atravessado por Augusto Comte em toda a sua vida, que vai da explosão de sua crise, a 12 de abril de 1826 a 4 de janeiro de 1829 (quase três anos), em que reabre seu curso, não seria outra pessoa, senão Carolina.

3. RESSURREIÇÃO

Enfim, retorna ao trabalho. Na reabertura do curso, estão presentes o Dr. Broussais, fundador da Patologia positiva, certamente interessado em honrar quem lhe dedicara o ensaio no qual figura como quem combateu com dignidade a influência metafísica na interpretação da enfermidade; Blainville, Poinsot e Navier, membros da Academia; Binet, Profes- 42 MOZART PREIRA SOARES

sor do Colégio de France; Lenoir, Chefe de Seção do Ministério do Interior; Alier, Subsecretário do Ministério da Indústria e Comércio; Montgéry, mais o Diretor de O Produtor, Antônio Cerclet, além de Carolina, que nunca deixou de ouvir suas lições, mesmo depois de separada. Comparece ainda outra pessoa interessadíssima em certificar-se do estado mental do cliente que deixou sua casa de saúde sob observação: "alte, non gueri", o Dr. Esquiról. E Comte recomeçou, eloqüente na exposição e preciso nos conceitos: Emprego a palavra filosofia, diz ele, no sentido que lhe davam os antigos, especialmente Aristóteles, para designar o sistema geral das concepções humanas. Acrescento a denominação positiva para especificar o modo especial de filosofar que consiste em reunir as teorias em qualquer gênero de idéias, tendo por objeto a coordenação dos fatos observados, o que constitui o terceiro e último estado da filosofia geral, a princípio teológica, em seguida metafísica. Nessa retomada, o interesse pelas conferências aumenta, como também cresce o número de candidatos a escutar o expositor, a ponto de o recinto doméstico se tornar insuficiente para desenvolvê-lo. A 9 de dezembro de 1829, Blainville contrata o "Ateneu" nos intervalos em que este se encontrava livre. Nesse dia Comte é recebido com aplausos e saudado por um de seus ouvintes de eleição, o sábio Alexandre Von Humboldt. No início de julho de 1830 aparece o primeiro tomo do Curso de Filosofia Positiva, cercado de grande expectativa. O livro é um sucesso, recebido com referências elogiosas pela Revista Enciclopédica, que o divulga. Montpellier exulta com a glória de seu filho ilustre e em breve seu nome começará a se irradiar pela Europa.

4. A LEI DOS TRÊS ESTADOS, ESPINHA DORSAL DO SISTEMA

O volume abre com a exposição de uma das mais importantes de suas contribuições, a "Lei dos Três Estados", que Stuart O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 43

Mill mais tarde conceituará como "a espinha dorsal do Positivismo". 13 Estudando o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro surto, creio haver descoberto uma grande lei fundamental (...) e que me parece poder ser solidamente estabelecida, seja sobre provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, seja sobre verificações históricas resultantes de um exame atento do passado. Esta lei consiste em que cada uma das nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em suas pesquisas, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: de início O método teológico, em seguida o metafisico e, enfim, o método positivo. Daí três sortes de filosofias ou sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenômenos, que se excluem mutuamente: o primeiro é o ponto de partida necessário da inteligência humana; o terceiro é o estado fixo e definitivo; o segundo é unicamente destinado a servir de transição. No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas pesquisas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que os impressionam, em uma palavra, para os conhecimentos absolutos, concebe os fenômenos como

13 - Talvez fosse mais correto denominá-la, em português, "Lei dos Três Estágios", visto tratar-se do exame das três etapas percorridas historicamente pela evolução mental do homem. 44 MOZART PEREIRA SOARES

produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica (grifei) todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, que não é, no fundo, mais do que uma modificação geral do primeiro, os agentes naturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo e concebidos como capazes de engendrar, por eles próprios, todos os fenômenos observados (...) Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia à busca da origem e destinação do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para se empenhar unicamente em descobrir, pelo uso bem empregado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, quer dizer, suas relações invariáveis de sucessão e semelhança. A explicação dos fatos, reduzidos então a seus termos reais, não é mais, de ora em diante, senão o liame estabelecido entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo progresso da ciência tende, de mais em mais, a diminuir o número. 14 O estágio teológico, sendo o de maior duração no decurso da história humana, não é simples, mas se decompõe em três subperiodos: o fetíchico, o politeísta e, finalmente, o monoteísta. No primeiro momento, o homem, obrigado a explicar o desconhecido, que é o mundo, pelo conhecido, que é ele próprio, encontra-se no estágio espontâneo da razão humana: é o degrau inicial de nossa compreensão, em que supomos todas as coisas dotadas de vontade, como a nossa. No fetichismo não há seres inanimados. Quando os fetiches terrenos, pela contínua familiaridade

conosco, se desmoralizam suficientemente, essas vontades, que explicam até os acontecimentos cósmicos, se refugiam nos astros. O

14 - Comte, Augusto - Cours de Philosophie Positive, I, pág. 2 et passin. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 45

momento mais avançado do fetichismo é o astrolático e, deste, o maior desenvolvimento corresponde à concepção dos astros ou planetas como moradas de entidades personificadas, que são os deuses. Os nomes de nossos companheiros do sistema solar, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, etc., bem o demonstram. É característico do fetichismo confundir o movimento com a vida. Por outro lado, esse estágio inicial da interpretação do mundo é comum ao homem e aos animais superiores. Para o cão, o automóvel que corre, aparentemente animado de vontade, como também ronca e buzina, deve ser tomado como um poderoso animal que ele passa a perseguir, acuando. A criança que se fere acidentalmente com um boneco e que deixa de chorar quando a mãe castiga o malvado tem uma reação tipicamente fetichista. No estágio do fetichismo astrolático, os astros maiores desfrutam da condição divina. Para os nossos ameríndios, dos mais modestos às civilizações mais avançadas, como os Incas, os Astecas, os Maias, o sol é o Deus e os Imperadores são seus filhos. Idéia, aliás, que persiste por longo tempo na humanidade, em que os homens eminentes descendem de deuses. A idéia chega a Jesus Cristo, em pleno monoteísmo, como o filho de Deus. No politeísmo, a fase seguinte, cada acontecimento importante passa a ser regido por um deus especial. Eles reinam em terra, mar e ar, a tudo presidindo, do nascimento à morte, do ódio ao amor, da paz à guerra. E há curiosas variantes, refletindo o caráter e a situação social dos povos que os engendram. No politeísmo romano, Estatulinus é a divindade que confere a cada um sua estatura. Certamente era um deus estimadíssimo pelo povo que necessitava de guerreiros de estatura avantajada para conquistar o mundo. Não menos estimado era Barbatus, encarregado de ornar os rostos masculinos com a insígnia da virilidade, que é a barba. Nenhum, entretanto, é mais pitoresco do que Esterculinus, divindade que costumava passear ao entardecer contemplando O ondular das searas de trigo e que se comprazia com o cheiro de esterco dos bovinos. Quando os romanos disso se aperceberam, passaram a fazer-lhe oferendas de excrementos de bois, colocados nas lavouras. O deus agradecido os recompensava, aumentando o rendimento das colheitas. A passagem do politeísmo ao monoteísmo é lenta e gradual. Não é, entretanto, radical e definitiva. Na verdade, cada uma dessas fases anteriores deixa traços evidentes nos estágios mais avançados. O fetichismo permanece em forma de superstição, até em mentalidades aparentemente emancipadas do sobrenatural. 46 MOZART PEREIRA SOARES

O politeísmo avança, em diversas manifestações, monoteísmo adentro. Comecemos que o deus único não se configurou cabalmente, mas permaneceu trino na figura do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A tendência para o monoteísmo caracterizou-se quando alguns deuses foram perdendo importância, ao passo que outros aumentavam de prestígio e poder. Afinal, um deus que perde influência acaba no esquecimento. E os que permanecem, por sua vez, não tardam a estabelecer uma hierarquia, nada entranhável. Pelo contrário, natural e lógica, como uma espécie defilogenia dos deuses. O catolicismo conhece bem semelhante escala: tronos, potestades, querubins, serafins, anjos, arcanjos, demônios, incubos, súcubos. E se quiséssemos

multiplicar exemplos, poderíamos lembrar as metamorfoses autenticamente politeicas de Maria Santíssima, existindo várias delas, cada uma para presidir os principais eventos da existência humana: Nossa Senhora da Conceição, do Rosário, dos Navegantes, da Boa Morte, Nossa Senhora Aparecida, etc. No estágio metafísico, as causas dos fenômenos passam a ser decorrentes da ação de entidades especiais: a vida, por exemplo, não depende da vontade divina, mas de um chamado "princípio vital". A combustão decorre de outro desses princípios, o flogisto, existente nos corpos capazes de queimar. Os que não queimam, não possuem flogisto. No terceiro e último estágio, o científico ou positivo, que para Augusto Comte é o estado definitivo da razão humana, a vida é o resultado de trocas materiais e energéticas entre um organismo e o meio conveniente. A combustão, por sua vez, decorre da combinação do oxigênio com o carbono. A quantidade de um ou de outro desses elementos presentes na reação nos permite prever a quantidade de calor produzido. Tal acontecimento é, por outro lado, invariável. É evidente que este último estágio da nossa evolução mental só poderia ser atingido após uma longa série de observações. Era necessário que o homem pudesse verificar a correlação invariável entre uma determinada causa e um certo efeito. É justamente essa correlação fixa, entre causa e efeito, que caracteriza o fato científico. Os fenômenos naturais sendo invariáveis, permitem antecipar o resultado das operações em todos os domínios da natureza, desde o mais simples, como na matemática, até os mais complexos, que são os sociais. No período teológico, os acontecimentos, dependendo até do capricho divino, não permitem a certeza no resultado de nossos atos. Ainda um certo grau de mistério permanece na explicação dos O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 47

fatos, durante o estágio metafísico. Na etapa científica ou positiva, os fenômenos não dependem mais de vontades ou desejos, seja dos deuses, seja do homem.

A CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS

O número dos fenômenos naturais, por sua vez, não é indefinido. Comte, ao estudá-los em seu conjunto, verificou serem eles classificáveis em sete categorias irredutíveis. Nasceu daí a sua segunda grande contribuição para o progresso mental da espécie, depois da Lei dos Três Estados: a hierarquia das ciências, que ele estabelece na segunda conferência desse tomo. Na primeira tentativa de classificação, Comte chegou a seis ciências e não a sete, como no estágio final de sua elaboração. Para atingir esse notável resultado, serviu-se de dois parâmetros conjugadamente: a generalidade decrescente e a complexidade crescente dos fenômenos. Já deixamos escrito que no primeiro tomo, em que Augusto Comte inicia o exame sistemático da escala científica, ele ainda conserva o número de seis, segundo a Tábua Sinóptica do Curso de Filosofia, inserida entre as páginas 24 e 25: matemática (ou lógica), a mais simples e geral de todas as ciências, subdividida em estudos do número, extensão e movimento. Seu método é predominantemente dedutivo, embora também nele se empregue a indução, como abordagem necessária a qualquer aquisição lógica nesse domínio. Na análise do tema em exame, Augusto Comte já revela uma série de contestações ao entendimento tradicional. Ao estabelecer sua classificação, Comte colocou cada um dos fenômenos naturais em sua posição irretorquivelmente lógica. Extirpou os vícios até aí correntes em todos os domínios científicos. É uma preciosa aquisição para nossa disciplina mental, extraordinariamente fecunda em suas conseqüências. Os fatos matemáticos, no fundo um mero instrumento lógico para nosso

conhecimento do mundo, são abstratos. Mas, na segunda ciência, a astronomia, vamos encontrar, em concreto, o número, na pluralidade dos corpos celestes, a extensão, na geometria celeste e, finalmente, a mecânica celeste, nas relações entre os movimentos das massas cósmicas. É hora de ressaltar outra noção indissociável da escala dos fenômenos naturais: o método próprio a cada uma das respectivas 48 MOZART PEREIRA SOARES

ciências. O empregado em astronomia é o da observação, visto não podermos interferir no arranjo dos corpos celestes, em suas relações gravitacionais, em seus movimentos. Duas hipóteses nos dão idéia das imensas dificuldades que enfrentaríamos para o conhecimento astronômico: primeiro, se os astros fossem obscuros e, segundo, se considerássemos uma espécie cega. A ciência seguinte, terceira, a física, abrangendo fenômenos mais complexos do que os da astronomia, não trata da estrutura do universo como esta, mas da estrutura da matéria. Todas as alterações que nela se processam por interferência da energia térmica, luminosa, elétrica, não alteram as substâncias. Passada a causa que modificou seu estado, elas voltam à forma anterior. O método empregado na investigação de tais manifestações, é o da experimentação. Conhecida a estrutura da matéria e propriedades decorrentes, avançamos em nossa escala para a quarta ciência, que trata da atividade da matéria. Os corpos são formados de substâncias simples ou compostas. Em ambos os casos, são capazes de reagir uns sobre os outros, originando novas substâncias. Aqui também consideramos a estrutura íntima dos corpos e, além desta, uma propriedade que a física não considera: as afinidades entre os corpos, o que explica suas reações ou interações. Estamos no domínio da química, mais complexo do que o da física. Os corpos químicos podem ser substâncias minerais ou orgânicas, determinando dois campos especiais: o da química mineral, mais simples, e o da orgânica, extremamente complexo. O método peculiar à química, podemos chamar de nomenclatural, ou seja, o conhecimento da natureza das reações, a partir de sua composição molecular. No quinto degrau de nossa escala, encontramos a ciência, que trata da atividade viva da matéria, ou biologia. Na sua primeira tentativa de classificação, Comte chamou a ciência dos corpos vivos, de fisiologia. Mais tarde, considerando que a fisiologia tratava dos corpos organizados em suas manifestações dinâmicas e que, ademais, eles oferecem à nossa consideração uma forma definida, que, por sua vez, se multiplica em número considerável de espécies ou modelos individuais, resolveu denominá-la biologia, subdividida em três ramos: a biotomia (anatomia) ou tratado das formas dos seres vivos; bionomia (fisiologia), que examina suas funções e, finalmente, a biotaxia, em que se estuda a classificação dos seres vivos. O método peculiar à biologia é o da observação comparada. Com a biologia encerra-se o conjunto das ciências que dizem respeito ao mundo, ou seja, considerando-se-o composto de dois O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 49

grupos de ciências que ele conceituou como físicas uma física celeste (astronomia) e as restantes, a física propriamente dita, a química e a biologia, destinadas ao estudo da ???Rsica terrestre. Para além dessa escala estendem-se as que analisam o homem, primeiro submetido ao ser coletivo que é a sociedade, objeto da física social (mais tarde por ele denominada sociologia, ciência que fundou, desde a escolha do nome até a estruturação) e, finalmente, a destinada ao exame do homem, não como ente biológico, mas como ser moral. Esta última ciência, ápice de sua escala, a mais complexa e menos geral de todas, poderia ser chamada de antropologia, se neste momento o termo não tivesse a forte conotação de um capítulo da zoologia. Ou, ainda, psicologia, que ele não usou em virtude de, naquele instante, o que se

estudava nesta disciplina estar impregnado de metafisicismo, ocupando-se de uma entidade ou princípio misterioso capaz de viver fora do organismo que é a alma, por exemplo. Comte não aceitava essa proeza que consiste em admitir-se a possibilidade de um fenômeno, ou conjunto deles, independer de uma sede material. Não seria possível entender-se razoavelmente o homem, sem conhecê-lo na totalidade de suas manifestações. Nasce dessas circunstâncias a fundação do último conjunto de conhecimentos, que ele denominou moral científica. O apoio fundamental dessa ciência está em sua teoria cerebral, correta nas grandes linhas, não obstante o extraordinário desenvolvimento posterior da neurologia.

6. ENTRE O MUNDO E O HOMEM

O período que se estende entre 1830 e 1842, durante o qual Augusto Comte elaborou e publicou os seis volumes do Curso de Filosofia Positiva, é fértil em sucessos e vicissitudes domésticas para o filósofo. Em 1830 reinava Carlos X, de inclinações absolutistas. Uma de suas medidas mais impopulares foi a Lei das Indenizações, que castigava fundamente o povo, para cobrir supostos prejuízos sofridos pela realeza durante a revolução que o antecedera. Um de seus ministros, Polignac, através de outra lei, dissolvia a Câmara, suprimia a liberdade de imprensa e modificava a legislação eleitoral, limitando qualitativamente os votantes. Contra ele, considerado um claro mo- 50 MOZART PEREIRA SOARES

delo de realismo despótico, os liberais organizaram juntas de resistência, que terminariam por uma insurreição buscando anular aqueles decretos, contrários à Carta Constitucional. Durante três dias de movimento, 26, 27 e 29 de julho de 1830, levaram Carlos X a abdicar. Mesmo com a intensa agitação que tomara conta de vários setores da vida política e cultural e se estendera a países vizinhos, particularmente Bélgica e Polônia, a República, tão sonhada por Comte e seus companheiros, não se estabeleceu. Contava ele que a Monarquia, sinônimo de domínio teológico, uma vez suplantada, estaria aberto o caminho para o triunfo de suas idéias. Comte todavia compreende que não seria através de revoluções ou de golpes de estado que seu ideário iria prevalecer. Antes, seu caminho seria o da educação positiva. Para tanto propõe à Associação Politécnica, por ele mesmo fundada, a organização de um curso gratuito de Astronomia Popular, a seu cargo. A escolha da Astronomia obedece a razões filosóficas. Pela simplicidade, clareza e precisão de suas leis, é a ciência mais apta a fazer compreender a positividade. Através dela mais rapidamente se atinge a noção da invariabilidade das leis naturais. Mais tarde ele dirá que, no terreno filosófico, duas grandes leis são realmente importantes: a descoberta do duplo movimento da Terra - rotação e translação - que retira o Planeta do domínio da divindade e, no tocante à Humanidade, a revelação dos pendores benévolos do homem. Com efeito, fez ele sentir que as virtudes ou inclinações para o bem, de nossa espécie, não dependem de um suposto influxo da graça divina, mas da própria natureza humana. Destruindo-se a doutrina da natureza e da graça, retira-se o destino humano do controle da divindade, é o pensamento comtiano. Em abril de 1835 apareceu o segundo tomo do Curso, dedicado à Astronomia e à Física. Após apreciar o método (caminho para o conhecimento, segundo a etimologia do termo grego), estende-se em considerações sobre a observação (ou exame direto) e a experimentação, ou comparação de resultados em condições provocadas. Salienta que apenas o primeiro é próprio da Astronomia, graças à qual o homem pôde se libertar do seu orgulho antropocêntrico. Observa ainda que a Física, como

filosofia natural, começou a superar as explicações metafísicas, para tomar caráter positivo, com os trabalhos de Bacon, Descartes e Galileu. A uniformidade dos processos naturais, se estendendo à química, nos habilita a compreender que todo o univer- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 51

so, como espírito ou matéria, moldou-se na mesma linha de procedimento. O grande desejo de tornar-se professor levou-o a prestar concurso para a cadeira de Geometria, fracassando mais uma vez, acredita-se que por efeito de perseguições. Entretanto, a morte de Navier, de quem era suplente, permitiu-lhe assumir a cátedra mais importante da Escola, "Análise Transcendental e Mecânica Racional". Em pouco tempo seu prestígio sobe entre os alunos, que consideram um privilégio ouvir as aulas de um mestre genial, o melhor entre os docentes. Os colegas de magistério não pensam assim. Em outubro se candidata à Academia de Ciências. Mas a inimizade com Arago, de grande influência na Escola, leva-o, mais uma vez, a ser preterido, conseguindo firmar-se apenas como repetidor e examinador de admissão para o educandário. Essa situação trouxe-lhe algum desafogo. Em 1837 passa a ganhar 10.000 francos mensais, que lhe permitem viajar por toda a França no cumprimento de suas tarefas de examinador de admissão. A 28 de setembro de 1837 escreve a Valat, reatando uma correspondência que interrompera havia 11 anos. Ao voltar a fazê-lo, em 21 de novembro, traduz as satisfações colhidas em seu novo oficio. Por outro lado, manifesta o sério pesar pelo desaparecimento de sua mãe, de quem estava afastado desde sua crise cerebral:

... a morte recente de minha pobre mãe, uma dessas perdas cruéis que, além de serem dolorosamente irreparáveis, nos fazem refletir com tristeza que nosso turno avança também para o fim de uma vida tão absurdamente curta.15 De setembro de 1835 a setembro de 1837 Comte redige o 3°volume do Curso, que trata da Química e da Biologia, aparecido em março de 1838. Entre suas contribuições excepcionais nesta última ciência, devemos destacar as concernentes à atividade vital e a ecologia, por ele denominada de mesologia. Ao examinar a natureza do fenômeno vital, Comte repassa as diversas conceituações sobre a vida e opta pela definição de Blainville, proposta na introdução de seu Tratado deAnatomia Com-

15 - Comte, Auguste - Lettres a Valat, edição citada, pág. 201. 52 MOZART PEREIRA SOARES

parada, "de caracterizar este grande fenômeno pelo duplo movimento intestino ao mesmo tempo geral e contínuo, de composição e de decomposição, que constitui com efeito sua verdadeira natureza universal". "Esta luminosa definição, continua ele, não me parece deixar nada de importante a desejar (...)", tal processo se verificando entre um determinado organismo e um meio conveniente. Este constitui um segundo termo indispensável para o estabelecimento da equação vital. Até aí se considerava, em conceitos teológicos ou metafisicos, a vida dependendo de um princípio vital, que interessava apenas ao organismo. Este era tudo. Depois, no entanto, que se verificou sua completa dependência de um ambiente ou meio natural que possibilitasse ao organismo com ele entreter o indispensável intercâmbio material e energético, a vida passou a ser entendida em sua positividade. O termo meio, utilizado por Augusto Comte, merece considerações especiais. Em nota de pé de página ele esclarece: Seria supérfluo, espero, motivar expressamente o uso freqüente que farei daqui por diante, em Biologia, do termo meio para designar especialmente, de uma maneira nítida e

rápida, não somente o fluido em que o organismo está mergulhado, mas em geral o conjunto total de circunstâncias exteriores de um gênero qualquer necessárias à existência de cada organismo determinado. Aqueles que tiverem suficientemente meditado sobre o papel capital que deve preencher, em toda a biologia positiva o papel correspondente, não me reprovarão, sem dúvida, a introdução dessa nova expressão.16 Confessando sua constante aversão pelo neologismo sistemático, ele faz notar que, no caso, serviu-se de um deles mas no sentido semântico, pois a palavra meio foi empregada com significado

16 - Comte, Augusto - Curso de Filosofia Positiva, 3ª, pág. 158, nota de pé de página. Ver a propósito a 40ª lição do ref. Tomo, "Considerações Filosóficas sobre o Conjunto da Ciência Biológica", op. cit., pág 141 et passin. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 53

diferente da tradicional: não usou o termo com acepção de intermediário, mas como ambiente. A idéia foi posteriormente desenvolvida, distinguindo-se dois meios como ambientes de trocas para os organismos: o meio cósmico ou exterior aos seres vivos, que lhes fornece suprimentos materiais, sólidos, líquidos ou gasosos, além de todas as formas de energia (calorífica, luminosa, elétrica, etc.), necessárias às funções vitais, e o meio interno (interior quanto ao organismo, mas exterior relativamente às células), no qual os elementos constitutivos dos tecidos se encontram mergulhados "como peixes num aquário", segundo imagem corrente na atualidade. A data em que Augusto Comte se serviu da palavra meio com acepção de ambiente vital, ficou bem precisada: 30 de janeiro de 1836. Trinta e três anos depois (1869), Ernest Haeckel foi buscar na língua grega a palavra ecologia (de ???bicos, casa) no mesmo sentido de Comte, mas restrito aos organismos em suas relações com o ambiente em que vivem. 17 Dois fatos devem ser destacados em relação ao conceito comtiano dos meios vitais. O primeiro é de que Claude Bernard, o sistematizador da Fisiologia, que foi aluno ouvinte de Comte no curso sobre biologia por este ministrado, quando ele estudava medicina em Paris. Bernard, nascido em 1813, era 15 anos mais moço que Augusto Comte. Pôde assim este acompanhar a publicação da obra do fisiologista à medida que ele ia difundindo o resultado de suas pesquisas: estudo sobre o papel do suco gástrico na digestão (1843); investigação sobre as funções do pâncreas (1845-1856); o fígado e a glicogenia (1853). Nesses não aparece a influência direta de Comte, mas sim na sua obra capital, Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1878). Nele, Claude Bernard aborda o tema que considera como sua maior contribuição para a Fisiologia: a importância capital do meio interno para a vida. Nessa feliz concepção Claude Bernard sustenta que todas as funções orgânicas destinam-se a manter a constância da composição do meio interno. Digestão, circulação, respiração, excreção urinaria e demais atividades dos diversos órgãos têm por fim prover o sangue dos elementos que se distribuem a todo o corpo através dos vasos sangüíneos, dos quais provém, em última análise, a linfa in-

17 - O termo passou a ser preferido pelos cientistas, possivelmente em função do prestígio cultural de Haeckel, um helenista erudito que lia as obras gregas nos originais. 54 MOZART PEREIRA SOARES

tersticial ou lacunar, de onde as células retiram seus nutrientes sólidos, líquidos ou gasosos e onde lançam os detritos de seu funcionamento. Esse meio vital, interno em relação ao corpo, mas externo quanto às células, deve manter sua composição constante em sais minerais, substâncias orgânicas, oxigênio, temperatura, equilíbrio ácido-básico, bem como dispor de recursos para carrear ao exterior os produtos chamados catabólitos. Se eles se acumulassem além de certos limites, tornar-se-iam nocivos à economia viva. Essa constância de composição do meio interno é condição de vida livre e independente. Podendo O organismo assegurar o nível permanente de água, oxigênio, nutrientes, calor vital, poderá encontrar-se nos ambientes glaciais ou tórridos, que, por efeito de vários fatores conjugados, auto-regulará suas funções... O equilíbrio instável de sua composição (que toda hora se rompe e toda hora se refaz) foi daí em diante estudado em minúcias cada vez mais profundas. Um investigador moderno dessa Terra da Promissão da Fisiologia, Walter B. Cannon, propôs a substituição da perífrase "constância da composição do meio interno", por um só termo: homeóstase. Num de seus livros de exposição popular sobre as altas conquistas científicas, em que foi mestre, intitulado A Sabedoria do Corpo (edição da Cia. Editora Nacional), propõe a teoria de uma homeóstase do corpo social, olhado como um ser vivo que dispõe de mecanismos reguladores, capazes de assegurar-lhe a unidade funcional, idéia que se harmoniza perfeitamente com o conceito orgânico da sociedade, conforme Comte. Importante é saber-se que a noção de meio interno, como também de meio externo ou cósmico, Claude Bernard apanhou em Augusto Comte, durante o seu Curso de Filosofia Positiva. Um testemunho disso nos deixou um de seus biógrafos, Leon Binet. Ao colher elementos para reconstituir a trajetória de Bernard, encontrou na herdade paterna deste, em Saint Julien, o caderninho de notas em que apontou a idéia do mestre, a quem nunca citou. 18 Fosse Claude Bernard um tipo venerante, por certo faria referência a quem lhe transmitiu a idéia que viria desenvolver, ao publicar sua consagrada Introdução ao Estudo da Medicina Experimental.

18 - Binet publicou um fac símile da passagem acima referida. O autor destas linhas reproduziu o curioso trecho manuscrito de Cl. Bernard, numa série de artigos sobre este, publicado no Caderno de Sábado, Correio do Povo, Porto Alegre/RS. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 55

7. NASCE A SOCIOLOGIA

Terminada a sistematização das cinco primeiras ciências, da matemática à Biologia, que dizem respeito ao mundo (Cosmologia), Comte dedica-se ao estudo das duas últimas de sua escala, relativas ao homem. Começa por uma radical mudança de conceitos, cujo alcance é decisivo para a elucidação de um assunto cada vez mais complexo. Nos regimes teológico e metafísico, a natureza era interpretada a partir do homem. Comte observa que este, como um ser natural, só poder ser explicado e compreendido a partir das leis ou dos princípios que regem o mundo. As ciências sociais, como as cosmológicas, também devem submeter-se a leis naturais de duas categorias: a primeira enfoca a sociedade humana, seus componentes e respectivas atividades. A segunda estuda o homem isoladamente, mas entendido como produto da vida social. Investiga sua natureza biológica, como base de suas faculdades morais no tríplice aspecto: intelectual, afetivo e prático, ou seja, quanto a inteligência, sentimento e atividade. Na sua primeira classificação das ciências Comte chamou o estudo do homem coletivamente

encarado de física social. Ocorre, porém que um sábio belga, seu contemporâneo, L. A. Jacques Quetelet (1796 - 1874) utilizou a mesma expressão para designar aquisições sobre fatos demográficos. Depois que Augusto Comte abandonou a expressão física social adotando o neologismo Sociologia, que obteve consagração universal (1839), Quetelet publicou obra contendo suas inclinações científicas: Do Sistema Social e das Leis que o Regem (1848). A Sociologia, na concepção de Comte, merece referência especial. Primeiro, ele a estuda sob o ponto de vista estático, ou em sua estrutura, depois no aspecto dinâmico. Em outras palavras, de início, no que respeita à ordem e, depois, quanto ao progresso. Essas duas palavras irão ter uma grande importância em ciência política na visão comtiana. Face a isso torna-se necessário precisar seus conceitos. Como ordem ele entende o conjunto de princípios que regem a organização universal (e não disciplina, como popularmente se entende). Progresso, para Augusto Comte, não significa desenvolvimento material, mas aperfeiçoamento das cinco instituições sociais: família, capital, linguagem, governo e sacerdócio. 56 MOZART PEREIRA SOARES

A família, como célula fundamental, representa um perfeito resumo da sociedade humana. Sob a autoridade material do Pai e a previdência afetiva e moral da Mãe, não apenas cria a prole, como a educa, preparando-a para o convívio fora do lar, segundo o significado etimológico da expressão ex-ducare. A longa duração da infância humana possibilitou, entre outros fatores, o extraordinário desenvolvimento da linguagem articulada, que Aristóteles considera a maior das características do gênero humano. É o que realmente distingue nossa espécie de todas as existentes no Planeta. Como capital ou principal considera-se todo o conjunto de bens e instrumentos necessários à sobrevivência e ao aperfeiçoamento do homem. Voltando a Aristóteles: o filósofo inclui como capital até as palavras de que se compõem as obras escritas, que realmente impulsionam nossa espécie em suas conquistas do mundo e do próprio ser/homem. Em suas lições sobre o capital, Augusto Comte adota pontos de vista originais, cujo conhecimento é indispensável para se compreenderem suas idéias sobre economia. Principia por estabelecer as duas leis sobre formação e acumulação: 1ª - cada homem produz mais do que o necessário para seu sustento; 2ª - a produção de cada indivíduo dura mais do que o tempo necessário para sua renovação. O capital é social em sua origem, ensina o filósofo e deve ter um destino social. Disso resulta outra de suas grandes concepções: os capitalistas, na realidade não são donos da riqueza, que é socialmente considerada pública, mas um gestor temporário da fortuna coletiva. Deve ele administrá-la em proveito da coletividade que a gera, dela retirando o necessário para seu sustento e de sua família, evitando-se a apropriação indevida e o consumo abusivo de bens. Não se aceita a herança do capital, a não ser que um membro da família detentora do comando empresarial seja dotado de aptidões que o recomendem de preferência a qualquer outro membro da comunidade gerencial. Daqui resulta outro dos postulados comtianos de transcendente significado para os destinos da indústria (que A. Comte define como qualquer tipo de ação do homem sobre a Terra): a liberdade de testar e de adotar. A administração das empresas deve caber ao componente de sua coletividade mais capacitado para substituir oportunamente o Capitão de indústria e não, necessariamente, a qualquer de seus descendentes. Essas restrições à posse de riqueza não significam ser o Positivismo contrário à propriedade particular. O que Augusto Comte O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 57

condena é o acúmulo ilimitado em mãos de um possuidor que pretenda dispor do capital a seu talante. Em última análise, a solução desse delicado problema é de natureza moral; trata-se de purificar as mãos dos supostos donos do erário humano. Como terceiro elemento do corpo social aparece a linguagem, conjunto de meios de que nos servimos para nos comunicar. Percebe-se, desde logo, que não se limita ela à comunicação falada, não obstante sua primordial importância. Observe-se que a linguagem articulada é o maior instrumento de unidade humana, no tempo e no espaço. Através dela multiplica-se nosso poder, tornando-se coletivos nossos projetos individuais. As idéias, sentimentos e costumes, conservados e transmitidos pela tradição, levam o passado com suas experiências ao futuro que os enriquece. Desse modo os humanos, de limitada duração, de certa forma inermes quando isolados e relativamente ignorantes, transformam-se pela linguagem em novo ser, onipresente, onipotente e onisciente, que é a humanidade, em suma. Em que consistiria o progresso relativamente à linguagem, elemento da ordem humana? Em sua preservação, aprimoramento e moralidade, tarefa difícil nos dias correntes, de radical degradação em todos os meios de comunicação social. Governo é o quarto elemento da estática social. É o poder material ou temporal da sociedade. Cabe-lhe o comando do organismo coletivo, através da força (no caso, do ordenamento jurídico), a que todos, inclusive o próprio governo, devem submeter-se. O elemento social de que se utiliza para o desempenho de sua missão é a solidariedade. Atua no espaço, devendo assegurar a colaboração material entre as famílias contemporâneas. O mais elevado, hierarquicamente, dos poderes, é o do sacerdócio. Em lugar da solidariedade que garante a colaboração das famílias atuais, o sacerdócio, atuando no tempo, e não no espaço, assegura a continuidade social, pela cooperação das famílias sucessivas. Não age sobre os corpos, através da força, mas sobre os espíritos, pela persuasão. Cabendo-lhe o conselho e não o mando, o poder sacerdotal ou espiritual, constituído por todos os agentes sociais que desfrutam de autoridade moral, mães, educadores, poetas, escritores em geral e sacerdotes propriamente ditos, que devem orientar e assistir moralmente ao agregado humano, tem por meta o bem comum e a felicidade do conjunto, em suma. Do conhecimento desses dois poderes e suas funções, resulta, para Augusto Comte, um postulado que ele denomina princípio ca- 58 MOZART PEREIRA SOARES

pital da política positiva: a separação desses dois poderes, para que eles possam, independentemente, mas em perfeita sintonia e convergência, cumprir corretamente suas funções naturais. Quando qualquer um desses poderes predominar sobre o outro, como tem ocorrido em vários momentos na evolução da humanidade, teremos um estado de anomalia social. Se o poder espiritual submeter o temporal, como nas teocracias, em que a casta sacerdotal acumulava as duas formas de dominação, o resultado é a imobilização do avanço humano. Nesse regime, de profundas desigualdades, o saber, guardado nos templos, era privilégio dos iniciados, enquanto a grande massa, mantida na ignorância, não teria condições de evoluir e realizar qualquer conquista cultural. Quando, ao contrário, o poder temporal subjugar o espiritual, o regime político será totalitário, podendo progredir materialmente, pela convergência forçada, ao capricho dos detentores do mando. O equilíbrio só se poderá atingir quando o governo realizar sua obra inspirada nos conselhos da classe sacerdotal, cuja função é orientar os dirigentes no sentido do bem comum. Ao examinar o relacionamento histórico desses dois poderes, Comte notou que eles correspondem às idéias de ordem e progresso que na antigüidade foram tidas como inconciliáveis. Entretanto, elas não apenas são compatíveis, mas até inseparáveis na civilização moderna. Quál a explicação para que fossem conceituadas como antagônicas? E que as noções relativas à ordem foram adotadas por espíritos

essencialmente retrógrados, ao passo que os esforços em favor do progresso foram dirigidos por mentalidades radicalmente anárquicas. A única saída possível desse impasse estaria na doutrina, ao mesmo tempo ordenada e progressista, como o Positivismo. Enquanto as idéias de ordem provêm do sistema teológico e militar próprios da constituição católico-feudal no estado teológico da ciência social, o progresso foi inspirado pelo protestantismo, que encarna o estágio metafísico da política. Tais doutrinas foram sendo adotadas pelos diferentes povos, conforme suas feições mais ou menos retrógradas, tendentes à conservação ou pelos mais anárquicos, pretendendo o melhoramento. Os retrógrados propõem como remédio para a crise do mundo contemporâneo a volta ao regime antigo. A terapêutica do sistema crítico prega a destruição do anterior, baseado na suposição de que todo o sistema regulador deve ser suprimido. Comte faz notar ainda que o primeiro desenvolvimento das sociedades realizou-se sob a tutela do sistema católico feudal e, ao O POSITIVISMO No BRASIL: 200 Anos DE AUGUSTO COMTE 59

mesmo tempo, acentua que a sua revivescência poderia ter êxito momentâneo, logo seguido de uma crise ainda mais violenta que as anteriores. Como exemplo cita Bonaparte, em seu intento de restaurar a Monarquia, depois de ter-se chegado à República. Outros exemplos ainda aponta, como de Maistre, cujos esforços foram no sentido de restaurar a supremacia papal, já não apoiado no direito divino, mas em fundamentos históricos e políticos, ou de Lemennais, que focaliza as encarniçadas lutas entre o feudalismo e o catolicismo, ou entre a aristocracia e a realeza. Os períodos em que a humanidade sofre os abalos das grandes mudanças sociais são sempre incoerentes, observa, como resultado das lutas entre os impulsos revolucionários e as resistências do modelo que tende a persistir. As modificações profundas não podem ocorrer no espaço de uma geração apenas, visto que dependem de transformações de idéias, crenças e costumes. ???Esse o fato que explica a lentidão dos avanços coletivos. Tratadm de um fenômeno benéfico O progresso só pode ser lento a não ser reversível. e outro modo, see u , aqui, par D não terra tempo suficiente para consolidar-se, operando mudanças estáveis de usos e costumes. Outra conseqüência dessa situação é a permanência mais ou menos prolongada e enganadora de princípios que parecem orgânicos, sendo, na verdade, críticos. Um deles, apontado por Comte, que vem passando por dogma, é o da liberdade de consciência. A superação desses equívocos só poderá ser encontrada na Sociologia. A hierarquia das ciências e a unidade da inteligência demonstram o absurdo de tal postulado. Assim como não se pode ter liberdade de entendimento em matemática, astronomia, física, química ou biologia, também não se pode têla nas ciências sociais, que se regem por princípios naturais invariáveis. Outras dessas ilusões políticas é o dogma da metafísica revolucionária, disfarce do direito divino deslocado para as massas, que é a soberania popular. Ao examinar as idéias e os costumes políticos de seu tempo (não muito diferente dos dias atuais -1998), Comte indica três correntes concomitantes: os retrógrados, defendendo seus últimos redutos, os anárquicos, promovendo a demolição crítica das instituições e, entre os dois extremos, o imobilismo do sistema estacionário, ou dos puros conservadores. Este último idem preferí- 60 MOZART PEREIRA SOARES

vel, desde que, assegurando a estabilidade social, possa ensejar os aperfeiçoamentos trazidos pela evolução. Mais tarde, no Apelo aos Conservadores, conjunto de conselhos políticos para a era que denominou de "transição revolucionada", faz ele uma importante distinção: entre os anárquicos, que nada impulsionam e os retrógrados, incapazes de deter, adota a fórmula

orgânica "Conservar, melhorando". É o que, espontaneamente, fazem todos os organismos, em cujo exercício vital sempre se aperfeiçoam, quando em seu ótimo existencial. Nos tempos críticos por ele ???virados, reconheceu uma série de aberrações que deviam ser urgentemente destruídas: primeiramente a anarquia política, fruto da desordem mental, que leva sistematicamente ao poder a incompetência audaciosa dos charlatães. Reconhece a impotência dos princípios religiosos superados para impedir a dissolução da família, assunto de impressionante atualidade. Não menos atual é o segundo dos defeitos apontados, quando afirma que "a palavra que melhor define a moral pública é a corrupção, erigida em sistema de governo". Outro grave defeito que ele vê nas políticas de seu tempo é o predomínio da concepção materialista, que valoriza mais a estrutura social do que a educação e seu conteúdo moral. Enfim, denuncia o alheamento das almas superiores e das inteligências de elite, o que favorece a tomada do poder pelos ambiciosos vulgares sem a mais simples noção do destino coletivo. Na criação da ciência nova, a Sociologia, traça Augusto Comte a história das principais tentativas para constituí-la, desde Aristóteles, que a esboça em sua Política (e outras obras de cunho social), até a primeira tentativa de organização em o Esprit des Lois, de Montesqmeu, que afirma estarem os fenômenos políticos sujeitos a leis naturais invariáveis. Mas, o passo fundamental para sua estruturação ele atribui a Condorcet, em sua memorável obra Esquisse d'un Tableau Historique des Progres der' Esprit Humaine. Todavia, esses trabalhos são apenas incipientes. Os enciclopedistas e a profunda revisão de conceitos inspirados pela Revolução Francesa não só iluminaram o caminho, mas sobretudo entretiveram o clima de maturidade indispensável a seu surgimento. O estudo comparativo entre as diversas fases vividas pela Humanidade, o que constituiu o método histórico, próprio da Sociologia, possibilita, enfim, atingir-se o sistema de lógica positiva, aquisição nova, cujos caracteres essenciais são: o relativo, em oposição ao absoluto; O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 61

o real, contrapondo-se ao quimérico; o útil, em lugar do ocioso; o certo, em vez do indeciso; o preciso, substituindo o vago. Mais tarde, no Discurso sobre o Conjunto do Positivismo, na Política e nas Últimas Concepções, Comte completou essa escala de valores da positividade. Os atributos de qualquer fato, para se ajustarem plenamente a essa idéia, devem corresponder aproximadamente às categorias dos fenômenos naturais que constituem sua classificação das Ciências. Assim, certo, corresponde ao fenômeno matemático; preciso, ao astronômico; real, ao fisico; útil, ao químico; orgânico, ao biológico; relativo, ao sociológico e simpático, ao moral. Não menos fascinante é o conteúdo ético de cada um desses atributos, cuja síntese caracteriza o fenômeno positivo. Elegendo o real em lugar do quimérico, afasta de nossas cogitações quaisquer causas fictícias ou sobrenaturais dos acontecimentos. Quando se refere ao útil, está preferindo o que melhor convém aos fins humanos, sabendo-se que as substâncias podem ser tanto benéficas quanto nocivas. Em orgânico, está consagrando o construtivo, em vez da destruição. Exigindo-se qualidades simpáticas, estamos preferindo as inspiradas em bons sentimentos sociais, que devem presidir sempre nossas ações. Como resultado final, tais atitudes convergem na conquista da unidade humana.

8. A RUPTURA INDESEJADA

Estamos em junho de 1839. Com a separação já resolvida e prevendo Comte as conseqüências funestas de um tal insucesso, o que certamente comprometeria a conclusão do seu 4º tomo em andamento, pede a ela que espere pelo menos até 10 de agosto, quando pensa concluir seu trabalho. Dez anos depois, recordando aquele tormentoso momento, Augusto Comte confessará: Aquela tarde foi terrível. Sentia-me a ponto de recair no espantoso estado cerebral de 1826, devido ao concurso de análogas influências perturbadoras. O 5º volume do Curso foi redigido entre 21 de abril de 1840 e 20 de fevereiro de 1841. Nele examinou o passado humano em seu con- 62 MOZART PEREIRA SOARES

junto no que respeita aos estados teológico e metafísico. De início aprecia o regime fetichista, verdadeiro fundo do espírito teológico na sua fase de ingenuidade elementar. Depois focaliza sucessivamente o politeísmo, o desenvolvimento gradual do espírito teológico-militar, que é sua etapa social mais elevada e, por fim, o monoteísmo e suas principais conquistas, inclusive como seu mais importante corolário, o regime da monogamia. A conclusão desse volume é reservada para o exame do estágio metafísico da sociedade moderna, em que a demolição revolucionária conduz as instituições sociais a uma crescente desorganização. Sua aguda sensibilidade política empresta um sentido premonitório às suas sentenças, que nos dias atuais parecem estar chegando a um clímax, de reversão extremamente difícil. É que, segundo afirmou mais tarde, "as retrogradações são solidárias". Há também unidade, espírito de sistema nas realizações negativas, "como em tudo na vida social". Ao final do Curso, entre 17 de junho de 1841 e 19 de julho de 1842, redige o 6º e último volume. Havia completado sua gigantesca revisão da marcha humana até aqui realizada, numa das mais alentadas obras que brotou de um só espírito, um labor que, em verdade, caberia a uma equipe de especialistas, fato que faz de Augusto Comte, como já se disse, o último dos enciclopedistas. E, como afirmamos antes, ele estava apenas começando. O espírito de síntese, caracterizando a visão de conjunto sobre o enfoque dos detalhes, dá começo à organização de um regime racional. São desse estágio a incorporação do proletariado à sociedade industrial e a instituição da fé monoteica, a princípio no Ocidente (catolicismo) e mais tarde no Oriente, com o Islamismo. Ao término desse imenso trabalho e antes de prosseguir na elaboração de um vasto plano visando à regeneração total da Humanidade, cuja marcha confusa ele tentava sistematizar, Comte se detém para enfrentar o grande drama que tanto o triturava intimamente. Vai, enfim, separar-se definitivamente de Carolina. Ela, por sua vez, tem sérias queixas a formular ao companheiro, a quem procurou em vão compreender, assistir e a ele se ajustar. É assim que derrama seu coração numa carta cujos lances nos dão uma imagem um pouco diferente da que circula, veiculada por alguns discípulos entre os mais fiéis de Augusto Comte: O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 63

Meu Amigo: Perdoa que comece esta carta com uma palavra que me parece a mais doce, a mais cheia de afeto sincero e duradouro. Guardas para comigo um rancor que não mereço. Não atiraste com tua vida, nem a perdeste comigo. Temos seguido juntos uma estrada cheia de luz e de alegria, sem nos advertir de que nos desviávamos do trilho que o destino nos havia assinalado. Agora fizemos um alto no caminho. Mas não permitirei que prossigas sozinho. Vou acompanhar-te sempre com o carinho que nunca deixará de pertencer-te. A carta é longa e prossegue no mesmo tom. Ao final, formula um pedido digno de registro: Permite-me que siga assistindo tuas conferências. Não me prives da ventura de ver-te quando ensinas, como me ensinavas álgebra naqueles dias já longínquos, quando te escutava e queria aprender muito

contigo na Rua Tracy. Em 24 de agosto de 1842, poucos dias depois da separação, Comte confidenciava, amargurado, a Stuart Mill: Casei há mais de dezessete anos, por uma inclinação irresistível, com uma mulher de rara elevação, ao mesmo tempo moral e intelectual. Não obstante educada em princípios extraviados e seguindo uma idéia errônea das condições naturais de seu sexo na economia humana, não conseguiu jamais que sua tendência voluntariosa e despótica pudesse ser suficientemente compensada por suas disposições afetuosas, único privilégio em que as mulheres não podem ser suplantadas e cujo valor a atual anarquia as impede de utilizar como deveriam. Não deixa de surpreender o conceito que formula a respeito da elevação moral de Carolina, conhecendo-se o seu passado e seus deslizes de conduta. Quanto a seus dotes intelectuais, há um certo 64 MOZART PEREIRA SOARES

consenso, compartilhado por muitos amigos de Comte, com os quais se relacionou. Bem avaliando as dificuldades que sua esposa iria enfrentar com a separação, o filósofo destinou-lhe a terça parte de suas rendas, justificando-se: Não é muito para as necessidades de uma mulher, cujo alto valor (grifei) não deve sofrer materialmente os erros de seu caráter e de sua educação, por maiores que sejam. Carolina fez questão de cumprir a promessa formulada em sua carta. Era sempre a primeira a chegar para as conferências e a última a retirar-se. Correspondendo a esse gesto, Augusto Comte providenciou na colocação de uma poltrona especial a ela reservada ao meio do salão. Os breves contatos das aulas com Carolina são insuficientes para amenizar sua solidão. Entretanto, a circunstância não o abate e ele procura refugiar-se na triste tranqüilidade de seus trabalhos mentais. Seu nome, que desde o começo do Curso se irradiava pela Europa, agora se estende a vários países. Na Inglaterra consolida sua amizade com Stuart Mill, que procura entender-lhe a obra, embora com ela divirja em muitos pontos. A esta altura já havia sedimentado seus sentimentos quanto à indissolubilidade do vínculo matrimonial; por isso defendia o regime monogâmico e a viuvez eterna. Não pensava em casar novamente, ainda que enviuvasse. Assim, aceitava filosoficamente o isolamento e a solidão. É curioso que sua obra esteja repercutindo mais fora da França que em seu país. Começa-se a traduzi-la na Alemanha e na Holanda. Na Inglaterra vários espíritos se interessam por suas idéias e poucos anos mais tarde aí se organizará um importante núcleo para difundi-las. Quando Stuart Mill toma conhecimento do 6º e último volume de seu Curso, escreve a Comte: Este volume vem coroar dignamente uma obra indiscutivelmente única no desenvolvimento da Humanidade, porque, ainda na hipótese de que não ficassem assentadas as primeiras bases da Sociologia positiva, é indubitável que sois o fundador do verdadeiro método sociológico O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 65

em tudo quando tem de realmente característico, o qual conduz diretamente a sistematização definitiva dos conhecimentos humanos. A amizade com Stuart Mill acontece num momento dramático, por vários motivos. Primeiro, o desentendimento com Carolina. Depois, o declínio da amizade com Valat, que retornara ao Catolicismo. A ele Comte escreve: Minha tolerância não me permite olhar-te como inimigo, máxime que antes de ocultá-lo me declaraste com franqueza tua volta ao espírito teológico. Depois, é a "conjuração do silêncio", ambiente hostil que, em Paris, aperta cada vez mais seu circulo em torno do pensador que vinha ousando contestar a velha ordem anárquica e inaugura o monumento que se funda com o Curso de Filosofia Positiva.

9. HOMEM VERSUS MULHER

Apesar da aceitação de suas principais idéias, algumas divergências se apresentam entre Stuart Mill e Comte. Uma das maiores diz respeito à posição de ambos relativamente ao sexo feminino. Por essa época sustenta Comte que a pretendida igualdade é uma irrealidade, um sofisma e somente a fraternidade pode configurar-se como um ideal de conteúdo valioso. Não existe a igualdade nas espécies animais, apregoa, e até na biologia pode fundamentar-se uma hierarquia dos sexos, que é mais acentuada na espécie humana que nas outras. Para o fundador do Positivismo, nesse tempo (frisemos, porque mais tarde, após o conhecimento e a paixão por Clotilde de Vaux, como iremos ver, ele mudaria radicalmente de opinião), o sexo feminino apresenta um estado de infância radical que implica uma inferioridade anatômica e fisiológica, com repercussões cerebrais e sociais. A isso Stuart Mill responde que a dependência social em que se encontra a mulher explica o atraso de seu desenvolVimento, mas não se pode falar numa inferioridade essencial. A discussão prossegue até além do biológico, para atingir o social. A idéia de uma rainha ou de uma papisa, ou posição equi- 66 MOZART PEREIRA SOARES

valente, parece absurda aos olhos de Comte. Antes entende que deve ser vedada à mulher a alta direção dos negócios humanos, não somente em ciência e filosofia, mas até no terreno estético, na vida prática e, com mais razão, na vida industrial e militar. Tudo isso em face da inaptidão característica para a abstração e para a luta, além da incapacidade para separar as inspirações passionais de uma tarefa racional que acredita existirem na mulher, ainda que suas paixões sejam mais generosas que as dos homens. Comte acentua que uma insuficiente aptidão para generalizações e deduções e para preponderância da razão sobre as paixões se apresentam com tanta freqüência na mulher, que não se pode considerar como uma questão de educação. A igualdade dos seres seria desastrosa, apregoa Comte. Ela perturbaria radicalmente as condições de existência e desenvolvimento do sexo que se pretende favorecer. Entretanto, ele não a considera como escrava, senão como uma "doce companheira". A posição de Mill é atribuída pelo seu amigo como fruto da fase negativa, de transição, própria da época, etapa que, a seu ver, durou mais naquele do que em si próprio, situação agravada pela educação e pelo temperamento de ambos. Quando da publicação do 6º e último volume do Curso, Comte envolveu-se num incidente desagradável com seu editor, Bachelier. Para esse volume havia escrito um violento Prefácio, no qual ataca a Academia de Ciências, Guizot, "presunçoso, pedante e ambicioso", Arago, "charlatão do patriotismo e da ciência". Ao lado desses ataques, elogios a Navier e Blainville. Ao evocar Saint-Simon, com quem se desentendera tão fundamente, defende sua memória das interpretações inexatas, de subversivo, que lhe atribuíam. Em defesa de sua doutrina, chega a desentender-se com os melhores amigos. Assim acontece com o mais antigo e melhor deles, Valat. Respondendo a objeções que este fazia ao 5º volume, sem fundamento, adverte-o de que a velha amizade de ambos terá de alterar-se face à pouca consideração que lhe merecem suas idéias. Quando Stuart Mill se propõe a discutir suas opiniões, Comte responde que não se trata de "pontos de vista", mas de um sistema justamente concebido com a intenção de acabar com o antagonismo das opiniões. Quanto ao Prefácio do 6º volume, deve-se acrescentar um esclarecimento para bem avaliar suas conseqüências. Bachelier era também editor das obras

de Arago, que não se encontrava em Paris. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 67

O editor entendeu de aguardar seu regresso, para, como diz Comte, "comunicar humildemente este prefácio à insolente censura de um hábil charlatão, sempre disposto a subordinar suas convicções a suas paixões" 19 e, ato contínuo, se atreveu a propor-lhe sua supressão, prometendo-lhe como compensação fazer o mesmo com respeito a toda obra impressa em sua casa que contivesse algo contra ele. Comte estava bem consciente dos efeitos que produziria seu prefácio e advertiu que se encontrava ao abrigo da "tentação de polemizar": Não deixarei que seja turvada por uma vã polêmica esta elaboração filosófica já ameaçada pelas graves exigências de minha situação e a brevidade de minha vida.20 Bachelier, entretanto, havia resolvido inserir no proêmio da obra uma declaração de que considerava indevidas as censuras a Arago. Com tal despropósito, Comte, indignado, recorre à justiça, que lhe dá ganho de causa, determinando a supressão da advertência do editor, considerada impertinente e prejudicial, a inserção da parte dispositiva da sentença em cada exemplar da obra e a rescisão do contrato, além do pagamento das custas do processo. Apesar dessa vitória, os prejuízos de Comte com o incidente foram maiores. A partir daqui, uma rede de malquerenças o envolveu até o fim de seus dias, durante os quais ele iria viver mantido pelos seus discípulos e adeptos, através do "subsídio positivista", por ele mesmo instituído, sob o argumento de que a classe teórica, votada ao serviço da humanidade, como no seu caso, somente pode desempenhar sua missão quando sustentada por esse tipo de mecenato. Tudo se agravou a partir de 1843. Em janeiro desse ano, o Curso deAstronomia Popular, escolhido por Comte como o mais propício para levar ao povo o espírito da Filosofia Positiva, estava grandemente prestigiado, contando com mais de 400 ouvintes. Tal interesse alarmou seus inimigos, Arago à frente, que trataram de fazê-lo

19 - Prieto, justo - Op. cit., pág. 285. 20 - Comte, Auguste -Cours de Philosophie Positive, Tome sixième, Paris, 1908 - Préface personnelle, XXVII. 68 MOZART PEREIRA SOARES

passar como subversivo e perigoso. Isso era apenas o prelúdio de uma vasta conspiração que terminaria por destituir o filósofo de seus encargos e reduzi-lo à miséria. Seu Prefácio continuava a produzir seus desastrados efeitos. Foi nesse momento que ele passou a contar com o auxilio material de seus simpatizantes ingleses, entre eles, principalmente com Stuart Mill, que lhe escreve em junho de 1843. Dirigindo-me a um caráter como o seu, superior a todo preconceito e falsa delicadeza, me atrevo a dizer-lhe que seja qual for o futuro que se lhe depare, não permitirei que sofra angústias econômicas enquanto eu viva e possa dispor de um franco para compartilhar consigo. Não tardou que o pensador tivesse de aceitar a generosa oferta de Mill, logo secundada temporariamente por dois outros conterrâneos seus, Mr. Grote e Sir William Malesworth; fora destituído da Escola e só podia contar com a soma escassa de 2.000 francos anuais. Nessa atmosfera de incompreensão em seu país, sofrendo toda sorte de restrições, sua obra começava a se difundir. Curiosamente, foi na Inglaterra que ele passou a ser compreendido e estimado, a partir do entusiasmo de Stuart Mill e alguns outros. Começam a aparecer artigos de crítica e aceitação de seu sistema, principalmente pelo sentido lógico de suas idéias sobre a evolução humana.

10. ADESÃO DE LITTRÉ

Não tardará, entretanto, a surgir o primeiro grande discípulo na França: foi Emílio Littré, erudito filólogo, tradutor de Hipócrates, Plínio e Dante e autor de uma das jóias da bibliografia gaulesa, o grande Dicionário do idioma francês e outros trabalhos notáveis. Além do mais, era um político de sucesso, membro do Instituto de França, Senador da República e publicista de esquerda. Sua adesão ao Positivismo representava para este um crédito excepcional nos meios intelectuais. O apoio de Littré, mais que isso, repercutirá além-fronteiras. Stuart Mill, que o conhecera em Paris, em 1836, sentiu-se confortado com aquele sinal de aprovação. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 69

Ao receber a notícia da adesão de Littré, Comte considerou-a um acontecimento de transcendência no amanhecer do Positivismo.21 Sem dúvida, sua autoridade intelectual reconhecida na Europa carreava para o Positivismo nascente um grande interesse, agora aumentado pelos artigos que começara a publicar em O National. Entusiasmado, o filósofo escreve a Stuart Mill: Littré constituiu o exemplo mais característico depois do seu, da ação real e profunda que pode exercer minha elaboração filosófica sobre os grandes espíritos contemporâneos. Há seis ou sete anos Littré estava ainda em uma posição revolucionária ou negativa, de que agora se libertou. Não estou só em França. Já somos dois ante um público assombrado. Também na Inglaterra são dois: Você e Bain. Quem sabe quantos haverá na Alemanha? Como todos que alimentam um ideal, Comte tudo vê com otimismo e pensa em fundar uma revista para difundir a doutrina e organizar uma Sociedade Positivista. Mill não participa do mesmo entusiasmo e aponta vários obstáculos: a dificuldade na intervenção a numerosas questões que certamente irão surgir, as divergências em alguns pontos existentes entre ambos e a relativa imaturidade do sistema ainda em fase de elaboração. Comte cede aos argumentos do amigo, mas funda a Sociedade Positivista. O Curso de Astronomia Popular é destinado aos proletários e às mulheres, que, sendo ao tempo iletrados, mas donos de bom senso, constituem um admirável público de eleição para assimilar uma lógica das idéias novas. A filosofia teológica, ensina ele, convém somente às classes dominantes e a metafísica à classe média. Só a Filosofia Positiva é que tem afinidades naturais com o proletariado. Por outro lado, a escola positiva é que pode levar aos espíritos populares a solução de dois problemas capitais da sociedade: a educação normal, por um lado, e o trabalho regular, por outro.

21 - Prieto, justo - Op. cit., p 70 MOZART PEREIRA SOARES

que entende ele por educação normal? É aquela correspondente ao estágio social em que se encontra uma determinada comunidade. Entre as populações primitivas será logicamente fetíchica, mas tecnológica nos agregados que vivam sob a influência de uma forte industrialização. Qual desses problemas deve merecer prioridade de ação? Depois de algumas considerações sobre a necessidade fundamental do operariado, que é de trabalho regular, porque um chefe de família deve assegurar a sobrevivência contínua dos seus, pondera que todas as vezes que se intentou sistematizar primeiramente o trabalho, têm-se esbarrado nas

intermináveis reivindicações materiais, em agitações esterilizantes, com prejuízos sociais previsíveis. Trata-se, no fundo, de estabelecer as bases sociais e morais que devem presidir o destino do trabalho. Do contrário, corre-se ainda o risco de organizar o labor coletivo e, às vezes com alta estruturação, para fins imorais, como, por exemplo, a atividade guerreira. Em suma: assegurar ao trabalho um destino digno, antes de tudo. Esse o novo mundo que Augusto Comte, Littré e seus primeiros adeptos pretendem entregar a um novo homem, livre de ilusórias tentações celestes, mas solidário com seus irmãos na Terra. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 71 Capítulo III A RELIGIÃO DA HUMANIDADE

1. UNIVERSO DO POSITIVISMO

Como sistema filosófico, científico, político e religioso, o Positivismo abrange todas as manifestações espirituais do homem, segundo a teoria cerebral de Comte: o domínio da inteligência é objeto do Curso de Filosofia Positiva, já examinado; o território político, ou da atividade coletiva da espécie, desdobra-se em ação do homem sobre o próprio homem, ou política e ação dele sobre a terra, ou indústria. O segmento de maior importância para o destino da humanidade é o da Política, que focaliza essencialmente a educação e ao qual ele reservou os quatro volumes do Sistema de Política-Positiva. Aí trata ele também da cultura sistemática dos sentimentos, instituindo a Religião da Humanidade. Assim, podemos reconhecer três tipos de positivistas: primeiro, os intelectuais, preocupados com a parte científica do sistema, que Augusto Comte considera os menos expressivos de seus adeptos. Para ele, os mais importantes são os religiosos, que aceitam a totalidade da doutrina. Há, por último, o Positivismo político, que se atém ao sentido partidário e administrativo somente. Todas essas variantes encontram fortes expressões em nosso país. A maior das correntes brasileiras é a religiosa. Sob a devoção de Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, organizaram o Apostolado Positivista do Brasil, ao qual devemos um proselitismo sem paralelo em nossa evolução cultural. Viu-se que Augusto Comte se preocupou com o problema religioso desde seus primeiros escritos, ainda na fase de Saint-Simon. O Curso de Filosofia Positiva, para muitos sua obra capital, é, na verdade, o primeiro degrau de uma escalada cujo fim é promover uma revolução de sentimentos e costumes necessária para regular a vida humana, individual e coletivamente. A essa tarefa dedicou ele os últimos quinze anos de sua vida. - que é uma grande obra, se não um sonho da juventude realizado na idade madura? 72 MOZART PEREIRA SOARES

A conhecida indagação ajusta-se perfeitamente ao surto da Religião Universal. É do próprio Comte a assertiva impressa no Apêndice Especial da Política Positiva. Aí demonstra, como se viu, o perfeito acordo entre seus escritos da juventude e o último estágio de suas concepções.

2. CLOTILDE DE VAUX

Mas o grande móvel que o leva ao estado de exaltação mística durante a elaboração religiosa foi a arrebatadora paixão crepuscular que lhe inspirou uma jovem a quem conheceu por essa

época. Comte, em plena febre criadora, aos 47 anos de idade, solitário e amargurado com sua frustração amorosa, encontrou sua musa final através de um irmão dela, Maximiliano Marie, o mesmo que, no episódio da preterição de Comte na Escola Politécnica, verberara o esbulho praticado pelapedantocracia acadêmica contra o pensador que lhe dava lições de matemática. Numa de suas visitas à família Marie, em março de 1844, Augusto Comte foi apresentado à irmã de Maximiliano, Clotilde, então com 29 anos de idade. Nos encontros subseqüentes foi ele se inteirando da situação social da jovem que o impressionara tão vivamente e que, como ele, amargava havia seis anos, as desventuras de um casamento infeliz. Nascida a 3 de abril de 1815 e falecida a 5 de maio de 1846 em Paris, era filha de M. Marie, Capitão do Império, e de sua mulher Mine. Marie, filha do Conde de Fiquelmont, irmã de um homem de Estado de Viena. Aos 20 anos Clotilde casara com Amadeo de Vaux, cujos costumes dissipados pareciam ter-se regenerado depois de sua nomeação para Receptar de impostos de Méru. Dispondo das arrecadações a seu cargo e não podendo vencer a paixão pelo jogo, perdera quinze mil francos, quantia de reposição ducil, senão impossível. Deixando sua vaga para outro jogador, retirou-se, não para sua casa, mas para a repartição, cujos livros de contabilidade destruiu numa fogueira, fugindo depois para Bruxelas, e aí desapareceu para sempre. Em vão Clotilde esperou-o. A princípio De Vaux escrevia-lhe cartas apaixonadas, que um dia cessaram. Sem recursos para sobreviver, além da soma de seiscentos francos anuais que lhe remetia o O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 73

yyyImagem da Humanidade simbolivz numafigura de mãe coruagrando o sentido religioso da Maternidade tio vienense, Clotilde recorreu a trabalhos intelectuais, que publicava no jornal A Tribuna, de Armand Marrast. Dessa colaboração resultou um romance de curta duração. A condenação de morte cível de que são acometidos os que se apoderam de dinheiros públicos não lhe permitiria um novo casamento, visto, ainda, que a morte de Amadeo nunca pode ser comprovada. A partir de 30 de maio de 1844, Comte e Clotilde iniciam uma correspondência que evoluiu para uma amizade amorosa e ao fim transmudou-se em paixão sublimada. As cartas, que chegam a centenas, amiudaram-se constantemente, até se tornarem quase diárias. Se houve inicialmente inclinações impetuosas de Comte, Clotilde soube contê-las nos limites da adoração platônica. E quando se configurou uma situação propícia à realização amorosa, foi Comte quem, já amadurecido em suas idéias 74 MOZART PEREIRA SOARES

quanto à indissolubilidade do vínculo matrimonial no regime monogâmico, à proibição do divórcio e à viuvez eterna, chegou à conclusão de que o afeto entre ambos devia oferecer à posteridade uma imagem de inalterável pureza. O Apóstolo brasileiro Raimundo Teixeira Mendes traduziu e publicou aquele epistolário sob o título de OAno Sem Par. Dois anos apenas durou a felicidade do filósofo, que viu sua amada expirar em seus braços com apenas 31 anos de idade. Sua presença espiritual, dali em diante, iria iluminar um caminho de santidade a que ele se votou, guardando-lhe a memória e, sob sua inspiração, edificando sua derradeira obra, que é a Religião da Humanidade. A semelhança de situação conjugal e as afinidades intelectuais que foi descobrindo em sua amada não tardaram a encorajar o Mestre a uma declaração, que Clotilde a princípio estranhou e recusou. Em breve ela iria compreender a sinceridade e a profundidade das manifestações do filósofo. De tal modo perturbou-se ele com a rejeição sofrida, que adoeceu, recolhendo-se ao leito. Foi então que ela, não podendo retribuir-lhe com o mesmo sentimento, ofereceulhe uma "amizade de irmã". Tanto bastou para que ele se restabelecesse e voltasse com o entusiasmo de sempre a seu trabalho,

alimentando a esperança de que ela, avaliando-o melhor, pudesse também amá-lo. Segundo confissão de Comte, foi Clotilde quem acordou nele um melhor conhecimento da natureza feminina e, após sua morte prematura, conduziu-o ao caminho de crescente aperfeiçoamento moral, necessário para construir a segunda parte de sua obra, consagrada à edificação do Positivismo religioso, contido na Política. Fato que demonstra bem a intensidade da paixão que lhe inspirou Clotilde está no tratamento que, a partir de então, passou a dedicar à sua esposa. Apesar dos desentendimentos e da separação de corpos entre Comte e Carolina, esta nunca se ausentou por completo da vida do filósofo. Assistia assiduamente suas conferências, estava a par de suas lutas, recebia regularmente os subsídios que ele instituíra e com ele trocava cartas pontilhadas de mútuas recriminações. Talvez ela aspirasse ainda uma reconciliação, como tantas vezes acontecera. Tal idéia, se existiu realmente, foi desencorajada pelo filósofo numa carta um ano após a morte de Clotilde, na qual muitos podem ver algo de crueldade contra uma infeliz que não pôde conservar o esposo pelo amor: O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 75

Domingo, 10 de janeiro de 1847. Dois anos depois de nossa separação, vi, pela primeira vez, em casa de seus pais, em outubro de 1844, uma jovem senhora, tão irrepreensível quanto encantadora, que excitou desde logo a minha simpatia particular, pelo seu destino doméstico muito análogo ao meu, se bem que mais funesto ainda e mais injusto. Dotada de um espírito não menos distinto do que o vosso, excedia-vos infinitamente pelo coração. A virtuosa paixão que eu tive a felicidade de por ela, gradualmente, conceber, constituirá eternamente a principal fase da minha vida íntima. Durante um ano sem igual, a profunda revolução moral, que só um tal ascendente poderia produzir sobre mim, reagiu felizmente sobre o conjunto de minha nova elaboração filosófica, salientando, de um modo mais nítido e mais decisivo, o verdadeiro caráter sentimental do positivismo. Tal foi, senhora, a minha única esposa verdadeira, (...) Há nove meses não se passou ainda uma semana sem que eu vá, sobre seu túmulo sagrado, renovar as promessas solenes que suavizaram seus últimos dias: e este culto exterior é o sinal de um culto interior ainda mais constante, cuja duração será a de minha vida, pois que é ele a minha principal satisfação privada. A carta prossegue: 76 MOZART PEREIRA SOARES

Após seis meses de dores incomparáveis consegui dignamente recomeçar o meu trabalho filosófico, escrevendo a dedicatória excepcional que prometi a minha colega eterna, para que publicamente fique notificada a profunda gratidão, ao mesmo tempo pessoal e social, da qual é credora a sua poderosa influência involuntária sobre o aperfeiçoamento fundamental da minha segunda grande obra. O fecho contém uma longa justificativa de sua atitude, face à repercussão que alcançaria após tornar-se pública. A assinatura é apenas: Vosso marido, Augusto Comte.22 Certamente com esse gesto o criador do Positivismo afastaria qualquer veleidade reconciliatória de Carolina, além de fortalecer o repúdio dela pela religião que não aceitava, ao lado de importantes personagens ligadas a Comte, entre as quais Littré, defecção que por certo desagradou profundamente o filósofo. Suas atividades públicas são retomadas a 24 de maio de 1847, com a reabertura do Curso deAstronomia Elementar, como sempre "dedicado ao mundo feminino e ao proletariado, salvos de toda cultura artificial". Dois anos após, o Curso de Astronomia é substituído pelo da História da Humanidade. A preocupação essencial de Comte é agora demonstrar como se efetua a ligação do presente com o conjunto do passado. Na primeira conferência ele propõe a glorificação de Joana D'Arc, aquela que a

"metafísica negativa havia injustamente tentado desonrar". Seria uma compensação da apoteose deplorável a Napoleão, o opoente da monocracia. O aplauso final entusiasta do público foi uma surpresa para o expositor, que não contava com outros êxitos: La Revue des Deux Mondes, em vez da crítica que ele esperava, passou a aceitar sua classificação das ciências; um professor da Faculdade de Teologia recomenda, na Sorbonne, o estudo de suas obras, embora com elas não concordasse. E mais do que isso: o índex papal levanta o veto que pesava sobre elas. Em meio a esses êxitos preocupantes para o Governo, que sente ameaçada sua onipotência política, um ato inesperado do Ministro da Instrução: o cancelamento de permissão para uso da sala de conferências. Uma brutalidade dos doutores emguilbotina, disse Comte, dos teólogos, psicólogos e ideólogos, descendentes diretos de Rousseau e Robespierre. Os adeptos de Comte mobilizam-se. Littré lança seu protesto pelo Nacional; Carolina recebe apoio de amigos pessoais influentes e

22 - Simões, A. Pereira. Romance deAugusto Comte, Vol. II - Clotilde de Vaux. Pernambuco, 1898. Texto de abertura. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 77

consegue a devolução da sala. Um dos parágrafos de sua intervenção proclama: Meu marido é um homem europeu, que tem atrás de si trezentas pessoas. Não é muito, porém trezentos homens honrados e de espírito livre são bastante. São, sem dúvida, vossos adversários, porém leais e eminentes, que se sentiriam agradecidos. Ter devedores no campo adverso é um privilégio não desprezível e, em épocas revolucionárias, pode ser considerado uma fortuna. A pedido de Comte, foi esta nota lida na Sociedade Positivista, que, cada vez mais ativa, mantém a divulgação da nova doutrina. Nas conferências seguintes, Augusto Comte vai delineando, em contornos cada vez mais nítidos, a Religião da Humanidade, cujo objetivo é reorganizar a sociedade sob o influxo do sentimento social e com base na razão positiva. Apoiando-se em Condorcet, que viu a Humanidade como uma comunidade de seres, passados, presentes e futuros, desenvolve a teoria do Grande Ser que substitui e elimina irrevogavelmente, como diz ele, a idéia de Deus. Só esse Grão Ser representa, em realidade, a providência humana; é o ser que nos cria, nos assiste e nos encaminha em todos os nossos atos convergentes com a coletividade. "O homem se agita e a Humanidade o conduz", é um de seus slogans, que traduz bem o conceito. Só a Humanidade, assim deificada, é depositária do saber dos séculos, detentora do poder e da riqueza humana, além de eterna em termos relativos. Como o Ser Supremo, entidade fictícia, engendrada pelas religiões teológicas; como a Santíssima Trindade católica, é onisciente, onipotente e onipresente. Além da Humanidade como ser supremo, a Trindade positivista compõe-se de Grão Meio (o Espaço Cósmico, palco de nosso drama social) e o Grão Fetiche (o Planeta Terra, sede benigna da vida, cujo conhecimento e utilização racional é fundamental para o existir humano). Como todas as religiões, esta, não obstante sua aparente secura científica, tem sua base espiritual, não através da criação teológica, supostamente capaz de viver fora do corpo, a alma, nem a entidade metafísica, capaz de reencarnação, que é o espírito, mas o fruto das funções do cérebro humano, sede de manifestações afetivas (sentimento ou coração) intelectivas (inteligência) ou volitivas (atividade ou caráter). 78 MOZART PEREIRA SOARES

Disso resultou a fórmula religiosa ou sagrada do Positivismo: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Para Augusto Comte, a palavra religião - religare - ligar duas

vezes - é o mais bem composto dos termos humanos, significando ligar o interior pelo amor e religá-lo ao exterior pela fé. Sua finalidade suprema é o aperfeiçoamento moral do homem, individual ou coletivamente, atingindo sucessivamente o lar, a pátria e a sociedade maior. Nosso mais nobre destino consiste no exercício permanente do altruísmo: assim como o Catolicismo, tomado por Augusto Comte para modelo de sua religião, chegou à elevada conquista do "amai-vos uns aos outros", ou "ama teu próximo como a ti mesmo", o Positivismo devia dar um passo à frente com o seu "viver para outrem", simples obrigação de cada um, que tudo recebeu de seus semelhantes, desde a vida.

3. O CALENDÁRIO POSITIVISTA

Reconhecendo a crescente influência do passado sobre o presente, como exemplo das gerações pretéritas sobre as vindouras, Comte estabeleceu a máxima a ser gravada no pórtico dos futuros templos da Religião do Amor Universal: "Os vivos serão sempre, cada vez mais necessariamente, governados pelos mortos". Observe-se que não há, nesta divisa, nenhum sentido sobrenatural; apenas a lembrança dos melhores exemplos que devemos consagrar e recolher, para com eles criar o futuro. Tal é o fim do Calendário Positivista, com que ele disciplina o uso social do tempo, como o fazem todas as religiões. O ano positivista compõe-se de treze meses de vinte e oito dias, ou quatro semanas, cuja totalidade perfaz trezentos e sessenta e quatro períodos diários, Cada um dos meses é dedicado a um dos ciclos marcantes da evolução humana, assinalado por um dos nomes mais expressivos que a história registra. O fundador do Positivismo teve a preocupação de rememorar nesse que ele chama de quadro sociolátrico da nossa preparação os tipos maiores de todas as civilizações e não apenas os meros representantes de quaisquer seitas. Assim, distinguiu os meses seguintes e respectivas consagra-

1º mês de Moisés (Teocracia inicial) 2º mês de Homero (Poesia antiga) O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 79 O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 81

3º mês de Aristóteles (Filosofia antiga) 4º mês de Arquimedes (Ciência antiga) 5º mês de César (Civilização militar) 6º mês de São Paulo (Catolicismo) 7º mês de Carlos Magno (Civilização feudal) 8º mês de Dante (Epopéia moderna) 9º mês de Gutemberg (Indústria moderna) 10º mês de Shakespeare (Teatro moderno) 11º mês de Descartes (Filosofia moderna) 12º mês de Frederico II (Política moderna) 13º mês de Bichat (Ciência moderna)

No mês de Moisés foram escolhidos para chefes de semana Numa Pompilho, Confúcio, Buda e Maomé. As semanas, por sua vez, homenageiam servidores hierarquicamente secundários em relação ao patrono mensal com quem entretiver afinidade. Finalmente, os dias são dedicados a servidores compatíveis com os patronos semanais, podendo-se admitir mais de um em cada período diário. No Calendário representam-se, pois, os tipos mais eminentes que a evolução social oferece. Em todos os anos há sobra de um dia complementar, que a Religião da

Humanidade destina à comemoração universal dos mortos. Nos anos bissextos sobra mais um dia, que é dedicado à comemoração das mulheres santas, na figura de Heloísa. Tal é o Calendário que pode batizar-se de concreto, pois que são seres reais seus componentes. A medida que o tempo transcorre, esses representantes do passado poderão ser suplantados em importância relativa por tipos mais eminentes. Tornar-se-ia móvel e não fixo esse quadro concreto da preparação humana. Para preservá-lo pela veneração em seu nicho histórico, ele será substituído pelo quadro abstrato consagratório das diversas etapas sociais, representadas pelas instituições, a saber: 1º mês - A humanidade 2º mês - O casamento 3º mês - A paternidade 4º mês - A filiação 5º mês - A fraternidade 6º mês - A domesticidade 7º mês - O fetichismo 8º mês - O politeísmo 9º mês - O monoteísmo 10º mês - A mulher (providência moral) 82 MOZART PEREIRA SOARES

11º mês - O Sacerdócio (providência intelectual) 12º mês - O patriciado (providência material) 13º mês - O proletariado (providência geral)

Este poderá ser chamado quadro sociolátrico ou da adoração Universal da Humanidade.23 Desde que, no Sistema de Política Positiva, instituiu a Religião da Humanidade, Augusto Comte recolheu-se à sua casa, Rua Monsieur Le Prince nº 10, em Paris e aí passou a viver uma vida ascética, como num claustro. Proclamou-se ele mesmo o primeiro Sumo Pontífice de sua religião, adotou voto de castidade, de renúncia, pobreza e trabalho. Extremamente frugal e insuficiente foi a alimentação escolhida: um copo de leite pela manhã, um pouco de carne e legumes pela noite, sem sobremesa ou qualquer outra "superfluidade nutritiva", comia apenas um pedaço de pão seco, em solidariedade aos que não dispunham sequer disso para saciar a fome. O supremo sacerdote segue regulando o regime da nova religião, buscando combinar com perfeita coesão e unidade completa todas as manifestações da vida humana: pensar, amar, agir, que se expressam através da filosofia, da poesia e da política. A função da primeira é sistematizar nosso pensamento como base da ordem social. Na poesia, o gênio estético da espécie embeleza e enobrece nossos sentimentos, através da idealização de realidades purificadas, tal é o fim da Arte. Assim, a arte social, através de um severo código de ética instituído pela Moral ou psicofisiologia positiva, regula todos os atos humanos, individuais ou coletivos.

4. OS SACRAMENTOS

A Religião da Humanidade compõe-se de dogma, constituído pelo conjunto das ciências, de culto, em que se utilizam as belas artes para a cultura de nossos sentimentos e regime que regula nossos atos, tendo em vista o bem comum. Os sacramentos sociais do Positivismo inspiram-se diretamente no monoteísmo cristão, segundo a conhecida confissão de seu fun-

23 - Comte, Augusto - Catecismo Positivista - Tradução e notas de Miguel Lemos, Rio, 1905, 3ª edição - Pág. 477. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 83

Augusto Comte rodeado de seus 13 executores testamenteiros e sob a proteção de seus três Anjos da Guarda: a mãe Rosália Boyer, a filha adotiva Sofia e a inspiradora, Clotilde de Vaux.

dador (trata-se de incorporar o que de mais nobre e mais terno criou o catolicismo), o que levou alguns elementos mais categorizados da Igreja a proclamar, como o Padre Leonel Franca, ser a construção comtiana "uma grosseira paródia da majestade severamente divina da Igreja Católica". 24 Eis os nove sacramentos do regime comtiano: 1 - Apresentação: compreendendo o batismo, ato pelo qual a família dedica um descendente ao serviço da Humanidade. 2 - Iniciação: ou passagem da educação da família para o sacerdócio. 3 - Admissão: pela qual o indivíduo se emancipa e passa a dar à Humanidade sua cooperação, visto que até aqui havia apenas recebido. 4 - Destinação: através dela o cidadão recebe sua investidura para servir ao Grão Ser de acordo com suas aptidões e preparo. 5 - Matrimônio: monogâmico e indissolúvel, mesmo após a morte eventual de um dos cônjuges. Institui-se, assim, a viuvez eterna (um outro casamento configuraria um caso de poligamia subjetiva. Idades recomendáveis 28 - 35 anos para o homem e 21 - 28 para a mulher.) 6 - Maturidade: entre 42 e 63 anos. Período de plenitude humana, pela experiência acumulada e aperfeiçoamento de aptidões.

24 - Franca, Padre Leonel -A Crise do Mundo Moderno. José Olympio Editora, Rio, 1941. 84 MOZART PEREIRA SOARES

7 - Retiro: iniciando-se aos 63 anos, quando termina a carreira prática do cidadão. 8 - Transformação: concretizada com a celebração da morte. 9 - Incorporação: cerimônia pela qual após sete anos do falecimento e mediante juízo sacerdotal, baseado no exame da vida do morto, pode ser ele incorporado ao Grande Ser, como prêmio final de uma existência digna. O féretro é, então, conduzido ao sítio especial do Bosque Sagrado que rodeia o Templo da Humanidade. São excluídos dessa consagração os réprobos sociais, os duelistas e os suicidas. Completam essas medidas do culto fetíchico do positivismO25 outras concepções e, entre elas, a representação da Humanidade, que deve caber à imagem da mãe, como tendência universal de todas as religiões. Aqui ela será simbolizada por uma mulher de 30 anos com um filho nos braços. O estandarte da Humanidade constará de uma bandeira branca com a inscrição do Lema Sagrado: o Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Admite-se uma bandeira ocidental, de cor verde, com a inscrição Ordem e Progresso (adotada pela República brasileira, de inspiração positivista), além de um selo sacerdotal com a inscrição viver para outrem. Nas moedas se deve gravar um dístico inspirado na honestidade: viver às claras. Em 20 de dezembro em 1855, cerca de dois anos antes de seu falecimento, Comte escreveu seu testamento, nomeando executores 13 de seus discípulos: Audiffrent, De Capellen, Barão de W. de Constant, Deullin, Dom José Flores, Dr. Edouard Foley, Hadery, Laffitte, Lonchampt, Magmn, Papot, Robinet e Conde de Stirum. Coube a Laffitte a Presidência da Comissão, embora ele tivesse afirmado que esperava ver seu discípulo corrigir certas deficiências de caráter e sentimentos. O texto contém um breve balanço dos principais episódios de sua vida; um deles é felicitar-se por haver nascido sob o domínio do Catolicismo (para ele a obra-prima da sabedoria política da humanidade, posto que, baseado num dogma notoriamente insuficiente, soube organizar um digno comando terrestre, fruto da sabedoria prática de seu sacerdócio). Contém ainda, o testamento, instruções para após sua morte: proíbe categoricamente a autópsia, "essa vã curiosidade, estéril para

25 - Comte, Augusto - Catecismo Positivista - Primeira parte: 4ª Conferência. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 85

a inteligência e funesta para o sentimento"; do mesmo modo condena qualquer medida de preservação do cadáver, que deverá seguir o livre curso da decomposição. O sepultamento deverá ser processado quando começarem os sinais da putrefação, único sintoma real da morte. Seu corpo deverá repousar no cemitério, em local indicado a seu sucessor Laffitte. Por esse tempo estava o filósofo privado de suas atividades oficiais e vivia do "subsídio positivista" instituído pelos seus discípulos. O testamento havia sido ampliado com várias disposições complementares. Na 42, de 4.3.1856, constava que deveria ser aberto e lido, caso Carolina lhe sobrevivesse e sendo necessário defender a memória do testador. Tal aconteceu quando ela intentou obstaculizar a difusão do credo pregado por Comte. 86 MOZART PEREIRA SOARES Capítulo IV A DIFUSÃO DO POSITIVISMO

1. INGRESSO DA DOUTRINA NO BRASIL

Augusto Comte sonhava com a difusão mais ou menos rápida de sua doutrina. Bastariam sete anos para que se expandisse pela Europa e não mais que 33 para cobrir o mundo civilizado. Chegou mesmo a dizer: "antes de 1860 pregarei o Positivismo em Notre Dame como a única religião verdadeira". O que ele não contava é que viesse a ser o Brasil o país em que encontraria o mais favorável dos ambientes para exercer sua influência cultural, filosófica, científica, política e religiosa, a ponto de marcar incisivamente sua presença nas instituições sociais e de haver determinado o surgimento, até aqui, do único templo para suas prédicas, construído segundo as indicações gerais do Catecismo. De que modo ingressou o Positivismo no Brasil? Durante muito tempo admitiu-se que ele tivesse penetrado em nosso país pelo ensino das ciências exatas, matemática e astronomia, através da Escola Militar e da Marinha de Guerra, no Rio de janeiro, ou ainda mediante as lições da física e da química, na Escola Politécnica. Sabe-se agora que ele apareceu no Brasil por intermédio da biologia: em 1844 (5 de setembro), Justiniano da Silva Gomes, lente substituto da cadeira de Fisiologia na Faculdade de Medicina da Bahia, apresentou e sustentou a tese de concurso para a citada cátedra, sob o título: "Plano e Método de um Curso de Fisiologia". Tipografia de Epifânio José Pedrosa, 1844. A tese do Dr. Justiniano foi defendida apenas dois anos após a publicação do último volume do Curso de Filosofia Positiva (1842). Nela, o autor alude explicitamente a Augusto Comte, à Lei dos Três Estados e ao método positivo. Por esses elementos, Ivan Lins, autor da História do Positivismo no Brasil considera Justiniano o primeiro positivista brasileiro.26

26 - Lins, Ivan - História do Positivismo no Brasil. Brasiliana, volume 322. São Paulo, 1967, pág. 18. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 87

A partir daí, acentua-se no país uma atmosfera de Positivismo difuso, a princípio entretida por alguns brasileiros, discípulos diretos de Augusto Comte, que vieram exercer aqui suas

atividades, ou de pessoas que mantiveram em Paris relações com o filósofo, como é o caso da educadora Nisia Floresta. Relata o Visconde de Taunay em suas Memórias ter sido aluno de geometria, no Colégio Pedro II, de um professor que dizia ter sido aluno de Augusto Comte. Revela-nos Ivan Lins que foi professor do Pedro II, na época em que Taunay foi aluno, Antônio Machado Dias, discípulo de Comte de 1837 a 1838. Dos outros brasileiros que, na Escola Politécnica, foram alunos de Augusto Comte, três figuram entre seus discípulos particulares: José P. d'Almeida, Antônio de Campos Belos e Agostinho Roiz da Cunha. Ao lado de seu nome anotou Augusto Comte em dezembro de 1837: "Deux brasiliens (A. J. de Campos Belos et Cunha)". Foi ainda aluno do mestre de Montpellier o baiano Dr. Felipe Ferreira de Araújo Pinho, nascido a 13 de setembro de 1815, diplomado em 1842 pela Faculdade de Ciências da Universidade de Paris como Bacharel em Ciências Matemáticas e falecido no Brasil aos 85 anos em 1900. Está por ser esclarecida a influência que tiveram esses alunos de Comte na difusão do Positivismo entre nós.

2. NISIA FLORESTA

Entre as personalidades brasileiras que freqüentaram Augusto Comte destaca-se um vulto feminino de grande importância histórica: Nisia Floresta Brasileira Augusta. Nascida a 12 de outubro de 1809 na vila de Papari (hoje cidade de Nisia Floresta), no Rio Grande do Norte, faleceu aos 76 anos em Ruão, França, a 24 de abril de 1885, tendo seus restos mortais transladados para sua aldeia natal em 1954. Foi educadora de grandes méritos, tendo mantido, aos 29 anos, no Rio de janeiro, o Colégio Augusto, onde lecionava quase todas as matérias, inclusive o latim, mercê de uma formação sólida e brilhante, clássica e moderna. A partir de sua aldeia rio-grandina, não só percorreu o Brasil de Norte a Sul (ela residiu até em Porto Alegre), mas viajou e estudou em diversos pontos da Europa. Sua intensa curiosidade intelectual levou-a a freqüentar diversos cursos e a escrever sobre os mais variados temas, envolvendo educação, emanci- 88 MOZART PEREIRA SOARES

pação feminina, abolição da escravatura e questões políticas e filosóficas. Em 1857 ouviu uma conferência de Augusto Comte, no Palais Cardinal, sobre História da Humanidade, quando iniciou estreitas relações de amizade com o filósofo. No Brasil, em 1853, publicou uma série de 62 artigos sobre a educação feminina, a que deu o título geral de Opúsculo Humanitário. Neles manifesta-se contra a escravidão, ponderando sobre as grandes repercussões que os costumes de uma sociedade degradada teriam sobre a formação de uma sociedade jovem. Depois de haver seguido os cursos de Botânica no Colégio de França e no Museu de História Natural em Paris, acompanhou em Florença, em 1860, aos 51 anos, as aulas de Botânica de Parlatore, um antigo colaborador de Humboldt. Em Paris manteve Nisia Floresta um salão, freqüentado, entre outras pessoas notáveis, por Augusto Comte. Do contato entre ambos ficaram sete cartas com as respectivas respostas. Numerosas passagens na obra de Nisia Floresta atestam a profunda influência das idéias de Augusto Comte em seu espírito. Um brasileiro que assistiu à chegada do fundador do Positivismo no apartamento de Nisia, guardou-lhe esta lembrança: Esta (a escritora brasileira) ia pessoalmente recebê-lo à entrada de seu apartamento e dizia aos presentes com visível entusiasmo, formulando um gesto de silêncio: aí está o Snr Comte, a maior glória da França. Procurem ouvi-lo e me darão razão. Não é um homem como os outros. É um gênio (...) Sabe tudo e todos o respeitam como a maior cabeça do Século.27 Em 1857

Nisia publicou o livro considerado sua obra-prima, Itineraire d'un Voyage en Allemagne, no qual se encontra esta referência ao Positivismo: "Não será a espada, mas o Amor que regenerará o homem; o Cristianismo o prega em vão há perto de 1.900 anos. Esperemos que a religião geral da humanidade o realize um dia. " (grifei).

27 - Lins, Ivan - Op. cit., pág. 21. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 89

"Nisia constituiu-se numa excepcional discípula do preclaro Mestre de Montpellier", escreveu um conferencista. Foi, além disso, bastante dedicada ao Pensador, tendo-se preocupado com sua saúde, cujo declínio acompanhava a ponto de lhe dirigir um apelo a que consentisse em consultar os primeiros médicos de Paris, ao que ele se recusava sempre. Por último, Nisia foi uma das quatro senhoras que acompanharam o cortejo fúnebre de Comte ao Père La Chaise.

3. UM POSITIVISTA INDEPENDENTE

O primeiro positivista a difundir a filosofia comtiana em nosso país foi Luiz Pereira Barreto. Nascido em 1840, em Rezende, Rio de janeiro, diplomou-se em Medicina, em Bruxelas. Em 1865 retorna ao Brasil, instalando-se em Jacareí, onde inicia sua clínica. Mais tarde transferiu-se para a capital paulista, onde desenvolveu uma brilhante ação cultural, médica e política. Tendo conhecido na Bélgica a obra higienística de Pasteur e encontrando no Brasil o flagelo da febre amarela, dedicou-se tenazmente a seu combate, no que alcançou pleno sucesso, a começar pela constatação de que seu transmissor era o mosquito anofeles. Aliou-se depois à campanha em favor da vacinação contra a varíola, contrariando até setores radicais do Positivismo brasileiro, sobretudo os obedientes ao Apostolado Positivista. É preciso, no entanto, esclarecer o que esses pretendiam: não combater o processo de vacinação em si, mas a violência moral da obrigatoriedade, pelo seu aspecto de invasão de consciências. Pereira Barreto colocava-se intransigentemente na defesa da saúde pública, argumentando que o cidadão comum, não tendo luzes para discernir corretamente sobre tão complexo assunto, deve aceitar por fé (científica no caso) os que entendem realmente da questão. Inteligência viva e expressão elegante e fácil, fizeram de Pereira Barreto um propagandista de primeira ordem do Positivismo no Brasil. Além disso, foi o primeiro entre nós a difundir a doutrina que apanhou pelo estudo direto de Comte e através de Littré e de Laffitte. Em 1874 publicou o primeiro volume da obra "As Três Filosofias", na qual trata do teologismo. A segunda, dedicada à filosofia metafísica, veio a lume em 1876. Existem nos arquivos da Casa de Augusto Comte, em Paris, quatro cartas de Pereira Barreto a Pierre Laffitte, nas quais se pode 90 MOZART PEREIRA SOARES

entender o grau de convicção do brasileiro nos princípios positivistas. Em 11 de maio de 1875, Miguel Lemos, em artigo publicado em A Idéia, manifesta-se entusiasticamente sobre o primeiro volume de Pereira Barreto: O autor possui perfeitamente a doutrina que defende, como prova pelas aplicações que faz continuamente à nossa situação política e intelectual. A

questão religiosa, sobretudo, é iluminada como nunca foi, graças à poderosa arma, o método da filosofia positiva. Um quarto de século mais tarde, em 1900, Miguel Lemos mudará completamente de opinião, tratando As Três Filosofias, então integralmente publicada, com desdém, como o prova o seguinte trecho de sua 1ª Circular Anual, ao afirmar que aquele trabalho se compunha "de uma manta de retalhos, escandalosamente pilhados aqui e ali". A explicação da estranha reviravolta pode estar em que Miguel Lemos, rompido com Laffitte, ao qual Barreto se mantém fiel, tornou-se hostil ao francês e seus adeptos, contestando sua pretensão de substituir Comte no comando geral do Positivismo. Luiz Pereira Barreto foi um espírito pragmático atento aos principais problemas do Brasil. Descendente de fazendeiros, foi um apaixonado pela agricultura. Batalhou pelo incremento da viticultura em São Paulo. Uma das questões em que se empenhou fortemente: o combate às doenças da parreira, seguindo os passos de Pasteur. Igualmente tratou do uso racional do solo, buscando vencer preconceitos agrícolas mais comuns e entre eles o de que o mau uso das terras torná-las-ia imprestáveis para sempre, quando, na verdade, podem ser adequadamente restauradas com o emprego de corretivos e o acertado manejo técnico. Deixou-nos uma alentada bibliografia em que se destacam centenas de artigos de cunho filosófico, a maioria deles de caráter polêmico, entretido com grandes vultos nacionais. Pereira Barreto era um culto poliglota, ao par do movimento intelectual nos países mais evoluídos. Publicou vários artigos de difusão do Positivismo na Europa, em francês, inglês e alemão. Como político foi eleito pelo Partido Republicano Constituinte estadual em 1891; pelo seu prestígio foi escolhido Presi- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 91

dente da Assembléia Constituinte, e, enfim, Presidente do Senado Estadual. Cultura polimorfa, talento de escol, sólida formação filosófica, dificilmente se acomodaria ao espírito que se convencionou chamar ortodoxo, ou de fidelidade à ética dos apóstolos do Positivismo submissos à disciplina rígida de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Na questão da vacina, baseado em seus conhecimentos da obra de Pasteur, adota uma atitude independente: "É preciso, escrevia em 1889, que as noções sobre os direitos do homem sejam modificadas, de modo que não continue a prevalecer a opinião que arvora o arbítrio individual em dogma mortífero para a generalidade dos cidadãos. Nas situações de perigo coletivo impõe-se o despotismo sanitário" (grifei). Esse ponto de vista corresponde, aliás, exatamente, ao pensamento de Comte, que assevera ser o Positivismo superior a qualquer de seus órgãos, inclusive a ele próprio, seu fundador. E conclui: Há, portanto, na obra de Augusto Comte, uma parte episódica, perecível, decorrente ora de doutrinas imaturas na sua época, ora de pontos de vista meramente pessoais, constituindo o que se pode denominar comtismo. Ao lado deste, porém, encontra-se, na expressão de Gabriel Torde, uma admirável catedral de idéias, que apresenta interesse permanente, por consistir na coordenação de conhecimentos passados, presentes e futuros, através do método positivo, aplicado inclusive às investigações sociais e morais, formando o que se chama propriamente o Positivismo, caracterizado pelo afastamento das entidades e pela consideração exclusiva dos fatos experimentalmente verificados e das leis deles decorrentes.28

4. SEGOND, UM DISCÍPULO DIRETO DE COMTE NO BRASIL

Figura entre os contribuintes para a difusão do Positivismo no Rio de janeiro um discípulo direto de Comte, grandemente

28 - Lins, Ivan - Op. cit., pág. 65. 92 MOZART PEREIRA SOARES

apreciado pelo Mestre, pelo seu conhecimento e fidelidade à doutrina, Luiz Augusto Segond, membro da Sociedade Positivista de Paris (fundada e presidida por Augusto Comte), Professor Adjunto e Bibliotecário da Faculdade de Medicina de Paris. Biólogo afamado, foi autor de trabalhos incluídos por Augusto Comte na Biblioteca Positivista, História (ou Ensaio) Sistemático da Biologia e Tratado de Anatomia Geral. Em 1857 estava ele no Brasil, como cantor de uma companhia lírica (a paixão pela música levou-o a interromper sua carreira universitária) e daqui dirigiu algumas cartas a seus amigos de Paris sobre o Brasil (então em pleno regime escravagista), sobre nossa situação política e social. Duas dessas cartas foram endereçadas a Pierre Laffitte. Na de 14 de setembro de 1857 faz uma apreciação sobre o Imperador Pedro II, na qual ele aparece mais ou menos sob a luz em que é retratado pela história: probo, modesto, generoso, bastante inteligente e religioso sem beatismo. Aprecia longamente a chaga da escravidão e se refere simpaticamente ao negro. Ao sair da França para sua excursão lírica, Segond deixara Augusto Comte angustiado com um incidente que o magoara profundamente com alguém no qual depositou infundadas esperanças: o Capitão Celestin Blingniers, que ele considerava não apenas um discípulo fiel, mas até um eventual sucessor. Publicando um livro no qual fazia uma exposição sucinta da obra comtiana, atribui a originalidade do pensamento positivo a Condorcet e declara Littré seu pai espiritual. Apesar da crítica severa que teceu sobre as numerosas heresias doutrinárias de Blingniers, Comte não se apaziguou. Segond escreveu ao Mestre uma carta do Rio, a 30 de setembro de 1857, não sabendo que ele havia falecido vinte e cinco dias antes. A carta não lida por Comte foi publicada por Paulo Carneiro e se encontra na Casa de Augusto Comte. Além de longas considerações sobre os operários franceses que viviam no Rio e sobre os negros e a escravidão, ainda noticia: Segundo minhas primeiras observações, o Positivismo foi particularmente estudado no Rio, pelos alunos da Escola da Marinha; o livreiro Garmer vendeu-lhes vários exemplares do Livro de Filosofia Positiva à Biblioteca da Assembléia Provincial do Rio. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 93

5. O POSITIVISMO E A REPÚBLICA BRASILEIRA

Desde 1850 infiltra-se nos principais estabelecimentos no Brasil, Escola Militar do Rio, Escola de Marinha, Colégio Pedro II, Escola de Medicina e Escola Politécnica, o pensamento de Augusto Comte difundido pelo Curso de Filosofia Positiva. Nesses estabelecimentos defendem-se numerosas teses sobre Matemática, Astronomia e Física, principalmente. Pouco mais tarde vários intelectuais começam a propagar as concepções do Mestre no terreno estético e moral. Mas grande adesão, senão a principal delas, de uma figura brasileira à doutrina comtiana é a de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, consagrado mestre da Escola Militar que à grande competência didática somava um caráter de excepcional moralidade. Sua conversão ao Positivismo ocorreu justamente no ano do falecimento de Comte, 1857. Teixeira Mendes, em

alentada biografia, acompanha passo a passo sua evolução intelectual, seu posicionamento quanto ao Positivismo, atividades no ensino e sobretudo sua participação na organização da República.29 Nascido em 18 de outubro de 1836, nos arredores do Rio de Janeiro, faleceu nesta cidade dia 22 de janeiro de 1891.30 Aos 16 anos (1852) ingressou no Exército e, no ano seguinte, passou a freqüentar a Escola Militar. Em 1860 foi promovido a Capitão Engenheiro. Entre 1863-1865 foi discípulo do Observatório Astronômico, onde passou a exercer as funções de ajudante de astrônomo. Dedicando-se intensamente ao estudo da matemática, desde muito moço passa a lecionar suas disciplinas, cálculo e mecânica, com que ganhava o sustento. Cedo manifestaram-se suas qualidades de liderança, um profundo senso de justiça, a coragem cívica e a exemplar dignidade com que se impôs à sua geração. Comandou uma rebelião estudantil contra uma direção prepotente, que terminou afastada. Tal fato, entretanto, iria custar-lhe sucessivas preterições no seu desejo de

29 - Teixeira Mendes, Raimundo - Benjamin Constant, Rio de janeiro, Capela da Humanidade, 1894. Esboço de uma apreciação sintética da vida e obra do Fundador da República Brasileira. 30 - Data fixada pela Certidão de Batismo cf. Teixeira Mendes, op. cit., pág. 485, nota de pé de página. 94 MOZART PEREIRA SOARES

seguir a carreira difícil de magistério. Mesmo melhor classificado em concursos, sempre viu nomeados concorrentes menos capazes. Na Guerra com o Paraguai seguiu para os campos de batalha como integrante do 1º Corpo do Exército Nacional. De volta, passou a dirigir o Instituto dos Cegos. Da sua experiência naquela função ficou um relatório inovador, bastante polêmico para seu tempo. Tratava-se de um plano de instrução baseado nas ciências positivas. Tal plano motiva um protesto do deputado baiano Magalhães Jacques, em sessão da Câmara, em 1871, no qual verberava o que entendia comoperigoso projeto, contendo inconveniências morais, com "idéias extravagantes sobre a liberdade da mulher". Os estudos matemáticos levaram-no às idéias de Comte, de quem foi um ardoroso propagandista. Sua austeridade didática e a irrepreensível postura moral tornaram-se elementos de excepcional valia na difusão do Positivismo. Em 1857 foi promovido a Major e no ano de 1888 teve mais dois acessos: Tenente-Coronel e, ao final do ano, Coronel. Apesar de sistematicamente preterido, nunca renunciou à sua vocação maior, que foi o magistério, como o Positivismo seria sua devoção permanente. Entre os vários cursos que promoveu, destaca-se o de Mecânica Racional, freqüentado por alunos de cursos superiores e até figuras do professorado. Compreendendo muito bem o alto papel da Educação, foi o fundador da Escola Normal Superior, que, nesse tempo, representava um dos melhores celeiros de homens de prol no domínio cultural. Intensamente dedicado à política (atividade essencialmente voltada para a Educação no pensamento de Comte), desempenhou um papel de máxima relevância na organização da República. Seu prestígio junto a Deodoro fez com que este transformasse um movimento revolucionário, como todos esses, negativo e demolidor, numa programação orgânica, fraterna e progressista, segundo o lema da bandeira que ajudou a conceber. Informa Teixeira Mendes que, pela morte de Benjamin, em 1891, o Diretor do Apostolado Positivista do Brasil, Miguel Lemos, em telegrama à sua viúva, transmitiu-lhe os pêsames dos correligionários brasileiros pelo falecimento do Fundador da República Brasileira .31

31 - Teixeira Mendes, Raimundo - Acredita que foi essa a primeira vez que se lhe deu esse título (pouco depois por ele repetido no elogio fúnebre de Benjamin). In Esboço de uma apreciação sintética da vida e obra do Fundador. Rio, 1894. O POSITIVISMO No BRASIL: 200 AANOS DE AUGUSTO COMTE 95

Sabe-se que Benjamin Constant foi inteiramente fiel ao Positivismo científico, político e religioso. Pelo fato de não ter pertencido ao Apostolado Positivista, o professor Cruz Costa considerou-o "não ortodoxo". Ivan Lins discorda dessa opinião do historiador das idéias no Brasil. Para Ivan, muitos entre os adeptos de Comte, considerados ortodoxos no Brasil, não integraram necessariamente o Grêmio de Miguel Lemos e Mendes. Quanto à fidelidade a Comte, o próprio Benjamin se encarregou de registrar seu pensamento, que não deixa dúvidas: em carta dirigida à esposa do campo de operações na guerra contra o Paraguai, a 5 de junho de 1867, confessa: Sigo, como sabes, todas as suas doutrinas (...do sábio e honrado Augusto Comte), seus princípios, suas crenças: a religião da Humanidade é a minha religião (grifei). Tendo sobrevivido apenas dois anos à República instalada em 1889, Benjamin Constant nela desempenhou dois postos de capital importância no Governo Provisório: Ministro da Guerra, desde o início, até a criação do Ministério da Educação Pública, Correios e Telégrafos (o atual Ministério da Educação), a 19 de abril de 1890, de que ele foi o primeiro titular. Ao se despedir do primeiro posto, a 22 de junho de 1890, deixava estes conceitos sobre a corporação a que servia: Um Exército, enfim, que, correspondendo às legítimas aspirações nacionais, instalou e firmou para sempre em sólidas e largas bases a República no seio da Pátria por meio de uma revolução eminentemente pacífica e humanitária, que recomendou eficazmente a nação brasileira ao respeito e a admiração de todos os povos cultos; que se assinalou nos fastos da Humanidade como um exemplo edificante e para sempre memorável e digno de eterna glorificação dos séculos e bênçãos da Humanidade; soube elevar-se nobremente à sublime missão social e política reservada aos exércitos modernos, que de acordo com os sãos preceitos da ciência real, que deve inspirar a sua conduta, mais 96 MOZART PEREIRA SOARES

pacífica do que guerreira, mais humanitária do que racional (grifei).32 No breve período em que esteve à testa do Ministério da Instrução Pública, promoveu a reorganização do ensino, do grau elementar ao superior e imprimiu novos rumos na formação técnica e profissional que muito influíram na educação nacional.

6. PARTICIPAÇÃO DE DEMÉTRIO RIBEIRO

A influência da doutrina de Comte na organização da República foi mais acentuada enquanto Demétrio Ribeiro, primeiro Ministro da Agricultura do regime instalado em 89, permaneceu na sua pasta, dois meses apenas. Tal fato, entretanto, não impediu suas conquistas básicas. Em primeiro lugar, a separação da Igreja do Estado, devida como se viu, à iniciativa do próprio Demétrio, embora o projeto aprovado fosse o de Rui Barbosa. Dessa separação, além da ampla liberdade espiritual, benéfica a todos os cultos, vem a supressão da teologia oficial, até então imperante entre nós. O Estado, não tendo religião, não pode manter orçamento científico ou

acadêmico. Outras conseqüências: o casamento civil e a secularização dos cemitérios. O ato civil, a princípio, foi declarado independente da cerimônia religiosa. Os positivistas aceitavam esta, antes ou depois do acordo civil. Pouco a pouco, entretanto, o Governo se foi desviando do primeiro caminho, tornando obrigatória a precedência do ato civil. Para os positivistas bastaria exigir-se o casamento civil para a validade dos efeitos do casamento. Demétrio Ribeiro foi ainda proponente do Decreto relativo às festas e aos feriados nacionais. É bom esclarecer-se: a escolha daquelas datas não apenas visava a celebrações de caráter nacional, mas também à fraternidade universal, desde o 1º de janeiro (precisamente com essa finalidade); 21 de abril, comemorativo dos precursores de nossa independência política, resumidos em Tiradentes; 3 de maio, descoberta do Brasil; 13 de maio, aproveitando-se a data da Abolição da Escravatura, mas

32 - Teixeira Mendes, Raimundo - Op. cit., pág. 402. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 97

na realidade destinando-se à confraternização dos brasileiros; 14 de julho, consagrado à comemoração da liberdade, visto invocar a queda da Bastilha, e ainda a independência dos povos americanos; 7 de setembro, independência pátria; 12 de outubro, descoberta da América; 2 de novembro, à comemoração dos mortos; 15 de novembro, instauração da República brasileira. Influências secundárias também lograram, com a fórmula "saúde e fraternidade", na correspondência oficial. Outra contribuição do Positivismo para a República foi a da Bandeira nacional, adotada pelo Decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889, projeto de Teixeira Mendes, com a cooperação de Miguel Lemos, cujo protótipo se encontra no Templo da Humanidade do Rio de janeiro. São do próprio criador do pavilhão brasileiro as explicações que seguem:33 Devendo lembrar a fraternidade, a bandeira será, antes de tudo, um símbolo de amor, de tal modo que, ao contemplá-la, todos os cidadãos possam sentir as convergências sociais, mesmo que individualmente discordem numa ou noutra questão. Deve ainda recordar o passado de que proviemos, a posteridade para quem trabalhamos, e o presente, elo movediço dessas massas indefinidas das gerações humanas. Continuidade e solidariedade, isto é, a unidade em sua mais alta acepção, tal será seu primeiro característico. Seria assim conveniente que o novo pavilhão mantivesse tudo quanto do antigo se pudesse conservar, despertando-nos na memória o culto a nossos avós. Por outro lado, deveria também eliminar tudo quanto pudesse perturbar o sentimento de solidariedade cívica, ao traduzir crenças que não são mais partilhadas por todos os cidadãos. Finalmente, conviria que pudesse suscitar a mais fervorosa dedicação pelas gerações vindouras. Era evidente a necessidade, não só de manter as cores e a disposição da primitiva bandeira, mas também de substituir por novos símbolos os emblemas da monarquia. Eis como Teixeira Mendes entende que se logrou esse objetivo.

33 - Sintetizamos neste artigo a publicação nº 110 do Apostolado Positivista do Brasil, Rio de Janeiro, 1958. 98 MOZART PEREIRA SOARES

O povo brasileiro, como todos os povos ocidentais, acha-se vivamente solicitado por duas necessidades, ambas imperiosas, que se resumem nas palavras Ordem e Progresso. Todos sentem, por um lado, que é imprescindível manter as bases da sociedade, mas todos percebem também que as instituições humanas são suscetíveis de aperfeiçoamentos. Ora, acontecendo que o tipo da Ordem só foi até hoje fornecido pelo regime teológico e guerreiro passado, e que o Progresso tem exigido a eliminação, por vezes violenta, de certas instituições, o espírito público foi levado empiricamente a supor que as duas necessidades eram irreconciliáveis. Daí a formação de dois partidos opostos, um invocando para lema a Ordem e outro tomando para divisa o Progresso. No entanto, a Dinâmica social, fundada por Augusto Comte, para completar e desenvolver a Estática social fundada por Aristóteles, demonstra que as duas necessidades de Ordem e Progresso, longe de serem irreconciliáveis, por toda parte se harmonizam. E ainda mais, o mesmo egrégio pensador demonstrou que essa harmonia se dá na política e na moral, em conseqüência da preponderância do amor, como se observa na frase do fundador da Religião da Humanidade: O Progresso é o desenvolvimento da Ordem, como a Ordem é a consolidação do Progresso. Pois bem, é essa conciliação da Ordem com o Progresso que todo o povo brasileiro sente e sem a qual não poderia existir a verdadeira fraternidade; é essa conciliação que o novo símbolo proclama. Progressistas e ordeiros podem hoje confraternizar; e essa confraternização é tanto mais sólida quanto a divisa foi hasteada após uma revolução progressista e triunfante. A nova divisa significa que essa revolução não aboliu simplesmente a monarquia; que ela aspira a fundar uma pátria de verdadeiros irmãos, dando à Ordem e ao Progresso todas as garantias que a história nos demonstra serem necessárias à sua permanente harmonia. Em resumo, o estandarte da República Brasileira simboliza o nosso Passado, o nosso Porvir, e o nosso Presente; a nossa terra e o nosso céu; os feitos de nossos pais e as nossas aspirações. Mas não é tudo. Ele recorda também a nossa filiação com a França, o centro do Ocidente, e por esse lado nos prende a toda a evolução humana passada, e ao mais remoto futuro. Com efeito, o campo verde que tudo domina não recorda só a nossa terra. Como diz Augusto Comte: "Esta nuança convém aos homens do Porvir, por isso que caracteriza a Esperança, como o anuncia habitualmente por toda parte a vegetação, ao mesmo tempo que indica a Paz; duplo título para sim- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 99

Benjamin Constant Botelho de Magalhães, fundador da República Brasileira.

bolizar a atividade pacífica. Históricá: inaugurou a Revolução Francesa, pois que os sitiantes da Bastilha não tiveram outros emblemas senão folhas arrancadas das árvores do Palais Royal, segundo a feliz exortação de Camilo Desmoulins." Esta recordação universal nos transporta à contemplação do protomártir de nossa liberdade nacional, o generoso Tiradentes, cujo temerário patriotismo foi denunciado no mesmo ano em que Paris inaugurava a regeneração humana.

7. OUTRAS INFLUÊNCIAS NA CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA

Muitas outras influências do Positivismo, através do Apostolado e outras entidades, se podem apontar na organização da República de 89. Uma das sugestões do Apostolado ao Congresso propondo modificações ao Projeto de Constituição do Governo Provisório, diz respeito ao acréscimo ao n 12, no artigo 33, vazado nos seguintes termos: "Nenhuma guerra podendo ter lugar, salvo no caso de agressão imediata, sem recorrer-se ao arbitramento", sugestão aproveitada, por proposta de Nilo Peçanha, no nº 11, do artigo 34, que ficou assim redigido: 100 MOZART PEREIRA SOARES

"Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional: "II - Autorizar o Governo a declarar guerra, se não tiver lugar ou malograr-se o recurso do arbitramento e afazer a paz". A esse propósito informa-se que Benjamin Constant, quando Ministro da Guerra, aceitando uma sugestão de seu discípulo Capitão José Beviláqua, propôs ao Governo a restituição dos troféus conquistados ao Paraguai na guerra contra aquele país movida pelo Império. Comenta Teixeira Mendes que esse gesto de fraternidade, mercê de incompreensível orgulho nacional não foi avante, pois não se entendeu que aquela guerra não foi movida contra o brioso povo paraguaio, mas a seu governo, e que a conservação daqueles despojos seria uma permanente ofensa a nossos irmãos sul-americanos. Outra influência positivista diz respeito à reforma do ensino, tanto civil quanto militar. Tendo Benjamin Constant deixado o Ministério da Guerra a 22 de junho de 1890 e assumido o da Instrução, criado pelo Governo Provisório, levou a efeito a reforma daqueles ensinos, assim apreciada pelo primeiro Reitor da Universidade de Minas Gerais, o Jurisconsulto Francisco Mendes Pimentel, na aula inaugural de 3 de abril de 1928: A primeira reforma republicana e a única que chegou a produzir alguns frutos foi a do grande Ministro do Governo Provisório Benjamin Constant Botelho de Magalhães, que durou dez anos. E foi nesse breve espaço, diz aquele mestre (dando seu testemunho de professor de um ginásio e de uma Faculdade), que se formaram as turmas que mais se distinguiriam na vida acadêmica; e, daí para diante, fez-se o caos. 34 O General Tasso Fragoso, por sua vez, um dos vultos mais eminentes do Exército Nacional, assim depõe: Benjamin Constant foi ainda censurado pela reforma do ensino militar. - Que desejava ele com o regulamento de 12 de abril de 1890?

34 - Lins, Ivan - Op. cit., pág. 373 da 2ª edição. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 101

Dar ao futuro oficial, preliminarmente, sólida preparação científica, mediante o estudo das ciências abstratas (da matemática à sociologia e à moral), e só depois ministrar-lhe o ensino profissional. Assim, a um curso geral de 4 anos, seguia-se um em que se estudava quanto concernia a todas as armas. Depois passava o estudante a outro centro de Instrução (Escola Superior de Guerra), para freqüentar o curso propriamente militar de artilharia, engenharia e estado maior. Quando se lê, hoje, esse regulamento, lamenta-se a mistura de cursos da Escola Superior de Guerra (o que já vinha do último regulamento da monarquia), mas não se pode deixar de admirar os grandes ideais que o inspiraram, pois seria realmente ideal possuirmos oficiais tão solidamente preparados. Estende-se ele ainda sobre a formação do oficialato, incluindo-se a sociologia e a moral, que só poderiam ser bem ensinadas na era pós-comtiana. Bem assim, ainda avalia a formação do Estado Maior, depois de referir-se à orientação da Escola Politécnica de Paris. Assunto de palpitante interesse é o relativo à liberdade

profissional. O Apostolado Positivista propôs, no art. XIX das "Bases de uma Constituição" Política Ditatorial Federativa para a República Brasileira, com a seguinte redação: XIX - É garantido o livre exercício de todas as profissões, quer morais, quer intelectuais, quer industriais. Transplantado para a Constituição Federal de 1891, o dispositivo lá chegou nos termos do § 24, artigo 72: § 24 - É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial. A irrestrita liberdade profissional foi agasalhada nas constituições estaduais do Rio Grande do Sul, graças a Júlio de Castilhos, 102 MOZART PEREIRA SOARES

e do Espírito Santo, devida a Moniz Freire. Tal dispositivo tem sido objeto de apaixonadas controvérsias, fonte de equivocadas interpretações. Na constituição castilhista (14 de julho de 1891, § 5°- do artigo 71, além da prescrição de liberdade profissional, excluem-se privilégios: § 5º Não são admitidos também no serviço do Estado os privilégios de diplomas escolásticos ou acadêmicos, quaisquer que sejam, sendo livre no seu território o exercício de todas as profissões de ordem moral, intelectual e industrial. Por esse dispositivo, atente-se bem, o que não se admite são privilégios decorrentes de diplomas, para o serviço do Estado. E quanto ao exercício profissional, não se estabelece que alguém, destituído de preparo correspondente, venha exercer qualquer profissão. Liberdade para exercê-las não significa que se as permitam a incompetentes. Sob esse ponto de vista é muito expressiva a carta dirigida por Júlio de Castilhos ao Prof. Protásio Alves, fundador e primeiro Diretor da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, a 22 de agosto de 1898, da qual transcrevemos os excertos abaixo: Agradecendo vivamente a obsequiosidade de vossa carta e as penhoradas deferências com que me distinguistes em nome também de vossos companheiros, permiti que vos pondere, ilustre cidadão, que a Fundação da Escola de Medicina e Pharmácia não é somente `mais uma victória do ensino livre', segundo vosso dizer, mas constitui sobretudo mais uma irrefragável ratificação de um dos eminentes e substanciosos princípios, em que se esteiou o código constitucional Rio-Grandense. Autor do projeto que mais tarde, com algumas modificações de detalhes, foi votado pela Assembléia Constituinte do Rio Grande do Sul, da qual dignamente fizeste parte, não me julgo incompetente para asseverar que, entre as verdades superiores em que se moldou a nossa Constituição, salienta-se a que concerne à completa O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 103

separação do poder temporal, do poder espiritual, separação cuja eficiência prática torna-se uma necessidade cada vez mais imperiosa. Não bastava a supressão do culto oficial, já consagrada na Constituição Federal, que aliás confirmará o memorável Decreto do Governo Provisório da República sobre a denominada separação da Igreja do Estado. Cremos que essa transcrição possa contribuir para melhor elucidar o assunto. Não pode passar sem referência uma iniciativa de Teixeira Mendes que o tornou precursor das medidas a favor do proletariado. Foi o projeto por ele submetido ao Governo Provisório, através de Benjamin Constant, de 25 de dezembro de 1889. Com isso estavam cumpridas as recomendações de Augusto Comte sobre um dos mais graves problemas sociais de todos os tempos - a incorporação da massa obreira à sociedade, à margem da qual, na expressão do filósofo, ela se acha acampada. Para que bem se apreciem os avanços quanto à organização do trabalho, que suas proposições contêm, meditemos sobre suas considerações gerais, constantes do folheto "A Incorporação do Proletariado na Sociedade Moderna, do Centro Positivista do Brasil, Rio de janeiro, 1889". Dessa introdução resultaram dispositivos que pretendiam equiparar os operários do Estado aos outros funcionários públicos. Segundo Ivan Lins, antecedem em perto

de dois anos a celebrada EncíclicaRerum Novarum, de Leão XIII. É também de inspiração positivista o § 2º do artigo 72 da Constituição de 91, que proíbe o anonimato na imprensa. Carlos de Laet, monarquista e antipositivista declarava que, entre as constituições do Império (1825) e a republicana (1891), se inclinava pela antiga, mas reconhecia que a última tinha aquele dispositivo salutar que faltava à primeira.

8. PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS

Grande preocupação teve o Apostolado Positivista para com nossas populações fetichistas, chegando mesmo a definir o Brasil 104 MOZART PEREIRA SOARES

Rondon ouvindo atentamente um velho cacique.

em seu projeto de constituição como uma Federação composta pelas populações brancas, de origem européia, mais as hordas aborígenes espalhadas pelo território nacional. Vale a pena transcrever os princípios sob os quais Rondon conduziu sua obra humanitária em nosso interland, pelos quais podemos nos aperceber que muito dificilmente alguém teve para com nossos humildes irmãos da floresta melhor atitude de coexistência pacífica: I. Morrer, se preciso for; matar, nunca. II. Respeitar as tribos indígenas como nações independentes, embora sociologicamente embrionárias. III. Garantir aos índios a posse das terras que habitam, necessárias à sua sobrevivência. IV. Assegurar aos índios a proteção direta do Estado, não como favor, mas como dever de assistência à sociedade fetichista, que não pode competir com a tecnologia do civilizado.

9. LIBERDADE DE CULTOS

Mas, a questão que mereceu maior interesse dos positivistas foi a da liberdade de cultos, através da separação da Igreja do Estado, uma de suas principais conquistas, após a instituição da República. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 105

Comte considera a separação e a independência dos poderes temporal e espiritual, o princípio capital da política moderna. Instalada a República Brasileira em 15 de novembro de 1889, tratou o Governo Provisório, desde sua primeira reunião, de resolver o magno assunto. A 9 de dezembro de 1889, Demétrio Ribeiro, nosso primeiro Ministro da Agricultura, apresentou o seguinte projeto, que foi lido por Benjamin Constant, declarando-se inteiramente de acordo com ele: "O Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil, considerando que a política republicana baseia-se na mais completa liberdade espiritual; "que os privilégios concedidos pelo poder civil aos adeptos de qualquer doutrina só têm servido para dificultar o natural advento das opiniões legítimas, que precedem a regeneração dos costumes; "que as doutrinas destinadas a prevalecer não carecem de apoio temporal, como a história o demonstra; "que

nas reformas políticas deve ser respeitada a situação dos funcionários; "Decreta: "Art. 1º - Fica estabelecida a plena liberdade de cultos e abolida a união legal da Igreja com o Estado. "Art. 2º - Ficam mantidos aos atuais funcionários católicos os seus respectivos subsídios. "Art. 3º - Os templos que pertencerem ao Estado serão deixados ao livre exercício do culto católico, enquanto forem assim utilizados. Em caso de abandono pelos sacerdotes católicos, o Estado os cederá para os exercícios cultuais de qualquer igreja, sem privilégio religioso." Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, pediu fosse adiada a apreciação do projeto. Tal protelação ensejou a Demétrio Ribeiro ampliar a proposição apresentada a 9 de dezembro, que passou a ter a seguinte redação: "O Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil, considerando: "que a política republicana baseia-se na mais completa liberdade espiritual; "que os privilégios concedidos pelo poder civil aos adeptos de qualquer doutrina só têm servido para dificultar o natural advento das opiniões legítimas que precedem a regeneração dos costumes; 106 MOZART PEREIRA SOARES

"que as doutrinas destinadas a prevalecer não precisam apoio temporal, como a história demonstra; "que nas reformas políticas deve ser respeitada a situação material dos funcionários; "que só as transformações dos costumes devem produzir espontaneamente a extinção das instituições legadas pelo passado, limitando-se apenas a autoridade civil a abolir os privilégios de que gozarem as referidas instituições; "que a Pátria deve garantir o culto dos mortos, respeitando a completa liberdade religiosa; "que os socorros públicos dados aos cidadãos necessitados não devem ficar ao arbítrio de corporações religiosas, por ser isso contrário à liberdade de consciência; "Decreta: "Art. 1º - É livre o exercício de qualquer culto, ficando abolida a união entre o Estado e a Igreja Católica. "Art. 2º - Os atuais funcionários eclesiásticos, subvencionados pelos cofres gerais, continuarão a perceber os seus respectivos subsídios. "Art. 3º - Os templos pertencentes ao Estado continuarão entregues ao sacerdócio, enquanto este se responsabilizar pela conservação deles. Em caso de serem abandonados pelo sacerdócio católico, o Estado poderá entregá-los a qualquer outro sacerdócio, mediante a mesma condição de conservá-los; ficando entendido que é lícito ao Governo permitir que o mesmo templo se destine ao exercício de vários cultos, sem privilégio de nenhum. "Art. 4º - É garantida às associações religiosas e corporações de mão morta existentes no território da República a posse dos bens em cujo gozo se achem e que vierem a adquirir por qualquer título jurídico; regulado tudo pela legislação comum à propriedade, derrogadas todas as disposições especiais em contrário. "Art. 5º - Ficam declarados extintos todos os privilégios, concessões e contratos das corporações de mão morta para o serviço de hospitais e enterramentos, que passará a ser feito, na Capital Federal, pela Intendência Municipal, e, nas diferentes localidades dos Estados, conforme determinar a legislação respectiva, de acordo com as disposições do presente decreto. Fica entendido que em qualquer caso será respeitada em toda a sua plenitude a liberdade individual e de consciência. "Art. 6º - O nascimento e óbito serão passados por declaração de família feitas perante as autoridades competentes, que serão, no O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 107

Distrito Federal, as que o Governo determinar, e nos Estados as que forem designadas pelos respectivos Governadores. "Art. 7º - O Governo tomará as providências que julgar convenientes e expedirá os regulamentos que entender necessários para a execução do presente decreto." Entretanto o Decreto que prevaleceu, nessa sessão de 7 de janeiro de 1890, foi o de nº 119-A, de autoria de Rui Barbosa, do seguinte teor: "Decreto nº 119-A, de 7

de janeiro de 1890. "Proíbe a intervenção de autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providências. "Art. 1º - É proibido à autoridade federal, assim como à dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crença, ou opiniões filosóficas ou religiosas. "Art. 2º - A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regendo-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto. "Art. 3º - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público. "Art. 4º - Fica extinto o padroado com todas as instituições, recursos e prerrogativas. "Art. 5º - A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão morta, mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto. "Art. 6º - O Governo Federal continua a prover a côngrua, sustentação dos atuais serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos seminários; ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes. "Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário." Cotejando os textos anteriormente citados, da autoria de Rui Barbosa e Demétrio Ribeiro, Ivan Lins, em sua História do Positivis- 108 MOZART PEREIRA SOARES

mo no Brasil, tece as seguintes considerações, que nos parecem indispensáveis para o conhecimento de um dos assuntos de maior relevo na evolução política do Brasil: "Enquanto os projetos atinentes à separação entre a Igreja e o Estado, submetidos por Demétrio Ribeiro, em 9 de dezembro de 1889 e em 7 de janeiro de 1890, ao Governo Provisório, realizavam essa medida sem qualquer restrição, como posteriormente veio a prevalecer na Constituição de 1891, o artigo 5º do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, de autoria de Rui Barbosa, manteve a legislação regalista da propriedade de mão morta, que pesava sobre os bens do clero católico, imobilizando-os. "Mais ainda. O artigo 2º do projeto de decreto, apresentado por Demétrio Ribeiro, garantia, de modo permanente, os subsídios até então percebidos por todos os funcionários eclesiásticos, qualquer que fosse a sua hierarquia, desde o mais humilde sacristão até o mais graduado sacerdote. "Em vez desse ato de rigorosa justiça republicana, patenteando que nenhuma animosidade havia contra a Igreja Católica - pondera Teixeira Mendes - O Sr. Rui Barbosa propõe uma mesquinha conservação das côngruas, o que só visa aos membros do Sacerdócio Católico, e a subvenção, por um ano, às cadeiras dos seminários." "Denotava, pois, o Decreto da lavra de Rui, ao manter a legislação de mão morta e ao restringir os subsídios dos funcionários eclesiásticos, evidente animosidade contra o sacerdócio católico. Será que também participava dessa animosidade Dom Antônio de Macedo Costa? Seria também ele regalista para preferir o decreto opressor, da lavra de Rui, ao que, estabelecendo a liberdade, em termos amplos, fora apresentado por Demétrio? Não é, pois, uma fantasia histórica dizer-se que a lei, estabelecendo a liberdade espiritual no Brasil, foi elaborada por homens de visão e de bom senso, como D. Antônio de Macedo Costa e Rui Barbosa? A fantasia é tanto maior quanto Dom Antônio de Macedo Costa, já depois do decreto de Rui Barbosa, dirigiu à Constituinte uma Representação contra.

10. IRRADIAÇÃO DO POSITIVISMO NO BRASIL

Nos estados brasileiros em que a imprensa era mais ativa, era natural que a difusão do Positivismo fosse mais intensa. Em sua O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 109

excelente História do Positivismo no Brasil, Ivan Lins35 acompanha detalhadamente a expansão da doutrina de Comte em nosso país. Quem pretenda familiarizar-se com esse aspecto do Positivismo entre nós, dispõe dessa preciosa fonte, livro de consulta obrigatória sobre o tema, onde encontrará sua irradiação para os diversos núcleos regionais, a partir do Apostolado Positivista, sua influência em nossos movimentos políticos e culturais, a adesão de numerosos espíritos de escol de nossa intelectualidade. No Maranhão, já em 1860 começou a circular um jornal, cujo título anuncia uma diretriz. Ordem e Progresso, curiosamente órgão de uma liga entre liberais e conservadores. Duas hipóteses explicam sua denominação: a revista editada em Paris pelo discípulo espanhol de Augusto Comte, Dom José Segundo Flores, "El Eco Hispano Americano", encimada pela divisa Ordem e Progresso ou Sugestão de um colaborador, Joaquim Serra, que, ao cursar a Escola Militar do Rio de Janeiro entre 1853 e 57, viesse a inspirar-se na página de rosto do "Sistema de Política Positiva". Depois de adotada aquela divisa, estabeleceu-se a propaganda permanente positivista, de Francisco Antônio Brandão Júnior, colega de Luiz Pereira Barreto na Universidade de Bruxelas. Sua obraA Escravatura do Brasil e a Agricultura e Colonização no Maranhão é a primeira aplicação das idéias sociais de Comte à realidade brasileira. Maranhão, enfim, é o Estado natal de um dos mais eminentes positivistas que a História registra, Raimundo Teixeira Mendes, a cuja dedicação deve a doutrina de Comte o seu triunfo no Brasil. No Ceará penetra o Positivismo em 1872, através de um grupo ledor de Comte capitaneado por Rocha Lima e composto de Araripe Júnior, Felino Barroso (pai de Gustavo Barroso) e Capistrano de Abreu, que deixa memórias sobre aquela reunião de literatos a que chamou Academia Francesa. Além daqueles a quem agremiava, aAcademia exerceu sua influência sobre grandes espíritos da intelectualidade brasileira, como o célebre jurista Clóvis Beviláqua, redator do Código de Direito Civil de 1916. É da Bahia, como já vimos, Justiniano da Silva Gomes, autor da primeira tese brasileira sobre o Positivismo, ao defender seu programa de um Curso de Fisiologia, baseado na Filosofia Positiva, em 1844.

35 - Lins, Ivan - História do Positivismo no Brasil. Brasiliana, vol. 332. Cia. Editora Nacional. São Paulo, 1964. 110 MOZART PEREIRA SOARES

Moniz Barreto de Aragão publica Elementos da Matemática, em cuja Introdução aparece o pensamento de Comte. Ainda do mesmo autor, cerca de vinte anos mais tarde, surge um trabalho sobre a Classificação das Ciências e Artes. Em 1876 é a vez de Domingos Guedes Cabral apresentar Funções do Cérebro. Formado em Medicina pela Faculdade da Bahia, deve ter sofrido forte influência de justiniano da Silva Gomes, para adotar a teoria cerebral de Augusto Comte. Em Pernambuco não escapam à influência do Positivismo a grande figura de

Tobias Barreto, bem como seu ardoroso adepto Silvio Romero. Mais tarde ambos abandonam o Positivismo a favor de Spencer, Haeckel, Darwim e Büchner. São ainda estudiosos e simpatizantes do Positivismo em Pernambuco: Martins Júnior, Aníbal Falcão, Pereira Simões, Generino dos Santos, Antônio de Souza Pinto e Pereira Simões. Na Paraíba, em 1893, Venâncio de Figueiredo Neiva iniciou a publicação de sua longa série de artigos sobre o Positivismo, que se prolongou por mais de sete décadas. Em novembro de 1897, na Gazeta do Comércio, um grupo de positivistas publicou um artigo pela memória do fundador da República, Benjamin Constant. Continuou ele com intensa atividade na propaganda positivista com o Almirante Alfredo Morais e outros. Foi um dos fundadores do Clube Positivista do Rio de Janeiro. No Pará, em 1881, o crítico literário José Veríssimo publicou um opúsculo intitulado Emílio Littré (traços biográficos), onde expõe conhecimentos sobre o Positivismo, que, em parte, aceitava. Em Estudos da Literatura Brasileira, diz ele: A obra de Augusto Comte é dessas que se podem combater, mas não se podem negar. O seu valor é, sem exagero, enorme e sua influência, principalmente a não confessada, considerável. Nenhum filósofo lançou, jamais em qualquer domínio da atividade humana, tantas e tão profundas idéias, como nenhum talvez viu tão argutamente nesse profundo mistério que é a história. Fato interessante na vida de José Veríssimo: ele acompanhou Anatole France na visita que este fez ao Templo da Humanidade e O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE111

a Teixeira Mendes, no Rio de janeiro. Anatole foi também simpatizante da obra de Comte. Em 1898 constituiu-se em Belém do Pará um grupo positivista, que promoveu conferências sobre Augusto Comte e realizou algumas publicações. Finalmente, no Amazonas, entre os Estados do norte, um maranhense, primo de Teixeira Mendes, Dr. Domingos Teófilo de Carvalho Leal, formado em Ciências Sociais pela Universidade de Zurique, Suíça, exerceu sua atividade positivista, fundando em Manaus o Clube Republicano. Foi professor do Ginásio Amazonense e da Escola Normal. Com a Proclamação da República, Domingos Teófilo de Carvalho Leal foi aclamado Presidente da junta Governativa. Em colaboração com Ximeno de Velleroy, foi redator da Constituição do Amazonas, promulgada em nome da Família, da Pátria e da Humanidade, como a castilhista do Rio Grande do Sul. São Paulo foi um centro de efervescência positivista, tendo como foco principal a sua Faculdade de Direito, onde se digladiavam simpatizantes de Comte e fervorosos católicos. Um destes, Professor de Direito Romano, Dr. José Maria Correia de Sá e Benevides, tomista irredutível, quase não dava aulas sem preocupar-se com Augusto Comte.36 Numa delas deixou escrito: O positivismo é uma destas cousas que andam por aí espantando a todo mundo; positivismo não tem nada de novo, nada absolutamente, senão o nome, não é senão o pedantismo da forma e a audácia das conclusões, mas, no fundo, positivismo é, afinal de contas, Bacon, é afinal de contas, Aristóteles com suas variantes. Foi na década de 1880 a 1890 que tais embates atingiram seu auge, justamente ao tempo em que Assis Brasil e Júlio de Castilhos lá terminavam seu curso jurídico, tendo, especialmente o segundo,

36 - Na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tivemos exemplo semelhante com o eminente Professor Armando Câmara, catedrático de Introdução à Ciência do Direito, que em grande parte de seu curso se empenhava em contestar a Lei dos Três Estados de Comte. 112 MOZART PEREIRA SOARES

depois de haver fundado um jornal,A Evolução, participado de tais confrontos e exercido seu proselitismo político. Silva jardim, referindo-se, em suasMemórias, ao Dr. Benevides, informa: Terrível o Dr. Sá e Benevides! Tomara-se de uma raiva medonha contra o Positivismo e toda a ciência moderna. Adepto sincero e eloqüente do Syllabus, em discordância com a própria Academia, não obstante, espírito retrógrado da mesma, todos para ele eram positivistas, materialistas socialistas encapotados. A influência positivista na Faculdade de São Paulo refletiu-se em vários jornais: A Luta, A República, O Federalista, A Evolução, em que se iniciavam no jornalismo os contemporâneos de Júlio de Castilhos, Carlos de Mendonça, Afonso Celso Júnior, Borges de Medeiros, Vicente de Carvalho e Alberto Salles. A Luta era jornal de avançada feição positivista. Adotava o calendário de Comte. Nela colaboravam, entre outros, Rangel Pestana, Argemiro Galvão, Pedro Lessa, Assis Brasil, Campos Sales, Alcides Mendonça Lima, Martinho Prado Júnior e Américo de Campos. Em A Evolução ensaiou Júlio de Castilhos os seus primeiros passos no jornalismo para chegar à fundação, em Porto Alegre de 1884,A Federação, quando se tornou nosso mais destacado doutrinador político. Vulto de grande importância para o Positivismo em São Paulo foi Silva jardim. Nascido em 1860, em Capivari, Estado do Rio de Janeiro, faleceu aos 31 anos, caindo em uma fenda, nas proximidades do vulcão Vesúvio. Professor da Escola Normal de São Paulo, publicou vários livros: Idéias de Moço, Grito na Treva (em colaboração com Valentim Magalhães), Gente deMosteiro e Crítica de Escada a Baixo. Fez-se positivista em 1884, tornando-se adepto fervoroso da República, conforme confessa em suasMemórias. Em 1880, Abílio Marques edita em São Paulo a Biblioteca útil, com vários títulos ligados ao Positivismo. Ao lado de Pereira Barreto alinham-se vários outros nomes, que passam a seguir os ensinamentos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, cujas pregações se intensificam a partir dessa época: Nicolau França Leite, Joaquim Ribeiro de Mendonça, Júlio Ribeiro, Américo de Campos, Américo Brasiliense, Antônio Caetano de Campos e José Leão. Outro vulto importante é Lúcio de Mendonça, O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 113 amigo de Júlio de Castilhos e Lauro Sodré, tradutor de Lições de Política Positiva, do chileno J. V. Lastarria. Entre os paulistas ainda merecem menção Herculano Inglês de Souza, amigo de Silva jardim, Bernardino de Campos, Alberto Salles, o Senador Paulo Egídio de Oliveira Carvalho e o Professor João Pereira Monteiro. Alberto Salles deixou algumas obras diretamente inspiradas em Augusto Comte: Política Republicana (1883), de 573 páginas, o Catecismo Positivista (1885), e Ensaio sobre a Moderna Concepção do Direito. Nessa obra contesta Luiz Pereira Barreto, segundo o qual a jurisprudência não teria senão um destino transitório. Concordando com Augusto Comte sobre a fragmentação das grandes nações em pequenas pátrias, Alberto Salles publicou em 1887A Pátria Paulista, onde prega o separatismo. Em 1891, estampou Ciência Política, em que não só apóia, como defende conceitos de Comte sobre o assunto. Segundo Ivan Lins, Alberto Salles foi, no Brasil, o grande teorista da República, injustamente esquecido a partir de 1930, quando se acentuou entre nós a reação antipositivista. Mas está exigindo um estudo sério, como o que dedicou a Luiz Pereira Barreto, Roque Spencer Maciel de Barros. O Senador Paulo Egydeo de Oliveira Carvalho, político e advogado prestigioso, ministrou, em 1897, um Curso de Sociologia e, no mesmo ano, fundou o Instituto Sociológico de São Paulo. É vasta sua bibliografia jurídica vinculada ao Positivismo. Não só na Capital paulista, mas também no interior, atuaram positivistas: Joaquim da Silveira Santos, em Piracicaba; Sebastião Hümmel, em São José dos Campos; Luiz Bueno Horta Barbosa, Basilio de Magalhães, Francisco Mendes Vianna, Américo Brasiliense, Alberto Faria, Antônio Alves Lobo e outros, em Campinas; Manuel Alves Feitosa, em jundiaí, Araras e Piraçununga; Licurgo de Castro Santos, em Guaratinguetá, médico ilustre, excelente escritor, erudito e profundo conhecedor do Positivismo. Intelectuais de nomeada, poetas, prosadores, oradores, parlamentares ainda se apontam em São Paulo; entre eles,

Raymundo Correia, que manifesta sua simpatia pelo sistema de Comte numa apreciação a seu amigo Licurgo Santos, nestes termos: A subversão das instituições velhas, que antepõem outros domínios ao único legítimo: o da Ciência, há de se dever ao Positivismo, 114 MOZART PEREIRA SOARES

como a manifestação mais perfeita do raciocinio humano (grifei). Outro positivista importante daquele núcleo é o Embaixador do Brasil em Paris, Dr. Gabriel de Toledo Piza. O famoso jurista Professor Pedro Lessa definiu-se positivista em seu trabalho O Direito no Século XIX. A relação dos intelectuais paulistas simpatizantes do Positivismo, em todos os campos do saber, é muito longa. Para o arremate dessas informações, uma referência que não pode ser omitida: a de uma curiosa postura do Poeta Vicente de Carvalho, que se submeteu à disciplina ortodoxa de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, seguindo os preceitos do Apostolado Positivista do Brasil. Em 1895, aos 29 anos de idade, após deixar o posto de Secretário do Interior do Governo paulista, dirigiu uma carta aberta ao Diretor de O Estado de São Paulo, encimada pela divisa comtiana "Viver às claras", na qual desfaz o compromisso que assumira de continuar colaborando naquele acatado órgão, e comunica a resolução de "encerrar definitivamente a sua vida de jornalista". A certa altura, afirma: "Deixando a profissão de escritor, subtraio meu concurso pessoal à massa enorme de banalidade que perturba e dificulta a orientação do gênero humano (...)". Procurava diminuir assim, "o número considerável de agitadores estéreis e desordenadores da opinião, que desvirtuam, em todo mundo, o superior destino social da imprensa" (grifei). Durante a República, o Paraná tornou-se importante centro de propaganda positivista, em verdade começada pouco antes da Proclamação. José Mariano de Oliveira, que cursara a Escola Politécnica do Rio e pertencia ao Apostolado Positivista do Brasil, iniciou em 1885 uma propaganda da doutrina de Comte, quando se dirigiu publicamente ao Presidente daquela então Província, a propósito de uma lei sobre a obrigatoriedade do ensino. Seguiu-se ao proselitismo de Mariano de Oliveira a ação do Prof. Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, durante dezoito anos, quando exerceu as funções de juiz Federal na Capital paranaense. Transferindo-se para o Rio de janeiro, foi professor na Faculdade Livre de Direito, hoje integrada na Universidade do Brasil. Carvalho de Mendonça, amigo de Teixeira Mendes, era mineiro, de Santa Luzia do Rio das Velhas (2-12-1859) e falecido no Rio, em 1917. Diplomado em Direito, São Paulo, 1881. Aí se fizera O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 115

positivista. A relação de alguns títulos de seus trabalhos nos dá uma medida de sua familiaridade com as idéias contistas: "Esboço de filosofia positivista", série de artigos publicados na Tribuna Liberal, São Paulo, 1880, antes de se diplomar, portanto. São Paulo, fundador do Catolicismo. Estudo sobre a Arte em geral e apreciação de alguns poetas antigos sob o ponto de vista da doutrina positivista. O núcleo positivista do Paraná passou a ter maior desenvolvimento com o Deputado João Pernetta, seu filho Augusto, Oscar Corrêa e Oscar de Castilho. O primeiro biografou Miguel Lemos e Teixeira Mendes com a obra em três volumes intitulada Os doisApóstolos. Valiosa contribuição para a bibliografia positivista é a alentada obra de Augusto Beltrão Pernetta: Filosofia Primeira, Editora Laemmert Ltda., Rio de janeiro, 1957. Nesse volume trata das 15 leis da Filosofia Primeira, contendo a epistemologia positiva. Ao fim da obra, o autor apresenta um resumo dos programas das Sete Ciências da escala enciclopédica, o que constitui a Filosofia Segunda. Mais recentemente, a propaganda paranaense ficou a cargo do Prof. David Carneiro, criador de um importante museu histórico e

uma capela positivista em Curitiba e autor, entre outras obras, de Marcha doAteísmo, e de uma História da Humanidade através de seus grandes tipos, em sete volumes, no qual segue a nominata do Calendário Positivista. Seu filho David Carneiro Júnior, também já falecido, como o pai ilustre, continuou sua obra, secundado pelos professores Manuel Lourenço Branco e Paulo de Tarso Monte Serrat, atualmente (1998) em plena atividade, ao lado de Pedro Mendonça e Arthur Virmond de Lacerda Neto. No ano de 1990, com a colaboração dos Departamentos de Filosofia das Universidades públicas do Paraná, realizou-se em Curitiba o primeiro simpósio "Positivismo e Humanismo", presidido por David Carneiro Júnior, que organizou os Anais respectivos. Em Minas Gerais, o movimento foi o mais fraco entre todos os grandes Estados brasileiros, talvez pela tradição doméstica fortemente católica. Entretanto, assinala-se em 1884 a existência na Capital Mineira de um jornal intitulado Ordem e Progresso e a presença posterior- 116 MOZART PEREIRA SOARES

mente de grupos de professores simpatizantes de Conte, na Escola de Minas de Ouro Preto e na Escola Politécnica, que, segundo verberava Andrade Figueira, na sessão da Câmara dos Deputados de 24 de abril de 1882, eram "viveiros de positivistas e materialistas, de um pessoal que não foi suficientemente preparado no ensino filosófico de Sócrates, de Platão e dos grandes espíritos da humanidade..." Entre os positivistas dessa época, em Minas, cita-se Aristides Maia, diplomado em Direito pela Faculdade de São Paulo, primeiro chefe de Polícia no Estado de Minas após a Proclamação da República, o Dr. Policarpo Viotti, médico, estudioso das águas minerais de Minas e o positivista de maior destaque daquele Estado, nesses tempos, o Presidente João Pinheiro. João Pinheiro, nascido, como Júlio de Castilhos, Silva Jardim e Martins Fontes, em 1860, figura entre os principais próceres do Positivismo, não só em Minas Gerais, seu Estado Natal, de que chegou a Governador, mas também do Brasil. Manteve-se, vida em fora, fiel à doutrina de Conte. Um ano antes de falecer, tornou claro não ser católico, fato que explica ausência de qualquer sacerdote como assistente religioso. Conta-se que a 6 de agosto de 1907, quando presidente do Estado, num banquete realizado em Mariana, em homenagem a Dom Silvério, por motivo de sua elevação a Arcebispo, Pinheiro, seu exaluno, declarou frente a dezenas de sacerdotes, numerosos bispos e o Cardeal Arcoverde, que ele teria omitido um dever de afeto se não fosse pessoalmente prestar homenagem ao chefe da religião que fora de seus pais e era a de seus filhos, rejuvenescida na República, dentro da Pátria livre. Há mais: como Presidente do Estado, dirigiu a seu chefe de Polícia, Dr. Olavo de Andrade, uma carta sobre a separação entre a Igreja e o Estado, como se sabe, uma questão essencial para a Religião da Humanidade.

11. O APOSTOLADO POSITIVISTA E A RELIGIÃO DA HUMANIDADE

No início da segunda metade do século XIX, quando Augusto Conte havia praticamente finalizado a elaboração de sua obra, a Capital brasileira era um ativo centro de efervescência intelectual. Aí se encontravam as principais instituições de ensino público e particular, os maiores órgãos de imprensa, bibliotecas, associações científicas, entre as quais: o Ginásio Pedro II, padrão nacional, Es- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 117

Os fundadores da Igreja Positivista do Brasil: Miguel Lemos e Teixeira Mendes, fotografados no Coro do Templo da Humanidade, na transição do século XIX para o XX (31-12-1900).

cola Normal, Colégios Militares e São Bento, Colégio Abílio, do Barão de Macaúbas (que fora Diretor do Ginásio Baiano, dos alunos Castro Alves e Rui Barbosa, e de Raul Pompéia, entre outros, no Rio), o Instituto dos Cegos e Surdo-Mudos (dirigido por Benjamin Constant), o Liceu de Artes e Oficios, o Liceu Literário Português. Entre as Faculdades figuravam as de Medicina e Farmácia, de engenharia, de Guerra, Marinha, Belas Artes, além do Museu Nacional, do jardim Botânico, Instituto Histórico e Geográfico, Academia de Medicina, Instituto Politécnico, Sociedade de Belas Artes, Instituto de Música e outros. Havia ainda os Clubes de Engenharia, Clube Naval, Militar. Como bibliotecas salientavam-se a Nacional, a Municipal, a Fluminense, a da Marinha, do Exército e o Gabinete Português de Leitura. A elite cultural, médicos, advogados, engenheiros, parlamentares, empresários, jornalistas, professores e homens de letras, viajavam a Paris, Meca do saber, de onde nos vinham os livros e as idéias que então agitavam o mundo. O Rio de janeiro era, ainda, não só a capital administrativa e política nacional, mas ainda a capital social e científica, em que se debatiam as conquistas vindas de além-mar e as questões nacionais do pensamento abolicionista e republicano emergentes, dois pos- 118 MOZART PEREIRA SOARES

tulados acirradamente defendidos pelo Positivismo que invade a Corte, a partir, principalmente, do fim da guerra com o Paraguai. Nessa atmosfera se prepara o advento do Apostolado Positivista do Brasil. Foi este sucessor da Sociedade Positivista fundada em 1876 pelo Dr. Antônio Carlos de Oliveira Guimarães, e integrado por Benjamin Constant, Dr. Joaquim Ribeiro de Mendonça, Álvaro de Oliveira, Luiz Pereira Barreto, Oscar de Araújo e outros. Em 1881, Miguel Lemos e Teixeira Mendes coordenaram a fundação do Apostolado Positivista, cuja preocupação fundamental como a própria instituição está a indicar, foi religiosa. Augusto Comte, em carta a um de seus mais fiéis discípulos, observava que o Positivismo, pela sua natureza altruística, poderia inspirar adesões entusiásticas, porém nunca fanatismo. Foi o que os funda dores do Apostolado não souberam evitar. Antes, exageraram nessa direção, como atestam seus Estatutos: Todos os membros e aderentes do Apostolado Positivista tomam o compromisso solene de conduzir-se de acordo com suas opiniões e de consagrar toda a sua atividade e todo o seu devotamento à incorporação do proletariado na sociedade moderna, resumo de toda a ação positivista. De um modo mais explícito, comprometem-se: 1º) a não ocupar cargos políticos; 2º) a não exercer funções acadêmicas, quer no ensino de nossas faculdades e escolas superiores, Instituto Nacional e estabelecimentos congêneres, quer como membros de associações científicas ou literárias; 3º) a não colaborar no jornalismo, diário ou não, nem auferir lucros pecuniários de seus escritos. O autor desse documento tão radical, que certamente contribuiu para afastar inúmeros adeptos potenciais, foi Miguel Lemos, de acordo, diz Ivan Lins, com o que ele supunha decorrer dos ensinos e preceitos de Augusto Comte, que não foi tão exigente para com o ingresso de candidatos na Sociedade Positivista por ele fundada em Paris. E até cita-se o fato de ter apoiado seu discípulo Dr. Segond, quando este se apresentou ao concurso de Professor Adjunto da Faculdade de Medicina de Paris. E fez mais: chegou a escrever a um Senador pedindo-lhe recomendasse Segond a alguns de seus examinadores... O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 119

O radicalismo de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, quanto ao ingresso de candidatos ao Apostolado, só se aplicaria, segundo o próprio Comte, aos Sacerdotes e outros servidores categorizados daquele grêmio religioso, e nunca ao aderente comum. Por esse motivo, inúmeros vultos do Posítivismo nunca pertenceram à Igreja do Amor Universal. De outro modo, Benjamin Constant não seria o eminente professor público, tão influente sobre seus discípulos que o ajudaram a fundar a República Brasileira; Júlio de Castilhos não teria fundado A Federação, através da qual se transformou no jornalista político dos mais importantes que o Brasil já teve. Alguém, perguntando a Teixeira Mendes o que pensava ele de Borges de Medeiros, obteve a resposta de que o nosso notável governante devia renunciar ao Governo Rio-Grandense, para dedicarse à propaganda do Positivismo... Outra questão que muito contribuiu para desacreditar o Apostolado, foi a da vacina obrigatória, que eles chamaram despotismo sanitário. A questão não seria de caráter meramente biológico, mas espiritual: obrigar, quem quer que fosse, a vacinar-se seria, no mínimo, uma grave infração à liberdade individual. É preciso convir, no entanto, que, entre os próprios positivistas havia fundas divergências nesse particular. Se os ortodoxos, à frente dos quais o Diretor do Apostolado Miguel Lemos e o Vice, Teixeira Mendes, retrucavam que a vacinoterapia (então em seus primórdios, sem a segurança técnica de nossos dias) não era um procedimento livre de contestação científica, Luiz Pereira Barreto contra-atacava: não tendo o povo condições de discernir sobre o que mais convém à saúde pública, impõe-se até o despotismo sanitário. Duas condições ele reunia para isso: a de Médico formado na Bélgica e o conhecimento de eficácia da profilaxia da raiva canina, segundo Pasteur, cuja obra ele conheceu na Europa. A campanha do Apostolado em desfavor da vacinação pode não ter sido impopular, visto que apelava para o zelo de cada um por si próprio, até mesmo pelo alarme. Mas era, sem dúvida, inconveniente à coletividade. Nas doenças infecto-contagiosas, sobretudo, os portadores de agentes patógenos seriam fontes disseminadoras do mal respectivo. Transcorrido quase um século da infeliz pregação do Apostolado e diante dos avanços da imunologia moderna, ninguém mais tem dúvida quanto aos benefícios da vacinoterapia. Basta considerar a erradicação das mutilações outrora irreversíveis, como as da 120 MOZART PEREIRA SOARES

paralisia infantil (melhor, da poliomielite, visto que não atinge apenas crianças) ou a profilaxia dos rebanhos, no caso da febre aftosa, que nos trazia dois sérios prejuízos: primeiro, praticamente eliminava as safras dos criadores, depois nos suprimia os mercados do exterior, impedindo-nos de exportar excedentes do consumo interno, o que comprometia nosso progresso agropecuário. Para o Professor Cruz Costa, em sua excelente Contribuição à História das Idéias no Brasil, a segunda metade do século XIX marca o momento de maior transformação da história brasileira. É nessa época, apesar do caráter fortemente conservador do Império, que ressoa em nosso país apolifonia das novas correntes filosóficas européias. Entre os vários movimentos intelectuais que influenciam as elites brasileiras surge o Positivismo. Pedro Calmom, em Vida e Amores de Castro Alves, afirma que 1862 seria o ano do Positivismo entre nós. Esquece que, antes do nascimento do Poeta (1847) Justiniano de Silva Gomes defendia sua tese positivista na Faculdade de Medicina da Bahia (1844), onde seria lente o Dr. Antônio José Alves, pai de o Cantor dos Escravos. Para o Professor João Cruz Costa, esse revoar das idéias novas aqui não se deve a representantes das camadas populares, embora fulgurantes, mas herdeiros de comerciantes e burocratas surgidos nas aglomerações urbanas, vindo ombrear com os descendentes de senhores de engenho e fazendeiros de café.

Pois, diz ele, as camadas populares ainda não estavam em condições econômicas capazes de galgar as barreiras que os separavam das elites do país. Os representantes dessas novas elites do Século XIX são a expressão de uma outra modalidade de burguesia, que se opõe à tradicional. Foi nessa atmosfera que surgiu e firmou-se entre nós o Positivismo. Sua expressão maior foi, sem dúvida, o Apostolado. Apesar da severa disciplina imposta a seus adeptos e dos excessos de misticismo, ainda assim a obra por eles encetada em favor, como repetiam, da regeneração humana, foi realmente notável. Em parte isso se deveu ao alto valor moral de seus dois grandes mestres. De acordo com os Estatutos, não podiam os positivistas colaborar na imprensa. Nisso eles seguiam à risca a opinião de Comte, segundo a qual, "enquanto a imprensa não estivesse entregue a um sacerdócio esclarecido, devia morrer à míngua de alimento". Estavam, como se vê, diante de um dilema: não devendo exercer o jornalismo, não poderiam propagar suas idéias. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 121

Não lhes convindo dispensar o concurso da imprensa, recorreram a publicações pagas, em forma de a pedidos, com a vantagem de salvaguardar sua completa independência. Com admirável constância e inteiro desassombro, escreveram sobre todos os assuntos de caráter local ou universal. Mais tarde, ambos, Diretor e Vice do Apostolado, e mais um pequeno número de adeptos, tão aguerridos como os dois primeiros, passaram a elaborar folhetos, opúsculos e livros, que hoje formam uma verdadeira biblioteca, somando mais de mil títulos. É verdade que a intransigência do grupo do Apostolado foi afastando de seu grêmio muitos adeptos do Positivismo que atuavam no jornalismo ou no ensino. Mesmo assim, o saldo de sua ação é considerável. Entre as campanhas em que se empenharam figuram, em primeiro lugar, todas as formas e fórmulas de liberdade, a começar pela abolição da escravatura - e o que é mais importante: sem indenização aos proprietários dos servos, essa indignidade de procedimento que, em nossos dias, desperta tanto repúdio. Bateu-se, em pleno Império, pela República Federativa, opondo-se abertamente à centralização monárquica. Uma das questões em que mais se empenhou foi pelo amparo ao nosso proletariado, então entregue à exploração egoística de mentalidade residual dos senhores de escravos. Nesse sentido, há uma publicação de Teixeira Mendes (Folheto 348, da Igreja Positivista) na qual defende ele a adoção de medidas políticas com o fim de salvaguardar a família proletária contra o empirismo industrialista. Entre as medidas que ele pleiteava, figuram muitas das que hoje fazem parte da legislação trabalhista. Veja-se como está aí o germe das disposições propostas pelo positivista Lindolfo Collor, a serviço de Getúlio Vargas: adoção do regime de oito horas de trabalho diário; salário mínimo; repouso semanal remunerado; férias anuais (de quinze dias); uso obrigatório de máquinas que pudessem aliviar o esforço físico dos operários em circunstâncias especiais, etc. Longo é o elenco de liberdades, além das individuais, de ir e vir, de ter (inclusive do próprio corpo), de expressar-se, de caráter mais coletivo, como a de reunião, de ensino, de profissões, de greve, a de imprensa. Exemplar, nesse sentido, esta, referida por Ivan Lins: quando, logo após a Proclamação da República, o Governo Provisório, através de medida de cerceamento, acarretou o fechamento do jornal monarquistaA Tribuna Liberal, de que era redator Carlos Laet, um único protesto se registrou em todo o país: foi o do Apostolado 122 MOZART PEREIRA SOARES

Positivista pela voz de seu Diretor, na Secção Livre de O Jornal do Comércio, de 25 de dezembro de 1889. Acusa-se o Positivismo de haver determinado uma "paizanização" do

Exército, pelo seu caráter de doutrina pacifista. Nada mais apropriado do que atentar-se, a esse respeito, para a opinião de um militar de escol, o Gen. Tasso Fragoso: Argúem-no (o Positivismo) de intervenção maléfica em o novo regime e notadamente no espírito militar do país. Não sou desse parecer. Pode-se discordar dos princípios positivistas, ser hostil à doutrina de Augusto Comte, mas ninguém pode negar que, pelo menos em certas questões, foi proveitosa a sua influência. Basta a confirmá-lo o que se passou com respeito à separação da Igreja e do Estado... Houve também quem se revoltasse contra a influência da doutrina comtiana sobre o espírito de certos oficiais, que, na opinião dos censores, desdenhavam a profissão, sonhando com a paz universal e a transformação do Exército em polícia. É certo que existiam no seio da força armada alguns discípulos confessos do Positivismo ou apenas simpáticos a ele. Nunca, todavia, periclitou com isso a defesa nacional. Ao contrário, procederam de modo que ninguém mais do que alguns deles deu maiores provas de amor ao país e soube morrer por ele. Escrevendo estas linhas, tenho em mente o General Rondon e a sua obra nas fronteiras do Brasil. Quem mais do que ele e seus abnegados companheiros patenteou maior bravura na paz? Pois não é bravura afrontar o desconhecido, sofrer intempéries e morrer quase ignorado no sertão longínquo? Onde se cultivam melhor os sentimentos elevados que animam os verdadeiros guerreiros - ali ou na faina pacífica e segura dos quartéis? Dezesseis oficiais lá ficaram para sempre, pagando com a vida a sua fé no porvir do Brasil. Só ultimamente se começa a fazer-lhes tardia justiça. O POSITIVISMO NO BRASIL 123

Ouvi outrora conceitos desfavoráveis à obra e aos companheiros de Rondon, e sempre contra eles levantei com energia o meu protesto. Conheci além disso oficiais positivistas ou simpáticos ao Positivismo, que cumpriam pontualmente os seus deveres militares. Aliás forçoso é reconhecer que qualquer doutrina capaz de desenvolver os mais nobres sentimentos da alma humana, também é apta a preparar defensores da pátria, quando deles haja mister. Não devemos esquecer o judicioso pensamento de Diogo do Couto: "...a guerra não se faz com invenções, mas com fortes corações.' O Catolicismo também é contra a guerra, no entanto são numerosos os sacerdotes católicos que se bateram com denodo na guerra de 1914; muitos desses apóstolos da paz estão agora prontos a defender a França nas obras da linha Maginot. Certos militares, pompeadores de bravura fora de perigo, atassalham Benjamin Constant por causa de suas idéias pacifistas. Realmente ele anelava pela paz universal. Disse-o publicamente, sem constrangimento, na célebre recepção aos oficiais chilenos na Escola Militar. O momento era adequado para preconizar a fraternidade americana; e daí seu espírito altruístico ascendeu rápida e intensivamente a plano superior. Quando das manifestações que lhe fizeram os oficiais da 2ª brigada e seus alunos da Escola Superior de Guerra expressou-se desta maneira: - Estando velho e alquebrado, não poderia assistir ao que estava reservado, para aquela mocidade, que ali se achava, presenciar o que para ele era um verdadeiro sonho: a confraternização da América, cujas tendências são muito pronunciadas, e a deposição das armas nos museus, para que as gerações vindouras pudessem admirar com horror o longo período de barbaria, que vem desde as origens da Humanidade, transfor- 124 MOZART PEREIRA SOARES

mando os elementos de progresso em instrumentos de destruição e os fins da ciência, que é destinada ao aperfeiçoamento e bem-estar da humanidade, em fornecedora dos elementos de carnificina e destruição. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 125 Capítulo V O POSITIVISMO NO RIO GRANDE DO SUL

1. O AMBIENTE POLÍTICO

Depois do Rio de janeiro, foi o Rio Grande do Sul o Estado brasileiro em que o Positivismo atingiu seu mais expressivo desenvolvimento. Suas manifestações aqui não se limitaram a um ou outro aspecto do sistema comtiano, mas abrangeram sua totalidade: foram políticas, científicas, religiosas e, ainda, estéticas. Em todas essas modalidades foram indeléveis as marcas deixadas pela doutrina, em suas instituições e monumentos. Ao longo de sua vida cívica, o Rio Grande do Sul tem pagado severos tributos à atividade bélica. Foi assim desde seu alvorecer nas lutas de fronteiras entre Espanha e Portugal, pela posse do Estuário do Rio da Prata. Durante praticamente um século mantivemos a Colônia do Santíssimo Sacramento, origem da cidade uruguaia de Colônia. Os portugueses somente abandonaram a empresa mediante a negociação que lhes rendeu cerca da metade do território gaúcho atual. Sucederam-se inúmeros conflitos finalizados com a Campanha da Cisplatina, em que se definiu a raia meridional do Brasil. Mal serenados os embates externos, passamos a enfrentar agitações internas, como a Revolução Farroupilha, que iria desorganizar a jovem província gaúcha durante dez anos. Ainda não havíamos nos recomposto dos naturais retrocessos de uma tão longa perturbação da ordem, quando um novo confronto externo, a Guerra com o Paraguai (1865-1870), transformou o Estado sulino num de nossos principais campos conflagrados. Depois foi a hora do episódio mais sangrento de nossa evolução e diretamente ligado ao tema que estamos examinando: a Revolução Federalista de 93, cujo claro objetivo foi a derrubada do Governo positivista de Júlio de Castilhos. Trinta anos depois teríamos um retorno daquele movimento, na Revolução de 1923, cujo alvo era ainda suplantar o domínio castilhista instituído pela Constituição de 14 de julho de 1891. O ano seguinte ao Pacto de Pedras Altas, que encerra o desentendimento de 23, Luiz Carlos Prestes inicia em Santo Ângelo sua 126 MOZART PEREIRA SOARES

epopéia militar, origem da maior marcha bélica da história brasileira. Estávamos à véspera de um outro ciclo de pronunciamentos militares que levariam o Rio Grande ao comando nacional, através de Getúlio Vargas. Assumindo a chefia do Governo Provisório, na Revolução de 1930, manteve-se no poder com intermitências e por várias fórmulas políticas, até seu suicídio, a 24 de agosto de 1954. Paradoxalmente, foi no bojo dessas crises ou em conseqüência delas que se organizaram nossas mais importantes instituições políticas e culturais, o Positivismo inclusive.

2. A LUTA PELA CULTURA

O mais enfático dos pronunciamentos políticos do Rio Grande, até o presente, foi a Revolução Farroupilha. O historiador gaúcho Gen. Souza Docca reconhece-lhe a autenticidade, visto ter sido ela movida por um ideal. De fato, suas intenções foram não apenas uma profunda mudança de sentimentos e costumes, mas ainda de regime político, tendo chegado à criação de uma República dentro do Império brasileiro. De seu exame verificam-se curiosas aproximações, podemos até dizer identificações com os ideais positivistas, em mais de um

aspecto. Não diríamos que se tratassem de conquistas intencionais, mas de coincidências, vista a simultaneidade de realizações entre o extremo meridional do Brasil e da Europa nas primeiras décadas do Século XIX. Nosso movimento processou-se justamente durante os anos em que Augusto Comte elaborava sua obra fundamental. A Revolução, que abrange o período de 1835 a 1845, envolve o lapso em que o filósofo redigiu o Curso de Filosofia Positiva: 1830-1842. Por esse motivo, essencialmente, não teriam suas lições ensejo de atingir, com intensidade suficiente, nosso meio para criar, aqui, um clima de aceitação plena de sua ideologia. Trata-se, pois, de simples superposição de datas. Curioso ainda o fato de haverem os Farrapos organizado uma pequena pátria, baseada no regime republicano federativo, tendo convidado as províncias imperiais, que adotassem o mesmo sistema político, a se reunirem a eles, numafederação, conservando, assim, sua autonomia. Nada mais coincidente. Como divisa política: Liberdade, igualdade, humanidade, também adotados pelo sistema comtiano. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 127

Diferenças podem ser apontadas e a maior delas está em que, em seu projeto de constituição, consta como religião do Estado o Catolicismo. Como se vê, um dos postulados fundamentais da política positiva, a separação dos poderes temporal e espiritual, ainda não havia criado corpo. Desse modo chegaram eles a sonhar - pelo menos isso aparece em seu programa político - com uma universidade estatal, estabelecendo regalias para os cidadãos capacitados que a ela, acaso, desejassem dedicar-se. Ao lado disso, grandes eram suas preocupações com a educação popular. Durante a Revolução Farroupilha, a Província de São Pedro praticamente não tinha escolas públicas. A população, de uns 160.000 habitantes, compunha-se principalmente de analfabetos, e um reduzidíssimo número de pessoas instruídas pertencentes às forças armadas, de alguns engenheiros e bacharéis em Direito da administração pública, alguns médicos e uns poucos padres, entre os quais se encontravam os professores das famílias principais. Em 1829 o Conselho Administrativo da Província propunha à Assembléia Geral a criação de 28 cadeiras de primeiras letras que, em 1830, ainda não haviam sido instaladas. Finalmente, em 1835 contávamos com 6 aulas em pleno funcionamento e mais 40 criadas, das quais poucas foram instaladas. Causas desse insucesso: a falta de professores habilitados e a remuneração desencorajadora. Como sempre! Muito natural que, no ambiente conturbado que a Província viveu durante o decênio revolucionário, os assuntos de instrução pública fossem relegados a um segundo plano. Convém assinalar, no entanto, o notório interesse rio-grandense pela questão, de que é documento a legislação pela qual "coube ao Rio Grande do Sul, escreve Mabilde, a primeira iniciativa oficial, no Brasil, de amparo ao Ensino Profissional, numa época em que o mesmo mal se esboçava, em realizações isoladas de particulares"

.37 No segundo ano da Guerra dos Farrapos, em pleno regime monárquico, a Assembléia da Província de São Pedro do Rio Gran de do Sul promulgou a Lei nº 12, de 19 de dezembro de 1838, quase desconhecida atualmente entre nós, mas de tal importância, que vale a pena citar seus principais artigos:

37 - Mabilde, Eivlys - Planejamento para as Escolas Técnicas do Rio Grande do Sul, Superintendência do Ensino Profissional. P. Alegre, 1952. Datilografado. Inédito. 128 MOZART PEREIRA SOARES

Art. 1º - Haverá na Capital da Província um colégio de Artes Mecânicas para o ensino de órfãos pobres, expostos e filhos de pais indigentes que tiverem chegado à idade de dez anos sem conseguirem alguma ocupação útil. Art. 3º - A cada um dos moços que forem recolhidos ao Colégio, se abonará pelas rendas provinciais cento e sessenta réis diários, para suas despesas, por todo o tempo de ensino. Não se descuidou o legislador com o respeito à liberdade dos oficios escolhidos: Art. 6º - Para aplicação dos aprendizes a cada um dos ofícios mecânicos que se ensinarem, será consultada sua inclinação. Por seu turno, o realismo deste programa está bem à mostra neste artigo 1º: - Serão por hora unicamente criadas aulas que forem mais acomodadas às necessidades locais da Província. Promulgada essa Lei durante um período anormal, como o decênio farroupilha, não era de se esperar dela resultados práticos. Na verdade, só após a proclamação da República é que o ensino profissional veio a desenvolver-se entre nós. Data de 1909 o Decreto nº 7566 de Nilo Peçanha pela qual se criam Escolas de Aprendizes artífices em 19 Estados da Federação. O Rio Grande do Sul não foi, então, contemplado, visto já possuir a Escola de Artes e Ofícios (posteriormente Parobé), que passou a ser subvencionada pelo Governo da União. A Constituição Farroupilha, de outro lado, reflete as preocupações dos revolucionários para com a educação do Povo, como se verifica pelos seguintes tópicos do Projeto impresso no Alegrete em 1843: Artigo 228: A Constituição também assegura e garante: 2) a instrução primária e gratuita a todos os cidadãos; 3) colégios, academias e universidades onde se ensinem as Ciências, Belas Letras e Artes. Numerosas são as intervenções do Governo a favor da Instrução Pública: em oficio de 1838, solicita às Câmaras Municipais a instalação de "tantas escolas de primeiras letras, quantos os lugares notáveis do seu município". Acentuada a escassez de recursos do Tesouro da República, apelam para o civismo dos futuros professores no sentido de aceitarem seus encargos sem remuneração compensadora. Pensam numa biblioteca e instalam, em 1839, um "Gabinete de Leitura" em Caçapava, a 2ª Capital farrapa. Note-se que o pioneirismo dos farroupilhas em relação a todo o país, preocupando-se com a instrução primária generalizada e gra- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 129

tuita, agasalhando em sua Constituição a Universidade (o Brasil estava quase a um século dessa idéia) e, mais, concedendo a quem estivesse matriculado em qualquer aula nacional isenções do serviço de primeira linha da Guarda Nacional e da Polícia das povoações e distritos do Estado e, ainda, conferindo cidadania rio-grandense aos estrangeiros que sintonizassem com as idéias farroupilhas e tivessem conhecimento para o exercício do magistério nas Universidades livres, academias ou cursos jurídicos do Estado. Não é de se admirar que eles tenham pensado em cursos jurídicos (instalados no Brasil desde 1827), tendo pela frente os problemas da organização de um Estado soberano. A imprensa farroupilha é chamada a colaborar. O jornal O Povo, de caráter político e literário, transcreve dois artigos de Americus (Miguel Calmom du Pine Almeida, Marquês de Abrantes) sob os títulos: "Idéias elementares sobre um sistema de educação nacional" e "Vantagens e necessidades da educação pública". Grande ação a favor da instrução pública desenvolve o Ministro do Interior e da Fazenda, Domingos José de Almeida, considerado "o cérebro da Revolução". Deve-se creditar ao Partenon Literário, sociedade fundada em Porto Alegre, a 18 de junho de 1868, iniciativas culturais de excepcional importância, sobretudo em função da época e do meio em que surgiram. Comecemos pelo mérito de agremiar todos quantos na Província mais meridional do Brasil se dedicavam à vida intelectual, sem discriminações. Agasalhou poetas e prosadores, contistas, romancistas, ensaístas, homens e mulheres, livres-pensadores, agnósticos, teatrólogos, jornalistas, políticos, sacerdotes, professores, militantes abolicionistas, ou

republicanos nascentes. O ecletismo das tendências de seu ativo elenco reflete-se nos temas abordados pelos colaboradores da revista mensal daquela sociedade, publicada por dez anos. Sua leitura nos revela como nossa estremadura belicosa estava ao par das conquistas mentais daquela época e, por sua vez, criava um clima favorável ao surto do Positivismo. Entre as várias tendências desse elenco foi encontrar Guilhermino Cesar o primeiro positivista, a escrever sobre sua doutrina entre nós. É Augusto Luiz, autor do trabalho "Duas palavras sobre Literatura", publicado na revista mensal do Partenon Literário, ano 3º, outubro 1874, págs. 150-156, onde apresenta a doutrina de Comte como novidade, proscreve a metafísica e propõe a "unificação das religiões em torno de uma só religião e da filosofia em torno de uma só filosofia". 130 MOZART PEREIRA SOARES

Acredita o autor da História da Literatura do Rio Grande do Sul ter sido esta a primeira vez que se anunciou na Província, em termos explícitos, a filosofia de Augusto Comte, para tirar dela as conclusões literárias, cujas linhas conduziram à "poesia científica", tentada mais tarde por Damasceno Vieira e outros. "Dentre as condições favoráveis ao florescimento, entre nós, do comtismo ortodoxo, apontam-se várias causas, umas de ordem sociocultural, outras de ordem política, mas até agora não se inventariou a ação pessoal dos precursores, na verdade todos aqueles que, inconscientemente, desprovidos de cultura filosófica, abraçaram a evolução da ciência como a ultima ratio do processo cultural." Há, entretanto, fatos exteriores que podem ser apontados como favoráveis à implantação do comtismo. E, entre elas é muito evidente, a influência da Escola Central através da Escola Militar de Porto Alegre.38 Esse educandário contava em seu quadro de professores, exdiscípulos e amigos de Benjamin Constant, que seguiam o ideário positivista do antigo mestre. Foram eles o grupo memorável que viera a fundar em Porto Alegre, a 10 de agosto de 1896, uma das mais extraordinárias organizações de ensino técnico, no Brasil, que examinaremos oportunamente. Foi no Colégio Militar de Porto Alegre que se organizou o primeiro curso superior do Rio Grande do Sul.39 Cerca de um lustro depois que Augusto Luiz publicou seu artigo no Partenon, foi a vez de Graciliano Alves de Azambuja, autor de Lições de Filosofia Elementar, divulgadas inicialmente pela Gazeta de Porto Alegre (1880), que adota uma postura tipicamente positivista, condenando veementemente a Escolástica e não admitindo, como a metafisica, as questões ociosas (em termos comtianos), como a indagação das origens e das causas finais, "inteiramente inacessíveis à inteligência humana". Como influências externas que, entretanto, vieram aqui florescer completamente, podemos apontar a contribuição sobretudo política, da geração de Júlio de Castilhos. Tendo sua formação jurídica na Faculdade de Direito de São Paulo, entre 1880-84, quando

38 - César, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul, Coleção Província. Globo. Porto Alegre, pág. 171. 39 - Medeiros, Laudelino. Escola Militar de Porto Alegre. Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1992, pág. 15. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 131

na Pauliceia pontificava Luiz Pereira Barreto, Castilhos certamente foi marcado de modo indelével por seu proselitismo, inclusive em sua indiscutível heterodoxia.

3. JÚLIO DE CASTILHOS E SUA GERAÇÃO

Sob a influência carismática de Júlio de Castilhos e correligionários contemporâneos, o Positivismo, em seu aspecto político, atingiu um dos mais altos níveis logrados pela doutrina de Comte no Brasil. Apesar de bastante fiel aos preceitos da Política Positiva, descurou-se de outros aspectos do Positivismo. Tendo palmilhado devotadamente o Curso de Filosofia Positiva, ao qual se reportava freqüentemente em seus escritos, não foi membro da Igreja da Humanidade, embora freqüentasse as pregações dominicais do Apóstolo Teixeira Mendes. E o fazia, ao lado de João Pinheiro, outro caso de heterodoxia semelhante ao seu. Júlio Prates de Castilhos nasceu a 29 de junho de 1860, na Fazenda da Reserva, propriedade da família, situada no antigo Município de São Martinho, Rio Grande do Sul. Na infância e adolescência, conheceu as vicissitudes da vida simples e sem luxo da campanha gaúcha, regra naqueles tempos até para as famílias ricas. Tornou-se órfão de pai com pouco mais de dez anos, o que não impediu, antes acentuou sua vinculação afetiva com as tradições campesinas de lutas e sacrifícios, que começou a viver, ao lado da corajosa mãe, sua primeira mestra. O inventário da fortuna paterna deixou Castilhos em condições não só de custear seus estudos até o curso superior, como sustentar suas atividades futuras, inclusive políticas. No Colégio Fernando Gomes, então o melhor de Porto Alegre, completou o curso secundário, os preparatórios da época. Aos dezesseis anos ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, onde provavelmente não conheceu as boêmias de estudante. Ao contrário, foi excepcionalmente aplicado, não só às matérias do curso, mas sobretudo às questões filosóficas, políticas e sociais de sua futura vida cívica. Diplomado aos 21 anos, trazia para Porto Alegre, onde pretendia advogar, definidos os ideais em cuja prática desde muito cedo se iniciara: o combate, pela imprensa, à escravatura, à monarquia e a pregação republicana. 132 MOZART PEREIRA SOARES

Júlio de Castilhos.

Aos 19 anos, quando ajudou na formação do jornal estudantil A Evolução, já nos mostra perfeita consciência de seu oficio, criticando o artigo inicial de outra folha, A República, onde se lê: ???Al Evolução quisera ver nele mais idéias e menos palavras, a concisão enérgica de um espírito profundamente apoderado da verdade de uma idéia - e não os arrebatamentos de imaginação, que podem agradar, seduzir mesmo, mas são incapazes de gerar convicções sérias e vigorosas. Do casamento com Honorina Costa nasceram, a partir de 1884, quatro filhas e dois filhos, quase à razão de um por ano.40 O casamento trouxe-lhe a tranqüilidade doméstica, a assistência afetiva e o apoio moral de que necessitava para o desempenho

40 - Franco, Sérgio da Costa -Júlio de Castilhos e sua Época - 2ª edição - Editora da Universidade, pág. 27. O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AU CUSTO COMTE 133

de sua obra cívica, especialmente tendo-se em conta seu temperamento reservado, como geralmente o retratam. Personalidade carismática, Júlio de Castilhos apaixonou e dividiu. Sincero até a rudeza, duro com adversários, incapaz de "transigências estéreis" (a expressão é

sua), filtrou, depurou e decantou suas amizades de modo a cercar-se de elementos fiéis, aos quais, por sua vez, premiou com indefectível lealdade. Valorizando ao extremo os que lhe eram caros e afastando sem contemplações os que o negavam, constituiu sua legião de adeptos exaltados e de enérgicos opositores. Era avesso a expansões mundanas, não porém insociável, nem incapaz de efusões efetivas. O agnosticismo e a fidelidade ao Positivismo nunca deixaram dúvidas a seu respeito. No entanto, teve uma clara manifestação venerante para com o Catolicismo, expresso num outro de seus instantâneos anímicos, ao mesmo tempo um espelho de sua postura ética: a "Carta à devoção do Menino Deus", na qual se lê: "(..) creio ,firmemente que não deve decrescer, um só instante, o sincero respeito tributado à Igreja Católica, atentos e relembrados sempre os serviços imortais que a tornam Credora legitima da perenegratidão humana". O ano de 1884 é divisor de águas na vida de Castilhos. A 1º de janeiro desse ano circula o número inicial de A Federação, órgão oficial do Partido Republicano, que ele ajudou a fundar e viria a ser sua arena de combate. Durante quatro anos manteve-se à frente do jornal, ao cabo dos quais pleiteou uma licença para tratar de interesses particulares. Refugia-se então com esposa e filhos na Fazenda da Reserva, que ainda não pudera atender como desejara e necessitava. Numa carta a Pinheiro Machado, informa queA Federação estivera a pique de interromper sua continuidade, o que, a seu ver, comprometeria até a existência do Partido, mas fora salva. Essa carta também nos dá conta do trabalho que o jornal lhe exigia, obrigando-o a redigi-lo quase só, "desde o artigo de fundo até a última linha do noticiário". A 5 de agosto de 1889 reassume seu posto de redator. Entrementes, a propaganda republicana lavra em todo o país, deixando entrever que a República não tardaria. Cresce o desentendimento entre a Monarquia e o Exército. A 12 de novembro, Gaspar Silveira Martins transfere o governo da Província ao seu 1ºVice-Presidente, Dr. Justo Rangel, e embarca para o Rio de Janeiro, temendo o agravamento da crise, prestes a de- 134 MOZART PEREIRA SOARES

sencadear uma revolução contra o Trono, o que afinal ocorre a 15 de novembro. Compreendendo a urgência reclamada pelos fatos, Castilhos trata de consolidar a conquista política na Província mais bem armada e guarnecida do País e da qual, por isso mesmo, em grande parte dependerá o sucesso da Revolução. Depois de algumas tratativas, convence o Marechal Antônio Corrêa da Câmara, Visconde de Pelotas, herói da Guerra com o Paraguai, Senador do Império pelo Partido Liberal e o militar de maior prestígio na Província, a aceitar o posto de Presidente do Estado. Foi um gesto providencial de Castilhos, que, ao apoiar-se no mais ilustre representante das forças armadas entre nós, asseguraria a adesão delas à Revolução. Os postos-chaves do novo Governo, entretanto, ficariam com a grei republicana. Deodoro, chefe do Governo Provisório, designou Castilhos para Secretário do novo regime, Antão de Faria para a Superintendência dos Negócios das Obras Públicas, então criada, e Ramiro Barcelos para a Fazenda. Tal foi a repercussão, no Rio, da aceitação do Marechal Câmara para o 1º posto governativo, que Rui Barbosa teria exclamado: Está salva a República. Essa solução, no entanto, não passaria de acomodação transitória. Castilhos conhecia bem seus adversários na Província. Liberais e republicanos militavam em pólos opostos e o confronto entre eles pela posse do poder seria inevitável. Apesar de uma falange aguerrida e disciplinada, os republicanos eram numericamente inferiores. Os liberais, ao contrário, constituíam a classe dominante. Não tardariam a se pronunciar sobre a virada que os apeou do poder. A Reforma, matutino liberal, estampa, a 19 de novembro, o chamado Manifesto dos Três Joaquins (Joaquim Pedro Salgado, Joaquim Pedro Soares e Joaquim Antônio Vasques), exigindo um tratamento, por parte do novo situacionismo, compatível com a condição

majoritária que desfrutavam. Mas Castilhos e seus companheiros não concordavam em estender a mão aos gasparistas. Em sucessivos editoriais A Federação rebatendo um por um os pronunciamentos dos liberais, observam que a República não poderia conservar aquilo que derrubou: O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 135

A única coisa que resta aos nossos adversários é uma razoável e sincera penitência. Assim Castilhos radicaliza sua posição e afasta a possibilidade de qualquer composição com seus adversários. Tudo se agrava com os termos do editorial "Na guerra como na guerra", em que Castilhos justifica a prisão e o recolhimento de Silveira Martins ao Rio de Janeiro, por parte do Governo Provisório, quando aquele prócer se achava em Desterro (Florianópolis). A par disso, começariam a multiplicar-se os desentendimentos entre o Visconde de Pelotas e seus secretários, o que levaria o velho cabo de guerra à renúncia, menos de três meses depois que assumiu o poder. Castilhos é então nomeado presidente do Estado por Decreto do Marechal Deodoro. Recusa a investidura e propõe para substituir Câmara outro militar, o Gen. Júlio Frota, que se empossou a 11 de fevereiro de 1890. Castilhos é designado 1º Vice-Presidente e Antão de Faria o 2º. Vencido o primeiro trimestre do Governo republicano, Castilhos pôde aperceber-se das dificuldades que enfrentaria, tanto as resistências internas do gasparismo, quanto as motivadas pelo Governo Federal. Entre essas, a mais séria foi a crise determinada pela instalação no Sul de um banco emissor, contrário aos interesses do povo rio-grandense. Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, empreendia uma reforma financeira, mediante a qual os títulos de dívida federal substituíam o lastro ouro das emissões bancárias. Dividia-se o país em três zonas, cada uma das quais sediaria um banco, autorizado a emitir cédulas de curso forçado, como papel moeda do Tesouro Nacional. A medida foi mal recebida pelo Partido Republicano. Demétrio Ribeiro, representante deste no Ministério do Governo Provisório (ocupava a Pasta da Agricultura), não concordando com Rui, demitiu-se. Tanto ele como Castilhos, entre outros inconvenientes, sentiam o agravamento da inflação, que nesse momento se incrementava. O Gen. Júlio Frota, que assim também pensava, exonerou-se. Seu substituto foi o Gen. Cândido Costa, tendo como 1º Vice-Presidente o antigo Deputado Conservador Francisco da Silva Tavares, que assumiu o poder, visto Cândido Costa encontrar-se no Rio. O Gabinete de Tavares foi constituído com a maioria de elementos do Partido Conservador. Desconsideravam-se os republicanos históricos, que haviam fundado em Porto Alegre a União Republicana. Pouco depois alguns partidários de Silva Tavares e outros de 136 MOZART PEREIRA SOARES

Silveira Martins fundavam a União Nacional, na qual tudo poderia caber, inclusive o apoio de políticos monarquistas. As eleições dos representantes do Rio Grande à primeira Assembléia Constituinte processava-se no Governo Cândido Costa. Castilhos figurou entre os eleitos e logo passou a integrar a "Comissão dos 21", encarregada de dar parecer sobre o projeto da Constituição apresentado pelo Governo. Júlio não foi apenas líder da representação rio-grandense, mas teve atuação destacada. Bateu-se pela inclusão no Projeto dos pontos de vista de Miguel Lemos e Teixeira Mendes nas Bases de uma Constituição Política Ditatorial Federativa.41 Uma de suas preocupações pela defesa do federativismo, foi a de assegurar aos estados, através de uma justa distribuição de rendas, sua plena autonomia financeira. Posta em vigor a Constituição Federal em fevereiro de 1891, convocaram-se eleições para a Constituição do Estado. Concorreram duas chapas: a do Partido Republicano Rio-Grandense, sob a chefia de Castilhos, e a União Nacional, formada de partidários de Silveira Martins e

dissidentes do PRR. Venceu a facção castilhista. A Constituinte, reunida a 25 de junho, recebeu do Governo o projeto elaborado por uma Comissão integrada por Assis Brasil, Ramiro Barcelos e Castilhos. Segundo afirmaram os dois primeiros, o projeto, que não assinaram por discordarem da orientação positivista do mesmo, foi obra exclusiva de Castilhos. Tudo quanto não conseguiu introduzir na Constituição Federal, logrou transportar para a rio-grandense. Promulgada a 14 de julho de 1891, a Assembléia Constituinte encerrou seus trabalhos com a eleição do Presidente do Estado, que recaiu em Júlio de Castilhos. Estava plenamente consolidada sua condição de chefe, que iria manter até o fim de seus dias, mesmo fora do poder.

4. O GOVERNICHO

Iniciado seu Governo dentro da ordem constitucional, ocorreu uma crise política de graves conseqüências para o Rio Grande: o

41 - Lemos, Miguel e Mendes, Raimundo Teixeira -Bases para uma Constituição Política Ditatorial Federativa - Publicação do Apostolado Positivista do Brasil. 1890. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 137

fechamento do Congresso Nacional pelo Marechal Deodoro da Fonseca, a 3 de novembro. Tal fato criou para Castilhos, que fora partidário da candidatura do Marechal à Presidência da República, suspeitas de que concordasse com o golpe. Protestos armados contra Deodoro ergueram-se em todo o país e só terminaram com sua queda. Em Porto Alegre, os adversários de Castilhos cercaram o Palácio do Governo, exigindo sua renúncia. Castilhos deixou o Governo, mas não transmitiu o poder a ninguém, visto encontrar-se em frente a uma multidão tumultuária. Instalou-se um governo efêmero, chamado por Júlio de Castilhos de "Governicho", composto pelos Drs. Assis Brasil, Barros Cassal e General Rocha Osório. O "Governicho" revogou a Constituição (um dos grandes, senão o maior alvo dos gasparistas), o mandato do Presidente e dos Deputados Estaduais. O Tribunal de justiça foi dissolvido e os processos em tramitação remetidos ao Tribunal de Santa Catarina. A estabilidade do funcionalismo foi anulada. Vários Municípios foram extintos com seus Conselhos Municipais. Demitiram-se professores com longos anos de serviço. Eram inevitáveis as perseguições políticas, a regra para quem manda. Republicanos históricos imigraram para países vizinhos, entre eles Pinheiro Machado, Hipólito Ribeiro, Rodrigues Lima, Evaristo Teixeira do Amaral, Manoel do Nascimento Vargas, Apparício Mariense, João Francisco Pereira de Souza e outros. Com o retorno, em 92, de Silveira Martins da Europa, funda-se em Bagé o "Partido Federalista", sob a chefia do grande tribuno. Federalista aqui não significa "federativista", mas partidário do predomínio do poder federal sobre os Estados. O "Governicho" durou apenas 5 dias, após o que transmitiu o poder ao Gen. Barreto Leite, Este, por sua vez, foi substituído pelo Marechal Visconde de Pelotas. Entrementes, a 17 de junho, Júlio de Castilhos, apoiado pela Guarda Cívica, numerosos militares e vários civis, retoma o Governo do Estado. O Visconde de Pelotas, que não conseguira sustentar-se no poder, havia transmitido o governo ao General Silva Tavares, que se empossava em Bagé, onde reuniu forças para manter-se no

Governo Estadual. Dessa cisão resultaria a guerra civil, o que só não ocorreu graças a Silveira Martins, ao convencer Silva Tavares a desmobilizar-se e entregar o armamento 138 MOZART PEREIRA SOARES

ao Gen. Arthur Oscar, representante do Vice-Presidente da República, Marechal Floriano Peixoto. Castilhos, reassumindo o poder, nele não permaneceu. Baseado na Constituição, nomeou Vice-Presidente o Deputado Vitorino Monteiro e, a seguir, renunciou, deixando-o em seu lugar. Livre do Governo, reassumiu sua cadeira de Deputado, no que, pouco depois, foi seguido por Vitorino. Assumiu então a governança o Dr. Fernando Abbott, nesse momento Secretário do Interior. A Constituição de 14 de Julho foi restaurada, restabeleceu-se o Tribunal de Justiça e voltou a funcionar a Assembléia dos Representantes.

5. ABOLIÇÃO E REPÚBLICA

Duas grandes causas ocupam seu espírito desde seu tempo de acadêmico: a Abolição da Escravatura e a República. A Abolição foi assunto que o Império não se decidiu a enfrentar senão no seu ocaso. Sucessivos gabinetes ministeriais protelaram sua solução, pressionados pela aristocracia dos engenhos de açúcar e das fazendas de café. Facções progressistas se omitiam. No Manifesto Republicano de 3 de dezembro de 1870, não existe referência ao elemento servil. E até em 1872, quando o Partido foi exigido a pronunciar-se, a resposta foi evasiva: (...) Cumpre não esquecer que se a Democracia brasileira consubstanciasse em suas reformas práticas semelhante pensamento, alienaria de si a maior parte das adesões que tem e as simpatias que espera atrair. 42 Os mais moderados entre os paulistas aceitavam a abolição desde que se respeitasse o direito de propriedade sobre os escravos e fossem indenizados em seus prejuízos. Castilhos denunciou essa atitude em artigo de 28 de maio de 84:

42 - Hadad, Jamir Almansur. Revisão de Castro Alves. Edição Saraiva, São Paulo, 1953, 12 vol., pág 128. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 139

Qual a conseqüência, pergunta, da abstenção da medida por parte do Governo? - É o que se observa na atualidade: os senhores de escravos, apavorados em face das medidas que ameaçam a sua propriedade, começam a se congregar para levantar diques à corrente abolicionista, opondo a força à força, a violência à violência, o excesso ao excesso. Era o que acontecia nas províncias onde predominava o elemento escravo, São Paulo e Rio de janeiro. Mais adiante informa que "fazendeiros unidos e compactos, sem distinção de partidos, tratam de armar-se dispostos a tudo para não se deixarem explorar e matar (...)". O Diário do Brasil, diz Castilhos, órgão do Governo na Corte, aconselha a luta em todos os terrenos contra os poetas, os sentimentalistas, os levianos, os malucos, os aventureiros, os anarquistas, os gatunos, os salteadores e os perversos que pouco pensam ou pouco sentem que o Brasil inteiro seja de repente precipitado na miséria, na vergonha e no abismo. Noutra passagem comentara com entusiasmo o fato de uma província inteira ter alforriado seus escravos.

Referia-se ao Ceará, que libertou seus cativos em 1884. José do Patrocínio, em conseqüência, chamou o Ceará de "Terra da Luz". Até Vítor Hugo saudava a libertação cearense. Mas o que parecia altruísmo teve outra gênese: "O Ceará, ressentindo-se ainda do efeito de secas anteriores e em situação difícil, tal que teve de vender grande parte de seus escravos a São Paulo, e não podendo sustentar os remanescentes, alforriou-os". 43 No Rio Grande do Sul, nesse mesmo ano, alguns municípios também alforriaram seus cativos. No próprio município natal de Júlio de Castilhos, Cruz Alta, o fato aconteceria pela ação da Sociedade Filantrópica "Aurora da Serra". 44

43 - Hadad, Jamil Almansur -Revisão de Castro Alves, 1º, pág. 215. 44 - Castro, Evaristo Afonso de - Notícias Descritivas da Província Míssioneira. Cruz Alta. Tip. do Comercial, 1887, pág. 64. 140 MOZART PEREIRA SOARES

Sobre esse melindroso assunto, entende o Partido que não pode haver republicano algum que não seja abolicionista e inimigo dessa instituição bárbara. O combate ao Império e o proselitismo republicano madrugaram na alma de Castilhos. Já no primeiro artigo de sua lavra, com data de 15 de abril de 1879, no pórtico do jornal acadêmicoA Evolução, Castilhos, no primeiro parágrafo, em que se opõe aos espíritos que persistem imprudentemente em não compreender a irrestibilidade das leis históricas, proclama: "A verdade, a grande verdade, é que a monarquia está agonizando em seu leito de morte". Depois de mostrar que "tudo está passando por sinistro eclipse" que "as inteligências embotam-se e morrem, (...) nas trevas da ignorância", que "as consciências adormecem sob uma religião que as asfixia", que "a descrença invade como uma força irresistível todos os espíritos", acrescenta que, se a idéia se eclipsa, "às vezes ressurge além, como o sol no espaço" (...). A 10 de maio de 1884 reúne-se, em Porto Alegre, o 2º Congresso do Partido Republicano. Castilhos é secretário da Comissão Executiva. E já pode apontar uma segura expansão de seu grêmio político, que passa a contar com 20 clubes: Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, Santa Maria, São Martinho, Cruz Alta, Palmeira, Santo Ângelo, São Luís, São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete, Santana do Livramento, São Vicente, São Gabriel, Caçapava, São Sepé, Bagé e jaguarão. Aí definem-se as bases programáticas do Partido Republicano Rio-Grandense, de inspiração claramente positivista, o que se deveu, sem dúvida, à presença de Castilhos, aliada à do também comtista Demétrio Ribeiro na Comissão de Três Membros (o outro era Ramiro Barcelos) encarregada de redigi-Ias. Para comprovação, basta apontar algumas de suas propostas reformadoras: - "- Liberdade de associação e de culto. - Secularização dos cemitérios. - Casamento civil obrigatório e indissolúvel, sem prejuízo da voluntária observância das cerimônias religiosas, conforme os ritos dos cônjuges. - Liberdade de ensino, considerando-se sempre o seu destino político, que é o de dar a base intelectual para o cumprimento do dever social. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 141 - Suspensão de privilégios, quer civis, quer políticos, à classe dos diplomados. - Restrição do ensino oficial superior ao que for base para as profissões verdadeiramente úteis." O ano de 1885 é o do 3°- Congresso instalado a 2 de março em Porto Alegre. Castilhos é eleito Presidente, mas novamente recusa a honraria, dessa vez sob o pretexto de que necessitava de liberdade para interferir freqüentemente nos debates. Em 1885, a visita da Princesa Isabel e seu esposo, o Conde d'Eu, proporcionou a Castilhos um violento artigo contra a Monarquia, a 3 de janeiro, no qual escreve: O 1º Reinado foi a Violência. O 2º é a corrupção. O que será o 3º? O 3º não constituirá mais que uma esperança dos príncipes que atualmente nos visitam, esperança que há de ser infalivelmente malograda.

Esse artigo iria ainda originar uma séria polêmica entre Júlio de Castilhos e o jornalista alemão Karl Von Koseritz, que não é a primeira, nem seria a última. Servindo-se das colunas deA Reforma, Koseritz sai em defesa do par imperial. Nessa polêmica de quase um mês, o jornalista gaúcho analisou impiedosamente as contradições de seu opositor, que anteriormente havia escrito contra a Monarquia e o Trono, assim como contra Gaspar Silveira Martins, com quem agora se aliava. A presente simpatia de Koseritz para com Silveira Martins se explica: fora este quem, no interesse de evitar discriminações religiosas num meio tradicionalmente católico, advogara o direito de os alemães protestantes manterem em seus templos completa liberdade de cultos, medida, aliás, na linha doutrinária do Positivismo. De 1886 até a véspera da Proclamação da República, Júlio de Castilhos explora pelo jornal uma série de incidentes entre oficiais do Exército e seus superiores hierárquicos, motivados pelos pronunciamentos praticados por aqueles e proibidos por aviso ministerial, de manterem debates pela imprensa. É a celebre Questão Militar, que alargaria os desentendimentos entre o Exército e o Trono. Refugiado em sua Fazenda, por longo tempo, no intervalo em que se licenciou deAFederação, seu prestígio não diminuiu. Antes, parece ter crescido, a julgar-se pela reunião que ali se realizou a 21 de março de 1889, tendo como anfitrião o moço de 28 anos, com o 142 MOZART PEREIRA SOARES

qual um grupo de pró-homens de maior crédito na Província assinava o seguinte compromisso de combate no 3º Reinado: Reconhecendo a necessidade de organizar a oposição em qualquer terreno ao futuro reinado, que ameaça nossa Pátria com desgraças de toda ordem, e a necessidade de preparar elementos para, no momento oportuno, garantir o sucesso da revolução, declaramos que temos nomeado nossos amigos José Gomes Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Ernesto Alves, Fernando Abbott, Assis Brasil, Ramiro Barcelos e Demétrio Ribeiro para trabalharem para que se consigam aqueles fins, empregando livremente os meios que escolherem. Nós juramos não nos deter diante de dificuldade alguma, a não ser o sacrificio inútil de nossos concidadãos. Excluída essa hipótese, só haveremos de parar diante da vitória ou da morte. Reserva, 21 de março de 1889, Cândido Pacheco de Castro, Joaquim Antônio da Silveira, Lauro Domingues Prates, Fernando Abbott, Ernesto Alves de Oliveira, José Gomes Pinheiro Machado, Vitorino Monteiro, Possidônio da Cunha, Homero Baptista, Manuel da Cunha Vasconcellos, J. F. de Assis Brasil, Salvador Pinheiro Machado e Júlio de Castilhos.

6. CASTILHOS E A DITADURA CIENTÍFICA

Júlio de Castilhos foi adepto da ditadura republicana. Não, porém, no seu sentido vulgar, que veio a adquirir, de opressora das liberdades democráticas. Mas nos termos da proposição de Augusto Comte, de regime político transitório, de conciliação da ordem com o progresso, da autoridade com a liberdade, próprio para a fase conturbada, vivida pela França após a Grande Revolução. A fim de bem esclarecer o sentido puramente temporal e, ao mesmo tempo, antiparlamentar que emprestou à forma de governo transitório que propunha, Comte chamou-o ditatorial. Mas que entende ele por esse modelo político? Pierre Laffitte, discípulo e sucessor de Comte, numa carta a Benjamin Constant, a propósito dos rumos que o Positivismo tomara no Brasil com a República, pondera: O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 143

Dá-se a algumas expressões de Augusto Comte o sentido corrente e vulgar, quando ele mesmo lhes deu um sentido filosófico, em muitos pontos diferente. A noção de ditadura é, para ele, inseparável da idéia de liberdade, da mais completa liberdade de expressão e de discussão. Paulo Carneiro, na introdução do volume sobre as idéias políticas de Júlio de Castilhos, esclarece muito bem o assunto, informando que: "O nome dado por Comte a esse tipo de Governo criou equívocos e suspeitas que até hoje perduram. É totalmente absurdo confundir seu sistema com os regimes totalitários, que ele foi o primeiro a repelir fundando a política moderna na ampla liberdade espiritual" 45 Júlio de Castilhos, prevendo as dificuldades de ordem semântica que lhe adviriam da palavra ditadura, jamais usou-a na Constituição de 14 de julho; substitui-a pela expressão equivalentepoder central. Ao ver de outro discípulo de Comte, Jorge Lagarrigue, a situação francesa, ao fim do século passado, não exigia, nem comportava, outra instituição política, além de um governo provisório que soubesse manter energicamente a ordem material em meio à desordem espiritual .46 Conforme diz o fundador do Positivismo, três seriam as Condições da ditadura científica para o Governo da França: 1º - Republicano e não monárquico. 2º - Ditatorial e não parlamentar. 3º - Temporal e não espiritual. Os fundadores do Apostolado Positivista do Brasil, atendendo à similitude de situação entre o Brasil e a França, após substituírem o regime monárquico pelo republicano, entendiam convir a nosso país um regime ditatorial como aquele recomendado por Augusto Comte, conforme o anteriormente exposto. Ao comemorar-se o primeiro aniversário da vigência da República entre nós, Miguel Lemos afirmava: Foi a melhor das comemorações do Centenário da Revolução Francesa.47

45 - Carneiro, Paulo - Op. cit., pág. 26. 46 - Lagarrigue, Jorge -A Ditadura Republicana SegundoAugusto Comte Edição comemorativa do centenário da morte de Augusto Comte. Porto Alegre, 1957, págs. 19-20. 47 - OAdvento da República e seus Primeiros Passos. Delegação Executiva da Igreja Positivista - Rio, 1939, pág. 13. 144 MOZART PEREIRA SOARES

Referia-se ao fato de que a República brasileira sucedia à da França, de 1789, exatamente em um século. Naquela frase Miguel Lemos caracteriza, ao mesmo tempo, a filiação histórica e o perfil ideológico da revolução brasileira. O conhecimento dessa realidade, se não justifica o estilo autoritário de Castilhos no exercício do poder, deve pelo menos servirlhe de atenuante. A propósito, assim pensa um de nossos ensaístas: O que devemos ter presente, é que coube a Júlio de Castilhos a dura tarefa de lançar, em sua província, os primeiros fundamentos da tão sonhada unidade federativa e a sua província, como as demais, não estava preparada para o exercício das franquias constitucionais, num nascente regime que tinha na liberdade o seu esteio"... "Daí, sem dúvida, a adoção de algumas soluções inspiradas no "Sistema de Política Positiva" de Comte, que dariam ao Executivo atribuições que bem poderiam ser ainda prematuras num legislativo de inseguros prognósticos (...). O autoritarismo de Castilhos, bem analisado, nos levará a uma razoável compreensão de seu comportamento, tanto sob o ponto de vista político, como administrativo.48 Ricardo Vélez Rodrigues, que enfoca Júlio de Castilhos sob ótica de contestação, entende que "o autoritarismo castilhista nada fez senão agravar as tensões do Rio Grande, de modo semelhante aos impasses econômicos e políticos criados pelo autoritarismo do Governo Provisório e de Floriano, nos quais erroneamente os castilhistas viam o resultado do Parlamentarismo. Havia, sim, da parte de Castilhos, um

exacerbado preconceito contra o governo representativo, cuja mais recente expressão na vida política brasileira tinha sido o Parlamento do Império. "A República parlamentarista, diz Castilhos, antes de 15 de novembro, seria substancialmente idêntica ao Monarquismo".49

48 - Rocha, Damaso - "A outra face de Castilhos", artigo no Correio do Povo, de 20/ 07/60.Apud Ivan Lins, História do Positivismo, pág. 184. 49 - Rodriguez, Ricardo Vélez -Castilhismo, uma Filosofia da República, pág. 48. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE ALGUSTO COMTE 145

Um contemporâneo como Assis Brasil, embora divergisse de Castilhos, parece mais inclinado a compreender o "homem e suas circunstâncias" ao afirmar: "A Presente Constituição do Rio Grande foi concebida e decretada em previsão de tempos revoltosos e dificeis que, segundo a opinião de seu autor e de muitos outros republicanos ilustres, reclamava a concentração do poder em mãos do chefe do Governo.50

7. A CONSOLIDAÇÃO DA REPÚBLICA

Fato paradoxal: justamente no Rio Grande do Sul, onde a tradição republicana e o senso de autonomia dos Farrapos não se haviam apagado de todo, desde a conciliação de Poncho Verde (1845) é que a consolidação da República brasileira iria encontrar os maiores obstáculos, face à exacerbação das paixões políticas. Esse clima efervescente percebeu-o Júlio de Castilhos, desde antes da Proclamação de 15 de novembro. Quando esta aconteceu, governava a Província o poderoso chefe liberal Silveira Martins. Teria Castilhos de enfrentar a máquina bem montada dos baronetes feudais, donos de sólidos haveres, de vastas circunscrições rurais, adeptos da filosofia política do liberalismo (a defesa da propriedade que deitava suas garras até sobre seres humanos, dos interesses materiais, dos terens bem havidos, em contraposição à orientação socializante do Positivismo, o exercício do poder para promover o bem comum, com base nas "virtudes republicanas". Invocando sempre "pureza de intenções e desinteresse pessoal como virtudes supremas do político", e ao mesmo tempo exercendo sobre outrem as incômodas pressões de um breviário de honestidade, Júlio de Castilhos perturbava e desagradava... Assim que se promulgou a Carta de 14 de julho e Castilhos foi eleito o primeiro Presidente constitucional do Estado, os descontentamentos se multiplicaram. Vinham principalmente dos componentes da "União Nacional", formada pelos antigos liberais e os dissidentes do Partido Republicano, antes correligionários e agora opositores de Castilhos. Não é descabido admitir-se que entre estes figurassem concorrentes frustrados, tanto que muitos deles estenderiam sua contesta-

50 - Assis Brasil, J. F. Apud Ricardo V. Rodrigues, op. cit, pág. 41. 146 MOZART PEREIRA SOARES

ção até aos sucessores do "patriarca" e os combateriam pelas armas, como fizeram seus antepassados. Castilhos, ao se aperceber da gravidade da situação no Sul e prevendo a

necessidade de contar com o amparo militar do Governo da União, tratou de entender-se com Floriano Peixoto, exercendo a Presidência da República desde a queda de Deodoro. Face à conhecida amizade deste com Castilhos, era natural que Floriano Peixoto se mantivesse em guarda contra o gaúcho. Terminou Júlio de Castilhos convencendo Floriano de que era o homem capaz de sustentar a República no Sul. As conseqüências remotas desse lance são importantíssimas. Com esse preparo de terreno, Castilhos viria a suportar a tempestade da Revolução Federalista que se aproximava. Eis uma rebelião de causas múltiplas e controvertidas, pontilhada de enigmas e contradições, que lhe tem dificultado extremamente a exegese. No sistema parlamentar do Império, dois partidos disputavam as benesses do poder junto ao Imperador: os Conservadores e os Liberais. Em verdade, eram mais duas facções do que partidos, visto não haver grande diferença programática entre ambos e provirem seus elementos quase da mesma origem: a aristocracia rural, classe dominante incontestável. Tal situação justificava o dito corrente: nada mais semelhante a um Conservador do que um Liberal no poder. O último gabinete da Monarquia foi dos Liberais, apeados do poder pela República, a 15 de novembro de 1889. Os Conservadores, que viram baquear seus adversários, nada teriam a perder. Pelo contrário, estariam em situação mais cômoda para aceitar o novo regime, ou, pelo menos, para com ele negociar. No Rio Grande do Sul predominam os Liberais, sob a liderança da personalidade fortíssima de Silveira Martins. Seus maiores opositores viriam a ser os Republicanos: numericamente inferiores, não tinham condições de eleger sequer um representante. Só vieram a fazê-lo quando receberam a adesão dos Conservadores. Dessa forma, o Estado polarizou-se em duas forças arregimentadas e tensas: os Liberais de Silveira Martins e os Republicanos de Júlio de Castilhos, ou como vieram a ser chamados mais tarde: "gasparistas" e "castilhistas". A adesão dos Conservadores possibilitou o domínio de Júlio de Castilhos, que, ao organizar politicamente o Estado, afastou sistematicamente do poder os Liberais, que haviam ficado em expectativa ante a República. Alguns comportaram-se como adesistas de última hora. Mas nem com esses Castilhos transigiu. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 147

Ao contrário, tratou de consolidar seu comando, arregimentando a burguesia urbana, composta de burocratas, comerciantes, militares, intelectuais e a massa pobre, de semi-analfabetos sem organização de classe, dos trabalhadores em geral, contra a poderosa aristocracia de grandes latifundiários, no fundo ainda simpatizantes da Monarquia.

8. CASTILHOS E SILVEIRA MARTINS

Não se pode compreender bem a natureza do choque entre Castilhos e Silveira Martins, sem o exame das circunstâncias em que ambos se defrontaram, exatamente quando o consagrado chefe liberal regressava da Europa em 1892. Quem era Castilhos nesse instante? Figura maior de sua geração, culto, austero, estilista primoroso, preciso e brilhante, no dizer de Manuel Duarte, a aspirar e a doutrinar o ideal republicano federativo, imprimira organização e direção a seu Partido em todos os recantos do Estado. Quanto a Silveira Martins, "não compreendeu a idade vertiginosa que vivia; não evolveu: insulouse na estagnação do unitarismo". "Fundou o Partido Federalista, com programa nitidamente parlamentar, mas, para o Rio Grande, em absoluta oposição aos princípios constitucionais da União."51 Homem de grande fortuna, com propriedades no Brasil e no Uruguai, Deputado, Senador e Conselheiro do Império, dono de

vasta cultura, era ainda um tribuno excepcional. Sua estréia no Parlamento Imperial foi, sem exageros, marcada pelo assombro, no testemunho de numerosos contemporâneos e ouvintes. Era o "Sansão do Império", o Rei do Rio Grande, como alguns ironicamente o chamavam, o homem a quem uma revista carioca se comprazia em caricaturar: "eu quero, eu posso, eu mando, eu chovo". Sem dúvida, foi um homem de idéias e deixou alguns ditos que fizeram fortuna política, entre eles a sentença que seus adeptos ainda repetem, emprestando-lhe prestígio de provérbio: "Idéias não são metais que se fundem". Nem sempre, entretanto, são benevolentes os juízos sobre seus lampejos oratórios.

51 - Duarte, Manuel - "Nótulas sobre 93".Jornal do Comércio. Rio, 1953, pág. 11. 148 MOZART PEREIRA SOARES

A propósito fala Guilhermino Cesar: Silveira Martins.

Identificou-se com os seus ouvintes, arrastou-os a si, teve-os presos à potência de seu verbo. Mas suas orações, mesmo as mais admiráveis, não podem ser lidas hoje sem um sentimento de decepção. Aquilo não se destinava a ser dito - mas a ser representado como num palco.52 Essa oratória "feita da matéria impalpável das adivinhações fulgurantes", como ainda diz Guilhermino Cesar, foi um flanco débil ante a lógica irretorquível, concisa e sóbria de Castilhos, inspirado na unidade e na coerência de um sistema. Daí seu indiscutível êxito como doutrinador. A Silveira Martins sobravam, entretanto, outras qualidades que o fizeram admirado e seguido até o fanatismo.52

52 - Cesar, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. 2ª ed. Globo. Coleção Província, pág. 375. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 149

Era homem de altivez indomável, mas possuía sentimentos nobres e grande coração, escreve Manoel Duarte 53, e narra dois fatos em que arrima sua afirmação: quando se encontrava no exílio Silveira Martins, alguém lembrou a hipótese de se eliminar Castilhos. Saltou-lhe com veemência o insigne tribuno: "- Já pensaram com quantos Castilhos conta a Pátria? Ah! Não e nunca", asseverou uma testemunha da cena. Afirma-se ainda que Silveira Martins não teve tempo de evitar a monstruosa hecatombe do Rio Negro quando, ao violar a lei estrangeira de exílio político, correu ao encontro do exército vencedor, mas ainda logrou salvar a vida do Marechal do Exército Isidoro Fernandes, já sentenciado de morte pelo Conselho de Guerra. Com esses representantes de duas mentalidades e duas épocas, estavam naquele instante os destinos do Rio Grande. Para os liberais inspirados em Locke, o legislativo "constitui o poder político fundamental no governo, devendo ser formado por representantes dos proprietários e competindo-lhes a função de legislar" (...). "O sentido fundamental da comunidade política e das leis que dela emanam éproteger os interesses dos indivíduos, que, através do trabalho, se apropriaram dos bens materiais (grifei)". É afirmação de Ricardo Vélez Rodrigues, que, após outras considerações, esclarece: Com a chegada da República, aparece a filosofia política de inspiração positivista, que em seus pontos fundamentais se opõe à filosofia política de

inspiração liberal, predominante durante o Império. A filosofia política positivista baseia-se no pressuposto de que a sociedade caminha inexoravelmente rumo à estruturação racional. Esta convicção e os meios necessários para a sua realização são alcançados mediante o cultivo da ciência social. Ante tal formulação, são possíveis duas alternativas: ou empenhar-se na educação dos espíritos para que o regime positivo se instaure como fruto de um esclarecimento ou simplesmente impor a organização positiva da sociedade por parte da minoria esclarecida. Sustentou a primeira atitude, principalmente,

53 - Duarte, Manoel - Op. cit., pág. 17. 150 MOZART PEREIRA SOARES

Pereira Barreto (1840-1923), o que corresponde ao chamado "Positivismo ilustrado"; a segunda foi a alternativa de Júlio de Castilhos (1860-1903), seguido por Borges de Medeiros (1864-1961), no Rio Grande do Sul.54 "Para Júlio de Castilhos, ensina o mesmo Mestre noutro local, como para todo o pensamento positivista, a falência da sociedade liberal consistia em basear-se nas transações empíricas - fruto da procura dos interesses materiais unicamente."

9. A REVOLUÇÃO DE 93

Há na dinâmica do processo revolucionário em apreço vários componentes pedindo exame. Fazemos questão de sublinhar, escreve Sérgio da Costa Franco, que a rebelião federalista não pode ser explicada por uma irredutível incompatibilidade entre os ideais parlamentaristas e presidencialistas, ou mesmo entre o apregoado liberalismo dos rebeldes e o autoritarismo dos castilhistas. Essa balela, tantas vezes repetida, não passou de uma representação mental da cúpula federalista para justificar ideologicamente a luta armada. A sublevação nasceu do ressentimento do grupo gasparista apeado do poder e de outras facções que a intransigência e o sectarismo castilhista foram alheando das posições de liderança. 55 É muito expressivo o elenco dos chefes revolucionários, destituídos dos postos-chaves que detinham na administração da Província: Gumercindo Saraiva, o maior dos comandantes insurretos,

54 - Rodrigues, Ricardo Vélez -A Filosofia Política de Inspiração Positivista no Brasil 55 - Franco, Sérgio da Costa - "O Sentido Histórico da Revolução de 1893". Fundamentos da Cultura Rio-Grandense. Fac. de Filosofia da UFRGS. 5ª série, pág. 199. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE I151

fora Delegado de Polícia em Santa Vitória do Palmar, no Governo de Silveira Martins; José Serafim de Castilhos, o famoso Juca Tigre, ex-Delegado de Polícia de São Gabriel; David Martins, ex-Comandante Superior da Guarda Nacional, em Santana do Livramento; Marcelino Pina, ex-Major do Corpo de Guardas Nacionais de São Gabriel; Felipe Neri Portinho, ex-Delegado de Polícia de Cruz Alta; Ulisses Reverbel, ex-Administrador da Mesa de Rendas de Quaraí; e ainda Antônio Prestes Guimarães, que, em face da República, perdera a 1ª Vice-Presidência da Província. Tudo isso agravou-se pela conjuntura econômica desfavorável,

principalmente aos proprietários de grandes circunscrições rurais que chefiavam a Revolução. A inflação iniciada nos últimos anos do Império crescia nos primeiros tempos da República. O novo regime, por sua vez, extinguiu a tarifa alfandegária privilegiada de que o Rio Grande gozava, ao mesmo tempo que procurava eliminar o poderoso contrabando, que fizera a prosperidade, não só do comércio, mas de outras atividades ao longo das fronteiras Oeste e Sul. Fato digno de nota: Castilhos, quando se adonou do poder, não dispunha de quadros qualitativa e quantitativamente preparados para o exercício do mando. Para seus adversários, mudança de situação representava uma subversão inadmissível de valores, segundo dá a entender esta passagem de Wenceslau Escobar, ferrenho adversário de Castilhos e participante da luta em 93: Montou (Castilhos) a máquina política e administrativa com pessoal de inteira e absoluta confiança, preferindo à sisudez e prudência a altaneria corajosa de partidários exaltados. O erro dessa aceitação fê-lo investir de uma parcela do poder público, não pequeno número de cidadãos que, às poucas letras, juntavam mau nome. O alvo da Revolução era a derrubada de Castilhos e sua Constituição Positivista de 14 de julho, todo o ideário que, em suma, seus adversários identificavam como o antiliberalismo. Após um período de tensões crescentes, multiplicam-se os choques com agressões de parte a parte. Chefes republicanos foram mortos. Em Passo Fundo, o Cel. Chicuta, veterano da guerra com o Paraguai. Em Cruz Alta, com 152 MOZART PEREIRA SOARES

requintes de perversidade, Evaristo Teixeira do Amaral, na ocasião Intendente de Palmeira. Em Porto Alegre, o Cel. Facundo, irmão do General Silva Tavares, teve apreendida uma carta na qual articulava uma revolução contra o Governo. Sua casa foi cercada. Dois filhos de Facundo, em defesa do lar, atiraram nos sitiantes. Estes responderam ao fogo, matando-os. Facundo, gravemente ferido, foi preso. Esses acontecimentos precederam a eleição para Presidente do Estado, na qual se vitoriou Júlio de Castilhos, que seria empossado a 25 de janeiro de 93. O General Silva Tavares, que, após dissolver suas forças em Bagé, imigrara para a República Oriental do Uruguai, agora se preparava para invadir o Estado. A 5 de fevereiro de 1893, lança um manifesto conclamando rebeldia ao governo de Castilhos, pela "reconquista da liberdade"; seguiram-se outros pronunciamentos, nos quais alegavam, conforme Arthur Ferreira Filho, a existência de um governo tirânico, fato que os levava a empunharem armas. Júlio de Castilhos não havia governado sequer 10 dias e seus adversários já se julgavam em condições de formular seu severo diagnóstico. A cruenta campanha iniciada pelo Manifesto de Silva Tavares teve um desenvolvimento complexo, com múltiplas operações que se estenderam pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, cujos lances distribuem-se em três invasões principais, pelo fato de procederem de fora do país (Uruguai), onde os insurretos se refugiavam, a cada insucesso ou desfalque, para se refazerem. 1ª invasão - 2 de fevereiro de 1893. Gumercindo Saraiva e Vasco Martins, à frente de 400 homens, atravessam a fronteira pela serra de Aceguá. Enfrentam o Cel. Menna Barreto e retiram-se com numerosas baixas. A 20, Silva Tavares ataca Dom Pedrito, que se rende a 21. Tentam os revolucionários tomar Santana do Livramento, que resiste e é libertada pelo Gen. João Teles. A 19 de março, o Cel. Marcelino Pina toma Alegrete, mal defendida pelos legalistas. Enquanto isso, Pinheiro Machado organiza a poderosa Divisão do Norte, que, a 8 de maio, auxiliada por outras forças, enfrenta e vence os rebeldes na batalha de Inhanduí. A vitória dos castilhistas decidiu o destino da Revolução a favor dos legalistas. Os federalistas, vencidos, retiram-se para o Uruguai, exceto Gumercindo Saraiva, que permanece no Estado, entretendo ações de guerrilhas. Essa fase termina por uma ação também malograda, no litoral, a cabo do Almirante Wandenkolk, que se apoderou, em Buenos Aires, O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 153

do navio mercante Júpiter, e, depois de armá-lo em guerra, dirigiu-se para Rio Grande, que devia tomar, ajudado pela ação em terra, de Gumercindo Saraiva. Este não chegou a tempo e o Almirante se retirou para Santa Catarina, onde foi preso. 2ª invasão - agosto, 1893. O Cel. Salgado entra na fronteira gaúcha pela Coxilha do Haedo e se une a Gumercindo a 3, no Passo do Santa Maria. Seguem-se várias ações com revezamento na sorte das armas. As colunas de Gumercindo e Salgado, sob duro assédio da Divisão do Norte, são empurradas para fora do Estado, rumo a Santa Catarina. Entrementes, a Armada que se revoltara, sob o comando de Frederico Guilherme de Lorena, instala um Governo Provisório em Desterro (atual Florianópolis). Salgado ocupa Laguna e Gumercindo segue para Itajaí, Paranaguá e Curitiba, onde também instalam um Governo Provisório. Logo após, as tropas de Gumercindo se detêm no famoso cerco da Lapa, de 10 de janeiro a 11 de fevereiro de 94, quando tomam a praça após a morte de seu heróico defensor, Cel. Gomes Carneiro. A demora no cerco da Lapa foi o maior erro estratégico dos revolucionários. Deu tempo a que Floriano Peixoto, então no Governo da República, pudesse concentrar tropas em São Paulo, capazes de resistência e triunfo. Ao encetar Gumercindo sua marcha para o norte, recebeu comunicação de que cerca de 6.000 homens aguardavam-no em Itararé. Temendo ser envolvido pela Divisão do Norte, que sempre o perseguira e vinha a seu encontro, resolveu retornar ao Sul. A 25 de abril de 94 dividiu sua tropa em 3 colunas: Juca Tigre, a seguir derrotado por Pinheiro Machado, internou-se na Argentina, pelo Iguaçu, e desapareceu. A de seu irmão Aparício seguiu por Palmeira (Paraná), Rio Negro e Campos Novos, enquanto a de Gumercindo seguia por Palmas, Xanxerê e Chapecó. Ambos fizeram junção após transpor o Pelotas, abaixo do Barracão. A 27 de junho, atacados pela Divisão do Norte, em Passo Fundo, são derrotados com pesadas baixas. Seguem em direção a Santiago do Boqueirão, e na localidade de Carovi, nesse município, a 10 de agosto, a grande tragédia aos federalistas: Gumercindo Saraiva, ao reconhecer terreno para a batalha que projetava, é morto por uma descarga inimiga. Abateram-se profundamente os revolucionários. Perseguidos, internam-se também na Argentina. O teatro das operações não se restringia ao território dessa marcha. Mais uma vez Silva Tavares invadiu o território gaúcho. A 27-11-93 cercou com grande contingente, no Rio Negro, as tro- 154 MOZART PEREIRA SOARES

Revolução de 1893. Cerco de Bagé.

pas do Gen. Isidoro Fernandes, que se renderam sob garantia de vida, mas foram chacinados seus componentes; calcula-se que acima de 400. O bárbaro acontecimento deslustrou a Revolução e só teve paralelo na vindita do Capão do Boi Preto, a 5 de abril de 94, quando Firmino de Paula confessou ter executado 370 prisioneiros da força de Ubaldino Demétrio Machado. Ainda nessa fase registra-se o cerco de Bagé que, sob o comando de Carlos Teles, resistiu a um cerco de 45 dias, reduzidos a defensores à Praça da Matriz da cidade. 3ª invasão - Foi comandada pelo Almirante Saldanha da Gama, que retornou da Europa pelo Uruguai, no intento de honrar compromissos com os Federalistas. Falhou seu projeto de organizar um grande exército. Em abril de 1895, premido pelas autoridades uruguaias, penetrou no Rio Grande pelo Quaraí, à frente de 400 combatentes. Em Campo Osório, atacado pelo Gen. Hipólito Ribeiro, no combate de 24 de junho, perdeu a vida o Almirante que trocara as ondas

do oceano pelas vagas das coxilhas. O balanço dessa campanha é dos mais melancólicos de nossa história. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 155

Dois anos e meio de lutas, cerca de 10.000 mortes, fortunas arrasadas, acirramento de ânimos que parecem ainda hoje dividir nosso povo (o conflito chegou a 23). Ajudado por Floriano Peixoto, cujo auxílio pleiteou nos termos da Constituição Federal, Castilhos, enérgico, sereno, infatigável (todos lhe reconhecem a excepcional capacidade de trabalho), enfim, venceu.

10. O GOVERNO CASTILHISTA

Admirável é que, em meio a essa tormenta, ainda realizou uma das mais fecundas administrações do Rio Grande.56 Impunha-se a revisão jurídica do Império tornado obsoleto pela República. Profundas modificações provinham de transformações do sistema unitário da Monarquia para o federativo, instalado a 15 de novembro. Castilhos, não obstante as perturbações revolucionárias, reorganizou a justiça Civil, regulamentou o imposto sobre transmissão da propriedade, estendeu as linhas telegráficas para as zonas coloniais alemã e italiana, tratou de melhorar a navegação nos principais rios e lagos, Guaíba, Lagoa dos Patos, São Gonçalo e Lagoa Mirim, abrindo canais e ampliando portos. No ano de 1894, assinou Regulamento para a Mesa de Rendas e Coletoria do Estado. Grande preocupação teve com o problema da colonização. Começou por reorganizar a Secretaria de Obras Públicas, para a qual transferiu um serviço importantíssimo: a Diretoria de Terras e Colonização, que se incumbiu da administração das terras públicas. No regime anterior, cabia essa função ao Governo Central, que em muito facilitava a legalização dos latifúndios mediante a legitimação da posse das terras devolutas. Foi ele um dos nossos primeiros incentivadores da pequena propriedade organizada, obra que representou na época nossa reforma agrária pioneira, continuada depois por Borges de Medeiros, através do extraordinário colaborador que foi Carlos Torres Gonçalves. A este, seguindo a inspiração de Castilhos, devemos a instalação de um regime agrário e de uma política

56 - Dados referentes a Júlio de Castilhos retirados do opúsculo publicado pelo Instituto Estadual do Livro: Rio Grande Político, _Júlio de Castilhos, de Mozart Pereira Soares, Porto Alegre, 1991. 156 MOZART PEREIRA SOARES

agrícola avançadíssima para o tempo e correta para os nossos dias, qual seja a adoção da policultura intensiva, com que, num módulo de 25 hectares, uma família normal pode chegar à abastança. Ao findar o ano de 1895, Castilhos promulgou o Código de Organização judiciária. Sobre essa obra opina um de seus mais acatados biógrafos: Numa demonstração que não tinha a mentalidade despótica de que o acusavam seus adversários, Castilhos procurou cercar de garantias a Magistratura, fazendo questão cerrada de assegurar-lhe a independência ante o Poder Executivo Estadual, num grau talvez maior que a dos dias atuais.57 Ainda quanto à organização jurídica, deve-se observar que Júlio de Castilhos era adverso à instituição do júri. Em judiciosa exposição de motivos aponta-lhe os defeitos e propõe providências para que

possa funcionar proficuamente, como garantia de justiça e liberdade. A Castilhos também devemos a instituição da assistência Judiciária aos cidadãos pobres. A lei relativa aos serviços policiais foi promulgada a 4 de janeiro de 1896. Nela a polícia se divide em administrativa, de competência dos municípios, e a judiciária, dirigida pelo Estado. Em janeiro de 96 reorganiza o Tesouro do Estado; em fevereiro, aprova o regulamento da Casa de Correção, na qual se estabelecem oficinas em que os presos podem trabalhar mediante remuneração. A 12 de janeiro de 1897 promulgou a Lei Eleitoral. A ela pertence a instituição do voto a descoberto, em respeito à dignidade do eleitor e à moralidade dos sufrágios. É questão de princípios: a responsabilidade, o viver às claras. Uma das mais fortes reivindicações dos adversários de Castilhos viria a ser a instituição do voto secreto, considerado remédio contra as fraudes e barganhas que, ao longo do tempo, foram viciando nossas eleições. O Decreto nº 89, de 2 de fevereiro de 1897, reorganiza a instrução primária do Estado.

57 - Franco, Sérgio da Costa - Op. cit. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 157

O ensino é livre, leigo e gratuito, no grau primário. Nas cidades mais importantes admite-se a formação do "Colégio Distrital", de caráter complementar ao primeiro. O ensino de grau secundário e superior não constitui dever do Estado, mas direito da comunidade, que deve promovê-lo livremente, de acordo com a natureza das diversas confissões religiosas que desejarem exercê-lo. A Diretoria de Higiene do Estado, antecessora da atual Secretaria da Saúde, foi fundada a 2 de abril de 1895. Nesse decreto ocupa-se do exercício de Medicina, Farmácia, Drogaria, Obstetrícia e Arte Dentária. Defendendo a liberdade de profissão e condenando os privilégios acadêmicos, mesmo assim exigia o registro dos profissionais para a fiscalização do exercício de suas atividades. Aos diplomados no País ou no exterior, facultava-se registro naquela Diretoria. Finalmente, no setor das finanças públicas, apesar de ter enfrentado quase três anos de guerra, conseguiu encerrar os exercícios financeiros, com saldos nos anos de 1894, 1895, 1896 e 1897. Tal foi a sua honestidade, que até os adversários mais ferrenhos o reconheceram. Ao encerrar o seu conturbado mas operoso qüinqüênio, Júlio de Castilhos tratou de encaminhar a escolha de seu sucessor, dentro das disposições constitucionais. Não teria sido fácil ao Chefe do Partido Republicano recomendar o nome de Borges de Medeiros, afinal, o eleito quando, como candidatos naturais, pela sua projeção política e serviços prestados à Nação, além de suas boas relações pessoais, ele contaria com Ramiro Barcelos e Pinheiro Machado. Sobravam, entretanto, títulos a Borges de Medeiros para merecer a indicação. Embora jovem (tinha então 34 anos), possuía já grande folha de serviços: integrara a bancada rio-grandense à Constituinte Federal de 91 (onde Júlio de Castilhos pôde conhecer de perto o republicano e o jurista), ex-Chefe de Polícia e membro do Superior Tribunal do Estado, a quem fora confiado o anteprojeto do Código de Processo Penal. Para seus adversários, a escolha de Borges de Medeiros seria explicada pela docilidade deste à continuidade de mando que viria a exercer Castilhos mesmo fora do poder. Ao terminar o primeiro mandato de Borges, Castilhos, em longo manifesto, recomendou sua reeleição ao eleitorado republicano, no que foi acatado. Mantinha-se firme na liderança do Partido. 158 MOZART PEREIRA SOARES

Seus últimos anos passou-os dedicado a suas atividades rurais e atendendo seu grêmio político. Várias vezes recusou oferta de seus amigos e correligionários para concorrer a postos eletivos, inclusive à Presidência da República. Recolhido voluntariamente ao lar, veio a falecer de um carcinoma laringeano, no apogeu de sua fama e no auge de sua atividade incansável. Sua consagração pública viria com sua morte prematura e começaria pelo depoimento insuspeito de pessoas e entidades que com ele não sintonizavam. Lia-se no Correio do Povo, no dia imediato a seu falecimento: Espírito forte, singular poder de predomínio, trato cativante, ponderado critério e decisão impetuosa foram qualidades que o elevam à posição de chefe incontestado da numerosa agremiação política que dirigia. Esses predicados o Dr. Júlio de Castilhos os pôs à prova durante o período revolucionário, em que não conseguiram jamais ???e'b'ar 1 1 riti 1 -lhe o ânimo as mais rudes fadigas ao longo de três anos". O Eco do Sul, de Rio Grande, assim falava em seu editorial: Mais ainda: Júlio de Castilhos, que, à força de merecimento e audácia, conservou-se por dilatados anos nas culminâncias do poder, nunca foi visto a gozar os prazeres e deslumbramentos que derivam das altas e faustosas posições sociais. A sua vida simples, esquecidas que sejam as explosões de rancor, lembra, pela austeridade a envergadura dos romanos primitivos.58 Não há, na História Brasileira, diz Sérgio da Costa Franco, um personagem que se possa dizer um símile perfeito de Júlio de Castilhos. Quem mais se lhe aproximou, pela energia e pela têmpera foi o Mal. Floriano, a quem, entretanto, faltavam talento e coerência de atitudes. Getúlio,

58 - Apud Sérgio da Costa Franco - Op. cit., pág. 183. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 159

que se pode considerar um discípulo do castilhismo, foi, quanto ao temperamento e o caráter, um pólo oposto ao mestre.59

11. A CONSTITUIÇÃO POSITIVISTA

O ideólogo e o estadista possíveis em Júlio de Castilhos se conjugam e se expressam cabalmente na Constituição Rio-Grandense de 14 de julho de 1891, síntese e coroamento de sua trajetória política. A experiência por ele adquirida na Comissão dos 21, onde foi destaque e conseguiu ver aprovadas algumas proposições positivistas, muito o auxiliaram na elaboração da Carta estadual. Para esta logrou transplantar tudo quanto não conseguira na Constituição Federal, segundo os votos de Teixeira Mendes e Miguel Lemos. Deixando de lado as entidades fictícias tradicionalmente invocadas nos preâmbulos das Constituições, como Deus Todo-Poderoso ou Povo Soberano, a Assembléia Constituinte decreta e promulga a Constituição em nome de entidades reais, que constituem a verdadeira providência humana - Família, Pátria e Humanidade. São órgãos do aparelho governativo a Presidência do Estado, a Assembléia dos Representantes e a Magistratura, devendo funcionar harmônica e independentemente. O presidente exerce a direção do governo e da administração, no interesse do bem público. O mandato presidencial é de cinco anos, podendo o Presidente ser reeleito, desde que obtenha os 3/4 dos votos verificados no pleito. É bem de ver que tal número de sufrágios só é alcançável por um governante eficiente e digno. O Presidente, quando deseje promulgar leis

de sua esfera de competência, deve tornar público seu projeto, acompanhado de minuciosa exposição de motivos. Os intendentes municipais (prefeitos, atualmente) devem divulgar tais projetos para que todos os cidadãos possam conhecê-los, a fim de, se assim o entenderem, pronunciar-se sobre os mesmos. Decorridos três meses, todas as propostas ou emendas serão enviadas ao Presidente, que as examinará, podendo aceitá-las ou não. Assim, transfere-se ao povo, e não a su-

59 -Apud - Sérgio da Costa Franco, op. cit, pág. 183. 160 MOZART PEREIRA SOARES

postos representantes seus, a participação na elaboração das leis. Qualquer projeto, depois dessa consulta popular, pode ser transformado em lei, que, por sua vez, poderá ser derrogada se a maioria dos Conselhos Municipais manifestar-se contrária à mesma. Onde foi instituído um sistema de controle tão amplo e tão rigoroso dos atos governamentais? Pergunta Paulo Carneiro. A Constituição do Rio Grande, acrescenta, obriga o Governo a submeter todas as suas iniciativas a um referendo permanente. Vai ainda mais longe nesse particular que a Constituição da Confederação Helvética, que só usa o referendo em casos especiais. A Assembléia, composta de 48 membros eleitos por voto direto, se reúne anualmente, durante pelo menos dois meses, nos quais examina as contas do exercício findo e vota o orçamento seguinte. O mandato dos representantes é de quatro anos. As decisões são tomadas em votação com maioria simples. Cabe à Assembléia fixar a receita e a despesa do Estado, bem como criação, aumento ou supressão de impostos ou taxas. Todos os decretos e resoluções da Assembléia são comunicados ao Presidente, que deve tomar as medidas para sua pronta execução, não tendo direito de veto, como ocorre hoje, com o que o primeiro mandatário escapa das decisões do Legislativo. O poder judiciário é exercido pelo Tribunal Superior, composto de sete membros, escolhidos entre juízes municipais, por ordem de antigüidade. Sua nomeação, de alçada do Presidente, depende de concurso público, organizado e presidido pelo Tribunal. Para o exercício de suas funções com inteira independência, gozam eles da necessária estabilidade. O município, unidade administrativa do Estado, desfruta de plena autonomia. O poder municipal cabe a um Intendente e a um Conselho, eleitos de quatro em quatro anos, simultaneamente, por voto direto dos munícipes. É função do Conselho estabelecer o orçamento anual do município. Desse modo, os executivos estadual e municipal estão sob dependência, respectivamente, da Assembléia dos Representantes e dos Conselhos Municipais. São dois organismos que não só controlam, mas também orientam a política governamental. Assim, enganam-se, comenta Paulo Carneiro, os que pensam que, por atribuir à Assembléia e aos Conselhos funções apenas financeiras, a Constituição castilhista deixa os negócios do Estado inteiramente nas mãos do Executivo. Aqueles dois organismos, se- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 161

nhores do orçamento, que só eles determinam e adotam, são, na verdade, senhores do Governo. O capítulo "Garantias gerais da ordem e do progresso" é particularmente digno de interesse, por conter as disposições que mais se aproximam das idéias de Augusto Comte. Nele se asseguram todas as liberdades: de pensamento, de culto, de ensino, de associação, de imprensa, etc. Todos sendo iguais perante a lei, a Constituição estadual aboliu os privilégios de qualquer natureza, inclusive os decorrentes de títulos ou diplomas acadêmicos. Disso resulta o livre exercício de qualquer profissão de ordem moral, intelectual ou industrial no território do

Estado. O ingresso na função pública depende, como se viu, de concurso, aberto a todos, independente da posse de diplomas. Nos dias que correm, com profissionais formados às dezenas em cada universidade, e de rígida regulamentação profissional, torna-se difícil entender aquela sociedade em que os diplomados eram uma raridade e os charlatães e os rábulas constituíam, quando não necessidade, até uma providência social. Isso não os dispensava de registro e verificação da competência profissional. O § 16 artigo 71, assegura a livre manifestação do pensamento pela Imprensa ou na tribuna, mas proíbe o anonimato. Cada autor "responde pelos crimes comuns que cometer no exercício dessa liberdade". A incorporação do proletário à sociedade, à margem da qual ele se encontra abarracado, expressão de Augusto Comte (e hoje mais abarracado que nunca...), inspirou o art. 74: "Ficam suprimidas quaisquer diferenças entre os funcionários públicos de quadro e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes as vantagens de que gozarem aqueles". A Constituição castilhista foi a primeira que tratou de proteger os trabalhadores contra quaisquer discriminações. Somente a partir da Revolução de 30 o assunto mereceria maiores atenções do Governo federal, graças ao interesse de Getúlio Vargas e seu colaborador Lindolfo Collor, castilhista ardoroso. Sectária, agnóstica, presidencialista, como a própria personalidade de Castilhos, sua Constituição apaixonou e dividiu desde a primeira hora. Não lhe faltaram adesões entusiásticas nem aversões rancorosas. O fundador e Diretor do Apostolado Positivista do Brasil considerou-a o Código político mais avançado do Ocidente. Exata- 162 MOZART PEREIRA SOARES

mente oposto é o juízo da parcela das classes dominantes de orientação teológica, por tradição ou inércia social, como os latifundiários liberais, e os parlamentaristas em geral. Nesta hora de constituições prolixas, que invadem, com notável desembaraço, o território da legislação ordinária, a Constituição castilhista, pela sua unidade, concisão e coerência, vai sendo cada vez mais digna de exame, até pela sua aptidão coercitiva, principalmente pelos que sabem não poderem os códigos conter tudo, em estado atual, mas muito permitir por sua potencialidade. Ou, como bem assinalou Augusto Comte: "Para completar as leis, são necessárias vontades". O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUCUSTO COMTE 163 Capítulo VI O POSITIVISMO RELIGIOSO NO RIO GRANDE DO SUL

Ao proselitismo político de Júlio de Castilhos e sua geração, seguiu-se o da Escola de Guerra, impregnado do espírito pedagógico de Benjamin Constant, a cuja ação deve o Rio Grande o surgimento da Escola de Engenharia de Porto Alegre. Seu prestígio intelectual em breve tempo contagiou o Estado. Dessa concentração de valores mentais partiram influências mobilizadoras da imprensa, do magistério, do comércio, da indústria, dos serviços administrativos, do jornalismo, do parlamento. A presença desse elenco não se limitou à vida urbana, mas atingiu a rural, promovendo o progresso de nossa vida agropecuária em sintonia com o mundo, através de um notável intercâmbio com as áreas mais evoluídas nesse setor em todos os continentes. Interessante notar-se que esse chamamento ao amanho do solo, no Rio Grande do Sul, tem fascinado nossos espíritos mais eminen- 164 MOZART PEREIRA SOARES

J. Felizardo júnior, iniciador da Propaganda Positivista em Porto Alegre.

tes. Basta-nos, para exemplificar, o caso do polímata Joaquim Francisco de Assis Brasil com sua Cultura dos Campos (um dos mais importantes manuais sobre o assunto em nosso país, útil ainda hoje), além de sua dedicação à granja-modelo de Pedras Altas. São também notáveis o caso do médico, pecuarista e industrialista Pedro Osório, autor de Rumo ao Campo, uma enciclopédia de práticas campesinas, ou ainda o do Prof. Antônio Saint Pastous de Freitas, com moderna contribuição para o trato da terra agrícola:A Terra e o Homem - e seu reverso O Homem e a Terra. Enfim, toda essa convocação às nossas elites intelectuais estende-se à esfera religiosa. Coube o início do Positivismo religioso no Rio Grande do Sul a Joaquim José Felizardo Júnior, nascido em Porto Alegre a 20 de janeiro de 1870 e aí falecido a 21 de março de 1906. Era casado com Anna Schell Felizardo (Porto Alegre, 2/7/1870-20/5/1905). O casal, falecido prematuramente, deixou na orfandade sete filhos menores. Segundo Luiz Faria Santos e Carlos Torres Gonçalves, as simpatias de Felizardo Júnior pela doutrina de Comte datam de 1890, quando cursou a Escola Politécnica do Rio de janeiro, onde conheceu Teixeira Mendes e Miguel Lemos, tendo freqüentado as reuniões da Igreja Positivista do Brasil. Felizardo Júnior concluiu o Curso de Engenharia em 1893. Após a formatura permaneceu no Rio de janeiro até 1895, quando retornou a P. Alegre e passou a lecionar na Escola de Engenharia, logo que esta se fundou, e a trabalhar nos serviços das Obras Públicas do Rio Grande do Sul. Com seu cunhado, Tenente Antônio Pereira Prestes (casado com sua irmã Leocádia Felizardo, mãe de Luiz Carlos Prestes), encarregou-se da distribuição da literatura positivista a seu alcance e a angariar recursos financeiros (os subsídios positivistas), para manter seu proselitismo. Promoveu as primeiras reuniões para a leitura do Catecismo Positivista de Comte, vindo ser assim o primeiro pregador da Religião da Humanidade em Porto Alegre. Faria Santos, também Engenheiro formado pela Escola Politécnica, foi por mais de vinte anos Diretor da Diretoria de Viação Fluvial da Secretaria de Obras Públicas e chefe de Felizardo Júnior, quando se dedicou a importantes obras portuárias, providenciais para um estado que praticamente não contava com estradas. Seu primeiro trabalho de propaganda religiosa no Rio Grande do Sul foi a tradução do opúsculo Positivismo e Catolicismo, do O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 165

O Engenheiro João Luiz Faria Santos, continuador de Felizardo Júnior.

Apóstolo chileno Jorge Lagarrigue, feita em abril/maio de 1897 e reeditada em maio de 1909. A mensagem de Lagarrigue se inscreve na linha da Aliança religiosa entre católicos e positivistas proposta por Augusto Comte ao Sumo Sacerdote da Igreja Romana.

1. O POSITIVISMO E A COLONIZAÇÃO

Após o falecimento de Felizardo Júnior, a continuação das atividades apostólicas do grupo de Porto Alegre foi confiada ao Engenheiro Luiz Faria Santos, secundado por Raul Abbot e Carlos Torres Gonçalves. Manteve o primeiro a explicação do Catecismo Positivista, a princípio na residência do fundador do núcleo e, mais tarde, em sua própria. Desse grupo assumiu importância especial o último citado, a quem se deveram os principais esforços para a

construção da segunda sede, com forma exterior de Templo do Brasil, a Capela Positivista de Porto Alegre, na Avenida João Pessoa, 1058. 166 MOZART PEREIRA SOARES

O Engenheiro Carlos Torres Gonçalves nasceu na cidade de Rio Grande, a 30 de junho de 1875. Após diplomar-se na Escola Politécnica do Rio de janeiro, retornou ao Rio Grande do Sul, passando a trabalhar sob a chefia de Joaquim Felizardo júnior, sucedendo a este no levantamento da bacia do Rio Jacuí. Em 1903 casa com Dagmar Flores Pereira da Cunha, de quem teve os filhos Paulo, Jorge, Sofia, Rosália, Clotilde e Branca, todos batizados com nomes do calendário de Augusto Comte. Conquistou, por concurso, cargo técnico na Secretaria de Obras Públicas do Estado, passando a servir sob a chefia de João Luiz Faria Santos. Trabalhou, a princípio, na Diretoria de Viação Fluvial, tendo se dedicado à solução de nossos problemas hidroviários, particularmente de Rio Grande, nosso único embarcadouro por mar. Deixou-nos posteriormente notável contribuição ao Plano Rodoviário do Estado. Em 1908 passou a desempenhar um cargo importantíssimo para o nosso desenvolvimento agrícola: o posto de Diretor de Terras e Colonização. Seu teatro de ação foi principalmente o Alto Uruguai, onde realizou uma obra social das mais significativas de nossa evolução fundiária, em verdade a nossa única reforma agrária até aqui, pela sua orientação doutrinária e pelos múltiplos aspectos que ela assumiu. O primeiro cuidado de Torres Gonçalves e seus colaboradores foi de assistência às populações que espontaneamente se estabeleceram na região. Era indispensável melhorar-lhes o padrão de vida, sem o que viriam sentir-se frustrados e abandonados em sua própria terra. Felizmente, o clima e as riquezas naturais facilitavam o cometimento do poder público, embora os problemas sociais fossem da mais variada índole: moradia, alimentação, vestimentação, higiene, orientação técnica e instrução escolar. O estrangeiro, ao chegar, encontraria a casa limpa e a mesa posta, não como atitude de subserviência, mas decorrente de um nacionalismo orientado para a integração social. Para a implantação desse programa, o Rio Grande se encontrava providencialmente preparado, após algumas tentativas menos bem-sucedidas. Contraste marcante conheceu o Rio Grande em dois tipos de imigração ao longo de sua história. Nas primeiras levas aqui aportadas, as de origem alemã, em 1824 (São Leopoldo e, após, a dos italianos, em 1875), embora estivéssemos sob um regime es- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 167

Carlos Torres Gonçalves, Sucessor de Faria Santos.

cravocrata, não se lhes permitiu manter escravos. Este acontecimento transformou o Rio Grande num verdadeiro laboratório humano, a demonstrar a superioridade do trabalho livre sobre o servil. Quando se realizou a abolição da escravatura, já tínhamos nossa experiência quanto ao tipo de organização laborial que melhor nos conviria. Também é fácil entender-se as conseqüências da nossa liberalidade com as populações alienígenas, podendo aqui cultivar os usos e costumes de seus países de origem, através da manutenção das línguas maternas, no lar, na escola e na vida comunal. Seguindo seu próprio ritmo social, alheio à nossa ambiência, mantiveram-se mais fiéis às suas matrizes do que à nossa sociedade, passando a estimular o surgimento de quistos raciais que, durante as guerras com a Europa, se comportaram aqui como inimigos internos. 168 MOZART PEREIRA SOARES

Ninguém ignora como foi preocupante a presença da 5ª Coluna nazista na chamada Colônia Velha (São Leopoldo, Montenegro, São Sebastião do Caí e adjacências). Sob a orientação de Carlos Torres Gonçalves, nossa Diretoria de Terras e Colonização tratou de evitar a formação de tais núcleos, mesclando as várias etnias: alemães, italianos, poloneses e eslavos, com as nossas populações autóctones, na região das matas. Cuidados especialíssimos mereceram as tribos indígenas dos Coroados ou Caingangs, donos imemoriais de nosso interior. Foram eles tratados segundo as diretrizes do Serviço de Proteção aos índios, comandado por Rondon, que também nos assistia. Não menos extraordinárias foram as medidas de ordem material dessa obra. A primeira providência foi o assentamento das famílias em glebas rurais em que se pudessem tornar abastadas, ou seja, bastar-se a si próprias, pela exploração do solo. O módulo rural escolhido, obediente aos índices de produtividade na região, foi de 25 hectares, 20% dos quais deviam conservar suas reservas florestais. Esses lotes coloniais eram adquiridos pelos seus usuários, por diversas formas de pagamento a prazo: em dinheiro, em produtos colhidos ou trabalhos prestados. Note-se a escrupulosa moralidade no processo de aquisição da propriedade. Em 1922 Carlos Torres Gonçalves publicou uma intervenção doutrinária sobre a importante questão da reforma agrária e o proletariado rural, na qual adverte que "não se podem tolerar infrações à ordem social como a invasão de propriedades legalizadas, como se a nação não tivesse governo". É desalentador compararmos aquela atitude de nossas autoridades públicas, com a anarquia moral de nossos dias, alimentada, de um lado pela indecorosa audácia dos invasores e, de outro, pela subserviência lamentável e a insinceridade demagógica de executivos relapsos e parlamentares desonestos. O uso correto da propriedade era orientado pelo serviço de colonização, em tudo quanto era possível para a época. Numerosos serviços auxiliares foram instalados. O plano de transportes procurou atingir todas as propriedades, pelos mais variados meios. Três linhas de penetração até os limites do território beneficiado foram incrementadas segundo as três direções cobertas pelo plano. A primeira, através de estrada de ferro pelos municípios de Ijuí, Santo Angelo, Giruá e Santa Rosa. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 169

Terminada a penetração ferroviária, o sistema de transportes prosseguia por estradas rurais e vicinais. Onde não mais podiam ter acesso a carreta e a carroça, prosseguia-se pelo sistema de cargueiros. O mesmo critério seguiu-se pelo tronco Passo Fundo/Marcelino Ramos, beneficiando Erechim. Esses dois primeiros empreendimentos urbanos foram diretamente assistidos pelo Dr. Carlos Torres Gonçalves. Uma terceira via de penetração seccionava o território do maior município do Estado na época, Palmeira das Missões, com cerca de doze mil quilômetros quadrados, limitado ao Sul por Cruz Alta, ao Norte pelo Rio Uruguai, a Leste por Passo Fundo e a Oeste por Santo Angelo. Mais da metade dessa área era acidentada, irrigada por afluentes da margem esquerda do grande rio e revestida de luxuriante mataria. As estradas eram precaríssimas, pra não dizer inexistentes. Torres Gonçalves confiou sua colonização a seu colega e correligionário Frederico Westphalen. A zona de campo, um planalto suavemente ondulado, não possuía estrada de ferro. Seus caminhos eram ainda os trilhos primitivos de carretas e tropas de mula, que convergiam para aquele município e dali seguiam para Sorocaba ou Itapetininga, via Nonoai, através do Passo do Goyo-en. Quanto às do sertão, consistiam praticamente, no pique aberto em 1876 pelo engenheiro alemão Maximiliano Beschoren, entre a chamada Boca-da-Picada ou Rincão da Fortaleza, onde Antônio Zanato criou uma casa de comércio e uma hospedaria para abrigar os escoteiros que buscavam as fontes termais de Iraí. Além da falta de transporte, o sertão era praticamente vazio de povoadores brancos. Em troca, abrigava as maiores concentrações de indígenas do

Estado. O engenheiro Frederico Westphalen era dos funcionários mais conhecedores da região, na hora em que foi designado pela Diretoria de Terras e Colonização para civilizar aquele rico interior, cuja importância havia crescido significativamente, após a descoberta de numerosas fontes termais na região. Criado na Fazenda paterna, em Palmeira das Missões, assistiu na infância os rudes trabalhos rurais da época. O curso primário Frederico realizou em Curitiba, o secundário em Porto Alegre (colégio Emílio Meyer) e o superior como integrante da primeira turma da recém-fundada Escola de Engenharia 170 MOZART PEREIRA SOARES

de Porto Alegre. Foi nesta instituição que Frederico se familiarizou com a obra de Comte, tornando-se positivista. Em setembro de 1905 casou-se com Agueda Pires da Silva, de cujo matrimônio nasceram os filhos (quase todos batizados com nome do Calendário de A. Comte) Paulo (Engenheiro Civil), Moisés (Engenheiro Agrônomo), César e Tasso (funcionários públicos), Dante (Médico), Léo (falecido jovem), Celina e Helé. Transferindo-se para Palmeira das Missões, dedicou-se a trabalhos de agrimensura, de grande necessidade na época, nos municípios de Cruz Alta, Ijuí, Júlio de Castilhos e em vários distritos de Palmeira. Atraído para a política, elegeu-se Vice-Intendente de seu novo município, vindo ocupar-lhe a chefia posteriormente. Não abandonou, todavia, sua função na Diretoria das Obras Públicas. A chave da obra de Frederico na Comissão de Terras foi a construção da Estrada de Rodagem de Santa Bárbara a Iraí, via Palmeira, que ele traçou e dirigiu. Os quase duzentos quilômetros da nova rodovia foram realizados com os precários recursos daquele tempo. Foi mais difícil para o Rio Grande executá-la do que a efetivação posterior da Transamazônica para o Brasil dos tempos modernos. Coxilhas abertas em fundos cortes, a pá e picareta, altos aterros transportados a carroça e carrinho de mão, florestas rasgadas a foice e machado, serras talhadas a picaretas, ponções e dinamite. A estrada-tronco prolongava-se até os loteamentos rurais através de caminhos vicinais. Onde o terreno era mais íngreme, termina vencido a cargoeiros ou cangalhas. A obra de proteção aos indígenas obedeceu à orientação de Rondon. Foi ela posteriormente continuada, de forma espontânea, por seu filho, Prof. Moisés Westphalen, numa incansável campanha, através de centenas de artigos publicados no Correio Rural (Suplemento do Correio do Povo), até seus últimos dias, no ano de 1997. Digno de nota é o resultado social desse cometimento. Os núcleos populacionais, sediados a distâncias recomendáveis para os meios de transporte da época, intercomunicaram-se através de uma rede viária que atinge qualquer ponto do vasto território, hoje subdividido em 44 municípios, encerrando algumas cidades mais expressivas do Estado, como a batizada precisamente de Frederico Westphalen, cujo local escolheu, levantou em curvas de nível de metro a metro, estabeleceu-lhe o zoneamento e a fez a sede interio- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 171

rana do serviço. Foi uma das mais justas homenagens que já se prestaram, no Estado, a um dos seus mais dedicados pioneiros. Muito contribuiu para o êxito dessa importante obra social da Diretoria de Terras e Colonização o fato de seguirem Frederico e Torres Gonçalves (como os restantes chefes da Secretaria de Obras Públicas) a mesma orientação doutrinária e o conhecimento dos problemas humanos do território quecivilizavam. Em suas freqüentes manifestações pela imprensa e, mais tarde, através de numerosos opúsculos, Torres Gonçalves, apoiado pelas suas vivências em nossos sertões, nos deixou uma série de reflexões dignas de estudo, sobre os problemas migratórios. Considerava ele preferível a modalidade espontânea à promovida pelo poder público. Inclinava-se pela aceitação dos contingentes de

origem latina, tendo em vista as melhores possibilidades de assimilação social, desde as proximidades das línguas respectivas até as motivações espirituais. Esforçava-se por demonstrar que nossa principal vantagem na recepção dos contingentes imigratórios, seria integrá-las à nossa sociedade, não como braços para a lavoura, mas como cérebros para a comunidade. Tais critérios foram altamente benéficos para a região na qual surgiram as comunidades mais fraternas e convergentes no interior rio-grandense, como hoje se reconhece.

2. OS POSITIVISTAS POLÍTICOS E OS RELIGIOSOS. BORGES DE MEDEIROS

Bastante curioso no Rio Grande do Sul é o que poderíamos chamar de "polarização de tendências profissionais" entre os positivistas políticos e religiosos. Estes eram, em geral, militares, engenheiros em diversas especialidades, médicos ou elementos do magistério, preferencialmente da área tecnológica. Em geral ortodoxos, aceitavam integralmente a orientação do Apostolado Positivista do Brasil. Seus vultos principais foram membros da Igreja da Humanidade. Outro aspecto, que poderemos considerar paradoxal na conduta cívica dos adeptos desse grupo: seus prosélitos mais atuantes foram os mais categorizados servidores da Secretaria das Obras Públicas, a começar por Felizardo Júnior, Faria Santos, Torres Gonçalves e Frederico Westphalen. Contavam, além disso, com notória simpatia do Partido Republicano Rio-Grandense, tudo ao arrepio das recomendações de Comte, quanto à independência moral dos 172 MOZART PEREIRA SOARES

elementos da classe sacerdotal frente ao poder público. Mesmo com essa velada interdição a pronunciamentos contestatórios de quaisquer medidas do Governo, eles não deixavam de manifestar-se. Tal situação faz supor que as naturezas mais sensíveis tivessem de vencer constrangimentos para coonestar a necessidade de independência e a subordinação funcional. Os políticos eram, em geral, os elementos da área humanística: bacharéis em Direito, Magistrados, Parlamentares e jornalistas. Adotando as soluções políticas do Positivismo, alheavam-se das recomendações religiosas e não pertenciam ao Apostolado. A observação da conduta cívica dessas duas categorias de Positivismo nos conduz à idéia de um conflito latente de interesses entre elas. De fato, o alvo social de ambos era diverso. Os religiosos podiam esperar pelos frutos do lento progresso espiritual da espécie; os resultados de sua ação interessavam à continuidade das conquistas coletivas. Os políticos, porém, deviam solucionar os problemas de ordem material da sociedade, em suas tirânicas urgências. A submissão aos preceitos morais, exigidos pelos sacerdotes, eram obstaculizantes à pronta ação dos políticos; mais ainda, defrontavam-se com as concessões que se deviam fazer, a todo instante, para o cumprimento do preceito harmonizador de Comte: "ser inflexível em princípios, mas conciliante em fatos". A dificuldade dos que mandam em obedecer aos que aconselham, mais de uma vez, se patenteou a Teixeira Mendes frente aos maiores líderes do Positivismo político. Na sua biografia do Fundador da República brasileira, Benjamin Constant Botelho de Magalhães, que ele e seu então Diretor do Apostolado, Miguel Lemos, reconheceram e proclamaram, queixou-se do alheiamento do grande construtor em relação a seu grêmio religioso, no qual devia inspirar-se para sua ação política. Mais severo foi ainda em relação a Júlio de Castilhos. Pela morte deste, a 24-10-1903, Mendes, que retornava de sua viagem apostolar a Paris (visita aos lugares santos do Positivismo), emitiu sobre o rio-grandense um

julgamento algo precipitado, que não deixaria de causar mal-estar: Enquanto, como se viu, Miguel Lemos elogiava a obra de Castilhos, conceituando a Constituição de 14 de julho "o código político mais avançado do Ocidente", Teixeira Mendes censurava as faltas que o Presidente gaúcho cometera em relação à Política Positiva, começando pelo fato de nunca haver aderido franca e abertamente à Igreja da Humanidade, à qual, em seu juízo, devia Castilhos todo seu êxito. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 173

Mendes considerava contraditória a posição de Castilhos, declarando-se apenas simpatizante do Positivismo ao subscrever uma contribuição ao Apostolado, enquanto confessava na "Carta à devoção do Menino Deus" haver estudado desde a adolescência as obras do Mestre dos Mestres. Censurava-o, ainda, pelo fato de que, como Floriano Peixoto, ter apenas entusiastas que o seguiam, mas não subordinados adotando os mesmos ideais. Não foi outro o modo de agir de Teixeira Mendes quando, ao ser perguntado qual seria sua opinião sobre o político Borges de Medeiros, respondeu que seu dever seria abandonar o Governo do Rio Grande para dedicar-se à propaganda do Positivismo... O relacionamento dos governantes que dominam as quatro décadas da República Velha no Rio Grande do Sul com os positivistas religiosos nos permite traçar um plano inclinado com seu auge em Castilhos e sua extinção em Getúlio Vargas, à véspera da Revolução de 30. Nenhum deles foi ortodoxo, nem pertenceu à Igreja Positivista do Brasil. Serviram-se, entretanto, dos preceitos comtianos, para a solução dos problemas políticos e administrativos encontrados. O mais fiel deles (e até radical) foi Júlio de Castilhos, como se viu. Proclamou enfaticamente sua submissão às idéias de Augusto Comte, que estudou desde a adolescência (confissão contida na "Carta à devoção do Menino Deus") e das quais fez uso constante em suas prédicas jornalísticas em A Federação. Ao término de seu atormentado e fecundo período administrativo, foi substituído por Borges de Medeiros, que deve ser considerado mais um sucessor político do Patriarca de que seu continuador. Manteve-se Medeiros desde seu primeiro mandato até seu último período administrativo no poder, mediante sucessivas reeleições, com apenas uma interrupção. Borges de Medeiros governou o Estado durante 25 anos, baseado no dispositivo da Constituição castilhista, que permitia reeleições ao mandatário que atingisse os setenta e cinco por cento dos eleitores presentes ao pleito. A oposição, sistematicamente perdedora, atribuía sua derrota á fraude eleitoral (do voto comprado ao voto no escuro ou manipulado) e foi acumulando ressentimentos, até a explosão revolucionária de 1923. Afirma-se que Assis Brasil, candidato de oposição a Borges, em sua última eleição, teria vencido a disputa, quando a Comissão de escrutínios resolveu alterar os resultados das urnas, rasurando atas ou falsificando-as. 174 MOZART PEREIRA SOARES

Terminada a luta, resolveu-se enfim revisar a Constituição de 14 de julho, proibindo-se as reeleições (entre outros dispositivos), que transformavam os governantes republicanos em mandatários monárquicos, pelas contínuas reconduções. Apesar de várias perturbações que enfrentou, o longo reinado de Borges de Medeiros deixou saldos valiosos sobre os quais não é lícito silenciar. A escrupulosa moralidade administrativa, reconhecida até pelos mais duros adversários, passou a ser sua marca registrada. Sua folha de serviços vem de antes de assumir o governo. Depois de haver comandado uma força legal na Divisão do Centro, em 93, foi Delegado de Polícia, quando elaborou o Código de Processo Penal, a serviço de Castilhos. Em novembro de 1897 foi eleito, sem concorrentes, para Presidente do Estado. Ao término do mandato, Castilhos, de acordo com dispositivo constitucional, recomendou-o à reeleição, que

obtém facilmente. Ao morrer o Patriarca, em 1903, Borges acumula o posto de chefe do PRR com a Presidência do Estado. Seguindo os passos de Castilhos, incentivou a pequena propriedade organizada, favoreceu o surto industrial das colônias alemã e italiana, impulsionou o ensino superior, apoiando financeiramente a Escola de Engenharia, que já delineara seu grande plano de uma federação didática, com uma taxa que chegou a 4% sobre o orçamento geral do Estado. Tais recursos, entregues à Presidência da Escola, permitiram-lhe construir o vultoso patrimônio territorial e predial, mais tarde transferido para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O apoio de Borges à nossa primeira universidade valeu-lhe o conceito de Presidente subjetivo da instituição, como já se acentuou. Em 1902 instituiu ele uma reforma tributária, criando o imposto territorial, incidente sobre as grandes propriedades e isentando as indústrias e os produtos de exportação. No início de seu 3º mandato, em 1907, manifestou-se uma oposição por parte de alguns dissidentes do PRR, com Fernando Abbott. Não querendo desgastar-se, Borges não concorreu, mas indicou o candidato vencedor, o Dr. Carlos Barbosa, que governou até 1912. Ao retornar Medeiros em 1913, enfrentou a maior das greves até então acontecidas no Rio Grande. Bom negociador, recebeu a Comissão grevista em Palácio, reconhecendo-lhes os direitos, de acordo com os ditames de Comte, para quem as greves constituem O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 175

o único recurso dos fracos contra os fortes e como tal merecem o respeito dos governantes. Grandes foram seus esforços a favor da navegação e do viário, então incipientes. Foi assim que chegou a encampar os serviços portuários e as estradas de ferro em mãos de estrangeiros. No seu 4º mandato, em 1918, enfrentaria a grande crise conseqüente à 1ª Guerra européia, tendo de proibir a exportação de gêneros alimentares. Prestigiado, foi eleito com 100 mil votos. Seu último período governamental, assumido em janeiro de 1923, após uma eleição duramente contestada, defrontou-se com a revolta armada, que não lhe tirou o poder, como pretendiam seus adversários, mas promoveu a revisão da Carta constitucional. Em 1928 entregou o governo a Getúlio Vargas e retirou-se definitivamente da vida pública. Exercendo o poder durante tantos anos, descurou-se de seus bens particulares. Apenas conservou-os precariamente. Um dos maiores exemplos de honradez entre nossos homens públicos, faleceu em 1961, aos 97 anos. Duas informações finais, para complementar seu perfil. Ao fim da vida, retornou ao Catolicismo. Aos que o consideraram um temperamento inflexível e prepotente, endereçou uma refutação sutil numa obra política digna de reflexão: "O Poder Moderador", editada em Pernambuco (onde se diplomara em Direito) em 1933. Foi ela escrita sobre os escombros constitucionais da Revolução de 30, e seu objetivo essencial era oferecer ao Governo Provisório subsídios para a nova carta que teria de elaborar e nesse momento em via de concretizar-se, depois do movimento paulista de 1932. Na parte final desse trabalho, intitulada "Anteprojeto de Constituição Federal para o Brasil", propõe a volta do 4º poder, o moderador, adotado no Império, como remédio para as imperfeições do presidencialismo do Brasil. Aí gravou esta página que assume o sentido de autêntica mea culpa: O seu presidencialismo (do Brasil) sem freios, sem contrapesos eficientes, já em seus primeiros dias, degenerara em um regime de governo unipessoal e ditatorial. Ninguém que examine sem preconceito o passado nacional, deixará de reconhecer quanto contribuiu essa degenerescência progressiva do governo presidencial, para os erros e crises, que vem atormentando a República duran- 176 MOZART PEREIRA SOARES

te os 44 anos de existência, a maior parte deles transcorridos sob ditaduras legais e extralegais.60 Finalmente, entre os governantes rio-grandenses da República Velha, em relação ao Positivismo, merece referência especial Getúlio Vargas. Muitos, equivocadamente, arrolam-no como positivista ou, no mínimo, simpatizante. A verdade é que nem isso ele o foi. A confusão talvez se explique por alguns fatos ligados à sua evolução pessoal, a começar pela atmosfera de sua formação. Positivista e assim reconhecido por Ivan Lins, foi seu irmão Protásio Vargas. Getúlio manifestou sua simpatia por alguns dos postulados comtianos desde a juventude, em que despontou sua capacidade de liderança. Ao falecer Júlio de Castilhos, em 1903, Getúlio era estudante de Direito, na Faculdade de Porto Alegre e, nessa condição, foi o orador da cerimônia fúnebre em nome de seus colegas. O problema político de maior expressão em seus governos foi o da incorporação do proletariado à Sociedade, segundo as recomendações de Augusto Comte. Nesse sentido contou desde cedo com a colaboração de Lindolfo Collor, positivista e redator de A Federação desde os tempos em que este atuava naquele jornal. Quando assumiu a Presidência da República, em 1930, Getúlio confiou a seu acatado conterrâneo a legislação trabalhista brasileira que viria a instalar-se no país através do Ministério do Trabalho. Em outras medidas, porém, Getúlio revelou-se, em verdade, um antipositivista. Centralizador, abalou profundamente o federativísmo nacional, queimando bandeiras estaduais e extinguindo as Constituições que os positivistas denominaram as pátrias brasileiras, Foi um permanente revolucionário, opondo-se às diretrizes de Comte e, por fim, adotou um arremedo de ditadura científica, utilizando-se da autoridade do regime sem a contrapartida da liberdade crítica, ao instituir a censura através do famoso DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda, com o qual estabeleceu uma tutela nacional a seu modo. Com ele, a influência política do Positivismo se extingue no Estado.

60 - Medeiros, Antônio Augusto Borges. O poder moderador na República Presidencial. S. A. Diário de Pernambuco, 1933, pág. 59. O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 177 Capitulo VII A CAPELA POSITIVISTA DE PORTO ALEGRE

Ao fim da primeira década do século, a propaganda positivista prosseguia a cargo do pequeno grupo reunido em torno de Faria Santos, pela distribuição da literatura do Apostolado Positivista e do núcleo de Porto Alegre. Realizavam-se reuniões domiciliares, com a leitura e comentários do Catecismo Positivista. A partir desse momento, Carlos Torres Gonçalves passa a desempenhar intensa atividade para organizar uma sede especial para as reuniões do grupo religioso do Rio Grande do Sul e onde, enfim, se pudessem desenvolver outros eventos. A primeira idéia foi contar com um local que, além da realização de comemorações ligadas à doutrina, permitisse reuniões administrativas, depósito de bens diversos, inclusive publicações, e a formação de uma livraria, incluindo a "Biblioteca Positivista", recomendada por Augusto Comte. Os recursos materiais para tal fim seriam os subsídios positivistas, iniciados por Felizardo Júnior, que fixou critérios para sua formação e abriu-lhe as mais amplas possibilidades de aplicação. O grupo de Porto Alegre organizou várias listas destinadas ao angariamento de fundos. Muitas delas conservam-se no Arquivo da Capela. A primeira é uma relação de contribuintes sob o título "Fundo Tipográfico Positivista Rio-Grandense. Subscrição entre as pessoas que simpatizam com Positivismo para a formação deste Fundo." O documento não traz data, mas, a julgar-se pela assinatura inicial de Felizardo Júnior, e pelas listas seguintes, muito próximas do falecimento deste (21 de março de 1906), deve ter sido elaborada nessa época. Nessa primeira relação figuram: José Felizardo Júnior, Faria Santos,

Raul Abbott, Carlos J. Gonçalves, A. Pestana Ildefonso Fontoura, W. Lielinski, Luiz Debiezi, Otávio Rodrigues da Silva, Francisco Ávila Silveira, Evaristo do Amaral, Carlos Alberto Miller, Manuel Luiz Pereira da Cunha, G. C. Lima, Vespasiano Corrêa, Benito Elejalde, João Leivas de Carvalho, Luciano de Almeida, Lindolfo Silva, José da Costa, Attilio Trebi, J. Parobé, João Simplício Alves de Carvalho, A. Pradel, Victor Leães, Teodoro (ilegível), Alfredo Bor- 178 1MOZART PEREIRA SOARES

Capela positivista de Porto Alegre.

ges (ilegível), Salvador Caparello, Gabriel Bello, Augusto Armando Pinheiro, Israel Azambuja e M. Carvalho. Em número expressivo, assinam engenheiros e militares ligados à Diretoria de Obras Públicas do Estado, à Escola de Engenharia de Porto Alegre e à Escola de Guerra.. O critério seguido no Rio Grande do Sul foi o mesmo adotado pela Igreja e pelo Apostolado Positivista do Brasil quanto a possíveis contribuintes, constando em seu regulamento: O simples concurso pecuniário não significa adesão à doutrina, nem subordinação à nos- O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 179

sa autoridade ele pode, até , ser também prestado por dignos adversários que, divergindo de nossas soluções, julgam socialmente úteis e sinceros os nossos esforços no sentido geral de chamar a atenção pública para o problema religioso. Da mesma forma como aceitam contribuições como as acima citadas, também se dispõem a prestá-las. Sob o título geral de Subsídios Positivistas, conservam-se na Biblioteca da Capela de Porto Alegre os seguintes livros: 1 - Sob nº 2, abrangendo os anos de 1901 a 1905, lançamentos de próprio punho de Joaquim José Felizardo Júnior, no qual consta uma relação inicial de mais de uma centena de nomes, acompanhados das respectivas profissões e quantias doadas: 1. João Luiz Faria Santos- Engenheiro 2. Ildefonso Borges de Hiedo Fontoura - Engenheiro 3. Amaro Batista - Engenheiro 4. Augusto Pestana - Engenheiro 5. Donário Lopes de Almeida - Engenheiro 6. Otávio de Campos Moiteiro - Engenheiro 7. Olímpio Coelho Leal -Farmacêutico 8. Joaquim José Felizardojúnior - Engenheiro 9. João José Pereira Parolé - Engenheiro 10. Afonso Ramos Corrêa- Engenheiro 11. Miguel Cavalheiro - Engenheiro 12. Germano Petersen Júnior - Comerciante 13. Carlos Torres Gonçalves - Engenheiro 14. Luiz Torres Gonçalves- Engenheiro 15. Adolfo Torres Gonçalves - Comerciante 16. João Simplício Alves de Carvalho - Militar 17. Constantino da Silveira- Engenheiro 18. Pedro Virgínio Martins- Engenheiro 19. Francisco de Ávila Silveira - Engenheiro 20. Luiz Gonçalves da Cunha - Engenheiro 21. Benito Ilha Elejalde - Engenheiro 22. Manoel Érico Cantalíco Nunes Feijó - Notário 23. José Gonçalves de Almeida - Militar 24. Juvenal Otaviano Miller - Militar 25. Carlos Alberto Miller -Comerciante 26. Nelson Coelho Leal - Engenheiro 180 MOZART PEREIRA SOARES

27. João Fernandes Moreira - Engenheiro 28. Vespasiano Rodrigues Correia - Engenheiro 29. Francisco Flores da Cunha - Farmacêutico 30. Jardelmo Gonçalves de Senna - Magistrado 31. Raul Abbott - Telegrafista 32. Rubem Abbott - Notário 33. João Abbott (Dr.) - Médico 34. Emédio Dantas Barreto - Militar 35. Alcibíades Cavalcanti de Albuquerque - Magistrado 36. Gonçalo Correia Lima - Militar 37. Érico Passos Feijó - Estudante 38. Antônio Veríssimo de

Matos - Engenheiro 39. José Penna de Morais - Funcionário Público 40. Manoel da Costa Barradas - Magistrado 41. Orlando Alves da Silveira - Engenheiro 42. Benjamin Torres - Estudante 43. Clarimundo de Almeida Santos - Agrimensor 44. Carlos Augusto Cruz - Professor 45. Vasco Raimundo da Silva Flores - Professor 46. José Barbosa Gonçalves - Engenheiro 47. Manoel Luiz Pereira da Cunha - Engenheiro 48. Otávio Rodrigues da Silva - Agrimensor 49. Baltazar Patrício de Bem - Estudante 50. Argemiro Carlos Pinto - Engenheiro 51. Wlandislau Bandeira Teixeira - Militar 52. João Cezimbra Jacques - Militar 53. Jonatas Borges Fortes - Militar 54. João Borges Fortes - Militar 55. Manoel da Costa Medeiros 56. Raul de Lima 57. José Cezário da Silva 58.João Garibaldino Rolim - Industrial 59. Luiz Debize - Agrimensor 60. Antônio Caetano - Engenheiro 61. João Maia - Funcionário Público 62. Pedro Vicente Loubeira - Funcionário Público 63. Diogo Alvares Fontoura (Dr.) - Médico 64. João Moreira de Oliveira Brasiliano - Militar 65. Antônio Pereira Prestes - Militar 66. J. B. Martins Pereira - Militar 67. Aurélio Veríssimo de Bittencourt - Funcionário Público O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 181

68. Liga Operária de Quarahi 69. Alfredo Assumpção - Militar 70. Álvaro Rodrigues Leitão - Estudante 71. Luiz M. de Toledo - Farmacêutico 72. Ermelinda de Almeida Felizardo 73. Guilherme Lemos de Castro - Dentista 74. Júlio Azambuja - Advogado 75. Antônio Carneiro Monteiro - Engenheiro 76. Domingos Leopoldino da Fonseca e Silva - Bacharel 77. Domingos Pinto Filho 78. Marcos Avelino de Andrade - Funcionário Público 79. Alfredo Gastão Leal - Farmacêutico 80. João Pinto Filho - Estudante 81. Oscar Castilho - Estudante 82. Correligionários de Sta. Maria 83. Emílio de Campos - Advogado 84. Armínio Silveira - Engenheiro 85. Diniz Martins Rangel - Capitalista 86. Júlio Coelho - Agrimensor 87. Felipe Nery Ferreira Martins - Notário 88. José Maciel - Capitalista 89. Jerônimo Fettermann - Comerciante 90. Joaquim Barbosa Telles - Funcionário Público 91. José de Souza Brito Júnior - Agrimensor 92. Roberto Fül da Rosa - Professor 93. Joaquim Lopes de Azeredo - Farmacêutico 94. José Pantoja Rodrigues (Cap.) - Militar 95. João Batista Machado Vieira (1º Tte.) - Militar 96. Jonatas da Costa Rego Monteiro (1º Tte.) - Militar 97. Abrilino de Abreu (1º Tte.) - Militar 98. Arthur Xavier Moreira (2º Tte.) - Militar 99. José Joaquim de Oliveira Reis (2º Tte.) - Militar 100. Crescêncio Alf. aluno - Militar 101. José Fredolino Prunes - Jornalista 102. Protásio Vargas - Engenheiro 103. Virgínea Torres Gonçalves 104. Conrado Miller de Campos - Notário 105. Alfredo Carlos de Souza Brito - Militar 106. Arthur Homem de Carvalho (Dr.) 107. Serafim Terra - Engenheiro 182 MOZART PEREIRA SOARES

108. Osório de Azambuja Cidade

109. Alfredo Gastão Leal (78) 110. Armínio Silveira (82). Essa mesma relação, com alguns acréscimos, se mantém até 1905, anotada por Felizardo Júnior. Entre os novos assinantes comparecem, ao lado de outros, mais os seguintes nomes: Manoel Nascimento Vargas (pai de Getúlio Vargas), João Escobar, Sérgio Ulrich de Oliveira, Tasso Fragoso, Augusto Carlos Legendre, Armando Salgado, Henrique Dexheimer, Carlos Soares Bento, Gabriel Bello, Ovídio Damasceno Ferreira, Luiz Penafiél, José D'Avila Garcez, Luiz A. Gomes Ferraz, Adalberto Pitta Pinheiro, Solano Alves Pereira, José Afonso Wamosy (pai do poeta Alceu Wamosy), Agnelo Corrêa, Alberto Portela, Frederico Lino, Lino Carneiro da Ortiz, Dr. Tito Moreno, João Benício da Silva e Wenceslau Nogueira Fontoura - Militar -João Abbott Leiria, Antônio Augusto Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos. Em cerca de uma centena de nomes, predominam

largamente, como profissionais, os engenheiros (pouco mais de 30), militares (em torno de 25), os restantes se distribuindo em várias categorias. Como procedência, a maioria, como é natural, provém da Capital. Entretanto, um número expressivo cobre praticamente o mapa do Estado. Os militares são originários de vários pontos do país, quase todos sofreram influência direta do Professor Benjamin Constant e aqui desempenharam papéis de notório relevo na vida política e cultural do Estado. Em 1906 decresce consideravelmente o número de contribuintes, voltando porém ao nível anterior durante 1907/8. Russomano, Dr. Francisco Py Crespo, Alexandre Martins da Rosa, João de Abreu Dahne, Teotônio da Costa Araújo, Alfredo Müzell, Mário da Costa Requião, Carlos Kruel, Guaracy Souto Maior, Oscar Bastian Pinto, José Caron, Altamiro Cardoso, José Inocência da Câmara, Silvestre Péricles de Góes Monteiro, Caio Escobar, Carlos Soares Bento, Domingos Seguézio, Rufino de Souza Pires, Hélio Escobar, José Pompeo Falcão, Dr. Feliciano Falcão, Arquimedes Cavalcanti, Thomaz Thompson Flores, Luiz Miranda, José Eston, Emílio Leão, José Francisco Dias da Costa, Eduardo Lippmann, Adolfo Sá de Miranda Pinto, José Moreira Alves e Ernesto Bertaso. Em 1929 a lista dos adeptos para o Subsídio Geral é de 24, com dois extranumerários; em 1930 desce para 20 e em 1931 são apenas 14. Mas os fiéis dessa hora desdobram-se em socorros aos fundos diversos, além de aumentá-los significativamente. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 183

Livros especiais: I - Sem número e sob o título "Contribuições para a Igreja Positivista do Brasil no Rio de Janeiro e outros fins da Propaganda". Há um caderno iniciado em 1923 (ano 135 do Calendário Positivista) e encerrado em 1936, escriturado por Carlos Torres Gonçalves. Os contribuintes são quase os mesmos das relações anteriores. Mas a partir de 1932 começam a aparecer novos nomes, que se mantêm até o fim do livro: Vitório Veloso, Salvador Petrucci, Ernesto Xavier, João Garcia, Belisário Petrucci, Francisco Monteiro Alves, Rafael Brusque, Almir Moraes Corrêa, Oscar Corrêa, Aristides Prates da Fontoura, Emílio Mabilde, Celeste Gobbato, Branca M. Moura, Ney Crisóstomo da Costa, Luiz Arthur Ubatuba de Faria, Sofia Torres Gonçalves, Rosália Beatriz Gonçalves, Clotilde Gonçalves, Branca Torres Gonçalves (as quatro últimas, todas filhas do Dr. Carlos Torres Gonçalves) e Dagmar Torres Gonçalves, esposa do Dr. Carlos), Aureliano Lima Morais Coutinho (Cap.), Cícero Carneiro, João Ribeiro Filho, Otávio Saint jean Gomes, Plínio Freitas, Leopoldo Betiol, Vicente Lucas de Lima. II - Caderno sob o título "1º Subsídio do Apostolado Positivista, Fundo Tipographico Positivista Rio-Grandense". Iniciado em 1906 e encerrado a 13 de janeiro de 1907, com saldo de 173.000 (cento e setenta e três mil réis), remetidos nessa data a j. Mariano de Oliveira. III - O "Fundo Positivista Rio-Grandense", aberto em 1907, encerra-se a 31 de dezembro de 1922, com um déficit de 283.760. As despesas são da mais variada índole. Os contribuintes são praticamente os mesmos. IV - Caderno sob o título "Apostolado Positivista do Brasil, Subsídio Positivista". Abrange o período de 1907 a 1910. O destino do fundo distribui-se pelos índices: subsídio geral, contribuição para a orquestra, pensão para Ermelinda Felizardo, subsídio parisiense, contribuição para o culto católico e resgate da Casa de Augusto Comte. A arrecadação total do ano de 1907 atinge a 8.930.500 (oito contos, novecentos e trinta mil e quinhentos réis); em 1909 é de 6.362.000 (seis contos e trezentos e sessenta e dois mil réis), remetidos a J. Mariano de Oliveira (6.213.000) e Venâncio Neiva (97.000). V - Mausoléu do Dr. Felizardo. Sob este título, aberto com o seguintes dizeres: Subscrição para a construção de um mausoléu que perpetua a memória do Dr. Joaquim José Felizardo júnior e para adquirir como jazigos per- 184 MOZART PEREIRA SOARES

pétuos os terrenos em que repousarão os restos mortais dele e de sua Esposa. N.B. O saldo que se verificar pelo implemento da presente subscrição reverterá para o fundo tipográfico positivista Rio-Grandense. 118 (1906). Subscrevem a lista de 50 assinaturas: 1. Carlos Torres Gonçalves 2. J. L. de Faria Santos - 5$000por mês 3. Raul Abbott - 24000 por mês 4. Cap. Osório de A. Cidade - 100000 para o mausoléu e 50$000 para aq. do terreno 5. Benito Ilha Elejalde 6. Vespasiano Corrêa 7. Ildefonso B. F. da Fontoura 8. Octávio Roiz da Silva 9. Clarimundo de Almeida 10. Luiz Voelcker 11. Eng. Álvaro Rodrigues Leitão 12. Cel. Agnelo Corrêa da Silva 13. Eng. Manuel Luiz Pereira da Cunha 14. Augusto Pestana 15. Marcos Ruivo 16. Cap. Gonçalo Corrêa Lima 17. Wenceslau Zulinsky 18. João Eustácio de Sousa 19. Eng. Tito Corrêa Lopes 20. Eng. Donário Lopes 21. Pedro Leivas 22. Eng. Nelson Coelho Leal 23. Luciano Almeida 24. Adolfo Torres Gonçalves 25. Dr. Arthur Homem de Carvalho 26. José Montaury de A. Leitão 27. João Simplício Alves de Carvalho 28. Escola de Engenharia de Porto Alegre 29. Octávio de Campos Monteiro 30. Alfredo de A. Borges 31. Coronel Marcos Alencastro de Andrade O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 185

32. João Leivas de Carvalho 33. Érico Feijó 34. Major José Gonçalves de Almeida 35. João Thomaz de Mattos 36. Frunctuor Borges da (ilegível) 37. Francisco de Ávila Silveira 38. G. Cartin 39. M. Cavalheiro 40. Palaisard (?) 41. Alfredo Reveilheau 42. Cap. Wladislau Bandeira Teixeira 43. Cândido Godoy 44. Jaci (2 sobrenomes ilegíveis) 45. J. Parobé 46. Salvador Caparelli 47. Gabriel Bello 48. Júlio Coelho 49. Carlos Alberto Miller 50. C. Lila da Silveira. A contribuição é mensal, durante um ano. A presente lista rendeu 1.435.000 (um conto de réis e 435.000 réis). Nova lista, composta de 18 nomes, muitos dos quais integrantes da primeira, estendeu a quanta anterior para um conto e seiscentos e trinta mil réis (1.630.000). A partir da transferência do Dr. Carlos Torres Gonçalves para o Rio de janeiro, a Capela Positivista de Porto Alegre passou a contar com a guarda dos Profs. Salvador Petrucci e Moisés Westphalen. A receita pecuniária para sua manutenção, sempre espontânea, deixou de ser regular. Sempre que houve necessidade de pintura e reparos, recorreu-se aos adeptos que se reuniam no andar inferior (Biblioteca) e entre eles contaram-se Ernesto de Freitas Xavier, Victório Veloso, Nery da Silveira, Carlos Candal dos Santos, Salvador Petrucci, Moisés Westphalen, Dante Westphalen, Kurt Weissheimer, Francisco de Miranda Garcia, Plínio Dutra, Áureo Gonçalves Dias, Afrânio Capelli e Mozart Pereira Soares. Observe-se que todos esses foram ou são apenas simpatizantes do Positivismo e não membros da Religião da Humanidade. O pequeno grupo de positivistas religiosos cuja mobilização foi iniciada por Felizardo Júnior tratou, logo após seu falecimento, de organizar uma sede para a propaganda, e outros fins, como se viu. 186 MOZART PEREIRA SOARES

Em uma de suas primeiras articulações reúnem-se, sob a liderança de João Luiz Faria Santos, os seguintes adeptos: Dr. Arthur Homem de Carvalho, Cap. Osório de Azambuja Cidade, Cap. Gonçalo Corrêa de Lima, Cap. Wladislau Bandeira Teixeira e Eng. Carlos Torres Gonçalves. A 17 de julho de 1907 publicam eles uma Carta Circular todos os republicanos rio-grandenses" em que justificam a conveniência e, mais que isso, a urgência de se transformar o movimento gaúcho numa instituição religiosa, capaz de assegurar-lhe a continuidade. Mesmo contando com o apoio do Partido Republicano RioGrandense, ponderam: Convém ter sempre presente ao nosso espírito que o único laço que, na atualidade, prende entre si todos os membros do

Partido Republicano Rio-Grandense é a merecida confiança nas elevadas qualidades de seu digno chefe; apenas uma pequena minoria conhece e aceita os fundamentos de sua orientação política. Ora este laço é, infelizmente pela sua própria natureza transitório (grifei). Por isso necessitou consolidá-lo irrevogavelmente, dando-lhe uma base indestrutível, consistindo em ligar suas convicções políticas às suas crenças religiosas. Para os signatários da Circular, esse objetivo só poderia ser atingido pela difusão do Positivismo. Havia ainda outras ameaças a prevenir. Desde a morte de Castilhos (24/10/1903), os elementos da oposição intensificavam sua campanha de revisão da Constituição de 14 de julho. Mesmo que não considerassem o Código de Castilhos obra perfeita e acabada, mas suscetível de retoques em várias disposições, os positivistas entendiam que sua curta vigência ainda não permitira à comunidade o grau de familiaridade necessária para se colherem sugestões que auxiliassem e orientassem num real aperfeiçoamento. Insistiam em que, mediante o regime adotado de completa liberdade espiritual, se permitia o exercício do poder por um governo de plena confiança e inteira responsabilidade. Concluindo, afirmavam: O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 187

Para nós, republicanos positivistas, o problema, cuja solução cada vez mais se impõe, não é mesmo de natureza política, e sim religiosa. Não é da reforma das instituições políticas que depende a regeneração social, mas de reforma dos costumes (...). Com esse ideário e amparados pelos subsídios positivistas (cuja atividade se prolonga até os dias atuais), começaram a concretizar o projeto da sede, cuja primeira medida foi a assinatura de um contrato com a Intendência Municipal de Porto Alegre para a aquisição de um terreno situado no "Campo da Redenção". Com os recursos angariados pelos subsídios, acrescidos de várias doações e depois algumas tratativas que ampliaram as dimensões de próprio inicialmente visado, a Comissão da Sede adquiriu o local em que hoje se encontra a Capela Positivista de Porto Alegre, na Avenida João Pessoa, 1058, com 20 metros de frente e 55 de fundo. A Circular Anual da Igreja Positivista do Brasil, dirigida aos cooperadores do "Subsídio Positivista Brasileiro no Estado do Rio Grande do Sul", traz um completo histórico das providências que culminaram com a ultimação da compra a que aludimos. A partir da aquisição do terreno multiplicam-se em atividades os membros da Comissão da Sede, sobretudo o Engenheiro Carlos Torres Gonçalves, que nos dá uma completa "Notícia" da festa de lançamento da pedra fundamental do edifício da sede da propaganda positivista em Porto Alegre, realizada a 19 de janeiro (aniversário de Augusto Comte) de 1912. O programa realizado foi calcado essencialmente sobre o do lançamento da pedra fundamental do Templo da Humanidade do Rio de janeiro, a 12 de outubro de 1890, e o da inauguração do mesmo em 15 de agosto de 1891 (informações de Torres Gonçalves). Pelo confrade João Luiz Faria Santos foi lida a ata da cerimônia. Nela consta uma declaração do propósito da Comissão: O edificio, conforme o conselho do Fundador e Diretor da Igreja Positivista do Brasil, o cidadão Miguel Lemos, será, por enquanto, uma simples casa, o quanto baste para servir de ponto de reunião dos positivistas do Rio Grande do Sul e sede material da modesta propaganda iniciada nes- 188 MOZART PEREIRA SOARES

te Estado pelo nosso inolvidável confrade Joaquim José Felizardo Júnior, em fins de 1899. Com essa pedra fundamental encerrou-se uma urna contendo, entre várias relíquias, o Testamento de Augusto Comte, uma tradução de seu Catecismo pelo Diretor Miguel Lemos, além de cartas recebidas pela Professora Nizia Floresta Brasileira, de Augusto Comte, a quem freqüentara em

Paris. A cerimônia festiva, na qual se executaram várias peças musicais de grandes compositores universais, foi assistida por umas três centenas de participantes. É número expressivo a demonstrar que o pequeno mas devotado grupo de aderentes mais ativos do Positivismo religioso no Rio Grande abrangia, na realidade, um considerável contingente de simpatizantes. Com o decorrer do tempo (da pedra fundamental à inauguração da sede, transcorreram 16 anos), o projeto original de uma simples casa foi adquirindo uma feição mais adequada a uma pregação religiosa, qual seja a de uma Capela, inaugurada a 19 de janeiro de 1928. Foi uma construção modulada, que se iniciou pelo começo da nave futura, com apenas 6 metros de profundidade. Apesar de modesta, é um edifício gracioso, decorado de legendas e emblemas positivistas, que atrai, constantemente, a curiosidade popular. Recuada cerca de dez metros na via pública, é protegida por um gradil (pintado em verde, cor oficial do Positivismo), em cujo portão central lê-se um dos lemas da doutrina: "Os vivos serão sempre, e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos". Esclareça-se: esta divisa não evoca nenhuma inspiração sobrenatural ou espirítica. Apenas pretende caracterizar a influência do Passado sobre o Futuro, a indicar que são os exemplos do pretérito que nos guiam permanentemente. Nossos antepassados constituem, no dizer de Comte, uma assembléia imponderável dos "mortos imortais que nos governam", cada vez mais necessariamente, visto constituírem um sábio modelo de conduta pela experiência humana acumulada. O acesso ao patamar que conduz ao pórtico da Capela é assegurado por uma escadaria de três lanços, formando 13 (treze) degraus, cada vão dedicado a um dos 13 meses do Calendário Positivista. Do sólio, para o patamar sucedem-se o Proletariado, simbolizando a Providência geral da Humanidade; o Patriciado, ou conjunto dos chefes de indústria, que deve guiar aquele, o Sacerdócio, cuja função normal é aconselhar os chefes ou capitães de indústria e O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 189

fechando este primeiro grupo, a proteção e inspiração da Mulher, presidência afetiva da espécie humana. O ciclo seguinte reverencia, sucessivamente, o monoteísmo, o politeísmo e o fetichismo, cultuando o estágio teológico de nossa evolução religiosa. A muitos causa estranheza a ordem em que Augusto Comte dispôs essas três etapas de nossa história mental, visto que o fetichismo corresponde à nossa aurora espiritual e o monoteísmo representa nosso derradeiro estágio do regime sobrenatural. Comte justifica a inversão nessa escala considerando que o fetichismo é, dos três momentos referidos, o mais espontâneo e natural e que, por isso mesmo, será a meta final de nossas manifestações venerativas quando, por motivos religiosos, seremos levados a homenagear a Terra, como o Grão Fetiche, o espaço, como o Grão Meio e a humanidade, como o Grão Ser. Os seis meses seguintes são consagrados à sociabilidade humana, a começar pela domesticidade e seguindo-se a fraternidade, a filiação, a paternidade, o casamento e a humanidade. A ordem cronológica dessas instituições destina o 1º mês à Humanidade (o ser supremo), e termina pelo 13º, dedicado ao Proletariado. A escala assim disposta foi denominada por Augusto Comte de Quadro abstrato da Preparação Humana, que, no futuro, substituirá o que se encontra no interior dos templos e que o fundador do Positivismo batizou deQuadro Concreto da Preparação Humana, composto pelos vultos de maior destaque oferecidos pelos grandes ciclos da Civilização ocidental, de Moisés, representativo da Teocracia inicial, até Bichat, o máximo representante da ciência moderna que o filósofo conheceu, conforme se arrolou no capítulo competente, quando tratamos da organização religiosa. Note-se que os representantes dos 13 meses se completam por um dia além de 364 (que resultou da soma dos 13 meses de 28 dias), que se consagra à fraternidade universal, acrescido de mais um período de 24 horas nos anos

bissextos, reservado para a comemoração das mulheres santas, representadas por Heloísa. No frontão, em estilo grego, contemplamos a humanidade, representada por uma efigie de mãe numa figura de mulher aos 30 anos, com um filho nos braços. Dedicada ao serviço da humanidade, é encimada pelo verso invocativo da Divina Comédia, Virgine madre, figla de tuo figlo, resumindo a utopia da virgem mãe, com seu sen tido transcendente, ético e místico ao mesmo tempo. Vários dísticos positivistas decoram a fachada. O principal, no frontão, é afórmula sagrada do Positivismo: 190 MOZART PEREIRA SOARES

O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Figuram ainda em destaque, acima do pórtico principal, as palavras "Ordem e Progresso". Outros dizeres ainda se lêem na esplanada: viver para outrem, incitando a cultura sistemática do espírito de doação, considerado por Comte como a única fórmula de agradecermos os benefícios que recebemos do passado, que viveu por nós, e ao qual nada poderemos retribuir. Viver às claras é a divisa que expressa o dever de tornar nossas ações transparentes, receita cada vez mais dificil de vermos cumprida nestes dias, de agravamento da anarquia moral e espiritual, prevista por Augusto Comte. Tal dístico deverá ser, futuramente, inscrito nas moedas de todos os países. No interior da Capela encontramos o altar-maior em que a humanidade é representada por uma figura de mãe, dedicado ao congraçamento humano. Na Capela de Porto Alegre, é obra do artista nacional Décio Vilares (também o executor da bandeira republicana e do monumento a Júlio de Castilhos, na Praça Marechal Deodoro, em Porto Alegre). A escolha do vulto materno para simbolizar a humanidade ratifica a tendência universal para a glorificação do tipo humano mais simpático, já utilizada pelo catolicismo ao retratar Maria Santíssima. Aos pés dessa efígie, um busto de Augusto Comte e sob este, um tabernáculo que deve contar o Testamento do Mestre, seu Catecismo, além de outras relíquias. Em frente ao altar, o púlpito sobre um estrado, e em torno deste, frases de sentido alegórico inspirados em Dante Alighiere e nas leis das Filosofias Primeira e Segunda do Positivismo. Na face oposta ao altar, ergue-se o coro, contendo o órgão para execução de peças musicais compatíveis com as comemorações cívicas e religiosas. Os três elementos irredutíveis e constantes que se encontram em todas as religiões: o dogma, conjunto de princípios que, conforme cada uma delas, encerra a interpretação mundo e do homem e se dirige à nossa inteligência; o culto baseado nas artes, destinadas à cultura dos sentimentos e, finalmente, o regime, que disciplina nossos atos sobre a Terra e à própria humanidade, cobrem as paredes laterais e frontal, como sínteses da Religião demonstrável. O dogma que, em geral, se compõe de concepções ligadas ao sobrenatural, no Positivismo é constituído pela escala enciclopédica O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 191

das ciências (resumidas em cinco grupos, em vez de sete), e assim disposta: Lógica (matemática); Cosmologia, ou ciências do mundo (astronomia, fisica e química), Biologia, Sociologia e Moral. Noutra face lateral distribuem-se as artes que participam do culto, dispostas segundo uma hierarquia estética baseada no método classificatório que parte da mais geral (poesia), para a mais técnica (arquitetura), passando por música, pintura e escultura. Na face correspondente ao coro constam duas alusões às atividades do homem: a primeira concernente à Terra, que é a Indústria, e, a segunda, relativa ao próprio homem, que é a Política. Inspirado em José Bonifácio de Andrade e Silva, o seu celebra do provérbio:A sã política é filha da moral e da razão. Gravados nos vidros foscos das portas internas da capela, comparece a síntese da sabedoria antiga: "Conhece-te a ti mesmo", a que Augusto Comte

aduziu o complemento moderno, que esperou por séculos: "A fim de te melhorares", com que ele assinala a meta que justifica nossa busca permanente da verdade. Como fecho dessas mensagens, a máxima altruística de Clotilde de Veau: Que prazeres podem exceder aos da dedicação? O piso inferior, subdividido em três peças, compõe-se de sala de reuniões, com a Biblioteca (inclusive a recomendada por Augusto Comte), além de relíquias especiais, e uma outra que serve de arquivo e à coleção de publicações. Por fim, a peça maior, abrigando uma oficina e depósito de materiais diversos. Aos fundos do pátio encontram-se instalações para a zeladoria da Capela. A guarda do próprio pertence à Delegação Executiva da Igreja Positivista do Brasil e tem contado sempre com recursos dos subsídios, desde que foram instituídos, até nossos dias. Como último membro da Igreja Positivista, Torres Gonçalves zelou pela Capela e manteve as reuniões dominicais com a leitura do Catecismo, enquanto residiu em Porto Alegre. Após sua aposentadoria na função pública estadual e transferência para o Rio de janeiro, não mais se realizaram tais atividades na Capital gaúcha. Encarregaram-se, então, de zelar pelo próprio referido os professores Salvador Petrucci e Moisés Westphalen, devidamente autorizados pela Delegação Executiva da Igreja, no Rio 192 MOZART PEREIRA SOARES

Prof. Moysés Westphalen.

de janeiro. Não sendo ambos membros da Igreja, não mais se realizaram cerimônias públicas na Capela. Apenas abria-se o Templo, aos domingos pela manhã, para visitação. Após o falecimento daqueles dois simpatizantes, foram credenciados a substituí-los Afrânio Capelli e Mozart Pereira Soares, que, a exemplo de seus antecessores, também não são membros da Igreja. Cabe-lhes guardar o Templo, abri-lo ao público nos domingos e receber pessoas ou grupos interessados em conhecê-lo, como também realizar comemorações especiais. Entre as cerimônias que aí se realizaram nos últimos tempos, merecem referência o lançamento do opúsculojúlio de Castilhos, do autor destas linhas, edição do Instituto Estadual do Livro, a 14 de julho de 1991, comemorativo do 1º Centenário da Constituição Castilhista, uma cerimônia evocativa de Tiradentes, a 21 de abril de 1992, pelo historiador gaúcho Joaquim Felizardo Júnior, neto do iniciador do movimento religioso em Porto Alegre, e a celebração do centenário do nascimento do simpatizante Eng. Agrônomo Ernesto de Freitas Xavier, com a presença de familiares, na data respectiva. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 193

Numerosas têm sido as visitas de estudantes do 2º e 3º graus, acompanhados de seus respectivos professores, quando ouvem explanações sobre a doutrina por algum dos simpatizantes que o freqüentam. Constata-se, no momento, crescente interesse acadêmico pelo Positivismo. A capela vem sendo cada vez mais procurada para a elaboração de trabalhos históricos, em nível de pós-graduação, tendo mesmo surgido uma iniciativa de caráter sistemático, que levou os encarregados atuais da Capela, autorizados pela Delegação Executiva da Igreja Positivista Brasileira, a celebrarem um convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para a catalogação e conservação de seu acervo literário, composto pelas obras da Biblioteca, da vasta bibliografia nacional e estrangeira sobre o Positivismo, da correspondência ativa e passiva de vários membros com elementos do Apostolado e outros e da alentada coletânea em recortes da imprensa local e nacional sobre nosso movimento.

Posteriormente associou-se a este programa a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através de sua Secretaria da Cultura - Fumproarte -, que auxilia estudantes do Curso de História da UFRGS na execução do projeto intitulado "Organização do acervo e abertura ao público da Capela Positivista de Porto Alegre". Como primeiro resultado dessa iniciativa publicou-se o trabalho "Capela Positivista de Porto Alegre". Acervo Bibliográfico, Documental e Iconográfico, 155 páginas. Porto Alegre, setembro de 1996, pelos organizadores Elisabete da Costa Leal e Paulo Ricardo Pezat, tendo como auxiliares de pesquisa Débora Dinnebier, Eduardo Bettiol Prado e Luciana Martins Avila. Os organizadores acima citados elaboram neste momento teses em história em nível de mestrado, tendo Paulo Pezat ultimado sua contribuição sob o título "Augusto Comte e os fetichistas: estudo sobre as relações entre a Igreja Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista na República Velha". Servindo-se de fontes primárias, sobretudo da correspondência entre os positivistas de Porto Alegre e o Apostolado Positivista Brasileiro, ainda desconhecidas do grande público, elaborou alentado trabalho, de mais de quatrocentas páginas, que aguarda a palavra do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, para a sua desejável publicação. Outra iniciativa em curso diz respeito ao possível tombamento da Capela pelo Estado do Rio Grande do Sul, visando, simultaneamente, a zelar por um valioso acervo cultural e entregá-lo ao uso mais intensivo pelo público interessado. 194 MOZART PEREIRA SOARES Capítulo VIII A CONTRIBUIÇÃO EDUCACIONAL

A principal obra educacional no domínio técnico-científico do Positivismo no Rio Grande do Sul verificou-se praticamente em meio a um dos mais sangrentos conflitos ocorridos em seu território: a Revolução Federalista de 1893. É o que se pode afirmar tendo-se em vista a data em que se instalou aqui a confederação didática então denominada "Escola de Engenharia de Porto Alegre". Fundada logo após a pacificação, a 10 de agosto de 1896, não foi ela uma das Faculdades para o ensino convencional de Engenharia e Cursos afins, mas uma singular instituição de caráter universitário, feição que assumiu depois que se organizou o Ministério de Educação e Cultura do Brasil, após a Revolução de 1930. Seus fundadores foram jovens tenentes, engenheiros, militares, professores de nossa Escola de Guerra, amigos e ex-alunos de Benjamin Constant, que seguiam a orientação positivista do conhecido mestre. Eram eles João Simplício Alves de Carvalho, João Vespúcio de Abreu e Silva, Juvenal Octaviano Müller, Lino Carneiro da Fontoura e Gregório de Paiva Meira. Que era o Rio Grande do Sul, na época em que constituiu aquela singular confederação didática? Como tantas vezes em sua acidentada existência, era ainda quase a distante estremadura da nossa raia meridional, sem estradas e outros meios de comunicação, cujas atividades agropecuárias e industriais mal proviam suas necessidades basilares. Fugindo ao modelo universitário da América Latina, até ali predominante em nosso meio, procuraram adaptar-se ao tipo inglês ou norte-americano, segundo confissão de João Simplício num dos Relatórios da Escola de Engenharia. Sem dúvida, foram buscar inspiração no sistema Land Grant College, já seguido com notável êxito pelos Estados Unidos da América do Norte, que associava o ensino técnico à pesquisa científica e à extensão rural (ou urbana, conforme cada caso). Os conhecimentos hauridos na investigação seguiam dois caminhos: através do professor atingiu as salas de aula e, por meio dos agentes especializados de informação (os extensionistas), chegavam ao povo. Assim, tanto as casas de ensino, quanto a comunidade falariam a mesma linguagem. Os núcleos didáticos não se encontravam superpostos à sociedade, mas profundamente entrelaçados com o tecido social. Ninguém se aventuraria a dar grandes O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 195

passos, tanto na Agricultura, quanto na Indústria, sem consultar tão prestigiosa entidade. Com essa orientação, a "Escola de Engenharia" (leia-se Universidade Técnica) montou dois pólos pedagógicos, destinados à formação de um capacitado elenco de profissionais especializados para o domínio de nossos principais problemas sociais. O primeiro deles poderia chamar-se tecnológico ou industrial e visava a resolver nossos problemas concernentes às riquezas do subsolo, tais como a exploração dos depósitos de carvão fóssil e principais minas úteis à indústria: engenharia civil, eletrotécnica, engenharia química, engenheiros geógrafos, topógrafos, etc. Mais tarde surgiram os cursos relativos ao pólo verde, ligado à exploração das riquezas renováveis, do cultivo do solo: agricultura, pecuária e indústrias rurais. Seguindo ainda a orientação positivista do Apostolado, a cargo de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, não usaram a palavra universidade para o batismo de um conjunto de Faculdades, por entenderem que, sob essa denominação, se compreenderiam entidades de caráter medieval, baseados no ensino da escolástica, da retórica e da filosofia teológica, tais como as que a Espanha havia transplantado para o continente americano no início de nossa civilização, de origem européia. Em troca, advogavam a adoção de institutos de ensino técnico, necessários à educação de uma população carente em variados aspectos. O surgimento de uma universidade, como pretendia D. Pedro II, viria apenas disfarçar nossos andrajos com os européis de uma falsa grandeza, segundo artigos publicados na década de 80 do século passado por Teixeira Mendes, mais tarde reunidos no opúsculo A Universidade, do Apostolado Positivista. Em seu máximo desenvolvimento, quando a já "Universidade Técnica do Rio Grande do Sul" se desmembrou, cedendo seus cursos superiores para formar a Universidade de Porto Alegre (estatal, a partir desse momento), era constituída de 11 institutos de ensino, pesquisa e extensão, assim enumerados, à véspera de seu desmembramento, para dar origem à Universidade de Porto Alegre: 1. Instituto de Engenharia, destinado à formação de engenheiros civis, engenheiros de estrada e agrimensores. 2. Instituto "Montaury", com Secção de Engenharia Mecânica e Elétrica, incumbida de preparar engenheiros mecânicos e engenheiros eletricistas, bem como profissionais montadores nessas especialidades. 3. Instituto "Borges de Medeiros", para ensino superior de Agronomia e Veterinária. 196 MOZART PEREIRA SOARES

4. Instituto de Zootecnia, sediada em Viamão, relacionado com o melhoramento de animais domésticos e para o ensino de agricultura e pecuária em grau secundário, através da formação de técnicos rurais. 5. Instituto Experimental de Agricultura, destinado a pesquisa agrícola, pecuária e de indústrias rurais. 6. Instituto "Coussirat Araújo", para ensino de Astronomia, Física e Meteorologia. Mantinha uma rede de estações meteorológicas e os serviços respectivos no Estado. 7. Instituto "Parobé", destinado ao ensino profissional de mecânica, artes e oficios, formando mestres e contramestres para a indústria. 8. Instituto de Anímica, para o ensino de Química Industrial e Química Analítica. 9. Instituto Ginasial "Júlio de Castilhos", precursor do Colégio Estadual que hoje leva o mesmo nome. 10. Instituto "Pinheiro Machado", secção de ensino primário de Agricultura e Criação. Titulava operários rurais. 11. Instituto de Educação Doméstica e Rural, que figura como uma das instituições pioneiras entre nós, na educação feminina, segundo o modelo de "Home Economics", dos Estados Unidos. Este elenco demonstra, por um lado, a largueza de espectro do ensino técnico abrangido por aquela Universidade e, por outro, sua nítida orientação social.61 Notável, entre outros títulos, foi seu programa de assistência rural ao Estado. Essa assistência teve como um de seus pontos altos, num estado essencialmente agropecuário, o Ensino Ambulante de Agricultura, que, em

sua fase áurea, contando com a orientação de técnicos europeus, dispunha de vagões da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, especialmente adaptados, com cinema, livros, mostruários de máquinas e implementos, sementes, adubos, além de reprodutores de várias raças de animais domésticos, para realizar coberturas, anotadas no Registro Genealógico dos Rebanhos, providências que iriam trazer grandes melhorias aos nossos processos criatórios. O Instituto Borges de Medeiros, com técnicos que remeteu a se especializarem no estrangeiro, produziu as primeiras vacinas brasileiras contra as doenças dos animais. Manteve professores e pesquisadores pro-

61 - Retrospectiva histórica da idéia universitária no Brasil, in Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Mozart Pereira Soares e Peri Pinto Diniz - P. Alegre, 1992, pág. 31. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 197

venientes dos países mais evoluídos nas respectivas especialidades: Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália e Alemanha. Iniciou no Instituto Experimental de Agricultura - de Viamão - o mapeamento agrogeológico do Estado, a análise de nossos solos e o melhoramento genético das principais plantas cultivadas entre nós. Foi pioneira na introdução e no cultivo de plantas que hoje são grandes riquezas de nossos campos, como a soja, cujos primeiros ensaios de aclimatação foram realizados em 1919 nas Estações Experimentais de Santa Rosa e Cachoeira do Sul. Promoveu a interiorização do ensino profissional e técnico no Estado, cobrindo praticamente todo seu território com campos de experimentação e ensino agropecuário ou industrial sediados em Rio Grande, Santa Maria, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Santa Rosa, Júlio de Castilhos, Bagé e Alegrete. Manteve uma importante revista científica para divulgação de suas pesquisas e intercâmbio cultural - a EGATEA - sigla retirada dos nomes de seus principais Institutos de Ensino: Engenharia, Ginásio Júlio de Castilhos, Astronômico e Meteorológico (mais tarde "Coussirat de Araújo"), Técnico Profissional (depois "Parobé"), Experimental de Agricultura e Agronomia e Veterinária. O que se deve salientar a seu respeito não é tanto a expressão quantitativa desse cometimento, mas a sua orientação, sobretudo a unidade de comando indispensável ao sistema que adotou, quebrada por uma série de fatores, entre os quais a penúria financeira com que se viu a braços a partir de 1928. Mas a lição que ela deixou é que importa recolher para a nossa caminhada: a educação de uma sociedade para uma vida organizada através de uma escala que não apenas se iniciava pelo ensino primário, acessível a ambos os sexos, e culminava no ensino superior, em todas as atividades mais necessárias ao nosso ambiente, mas abrangeu a assistência às indústrias, nas cidades, e às lavouras, no interior. A ela não caberia a crítica formulada por Fernando de Azevedo às instituições mais ou menos desvinculadas da realidade, como que superpostas à vida social, que vinham servindo à formação das elites culturais do Brasil, até quase o fim do século. Quando, finalmente, surgiu a universidade brasileira, a 7 de setembro de 1920, a Escola de Engenharia de Porto Alegre era, pois, uma instituição desse tipo, contando quase um quarto de século de serviços ao ensino técnico em todos os níveis, nas áreas mais convenientes ao nosso desenvolvimento e sobretudo notável pela sua orientação didática, dedicada à pesquisa científica, à extensão comunitária e ao aprendizado profissional. Não se pode obscurecer o sentido dessa herança na constituição da Universidade atual. 198 MOZART PEREIRA SOARES Capitulo IX ATRAVÉS DA ARTE

São abundantes em Porto Alegre os registros iconográficos alusivos ao Positivismo. Historicamente eles coincidem com as duas décadas em que os governos Borges de Medeiros atingiram seu auge, entre 1900 e 1920. São também múltiplos os seus veículos, da arte literária à arquitetura. Estão impressos na decoração de fachadas, nas alegorias fúnebres, nos monumentos cívicos, em ornatos internos, efígies e emblemas diversos. Estudiosos de variada índole têm-se preocupado com o assunto. Alguns contestadores oblíquos, por exemplo, referem-se a tais realizações como frutos de uma "megalomania positivistóide". Emparelham-se com os sociólogos que vêem na colonização do Estado a preocupação subalterna de fabricar eleitores e não de realizar um programa agrário fraterno e convergente, como os fautores do cometimento pregavam. Embora sejam freqüentes as referências a essas realizações comemorativas, pequeno é o número das contribuições de conjunto.62 É inegável a preocupação artística impressa na arquitetura oficial da época. Não existindo uma arte positivista, a maioria das edificações com propósitos ornamentais expressou-se em estilo neoclássico. Muitas dessas foram enriquecidas supletivamente através de expressivas alegorias. Do amplo relicário que a capital gaúcha conserva, citam-se vários conjuntos ou realizações isoladas de alto valor artístico. Dignos de nota são os onze prédios da belle epoque, hoje pertencentes ao Câmpus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, construídos nas primeiras décadas deste século, pela Escola de Engenharia de Porto Alegre. Um dos fatores que os faziam estimados em nosso patrimônio urbano, é que eles constituem o primeiro câmpus universitário do Brasil. Na época em que foram elevados aqueles prédios, o nosso país não possuía nenhum conjunto de edifícios destinados a receber nossas instituições de ensino universitário.

62 - A mais recente obra do gênero é a tese de Arnoldo Walter Doberstein: Estatutária e Ideológica dissertação de Mestrado em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Edição da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, 1992. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 199

O plano original, ainda em desenvolvimento, não chegou a completar-se. O primeiro dos prédios ali construídos data de 1900 e serviu para Porto Alegre realizar uma exposição comemorativa da passagem do século XIX para o XX. Superado, depois, pelas obras sucessivas da instituição, devia ser reformado para se harmonizar com as fachadas palacianas que surgiram, entre elas a Faculdade de Direito e o Instituto Júlio de Castilhos. Tendo este prédio, realmente monumental, sofrido severo incêndio, foi substituído por uma construção inexpressiva, tipo caio, onde se alojou parte do Instituto de Ciências Econômicas. Outra edificação que pretendeu modernizar o aspecto do quarteirão nobre, entre o Instituto Astronômico e a sede do Curso de Engenharia Eletrotécnica, foi o desgracioso prédio, de fachada curva, para abrigo de algumas dependências da Faculdade de Engenharia. Mais recentemente levantaram-se duas outras obras, no quarteirão da Universidade, entre as ruas Sarmento Leite e Luiz Englert. A primeira na esquina da Avenida Osvaldo Aranha com a Sarmento Leite, para sede do Instituto de Arquitetura e, a segunda para o Colégio de Aplicação. Em nenhuma delas houve o mínimo cuidado artístico. Pelo contrário, transmitem a idéia de uma degradação proposital, face ao indesculpável primarismo que exibem. E o pior é que não estão sozinhos na sua condenável bisonhice, tanto mais grave quando se considera que foram realizadas por administrações de uma universidade. Todas foram precedidas por um prédio de muito pior aspecto, na verdade sombrias prisões e nunca laboratórios científicos

ou salas para magistério, onde foram sediadas dependências da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Sua aparência foi de tal modo inadequada a fins pedagógicos, que serviu de exemplo de como não se devem construir salas de aula, por um elenco de professores de um curso de aperfeiçoamento didático, proveniente de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, promovido pela ABEAS (Associação Brasileira de Ensino Agrícola Superior), com ajuda do Escritório Técnico Brasil-Norte-Americano. 63

63 - Durante o período reitoral do professor Luiz Francisco Ferraz, muito se lutou para recuperar o Câmpus Central da UFRGS (o primeiro a ser construído no Brasil), seriamente infiltrado por três tipos de adaptações impróprias e degradantes, que chegaram a receber equipamentos valiosos: os porões, os mezaninos e os barracos, segundo expressão daquela autoridade. 200 MOZART PEREIRA SOARES

Biblioteca Pública de Porto Alegre.

Outro núcleo de prédios nobres da época áurea a que nos estamos referindo é o das adjacências da Praça Senador Florêncio, Rua General Câmara e Praça Marechal Deodoro: os edifícios dos Correios e Telégrafos, Mesa de Rendas, Secretaria da Fazenda, sede do Banco Meridional, Museu de Artes, Biblioteca Pública, Palácio Piratini (sede do Governo). Os dois últimos são realmente suntuosos. Deles o mais original e vinculado ao Positivismo é o da Biblioteca Pública Estadual, iniciado em 1912 e inaugurado a 7 de setembro de 1922, comemorando-se o primeiro centenário da Independência do Brasil. A marca ostensiva do Positivismo em sua fachada está nos nichos com as figuras do calendário positivista que decoram os vãos entre as janelas do 1º e 2º andar do prédio, seis deles frente à Rua Riachuelo e quatro correspondentes à Gen. Câmara. Sendo em número de treze os meses do aludido calendário, e havendo espaço para dez somente, suprimiram-se três daqueles bustos. A eliminação recaiu no primeiro (Moisés), no segundo (Homero) e quarto (Arquimedes). Não parece haver razões lógicas para o procedímen- O POSITIVISMO No BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 201

to. Terá sido o prestígio entre os contistas do terceiro (Aristóteles), poupada na seqüência dos quatro iniciais, que levou a preservá-lo? O prédio da Biblioteca Pública Estadual é um belo palácio em estilo neoclássico, com justiça um dos pontos de maior interesse turístico de Porto Alegre. Ao exterior majestoso, corresponde um luxuoso interior, magnificamente decorado. Projetado por engenheiros da Secretaria das Obras Públicas do Estado, sob a orientação do poeta parnasiano Victor Silva, teve por modelo a Igreja de Saint Geneviéve de Paris, que fora transformada em biblioteca. Seus vários salões são dedicados aos principais ciclos civilizatórios e decorados em estilo correspondente. Entre eles destaca-se o Salão Mourisco, inspirado no interior suntuoso do Palácio do Alhambra, na Espanha. Todo o mobiliário da Biblioteca (que impõe o uso do adjetivo precioso) foi executado com destinação específica. A manutenção de tais relíquias não tem sido fácil, apesar dos cuidados das sucessivas administrações. Houve também procedimentos censuráveis do próprio poder público, ao se transferirem para o Palácio do Governo do Estado elementos do mobiliário que faziam parte de um conjunto,

desrespeitado por pessoas destituídas de sensibilidade para administrar o inestimável património. Entre os numerosos monumentos funerários dos cemitérios de Porto Alegre, ocupam espaço especial os túmulos do Senador Pinheiro Machado e de Júlio de Castilhos, este obra do escultor Décio Vilares, também autor do monumento ao insigne político, erguido na Praça da Matriz (Marechal Deodoro), inaugurado em 1913. Neste, não apenas impressionam a beleza plástica e a harmonia da construção, como, especialmente, sua riqueza simbólica. Carlos Torres Gonçalves, membro da Igreja Positivista e o próprio criador do monumento, se encarregaram de levar ao conhecimento público, o seu significado principal. Nada mais fiel à idéia que presidiu sua feitura poderíamos oferecer ao povo do que transcrevermos seus tópicos principais: Segundo foi determinado ao artista, devia ele idealizar a vida de Júlio de Castilhos, dividida em três fases: a da propaganda, a da organização e a fase posterior à sua retirada do Governo. Desse programa resultou a maquette já bastante conhecida, porém ainda não bem interpretada, sem dúvida em conseqüência da complexidade do assunto e também da novidade da concepção. 202 MOZART PEREIRA SOARES

Tendo de representar a vida de Júlio de Castilhos nas três fases indicadas, o artista não podia realizá-lo senão mediante alegorias apropriadas a caracterizar a ação de cada uma, com o grau de importância respectiva, e predominando naturalmente como a mais decisiva, a da organização política, da qual resultou a Constituição de 14 dejulho. A estátua da República devia dominar tudo, como o símbolo dos ideais que resumem a política moderna - de liberdade, paz e fraternidade. Também não podia deixar de figurar, apoiando o estadista, o entusiasmo do povo rio-grandense pela causa republicana. Além disso, era preciso recordar os antecedentes políticos nacionais resumidos em Tiradentes e José Bonifácio. E ainda era indispensável, por um lado, exprimir a dependência da organização autônoma do Rio Grande do Sul à proclamação da República e, por outro, à evolução ocidental, resumida na Revolução Francesa. Eis aí o assunto concebido, nos seus aspectos principais, isto é, as imagens que o artista teve de associar, antes de procurar, na representação estética peculiar à escultura, a idealização monumental. Vejamos como ele conseguiu concretizar os múltiplos aspectos da sua concepção. Em primeiro lugar, quanto à forma geral do monumento, uma vez estabelecida a divisão da vida de Júlio de Castilhos em três fases. O artista, precisando dispor de uma face para a representação simbólica do prestígio popular, bem como devendo fazer dominar a imagem da República, teve logo de optar entre a coluna e a pirâmide. Decidiu-se por esta última, adotando uma pirâmide quadrangular alongada, quase uma agulha, como prestando-se melhor à harmonia decorativa da composição do monumento. Para base da pirâmide tomou um tronco de cone, em granito róseo dessa cidade, interrompido graciosamente por um gramado verde, pontuado de coroas de vegetação amarela e azul, lembrando nas suas cores o solo da Pátria, teatro da ação de Júlio de Castilhos. É desse solo que se levanta a pirâmide. A glorificação da fase principal da vida do estadista está realizada na face voltada para o Norte, oferecendo a frente a quem sobe a ladeira que conduz da Rua dos Andradas, a principal da cidade, à praça Marechal Deodoro, sede do monumento. O grupo central que aí se destaca é movimentado e emocionante, despertando logo a atenção. Júlio de Castilhos, sentado, a fronte contraída, o olhar de quem medita ainda na leitura do livro que segura na mão esquerda, a destra apoiada na cadeira, o pé firmado ao solo - tem a atitude O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 203

resoluta de quem está prestes a erguer-se para agir com a energia que a situação requer. É o momento supremo em que, passadas em revista todas as construções políticas, como estadista, isto é, como tipo eminentemente prático, que não tem doutrinas a construir, mas doutrinas que escolher, entre as que vê em torno de si - decide-se a aceitar os fundamentos da política científica fundada por Augusto Comte. Para realizar semelhante passo, não basta, porém, a inteligência que esclarece, permitindo discernir onde está a verdadeira realidade, relativa, como tudo, isto é, a realidade que corresponde às necessidades de cada momento - são ainda necessárias as qualidades de caráter, e mais do que as qualidades de caráter, as do coração. A fim de conseguir representar todas essas influências, o artista grupou em torno de Júlio de Castilhos as animadas figuras que o cercam. A Coragem, ofegante, impaciente, trazendo os louros da vitória em uma das mãos, com a outra, num gesto largo, incita o estadista a agir. Um dos olhos vendados exprime que ela não mede dificuldades. Em plano inferior, a Prudência, temerosa, esforça-se por deter a Coragem, apontando-lhe o Perigo. Este está simbolizado em um dragão, que sobe rastejando o solo da Pátria, e representa, na concepção do artista, os escolhos de toda a sorte que os estadistas têm a vencer para realizar a sua missão. Combinados, porém, os impulsos indispensáveis da coragem com as cautelas da prudência, a Firmeza ali está junto ao estadista, ereta, inabalável, a estrutura atlética revestindo a alma de um Brutus - a indicar-lhe que sem a perseverança, isto é, sem o esforço constante, jamais o estadista conseguiu as justas aspirações de domínio, indispensáveis à eficácia social de uma vasta ação política. Dominando o grupo central, a imagem amorosa do Civismo, sobraçando o pavilhão nacional, pendida ternamente sobre a cabeça de Júlio de Castilhos, simboliza ali o Amor - motor supremo de todas as boas ações. E para significar que, na consecução do bem, o estadista precisa contar com a força numérica, isto é, com o prestígio popular, o artista incorporou ao monumento, na face posterior, o tipo popular do Gaúcho, figurado em um jovem cavalheiro, como convém a encarnação das esperanças do futuro. O jovem gaúcho é representado no momento em que faz esbarrar o animal que trazia à desfilada, pisando um solo onde se distinguem um arado e a caveira de animal bovino, em sinal das duas principais indústrias rio-grandenses - momento esse em que, firmando-se nos estribos, ergue o chapéu num entusiástico viva à República. 204 MOZART PEREIRA SOARES

Monumento a Júlio de Castilhos na Praça Marechal Deodoro, em Porto Alegre. Acima do Gaúcho, na face da pirâmide, inscrita em letras de bronze, lê-se a divisa que Castilhos adotou para si, e convém a todos os práticos: Conservar melhorando. Voltando à face principal, acima da figura do Civismo, a data 15 de Novembro de 1889 está ali colocada para manifestar a ligação política do Rio Grande ao conjunto das Pátrias Brasileiras. Mais alto, na parte acastelai, recordando a forma exterior da Bastilha, a data -14 dejulho de 1789- mostra a filiação da evolução nacional à evolução ocidental, cuja nova era definitiva ficou tempestuosamente inaugurada com a Grande Crise, conhecida na história sob o nome de Revolução Francesa. O POSITIVISMO NO BRASIL: 200 ANOS DE AUGUSTO COMTE 205

No ápice da pirâmide, a figura da República, com o faixo da nova luz em uma das mãos e a tábua da lei nova na outra, repousando sobre uma esfera de bronze esverdeado, onde se distinguem as 21 estrelas representativas dos Estados Federados Brasileiros, mais a constelação do Cruzeiro e a faixa do zodíaco com a divisa política - Ordem e Progresso - concretiza a situação definitiva do Planeta, transformado, enfim, pelas pequenas pátrias republicanas. A figura da República é em bronze dourado, para distingui-la das demais, e

também em recordação da áurea manhã de 15 de novembro de 1889. Passemos agora às duas faces laterais. Na da esquerda acha-se comemorada a fase da vida de Júlio de Castilhos em que prevaleceram as preocupações da demolição da Monarquia. Um jovem insinuante, no ato de quem distribui ao público exemplares d'A Federação, jornal onde Júlio de Castilhos mais se esforçou no combate ao antigo regime, comemora essa fase, sem dúvida secundária, mas memorável na vida do estadista. A divisa Libertas quae sera tamen - inscrita na face correspondente da pirâmide recorda os esforços dos nossos antepassados na realização dos ideais de liberdade, a que se sacrificou a alma estóica de Tiradentes. Na face da direita, na atitude de quem aconselha, um velho de longas barbas, a quem os anos não conseguem quebrantar, resistindo através dos séculos à ação do tempo, que, pelo contrário, cada vez mais aumenta-lhe o vigor e o prestígio - simboliza esse saber de experiências feito, de que nos fala Camões. Lembra, na sua majestade, o tipo imponente dos profetas criado pelo gênio de Miguel Angelo. Nessa face lê-se o lema sociológico - A sã política é filha da moral e da razão -, em que o Patriarca da nossa Independência, o velho José Bonifácio, consubstanciou os ditames da sua incomparável ação como estadista, na formação da nossa nacionalidade. Tal é, em seu conjunto, a idealização concebida da vida e da obra de Júlio de Castilhos, e executada pelo artista com o máximo carinho e o máximo esforço. Cabe ao público, e especialmente ao futuro, dizer em que grau conseguiu ele corresponder ao problema que teve diante de si - o de concorrer, através da arte, para o desenvolvimento dos sentimentos cívicos, hoje infelizmente tão embotados, mediante a narrativa escultural da existência de um político eminente. 206 MOZART PEREIRA SOARES

BIBLIOGRAFIA BÁSICA DE MOZART PEREIRA SOARES LIVROS TÉCNICOS 1. Fruticultura: Enciclopédia de Conhecimentos Práticos. Globo, Porto Alegre, 1952. 2. Verdes Urbanos e Rurais: Manual de Arborização em Cidades e Sítios Campesinos. Cinco Continentes, Brasília, no prelo. TESES ACADÊMICAS 3. Concepções Anatômicas e Fisiológicas de Aristóteles. Tese de doutoramento. Gráfica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1954. 4. Fatores Convergentes na Descoberta da Circulação Sangüínea. Tese de Cátedra. Gráfica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1954. 5. "Sarcofagia" (ensaio), in Vida na Morte, Bels, Porto Alegre, 1973. HISTÓRIA 6. Santo Antônio da Palmeira: Monografia Histórica Municipal. Bels, Porto Alegre, 1974. 7. Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (em colaboração com Pery Pinto Diniz). Editora da URGS, Porto Alegre, 1991. 8. BTA - Escola Técnica de Agricultura João Simplício Alves de Carvalho. AGE, Porto Alegre, 1997. 9. O Positivismo no Brasil.' 200 Anos de Augusto Comte, Editora da Universidade/AGE, Porto Alegre, 1998. ENSAIO 10."A ???mu situo". Estudo introdutório de O Tempo e o Vento, edição ilustrada, comemorativa ao sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Globo, Por to Alegre, 1985. 11. "Aspectos sensoriais nas Lendas do Sul". Ensaio introdutório sobre a estilística de Simões Lopes Neto. Edi ção ilustrada por Nelson Boeira F.i edrich, comemorativa ao 10º aniversário da Aplub. Globo, Porto Alegre, 1974. 12. "Aspectos sensoriais nos Contos Gau chescos". Segunda parte do trabalho anterior na edição ilustrada por Nelson Boeira Faedrich, comemorativa ao 10º aniversário da Editora Globo. Globo, Porto Alegre, 1985. FICÇÃO (Trilogia Restauração da Manhã) 13. Pastoral Missioneira (Prêmio Ilha de Laytano). Bels, Porto Alegre, 1973. 14. Tempo de Piá. Bels, Porto Alegre, 1974. 15.Meu Verde Morro. Martins Livreiro, Porto Alegre, 1991. POESIA 16.Erva Cancheada(Poemas Missioneiros). Querência, Porto Alegre, 1972. 17.Adaga-Flor (Poema in memoriam de João XXIII). Metrópole, Porto Alegre, 1991. SOBRE O AUTOR 18. Hohlfeldt, Antonio. Mozart Pereira Soares: Saber Universitário com Gosto

Campeiro. AGE, Porto Alegre, 1997. 19.Instituto Estadual do Livro. "Autores Gaúchos", Nova Série, n° 1: Mozart Pereira Soares. Porto Alegre, 1997.

Fim do livro