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HUMOR, LIBERDADE E DISCURSO DE ÓDIO: Uma análise da cobertura de impressos brasileiros sobre o ataque ao Charlie Hebdo 1 Bárbara Caldeira 2 Marina Santos-Silva 3 Resumo: Este artigo dedica-se a analisar os discursos acerca do atentado ao semanário francês Charlie Hebdo construídos nas capas de alguns dos principais periódicos impressos do Brasil, sendo eles Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de Minas, publicadas no dia seguinte ao ataque. Tensionando duas visadas comunicacionais acerca do conceito de acontecimento, além de considerações da análise do discurso sobre a noção de imaginários sócio-discursivos, o presente texto se propõe a refletir sobre as disputas de sentidos engendradas pelas narrativas jornalísticas, identificando de que modo franceses e muçulmanos foram representados neste contexto, além de problematizar a temática do humor na cobertura recortada. Palavras-chave: Charlie Hebdo. Mídia. Discurso. Acontecimento. Humor. HUMOR, FREEDOM AND HATE SPEECH: an analyze of the coverage of the attack to Charlie Hebdo on brazilian printed newspapers 1 Trabalho apresentado no GT Dispositivos e Textualidades Midiáticas. 2 Bacharela em Comunição Social, habilitação Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG). Integrante do grupo de pesquisa Tramas Comunicacionais – Núcleo de Estudos Narrativa e Experiência. Email: [email protected]. 3 Bacharela em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (POSLING-CEFET MG). Email: [email protected].

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HUMOR, LIBERDADE E DISCURSO DE ÓDIO:

Uma análise da cobertura de impressos brasileiros sobre o ataque ao Charlie Hebdo1

Bárbara Caldeira2

Marina Santos-Silva3

Resumo: Este artigo dedica-se a analisar os discursos acerca do atentado ao semanário francês Charlie Hebdo construídos nas capas de alguns dos principais periódicos impressos do Brasil, sendo eles Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de Minas, publicadas no dia seguinte ao ataque. Tensionando duas visadas comunicacionais acerca do conceito de acontecimento, além de considerações da análise do discurso sobre a noção de imaginários sócio-discursivos, o presente texto se propõe a refletir sobre as disputas de sentidos engendradas pelas narrativas jornalísticas, identificando de que modo franceses e muçulmanos foram representados neste contexto, além de problematizar a temática do humor na cobertura recortada.

Palavras-chave: Charlie Hebdo. Mídia. Discurso. Acontecimento. Humor.

HUMOR, FREEDOM AND HATE SPEECH:

an analyze of the coverage of the attack to Charlie Hebdo on brazilian printed newspapers

Abstract: This article analyzes the discourses about the attack to the french newspaper Charlie Hebdo and how it is built on the covers of some of the main newspapers in Brazil published in the day after the outrage: Folha de S. Paulo, O Globo and Estado de Minas. Tensing two communicational perspectives of the happening, and speech analysis considerations about social and discursive imaginaries, this text aims to study about the meaning controversy engendered by journalistic narratives, identifying how the french and muslim people were represented in this context and discuss the humor in the chosen coverage.

Keywords: Charlie Hebdo. Media. Discourse. Happening. Humor.

Introdução

No dia 7 de janeiro de 2015, dois homens encapuzados invadiram a redação do

semanário Charlie Hebdo, instalada em Paris, e dispararam tiros, matando doze pessoas e 1 Trabalho apresentado no GT Dispositivos e Textualidades Midiáticas.2 Bacharela em Comunição Social, habilitação Jornalismo, pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG). Integrante do grupo de pesquisa Tramas Comunicacionais – Núcleo de Estudos Narrativa e Experiência. Email: [email protected] Bacharela em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (POSLING-CEFET MG). Email: [email protected].

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deixando onze feridas, entre cartunistas, jornalistas e outros funcionários do veículo de

comunicação, além de policiais e cidadãos que passavam pelo local. Em poucas horas, o

ocorrido pautava noticiários de todo o mundo, multidões foram às ruas protestar contra o

ataque e outros milhares engajavam-se via redes sociais em solidariedade às vítimas.

A ação foi reivindicada pela célula Al-Qaeda no Iêmen, organização islâmica

fundamentalista, e seria uma retaliação ao jornal por publicar charges com Maomé, profeta

sagrado para os muçulmanos, e representar de forma jocosa adeptos da religião. Após intensas

buscas, os irmãos franco-argelinos Saïd e Chérif Kouachi, identificados como responsáveis

pelo atentado, foram mortos.

Neste artigo, pretendemos analisar aspectos da cobertura feita pela imprensa brasileira

desse acontecimento, refletindo sobre suas especificidades. Para tal, selecionamos três

expressivos jornais diários impressos, localizados no eixo sudeste, que circularam em 8 de

janeiro de 2015, dia seguinte ao ataque, sendo eles Folha de S. Paulo, O Globo e Estado de

Minas. Dentro do escopo deste trabalho, nos propomos a estudar apenas as capas. Ainda que

seja uma amostragem reduzida, entendemos que as primeiras páginas dos impressos, enquanto

“portas de entrada” para o restante da edição, são sintomáticas do tratamento e da relevância

que foram atribuídos ao episódio por cada veículo. Iremos considerar os diferentes aspectos

do material, tendo em vista o conteúdo linguístico, as imagens e também os layouts das capas.

É nosso objetivo, por meio da análise dos discursos construídos pelos jornais,

identificar filtros axiológicos que indiquem como franceses e muçulmanos foram

representados e perceber quais questões foram elencadas como mais importantes na

construção das notícias, nos debruçando, também, sobre a perspectiva acontecimental do

fenômeno. Dessa forma, procuramos entender a disputa de sentidos que emergem dessas

representações, os lugares de identificação e a dinâmica comunicacional como operadora

desse complexo processo, além de perceber o atravessamento da temática do humor na

cobertura recortada, observando se ele foi, e como foi, tratado nas primeiras páginas dos

jornais elencados. Além disso, visamos refletir de que modo essas notícias contribuíram para

fomentar discursos de ódio e de intolerância frente ao evidente impasse entre franceses e

muçulmanos ou se serviram para incitar a uma tomada de posição que refletisse a

complexidade do conflito.

O atentado ao Charlie Hebdo como acontecimento

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Como início do percurso proposto por este artigo, problematizaremos o ataque ao

Charlie Hebdo como um acontecimento a partir de duas diferentes visadas comunicacionais

sobre o fenômeno em busca de algumas entradas que já nos ajudam a pensar nas disputas de

sentidos que tanto o episódio quanto a narratividade jornalística engendrada a partir do

episódio fazem emergir.

A primeira perspectiva acontecimental, localizada no seio pragmatista, mais

especificamente na Escola de Chicago, decorre das contribuições de G. H. Mead, que volta

seu olhar para a dimensão relacional dos atos sociais; de John Dewey, que pensa na

experiência humana como uma espécie de travessia; e de Louis Queré (2005), que

desenvolve, mais marcadamente e na esteira dos dois autores, o conceito de acontecimento.

Na concepção do francês, como ressalta Simões (2014), o acontecimento é uma “emergência

que instaura sentidos e rompe com a continuidade da experiência” (SIMÕES, 2014, p. 177).

A pesquisadora Vera França (2012), parte de Queré para conceituar acontecimentos

como “fatos que ocorrem a alguém; que provocam ruptura e desorganização, que introduzem

uma diferença. Eles fazem pensar, suscitam sentidos, e fazem agir (têm uma dimensão

pragmática)” (FRANÇA, 2012, p. 14). Nessa seara, o acontecimento está ligado, então, à

ideia de ruptura da normalidade; algo que irrompe do cotidiano e que provoca estranheza.

Esmiuçando as características do fenômeno, França afirma que:[...] é importante lembrar que um acontecimento acontece a alguém; ele não é independente nem autoexplicativo, não são suas características intrínsecas que fazem o seu destaque, mas o poder que ele tem de afetar um sujeito – uma pessoa, uma coletividade [...]. Este primeiro aspecto nos permite uma conclusão importante: os acontecimentos se inserem em nossa experiência, na experiência humana, no âmbito de nossa vivência. (FRANÇA, 2012, p. 13)

Debruçando-nos sobre o caráter pragmático do acontecimento — e pensando no

ataque ao Charlie Hebdo como acontecimento na perspectiva pragmatista —, temos aqui o

evento como faísca para reflexão e ação. Quais são as reflexões e ações, dessa forma,

suscitadas pelo episódio em questão? Podemos, de antemão, destacar uma das discussões que

surgiram a partir do ataque e que foi recorrente na cobertura midiática: o mote da liberdade de

expressão. Diante de tal acontecimento, essa é uma das reflexões possíveis, mas, várias outras

mostram-se pertinentes, como ponderações acerca da liberdade religiosa, a islamofobia, os

limites do humor, para citar algumas que saltam aos olhos. No exame das capas, mais adiante,

retomaremos a discussão tentando identificar tais eixos reflexivos.

França também chama atenção para o fato de que o acontecimento gera

representações, necessita ser compartilhado socialmente, o que é feito por meio de narrativas.

“Acontecimentos fazem falar; nós somos animais simbólicos, capazes o tempo todo de

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duplicar nossa realidade a partir de construções imagéticas e representacionais” (FRANÇA,

2012, p. 14). Dessa forma, é fundamental, também, observarmos os discursos de tais

representações midiáticas, especialmente quanto aos atores que nelas são colocados em ação,

neste caso específico, perceber como estão representados franceses e muçulmanos a partir do

ocorrido e, em consequência, Ocidente e Oriente.

Outra perspectiva em torno do acontecimento, construtivista, merece aqui ser

problematizada. O pesquisador Elton Antunes (2008) busca entender o discurso jornalístico

da atualidade como um “efeito de sentido produzido a partir da associação a determinadas

representações da figura de tempo”, refletindo sobre como a temporalidade incide sobre a

enunciação jornalística e repensando, assim, a noção de acontecimento. Convocando

Charaudeau (2006), Antunes afirma que a forma do discurso de informação da atualidade é

por excelência o acontecimento e que os acontecimentos, em princípio, são “representações

linguajeiras do fluxo de experiência do mundo produzidos a partir de uma fragmentação

semântica” (ANTUNES, 2008, p. 2).

Para Antunes, por mais que exista uma relação intrínseca entre acontecimento e

acontecimento jornalístico, os dois não devem ser tomados como fenômenos equivalentes,

uma vez que o jornalismo opera “em direção oposta a essa ideia de ruptura, promovendo a

integração do ‘novo’ às categorias do já existente, como construído pelo sistema de

informação e pela própria experiência social” (ANTUNES, 2008, p. 4). Parece haver, assim,

um padrão que retém alguns acontecimentos em detrimento de outros, na tentativa de certa

estabilização. Nessa acepção, os acontecimentos ocorrem e afetam alguém, constituindo-se a

partir de duas visadas: “torna-se acontecimento jornalístico ou fato a partir de um olhar que

busca estabelecer o contexto de sua emergência” (ANTUNES, 2008, p. 4), ou seja, um

movimento que tenta explicar-lhe o sentido. Mas esse olhar é, essencialmente, um duplo

olhar: “o acontecimento está na interseção entre um olhar que mostra, da instância de

produção, e um olhar que vê, na instância da recepção” (p. 4).

Em Sodré (2006), retomado por Antunes, o acontecimento não seria uma ruptura, e

sim uma marcação, uma vez que a mídia é uma maneira específica de estruturar o tempo a

partir de um ritmo, sendo a notícia uma espécie de “ritmista” que “cadencia de alguma

maneira a passagem do ‘bloco’ da vida social” (ANTUNES, 2008, p. 6). A grande questão do

acontecimento, então, estaria no sentido de atualidade: a composição textual da notícia

operaria e articularia, de alguma forma, tal sentido. Para Antunes, a atualidade não seria uma

qualidade intrínseca dos acontecimentos e, assim, da informação jornalística, mas uma forma

de apresentar-se, “propor-se como”.

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Assim, como o jornalismo propõe o atentado ao Charlie Hebdo como acontecimento?

Se ele não o é a priori, como o discurso jornalístico o posiciona como um, e de grande apelo?

Refletir sob essa abordagem nos faz pensar, por exemplo, em porque o ataque ao periódico

francês foi sistematicamente abordado pela mídia e a investida do grupo islâmico Boko

Haram na Nigéria, ocorrida na mesma época e somando mais de 2 mil mortos, não reverberou

da mesma maneira4. Não se trata, aqui, de desconsiderar questões do próprio fazer

jornalístico, como a quantidade de correspondentes e a estrutura para cobertura de cada país,

entre outros aspectos, mas, sim, perceber que o gesto jornalístico — mas não apenas, para não

cairmos em uma armadilha midiacêntrica — funciona em uma dinâmica de proposição de que

vejamos um evento como acontecimento.

Imaginários sócio-discursivos

Para refletirmos sobre o modo como franceses e muçulmanos foram representados

pelos jornais brasileiros, nos valeremos do conceito de “imaginários sócio-discursivos”, do

linguista e analista do discurso Patrick Charaudeau.

Segundo Charaudeau (2007), constantemente utilizamos o termo “estereótipo” para

nos referir a ideias repetitivas, já “cristalizadas” em nossa sociedade e que são consideradas

simplificadas e generalizantes. O termo já carrega em si uma conotação pejorativa, diz de um

julgamento negativo. Em função disso, se buscamos os discursos que incidem sobre a

representação de grupos humanos, é preferível usarmos a palavra “imaginário”.

Noção que se inscreve em uma tradição filosófica e psicológica, recuperada e

reconceitualizada pela antropologia social, e que melhor atende ao quadro da análise do

discurso, imaginário é uma forma de apreensão do mundo que reflete a organização das

sociedades humanas. Através dos imaginários, construímos a significação sobre os objetos, os

fenômenos naturais, os seres humanos, seus comportamentos e relações. Cumprindo uma

função de elo social, eles seriam responsáveis por criar valores e justificar ações.

Segundo Charaudeau, os imaginários podem ser qualificados como sócio-discursivos,

pois o sintoma de um imaginário é a fala, ou melhor, os discursos circulantes que se realizam

dentro de um domínio de prática social (em nosso estudo, o discurso de informação

jornalístico), atuando de modo a sedimentar uma memória coletiva, um universo de

pensamento, os lugares de instituição de verdades. Nesse sentido, os meios de comunicação

têm papel capital para a formação e propagação de imaginários.

4 Sobre o assunto, ver: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/12/internacional/1421078918_398000.html

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É importante nos determos mais profundamente em dois pontos: a conexão da

linguagem à realidade e o papel da mídia na atividade de simbolização representacional do

mundo. De acordo com Charaudeau (2007), a realidade precisa ser “formatada” para torna-se

real. Há, portanto, uma distinção entre esses dois termos: “realidade” e “real”. Enquanto o

primeiro diz do mundo empírico e fenomenológico, cuja existência independe e impõem-se ao

homem, lugar a-significante (e ainda a-significado), o segundo está ligado à atividade de

racionalização do homem por meio do exercício da linguagem. O real é o mundo construído e

estruturado através das diversas operações de nominação dos seres, caracterização de suas

propriedades, descrição das ações inseridas em um espaço-tempo e de suas causalidades.

Ainda que os meios de comunicação afirmem buscar transparência e certa

autenticidade dos acontecimentos, "os fatos não tem uma verdade em si", pois “a informação

é pura enunciação” e o que está em jogo são apenas “efeitos discursivos de real”, explica o

analista do discurso (CHARAUDEAU, 2009, p. 36). Ele diz: "É em sua encenação, num certo

dispositivo, que surge, diante daquele que é tomado por este mesmo dispositivo, uma verdade

subjetiva que tende a objetivar-se num movimento universal" (p. 169). De acordo com

Charaudeau, ainda que se apresentem como verdades indiscutíveis, o que a mídia nos oferece

são “opiniões existenciais provisórias” (p. 267).

É válido ainda ressaltar que um dos efeitos da máquina de informar é a “dramatização

dos acontecimentos” (CHARAUDEAU, 2009). Isto porque a informação se fabrica muito

depressa e a mídia é impelida a uma tomada de posição, que muitos vezes obedece a uma

lógica simplista e antagônica, segundo um “roteiro dramatizante”. Roteiro este que consistiria

em:

(1) mostrar a desordem social com suas vítimas e seus perseguidores; (2) apelar para a reparação do mal, interpelando os responsáveis por este mundo; (3) anunciar a intervenção de um salvador, herói singular ou coletivo com o qual cada um pode identificar-se. (CHARAUDEAU, 2009, p. 254)

Tal roteiro apresentado será um dos nortes para a análise empreendida neste artigo,

sendo observadas as dinâmicas listadas e como elas se estabelecem. De acordo com o teórico,

"a focalização dramatizante do relato midiático (...) pode transformar toda pessoa, entidade ou

instituição em herói ou em vilão" (CHARAUDEAU, 2009, p. 272). É nosso objetivo também

entender como se dá esse dualismo na cobertura de impressos brasileiros sobre o ataque em

Paris.

Qual é a graça do Charlie Hebdo? Algumas ponderações sobre humor e islamofobia

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Antes de empreendermos as análises das três capas propostas por este trabalho,

acreditamos que uma breve problematização quanto ao humor e a islamofobia se faz

necessária, na tentativa de observamos alguns dos atravessamentos do acontecimento “ataque

ao Charlie Hebdo” e ponderarmos se tais questões aparecem na enunciação discursiva do

acontecimento jornalístico.

Atualmente cerca de 5 milhões de muçulmanos vivem na França, o que corresponde a

8% da população5. No entanto a integração entre esses grupos humanos esbarra em

discordâncias de ordem religiosa, cultural e sociopolítica, como corrobora o ataque em

princípios deste ano. Diante desses conflitos, emerge a necessidade de debatermos sobre

como os discursos circulantes, especialmente na mídia, contribuem para incentivar uma

postura de empatia e respeito, ou de exclusão e intolerância entre esses sujeitos.

Fundado em 1970, o Charlie Hebdo é uma publicação francesa satírica, com humor

ácido e irreverente, ao ponto de usar como slogan “journal irreponsable” (jornal

irresponsável). Sua linha editorial ataca principalmente autoridades políticas e figuras

religiosas, sendo o Islã um alvo recorrente nos últimos anos. O conteúdo do semanário

poderia ser enquadrado, de acordo com a Organização para Cooperação Islâmica (OIC), como

uma manifestação de islamofobia. Para a OIC, segunda maior organização

intergovernamental do mundo, superada apenas pelas Nações Unidas, e representante dos

interesses dos muçulmanos:Islamofobia é uma forma contemporânea de racismo e xenofobia motivada pelo medo infundado, desconfiança e ódio aos muçulmanos e ao Islã. A Islamofobia também se manifesta por meio de intolerância, discriminação, desigualdade de tratamento, preconceitos, estereótipos, hostilidade e discurso público adverso. Diferenciando-se do racismo e da xenofobia clássica, a islamofobia é baseada principalmente na estigmatização da religião e de seus seguidores. Como tal, a islamofobia é uma afronta aos direitos humanos e à dignidade dos muçulmanos. (SEVENTH OIC OBSERVATORY REPORT ON ISLAMOPHOBIA, October 2013 – April 2014, ORGANIZATION OF ISLAMIC COOPERATION, p. 10)6

Apesar de nossa análise se dedicar às narrativas jornalísticas construídas nos três

impressos brasileiros destacados, cabe a nós problematizar o humor presente nas charges do

Charlie Hebdo e a função do riso como instrumento de coerção e coesão social, uma das

perspectivas possíveis sobre o assunto, para melhor debruçarmo-nos sobre o fenômeno e sua

complexidade. 5 Sobre o assunto, ver http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/01/visao-do-isla-na-europa-e-uma-dificil-questao-politica-cultural-e-social.html6 Islamophobia is a contemporary form of racism and xenophobia motivated by unfounded fear, mistrust and hatred of Muslims and Islam. Islamophobia is also manifested through intolerance, discrimination, unequal treatment, prejudice, stereotyping, hostility and adverse public discourse. Differentiating from classical racism and xenophobia, Islamophobia is mainly based on stigmatization of a religion and its followers. As such, Islamophobia is an affront to the human rights and dignity of Muslims.

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Posto isto, para entendermos os procedimentos de fabricação do humor, o que

perpassa as sátiras do Charlie Hebdo, tomamos como principal base a teoria do riso de Henri

Bergson. De acordo com o filósofo, rir faz parte da natureza humana, mas entender o que

provoca o riso é tão difícil de apreender quanto qualquer efeito psicológico. No entanto o

autor destaca três pontos comuns presentes nas diferentes técnicas de comicidade: a

humanidade, a insensibilidade e a sociabilidade (2001, p. 4-5).

Para Bergson, se buscamos desvendar o porquê e do quê rimos, caminhamos no

sentido de entender um pouco mais sobre nós mesmos e nosso mundo. “Não existe

comicidade fora daquilo que é propriamente humano”, assegura o filósofo (BERGSON, 2001,

p.1). Isso se dá de tal modo que, mesmo quando rimos de um animal, o fazemos à medida que

identificamos nele uma atitude ou expressão que se assemelha à humana. O mesmo ocorre

com os objetos. Rimos de um chapéu, por exemplo, quando percebemos nele características

próprias ao homem, por meio da forma e do uso que a ele atribuímos.

Para que o riso ocorra, ainda é necessário que haja “insensibilidade” da parte de quem

ri. Segundo Bergson, a emoção é a maior inimiga da comicidade, enquanto a indiferença é seu

meio natural. Esse princípio é também chamado de “inteligência pura”, já que o riso só seria

possível quando os sentimentos não se sobrepõem à razão.

A respeito do terceiro fator, a sociabilidade, o filósofo afirma: “Nosso riso é sempre o

riso de um grupo” (p. 5). Entendido como um “gesto social”, o riso seria um mecanismo de

contenção e correção de comportamentos considerados desviantes. Assim, ainda que de forma

sutil e até inconsciente, o humor possui um importante papel regulatório que incide sobre as

condutas em sociedade. Rir é uma forma de represália quando percebemos uma situação de

inadequação, algo ou alguém que se distancia do senso comum, daquilo que uma maioria

acredita ser o correto. Nas próprias palavras do teórico: (...) a sociedade não pode intervir nisso por meio de uma repressão material, pois ela não está sendo materialmente afetada. Ela está em presença de algo que a preocupa, mas somente como sintoma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto. Será, portanto, com um simples gesto que ela responderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie de gesto social. (BERGSON, p. 14-5. Grifo do autor)

A relevância do trabalho de Bergson está não somente no fato do filósofo ter

conseguido empreender uma análise sistemática e consistente sobre a comicidade, ainda em

fins do século XIX, mas por atribuir ao riso uma função social. Sua teoria nos revela que,

embora o humor não tenha, a princípio, o propósito de ensinar, ele acaba nos ensinando, pois

apenas se torna viável se está em consonância com o funcionamento de determinada

sociedade e em sintonia com o tempo histórico. O humor é revelador das expectativas sociais

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e enquanto um instrumento de vigilância e coesão social, atua de modo a reenquadrar o

indivíduo segundo valores e costumes hegemônicos. É, nesse sentido, uma censura jocosa,

lugar de afirmação da negação.

Após essa breve retomada sobre a teoria do riso, podemos entender que o humor

satírico, como o presente no Charlie Hebdo, ao ridicularizar indivíduos e ironizar suas crenças

e modo de vida, frequentemente acaba por propagar discursos de ódio. Certamente, esta é

apenas uma das abordagens e das consequências possíveis do humor. Mas é importante que a

consideremos ao tratar do último confronto entre franceses e muçulmanos, em Paris, e ao

analisar o modo pelo qual o episódio reverberou na mídia. Seguiremos, então, com a análise

das três capas.

Jornal Folha de S. Paulo

Figura 1: Reprodução da capa da Folha de S. Paulo de 8 de janeiro de 2015

Em 8 de janeiro de 2015, o periódico Folha de S. Paulo (Figura 1), impresso de maior

circulação do país, estampava a manchete “Terroristas matam 12 em ataque a jornal de Paris;

multidão vai às ruas”. Logo abaixo, o bigode complementa a informação: “Polícia aponta

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franceses de origem argelina como suspeitos de atentado ao semanário ‘Charlie Hebdo’, que

satiriza o Islã.” Aqui podemos ressaltar que o emprego do termo “terroristas” transmite a ideia

de que a identidade dos responsáveis e a motivação do ataque já haviam sido dadas como

certas, ao passo que a palavra “suspeitos”, em seguida, tende a relativizar essas afirmações. O

excerto “segundo testemunhas, os atiradores se identificaram como membros da Al-Qaeda,

mas não houve confirmação” reforça tal incerteza.

O assunto, desmembrado em quatro outras chamadas com diferentes enfoques, ocupou

dois terços da página e contou com três diferentes imagens como recurso narrativo, o que

indica a importância a ele conferida pelo jornal. Na porção superior, duas fotos assinalam o

“roteiro dramatizante” do qual nos fala Charaudeau. A primeira é um frame do vídeo que

registra o momento em que um policial francês, deitado no chão, está prestes a ser morto

pelos homens encapuzados. É possível perceber a desordem social ali instaurada. A figura do

vilão que mata em situação na qual a vítima aparenta estar indefesa acaba por suscitar o

desejo de reparação do mal observado pelo analista do discurso.

É interessante perceber que o reforço da cena do atentado se dá, em grande parte, por

meio dessa escolha de imagem, que presentifica o ataque e reforça a noção de que houve um

acontecimento; algo grave aconteceu. Mas essa imagem se refere ao acontecimento, como

algo externo aos processos jornalísticos? Ou essa imagem é o acontecimento por fazer parte

da narrativa construída pelo discurso do jornal? É possível delimitar? Nos parece importante

dizer, aqui, que a narrativa jornalística é entretecida por diversos eventos, de forma que é

possível dizer não de um, mas de vários acontecimentos. Na segunda imagem, vemos um

cartaz com a expressão “Je suis Charlie”, levantado na manifestação em Berlim como

homenagem às vítimas do atentado, que reforça uma polarização e demonstra a identificação

de um grupo com os vitimados. Essas manifestações não seriam, em si mesmas,

acontecimentos também, visto que convocam outros conjuntos de relações? Sobre o

acontecimento que é reportado, Antunes afirma queAmparado por uma rede intertextual de acontecimentos outros, uma cadeia de contextos e registros socioculturais vários, elementos cognitivos específicos, biografias variadas, textos diversos, a identificação do “fato principal” revela-se mais problemática do que o próprio imaginário jornalístico leva a crer. (ANTUNES, 2013, p. 108).

A terceira imagem, disposta mais abaixo, uma charge assinada por Angeli, endossa o

posicionamento da publicação. Ao apresentar figuras com lápis nas mãos, identificados como

“Charlie Hebdo”, e o mote “Allons enfants de la Patrie”, ou “Avante, filhos da pátria”, trecho

da Marselhesa, hino nacional da França, o jornal, por meio da ilustração de um dos seus mais

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célebres chargistas, deixa transparecer seu apoio ao semanário francês e seu repúdio ao

ataque.

Na chamada “Atentado é ápice da violência contra a mídia, diz órgão global”, a

questão da liberdade de imprensa é levantada, e a própria escolha da frase a ser destacada

indica que a Folha compartilha desse direcionamento. No depoimento de Adão Iturrusgarai,

cartunista que publica tiras diárias na Folha de S. Paulo, há a exaltação de um dos escritores

de quadrinhos mortos no atentado, o que sugere um movimento de heroicização das vítimas:

“Georges Wolinski era minha maior influência”.

A Folha, porém, abre espaço para outra discussão, ponderando o rechaço aos

responsáveis pelo ataque quando, na chamada para a coluna de Clóvis Rossi, “Radicais

islâmicos e islamofóbicos se alimentam mutuamente e criam horror”, levanta a questão da

islamofobia. Apesar da assimetria de abordagens, é possível dizer que o periódico paulista

reconhece, em certa medida, a complexidade do ataque ao Charlie Hebdo e seu contexto.

Jornal O Globo

No dia seguinte ao do ataque ao Charlie Hebdo, o jornal carioca O Globo (Figura 2),

de forma mais explícita do que a Folha de S. Paulo, expôs seu posicionamento a favor do

periódico francês. É importante ressaltar que o assunto ocupou praticamente toda a página,

apoiando-se em sete imagens. A frase “Eu sou Charlie” está em destaque, logo acima da

manchete, sem a marcação de aspas, que indicariam uma fala atribuída a outra pessoa ou

modalização autonímica. Dessa forma, O Globo toma para si a expressão, deixando claro que

está ao lado dos chargistas mortos no atentado.

A chamada de capa, “Ataque à liberdade de expressão mata 12 em Paris”, salienta a

visão do meio de comunicação sobre o ataque: o episódio é compreendido sob a questão

principal da violência à liberdade de expressão e de imprensa e, por esse motivo, fere os

órgãos midiáticos como um todo. No bigode, “Massacre em redação de jornal satírico deixa a

França em choque”, percebemos, pelos termos “massacre” e “choque”, a gravidade do

acontecimento em uma dinâmica de ação (violência extrema) e reação (proporcional

perplexidade do país atacado e do mundo, na construção do jornal).

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Figura 2: Reprodução da capa do jornal O Globo publicado em 8 de janeiro de 2015

É possível dizer que, aqui, a construção da narrativa jornalística opera em um

movimento de sugestão do que veio a ser o “ataque ao Charlie Hebdo”, reforçando sua carga

de excentricidade, relevo em relação a outros fatos que ocorrem no cotidiano. Mas, para além

do atentado ser uma ruptura da normalidade no mundo de referência, o gesto jornalístico é

que o insere em um quadro mais amplo e tenta, de alguma forma, organizá-lo. Se a

normalidade do cotidiano são os acontecimentos, atravessados e superpostos, e não o

contrário, isso nos volta para o gesto jornalístico, nesse caso, como grande articulador do

acontecimento, especialmente as primeiras páginas dos jornais que, para Antunes (2013),

“misturam relato e argumento e fabricam uma adesão a algum tipo de representação do

acontecimento” (ANTUNES, 2013, p. 112).

No texto correspondente, a palavra “terroristas” é utilizada, bem como nas legendas

das imagens. A organização à qual os homens que atacaram o Charlie Hebdo pertenceriam,

mesmo que supostamente, não é citada em outros momentos, dando a informação como

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concluída. A única relativização se torna aparente no trecho “segundo autoridades policiais,

dois dos três terroristas seriam os irmãos franceses (...)”, por meio da escolha do verbo “ser”

no futuro do pretérito. Em chamadas menores, a questão da liberdade de expressão é

reforçada, respaldada por atores sociais aglutinados nas figuras de “associações de jornais e

ONGs”, essa última, sigla utilizada para Organizações Não Governamentais. Até aqui, vigora

a unilateralidade de representações no jornal. O mesmo acontece com a chamada para a

coluna de Veríssimo, “Condenar a irreverência seria condenar a inteligência”, e de Míriam

Leitão, “Atentado atingiu o jornalismo, a liberdade e o futuro”.

O único contraponto, ainda que discretamente, é a chamada para a entrevista com o

pensador francês e sociólogo da Sorbonne, Michel Maffesoli, que suscita uma reflexão sobre

liberdade religiosa e respeito aos muçulmanos com a afirmação, marcada por aspas: “Não

sabemos lidar com os religiosos porque os negamos”. Nesse momento, é possível observar um

discurso controverso, ainda que sutil, na construção da notícia.

As imagens presentes na capa da edição também merecem atenção. Da mesma forma

que a Folha de S. Paulo, O Globo utiliza o frame que mostra o policial francês prestes a ser

morto e a foto de manifestantes erguendo cartazes com os dizeres “Je suis Charlie”, dessa

vez, pelas ruas da França. Mas há um recurso interessante que pode acabar provocando uma

aproximação entre o leitor e as vítimas do atentado: estão dispostas fotografias individuais dos

rostos de quatro cartunistas, classificados pelo jornal como “renomados”. As faces, três delas

com notáveis sorrisos, trazem certa noção de inocência, evidenciando para o leitor dessas

representações a polarização já descrita entre vítimas e assassinos e convidando para a

identificação com um desses grupos.

Por fim, a charge assinada por Chico apresenta um homem vestido de preto e

encapuzado, em alusão aos terroristas, segurando a cabeça da Estátua da Liberdade, que

sangra no pescoço, onde foi cortada. Além da associação imediata da imagem com o

tolhimento da liberdade, o que representaria a escultura, há outra camada de informação como

pano de fundo, uma vez que o monumento, de nome “A Liberdade Iluminando o Mundo”, é

uma obra francesa, idealizada por Édouard Lefèbvre de Laboulaye, historiador e político do

país europeu7. Misturando referências americanas e europeias, o recurso imagético une as

potências do ocidente sob o mesmo mote, contrapondo-as com o oriente, especialmente

quando lembramos, por meio de uma evocação de memória, que os norte-americanos já foram

vitimados, em outro expressivo acontecimento, por terroristas de religião islâmica.

7 Ver em http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/a_estatua_da_liberdade_e_americana__falso_.html. Acesso em 11/02/2015

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Jornal Estado de Minas

Figura 3: Reprodução da capa do Estado de Minas de 8 de janeiro de 2015

O periódico mineiro dedicou quase que a totalidade da capa ao ataque à redação do

Charlie Hebdo. Observa-se, no alto da primeira página (Figura 3), a referência a um local e

uma data: “Paris, 7 de janeiro de 2015”. Esse recurso singulariza o episódio e lhe dá força de

um “marco histórico”, como ainda hoje é o “11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos”.

Assim, nossa memória pessoal e coletiva é acionada, trazendo uma série de imagens que se

relacionam a atos considerados terroristas, assim como o faz O Globo.

Abaixo, vê-se uma única ilustração, assinada por Son Salvador, que mostra materiais

de desenho, como lápis, borracha e canetas, cobertos por manchas vermelhas, em alusão ao

sangue. Título e bigode, ambos em caixa alta, reforçam o apelo dramático: “Tiros contra a

liberdade. Terroristas invadem jornal e matam 12 pessoas, deixando em choque a França e o

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mundo”. Novamente, o enfoque da matéria recai sobre a liberdade de expressão e de

imprensa.

Ao preferir uma ilustração a imagens técnicas (fotografias e frames de vídeo), como o

fizeram Folha de S. Paulo e O Globo, o Estado de Minas abdica de um estatuto indicial da

imagem, de sua força enquanto registro, para dar uma atmosfera mais emotiva à capa —

estratégia do qual nos fala Charaudeau. Pode-se dizer que as manchas em vermelho,

combinadas a palavra “tiros”, remetem o leitor ao ataque tanto quanto a imagem que mostra

os homens encapuzados prestes a matar o policial francês, deitado ao chão, usada nos outros

dois periódicos brasileiros. Em ambos os casos, incentiva-se a uma tomada de posição

favorável à causa dos franceses e contra os muçulmanos radicais. No entanto se a fotografia é

uma estratégia discursiva que permite descrever o mundo e explicá-lo segundo os princípios

da veracidade, de forte poder argumentativo (o logos), a ilustração é uma maneira de tocar o

afeto do outro para seduzi-lo, por meio da emoção (o pathos) (CHARAUDEAU, 2007).

É digna de nota a presença de grandes áreas de respiro na capa — muito diferente do

que usualmente encontramos nas primeiras páginas de jornais, abarrotadas de notícias. O

destaque dado ao episódio em Paris é tamanho, que esse praticamente não concorre com

outros acontecimentos. As demais chamadas aparecem diminutas, semelhantes a notas de

rodapé. O “choque”, do qual nos fala o título, apresenta-se materializado na própria capa do

Estado de Minas, pois o veículo se propôs a repensar seu layout para dar conta da “desordem

social” ali retratada. Os grandes espaços em branco enfatizam o tom emotivo na cobertura do

episódio, representam o “silêncio” e a incredulidade após o “massacre”, como é chamado o

acontecimento pelo veículo.

No texto que se segue, é possível ver novamente o “roteiro dramatizante” de

Charaudeau. A fim de restituir a ordem social, “a polícia francesa informou ter identificado

três suspeitos e, no fim da noite, confirmou ter conseguido prender um deles, que se

entregou”. Segundo o jornal, a comoção em torno do evento desencadeou “reações indignadas

em todo o planeta, inclusive de líderes muçulmanos”. Essa informação reforçaria um

posicionamento hegemônico e unânime contra a ação dos irmãos franco-argelinos, autores do

ataque, unindo todos em repúdio ao que ocorreu no dia anterior em Paris. O antagonismo

entre “heróis” e “vítimas”, “bem” e “mal”, aparece também na dicotomia do editorial de nome

“Trevas na cidade luz”. Na outra chamada, lê-se: “O sentimento é de profanação a um dos

pilares desta civilização: a ‘República Francesa’”, trecho do relato de uma jornalista que

esteve próxima à sede do semanário no momento do tiroteio. Vemos aqui, claramente, a

identificação com valores ocidentais, que poderiam ser resumidos na frase “Liberté, Égualité,

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Fraternité” (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”), lema que embalou os revolucionários

franceses de 1.789 durante a instauração da primeira República.

Observa-se que o jornal mineiro buscou antecedentes históricos que pudessem

contextualizar o evento dentro de um panorama maior: “Desde 2006, o Charlie Hebdo é alvo

da ira de grupos radicais islâmicos, por ter publicado caricaturas do profeta Maomé. Já havia

sofrido um atentado a bomba, em 2011”. No entanto, nada se fala sobre as causas desse

embate. O Estado de Minas inclusive atenua o conteúdo publicado pelo meio de comunicação

francês, ao referi-lo como um “jornal de humor”, em vez de adjetivá-lo enquanto “satírico”,

como o fizeram Folha e O Globo.

Considerações finais

Observamos que os três jornais impressos brasileiros se posicionaram abertamente de

modo solidário aos franceses e ajudaram a repercutir um sistema de valores ocidental, no qual

prevalecem liberdades de expressão e de imprensa sobre fundamentos religiosos, sem, no

entanto, problematizar as diferenças culturais entre o continente europeu e os países árabes, e

sem questionar também o teor do humor que é produzido pelo Charlie Hebdo, o que teria

motivado o atentado. Podemos afirmar, a partir das considerações de Charaudeau (2007), que

a emergência de conflitos após as charges com o profeta Maomé revelam imaginários

distintos sobre o “sagrado” em uma e outra cultura.

Ainda constatamos, por meio da análise das três capas, que os jornais assumiram uma

lógica majoritariamente simplista e binária (bem e mal, trevas e luz), sendo que os filtros

axiológicos positivos se referiam aos franceses, ao passo que os negativos recaíam sobre os

muçulmanos. Nesse jogo de comparação, é interessante observar quais memórias coletivas

foram acionadas para se dizer de cada grupo. Enquanto que os muçulmanos foram

constantemente associados a episódios de terrorismo, os franceses tiveram seu patriotismo

exaltado, através da menção a símbolos nacionais (a Marselhesa) e a momentos de glória na

história do país (Revolução Francesa).

É importante ressaltar, no entanto, que, embora sejamos “beneficiários” de jornais que

informam e, portanto, dão forma ao acontecimento, predominando determinados recortes e

abordagens, as leituras são sempre múltiplas, não estando o sentido a cargo dos jornais ou de

seus leitores, mas daquilo que emerge desse “entre lugar”, como nos aponta a perspectiva

construtivista de Antunes (2008). No caso do atentado em Paris, grande parte da imprensa

brasileira mostrou-se inicialmente a favor do jornal satírico. Mas logo após uma comoção que

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parecia mundial diante do ocorrido, posicionamentos controversos se dissiparam rapidamente

via redes sociais, demarcados, por exemplo, através da hashtag "Je ne suis pas Charlie" (“Eu

não sou Charlie”)8, a fim de contestar o humor feito pelo semanário francês.

Se tentarmos fugir à simplificação e ao antagonismo repercutido, de modo geral, pelos

jornais brasileiros, veremos que não se trata de entender a questão sobre a ótica de "heróis" e

"vilões", segundo o “roteiro dramatizante” do qual nos fala Charaudeau (2009), mas sim, de

inserir o episódio dentro de um contexto maior que diz sobre as diferenças históricas,

culturais, religiosas, sociais, políticas e econômicas dos sujeitos ali envolvidos, e que tão

pouco obedece a uma dicotomia entre Estados-Nação (França/Ocidente X países

árabes/Oriente), já bastante diluída sob a pressão de instâncias supranacionais e de

movimentos migratórios.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Elton. Noticialibilidade periférica ou quando a morte pergunta pela notícia. In: VOGEL, Daisu; MEDITSCH, Eduardo; SILVA, Gislene (ORG); Jornalismo e acontecimento, volume 4, Tramas Conceituais. Florianópolis: Editora Insular, 2013.

ANTUNES, Elton. Acontecimento, temporalidade e a construção do sentido de atualidade no discurso jornalístico. Contemporânea, vol. 6, nº1. Jun. 2008.

BERGSON, H. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Tradução: Angela S. M. Corrêa, 1. Ed., 2ª reimpressão; São Paulo: Contexto, 2009.

CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c’est bien. Les imaginaires, c’est mieux. In: Boyer H. (dir.) Stéréotypage, stéréotypes: fonctionnements ordinaires et mises en scène. Paris: L’Harmattan, 2007.

FRANÇA, Vera. O acontecimento e a mídia. Galáxia, v. 12. São Paulo: Online, 2012.

ORGANIZATION OF ISLAMIC COOPERATION. SEVENTH OIC OBSERVATORY REPORT ON ISLAMOPHOBIA, October 2013 – April 2014. Disponível em: http://www.oic-oci.org/oicv2/upload/islamophobia/2014/en/reports/islamophoba_7th_report_2014.pdf

SIMÕES, Paula Guimarães. O acontecimento e o campo da Comunicação. In: Teorias da Comunicação no Brasil: reflexões contemporâneas. Org. FRANÇA, Vera Veiga; ALDÉ, Alessandra; RAMOS, Murilo César. Salvador; Brasília: EUFBA – COMPÓS, 2014.

8 Ver mais sobre o assunto em http://noticias.r7.com/internacional/hashtag-eu-nao-sou-charlie-cria-controversia-nas-redes-sociais-10012015-1