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FLORES DAS TREVAS Margaret Rome Sabrina 183 Livros Abril Copyright. MARGARET ROME Título original: "CHATEAU OF FLOWERS" Publicado originalmente em 1971 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: SUZY MAY ELSTON Copyright para a língua portuguesa: 1982 ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL Composto e impresso em oficinas próprias Foto da capa: R.J.B. PHOTO LIBRARY Caminhante desastrado, cego pela dor, Alain estava prestes a esmagar a flor da inocência, que Fleur oferecia com tanto amor... Fleur tinha quase tudo para ser feliz: era jovem, apaixonada por Alain, seu marido, e morava num castelo na França, rodeado por campos cobertos de flores. Faltava-lhe, no entanto, o mais importante: o amor de Alain. Cego há alguns anos, vítima de uma série de operações que nunca davam em nada, Alain voltava seus olhos sem vida para Fleur, com desprezo. Amargurado, ele a acusava de ser uma mulher sem escrúpulos, uma aventureira interessada apenas em sua riqueza. Fleur não suportava mais aquela humilhação. Mas não tinha coragem de abandonar o homem que ainda amava, apesar de tudo. PROJETO REVISORAS Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida. Cultura: um bem universal. Disponibilização do livro: Cida Digitalização: Palas Atenéia Revisão: Edith Suli CAPÍTULO I Era uma tarde quente e abafada de fim de agosto. O ar parado prenunciava a aproximação de uma pancada de chuva, comum naquela época do ano. No jardim, o único ruído era o de uma abelha gorda e peluda. Distraída, Fleur Maynard parou de descascar as ervilhas de dentro de uma tigela azul, que equilibrava nos joelhos, e ficou observando o inseto desaparecer dentro de um lírio. Como tudo estava calmo... Recostou-se na cadeira e empurrou uma mecha de cabelo de sobre os olhos. Paz! Mas era paz o que ela queria? Sua vida parecia ter sempre trilhado por caminhos calmos e inalterados; sem tristeza, sem desapontamentos, sem mesmo a menor tragédia que lhe perturbasse a existência suave... Mas também sem nenhuma excitação. Um leve sorriso curvou seus lábios, ao pensar nos pais. Eles a consideravam uma moça tímida e sossegada, que ajudava nos serviços da igreja, pronta para auxiliar algum velho ou alguma criança necessitada. Como reagiriam, se soubessem que

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FLORES DAS TREVAS Margaret Rome Sabrina 183 Livros Abril Copyright. MARGARET ROME Título original: "CHATEAU OF FLOWERS" Publicado originalmente em 1971 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: SUZY MAY ELSTON Copyright para a língua portuguesa: 1982 ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL Composto e impresso em oficinas próprias Foto da capa: R.J.B. PHOTO LIBRARY

Caminhante desastrado, cego pela dor, Alain estava prestes a esmagar a flor da inocência, que Fleur oferecia com tanto amor... Fleur tinha quase tudo para ser feliz: era jovem, apaixonada por Alain, seu marido, e morava num castelo na França, rodeado por campos cobertos de flores. Faltava-lhe, no entanto, o mais importante: o amor de Alain. Cego há alguns anos, vítima de uma série de operações que nunca davam em nada, Alain voltava seus olhos sem vida para Fleur, com desprezo. Amargurado, ele a acusava de ser uma mulher sem escrúpulos, uma aventureira interessada apenas em sua riqueza. Fleur não suportava mais aquela humilhação. Mas não tinha coragem de abandonar o homem que ainda amava, apesar de tudo. PROJETO REVISORAS Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida. Cultura: um bem universal. Disponibilização do livro: Cida Digitalização: Palas Atenéia Revisão: Edith Suli CAPÍTULO I Era uma tarde quente e abafada de fim de agosto. O ar parado prenunciava a aproximação de uma pancada de chuva, comum naquela época do ano. No jardim, o único ruído era o de uma abelha gorda e peluda. Distraída, Fleur Maynard parou de descascar as ervilhas de dentro de uma tigela azul, que equilibrava nos joelhos, e ficou observando o inseto desaparecer dentro de um lírio. Como tudo estava calmo... Recostou-se na cadeira e empurrou uma mecha de cabelo de sobre os olhos. Paz! Mas era paz o que ela queria? Sua vida parecia ter sempre trilhado por caminhos calmos e inalterados; sem tristeza, sem desapontamentos, sem mesmo a menor tragédia que lhe perturbasse a existência suave... Mas também sem nenhuma excitação. Um leve sorriso curvou seus lábios, ao pensar nos pais. Eles a consideravam uma moça tímida e sossegada, que ajudava nos serviços da igreja, pronta para auxiliar algum velho ou alguma criança necessitada. Como reagiriam, se soubessem que ela na verdade desejava navegar em águas mais turbulentas? Que sonhava atravessar as fronteiras do pacato vilarejo onde sempre morara? Na espreguiçadeira ao lado, a mãe se mexeu e abriu os olhos, sonolenta. - Seu pai já voltou? - perguntou, começando a demonstrar uma certa preocupação. Fleur sorriu. A devoção que os pais tinham um pelo outro nunca deixava de surpreendê-la. Apesar de já idosos, seu amor era talvez mais forte ainda do que quando jovens. A mãe era capaz de corar ao receber um elogio do marido; ele, por sua vez, ficava inchado de orgulho quando a esposa comentava como o povo do vilarejo tinha sorte por ter um pastor tão competente. Há muito tempo, Fleur havia percebido que os dois eram bondosos e ingênuos demais. Nunca viam maldade em parte alguma, e o pior vilão recebia deles o benefício da dúvida; nunca a condenação. Talvez por isso, até o maior pecador saía da casa paroquial com a alma mais leve. Talvez, também por isso, Fleur se preocupava com os pais tanto quanto com as meninas do grupo de bandeirantes do qual era a guia. Havia em sua voz um leve e inconsciente toque de amor maternal, quando respondeu à mãe: - Ora, mamãe, não se preocupe. Papai está mesmo um pouco atrasado, mas hoje é dia dele visitar os pacientes do hospital, não se esqueça. Você sabe como ele fica envolvido com cada caso, principalmente os recém-chegados. Vai voltar logo, tenho certeza. Ao ver que a preocupação desaparecia dos olhos da

mãe, Fleur levantou-se, entregando-lhe a tigela com as ervilhas, e depois espreguiçou-se gostosamente. - Ah! É bom ficar algum tempo parada, mas a inatividade não combina muito bem comigo. - Jean Maynard levantou os olhos e sorriu para Fleur. Nunca se cansava de agradecer a Deus por ter lhe dado aquela filha, tão boa e bonita, muito tempo depois de ela e o marido terem perdido as esperanças de ser pais. Os dois haviam escolhido um nome perfeito: ela era tão linda quanto qualquer flor do jardim da casa paroquial. Admirou mais uma vez a pele branca e macia como uma pétala, os lábios cheios e sensíveis, vermelhos como uma rosa selvagem, e o azul puro dos olhos cor de amor-perfeito. O cabelo era como o trigo e caía em ondas suaves até os ombros; o corpo jovem, esguio e delicado, mas já revelando que teria curvas bem-feitas. Fleur era exatamente isso: uma flor que desabrochava. Mas para Malcolm e Jean Maynard, o pensamento mais reconfortante era a beleza interior da filha. Tinha uma natureza tão boa e generosa que era amada por todos, apesar de, às vezes... a mãe deixou escapar um sorriso.... a garota dar a impressão de ser tão adulta, que até se sentia responsável pelos velhos e carregava nos ombros frágeis as preocupações do vilarejo inteiro. Ao perceber que Fleur a encarava, a sra. Maynard disfarçou o sorriso, levantando-se para entrar em casa. - Vou começar a preparar o jantar, querida. Você vá se trocar. Quando seu pai chegar, estará tudo pronto. Fleur concordou e, dando-lhe o braço, acompanhou-a até a cozinha. Quando o reverendo Malcolm chegou, pouco mais tarde, encontrou o jantar pronto para ser servido e a esposa e a filha esperando por ele. Mas bastou entrar em casa para as duas perceberem que havia algo errado. Uma ruga vincava a testa habitualmente lisa e o brilho que estavam acostumadas a ver nos olhos dele havia sido substituído por um ar de extrema seriedade. Malcolm Maynard tinha um coração enorme, que dava para acolher as preocupações e os problemas de todos que o procurassem, mas estava sempre tentando não levar para casa as misérias que encontrava em seu trabalho pastoral. Só que, dessa vez, estava preocupado; tão preocupado que nem tentou esconder o fato. - Malcolm, meu querido, há algo errado? O que aconteceu? Fleur nem tentou perguntar nada. Descobrira há muito tempo que era dispensável ao entendimento e compreensão entre os pais. Ambos a amavam demais, e sabia que se sentiriam muito mal se desconfiassem que ela às vezes se sentia meio posta de lado. Mas eles eram as duas metades de um todo e, quando algum problema surgia para um, era imediatamente dividido com o outro. Malcolm sacudiu a cabeça e, em vez de ir para a sala de jantar, onde a refeição o aguardava, dirigiu-se para a saleta que usava como escritório e afundou-se numa velha poltrona de couro. Esperou até que a esposa e a filha chegassem perto e desabafou: - Passei por um mau bocado hoje no hospital! - Passou os dedos pelo cabelo, num gesto de desamparo. - Só Deus sabe, mas já visitei centenas de doentes no Hospital Real, muitos deles cegos e sem esperança de voltarem a ver, mas esse rapaz... - Sua voz demonstrava extrema compaixão. - Ele está na mais completa solidão! Não permite que ninguém o conforte, rejeita todas as ofertas de amizade e, o que é pior, segundo me disse, não tem fé alguma nem em cirurgiões nem em religiosos! Jean debruçou-se para ele, dando-lhe tapinhas amistosos na mão. - Conte tudo desde o começo, querido. Vai se sentir muito melhor depois de desabafar. - Não é como eu me sinto que importa, Jean! - respondeu, aflito. - Preciso descobrir um meio de ajudar o pobre rapaz! A esposa ficou calada e, depois de algum tempo, o reverendo continuou: - Hoje, quando cheguei ao hospital, havia um recado de sir Frank Hamlin, o famoso oftalmologista. Sem dúvida, você se lembra de eu ter falado sobre ele, que geralmente manda seus pacientes ao Hospital Real. Bem, ele pedia que eu fosse encontrá-lo antes de fazer a visita costumeira às enfermarias. Naturalmente, foi isso que fiz, ansioso por

descobrir o que queria. Fleur curvou-se para a frente, para não perder uma única palavra do que o pai dizia em voz baixa. - Sir Frank pediu minha ajuda com relação a um paciente recém-admitido, um rapaz francês, cuja família é muito amiga da dele. A história que me contou sobre o acidente do rapaz é trágica. Há dois anos ficou cego com ácido. Durante todo esse tempo, os médicos franceses deram-lhe esperanças; pequenas, é verdade, mas sempre esperanças. No fim, depois de seis operações fracassadas, a família entrou em contato com sir Frank, que imediatamente o transferiu para a Inglaterra, para o Hospital Real. O rapaz, logo após o acidente, tinha muita confiança nos médicos. Nunca se queixava da dor ou do mal-estar que devem ter sido grandes, pois após cada operação ele esperava voltar a ver. Gradualmente, entretanto, o otimismo foi desaparecendo, substituído por enorme amargura, até que por fim, depois do último insucesso, ele afundou num desespero tão grande que jurou nunca mais fazer outra operação. - Oh, coitadinho... - murmurou Jean Maynard, quase chorando. - É verdade - concordou o pastor. - Merece mesmo piedade. - Mas o que é que sir Frank queria do senhor? - perguntou Fleur. - Ele queria meu auxílio para reavivar a fé do rapaz, minha querida, Sir Frank tem quase certeza de que pode ter sucesso numa nova operação e está ansioso para tentar. A família do rapaz conseguiu persuadi-lo a se submeter a apenas mais essa cirurgia, apesar de toda sua relutância, mas sir Frank está muito preocupado com o estado mental do jovem e insiste em que é inútil fazer a operação em alguém tão perturbado. Foi por isso que me pediu para tentar dar-lhe um pouco de otimismo. O próprio médico já tentou, assim como toda a família, mas nada conseguiram. Acho que estão me considerando como a última esperança... Baixou a cabeça num gesto de derrota tão grande que a esposa não pôde deixar de interferir: - Mas, querido, você pode fazer isso! Eu sei que pode! Quantas pessoas desesperadas você já ajudou e quantas já voltaram aqui apenas para agradecer-lhe! - Já tentei - disse o pastor, sacudindo a cabeça - e falhei. Nunca na minha vida encontrei um ressentimento tão profundo em ninguém, nem tamanha indiferença. Durante quase uma hora tentei penetrar na armadura com a qual ele se defende, mas a única resposta aos meus esforços era um sorriso ocasional e, por fim, o comentário de que já falei: "Sinto muito, mas não tenho a menor fé, nem em cirurgiões nem em religiosos!" E aposto que não tem mais fé nem na vida - concluiu o velho, infeliz. - O sujeito se tornou um autômato insensível. Acho que ele sofreu tanto, e não apenas fisicamente, que resolveu nunca mais sentir nada! Seguiu-se um profundo silêncio, em que cada um ficou imaginando quanto uma pessoa poderia agüentar de sofrimento até se fechar como uma ostra, como acontecia com o rapaz francês. Durante longo tempo ninguém disse nada. Depois Jean fez uma sugestão: - Talvez Fleur pudesse ajudar... - Eu? - Ela levantou a cabeça depressa. - Como é que eu poderia? Ora, papai... - Mas, quando virou o rosto para olhá-lo, viu, desanimada, que os olhos dele brilhavam com esperança renovada. - Mas claro! - disse mais animado, os lábios se abrindo num sorriso. - Como é que não pensei nisso antes? Vale a pena tentar! - Mas, papai, eu não poderia... Fleur discutiu durante todo o jantar. Sentia-se apavorada só com a idéia de se encontrar com uma pessoa como a que o pai descrevera, morrendo de medo da reação que ele provavelmente teria, imaginando que ela estava se metendo onde não era chamada. Por fim, teve que ceder diante da insistência dos pais, e só foi se deitar depois de prometer que iria procurar o francês no dia seguinte. À tarde, saiu cedo para o hospital. Era o dia em que habitualmente ajudava nas enfermarias, recebendo recados, lendo e escrevendo cartas para os pacientes da oftalmologia, fazendo listas das coisas que eles desejavam; enfim, tornando-se útil. Naquele dia, entretanto, sentia necessidade de conversar com alguém antes de se aproximar do paciente que

prometera ver. Lembrou-se de sua amiga Jennifer Dalton, uma enfermeira que, por feliz coincidência, estava de plantão justo naquela tarde. Descobriu a amiga sentada na sala das enfermeiras, tomando uma xícara de chá e lendo alguns relatórios espalhados sobre a mesa. - Será que pode conversar um instantinho? - perguntou, enfiando a cabeça pela porta da sala. Jennifer empurrou os papéis para um lado. - Entre, Fleur, você apareceu na hora certa. Eu ia começar a gritar! Pelo amor de Deus, estes relatórios dos residentes parecem escritos por um chinês, com uma caneta quebrada... Quer uma xícara de chá? - ofereceu, puxando uma cadeira para Fleur. - Não, obrigada - disse, meio desanimada. - Estou precisando é de conselhos... Jennifer encarou o rosto preocupado da amiga e desabafou: - Será possível, Fleur? Será que tem que carregar nos ombros os problemas de todo mundo? Até de qualquer cachorro manco que passe pela rua? Fleur abriu a boca para protestar, mas Jennifer levantou a mão e continuou: - Oh, eu sei, eu sei... desta vez é diferente! - Debruçou-se para a frente, dando mais ênfase às palavras. - Cada vez é diferente, mas cada vez o resultado é o mesmo. Você fica louca de aflição por uma pessoa que não merece a sua ajuda e que, na verdade, deveria ela própria resolver seus problemas. Quando é que vai começar a pensar em você mesma? Isso é uma coisa que eu queria saber... Fleur não ligou muito ao modo brusco da outra, pois a conhecia muito bem. À primeira vista, ninguém diria que as duas poderiam ser amigas íntimas, mas o temperamento tímido e introvertido de Fleur necessitava da extroversão e do entusiasmo de Jennifer. Apesar de às vezes se sentir meio afogada em tanta ebulição, a garota aceitava os conselhos da amiga. - Não vim falar sobre mim mesma - disse Fleur, séria. - Está bem. - Jennifer recostou-se na cadeira, com um suspiro de resignação. - Então, fale de uma vez. Qual é o caso? - É o seu novo paciente. Papai me pediu que fosse falar com ele hoje, tentar animá-lo um pouco, e eu gostaria que você me desse alguma idéia sobre os assuntos que ele prefere. Não tenho jeito de saber sobre o que conversar com ele... De repente, a outra ficou toda agitada. - Você não está falando do nosso conde francês, não é? - Então, é assim que o chamam? - Meu Deus! Todas as enfermeiras deste andar já tentaram chegar perto dele! Mesquinho, temperamental, superior... já esgotamos todos os adjetivos! Metade das funcionárias o detesta e a outra metade está apaixonada por ele. Mas num ponto todas nós concordamos: ele é impossível! Fleur sentiu uma onda de desânimo. As palavras do pai a tinham prevenido, mas o fato de a corajosa e atrevida Jennifer sentir-se daquele modo em relação ao rapaz provava que ele devia ser mesmo intolerável. Pigarreou e disse, num leve tom de censura: - Mas, Jennifer, ele é cego! - Eu sei - disse a outra, com uma careta. - Mas quase todos os outros pacientes desta ala também são cegos e não têm uma suíte particular e a total atenção de sir Frank para ajudá-los a suportar melhor o golpe. Fleur, o seu rapaz é terrível, vá se preparando. Apesar de ter perdido a visão, não tem incapacidade alguma quanto a qualquer outra coisa. É incrível como ele logo percebe a piedade na voz dos outros e fica furioso com isso. Por favor, não se exponha demais à sua língua ferina. Seria melhor que o deixasse nas mãos de gente mais dura e mais experiente em lidar com problemas como esse, porque acho que você acabaria se dando mal! Fleur se encolheu, mas sacudiu a cabeça. - Eu tenho que ir vê-lo. Prometi a papai e não posso voltar atrás. Qual é a hora mais conveniente? Jennifer levantou as mãos, num gesto de desânimo. - Está certo, se você resolveu mesmo... - Continuou, mais calma ao ver o ar de tristeza de Fleur: - Olhe, você ainda não percorreu as enfermarias hoje, não é? - Ela sacudiu a cabeça, negando. - Ótimo. Quando acabar de fazer isso, vai ser hora do chá e sir Frank já terá ido embora há horas. Vou providenciar para que o seu paciente fique bastante tempo sozinho. Assim, quando você chegar, ele estará mais disposto a conversar com

alguém. Será que assim está bem? - Ora, só isso? Então, muito obrigada, mesmo... - disse Fleur, levantando-se com ar ofendido. A risada de Jennifer ainda ecoava em seus ouvidos, ao se afastar pelo corredor. Fleur acabou sorrindo também, mas logo ficou séria quando pensou no compromisso que teria dali a apenas algumas horas. CAPÍTULO II Fleur não sabia se se sentia preocupada ou aliviada, à medida em que a hora da visita se aproximava. Durante toda a tarde, enquanto fazia suas tarefas na enfermaria principal, lançava olhares inquietos para a porta do apartamento do homem que prometera visitar. Seus pensamentos estavam tão confusos, que teve dificuldade em se concentrar no trabalho, fazendo com que os pacientes caçoassem de seus enganos; pacientes esses que, na maioria, eram agora seus amigos. Afinal, conseguiu terminar tudo e agora começava a sentir uma onda de pânico. Foi andando devagar pelo corredor, até parar em frente à porta. Tomou coragem, como se fosse enfrentar uma batalha, e bateu. - Entre - disse uma voz brusca. Deu três passos hesitantes para dentro do aposento e, receosa, olhou para a cama. Estava vazia, as cobertas puxadas. Na parede oposta, havia uma janela que dava para o jardim do hospital. Parado lá, estava um homem alto, vestido com robe de seda escura. O coração de Fleur deu um salto e começou a bater, descontrolado. Sentiu que, mesmo que nunca mais o visse, jamais esqueceria seus traços marcantes. Era uma figura tão atraente, ali em pé e imóvel, que ela não pôde deixar de encará-lo com uma aura de romantismo. Parecia um cavaleiro antigo com roupas modernas, o rosto moreno e pensativo, o queixo pronunciado - sinal de obstinação -, os olhos baixos e misteriosos, o nariz reto. Faltavam apenas a armadura, a capa esvoaçante e uma espada. Era como um herói de Cervantes, Dom Quixote, que tomava moinhos de vento por inimigos e carneiros por exércitos. Dele emanava a sensação de que consideraria qualquer tentativa de aproximação como uma provocação e a piedade como um insulto. - Bem... - A voz impaciente ecoou pelo quarto. - Quem é você e o que deseja? Fleur sentiu o coração se encher de compaixão e a custo conseguiu gaguejar: - Eu... eu sou Fleur Maynard, a filha do pastor que o visitou ontem, lembra? Ele inclinou a cabeça orgulhosa e, sem se virar da janela, respondeu: - Quer dizer aquele reverendo tolo? Pensei que tivesse deixado bem claro que a presença dele era completamente desnecessária. Então, por que resolveu me mandar sua filha? Talvez ele queira que você me guie por aí, para eu dispensar a bengala branca, ou... Ah, já sei: aposto como quer que você me ensine braile, uma ocupação muito virtuosa para uma filha de pastor! Se o sarcasmo tivesse sido dirigido apenas a ela, Fleur o teria perdoado, mas escutá-lo atacar seu pai, uma pessoa tão boa e gentil, foi mais do que podia suportar. Com o instinto de uma leoa defendendo os filhotes, resolveu enfrentá-lo: - Monsieur, acho essa sua autopiedade mórbida, simplesmente insuportável. Agora compreendo por que as pessoas preferem deixá-lo sozinho com seus pensamentos negativos e com suas crises infantis de mau gênio! A explosão foi seguida de um silêncio absoluto. Ele, não falou, mas apertou os punhos com força. Apesar de silenciosa, sua raiva podia ser pressentida pelo quarto todo. Fleur adivinhou que ninguém jamais falara assim com o arrogante francês, que ele estava achando muito difícil aceitar suas palavras. Ela percebia que, se fosse um homem, ele teria revidado fisicamente! Fleur sentia o corpo tremendo, sem forças para correr até a porta e fugir dali. Estava envergonhada. Uma onda de sangue cobriu-lhe o rosto e depois sumiu, deixando os olhos enormes num rosto branco como cera. Exatamente quando achava que ia estourar de tanta tensão, viu que ele relaxava e se virava para ela. Com uma humildade que não imaginava que ele tivesse, desculpou-se: - Tem toda razão, mademoiselle. Tornei-me uma pessoa impossível de se conviver. A senhorita não é a única que pensa assim. Eu perco o controle, mas não sei como

evitar. Talvez... - e a voz ficou macia como seda - se me ajudasse? Ele devia ter ouvido quando ela suspirou de desânimo, porque continuou, cheio de ironia: - Ora, você é filha de um reverendo, onde está a sua caridade? Sabe muito bem que não iria me negar essa ajuda. O que diria seu pai, se soubesse que deixou de auxiliar um homem desesperado? Imediatamente o rosto preocupado do pai apareceu na mente de Fleur, que engoliu as palavras de recusa que estavam na ponta da língua. Era esperto aquele francês. Acertara na mosca, ao apelar para a única coisa que poderia influenciar em sua decisão. Se ela se recusasse a ajudá-lo, o pai ficaria muito triste e decepcionado. - De que modo posso ajudá-lo, monsieur? Existem pessoas muito mais capacitadas do que eu, esperando apenas pelas suas ordens. Por que não permitir que elas o ajudem? Ele afastou-se da janela e aproximou-se. Chegou tão perto dela, tão perto que se estendesse o braço poderia tocá-la. Era muito difícil acreditar que não podia ver, tão confiantes eram seus movimentos. Os olhos, fixos no rosto de Fleur, pareciam analisar cada detalhe com atenção, tanto que ela chegou a corar. Só quando reparou nas pequenas cicatrizes brancas nas pálpebras e na testa, marcas de antigas operações plásticas, é que teve certeza de que ele não enxergava. Ficou mais vermelha ainda, terrivelmente envergonhada. - Por que eu, monsieur? - Por que você? - repetiu, subitamente áspero. - Simplesmente porque foi a primeira pessoa com quem falei, depois do acidente, honesta o bastante para dizer a verdade sobre mim! As outras pessoas andaram mentindo constantemente nos últimos dois anos! Escutar você falar com tanta franqueza foi como uma brisa fresca soprando por entre nuvens de comiseração e piedade. Você é a única pessoa em quem eu confiaria: você teria coragem de me dizer sempre a verdade, e não pretendo perdê-la. Vai ter que fazer o que eu quero, filha de reverendo; senão, não deixarei que me operem! Qual é sua resposta a isso? Será que concorda? - Concordar com chantagem? - perguntou Fleur, engasgada. - Nessas circunstâncias, será que alguém tem escolha? Ele deu de ombros e voltou para perto da janela, virando o rosto para o sol, parecendo sentir grande prazer em expor suas cicatrizes ao calor. De repente, percebendo que ela ainda esperava uma resposta, disse, irritado: - Não, não tem escolha! Não pedi para ser o objeto do seu enorme sentimento de dever. Por isso, não pode me culpar por aproveitar-me dele! - No instante seguinte, já parecia cansado dela. - Pode ir, agora; quero descansar um pouco. Mas esteja aqui amanhã, na hora do almoço. Louca da vida por ter sido mandada embora daquela maneira. Fleur saiu do quarto, conseguindo, com esforço, dominar o impulso de bater a porta. Sir Frank ficou espantado e muito satisfeito com a mudança em seu paciente, depois de apenas algumas semanas de convivência com Fleur. Jennifer chegou a afirmar que ela havia conseguido o impossível. Em vez de ficar trancado no quarto, o francês pedia cada vez mais para sair no carro com o motorista que o médico pusera à sua disposição, levando Fleur para lhe descrever tudo o que via de interessante. Malcolm Maynard estava tão orgulhoso da filha que não tinha mais palavras para elogiá-la, mas a mãe reparava como era enorme a tensão em que a filha vivia. Apenas ela percebia que, quanto mais animado o jovem francês ficava, mais abatida Fleur se tornava. Isso acontece, pensava a sra. Maynard, porque Fleur dedica quase todo o seu tempo ao rapaz cego. Tentou chamar a atenção da filha sobre o assunto uma tarde, quando ela se aprontava para sair mais uma vez. - Fleur, querida, você parece cansada. Por que não descansa um pouco esta tarde? Eu telefono para o hospital e digo que não vai poder acompanhar o sr. Treville às corridas. Fleur estava enfiando um vestido rosa pela cabeça e sua resposta saiu abafada: - Não se preocupe, mamãe. Não estou nem um pouco cansada. Além disso, Alain iria ficar tremendamente decepcionado. Ele gosta muito de corrida de cavalos, e ficou bastante animado quando comentei que aqui

perto havia um hipódromo. Você acha que eu poderia desistir agora? - Então, está bem - respondeu a sra. Maynard, suspirando. - Mas estou começando a ficar preocupada com você. Não demonstra nem a metade da energia de antes e está se tornando muito pálida. Alain Treville é um jovem interessante, muito bem-educado, mas é possessivo demais! Você não sai de perto dele desde que se conheceram. Tem certeza de que tudo isso não é demais para você? Fleur virou o rosto para esconder as lágrimas que tentavam escapar. Era muito bom que os pais achassem Alain Treville interessante e bem-educado, mas só ela sabia da negra depressão que se abatia sobre o rapaz às vezes, quando os dois estavam sozinhos. Ela havia aprendido a ficar calada quando ele praguejava contra o destino, por ter ficado cego. Tornara-se para ele uma válvula de escape, o bode expiatório. Agora, no hospital, Alain era um paciente modelo, fácil de agradar e cheio de cooperação, mas apenas Fleur suportava o peso dos demônios que se erguiam dentro dele; e Alain só se sentia aliviado depois de uma explosão de gênio. No começo, quando ele ficava desse jeito, Fleur tentava revidar, mas isso apenas fazia as coisas piorarem. Depois de sofrer sob o chicote da língua de Alain uma meia dúzia de vezes, decidiu não opor mais resistência. Ficava sentada, quieta, esperando que o veneno se esgotasse. Mas, às vezes - muito poucas, é verdade, ele se tornava humano e gentil, tão atencioso e delicado que ela não tinha coragem de negar-lhe nada. Foi na última dessas ocasiões que descobriu que estava apaixonada por ele... - Fleur! A mãe ainda esperava uma resposta. Por isso, Fleur sentou-se a seu lado e pegou sua mão. - Mamãe, não se preocupe comigo. Sir Frank me contou confidencialmente que espera operar Alain ainda na próxima semana. Por isso, logo não serei mais necessária. Quando recuperar a visão, ele voltará à França e acabará se esquecendo de mim. - Sentiu que o coração batia descompassado, mas esforçou-se para continuar: - Dentro de algumas semanas tudo voltará ao normal e poderei descansar bastante. Mas, enquanto ele precisar de mim, tenho que estar perto. Você entende? - Está bem, meu amor - disse Jean Maynard, dando um tapinha na mão da filha e entendendo mais do que ela pretendia. - Não vou falar mais nada. Apenas lembre-se... - hesitou - de que sua felicidade é muito importante para nós, e qualquer coisa que você decida fazer será aceita por seu pai e por mim como necessária a essa felicidade. - Ora, mamãe... - Fleur abraçou-a. - Que decisão eu teria que tomar que afetasse a minha vida com você e papai? Que bobagem... - acrescentou, rindo A mãe apenas sorriu e levantou-se para sair do quarto. Fleur continuou sentada na cama, refletindo sobre o que dissera. O carro de sir Frank demorou a chegar. Pela janela do quarto, Fleur ouviu a mãe pedindo a Alain que não descesse, pois a filha já iria sair. Não escutou a resposta do rapaz. Pegou a bolsa e desceu correndo a escada, ansiosa para saber se aquele seria um dos bons dias, ou se teria que, mais uma vez, suportar durante horas o suplício da língua ferina do rapaz cego. Entretanto, assim que o viu percebeu que ia ser um dia feliz: os lábios de Alain se abriram num sorriso involuntário de boas-vindas. Perguntou, impaciente: - Está pronta, Fleur? - Sim, Alain - respondeu, pronunciando o nome dele ainda com dificuldade. Ele mesmo insistira, no primeiro dia, que o chamasse pelo primeiro nome, só que Fleur demorara algum tempo para conseguir deixar de chamá-lo de monsieur Treville. - Ótimo. Então vamos indo, que não quero perder a primeira corrida! O dia estava ideal para aquele tipo de passeio; a temperatura, agradável, com uma brisa que quebrava o calor excessivo. Descobriram um bom lugar, meio afastado, pois ele não gostava de multidões, mas de onde Fleur tinha uma ótima visão da pista. Depois de se acomodarem, Alain dispensou o motorista, dizendo que fosse se divertir à vontade e voltasse só na hora de irem embora. Apesar de Fleur não conhecer nada sobre corridas, tinha uma boa

intuição do que poderia interessar ao rapaz. Descreveu tudo à sua volta de um modo tão interessante que ele ficou completamente absorvido: seu rosto brilhava de animação. No intervalo entre os páreos, comeram o lanche que tinham levado numa cesta: sanduíches de galinha e de presunto, frutas e uma garrafa de vinho embalada em isopor, para manter o gelo. Depois, Alain deitou-se na grama, sobre um cobertor, e deixou escapar um suspiro de satisfação. - Foi maravilhoso! Fleur, muito obrigado pela tarde tão agradável. Quando eu voltar para casa, você vai ter que me visitar e nós iremos às corridas! Ela ficou feliz. Era a primeira vez que ele mencionava a ida para casa, ou qualquer coisa sobre si mesmo. Bem que gostaria de ter perguntado, mas tivera medo de ser repelida. Entretanto, como ele estava de bom humor, resolveu fazer uma tentativa. - Alain, onde é a sua casa? No mesmo instante o rosto dele ficou tenso. Mas a tensão desapareceu em seguida. - Perto de Grasse - respondeu, brusco. Depois, deixando que a memória falasse, explicou melhor: - Grasse, como você deve saber, é o centro da indústria de perfumes franceses, uma região conhecida como o jardim da França. O ano inteiro as flores desabrocham na costa do Mediterrâneo, desde Menton até Hyeres. Florescem em profusão. Cannes é famosa pelos jasmins, rosas e acácias; Nimes, pela lavanda, o rosmaninho e o tomilho, que são plantas de perfume muito especial. Nice tem violetas e resedás. Mas, de todas, a cidade mais famosa é Grasse, porque lá crescem a maioria das flores e é lá que os perfumes são fabricados. Fleur estava fascinada. Por isso ele gostava tanto do sol, tendo vivido sempre num lugar tão maravilhoso! - O ano inteiro as flores desabrocham. - Inconscientemente ela repetia a frase que mais chamara sua atenção. - Isso mesmo - concordou Alain. - Todos os meses do ano. De janeiro a março temos violetas, junquilhos e mimosas; em abril, maio e junho, rosas; em junho há também resedás e cravos. Em julho, florescem enormes quantidades de lavandas, jasmins e lírios. Depois, em agosto, setembro e outubro temos gerânios, acácias e hortelãs. Mesmo na época do Natal, todos os lugares ficam tomados por um mar amarelo e perfumado, quando floresce a acácia imperial. - Oh, pare! -pediu Fleur, rindo. - Você está me deixando tonta. Que sorte você ter tanta beleza esperando para ser vista, quando voltar para casa! Mal disse isso, mordeu a língua, mas já era tarde demais: o mal estava feito. Alain não fez nenhum movimento, mas instintivamente ela percebeu que ele se afastava. Ansiosa, procurou no rosto do rapaz algum sinal de raiva ou angústia, mas os óculos escuros escondiam suas emoções. O corpo parecia relaxado, mas Fleur notou as mãos fechadas, os nós dos dedos brancos de tensão. Cheia de remorsos, segurou as mãos dele, tentando dar-lhe segurança. - Alain, você vai voltar a ver, eu tenho certeza! Não pode deixar que o desânimo e o desespero estraguem as chances de sucesso, porque é vital que você esteja relaxado e de bom humor quando sir Frank realizar a operação, na semana que vem. Suas mãos foram empurradas com fúria, enquanto ele sussurrava, por entre os dentes: - Meu Deus! Não me aborreça! O que é que você sabe sobre operações? Então, não suportei seis fracassos, seis tentativas para me recuperar? Não se preocupe... - imitou os médicos -, os cortes estão cicatrizando admiravelmente bem! E o que me interessam as cicatrizes, se tudo o que quero é voltar a ver? Fleur prendeu o fôlego. Baixou a cabeça e suportou com firmeza o desabafo, pois percebia que ele ficava mais aliviado quando despejava toda a sua frustração. Apenas não iria permitir que aquilo criasse raízes na própria mente. Não queria nem imaginar qual seria a reação de Alain, se algum dia recebesse a notícia de que estava cego para o resto da vida. Calada e deprimida, juntou os restos do lanche e guardou na cesta. Alain mais uma vez voltara à sua introspecção e ela sabia que de nada adiantariam seus esforços para alegrá-lo. Começou a desejar que a semana seguinte passasse bem depressa.

Fisicamente sentia-se forte, mas mentalmente só Deus podia saber por mais quanto tempo agüentaria o sacrifício de tentar ajudar Alain Treville... CAPÍTULO III A operação havia terminado. Jennifer foi até a sala de espera, para avisar Fleur de que Alain estava sendo levado para o quarto e que sir Frank queria dar uma palavrinha com ela. Foi o suficiente para ficar cheia de medo e preocupação. Será que a cirurgia tinha sido um fracasso? Será que sir Frank queria que ela desse a triste notícia ao paciente? Ficou andando de um lado para o outro, contando os minutos, e o médico não aparecia. Estava no hospital há quase cinco horas, desde o começo da operação, esperando que sua presença de algum modo pudesse transmitir algum conforto a Alain, mas agora sentia-se impaciente. Queria vê-lo, certificar-se de que não estava sofrendo. A porta se abriu e sir Frank entrou, o rosto demonstrando cansaço. - Ah, srta. Maynard, obrigado por ter esperado. Eu queria muito conversar com você. Enquanto ele puxava uma cadeira para ela, Fleur reparou que, por trás dos sinais de fadiga, havia grande preocupação nos olhos do médico. - O transplante da córnea direita foi feito hoje - explicou ele, sério - e eu pretendia fazer o do olho esquerdo dentro de alguns dias. Você sabe, assim como Alain, que a operação é feita em duas etapas, não é? - Ela assentiu, e o médico continuou: - Depois de operar o olho direito, examinei muito bem o esquerdo... Fleur ficou tensa quando ele parou de falar - E então? Ele afundou numa cadeira em frente a ela antes de admitir: - Sinto dizer que os prognósticos não são nada bons... - Quer dizer que a operação foi um fracasso e que Alain não voltará a ver? Ele hesitava, procurando palavras que suavizassem o golpe. - O olho esquerdo foi o que sofreu mais, mas mesmo assim eu achava que não havia danos irreparáveis. Hoje, entretanto, encontrei sinais de infecção. Precisamos controlar essa infecção antes de podermos continuar e fazer a outra cirurgia. Foi por isso que pedi para falar com você, minha querida. Afinal, conseguiu milagres com Alain nestas últimas semanas e quero ter certeza de que você estará por perto, quando ele precisar, o que certamente vai acontecer, quando eu lhe contar sobre a minha decisão. Fleur ouvia a voz do médico como se fosse a sentença de morte de Alain. Tinha sido para isso que ele suportara sete terríveis operações? Será que não seria preferível e mais caridoso deixá-lo sem esperança alguma, em vez de criar aquela espécie de gangorra emocional que era, mais do que qualquer outra coisa, a causa de seu desespero e desequilíbrio? Zangada e querendo chorar, enfrentou sir Frank: - Por que é que não deixou ficar como estava? Por que fazer promessas de que ele talvez pudesse voltar a ver, quando não há esperanças? Contradizendo-a com gentileza, o médico explicou: - Mas sempre há esperança, minha querida. Nós, cirurgiões, temos que acreditar nisso; senão, nunca operaríamos. Estou tão deprimido como você com essa situação, mas peço-lhe que encare tudo isso, apenas como uma espécie de atraso nos planos e que ajude Alain a acreditar nisso também. Dentro de um ano, talvez menos, será possível fazer a nova cirurgia, e, dessa vez, com sucesso. Mas preciso de seu auxílio para fazer Alain entender que não está tudo perdido. Será que posso contar com isso? - Alain nunca irá concordar! Para ele, agora, era tudo ou nada, tenho certeza. - Então, que Deus o proteja e à sua família, porque as coisas serão difíceis de suportar... - Sir Frank tinha um ar de completo desânimo. - A mãe dele é muito minha amiga, assim como também o pai o era, e o que eu mais desejava era devolver a visão ao rapaz. Mas, se o que diz é verdade, então nunca conseguirei ter sucesso. A tristeza e o desapontamento de médico eram comoventes, e Fleur acabou prometendo, por entre lágrimas: - Sir Frank, eu farei o que estiver ao meu alcance para que ele compreenda, mas se recusar me escutar, por favor, não se culpe. Mais tarde, quando Alain se conformar, talvez aceite tentar mais uma vez. - Você é um amor - disse o médico, acariciando de leve o rosto

dela. - Não me surpreendo em saber que ele encontrou compreensão de sua parte, e tenho certeza de que, se pudesse estar junto dele nos próximos meses, isso seria a salvação de Alain. Entretanto - suspirou -, como isso não é possível, temos que esperar que supere o amargo desapontamento e consiga tomar a decisão certa. Antes de voltar para casa, Fleur pôde entrar no quarto de Alain. Sir Frank havia dito que ele ainda ficaria inconsciente por várias horas e que, quando voltasse a si, precisaria de cuidados especiais, e visitas não seriam permitidas. Ela olhou para o rosto moreno, descansando no travesseiro, a cabeça apoiada em dois suportes que a seguravam com firmeza, os olhos cobertos por ataduras. As mãos sensíveis estavam imóveis contra o branco dos lençóis, os dedos esticados, como se apontassem, acusadores. Fleur estava presente na manhã em que sir Frank resolveu contar ao paciente os resultados dos exames. Já fazia uma semana da operação e Alain se encontrava sentado numa poltrona, perto da janela, o robe escuro acentuando sua palidez. Contra todas as ordens, estava com o rosto numa réstia de sol, mas fez um movimento de irritação com uma das mãos por causa das ataduras que ainda lhe cobriam os olhos. Sir Frank entrou e, sem dar tempo ao paciente para reclamar, foi dizendo, com uma animação forçada: - Bem, Alain, já é tempo de conversarmos um pouco! O rosto do rapaz imediatamente demonstrou antagonismo. Fleur gostaria de poder avisá-lo de que o tom do médico era resultado de um grande nervosismo, mas não teve tempo de intervir. - Também acho. - Sua voz estava gelada. - Assim, vamos poder parar de representar, coisa que aconteceu durante toda esta última semana! - Representar? O médico estava surpreso, mas Fleur não se admirou quando Alain continuou, as palavras cortando como lâminas: - Será que acha que sou tão tolo que não sei distinguir entre fracasso e sucesso? Mesmo que eu não tivesse alguns sinais físicos para me orientar, sua excessiva compaixão e a ansiedade em sua voz já serviriam como aviso! Além disso, as piedosas tentativas de Fleur de me consolar... Obviamente, ela também está sabendo que a operação foi um fracasso, pois conheço cada nuança de sua voz, e ela deixou escapar uma centena de vezes como está morrendo de pena de mim! A percepção tão exata da situação e o selvagem ressentimento deixaram os dois sem fala. Fleur deu uma olhada na direção do médico, como se pedisse socorro. Quando ele encolheu os ombros, desanimado, ela não pôde controlar um soluço. Alain percebeu e virou-se para ela, furioso. - Não derrame suas lágrimas por mim! Não tolero piedade! Daqui para a frente, terei que me conformar com a vida de um homem cego: terei que aprender braile, usarei uma bengala branca e também precisarei aprender a tolerar a compaixão e a piedade dos outros, mas não de você, Fleur. Nunca de você! Você tem que ser sempre honesta comigo, está ouvindo? Se algum dia eu descobrir que mentiu para mim, então, nesse dia, eu desistirei de tudo, completamente! Fleur encontrou a voz. - Alain, eu nunca mentiria para você, e é por isso que tem que acreditar no que vou dizer agora. Seu caso não é sem esperança! Sir Frank estava tentando dizer a você que dentro de alguns meses vai poder terminar o que começou agora. É necessário primeiro curar uma pequena área tomada por infecção. Depois disso, tudo ficará mais fácil. Por favor, Alain, escute o que ele tem a lhe dizer! Sua resposta foi erguer a mão e, com um palavrão, arrancar as ataduras dos olhos e atirá-las ao chão - Isto é o fim de tudo! - afirmou, levantando a cabeça, o rosto contorcido pela raiva e pelo desapontamento. - Nunca mais quero ouvir falar no assunto! Nas semanas seguintes, sir Frank e Fleur fizeram o possível para que mudasse de opinião, mas Alain permaneceu inflexível quanto a novas operações. Finalmente, ao se aproximar a época em que deveria partir, tanto o médico quanto ela tiveram que aceitar a derrota. Se bem que Fleur secretamente esperasse que talvez ele pudesse mudar de idéia depois que estivesse em casa e

que o desejo de ver novamente o que agora apenas podia sentir acabasse se tornando suficientemente forte para fazê-lo voltar atrás. Por isso, apesar de terem recomeçado a sair juntos, e dela estar na companhia dele quase todos os dias, Fleur se abstinha de tocar no assunto, pois não tinha o menor desejo de sofrer as conseqüências de uma nova explosão de raiva. Durante a convalescença, Alain freqüentemente visitava a casa de Fleur. Gostava de seus pais, sentia-se à vontade com eles e os dois também gostavam muito da companhia do rapaz. Foi durante uma dessas visitas, quando Alain e Fleur descansavam no jardim calmo e ensolarado, que ele a deixou atônita ao perguntar, de repente: - Fleur, quer se casar comigo? Alain repousava numa espreguiçadeíra e mascava um talo de capim, quando fez a pergunta. Apesar de provavelmente ter pressentido a reação de espanto de Fleur, não deu sinal disso. - O... o que foi que disse? - ela sussurrou, com medo de não ter entendido direito. Alain sentou-se, impaciente, e atirou fora o capim. - Fleur, eu preciso de você. Não posso enfrentar a idéia de voltar para a França sem você. Será que pelo menos podia pensar no assunto? O coração de Fleur batia com tanta força que seu corpo todo tremia. Amava tanto aquele homem, que até morreria por ele. Mas Alain aparentava apenas indiferença ao fazer o pedido de casamento. Abriu a boca para dizer o quanto o amava, mas, antes que dissesse uma só palavra, ele continuou... e o que falou fez seu sangue gelar. - Claro que seria um casamento de conveniência. Não espero nada de você além do que me deu todas estas semanas. Você se transformou em meus olhos; através de você, vejo novamente. E prometo - ele parecia absolutamente certo de que ela não recusaria - que também se beneficiará com o casamento. Quando a onda quente da humilhação se afastou, Fleur ficou grata, imensamente grata, por ele não poder ver o efeito que suas palavras provocaram nela. Aquela fria oferta de casamento havia sido a maior ofensa que recebera na vida, e seu único consolo era que Alain não tinha a menor idéia de seus sentimentos. Ele estava perfeitamente imóvel, numa atitude de quem escuta, tentando descobrir a reação de Fleur. Por isso ela continuou calada, até que conseguiu controlar-se. - Você ainda está aí, Fleur? O tom da pergunta indicava a necessidade que sentia dela, uma necessidade muito maior do que ele jamais admitiria, e o coração de Fleur se encheu de compaixão. - Sim, eu estou aqui - respondeu, esforçando-se ao máximo para fazer com que a voz saísse calma e controlada. Alain ficou mais à vontade, um leve sorriso nos lábios. - Ótimo, pensei que não tivesse ouvido. Bem, Fleur, qual é a sua resposta? Vai se casar e voltar comigo para a França? - Sim - respondeu, num fio de voz. Mas ele escutou e o sorriso se alargou, adquirindo um leve ar de cinismo. - Obrigado. Achei que você gostaria da idéia. Fleur teve que fazer um esforço enorme para não se esquecer de como ele estava ferido e magoado, e, bem no fundo, com muito medo. Havia vivido de esperanças durante dois anos; agora, toda a esperança acabara e ele precisava de uma espécie de âncora para enfrentar o futuro, alguém que o compreendesse, mas que não fizesse exigências. Lembrou-se das palavras de sir Frank: "Tenho certeza de que, se você ficasse com ele nos próximos meses, isso seria a salvação". Talvez ela estivesse fazendo um sacrifício ou fosse mesmo excessivamente tola em permitir que a usassem daquele modo, mas Alain estava pedindo e ela o amava tanto que não poderia negar nada. Ele, entretanto, não fazia a menor idéia dos motivos de Fleur. Com uma sobrancelha negra levantada, perguntou cinicamente: - Gosta da idéia de se tornar uma condessa? Fleur olhou para ele, atordoada; depois, lembrando que não podia vê-la, gaguejou, atrapalhada: - Con... condessa? - Ora, deixe disso! - disse, com um riso desagradável. - Não finja que não sabe que, como minha esposa, você se tornará a condessa de Treville. Minha mãe passará o título para você e se sentirá muito aliviada em passar-lhe também todas as

obrigações. De acordo com as opiniões que andou expressando ultimamente, está cansada de organizar as coisas no castelo, e a sua chegada fará com que tenha mais tempo para si mesma. O espanto de Fleur era total - Alain, eu simplesmente não estou entendendo... Está querendo me dizer que você é o conde de Treville e que possui um castelo? Se isso é mesmo verdade, eu nunca poderia aceitar seu pedido. Só a idéia de virar condessa me deixa apavorada! Por favor, diga que é brincadeira... - Não é brincadeira, pode ter certeza - afirmou, cheio de orgulho. - O título é um dos mais antigos da França e o Castelo das Flores foi construído por meus antepassados no século XVII. Ela estava atônita. - Mas por que não me contou tudo isso antes? - perguntou, quase engasgada. Houve um curto silêncio, antes que ele respondesse, seco: - Eu pensei que soubesse. Isso não era segredo no hospital. Por diversas vezes, as enfermeiras exageravam e me chamavam de "o conde impossível", entre outras coisas... Vagamente, Fleur lembrou-se de que Jennifer tinha dito algo parecido. Na época, achara que era um apelido por causa das maneiras arrogantes de Alain, mas agora, tarde demais, descobria seu erro: ele era um conde de verdade! - Seu pai também sabia disso - afirmou. - Eu mesmo contei a ele, alguns dias atrás, quando decidi pedir você em casamento. Não seria justo deixar seus pais sem saberem se eu podia ou não sustentar uma esposa. - Oh, Alain! Fleur não pôde deixar de sorrir daquela atitude antiquada. Apesar da vida sossegada que levava, sabia muito bem que ninguém mais costumava fazer isso. Ainda mais com seus pais, que davam muito pouco valor às coisas materiais e, portanto, não ligariam a mínima a títulos e castelos. Os dois só gostariam de saber se ela seria amada pelo marido, e Fleur duvidava de que ficassem satisfeitos com a resposta que ele daria, se lhe perguntassem algo a respeito. Usando aquele estranho instinto de perceber o que ela sentia, Alain notou a confusão de Fleur e tentou mudar de assunto: - Agora, deixando isso de lado. Você já aceitou meu pedido e não deixarei que volte atrás. Temos que contar a seus pais o que decidimos e depois começar a tratar dos papéis para o casamento. Eu gostaria que ele se realizasse aqui mesmo, na Inglaterra. Assim, posso apresentá-la no Castelo das Flores como minha esposa, a nova condessa de Treville! Alain disse aquilo com uma estranha satisfação, e Fleur ficou imediatamente desconfiada. Preocupada, notou que ele sorria para si mesmo, e não era um sorriso agradável, mais parecendo o riso de alguém que saboreia uma vingança. E ela que imaginara que ele se casava apenas para tê-la a seu lado... Quem é que estaria esperando no Castelo das Flores e seria o alvo da vingança de Alain? E por que ele estava dando um passo tão drástico para obter essa vingança? Fleur sentia o sangue gelando nas veias ao pensar que podia ser usada como uma arma contra alguém. Amava Alain, mas isso não a impedia de notar seus defeitos. Ele era amargo, intolerante, de uma arrogância imune a qualquer emoção. Exatamente porque ele era tudo isso, aceitara seu pedido. Alain, conde de Treville, estava seguindo uma linha reta e segura em direção à autodestruição, e Fleur sabia que nunca o abandonaria, enquanto houvesse alguma chance de salvação. CAPÍTULO IV Três semanas depois, os dois se casaram na pequena igreja do vilarejo, onde Fleur havia sido batizada e que tinha sido o centro de sua vida desde então. Não usou um longo vestido branco, nem buquê, nem véu, ao atravessar a nave em direção ao pai, que iria realizar a cerimônia, e ao homem moreno e difícil que iria ser seu marido. Vestia um conjunto branco, de corte simples, e um chapeuzinho combinando; nas mãos, um pequeno missal com capa de madrepérola. Ao percorrer o caminho até o altar, reparou que a igreja inteira estava enfeitada com vasos de flores coloridas, dando um toque de alegria ao ambiente solene. Fleur teve que sorrir ao notar a mão da mãe naquela decoração, num ato de rebelião contra a vontade expressa de Alain, que desejava tudo o mais

simples possível. Com firmeza, o noivo recusara os planos entusiásticos de Jean Maynard de convidar metade dos habitantes do lugarejo para o casamento, de ensaiar o coro e de contratar um bufê. E havia até conseguido convencê-la de que Fleur não precisava usar vestido de noiva, já que o noivo não poderia apreciá-la. Fleur ficou profundamente grata aos pais por toda aquela compreensão e pelo modo como haviam conseguido disfarçar a profunda preocupação que sentiam com o destino da única filha. Fleur foi levada ao altar por sir Frank. Ao se aproximar, Alain deu um passo à frente e estendeu a mão. Um observador desavisado nunca iria desconfiar de que era cego, tão seguros eram seus movimentos. Mas Fleur, a seu lado, notou um ligeiro tremor no canto de sua boca, sinal do controle que ele exercia sobre os movimentos e da frustração que sentia com relação às suas limitações. Depois disso, não se arrependeu mais de ter desistido da cerimônia habitual de casamento. Tudo foi muito simples e rápido. Da igreja, foram todos à casa paroquial, para um almoço. Jennifer, que tinha servido de testemunha junto com sir Frank, era a mais alegre, e sua conversa animada ajudou a manter um ambiente descontraído. Apesar de Alain estar meio tenso, conseguiu ser gentil com todos; mas, ao embarcarem para o aeroporto, recostou a cabeça no encosto do carro de sir Frank e suspirou, aliviado. - Meu Deus, até que enfim acabou... Eu não agüentaria nem mais um minuto! Fleur não respondeu. Sozinha pela primeira vez com o homem a quem algumas horas antes prometera amar, honrar e obedecer, sentia agora uma onda de pânico. A pesada aliança de ouro que trazia no dedo era um elo a ligá-la a ele pelo resto da vida. Em seu desespero, estava com vontade de arrancá-la do dedo e jogá-la pela janela! Talvez porque percebesse o estado de espírito de Fleur, Alain começou a conversar calmamente: - Não vai demorar muito, e estaremos na França. Acho que vai gostar da viagem. Será que comentei com você que iremos num jatinho executivo? - Fleur apenas conseguiu abanar a cabeça, e ele continuou: - Quando telefonei a minha mãe, dizendo que chegaríamos quando houvesse vôo, ela me contou que um vizinho tinha oferecido seu avião. - Seus vizinhos têm aviões particulares? - Fleur conseguiu perguntar, sem estar realmente interessada, mas querendo distrair o pensamento dos problemas. - Ah, sim. - Ele riu. - Mas são do ramo do champanhe. Têm uma mansão perto do nosso castelo, que só usam durante alguns meses do ano. Construíram uma pista para chegarem mais rápido, mas, na verdade, o jatinho é usado quase que apenas para negócios. O dono, monsieur Chesnaye, acha que a compra do avião foi um alto investimento. Daí você vê que não pode ser considerado um luxo. - Entendo - comentou Fleur, ainda meio tonta com a idéia de alguém ser dono de um jato. - Que conveniente! Alain ficou calado depois daquele comentário irônico, não fazendo mais esforço para distraí-la. Umas duas horas mais tarde, Fleur teve um vislumbre do que seria todo aquele luxo. O motorista de sir Frank, que tinha sido instruído a ajudá-los com as formalidades do aeroporto, se encarregou de tudo e os levou a um rapaz francês, piloto do avião. Fleur ficou espantada com o elegante jatinho cor de champanhe à sua frente. Achava difícil acreditar que pertencesse a um único homem. Uma elegante aeromoça ajudou Alain a subir a escada e os acomodou em seus lugares. O interior do avião era francamente opulento: havia lugar para oito pessoas em poltronas forradas de verde, e o chão era forrado com um grosso tapete champanhe. Alain afundou-se no assento, pedindo à aeromoça: - Assim que subirmos, me arranje uma bebida, por favor. - Certamente monsieur. E madame, deseja alguma coisa? Madame! Fleur sentiu um arrepio na espinha. Estava irremediavelmente presa à vida de Alain. Mas não foi a gentil aeromoça que a trouxe de volta à realidade, e sim Alain, que perguntou, seco: - Fleur, por que não responde? Era um chamado aflito, querendo a confirmação de sua

presença ali ao lado, e ela respondeu, de coração: - Estou aqui, junto de você, onde sempre estarei... Os olhos por trás das lentes escuras eram indecifráveis, mas, ao recostar-se, Alain sorriu, e Fleur sentiu que o pânico a abandonava. Recostou-se também. Era sua primeira viagem de avião, a primeira vez que via tudo sob outra perspectiva. Durante quase toda a viagem ficou com o rosto colado a janela, por onde viu a costa da Inglaterra ir desaparecendo lentamente, enquanto o avião parecia suspenso entre o céu e o mar. Ficou desapontada quando nuvens começaram a encobrir o céu, pois estava esperando ansiosa a primeira visão da França. Mas durante longo tempo nada se via abaixo do jatinho. A jovem aeromoça apareceu trazendo uma refeição deliciosa. Reparando na ansiedade de Fleur, percebeu que era estreante em vôos e explicou que estavam sobre a costa do Mediterrâneo e que, como talvez o tempo melhorasse, ela iria poder admirar a belíssima paisagem. Alain continuava silencioso, comendo muito pouco e devagar, virando nos dedos a taça de champanhe. Tornava-se mais tenso à medida em que se aproximavam do destino. Até que, quando o piloto avisou que se preparavam para descer, apertou a taça com tanta força que ela quebrou em sua mão. - Alain! Você se machucou? - Aflita, Fleur debruçou-se sobre ele, mas Alain deixou cair o resto do copo e depressa enfiou a mão no bolso. - Não foi nada - resmungou, o rosto branco, coberto de suor nervoso. - Por favor, não se preocupe! Fleur não teve tempo de dizer mais nada: a aeromoça voltava para verificar se estavam com os cintos apertados. Sentia-se tão deprimida que nem reparou direito na bela mansão perto de onde o jato descera. Viu a silhueta a distância e apenas pensou que os donos deviam ser mesmo milionários, antes de entrar, junto com Alain, numa limusine e ir embora, atravessando rapidamente uma paisagem incrivelmente bela. Tinha visto coisa assim apenas em filmes e, mesmo então, tivera dificuldade em acreditar que as cores pudessem ser tão vivas. Lá longe, à esquerda, viam-se altas montanhas, os cumes cobertos de neve; à direita, o mar azul brilhava a distância. A estrada corria tortuosa por entre campos cheios de manjerona, aniz, rosmaninho e vassourinha, mais lindos ainda por serem selvagens. Casas pequenas quase desapareciam no meio da vegetação e regatos murmuravam por entre plantas semitropicais. E o perfume... tantos perfumes de flores diferentes se misturavam numa deliciosa fragrância que nenhuma indústria conseguiria imitar. Uma simples brisa transformava o lugar num verdadeiro paraíso. Aqui e ali passavam por belas mansões, cercadas de lindos parques cheios de flores e palmeiras, e por toda parte viam-se altos pinheiros, como sentinelas eretas sob o céu azul. Fleur morria de vontade de comentar o que via, mas o mau humor de Alain a inibia. Por isso continuava sentada, as mãos no colo, observando toda aquela maravilha em silêncio. De repente o carro virou, para entrar por um portão de ferro ladeado por duas colunas de pedra, e Fleur teve um sobressalto, o coração disparando. Será que era a casa de Alain? As torres que via a distância lembravam uma construção medieval. Os séculos haviam desbotado as paredes de pedra, tornando-as mais suaves, num tom de mel, mas nada perdiam em grandeza. A parte central do castelo era ladeada por quatro torreões, ligados entre si por uma amurada onde, nos velhos tempos, ficavam as sentinelas. No estado de espírito em que se encontrava, Fleur quase podia ver os soldados apresentando armas e escutar uma salva de canhão. Ao chegarem mais perto, ela percebeu um grupo de pessoas esperando em frente à entrada principal. Mas o mais incrível foi que o carro percorreu os últimos metros ladeado por fileiras de homens vestidos como arautos medievais. A um sinal, todos levaram as cornetas aos lábios e tocaram um triunfante boas-vindas ao conde e à sua esposa. Tudo parecia tão feudal, que Fleur se sentiu transportada para o século XII! Agora compreendia as atitudes antiquadas de Alain, sua

arrogância e orgulho; não eram apenas uma questão de temperamento, mas a conseqüência natural do modo como fora educado e tão normais para ele como respirar. Ali, bem no coração da Provença, a aristocracia francesa ainda era reverenciada e respeitada. O som das cornetas fez com que Alain se sentasse ereto, o maxilar apertado, como se concentrando para enfrentar uma futura batalha. Estivera fora de casa por dois anos, o tempo todo em hospitais, e havia jurado só voltar quando enxergasse novamente. Agora, a promessa estava sendo quebrada, e Fleur sentia o coração cheio de piedade pelo marido. Mas nunca teria coragem de demonstrar isso. Procurou se acalmar, e falou, baixinho: - Alain, que recepção! Deve ser muito reconfortante saber que tantas pessoas estão satisfeitas com a sua volta. Observou um pequeno grupo, separado dos demais, no alto da escadaria de pedra que subia até a entrada principal do castelo. - Acho que é sua mãe que está na ponta. Parece tão feliz! - E quem está com ela? - perguntou, nervoso. Fleur olhou novamente para o grupo. Ao lado da figura esbelta da mulher de idade havia uma garota e, um pouco mais atrás, um rapaz magro, alguns anos mais moço do que Alain. Ia descrevê-los para o marido, quando o carro parou e o motorista desceu para ajudá-los a desembarcar. Houve gritos, palmas e vivas, assim que os dois saíram do carro. Fleur passou o braço pelo do marido, para guiá-lo em direção à casa. Ele aceitou a ajuda sem piscar, preferindo isso à humilhação de tropeçar diante de toda aquela gente. Fazendo comentários animados, os camponeses se aproximaram, as mulheres e moças quase todas vestidas de preto, lenços amarrados na cabeça, e os homens de chapéu na mão, em homenagem ao jovem conde, de quem, obviamente, gostavam muito. Surpresa, Fleur viu aparecer no rosto de Alain o primeiro sorriso genuíno de alegria, ao responder aos cumprimentos, chamando cada um pelo nome, reconhecendo as vozes, como se pudesse vê-los. Uma mulher bem velha conseguiu abrir caminho e segurar a manga de Alain, o rosto cheio de lágrimas. - Ah, coitadinho do meu pequeno Alain... Que pena! Fleur não sabia muito de francês, mas compreendeu perfeitamente o sentimento das palavras da velha e ficou esperando que o mundo desabasse. Mas Alain estendeu a mão até encontrar a da velha e apertou-a, com força, respondendo, cheio de delicadeza: - Obrigado por sua simpatia, Maman Rouge. - E afastou-se rapidamente. Fleur procurava a custo conter as lágrimas, ao chegarem junto da escadaria, onde a família de Alain estava reunida. Por sorte, antes que ela precisasse avisá-lo dos degraus, o rapaz magro desceu depressa e veio ajudar. - Bem-vindo ao lar, Alain. Você ficou longe tempo demais! - disse, animado, segurando-o pelo cotovelo e guiando-o. O sorriso sumiu do rosto de Alain e a resposta seca não deixava dúvidas quanto à irritação que sentia: - Ninguém é tolo de acreditar que o rato possa ficar feliz com a volta do gato, Louis. Será que está feliz por saber que vai ser controlado em seus prazeres? Ou está imaginando que perdi a força de vontade junto com a visão? Fleur quase engasgou e o rapaz corou. - Ora, Alain, isso é maneira de responder ao cumprimento de um primo? - Fez uma mesura para Fleur e, reparando no rosto assustado dela, franziu a testa por um instante. Depois, deu de ombros e piscou o olho. - Sua esposa parece muito chocada, Alain. Por favor, diga a ela que eu não sou tamanho vilão, pois acho que está pronta para fugir! Alain virou a cabeça na direção da esposa e fez as apresentações com voz seca: - Fleur, este é meu primo Louis. Se você for esperta, não dará atenção a uma só palavra que ele disser. Apesar de não ser mau... não tem maldade, nem mau gênio... ele também não tem juízo. É capaz de fazer as maiores loucuras e depois mentir para justificar suas ações - disse, com desprezo. Fleur encarou o rapaz com pena, mas desviou os olhos ao notar seu ar maroto. Foi um alívio chegarem ao alto da escadaria e encontrarem a mãe de Alain. Parada, imóvel, olhava cheia de ansiedade cada passo que o filho dava, rezando

em silêncio para que não tropeçasse. Fleur teve certeza de que, se não fosse pelo povo reunido no pátio, ela teria deixado de lado a dignidade e corrido para abraçá-lo. Mas controlou-se e comportou-se como convinha a uma condessa. Fleur ficou gelada ao pensar que talvez esperassem dela aquele mesmo comportamento; sabia que nunca conseguiria agir assim. Não queria nem pensar no que a velha senhora, imaculadamente vestida e penteada, estaria achando dela, com suas roupas pouco sofisticadas e maneiras simples. Gostava de roupas, é claro, mas nunca teve dinheiro suficiente para luxos supérfluos. Além disso, já vira tanta miséria na vida de outras pessoas que se considerava com muita sorte por ter o suficiente para suas necessidades. - Meu filho querido! A mãe aproximou-se e Alain a abraçou com força. Depois de alguns segundos, afastou-se dela, procurando por Fleur com um movimento de cabeça. Percebendo o gesto, ela imediatamente chegou perto e colocou a mão fria na dele. - Mamãe, acho que deve estar ansiosa para conhecer sua nora. - Empurrou Fleur de leve para a frente e continuou: - Fleur, esta é minha mãe. Espero que goste dela tanto quanto eu. Estavam ambas muito emocionadas mas, mesmo assim, Fleur notou a expressão zangada da garota que esperava para cumprimentar Alain e ouviu que abafava uma exclamação de impaciência. Ficou evidente que ele também ouviu, pois virou o rosto na direção da garota, prendendo a respiração, e seu autocontrole pareceu desaparecer de repente. Mas os óculos escuros escondiam qualquer expressão mais reveladora dos olhos. Fleur jamais conseguiria se lembrar do que dissera à mãe de Alain, nem o que ela respondera. Sabia apenas que havia sido recebida com alegria, com ternura, e que sentira que seria muito fácil amar a velha condessa. Naquele exato momento, a única coisa que a interessava era por que o encontro entre Alain e a garota o deixara tão perturbado. Tinha uma beleza perfeita. O cabelo era escuro como o de Alain, mas a pele clara parecia uma pétala de magnólia; os lábios pintados de vermelho vivo eram cheios e bem delineados e o corpo era miúdo, mas muito bem-feito. Usava um elegante vestido branco, obviamente obra de um dos grandes costureiros de Paris. Encarava Alain, sem procurar esconder a raiva que sentia com a novidade que acabara de ouvir. Seus olhos escuros estavam cheios de raiva e frustração. - É Celestine quem está aí? Fleur ficou tensa ao reconhecer o tom maldoso na voz do marido. Sua intuição lhe dizia que aquela garota era o alvo da vingança dele. Teve ainda mais certeza disso quando ele continuou, demonstrando um cruel prazer: - Celestine, gostaria de lhe apresentar minha esposa, a condessa de Treville! Era aquele, então, o momento pelo qual Alain tanto esperara! Por alguma razão misteriosa, a linda morena havia despertado nele uma enorme sede de vingança! CAPÍTULO V Fleur olhava, desconsolada, para o enorme armário embutido que tomava uma parede inteira do quarto. Tinha acabado de pendurar o último vestido, e ainda sobrara um enorme espaço vazio. Só agora percebia como era pobre seu guarda-roupa. Sacudiu os ombros e fechou a porta do armário, com determinação, assim como tentava fechar em sua mente uma série de pensamentos perturbadores. Pensamentos sobre sua vida anterior, tão simples, e o medo que sentia de não conseguir se adaptar a todo aquele luxo. Pensamentos sobre as pessoas tão diferentes que acabara de conhecer: a mãe de Alain, atenciosa, mas aristocrática e distante; o primo charmoso, mas inconseqüente; e, por fim, a amiga, a belíssima Celestine Chesnaye, que havia feito um tremendo esforço para se controlar ao ser apresentada à nova condessa, mas cujos olhos brilhantes contradiziam as palavras educadas que fora obrigada a pronunciar. Fleur estremeceu só em lembrar. Naquela noite, todos jantariam juntos. Havia agradecido a sugestão da velha condessa para descansar um pouco, antes do jantar, apesar de saber que sua mente excitada não se acalmaria assim tão

depressa. Atravessou metros e metros de tapete até chegar à janela, virando as costas para a decoração luxuosa e desejando recuperar o equilíbrio ao olhar para a simplicidade da natureza. Mas lá fora, como dentro do castelo, os jardins eram ricos e exuberantes demais. Para onde quer que olhasse, tudo a fazia lembrar que estava longe, muito longe de casa. Duas lágrimas escorreram de seus olhos ao pensar, com saudade, num cristalino e fresco regato inglês. Ouviu quando batiam à porta e, rapidamente, passou as mãos nos olhos. - Entre. Esperava uma criada, e ficou desconcertada quando a porta se abriu e a pequena mas imponente figura da mãe de Alain entrou. - Condessa! Não pensei que fosse a senhora... - Corou como uma adolescente apanhada em flagrante. - Por favor, sente-se. A condessa sorriu e aceitou a cadeira que Fleur lhe oferecia. Usava um vestido de renda cinza com um belo broche no peito e diversos anéis, e era a própria imagem do luxo que já começava a afetar Fleur, fazendo com que ficasse cada vez mais nervosa. - Sente-se, minha criança - disse gentilmente. - Temos muito que conversar. Tenho perfeita consciência de que está sob uma tensão muito grande e achei que o momento era próprio para falarmos. Você não se incomoda, ou prefere uma outra ocasião? - Oh, não - afirmou Fleur, ansiosa, querendo mesmo conhecer melhor a sogra. - A senhora é sempre bem-vinda. - Então, para começar, gostaria de esclarecer como é que deve me chamar. Agora, a condessa de Treville é você. - Não parecia nem um pouco aborrecida por perder o título, mas demonstrou uma certa hesitação em fazer o pedido seguinte: - Se a idéia não a ofende, minha querida, eu gostaria muito que me chamasse de mamãe, como Alain... Fleur arregalou os olhos. Não pelo pedido da sogra, mas pelo modo acanhado como fora feito. Ela era tímida! Como qualquer outra sogra, a aristocrática senhora estava com receio de ser malvista. Fleur levantou-se da cadeira e se ajoelhou aos pés da condessa, lutando para conter as lágrimas. - É muita bondade sua, mamãe, me dar tamanha honra! Por um momento, a condessa pareceu desabar, mas, no instante seguinte, anos de autocontrole vieram em seu auxílio e ela respondeu, muito digna: - Estou feliz com sua vinda para cá como esposa de Alain. Já reparou, por exemplo, como seu nome é apropriado? Fleur entendeu o que ela queria dizer. - Porque o meu nome é Fleur e este é o Castelo das Flores? - respondeu, sorrindo. - É mesmo uma estranha coincidência. - E também o fato - a condessa estremeceu - de que hoje faz exatamente dois anos que aconteceu o acidente com Alain. Imagine como meu filho se sentiria no dia de hoje, se não a tivesse a seu lado, para confortá-lo. O sorriso de Fleur desapareceu. Alain era mesmo um solitário, um temperamento muito fechado. Sentiu-se arrasada em descobrir como ele lhe contara pouco sobre sua vida, excluindo-a quase completamente de seus problemas íntimos. Não tinha mais dúvida de que ele pretendia mesmo deixá-la na ignorância de todos os fatos passados, mas havia certas coisas que precisava saber, se não quisesse correr o risco de parecer insensível aos parentes de Alain. Certamente, eles imaginavam que ela soubesse de tudo. - Mamãe, como... como foi que o acidente aconteceu? A velha condessa se encolheu mas, notando no rosto da nora uma preocupação tão grande e vendo que a pergunta era importante, conseguiu se controlar e responder: - Ninguém até hoje sabe exatamente o que aconteceu. Alain estava trabalhando na destilaria, fazendo experiências com um novo perfume que desenvolvera e sobre o qual estava muito animado. - Notou que Fleur não entendia muito bem e explicou melhor: - Há séculos, nossa família se dedica à indústria de perfume, minha querida. Com certeza, você já ouviu falar dos perfumes Maison Treville, que é a nossa marca. Fleur lembrou-se do minúsculo frasco de extrato que recebera como presente de Natal de Jennifer, anos atrás. Havia racionado o perfume e o usara até a última gota, deixando o vidro

vazio guardado junto com os lenços, para aproveitar até o fim o aroma delicioso. - Claro, todo mundo conhece o Maison Treville! - É verdade, somos bem conhecidos, mas isso não é à toa. Alain é um especialista em perfumes, com anos de treinamento e uma vida inteira em contato com a indústria. Louis também, é claro, mas ele não chega aos pés de Alain, que possui algo especial, mais que o normal, em matéria de percepção de aromas. Consegue distinguir todos os ingredientes usados no perfume que analisa. Mas sua maior especialidade, na qual é um verdadeiro artista, é a habilidade de misturar várias essências e produzir um novo e excitante perfume, numa combinação tão perfeita e exata que os maiores especialistas... e temos diversos entre nossos vizinhos... sentem dificuldade em distinguir os ingredientes. Na verdade, a indústria sentiu muita falta de Alain nesses últimos dois anos... Louis, infelizmente, não tem esse toque de gênio que faz o artista. Não que ele não tente - a condessa foi rápida em defender o sobrinho da própria censura -, mas é que ainda não amadureceu o suficiente e prefere os prazeres que o mundo oferece, fora da indústria... Antigamente o meu Alain também era assim, mas... - Interrompeu-se, livrando-se de alguma memória triste, e continuou: - Você deve deixar que Louis a leve para conhecer a fábrica, Fleur. Tenho certeza de que vai ficar fascinada, e ele sabe ser uma companhia muito interessante. - Aposto que sim, mamãe, - No fundo, relutava em aceitar a companhia de Louis, temendo que Alain não gostasse, mas não conseguia encontrar uma desculpa satisfatória. - Talvez um dia... - Nada disso! - A condessa parecia resolvida. - Vocês irão amanhã mesmo, vou combinar com Louis. Com jeito, Fleur lembrou-a: - A senhora ia me contar sobre o acidente de Alain... Mas a condessa estava cansada ou o assunto era muito triste e ela apenas comentou: - Não há quase nada a acrescentar. Um dos empregados veio correndo ao castelo, para contar que havia caído ácido nos olhos de Alain, quando trabalhava no laboratório. O ácido é usado para lavar as vasilhas e todos os utensílios, de modo que não fique nada do perfume anterior quando se for lidar com um novo. Nem mesmo Celestine, que estava com ele na ocasião, pôde explicar direito o que aconteceu. Quanto a Alain, simplesmente se recusa a falar no assunto. Fleur estranhou as últimas palavras, mas, antes que pudesse perguntar mais alguma coisa, a condessa se levantou. - Mais tarde conversaremos novamente - disse, satisfeita. - Agora preciso descansar um pouquinho, antes do jantar. Virou-se para sair, mas hesitou na porta. - Fleur, minha pequena, na verdade, eu vim até aqui para lhe dizer como fiquei feliz por você ter aceitado Alain. A vida para você deve ter se tornado... difícil! Às vezes, ele é insuportável, mas nunca duvide de que fez a coisa certa. Por mais ingrato que possa parecer, não há dúvida de que você é essencial à felicidade de Alain, como ele também é para a sua. Por favor, aceite a bênção e o agradecimento de uma mãe. Fleur ficou pensando nas palavras da condessa, muito tempo depois de ela ter saído. Sem parecer desleal, havia dado a entender como estava espantada e magoada com a mudança no comportamento do filho. Fleur não achava difícil acreditar que Alain tivesse sido um rapaz aventureiro capaz de causar grandes preocupações à mãe. Ela própria não tinha achado que ele se parecia com um cavaleiro medieval? Tinha certeza de que ainda poderia ter novamente aquela aparência se conseguisse se livrar da negra depressão que o dominava. Mas, se isso acontecesse, será que ainda ia querer a companhia da esposa, uma simples filha de pastor? Ou preferiria Celestine, que combinava muito melhor com ele? Sentiu-se como sufocada por seus pensamentos e decidiu tomar uma ducha antes de descer para o jantar. Fleur e Alain dividiam uma suíte; ela, no dormitório maior, e ele, no menor, com um banheiro entre os dois. Não havia som algum vindo do quarto dele, quando chegou ao banheiro. Entrou no boxe e abriu o chuveiro, sentindo a água como

agulhas, revigorando seu corpo cansado. Fechou a torneira e começou a se esfregar com força com uma toalha felpuda. Estava tão distraída que não ouviu a porta de comunicação entre o quarto de Alain e o banheiro se abrindo. Só percebeu sua presença quando já estava perto, vestindo apenas um robe. - Quem está aí? - ele perguntou, tenso. Ela não conseguia responder, morrendo de vergonha, mesmo sabendo que ele não a via. - Responda, que diabo! Deu um passo à frente, mas bateu com a canela num banquinho, e teria caído se Fleur, instintivamente, não corresse para ampará-lo. Alain segurou-a pelo ombro e aquele toque de fogo fez com que ela percebesse avidamente que não era mais uma criança, e sim uma mulher casada. - Fleur! - Zangado, quase a empurrou para longe. - Sinto... muito, Alain - gaguejou, vermelha de vergonha, e esforçando-se para lembrar que aqueles olhos negros nada podiam ver. - Eu tentei, mas não consegui trancar a porta do seu lado... Ele ficou imóvel. Ainda a segurava e, talvez sem perceber, a apertava mais e mais. Nos olhos, sem a proteção dos óculos, uma chama começava a brilhar. Nos lábios sempre severos um leve sorriso aparecia. Lentamente, puxou-a para mais perto, até que a boca tocou de leve no cabelo úmido de Fleur. A voz, estranhamente suave, parecia muito diferente num homem que aparentemente não conhecia a ternura. - Louis me disse que você é linda. Uma linda rosa inglesa, foi a descrição que ele fez... - Fleur tremia ao toque de Alain e nem conseguiu responder. - Será que não se incomoda que eu verifique por mim mesmo? Levo uma enorme desvantagem por não poder enxergar uma esposa que, segundo Louis, fará meus amigos morrerem de inveja. Fleur não se encolheu quando Alain estendeu a mão e tocou-lhe de leve no rosto, os dedos seguindo os traços da face, a curva das sobrancelhas, a pele lisa da testa. - Olhos azuis como o amor-perfeito - murmurava Alain, repetindo o retrato que Louis lhe fizera. - Cabelos tão cheios de ouro que um pouco caiu nas pontas das pestanas pesadas. E lábios - as pontas dos dedos tocavam a boca de Fleur - como duas pétalas de gerânio rosa. Ela lutava contra sentimentos opostos, de alarme e de excitação. Sentia o sangue pulsar nas têmporas, o toque do marido deixando-a cheia de desejos estranhos, que aumentaram quando ele passou de leve as mãos por trás de seu pescoço e depois acariciou a pele lisa dos ombros. A toalha com que se cobria escapou-lhe das mãos e Fleur percebeu que Alain também quase não agüentava mais. Abraçou-a com força, procurando seus lábios num beijo faminto, brutal mesmo, que continha todas as frustrações daqueles terríveis dois anos. Fleur correspondeu de todo o coração à necessidade dele, mas, mesmo sentindo-se dominada por estranhas sensações, percebia bem no fundo que era apenas uma substitui e que o desejo dele era por alguém que pertencia ao passado. Quanto mais se entregava à tortura daquele beijo, menos incomodava com o fato de ser uma substituta. Amava Alain de todo coração, do fundo da alma, e ficava satisfeita com o pouco que podia receber dele. Exatamente quando parecia que os dois não conseguiriam resistir à paixão, ele a empurrou e, respirando com dificuldade, disse por entre os dentes: - Sinto muito, isso é terrível! Desculpe. Nunca devia ter acontecido! - Fechava e abria os punhos, tentando se controlar. - Não tenho desculpas para o meu comportamento! Não sou nenhum santo, gosto da companhia das mulheres, mas não pude tê-las por dois longos anos... Só que isso não absolve minha atitude desprezível! Fleur? - Ela ficou assustada, ao reparar como estava pálido. - Será que pode me perdoar? - Alain, não peça desculpas... - disse, tentando abraçá-lo novamente, mas ele não permitiu, segurando-lhe aos pulsos com toda a força. - Alain! - havia desespero em sua voz. - Afinal, sou sua esposa! A frieza da resposta matou qualquer esperança que pudesse ter: - Eu me casei com você por um motivo, mas não foi esse! Preciso de você a meu lado. Meu Deus, nem eu mesmo sei bem por quê! - parecia confuso e

zangado. - Estou começando a perceber que a enganei, pedindo que se casasse com um homem pela metade, mas, quando pedi, achei que estava lhe fazendo um favor. Fleur ficou gelada de repente. - Um favor? Como? Houve um silêncio pesado. Depois, procurando controlar um enorme embaraço, Alain confessou: - Devo ser completamente honesto com você, pois sempre foi honesta comigo. Por isso, não vou esconder nada. Fleur ficou tensa, percebendo que ele ia contar algo desagradável e reparando como abria e fechava as mãos, num gesto nervoso. Esforçou-se para prestar atenção ao que Alain dizia e que parecia uma estranha confissão: - Por diversas razões, uma das quais você conhece, eu precisava de uma esposa, e você parecia a escolha óbvia. Quando a pedi em casamento, tinha a impressão de que era uma solteirona. - Fleur arregalou os olhos, surpresa. - Uma solteirona de meia-idade, presa numa cidadezinha de interior, ainda muito dependente dos pais e sem esperança alguma de escapar da vida insossa que levava. - Levantou a mão, pedindo silêncio, ao perceber que ela ia falar, e continuou, sério: - Ninguém se lembrou de mencionar que você era moça, jovem e linda e que poderia ter escolhido quem quisesse. Até que Louis comentou, e aí já era tarde demais. Pensei que sua timidez fosse causada por uma educação muito rígida. Se soubesse que era por sua juventude, nunca teria agido do modo como agi. Você era para mim uma companhia extremamente agradável, que nada exigia e com quem podia ser eu mesmo, sem precisar representar um papel. Pode acreditar: quase morri de susto, e fiquei preocupadíssimo quando Louis a descreveu para mim. Pensei mesmo que ele estivesse me pregando uma peça, e foi por isso que fiz o que fiz agora há pouco. Eu precisava saber! Fleur sentia os lábios tão secos que quase não conseguia falar. Por fim, deixou espaçar um riso áspero e amargo. - Pensou mesmo que eu fosse uma solteirona de meia-idade? Que usava roupas severas e tinha tornozelos grossos? Então, por que resolveu casar comigo? Por quê? Por entre as lágrimas, viu que ele dava de ombros. - Pode me chamar de covarde, se quiser, mas tudo o que eu queria era alguém em quem pudesse me apoiar, que me protegesse da piedade atroz que iria encontrar aqui. Também precisava de olhos... olhos que vissem as coisas e as descrevessem para mim, sempre com honestidade. Era isso o que eu queria, Fleur, e ainda quero. Mas agora entendo que todo o luxo e todo o dinheiro que eu possa lhe oferecer em troca não valem nem a metade para você do que valeriam para a pessoa que eu imaginava que você fosse. - Franziu a testa, intrigado. - Simplesmente não consigo entender por que concordou com a minha proposta... Que razão você poderia ter para se amarrar para o resto da vida a um homem cego? O coração de Fleur deu um salto. Nunca poderia permitir que Alain desconfiasse de seus sonhos tolos em relação a ele. Seria melhor que achasse que era interesseira... Lutou para controlar os lábios que tremiam e que denunciariam como estava ferida. Respondeu, dura: - Talvez seu julgamento sobre mim não esteja tão errado assim. O vilarejo onde eu morava é um fim de mundo e muitas vezes pensei em sair de lá. Claro que não ia ignorar uma oferta dessas... Por isso, Alain, não se condene por suas ações. Você me comprou, é verdade, mas eu desejava ser comprada, e só o tempo dirá quem fez o melhor negócio. Vamos deixar as coisas assim, está bem? Alain ficou imóvel, tão chocado com a crueza da resposta que não encontrou o que dizer. Por um instante deu a impressão de que ia protestar, apontar as falhas flagrantes nos argumentos de Fleur; mas então seus lábios se abriram no costumeiro sorriso irônico e toda a luz desapareceu de seus olhos. Abanando a mão num adeus, virou-se e saiu, deixando-a gelada e trêmula, a chorar incontrolavelmente. CAPÍTULO VI Existe um limite de sofrimento que, uma vez alcançado, acaba trazendo um abençoado estado de insensibilidade. Depois de Fleur analisar cada palavra de Alain e se

obrigar a aceitar o fato de que representava muito pouco para ele, já que nem se preocupara em saber como ela era ou o que sentia, alcançou aquele máximo de sofrimento, e a insensibilidade resultante a ajudou a enfrentar o que, em outras circunstâncias, teria sido uma noite terrivelmente difícil. Saiu do banheiro e sentou-se na beirada da cama, esforçando-se para resolver seus problemas e decidir qual o melhor modo de agir, para não magoar mais ninguém. Uma coisa era certa: não voltaria para a Inglaterra. Não queria que os pais se preocupassem ainda mais com ela. A vontade de ir, de desabafar com eles, era tão forte que quase voltou atrás em sua decisão. Com a condessa também não podia contar. A velha senhora nunca deveria saber do grande abismo que existia entre o filho e a jovem esposa. O próprio Alain deixara isso claro, quando surgiu a questão da acomodação do casal. Pedindo desculpas, explicara que a mãe estava tão feliz com o casamento, que não queria que ela soubesse do arranjo entre os dois. Fleur concordou em fingir-se de apaixonada sempre que a condessa estivesse por perto. Agora, tinha que manter a promessa; inclusive a de permanecer no castelo, enquanto o marido Alain precisasse dela. Mas uma coisa resolveu: não ia mais aceitar calada cada vez que ele a tratasse mal, nem obedecê-lo em todos os pequenos desejos. Também ela tinha uma vida para viver, por mais desagradável que o futuro parecesse; não permitiria que Alain piorasse ainda mais as coisas. Vestiu-se para o jantar e tomou coragem para enfrentar mais aquele desafio desconhecido. Hesitou do lado de fora do quarto. Era tudo tão magnífico, tão luxuoso, tão impressionante, que até amedrontava. De olhos arregalados, observou a enorme altura do hall, todo revestido de madeira, tendo ao alto um imenso lustre de cristal. O teto era pintado com guirlandas de flores e anjinhos gorduchos, numa reprodução tão perfeita que dava vontade de pegá-los no colo. Janelas estreitas deixavam passar a luz e ao longo da parede havia estátuas em nichos. Um trabalho em metal, delicado como teia de aranha, formava os balaústres da larga escadaria de mármore que descia até o piso do hall, também em mármore branco e rosa, formando desenhos. Fleur desceu devagar admirando tudo. Lá embaixo encontrou várias portas. Como uma estivesse encostada, resolveu entrar, para fugir da sensação da insignificância que sentia naquele ambiente enorme e suntuoso. Pura ilusão. A sala era uma imensa biblioteca, com milhares de livros de capas coloridas, arrumados em prateleiras que iam do chão ao teto. Uma escada móvel permitia que a pessoa alcançasse o volume que desejava, e Fleur ia subir para ver os livros mais de perto quando escutou uma voz bem junto de si. - Ah, a bela Fleur! Que bom que resolvi descer um pouco antes! Assim podemos nos conhecer melhor. Vendo que ela se assustara, Louis deu um sorriso de desculpas. - Sinto muito. Venha, deixe-me servi-la. Quer uma bebida? Fleur não pôde resistir ao charme do novo primo, por mais que Alain o reprovasse. - Obrigada, eu gostaria muito. Louis foi até uma mesa repleta de garrafas. - Serve Pernod? - Sim, qualquer coisa está bom - disse ela, sem querer confessar que não conhecia nada sobre bebidas. O rapaz veio se aproximando, a bebida nas mãos, admirando abertamente a moça à sua frente. Fleur usava um vestido azul, feito por ela mesma e pela mãe. Sua simplicidade era uma grande novidade para quem estava acostumado com as beldades sofisticadas que havia namorado a vida inteira. Os lábios trêmulos e a expressão de receio nos olhos azuis atraíram Louis. Como estivesse cansado de orquídeas, seria interessante conhecer uma flor selvagem da Inglaterra. As plantas de estufa, por mais belas que fossem, murchavam depressa, mas a beleza de Fleur era fresca e natural. Ela tomou a bebida devagar, não apreciando muito o sabor de aniz e imaginando quando é que o resto da família ia aparecer. O olhar atrevido de Louis não a desconcertava tanto quanto ele esperava, pois Fleur estava mais preocupada com o novo

encontro com Celestine, que devia jantar com eles. Com uma percepção tão grande como a de Alain, Louis disse: - Celestine deve estar ocupada, tornando-se o mais maravilhosa possível. Ela não demora a perceber quando tem uma rival pela frente. - Tomou um gole e falou, olhando para dentro do copo. - É um desperdício, já que a pessoa a quem é dirigida toda essa atenção não pode apreciá-la... Com uma dignidade que fez com que ele a respeitasse imediatamente, Fleur encarou-o e disse, com firmeza: - Está se referindo a Alain, não é? Por que a insinuação? Se preciso saber de alguma coisa, por que não fala claro? Louis ficou desconcertado com tanta franqueza. Durante um segundo sentiu uma estranha pontada de vergonha, mas recuperou-se depressa e deu de ombros. - Todo mundo por aqui sabe que Alain e Celestine estavam noivos. Por isso, é bom que você também saiba. - Ficou pouco à vontade quando viu que ela mordia o lábio, e continuou depressa: - Não precisa se preocupar. Tudo aconteceu há dois anos. Celestine desmanchou o noivado logo depois do acidente de Alain. Na ocasião, ele estava no hospital, e todos nós achamos que ela foi muito mesquinha. Ainda acho que titia não a perdoou, mas Alain nunca comenta nada e nunca mais falou sobre Celestine. Tentamos fazer com ela fosse embora antes de vocês dois chegarem, mas ela se recusou: queria recebê-lo. Pensava que Alain ia chegar sozinho, claro, pois titia me fez prometer não contar nada a ela sobre o casamento. - Deu um sorriso maroto. - Titia é uma gatinha vingativa, e estava adorando a idéia da humilhação de Celestine quando recebesse a notícia. Fleur continuou séria. - Então, devo entender que a garota esperava fazer as pazes com Alain? - Ninguém sabe ao certo o que Celestine pretende. A verdade é que a vimos muito pouco nestes dois últimos anos. Desconfio de que soube que Alain tinha chance de ser recuperar com a última operação e então traçou seus planos. Chegou há uma semana, cheia de sugestões para facilitar a viagem de Alain, e foi ela quem deu um jeito de mandar o avião do pai ir buscar vocês, sabia? Fleur fez que sim com a cabeça e Louis continuou: - Deve ter levado um choque tão grande como o nosso, quando soubemos do fracasso da cirurgia. Imagino que quis ficar apenas por curiosidade, e a surpresa de ver você e saber do casamento deve ter feito com que resolvesse continuar aqui. O motivo, juro que não sei. A não ser que ache que Alain é propriedade dela e se ressinta de vê-lo ligado a você. Apesar de eu ter certeza de que nunca se casaria com um cego. - Franziu a testa e continuou, sério pela primeira vez: - Se eu fosse você, Fleur, tomaria muito cuidado. Celestine pode ser uma inimiga perigosa; foi sempre mimada demais e não hesitaria em praticar qualquer maldade para prejudicá-la. Fleur recuou. As palavras de Louis criavam mais um problema que, junto com a dor que já sentia, ameaçava acabar com sua resistência. Louis não a havia poupado, mas era melhor assim. Pelo menos, sabia agora o motivo da atitude de Alain. Queria ferir Celestine; ela era mesmo o alvo daquele ódio tão grande, que o fizera até se casar com Fleur para se vingar por ter sido desprezado por ela. Sentia vontade de chorar, imaginando como Alain devia ter sofrido na ocasião. Um golpe assim sempre magoa demais, mas acontecera na época em que ele mais precisava de apoio e devia ter sido monstruoso. Ficou tão pálida que Louis assustou-se e se recriminou por ter sido tão franco. Estendeu os braços e amparou Fleur, que estava quase caindo. Grata, recostou-se nele por um instante. - Ora, ora! - disse Celestine, num tom malicioso, ao entrar na biblioteca seguida por Alain. - Então, já está usando seus truques, Louis! Sempre soube que você agia depressa, principalmente quando a mulher era bonita, mas agora bateu o recorde! Você ia se sentir tocado, Alain, se pudesse ver como Louis e Fleur combinam bem! O rosto de Fleur queimava ao se afastar dos braços de Louis. Tinha os olhos voltados para o marido e ficou chocada ao ver a onda de sangue que lhe subia pelas faces. Ele ainda estava na penumbra do

hall, e apenas Fleur notou sua raiva, pois, quando entrou na biblioteca, já tinha se controlado e assumido uma expressão fria e educada. - Conte mais, Celestine - disse, despreocupado. - Eu faria um triste papel como marido, se não tivesse alguém tão vigilante como você para me ajudar. Fleur quase sentiu pena de Celestine. As palavras de Alain continham tal carga de ódio que deixavam bem claro que sabia como eram baixos seus motivos para ter agido daquele modo. O sorriso sumiu do rosto da outra, deixando uma marca vermelha de raiva, e Fleur estremeceu, sentindo um arrepio. Louis estava certo: Celestine poderia ser uma adversária extremamente perigosa. E, a julgar pelo jeito como olhara para os dois, podia ter certeza de que a guerra estava declarada! A chegada da condessa foi um alívio geral, mas, assim que entrou na biblioteca, todos notaram que o instinto lhe dissera que havia algo de errado. Como entrou silenciosamente, Alain foi o primeiro a perceber sua presença. - Ah, então a minha pequenina mãe resolveu aparecer... Agora, podemos ir jantar. As rugas na testa da velha desapareceram. Respondeu, sorrindo, à provocação do filho: - Ai, Alain, como sempre, você me repreende por chegar atrasada! Mas estou tão contente com a sua volta, que nem vou ligar. - Como é que você percebeu que ela estava chegando, Alain? - Celestine não tinha tato algum. - Eu não escutei nada... Fleur se encolheu, mas Alain não se perturbou. - Será que já se esqueceu, Celestine? Quando a condessa e Louis trocaram sorrisos, Fleur viu que era a única a não entender o que se passava. - Claro que não - disse a outra, meio enfezada. - Foi bobagem minha. Sua mãe está usando o perfume que você fabricou exclusivamente para ela. Sempre gostou desse jogo, não? Não é verdade que gostava de se gabar de perceber a entrada de sua mãe em qualquer lugar, mesmo vendado? - Inesperadamente mudou de tom, ficando mais íntima: - Mas será que se esqueceu de que prometeu criar um perfume só para mim? Vai ser aquele em que estava trabalhando, quando aconteceu o acidente, ou a fórmula se perdeu para sempre? O rosto de Alain ficou tão branco que Fleur deu um passo em direção a ele, mas Louis segurou-lhe o braço, fazendo sinal para que não interferisse. - Mais do que uma fórmula se perdeu naquele dia - ele desabafou, os punhos fechados,-indicando que tentava se controlar. - A perda da minha visão já deve ser desculpa mais do que suficiente para eu me libertar dessa promessa, se é que na verdade eu a fiz! Sem ligar à frieza dele, Celestine aproximou-se para insistir, derretendo-se toda. Fleur ficou furiosa. Era uma pena que ele não pudesse vê-la, naquele vestido colante vermelho que contrastava com o cabelo escuro, parecendo uma papoula viva. - Mas, Alain, você tem que continuar com o seu trabalho - disse Celestine. - Você não perdeu o olfato maravilhoso, e isso, junto com o conhecimento e a prática que adquiriu durante tantos anos, é a base de sua técnica. Só perdeu a visão, e posso ajudá-lo nisso. Você mesmo dizia que eu era muito útil no laboratório, e posso ajudar novamente. Alain, nós dois podemos nos unir para trazer de volta a fama para a Maison Treville! - Está querendo dizer que a nossa marca perdeu a fama? - perguntou a condessa com frieza, piscando os olhos de raiva. Celestine deu de ombros. - A Maison Treville está dormindo sobre os louros, e todos nós sabemos disso. A senhora pode não gostar de ouvir, mas a verdade é que a ausência de Alain foi prejudicial. Não existe ninguém tão capaz como ele. Nos últimos anos, não lançaram nenhum perfume especial e, por isso, os concorrentes estão tomando conta do mercado. A firma precisa do gênio e da criatividade de Alain, porque, sem ele, não pode pretender manter a reputação de ser a primeira no ramo de perfumes. Louis ficou vermelho, mas não contradisse Celestine. Fleur morreu de pena dele ao notar, por baixo da máscara de indiferença, a mágoa de um garoto que havia tentato assumir as responsabilidades de um homem, sem conseguir. Ficou contente quando Alain, agora controlado, tomou conta da

conversa. - Você parece muito bem informada, Celestine, mas prefiro não discutir negócios logo na primeira noite que passo em casa. Louis e eu estivemos sempre em contato durante todo esse tempo e graças a ele estou Perfeitamente a par de tudo. - Levantou-se e anunciou, num tom que não admitia contestação: - Quanto à sua oferta de ajuda, acho que foi muita bondade, mas espero que não fique aborrecida se eu não aceitar. Você deve ter esquecido que agora tenho uma sócia, uma sócia permanente, que irá me ajudar em todas as minhas dificuldades... Fleur, a minha esposa! Celestine deixou escapar um som abafado, como o silvo de uma cobra, e sua figura colorida pareceu encolher com o golpe certeiro de Alain. Fleur deu graças a Deus. Pelo menos dessa vez, a língua ferina não era dirigida a ela. Alain sorriu para o silêncio que ninguém parecia querer quebrar. Ele e Celestine eram os atores principais de uma peça que se desenrolava bem ali, à vista de todos, e a platéia viu as diferentes emoções que passaram pelo rosto bonito e orgulhoso da moça. Primeiro, a surpresa; logo em seguida, dúvida e raiva; por fim, com um esforço tremendo, um ar de doce concordância que não chegava aos olhos. Novamente, chegou perto de Alain e segurou-lhe a manga, dizendo, arrependida: - Você está certo em me castigar, Alain. Como sempre, estou me metendo em problemas que não são meus. Se papai estivesse aqui, confirmaria que esse é um dos meus maiores defeitos, essa mania de dar palpites em coisas que são assunto só de homens. Desculpe, meu amigo... O charme era tão intenso que Fleur teria acreditado se seus olhos não tivessem cruzado com os da moça por um instante e não vissem o relâmpago de ódio que queimava feito brasa, como os olhos de uma fera selvagem. Fleur nunca havia visto uma emoção tão primitiva e desviou depressa o olhar. Alain, no entanto, parecia ter acreditado. Sorriu e levou a mão da moça aos lábios, beijando-lhe os dedos num gesto de galanteria. - Minha bela Celestine, não me peça desculpas, quando sabe muito bem que entre nós dois existe um entendimento tão grande... - Virou-se em direção ao grupo silencioso e sorriu, um riso de garoto. - Acho melhor jantarmos. Vamos, então? Gratos por deixarem seus papéis de observadores silenciosos, Louis Fleur e a condessa foram seguindo na frente, deixando Celestine logo, atrás, ronronando de felicidade, de braço dado com seu adversário. Fleur sentiu-se aliviada com as atenções que Louis lhe dispensou durante o jantar. Celestine monopolizava Alain, chegando mesmo a ser rude, e ele, surpreendentemente, parecia satisfeito com isso. Mas a condessa não o estava, e todo o tempo se esforçou para que a conversa se generalizasse. Sem tentar disfarçar o aborrecimento, interrompeu uma história que Celestine contava, a respeito de gente que apenas ela e Alain conheciam, e avisou: - Alain, combinei com Louis de levar Fleur para conhecer a destilaria amanhã. Ela vai gostar da visita, não acha? Ele levantou a cabeça, o garfo parado na mão. - Por que Louis? Existe alguma razão para que eu mesmo não possa acompanhá-la? A voz era gelada, e a mãe se retraiu. Nunca iria confessar que achava a cegueira um impedimento óbvio; mas, como ele esperava uma resposta, ela acabou dizendo: - Meu filho, não há razão para que você não vá também, e Louis poderia deixá-lo a par das mudanças que aconteceram em sua ausência, enquanto mostra tudo para Fleur. - Constrangida, virou-se para a nora e continuou: - Antes de mais nada, devem levá-la para conhecer as plantações de flores, uma coisa tão linda que não pode ser esquecida. Também precisa conhecer os apanhadores. Alguns são gente daqui, mas a maioria é de trabalhadores temporários. Existem algumas famílias que trabalham conosco há gerações. Muitos, como Maman Rouge, já trabalhavam aqui quando cheguei, recém-casada, e seus filhos cresceram junto com Alain e Louis, quase como irmãos... A voz trêmula foi sumindo e Fleur sentiu uma onda de raiva contra Alain, por ter sido tão rude com a mãe. As mãos delicadas

tremiam ao levar o copo de vinho aos lábios. Depois, a condessa passou de leve o guardanapo por eles, para esconder o fato de que também estavam trêmulos. Esperando levar a conversa para assuntos mais agradáveis, Fleur sorriu para a sogra e disse, delicada: - A senhora deve ter sido uma noiva linda, mamãe, e acho que a devoção que os trabalhadores sentem pela família se deve em grande parte à sua generosidade e à sua atenção. - Como é bom ouvir você dizer isso, menina - respondeu a velha senhora, satisfeita. - Mas o crédito não é meu. Meu marido era um homem bom e responsável, que se preocupava com o bem-estar dos empregados. Era um aristocrata, é verdade, mas se preocupava com sua gente muito mais do que os vizinhos de classe média. Por uma fração de segundo, seus olhos se dirigiram para Celestine, e Fleur imaginou se a família Chesnaye se enquadrava naquela última classificação. A suspeita ficou mais forte ao perceber que Alain engasgava e que uma onda de sangue cobria o rosto perfeito de Celestine. Claramente envergonhada pelo efeito de seu último comentário, a condessa continuou depressa: - Fleur, querida, como já mencionei a Alain agora há pouco, você não deve hesitar se quiser mudar qualquer coisa no castelo. Eu me lembro muito bem de como fiquei animada quando meu marido me deu carta branca na questão da decoração e os planos que fiz para cada quarto onde entrava. Durante séculos, a decoração tem sido sempre a mesma. Renovada, é claro, mas mantendo sempre o mesmo tema. Cada quarto e cada sala do castelo são dedicados a uma flor, como você vai ver quando eu a levar para conhecer tudo. O seu quarto é o da rosa; o meu, todo em tons de amarelo, combina com a mimosa. Os outros têm como motivo a lavanda, a violeta, o lírio branco, o gerânio vermelho. De fato, todas as flores que crescem ao redor do castelo são representadas na decoração. O estranho é que, quando chegou a hora de pôr em prática os meus planos, não consegui mudar coisa alguma, e a decoração continuou a mesma por mais uma geração. Fleur apressou-se a garantir: - Mamãe, pode ter certeza de que, quanto a mim, tudo vai continuar como sempre. Acho uma idéia interessante e original, e nunca iria querer mudar nada. A atenção de todos se voltou para Celestine, que deu uma risada alta e ironizou: - Original? Como é que alguém pode achar original uma idéia copiada por todas as noivas durante séculos? Para mim, original é uma coisa única, que nunca foi copiada. Meu vestido, por exemplo, é original, é único, sem cópias. Não como o de Fleur - continuou, com maldade -, que é a cópia muito pobre do modelo original. O pesado silêncio que se seguiu a esse ataque gratuito fez com que Celestine percebesse que tinha ido longe demais. Fleur sentiu que ficava rubra e baixou os olhos para esconder a vergonha. Sentiu-se grata a Louis, que veio em sua defesa: - Mas, Celestine, minha querida, há uma coisa que não entendo. Como é que vocês, garotas que só usam modelos exclusivos, parece todas iguais, enquanto Fleur tem uma beleza natural tão espontânea que continuaria linda, mesmo que usasse um saco de estopa? - Seu tom mudou, ao apontar com a cabeça em direção a Alain. - Só isso já bastaria para deixar qualquer marido feliz e agradecido. Alain franziu a testa, aborrecido com o rumo da conversa, enquanto Celestine calava a boca, furiosa, sem presença de espírito suficiente para responder à altura. A condessa levantou-se e disse, séria: - Acho que está na hora de deixarmos Fleur e Alain sozinhos. Parece que esquecemos - e encarou Celestine - que este foi um dia longo e cheio para os dois e que devem estar querendo se recolher cedo. Além de tudo, é a noite de núpcias do casal. Devíamos estar gratos por permitirem nossa companhia numa ocasião tão íntima. Mas agora - adiantou-se para dar um tapinha no ombro do filho - insisto para que você leve Fleur para o quarto. A coitadinha não agüenta mais de tão cansada. Fleur estava triste ao olhar para Alain, esperando que reagisse contra a ordem da mãe. A própria condessa se surpreendia com sua audácia em se dirigir

daquele jeito ao filho, que agora parecia um estranho. Aliviada, Fleur viu que o marido sorria. Talvez para agradar à mãe, ou como uma desculpa pelas palavras ásperas que dirigira a ela, Alain resolveu obedecer à ordem. - Acho que está certa, mamãe. Foi um dia cansativo e cheio de acontecimentos. - Seus olhos se viraram à volta da sala. - Fleur, se está pronta, acho que devíamos ir para cima. Louis levantou-se. - Alain, deixe que eu ajudo! - Não, obrigado. - E a resposta já era irritada. - Fleur pode dar um jeito. Boa noite, mamãe, Louis, e obrigado, Celestine, por sua companhia esta noite. Como sei que vai ficar conosco por alguns dias, acho que nos encontraremos no café. Celestine fez beicinho. - Talvez... Como naquele instante todos estavam distraídos, levantando-se da mesa e saindo, Fleur foi a única que viu o sorriso irônico do marido. Despediram-se na porta do quarto dela, mas Alain esperou até que entrasse, antes de fechar a porta do dele. Em algumas coisas ele é tão antiquado, pensou Fleur, enquanto se despia no quarto luxuoso. Mas em outros aspectos não liga a mínima para as pessoas... É impossível descobrir o que pensa ou antecipar suas reações, por causa do humor tão instável. Resolveu deixar de lado as preocupações e foi ao banheiro tomar um chuveiro rápido. Dessa vez, não foi interrompida. Dez minutos depois, voltava para o quarto e vestia a camisola de renda negra que comprara num impulso meio doido... Era uma noite triste e abafada. Chegou à janela e puxou as cortinas para olhar para fora. Estava escuro, apenas um fiapo de lua no céu, sem nenhuma estrela para ajudar a dissipar sua melancolia. Agarrou-se à cortina, respirando profundamente o perfume pesado dos campos de flores que se estendiam na escuridão. Ficou muito tempo ali, meio acordada, meio sonhando, até ouvir um ruído que vinha do quarto de Alain: o som incessante de passos de um lado para o outro. Ficou com medo de que ele estivesse doente, mas deixou de lado essa idéia. Afinal, bastava que tocasse uma campainha e logo apareceria um empregado, se fosse necessário. Prestou atenção e notou que os passos formavam um padrão: três passos e o som de uma gaveta se fechando; cinco passos e o ru do do comutador de luz; seis passos e a porta do quarto se abria. Então, Fleur compreendeu o que estava acontecendo: ele decorava com passos a distância das coisas em seu quarto. - Oh, meu pobre querido! - sussurrou. - Ah, se eu pudesse ajudá-lo! Ficou tensa, pois os passos haviam parado em frente à porta de comunicação. As lágrimas secaram no rosto afogueado, enquanto esperava o próximo movimento. Foi um alívio ouvir uma leve batida na porta. - Entre! - disse, com o coração disparado. Fleur não havia se preocupado em acender a luz. Por isso a figura de Alain, vestido com um robe escuro, era quase invisível, ao entrar no quarto. - Não estou incomodando? - Parecia muito tenso. - Não consigo dormir... e fiquei pensando... se você não está muito cansada, será que podemos conversar um pouco? Sabendo que seria pior se deixasse que ele percebesse que sentia pena, Fleur conseguiu dizer em tom despreocupado: - Claro, entre. Eu também não consigo dormir. Bem que podemos fazer companhia um ao outro. Ao se aproximar, Fleur reparou que ele tinha o cabelo em desalinho, como se tivesse passado os dedos impacientes por ele; uma veia saltava no pescoço, demonstrando como estava nervoso. Calmamente, ela começou a falar, sobre tudo e sobre nada, deixando as palavras saírem à vontade, até deixá-lo mais tranqüilo. Então, ficou calada em pé perto dele, junto à janela, deixando que o ar calmo da noite terminasse o que havia começado. - Fleur, você é uma pessoa tão agradável, tão calma e serena... Foram essas qualidades que primeiro me atraíram a você. Provavelmente - e a voz ficou mais áspera - porque são exatamente o oposto do meu gênio infernal! - Psiu, Alain - falou, baixinho. - Se você permitisse que sua mente relaxasse, seu corpo logo relaxaria também... - Se eu isso, se eu aquilo! - caçoou, fechando os punhos. - Todo mundo à minha volta deve estar falando assim!

Hoje, magoei minha mãe com a minha língua ferina. - Levantou a mão e agarrou a cortina com tanta força que quase a rasgou. - Ninguém compreende... - resmungou por entre os dentes. - Ninguém entende a agonia de ter que sobreviver num mundo de escuridão. Ouço vozes, escuto palavras, e todo o tempo fico querendo saber qual é na verdade a intenção de quem fala, por não poder ver-lhe a expressão. Durante dois longos anos, todos mentiram para mim. Por isso, agora não consigo acreditar em mais ninguém. Quando alguém me diz "Como estou feliz em ver você", fico querendo saber se a frase vem acompanhada de um sorriso genuíno ou de uma careta desagradável. Quando como, fico imaginando: será que meus modos à mesa dão nojo aos outros? Ou posso acreditar em quem diz que sou um cego que não derruba comida na mesa? Parou um pouco e continuou, mais infeliz ainda: - Não acredito nem nas palavras da minha mãe. Mas, pelo menos, são suportáveis, pois sei que não mentiria de propósito para mim. E você, Fleur? Ela levou um susto enorme, quando ele a agarrou pelos ombros, de repente. - Posso acreditar em você? Eu imaginava que fosse uma pessoa doce e honesta, que pensava apenas nos outros, e você mesma me desiludiu, ao confirmar que era venal... que estava à venda e eu a comprei! Meu Deus! - E a sacudia com tanta força que ela teve que segurar um grito de dor. - Por alguma razão, suas mentiras me atormentam muito mais do que as dos outros. Preciso de você perto de mim, maldição, mas não vou ficar bancando o mendigo cego! Diga-me a verdade: com quem eu me casei? Com a gentil filha do reverendo ou com uma garota calculista e mercenária? Fleur tentou escapar, chocada e apavorada pela raiva que via no rosto dele, e nem prestou atenção à pergunta. O tigre que ela imaginara manso alguns instantes atrás havia voltado ao estado selvagem, com uma ferocidade que ela não entendia e nem sabia como acalmar. As mãos de Alain em seus ombros queimavam, e os olhos sem vida estavam carregados de ódio. A compaixão de Fleur foi substituída pelo pânico, quando ele a puxou para o peito e murmurou, por entre os dentes: - Então, está envergonhada demais para responder? Com um gesto rápido, Alain levantou-a do chão e a carregou em direção à cama. Fleur tentou gritar um protesto, mas as lágrimas sufocaram qualquer som em sua garganta. Não tentou lutar. Ficou ali deitada, olhando, apavorada, para o homem solitário e arrogante, cego na mente e no corpo, que era seu marido perante a lei e que a ela se unira para sempre naquela mesma manhã. Alain debruçou-se sobre ela e Fleur viu seu sorriso, o sorriso branco de uma fera esfomeada. Um segundo mais tarde, seu cabelo loiro se espalhava sobre o braço dele e seus lábios sucumbiam à força dos de Alain. Ele atirou-se sobre ela com raiva e amargura, mas aos poucos percebeu que a esposa correspondia timidamente. Foi o bastante para que se derretesse o gelo de seu coração e suas carícias se tornassem mais ternas e gentis. De repente, uma onda de perfume de rosas entrou pela janela. Fleur sempre se lembraria de rosas ao pensar no que tinha acontecido naquela noite. A noite em que pertencera pela primeira vez ao homem que amava e que era cego demais para compreender o que havia em seu coração. Mais tarde, deitada imóvel, a cabeça sobre o peito de Alain, Fleur chorava intimamente, lutando com emoções tão contraditórias como alegria e dor, um árido vazio e uma satisfação completa, amor e vergonha. Era amada ou desprezada? Alain a havia tomado como esposa ou como cortesã, a quem pagava por serviços prestados? Ele se moveu no sono, murmurou o nome dela e apertou o braço em volta dos ombros de Fleur, que se aconchegou ao corpo quente do marido. Com um sorriso de contentamento, fechou os olhos... deixando a pergunta sem resposta. CAPÍTULO VII Quando acordou, no dia seguinte, Alain já havia saído, e apenas a marca de sua cabeça no travesseiro a convencia de que não tinha sonhado. Tentou não pensar no que acontecera, mas, ao acabar

de se arrumar, uma pergunta queimava seu cérebro: como ele reagiria, quando se encontrassem? Estava sentada em frente à penteadeira, escovando os cabelos, tão distraída que não percebeu que o marido entrara no quarto. De repente, viu sua imagem refletida no espelho, junto à dela. Assustada, deixou cair a escova sobre o tampo de vidro. - Assustei você? - ele perguntou, sem um traço de desculpa na voz. Estava perfeitamente bem-arrumado, terno claro, camisa de seda e gravata combinando, o cabelo escuro ainda úmido do banho. - Você podia ter batido - Fleur conseguiu responder com calma, mas ainda tremia. Alain deu de ombros. - Por quê? Não posso vê-la. Mesmo que pudesse, que importância tem... agora? O gelo em suas palavras era insuportável, e ela se levantou, o rosto queimando, e tentou passar por ele. Mas Alain pressentiu e segurou-a pelos ombros. - Não vim para me desculpar - disse, com a boca tensa. - O que aconteceu ontem à noite não foi planejado nem desejado. Apenas, aconteceu. Pode acreditar. Em algum lugar de seu coração, Fleur sentiu morrer a esperança que acabara de nascer. Não era possível que aquelas palavras impessoais viessem do mesmo homem que horas antes sussurrava carinhos em seus ouvidos e cuja paixão, primeiro feroz e depois terna, havia feito dela uma mulher de verdade. Como Fleur não respondesse, ele a largou e continuou, no mesmo tom: - Estou vendo que não acredita, mas isso não tem importância. Vou providenciar para que você seja recompensada. Não posso perder tempo levando-a a Paris; por isso, pedirei a um dos melhores costureiros que mande uma coleção para você escolher. Também há as jóias da família, que talvez queira ver e separar algumas peças para seu uso. Vou falar com mamãe e ela lhe mostrará. Cada palavra era como uma facada no coração de Fleur, dada com precisão. Ela imaginava se era possível morrer de vergonha, se um coração tão ferido podia sangrar por dentro, até o fim, e trazer o abençoado esquecimento. Sentiu uma forte tontura e lutou contra a ânsia de vômito. Ainda bem que ele não podia ver a destruição que estava causando: o corpo esguio arqueado, a cabeça loira caída e os lábios trêmulos de dor e de desilusão. - Bem, por que não responde? Se há alguma coisa especial que esteja querendo, é só me avisar. Fleur respirou fundo e conseguiu dizer: - Eu gostaria de ficar sozinha. Por favor, vá embora. Alain levantou as sobrancelhas ao perceber a dor nas palavras, e depois as franziu, com ar perplexo. Os olhos cegos tentavam em vão descobrir a causa da atitude da esposa. - Que foi que eu disse para deixar você assim? - perguntou, seco. Depois, mais suave, quase com uma ponta de esperança acrescentou: - Será possível que eu tenha me enganado? Mais uma vez, agarrou os ombros de Fleur e a puxou com violência. Na voz havia uma urgência enorme: - Diga-me outra vez: por que casou comigo? Cinco minutos antes, ela teria confessado a verdade, pois ainda se sentia dominada por algo que podia muito bem ser amor ou, pelo menos, uma forma de estima. Mas agora, perdidas todas as ilusões, preferia morrer a deixar que ele soubesse o quanto o amava. A raiva que sentia, raiva de si mesma por ser tão tola e fraca, ajudou-a a disfarçar a emoção. Escapou das mãos dele, fingindo tão bem que chegou a ficar espantada, e disse, frívola: - E quem é que tem alguma coisa? Francamente, Alain, sua tendência a levar os prazeres tão a sério me desaponta muito. Pelo que sei, os franceses têm reputação de ser excelentes amantes, sem inibições alguma, mas você não age assim. Não se preocupe comigo, não vou deixar que nada perturbe o que promete ser um futuro glorioso! Não esperava conseguir enganá-lo, mas, para sua surpresa, conseguiu. O rosto dele endureceu, cheio de tanto desprezo e rancor que ela se encolheu contra a cama, também desprezando a si mesma. - Sinto muito ter sido um desapontamento tão grande. - Os lábios frios quase não se moviam. - Ainda bem que o erro não vai mais se repetir... - Não estou entendendo... - Fleur começou. A falsa alegria havia

desaparecido de sua voz. - Eu me arrependo da minha falta... falta de controle, mas o que acabou de dizer me absolve e não preciso me desculpar. Obviamente você não é do tipo de pessoa que aprecia o remorso... Gosta mesmo é das coisas materiais, e isso vai ter, mesmo que seja só para me aliviar do peso na consciência. - Fechou os punhos, tentando se controlar. Durante um segundo, parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas apertou os lábios e saiu, batendo a porta. Fleur sentou-se na cama, cheia de desespero, resolvida a não chorar, mas sem conseguir controlar os soluços secos que sacudiam seu corpo todo. Louis estava acabando de tomar café quando ela desceu, uma meia hora depois. Havia lavado o rosto com água fria e já não tremia mais, mas bastou o rapaz olhar para ela para descobrir que havia algo errado. Com toda a consideração, evitou tocar no assunto. Levantou-se, puxou uma cadeira para Fleur e perguntou o que queria comer. - Não quero nada, obrigada, Louis. Falou com tamanho desânimo, que ele se encheu de fúria contra Alain. Já a conhecia suficientemente bem para saber que não diria nada contra o marido, nem mesmo para o primo. Ao insistir que ela tomasse pelo menos uma xícara de café, havia resolvido procurar Alain e discutir com ele as razões da profunda infelicidade de Fleur. - Obrigada, Louis - disse ela, acabando por aceitar o café, que tomou de uma vez. - Não quer mudar de idéia e comer um pãozinho? - Não, mas quero mais café. Louis reparou que os olhos de Fleur a todo instante se dirigiam para a porta, como se ela temesse o aparecimento de Alain. Num impulso, perguntou: - Alain mandou algum recado para mim? - Quando ela sacudiu a cabeça, ele franziu a testa e continuou: - Vou para a fábrica e devia esperá-lo aqui. Mas, como não o encontro em nenhum lugar e ele nem deixou recado, não vou esperar mais. Você gostaria de ir comigo? Se tinha alguma dúvida sobre uma desavença entre o primo e a esposa, ela foi confirmada naquele instante com o ar de alívio que surgiu no rosto de Fleur. Sem terminar o café que ele havia servido, ela se levantou e gaguejou: - Eu adoraria ir! Espere um minuto só, enquanto pego a minha bolsa! - Calma! - Louis riu de tamanha impaciência. - E o seu café... - Mas ela já havia saído. Em qualquer outra ocasião, Fleur teria ficado encantada com a paisagem que percorreram a caminho da fábrica. Tudo era vasto e revigorante, bem afastado das cidades e das multidões, das lojas e dos divertimentos artificiais. Atravessaram enormes plantações de flores, um verdadeiro mar, principalmente de jasmins e rosas, cujo aroma enchia o ar. Enquanto guiava, Louis falava da fabricação de perfumes, satisfeito apenas em falar, sem esperar respostas. Uma parte da mente de Fleur retinha aquelas informações e mais tarde iria se admirar de serem necessárias setecentas flores para cada litro de perfume e cinco quilos de rosas para um de essência. Distraída, acenava para os trabalhadores que tiravam o chapéu ao verem o carro passar, para depois continuarem com a tarefa de arrancar as flores dos arbustos cheios de botões. Louis deu um sorriso amargo quando, ao mencionar o nome de Alain, Fleur inconscientemente demonstrou interesse. Teve que dominar uma súbita onda de ciúme que o assaltou. Não devia se envolver demais, não devia se deixar apaixonar pela prima. - Como eu estava dizendo - continuou -, existem apenas quinze pessoas no mundo que conseguem distinguir uma entre seis mil fragrâncias diferentes. Atualmente, doze vivem em Grasse. Alain, é claro, é uma delas. - E quanto a você, Louis? - perguntou ela, com um sorriso tão gentil que ele teve que fazer força para não chegar mais perto e dar-lhe um beijo. - Tenho certeza de que você também é bom no seu ramo, mas, por alguma razão, parece relutante em admitir. Gostaria de saber por quê... Louis riu. - Alain sempre foi melhor do que eu em tudo o que fizemos. Por isso, resolvi que era bobagem competir com ele. Foi uma coisa decidida há muitos anos: eu sempre serei o segundo em Treville - disse, com um traço de amargura na voz. - Meu

pai e o de Alain eram gêmeos. Por causa de uma diferença de apenas dez minutos, o pai dele herdou o castelo e as terras, enquanto que o meu teve que se contentar em viver à sombra do irmão. Eu ainda era muito pequeno quando meus pais morreram num acidente de avião, e minha tia, a quem sempre chamei de mamãe, me trouxe para morar no castelo. Aqui tenho vivido desde então. Mas, mesmo nos tempos de escola, eu vivia à sombra de Alain, como até hoje. Seu tom de desânimo deixou Fleur muito preocupada. Virou-se para ele, ansiosa. - Isso não é verdade, Louis, e quero que me prometa nunca mais falar assim. O jeito como disse isso e os lábios rosados tão perto dos seus foram a perdição de Louis, que, sem resistir mais, beijou-a na boca. Fleur afastou-se imediatamente, chocada demais para protestar, e ele teve que se concentrar na direção, pois o carro havia dado uma guinada. Depois de recuperar o controle do automóvel e de si mesmo, Louis se desculpou: - Sinto muito, Fleur. Sinto, mesmo! Fiz isso sem pensar. Você estava ali, tão doce, se preocupando comigo... eu não consegui resistir. Por favor, pode me perdoar? Pela primeira vez na vida, estava preocupado de verdade com a opinião de uma mulher. Fleur começava a representar para ele tudo o que sempre havia procurado em uma esposa e que pensava fosse impossível encontrar. Até ela aparecer, imaginava que seu ideal era um mito, uma ilusão. Por ironia, agora que a encontrara, ela já pertencia a outro homem, ao único homem no mundo em cuja propriedade ele não se atrevia a pôr as mãos. Mas o que mais doía era perceber que o primo, cínico e cheio de ódio pelo mundo, tratava a esposa com a mesma falta de consideração com que tratava o resto da família. O olhar de tristeza de Louis convenceu Fleur de que estava mesmo arrependido do que ela imaginava fosse apenas uma brincadeira inconseqüente. - Tudo bem, perdôo você, mas não faça mais isso! Só quando viu que ele não conseguia controlar um sorriso maroto é que notou como devia ter soado puritana, como uma velha professora repreendendo um aluno levado. Começou a rir também, e o gelo se quebrou. Louis ria tanto, que teve que encostar o carro ao lado da estrada. Durante alguns minutos, os dois deram boas gargalhadas. Louis foi o primeiro a se controlar. Enxugando os olhos cheios de lágrimas, conseguiu dizer: - Obrigado, minha bela Fleur, gostei disso! Um dia sem uma boa risada é um dia perdido! - Eu também precisava disso, Louis. Me fez um bem enorme... - Então, fico contente por ter ajudado. Vou me lembrar de beijá-la mais vezes. Principalmente, quando estiver deprimida. Ela sorriu, sabendo que ele estava brincando, e sentou-se mais à vontade, para aproveitar o resto do passeio. Ainda estavam de bom humor, quando chegaram a Grasse. Louis foi descendo a avenida Jeu de Ballon, uma alameda ladeada de árvores frondosas, e chegou a uma esplanada, de onde se avistavam os arredores de Cannes e os campos de flores. Era uma paisagem maravilhosa. O rapaz parou o carro e estendeu o braço, num gesto que abrangia tudo aquilo, perguntando como um garoto que guardou a melhor surpresa para o final: - Bem, o que acha da vista? - É impressionante... magnífica... Oh, não consigo achar adjetivos suficientes! - Escute, Fleur, não preciso ir já para a fábrica. Gostaria de mostrar a parte velha da cidade a você, sei que vai adorar. Depois, podemos almoçar num hotel que conheço e que faz a melhor bouillabaisse da região. O que acha? Louis não precisou insistir. O sol estava quente, o céu, de um azul límpido, e o rapaz era uma companhia muito agradável. Além disso, sempre havia o risco de encontrar Alain na fábrica... Fleur aceitou, alegre, e ele, tomando-lhe a mão, beijou a ponta dos dedos. Por um instante, sentiu-se apreensiva: percebera um vislumbre de paixão nos olhos dele. Mas foi só um vislumbre, pois, no momento seguinte, havia apenas a expressão feliz de um garoto satisfeito. Deixou que a ajudasse a descer do carro e foram indo de mãos dadas até o fim da esplanada, descendo então uma larga escadaria que dava na rua principal

da cidade velha. Louis provou ser um ótimo guia. Falava com conhecimento sobre todos os assuntos, apontando as casas do século XVIII, com suas colunas de forma irregular; o monumento na praça central, que, segundo contou a Fleur, havia sido esculpido por Bourgeois; depois, explorou junto com ela uma antiga catedral gótica. Mais tarde, levou-a por um labirinto de ruas estreitas, com degraus que chegavam às portas das casas, e em cada um deles uma jardineira florida, dando as ruas uma aparência colorida. Do lado de fora de algumas casas, velhas senhoras de vestido preto, imaculados aventais brancos e toucas que as protegiam do sol, sentavam-se, conversando ou tomando conta das crianças pequenas que brincavam a seus pés. Fleur estava fascinada por tudo o que via, e teria ficado horas e horas explorando as pequenas lojas que vendiam de tudo, desde potes e panelas até jóias antigas e pinturas. Ficou espantada, quando Louis lembrou: - Temos que voltar agora, se ainda quisermos almoçar antes de ir até a fábrica. Mas prometo trazer você aqui novamente, quando tivermos mais tempo. Aí, poderá demorar o quanto quiser. - Nossa Senhora! Tem certeza de que temos tempo de almoçar? Não é melhor irmos já para a fábrica? Podem estar precisando de você lá. Mas Louis não ia permitir que ela ficasse sem conhecer seu prato predileto. Por isso, não discutiram mais e foram direto para o restaurante. A bouillabaisse, uma espécie de sopa de peixe, estava excelente e Fleur ficou tão satisfeita que nem pediu outro prato. Para agradar Louis, aceitou um pequeno cálice de Pastis, mas não gostou do paladar da bebida e deixou quase tudo. Depois de mais uma hora e meia, o rapaz não dava mostras de querer ir embora, e ela já não se sentia tão à vontade. Sugeriu, educadamente, que gostaria de voltar, mas a garrafa de vinho que ele pedira ainda estava pela metade. Desanimada, Fleur percebeu que Louis não tinha a menor intenção de ir embora, até beber tudo. A tarde já ia longe quando, finalmente, ela o convenceu a sair. Ficou apreensiva ao ver que ele cambaleava um pouco a caminho do carro, mas preferiu não fazer comentários, consciente do mau humor que fora tomando conta dele, à medida em que a garrafa se esvaziava. Chegar à fábrica foi um verdadeiro milagre. Louis fez todo tipo de barberagem pelo caminho, e Fleur estava apavorada quando ele freou o carro, violentamente, em frente a um edifício de tijolos vermelhos com um letreiro dourado: "Maison Tréville". Em sua ânsia de sair do carro, Fleur não reparou que outro automóvel parara bem atrás. Virou-se, assustada, ao escutar a voz de Celestine: - Então, é aí que vocês estão? Procurei por Grasse inteira para encontrá-los! - Passou a ponta da língua pelos lábios e sorriu com tanto veneno que Fleur se encolheu. - Alain - continuou, obviamente se divertindo muito - está furioso com você, Fleur! Deixaram Louis, repentinamente sóbrio, ir sozinho para a fábrica e Fleur seguiu Celestine por uma escada de pedra que ia dar nos laboratórios onde, segundo a outra lhe informou, estivera trabalhando com Alain desde cedo. A morena ainda disse, visivelmente satisfeita: - Eu trouxe Alain do castelo, quando nos informaram que Louis e você haviam saído. Claro que esperávamos encontrar os dois aqui. Alain tinha resolvido continuar o trabalho no projeto interrompido, mas, naturalmente, precisava de alguém junto, para ajudar a pesar e medir os ingredientes. Como você não estava, eu me ofereci. Afinal, foi um arranjo muito melhor, porque ele me treinou, anos atrás, e você, minha querida, mais atrapalharia do que ajudaria, essa é a verdade. Fleur não respondeu. A outra continuou, complacente: - Existe uma outra razão para eu querer ajudá-lo agora. É que a criação na qual está trabalhando é uma obra de arte. Estava quase terminada, quando aconteceu o acidente. Faltavam apenas alguns toques finais para Alain se dar por satisfeito. Então - e Celestine deu um suspiro de satisfação -, criado especialmente para mim pela Maison Tréville! Haviam chegado ao lado da escadaria. Antes de

abrir a porta do laboratório, Celestine parou, resolvida a explicar a Fleur sua importância na vida de Alain. - Querida, você vai encontrar Alain aborrecido. Depois do almoço, ele começou a demonstrar sinais de preocupação por sua ausência prolongada... e a de Louis também... - disse com suavidade falsa. - Não deve ligar para o ciúme dele, porque houve outra ocasião em que pensou que estivesse sendo traído e nunca mais confiou completamente em ninguém. - Traído por alguém a quem ele amava? Será que esse alguém era você, Celestine? - Então, você sabe? - A moça parecia mesmo surpresa. - Foi Louis quem contou? Quando ela fez que sim, a expressão de Celestine mudou, aparentando um ar tão triste e vulnerável que enganou Fleur completamente. Os belos lábios vermelhos tremiam de dor, quando ela sussurrou: - Dói demais, só de lembrar. Alain e eu íamos nos casar dentro de um mês. Na véspera do acidente, alguém contou a ele, alguém que ainda não descobri quem é, que eu tinha... um amante. Parou, como se pronunciar aquela palavra lhe custasse um grande esforço, mas continuou, corajosamente: - Claro que era mentira. Desde que ficamos noivos, nunca mais olhei para homem nenhum, mas o mal estava feito. Alain se recusou a acreditar em mim e desmanchou o noivado. - Fleur arregalou os olhos e Celestine acrescentou, depressa, com medo de ser interrompida: - Oh, a coisa foi feita de modo que parecesse o contrário, que eu dera o fora nele. Mas, na verdade, foi Alain o responsável pelo rompimento. Recusou-se inclusive a discutir o caso com qualquer pessoa, até mesmo com a mãe, e nada do que eu disse fez a menor diferença. Por isso, agora você entende - e seus olhos percorreram o rosto de Fleur, querendo ler-lhe os pensamentos - por que tem que tomar muito cuidado com o que fala para ele e com o que faz. É muito consciente de sua posição social e muito, muito ciumento com tudo o que lhe pertence. Fleur estava chocada, sem conseguir entender como é que Alain podia ser tão intolerante, a ponto de acreditar na palavra de um estranho, em vez de ter confiança na noiva. Celestine parecia tão sincera que era difícil não acreditar no que dizia. Como é que Alain, que devia estar muito apaixonado, podia ter se recusado a escutar as explicações? Por que ficara tão amargurado, tão cheio de suspeitas em relação às outras pessoas? Do passado, escutou a voz do pai, quando dizia: "O sujeito se tornou um autômato. Acho que ele foi ferido tantas vezes, e não só fisicamente, que resolveu nunca mais sentir nada!" Levou a mão à boca para abafar um suspiro de dor. Dor por Alain, que sofrera tanto com a suposta traição da noiva e ficara com cicatrizes no coração pelo resto da vida. Havia suspeitado de que existia outra razão, além da que ele mencionara, para se casar com ela, e suas suspeitas estavam certas. Ele queria revidar, agredir Celestíne, mostrar a ela como pouco se incomodava. Deliberadamente, tinha procurado uma esposa, qualquer esposa, para poder enfrentar Celestíne com algo que lhe tapasse a boca; alguém que o resguardasse da atração que ainda devia sentir por ela; alguém dependente, que preenchesse o vazio que a noiva deixara em sua vida. Fleur quase perdeu o fôlego ao descobrir tudo isso. E ela havia decepcionado! Naquela mesma manhã, ele tinha precisado da ajuda dela e teve que recorrer justamente a Celestíne! - Onde está Alain? Preciso falar com ele! Parecia tão agitada, que Celestíne afastou-se, automaticamente, para que ela entrasse. - Por favor - implorou Fleur, vendo que a outra ia segui-la. - Preciso falar com ele sozinha. Celestíne apertou os olhos, mas o ar de desafio de Fleur avisou que não adiantava discutir. Por isso, deu de ombros e começou a descer a escada. - Muito bem. Se Alain precisar de mim, diga que estou com Louis - avisou, como querendo deixar claro que era indispensável e ele sentiria falta dela. Mas Fleur já desaparecera no laboratório, à procura do marido. Encontrou-o conversando, animado, com um rapaz de avental branco que pesava cuidadosamente um pouco de líquido de uma garrafa

marrom. Fileiras e fileiras das mesmas garrafas, cada uma marcada com uma fórmula química, estavam arrumadas à volta da bancada, de modo a serem alcançadas facilmente, e Fleur lembrou-se de que Louis descrevera aquilo como uma espécie de arquivo de odores, de onde o perfumista selecionava, pesava e media os ingredientes que planejava usar em suas experiências. Tubos de ensaio, frascos, pipetas, bicos dê Bunsen estavam espalhados sobre a bancada, que era coberta por um vidro opaco e ficava diante de uma parede azulejada até o teto. Era a primeira visita que Fleur fazia a um laboratório daqueles. Ficou desapontada, ao pensar que perfumes tão famosos eram criados num ambiente tão clínico e impessoal. O rapaz falou com Alain e apontou na direção dela, avisando-o de sua presença. Alain ficou imóvel, respondeu ao ajudante sem se virar e este olhou para Fleur com um ar de quem se desculpa. Depois, tirou o avental branco e saiu por outra porta, deixando os dois sozinhos. Com a ansiedade tímida de uma criança que sabe que errou e quer ser perdoada, Fleur gaguejou: - Sinto muito por ter chegado tão tarde. Eu devia avisá-lo de que ia sair com Louis hoje de manhã. Então, você podia me dizer que precisava da minha ajuda, mas eu simplesmente não... Alain virou a cabeça orgulhosa num ângulo arrogante, as narinas trêmulas, demonstrando irritação, e acusou-a frontalmente: - Você não pensou, ou pensou demais? Conheço muito bem a atração que meu primo sente pelas mulheres. Ele é, como sem dúvida já descobriu, o protótipo do francês desinibido do qual você tanto gosta. Infelizmente para você, ele não tem uma qualidade importante: dinheiro! A mesada de Louis não é das mais generosas, e, se está pensando em gastá-la, pode ter certeza de que perderá seu tempo! Aquelas palavras foram como uma bofetada no rosto de Fleur, que se encolheu toda. Engolindo os protestos, pois sabia que ele não ia acreditar, ficou imóvel, olhando os lábios de Alain se torcerem na careta de ódio que já conhecia tão bem. Percebeu então a inutilidade de tentar convencê-lo de sua lealdade, de fazer com que acreditasse que estava arrependida por ter preferido a companhia de Louis à dele. O desespero quase fez com que falasse, mas novamente as palavras dele cortaram qualquer esperança. Virando com impaciência em direção à bancada, Alain estendeu a mão para alcançar um objeto e, por não encontrar imediatamente o que procurava, soltou um palavrão e gritou por sobre o ombro: - Quero Celestíne! Vá procurá-la, por favor, e depois peça para alguém levar você para casa. Não Louis - ordenou, seco -, pois preciso dele aqui! Temos muito trabalho a fazer, para recuperar o tempo perdido, e não quero que você o distraia do trabalho! Fleur lutou para manter alguma dignidade na voz, mas não conseguiu evitar um leve tremor. - Muito bem, vou fazer o que pede. Mas não precisa me avisar para não atrapalhar ninguém. Não pretendia tirar Louis do serviço e, muito menos, atrapalhar você. Até logo, Alain - disse, tentando controlar as lágrimas quentes que teimavam em cair. - Antes de sair, avisarei Celestine de que você precisa dela. Durante dias, Fleur evitou Alain, só descendo para tomar café depois de ouvir a partida do carro que o levava para a fábrica, junto com Louis e Celestine. Passava as manhãs nos campos de flores, à vontade na companhia dos apanhadores tão amigos. Como Alain, Louis e Celestine só voltavam para o castelo perto da hora do jantar, Fleur almoçava com a condessa todos os dias e depois se sentava com ela no jardim durante uma hora para conversarem, antes que a velha senhora se retirasse para o quarto para descansar. As duas estavam se tornando grandes amigas, a condessa tudo fazendo para aliviar a dor que Fleur sentia. Ela retribuía as atenções, tanto pela condessa ser mesmo muito agradável, quanto para diminuir a sensação de solidão que a dominava, cada vez que se lembrava dos pais e da enorme quantidade de amor que ambos distribuíam a todos que conviviam com eles. Foi durante uma conversa depois do almoço que a condessa deu a

entender que achava que as coisas não iam bem entre Fleur e o filho. Estavam sentadas no jardim, junto de uma fonte, conversando sobre banalidades, quando a sogra inclinou-se para a frente e encarou Fleur. - Criança, você não está feliz. Eu esperava que seu gênio alegre contagiasse Alain, mas é o contrário que está acontecendo: o desencanto dele está entristecendo você. Não negue, minha querida - disse, quando Fleur tentou protestar. - Você tenta mostrar que está tudo bem, mas, quando se distrai, seu doce rostinho mostra uma preocupação muito maior do que é normal numa noiva de duas semanas. Meu filho é um marido difícil, não é mesmo? - Fleur ficou pálida e a condessa continuou, depressa: - Perdoe-me por magoá-la, querida. Eu não devia estar me metendo. Isso é imperdoável! - Está tudo bem, mamãe. - Fleur conseguiu dar um sorriso. - Sei que se preocupa com Alain e como deseja que ele seja feliz, mas acho que ele nunca vai encontrar essa felicidade. Pelo menos, não comigo. - Se não for com você, então não será com mais ninguém! - respondeu a velha, com tamanha convicção, que Fleur até estranhou. Depois, a sogra suspirou. - Eu bem que gostaria de chamar a atenção de Alain. Ele não deve negligenciar você desse modo. Mas hoje não é mais o filho que eu conhecia: bom, gentil, com quem eu sempre podia conversar. A alma dele está cheia de fel, e, apesar de detestar ter que admitir, acho que o filho que eu amava tanto está perdido para sempre! - Não, mamãe! Nunca pense isso! - A própria Fleur se surpreendeu com sua ênfase. - Ele voltaria a ser o mesmo, se pudesse enxergar novamente. Se conseguíssemos convencê-lo a tentar apenas mais uma operação... O rosto da condessa se iluminou. - Então, temos que tentar, minha querida! Tem que haver algum meio de convencê-lo, e vamos descobrir qual é. Estendeu a mão delicada e apertou a de Fleur, transmitindo-lhe uma onda de esperança. Controlando seu entusiasmo, Fleur tentou ordenar seus pensamentos. Alain não era onipotente, devia haver alguma falha em sua armadura, e cabia a Fleur descobrir, custasse o que custasse. Poderia destruí-la, pois o amor que sentia por ele dava-lhe esse poder, mas, se nessa destruição Alain encontrasse a felicidade, o sacrifício não seria em vão. A voz da condessa chegou até ela como se viesse de muito longe. - Como seria maravilhoso se meu filho voltasse para mim. Antigamente, Alain me lembrava muito meu falecido marido. Eram tão parecidos, que era como se uma parte dele nunca tivesse me deixado. Foi por isso que me senti duplamente roubada com o acidente de Alain; não apenas por sua visão, mas também por seu gênio alegre e amoroso. Meu marido - e a velha senhora se perdia nas memórias do passado - era um homem instável. Seu amor às vezes era terno e cheio de consideração, mas, em questão de segundos, podia se transformar em raiva violenta, se acontecesse algo. - Sorriu, nostálgica. - Depois, ele ficava arrependido, envergonhado por sua falta de controle, e sua desculpa era sempre a mesma: "Considere isso não como uma ofensa, mas como um cumprimento a você, porque, se não a amasse como amo, não sentiria tanto ciúme". Que mulher poderia resistir a tal argumento? Ele era tão vibrante, tão vivo, que não conseguia reprimir seu instinto natural... Não como Alain, em quem a raiva e o ódio parecem cada vez mais fortes... Por um momento, as duas caíram numa profunda depressão e houve pesado silêncio, quebrado de repente quando a condessa deu um suspiro. Fleur olhou para ela, espantada, e viu que sorria. Um sorriso maroto, que se refletia nos olhos. - Descobri! - Estalou os dedos com a vivacidade de uma moça. Depois, reparando no ar admirado de Fleur, riu, animada. - Você deve fazer Alain ter ciúme! - Ciúme? - gaguejou a outra, sem entender nada. - Mas como... por quê? A condessa respondeu com firmeza: - Porque, assim, vai provar a você e a ele mesmo que não é o frio robô que tenta ser! O ciúme - insistiu, triunfante - é gêmeo do amor. Se um aparece, logo aparece o outro também. Fleur ficou desanimada. A

condessa fazia com que tudo parecesse tão fácil, quando a situação era na verdade muito mais complicada do que imaginava. Para ela, o caso não passava de dar um susto em Alain para que saísse da depressão em que caíra depois do acidente. Não tinha a menor idéia de que não havia amor, nem ao menos atração, naquele estranho casamento com Fleur, e ela sabia que nunca quebraria a promessa feita a Alain de nunca revelar à mãe as razões reais da união dos dois. Com calma, tentou dissuadir a condessa: - Acho que seu plano não vai dar certo, mamãe. Alain nunca teria ciúme de mim. Primeiro, porque o vejo muito pouco agora; depois porque, mesmo que tentasse, ele sabe que passo a maior parte do tempo com a senhora e com o pessoal da plantação... - É verdade - disse a velha senhora, pensativa. - Acho que devemos contar o plano para Louis. Sei que uma situação dessas vai deixá-lo interessado: ele sempre gostou de pregar uma peça. Isso, vamos ver o que ele nos aconselha. Fleur sentia que a situação estava ficando fora de seu controle e que devia dar um basta, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, a condessa continuou: - E também temos que começar a receber! - Levantou-se da cadeira e ficou andando de um lado para o outro, cheia de entusiasmo. - Todos os nossos vizinhos e amigos estão ansiosos para dar as boas-vindas a Alain e loucos para conhecê-la, minha querida. Eu os despistei, dizendo que vocês ainda estavam em lua-de-mel, mas a notícia de que Alain voltou a trabalhar na destilaria já deve ter se espalhado. Quando eu falar com ele, não vai poder se recusar a colaborar com a minha idéia de um jantar. Parou de repente, a pequena figura cheia de vibração, e perguntou para a nora: - Quer arriscar? Fleur não teve coragem de negar. Lutando para acalmar a animação que começava a sentir, encarou a condessa sem dizer nada. Então, quando a sogra bateu com o sapato de leve no chão, num sinal claro de impaciência, Fleur respondeu: - Está bem, se acha que pode dar certo... vou tentar! - Ótimo. Alain não pode deixar de gostar de você, claro. Quando terminarmos a nossa campanha contra a terrível autopiedade que ele sente, estará com tanta vontade de ver novamente que concordará em fazer outra operação. - Oh, como desejo que tenha razão, mamãe. Tenho tanta esperança... - disse Fleur, engasgada. A condessa estendeu as mãos e segurou o rosto de Fleur. Reparando nas lágrimas que brilhavam nos olhos azuis, falou baixinho: - Sem lágrimas, minha pequena! Só as desculparei, se forem lágrimas de alegria. Venha, enxugue esses olhos que eu tenho algo para lhe mostrar... - Fez com que Fleur se levantasse e foram as duas em direção ao castelo. - Alain deixou instruções hoje cedo para eu mostrar as jóias da família para você, para que escolhesse as que mais gostasse. Eu havia me esquecido, mas agora me lembrei e acho que esse desejo dele pode ser encarado como um bom sinal, não acha? Não, não é isso!, Fleur queria gritar, enquanto seguia a sogra pelo corredor até a biblioteca. Sem saber, a condessa havia enfiado uma espada em seu coração. Como ficaria desesperada, se soubesse que tinha sido encarregada pelo filho de pagar a primeira prestação do que ele achava que devia à esposa... CAPÍTULO VIII E lá estavam as pérolas, brancas e perfeitas num colar de três voltas que chegariam à cintura de Fleur; um conjunto de tiara, colar, brincos e bracelete de pérolas e brilhantes tão magnífico que provavelmente deveria ser usado só em cerimônias reais. E uma quantidade enorme de rubis, esmeraldas e safiras montados em ouro, sob a forma de anéis, braceletes e broches. A condessa tirara tudo isso de um cofre escondido na biblioteca. À medida em que ia abrindo as caixas para que Fleur pudesse ver, ela se afastava, com uma sensação que podia ser até repugnância. Havia odiado todas aquelas coisas maravilhosas que, em circunstância diferente, a teriam encantado pela beleza e pela perfeição do desenho. Mas, do jeito que estavam as coisas, cada pérola era uma lágrima, cada diamante representava a dureza do olhar de Alain.

Com carinho, a condessa mostrava cada peça, às vezes se demorando mais em alguma que tinha uma história mais interessante. - Bem? - perguntou, virando a cabeça de lado. - Qual a jóia de que mais gosta, querida? - Mamãe, são todas maravilhosas, mas luxuosas demais para mim. Morreria de medo de perdê-las... - Bobagem! Como condessa de Treville, você logo se acostumará a usar jóias finas. Nossos vizinhos têm uma vida social intensa e você terá que retribuir os convites. As mulheres gostam dessas ocasiões porque podem se arrumar melhor e porque seus maridos largam um pouco o trabalho. Por isso, vai ver que vão aparecer muitas oportunidades para usar as jóias. Venha, vou ajudá-la a escolher as que melhor combinarem com sua pele delicada. Mas nem mesmo para agradar a condessa Fleur conseguia fingir entusiasmo, e a sogra logo percebeu a falta de interesse. Depois de defender cada peça e reparar que ela não se animava, a velha senhora, perplexa, começou a guardá-las em seus estojos, com desapontamento. Vendo que a sogra estava magoada, Fleur tentou consertar as coisas. No fundo de uma das caixas de jóia, parecendo tão deslocada entre tão magníficas companheiras, quanto ela naquele ambiente luxuoso, havia uma fina corrente de ouro com um pequeno medalhão de esmalte azul. Fleur pegou, dizendo, com fingido entusiasmo: - Eu... eu gostei demais desta aqui... - Essa? Mas quase não tem valor nenhum! Louis comprou para mim, um presente de aniversário, quando ainda era criança, e acho... tenho quase certeza de que ficou escondida aqui desde aquela época. - Segurou a corrente entre os dedos, o medalhão azul brilhando ao sol. - Então, é claro que tem que ficar com ele - disse Fleur, sem jeito, desejando não ter reparado na jóia. - De jeito nenhum! - A condessa sorriu. - Estou contente que tenha encontrado uma coisa de seu gosto, minha querida. E veja... - Apontou para uma inscrição no medalhão. - Unis, mais toujors separes. - Quando Fleur levantou as sobrancelhas, sem entender, a condessa traduziu: - "Unidos, mas sempre separados". O coração de Fleur deu um salto. Que destino teria feito com que escolhesse a única peça que se aplicava exatamente ao seu casamento com Alain? O vestido creme, de decote fundor que usava naquela noite pedia um enfeite para amenizar seu corte severo, e a corrente com o medalhão combinava maravilhosamente bem, aninhando-se contra a pele macia de seu colo, subindo e descendo a cada respiração, a triste mensagem escondida, mas queimando junto a seu coração: "Unidos, mas sempre separados". Ela e Alain haviam se tornado um só, o coração dele batendo contra o seu com uma violência que até agora a fazia estremecer de desejo. Durante algumas horas, havia sido dele e recebera sua inteira e completa atenção. Se pelo resto da vida tivesse apenas aquela noite para recordar, nunca se arrependeria, pois, por mais separados que ficassem, ela teria na lembrança aqueles instantes de completa união. Fechou os olhos à visão de sua própria agonia e continuou sentada um longo tempo, tentando controlar as lágrimas que teimavam em cair. Alain entrou no quarto sem fazer ruído, e Fleur assustou-se quando ele falou junto dela: - Estive conversando com mamãe e ela me disse que você não gostou de nenhuma jóia... Fleur virou-se para ele, levando a mão no medalhão, como se fosse um amuleto que a protegesse contra a raiva do marido. A garganta doía, e ela fez força para responder: - Pelo contrário, são maravilhosas demais e luxuosas demais para uma garota do campo como eu. Não me sentiria à vontade com elas. Você tem que lembrar que não estou habituada com tanta opulência e que preciso de tempo para me acostumar... Esperava que ele respondesse com sarcasmo, mas, quando falou, a voz estava cheia de ternura: - Pobre garotinha... não gosta muito de viver com tanto luxo, não é mesmo? Estranhando aquela gentileza tão pouco comum, Fleur ficou apavorada quando ele se aproximou para tocá-la. Afastou-se com tanto medo, que derrubou o banquinho contra a

penteadeira, fazendo com que frascos e potes voassem. Como uma navalha, um caco cortou a mão de Alain. Morta de remorso, Fleur quis tocá-lo, comunicar-se com ele sem palavras, mas, ao se aproximar, o rosto do marido já estava cheio de ódio novamente, os lábios apertados. - Não precisa fugir de mim! - gritou, os olhos escuros brilhando. - Vim, a pedido de minha mãe, porque ela está achando que não ando dando atenção suficiente a você. Naturalmente, não sabe que você prefere ficar longe de mim, e eu não gostaria que ela ficasse sabendo. - Ignorando a tentativa de Fleur de explicar, continuou: - Ela me obrigou a concordar com uma coisa que não gosto, mas, como prometi, vou cumprir. Vamos dar um jantar, um jantar formal, para que nossos amigos e vizinhos possam conhecer a nova condessa de Treville. Minha mãe vai ajudá-la, tem muita experiência no assunto, e você pode aprender muito com ela. Vou estar muito ocupado nos próximos quinze dias, mas acho que você e mamãe darão conta do recado. Isso vai servir para aliviar a pressão que ela anda fazendo sobre mim em relação ao meu descaso, e também será uma oportunidade para você se acostumar com sua nova posição. Aí, então - e a voz soava mais sarcástica -, todo mundo ficará feliz. Fleur pensava, ao olhar o rosto amargurado do marido, que nunca tinha visto alguém menos feliz. Nem mesmo a companhia constante de Celestine, com a volta da antiga amizade, era suficiente para destruir os demônios da alma de Alain. - Vamos descer juntos - afirmou, seco, estendendo o braço na direção dela. Fleur tocou o braço de Alain, tão de leve que achou que ele nem sentiria, mas imediatamente sentiu os músculos ficarem tensos sob seus dedos, como se eles se controlassem para evitar qualquer sensação de maior intimidade. Durante o jantar, Fleur percebeu que a condessa não perdera tempo em contar seus planos para Louis, porque, assim que todos se sentaram, o rapaz começou a flertar abertamente com ela, com tanto desembaraço que dava para ver que não era apenas uma representação. Louis encarou-a com olhos penetrantes e, dobrando o corpo para a frente, sussurrou: - Você nem imagina como fiquei feliz ao saber que havia escolhido exatamente a minha pequena contribuição para as jóias da família Treville, querida. Gostou da corrente por ela mesma ou por que fui eu que comprei? Fleur ficou tão surpresa que não conseguiu responder imediatamente. A velha condessa aproveitou a chance e acrescentou: - Fleur se apaixonou pela correntezinha assim que a viu, Louis. Não ligou para nenhuma outra, preferindo essa que você comprou para mim há tantos anos. Não se incomoda de eu ter dado a Fleur, não é? - Me incomodar? Estou satisfeitíssimo, mamãe! Fleur deu vida à jóia. Como invejo o lugar onde esse medalhão repousa... Aquela conversa deixou Fleur morta de vergonha. Tentou não olhar para Alain e, quando o fez, arrependeu-se. Aparentemente, ele nem prestava atenção à conversa, mas a mão que segurava o garfo estava branca e a outra se abria e fechava, mostrando a força que fazia para controlar-se. Celestine, sempre vigilante, resolveu virar o assunto a seu favor. Com os olhos no rosto vermelho de Fleur, ironizou: - Pobre Fleur, não deve deixar que Louis a embarace. Ele é terrível, especialista em conquistas, mas não deve ser levado a sério, principalmente por uma garota reservada como você. Apesar de eu ter que concordar que suas palavras tiveram efeito... o rosto corado e os olhos brilhantes de Fleur são muito reveladores, você não acha, Louis? Sem saber, Celestine ajudava o plano da condessa, que ficou satisfeitíssima. - É verdade - disse a velha. - Você parece que tem o dom de animá-la, Louis. Fleur parece sempre tão alegre em sua companhia... - E eu na dela - respondeu o rapaz, piscando para Fleur. - Sempre gostei muito da companhia de mulheres bonitas, e minha nova prima é a mais linda de todas. - Com crueldade, provocou Alain: - Como deve ser desesperador, meu caro primo, ter uma esposa cuja beleza é admirada por todos os homens e

não poder vê-la. Se eu estivesse em seu lugar, não descansaria até que pudesse ver o que é meu! - Louis! O tom de reprovação era o aviso da condessa de que havia ido longe demais, mas Louis deu de ombros, sem se incomodar, e ignorou a tia. - Como é, Alain? Você também sente como eu, ou é imune às frustrações dos homens comuns? Alain dobrou o guardanapo lentamente, fazendo com que todos percebessem que estava no seu limite de paciência. Fleur o encarava, assustada, vendo os lábios se abrirem para pronunciar palavras nascidas de um ódio tão grande que ele quase não conseguia controlar a voz. - Se você fosse eu, Louis? Mas isso não é novidade não é? É uma coisa que você desejou a vida toda! Se você fosse eu, estaria no controle do negócio e teria todo o dinheiro que quisesse para desperdiçar! Ainda, se você fosse eu, teria vendido o castelo e viajaria pelo mundo todo à procura de prazeres! Como todos nós temos sorte por você não ser eu - concluiu, como se cuspisse as palavras -, porque nunca vai pôr as mãos nos negócios, no castelo e nem na minha esposa! Fleur levantou-se de um salto, apavorada e enojada pela briga entre os dois primos. - Não, Alain, não deve dizer essas coisas! Você não entendeu... Louis está apenas tentando ajudar... - A ele mesmo! - E Alain virou-se para ela, furioso, como se a desafiasse a contradizê-lo. Louis podia ser um fraco, mas não era o vilão que Alain descrevia, e não seria justo deixar de defendê-lo. Fleur preparou-se para enfrentar o marido, mas a condessa tomou a iniciativa, dando uma ordem que tinha que ser obedecida, em respeito à sua idade e à posição que sempre ocupara. - Alain! Louis! - A voz fraca era dura como aço. - Acabem imediatamente com essa cena deprimente! Mas, com uma fúria selvagem, os dois primos se levantaram, querendo se enfrentar. Esguios e tensos, os dois pareciam a imagem de dois Treville dos velhos tempos, prestes a se enfrentar em duelo. Os olhos de Celestine brilhavam, como se estivesse se divertindo com a perspectiva de uma cena de violência. Então, no silêncio tenso, ouviu-se um soluço. Era Fleur, que não conseguia mais se controlar. - Louis, por favor... O rapaz pareceu ficar envergonhado e, controlando a raiva, deu uma risada seca, dizendo: - Desculpe, Alain. Falei mais do que devia e por isso peço que me perdoe. - Mas sua expressão não era nada conciliadora. Alain não cedeu. Pelo contrário, parecia tremendamente aborrecido por perder sua vítima. No fim, aceitou as desculpas com um aceno seco de cabeça e estendeu a mão para a vigilante Celestine, que o acompanhou para fora da sala. Assim que a porta se fechou, Louis afundou-se na cadeira, dando um suspiro de alívio. - Puxa! Por um instante, pensei que íamos trocar murros! Por favor, mamãe - pediu à preocupada condessa -, se tiver outra dessas suas idéias para acordar as emoções de Alain, me deixe de fora, sim? Preferia mexer com um tigre adormecido a me meter numa discussão dessas novamente! A condessa não achou graça na brincadeira. Sentando-se, trêmula, encarou-o, acusadora. - Você foi muito cruel com Alain. Deliberadamente cruel, e isso eu não vou perdoar. Por que o provocou tanto? - Tentava controlar as lágrimas. - Por que, Louis? O rapaz se mexia na cadeira, sem jeito, o rosto vermelho, sob o olhar de reprovação da tia. Tentou responder, passou os dedos pelo cabelo. Por fim, começou a se defender, envergonhado: - Achei que o único modo de atingi-lo era mexer com a sua deficiência - confessou. Ouvindo um soluço de Fleur, virou-se para ela e desafiou: - E deu certo, não deu? Qualquer outra coisa que eu dissesse apenas arranharia a armadura que ele usa e não a penetraria! - Voltou-se novamente para a condessa, a raiva aumentando ao constatar a condenação no rosto das duas. - Afinal, não era esse o objetivo do plano? Agora devo ser condenado porque ele deu certo? A agressividade não encobria o embaraço, e Fleur ficou com pena. Pousou a mão no braço dele e tentou explicar: - Não foram as palavras o que deixou mamãe zangada, mas o seu jeito. Foi horrível! - Um tremor passou

por seu corpo ao lembrar-se. - Você quase o agrediu... o seu primo cego! Louis se encolheu, antes de responder: - Estou entendendo... As duas tiveram a sensação de que ele ia dizer mais alguma coisa; por isso, esperaram. Por fim, Louis levantou as mãos e desabafou: - É essa maldita arrogância dele que me faz esquecer que é cego! Às vezes, quando o vejo descendo a escada ou andando sem hesitação até a cadeira, fico pensando se é mesmo cego, ou está simplesmente gozando a nossa cara! - As duas quiseram interromper, mas ele não permitiu. - Oh, eu sei... eu sei... não é possível! Alain é cego, e estou envergonhado pelo que fiz há pouco. Mas, por favor, me expliquem como é que ele faz isso. Será que tem algum poder extra-sensorial, que nós, meros mortais, não sabemos? Fleur respondeu a esse desafio dizendo simplesmente: - Ele conta... - Conta? - É, ele conta - repetiu, fazendo que sim com a cabeça. - Todos os lugares por onde Alain anda com tanta segurança já foram percorridos em segredo dezenas de vezes e ele sabe exatamente quantos passos são necessários para chegar onde quer. - Louis estava mudo. - Eu já escutei... - Fleur continuou, revelando, sem querer, sua própria agonia. - Noite após noite, quando pensa que todos estão dormindo, anda pelos corredores, pelo quarto, pelas salas, nas escadas... sempre contando, voltando sobre seus passos, até decorar e encontrar o caminho sem tropeçar. - Meu Deus! - Louis gemeu, os olhos presos no rosto calmo de Fleur. - Que resistência... e que coragem! A condessa interrompeu, os olhos brilhando de lágrimas. - Nunca ninguém duvidou disso. Ele pode ter muitos defeitos, mas coragem nunca lhe faltou! - Houve um instante em que Fleur achou que o controle de ferro da velha ia se partir, mas, depois de uma luta íntima, ela levantou a cabeça e sorriu. - Bem, meus filhos, não podemos deixar que a cena de hoje enfraqueça nossa determinação de derrubar a resistência de Alain. Se levarmos em conta o que você, Louis, descobriu, que a armadura pode ser atravessada, temos que continuar com nossos esforços para penetrá-la. Estamos combinados? Concorda, Fleur? E você, Louis? O ar maroto do rapaz estava voltando e ele respondeu, rindo: - Às suas ordens, meu coronel... - E fez continência. Mas quando a condessa dirigiu seu olhar imperioso a Fleur, ela apenas conseguiu balbuciar: - Eu... eu estou disposta a ajudar... se vocês têm absoluta certeza de que vai dar certo... CAPÍTULO IX Fleur estava a caminho das plantações de flores. Durante as três últimas semanas havia ficado ocupada, ajudando a condessa nos preparativos para o jantar que iria acontecer naquela noite. Essa era a primeira oportunidade que tinha de rever os amigos que fizera entre os apanhadores de flores. Os trabalhadores provençais simpatizavam com ela e ficavam felizes com a atenção que demonstrava para com eles e suas famílias. Fleur também se sentia feliz, como se estivesse em casa, pois a cada visita perguntava sobre todos, exatamente como fazia quando ajudava o pai, nas visitas paroquiais. Trabalhava duro, aquele pessoal da Provença. Lidava desde a aurora até o anoitecer, durante as sucessivas colheitas quase o ano todo, tirando as flores, enchendo sacos que eram embarcados em carroças e levados para as destilarias, onde eram extraídos os óleos e aí essências enviados depois para todas as partes do mundo. Era logo depois do almoço e estava muito quente. Enquanto andava pela estrada, Fleur sorria para si mesma, lembrando que apenas meia hora antes a condessa dissera que ela devia ir se deitar um pouco, pois estava pálida e abatida. Fleur tentou convencê-la de que se sentia bem, mas no fim aceitou o conselho e foi para o quarto. Mas estava um dia tão lindo, o céu azul sem nuvens, a paisagem colorida como uma pintura, que não conseguiu resistir à vontade de sair de casa. Seus passos rápidos diminuíram de velocidade ao começar a pensar e se preocupar. Estava casada há quatro semanas, e nas últimas três quase não havia visto Alain. Apenas rapidamente, quando ele saía para a fábrica de manhã bem cedo e novamente bem

tarde da noite. Desde a briga com Louis, Celestine e ele costumavam jantar juntos em Grasse, dando como desculpa o excesso de trabalho que não permitia que chegassem a tempo para jantar no castelo. Por isso, o plano da condessa não dera em nada. A falta de oportunidade impedira uma repetição daquela noite tempestuosa. Fleur intimamente ficara satisfeita em não presenciar mais aquele tipo de batalha. Além disso, estava cada vez mais convencida de que Alain nunca teria ciúme dela, pois parecia cada vez mais absorto na companhia de Celestine e provavelmente arrependido do impulso que tivera de se casar com uma garota que nunca chegara a ver. Quase sem pensar, havia se dirigido ao lugar certo, e um grito de boas-vindas dos trabalhadores a tirou do estado de meditação em que se encontrava. Imediatamente, seu rosto se alegrou e ela retribuiu os cumprimentos, completamente à vontade com os novos amigos. Gastou mais de uma hora andando ao lado dos apanhadores cujos dedos ágeis não paravam nunca sua tarefa de arrancar as pétalas cheirosas, enquanto falavam, num inglês hesitante, sobre seus problemas e suas famílias. O sol ficava cada vez mais forte e Fleur começou a sentir dor de cabeça. Aos poucos, as fileiras de arbustos ficaram despidas de flores. Os trabalhadores pararam para o descanso da tarde, para voltarem depois, quando o sol não estivesse tão forte e pudessem trabalhar mais à vontade. Fleur os seguiu, a dor de cabeça mais forte ainda, e aceitou de bom grado o convite para partilhar a refeição que Maman Rouge trazia todos os dias para o campo. No fim acabou não comendo nada, pois as fatias de pão com queijo forte e cebolas embrulharam seu estômago, mas aceitou uma xícara de café bem forte que lhe ofereceram. Enquanto tomava o café, Maman Rouge olhava, séria, e ralhava por Fleur não ter trazido um chapéu. - Nosso sol é muito mais forte do que o da Inglaterra, senhora condessa, e está tão pálida! Jean-Paul! - gritou ela, de repente, para um garoto que passava. - Vá pedir à sua mãe um chapéu emprestado para a condessa. Ande! E diga que fui eu que pedi... - Oh, mas não é necessário! - Fleur protestou, imaginando se estaria mesmo com um ar tão abatido assim para que todos comentassem. Mas a ordem da velha foi reforçada por uma moça de olhos doces que não parará de olhar para Fleur desde que chegara. - Maman Rouge está certa, senhora. Seria uma tragédia se estragasse essa pele tão clara - disse timidamente. Todos à volta concordaram e Fleur acabou corando quando um homem, mais velho que os outros, fez-lhe um cumprimento. - Seu nome está bem de acordo, madame Fleur, pois, se me desculpar o atrevimento, a senhora é a flor mais bonita que cresce nestas paragens. Eu a chamei de "rosa inglesa" mas, pensando bem, mudei de idéia. A rosa inglesa é bela, sem dúvida, mas não tanto quanto a da Bulgária. As rosas que crescem nas montanhas da Bulgária são as mais lindas do mundo. Nenhuma se compara a elas, como também ninguém se compara à sua beleza, condessa. E agora que a experiência do senhor conde está praticamente terminada, temos dois motivos para ficar felizes: a vinda da mais bela flor da família Treville e o mais fabuloso perfume inventado pelo senhor de Treville! Hum... - E juntou os dedos, levando-os aos lábios como num beijo. - Que sorte a do senhor conde! Então, Alain terminara o trabalho. Fleur não duvidava da informação do apanhador porque nas plantações, assim como nas vilas, os segredos duram apenas enquanto são de um só homem. Mas não teve coragem de contar a eles que o perfume não seria para ela, que Celestine tinha esse direito há muito mais tempo, e também não queria estragar a festa que havia sido organizada para eles naquela noite. De repente, a fileira de rostos alegres e risonhos começou a ondular na frente dela, como uma onda de calor. O perfume forte das flores junto com o cheiro acre do queijo e da cebola a deixaram tonta, não conseguia respirar. As vozes que conversavam subiram num crescendo e de repente emudeceram, quando Fleur escorregou de

onde estava sentada e a escuridão caiu sobre sua cabeça como um manto negro. Fleur voltou a si deitada num catre, dentro de uma das cabanas dos trabalhadores. Estava fresco, silencioso e sombreado. Por um momento, estranhou o lugar. Tentou sentar-se, mas, antes que conseguisse, o rosto enrugado e sorridente de Maman Rouge apareceu. - Fique deitada mais um pouco, minha menina - insistiu a velha. - Espete até se recuperar. Fleur recostou-se e confessou: - A senhora estava certa em dizer que eu devia ter colocado um chapéu. Devo ter tido um começo de insolação! - É verdade. Devíamos ter avisado antes que o nosso sol é muito forte e perigoso para a cabeça descoberta. O que o senhor conde vai dizer, quando souber disso! Vai nos repreender e nós bem que merecemos! - Bobagem! - Fleur tentou sentar-se novamente, mas a tontura voltou, fazendo com que ela se deitasse. Ficou surpresa de ver como sua voz estava fraca, quando quis acalmar as preocupações da velha. - Foi culpa apenas minha, eu devia ter mais juízo e não andar por aí sem chapéu nesse calor. Vou descansar mais um pouco, depois volto para o castelo e ninguém precisa saber de nada. - Meu Deus! - A velha se assustou só em pensar naquilo. - De jeito nenhum, condessa! Um dos homens vai levá-la de volta! Podemos ser culpados por não termos avisado a tempo, mas ninguém vai nos acusar de negligência! Quando estiver melhor, um dos caminhões vai levá-la ao castelo. Não adiantou Fleur insistir, e foi por isso que em vez de subir escondida para o seu quarto, como havia planejado, chegou de caminhão na porta da frente e chamou a atenção de todos. Os empregados foram os primeiros a aparecer. Enquanto o motorista do caminhão barulhento contava o que viera fazer ali, a velha condessa apareceu no alto da escadaria, querendo uma explicação. Um olhar para o rosto de Fleur, que descia ajudada pelo camponês, bastou para que começasse a dar rápidas instruções. Antes que Fleur percebesse o que acontecia, já estava na cama no seu próprio quarto, abençoadamente fresco. A dor de cabeça ainda persistia, como um tambor. A condessa não disse nada para reprová-la, mas franziu a testa, preocupada. - Procure descansar, minha querida - murmurou. - O médico já foi chamado e deve chegar logo. - Saiu devagarinho do quarto, fechando a porta com cuidado. Fleur acordou bem mais tarde, completamente livre da dor. Tonta, levantou a cabeça do travesseiro para testar suas reações e sorriu, aliviada, ao ver que nada sentia. Por um momento, ficara com medo de que sua ação tola a impedisse de comparecer ao jantar. Apesar de não estar nem um pouco animada, sabia que a condessa ficaria imensamente decepcionada se três semanas de trabalho acabassem dando em nada. A cama fez um ruído leve, quando se mexeu, e Fleur ficou surpresa ao ouvir uma voz vinda do lado escuro do quarto. - Está acordada? Alain estava de pé, perto da janela, quase invisível contra as cortinas. - Estou, obrigada. - Sua voz soava fraca como a de uma criança que esperasse uma repreensão. O tom de Alain havia sido severo, mas sem raiva, e o coração de Fleur começou a disparar. Apertou as mãos para impedir que tremessem, quando ele chegou perto e sentou-se na beirada da cama, bem perto dela. - Me disseram que há semanas você não anda se sentindo bem. Deviam ter-me dito antes. - Franziu a testa. - Esta tarde, dei instruções ao médico para fazer um exame completo em você. - O médico já veio? - perguntou, espantada, e ele concordou. - Eu mesmo o trouxe, depois de receber um telefonema da minha mãe, dizendo que você estava doente. Quando chegamos, você estava dormindo, mas ele conseguiu examiná-la sem acordá-la e deixou instruções para que se alimente com coisas leves e, por alguns dias, fique longe do sol, especialmente depois do meio-dia. Pode se levantar quando quiser, mas não deve fazer esforço. Sorriu inesperadamente, e Fleur prendeu a respiração. - Esses ingleses são malucos... Até mesmo nossos rudes apanhadores têm receio de ficar com a cabeça descoberta ao sol do meio-dia e

você, acredito, nem hesitou... Como é que posso proteger você dessa enorme independência inglesa? Será que me promete tomar mais cuidado no futuro? Falava como se a resposta dela fosse importante, como se pretendesse ficar ali o dia todo, até que Fleur fizesse o que ele queria. Ela limpou a garganta e disse, rouca: - Está bem, prometo. Durante alguns minutos houve apenas o silêncio, um silêncio cheio de significados, que ele não tentou quebrar e que acabou deixando Fleur nervosa. Estendeu a mão para arrumar a coberta, exatamente na hora em que ele fazia o mesmo, e suas mãos se encostaram de leve. Ela tentou retirar a sua, depressa, mas Alain a segurou com dedos fortes, e uma vez mais Fleur se encheu de êxtase ao simples toque dele. Era a primeira vez que tinham qualquer contato físico, desde aquela primeira noite, quando a raiva e o desprezo o haviam levado a procurá-la. Mas agora não havia raiva. Durante um instante, Fleur pressentiu a solidão profunda que ele sentia, uma solidão que geralmente era mantida escondida por trás dos modos aristocráticos do marido. Já não suportava mais aquele toque eletrizante, que deixava todo seu corpo tenso e o coração na garganta. Tentou retirar a mão, mas Alain a apertou um pouco mais. - Eu... eu acho que já estou bem para me levantar... - Fleur praticamente implorou. - Deve estar quase na hora de começar a me arrumar para o jantar. - Não há pressa - disse ele calmamente. - E como já faz tempo que não conversamos, acho que devíamos aproveitar a oportunidade. Fleur não queria nem se lembrar da última vez em que haviam se falado. Tentou relaxar, mas Alain ergueu a mão e acariciou-lhe o rosto, deixando-a alerta. - Sua pele parece veludo - murmurou. - Parece uma pétala. Você está corada? Seu rosto está quente sob a minha mão... O toque era tão delicado e os olhos tão ternos, que ela não conseguia se afastar. Os dedos macios acariciavam não só seu rosto, mas seu coração também, e, pela primeira vez em semanas, Fleur sentiu-se em paz. - Ah, Alain, você pode ser tão compreensivo quando quer - sussurrou, quando a mão dele passava de leve por seus lábios. A reação do marido a surpreendeu. Por um segundo ele ficou imóvel; depois, desceu a mão para o ombro dela, segurando-a firme. - Fleur, não me provoque - avisou. - Não sou um garoto que pode ser atormentado e depois mandado embora para brincar! As palavras deixavam claro que não confiava em Fleur. Por alguma razão se aproximara dela, mas o equilíbrio de suas emoções era tão tênue que qualquer comentário impensado podia acabar com ele e mandar Alain de volta ao poço escuro do mau humor. Com cuidado, controlando as lágrimas, Fleur falou baixinho: - Alain, eu sou sua esposa! Sentiu os dedos dele na carne, apertando com força, mas suportou a dor para não destruir aquele momento tão precioso. - Fleur... Seu nome saiu por entre lábios apertados. Com um suspiro de contentamento, ela inclinou o corpo na direção dele. Alain estendia os braços para abraçá-la, quando a voz da condessa os interrompeu: - Bem, minha pequena, como é que está se sentindo agora? - E os olhos atentos passavam do rosto corado da nora para o do filho, que havia se afastado assim que a mãe entrou, e se encontrava de pé a uns passos de distância, o rosto controlado. A condessa, sempre interessada em seu plano, acenou com a cabeça para Fleur antes de perguntar, com ar maroto: - Será que Louis pode entrar um pouquinho? O coitado está preocupadíssimo desde que soube o que aconteceu. Acha que não tomou conta direito de você. Não vai sossegar, até ver com os próprios olhos que você está bem! O rosto de Alain ficou sombrio ao escutar o nome do primo, e Fleur se afundou entre os travesseiros, desanimada. A interferência bem-intencionada da condessa havia desmanchado o comecinho de um entendimento entre ela e o marido, e duvidava que conseguisse se aproximar novamente dele. Lutando para vencer o desapontamento, concordou e disse à condessa: - Sim, claro que ele pode entrar. Em seguida fechou os olhos, para não ver a figura tensa de

Alain, que saía do quarto. Uma hora depois, esforçando-se para manter a calma, Fleur começou a se preparar para a festa. O enorme guarda-roupa já não estava mais vazio. Dias antes, haviam chegado as roupas que Alain prometera e agora ela podia escolher uma para qualquer ocasião. Só que, assim como as jóias, as roupas não lhe davam nenhum prazer. O tamanho, o caimento, as cores, tudo era perfeito, cuidadosamente escolhido por alguém que sabia o que fazia, mas se aquele jantar não fosse uma ocasião tão especial, aguardada com ansiedade por todos, ela bem que preferiria usar um de seus antigos vestidos, feitos pela mãe. Ficou parada, indecisa, em frente ao armário, sem saber o que escolher. No fim, optou por um vestido de tafetá rosa, de corpo justo, que parecia um botão acabado de colher. Deixou-o sobre a cama. Sentou-se à penteadeira e escovou e trançou o cabelo pesado, prendendo-o no alto da cabeça, num estilo que lhe dava um ar aristocrático. Uma leve sombra nas pálpebras e um pouco de batom rosa nos lábios, e estava pronta para o vestido. Deu uma volta pelo quarto, prestando atenção no farfalhar do tecido. Alain havia comentado, ainda na Inglaterra, que gostava quando Fleur usava roupas de tafetá porque, já que não podia mesmo vê-la, pelo menos podia ouvi-la. Por isso, não se surpreendeu quando, ao receber as roupas que ele encomendara, notou que havia diversos vestidos daquele tecido, e em alguns outros, mais simples, um detalhe qualquer de tafetá. Parou na frente do espelho para analisar se estava bem e comprovou que o dinheiro comprava elegância. O corpete do vestido era como uma concha rosa de onde sobressaíam seus ombros brancos; da cintura fina, a saia descia justa até a barra, deixando aparecer as finas tiras prateadas das sandálias. Mordeu o lábio e franziu a testa para a figura refletida no espelho. A pintura leve que usava não disfarçava completamente o ar triste e as olheiras, e sabia que os convidados estavam esperando a imagem de uma jovem esposa radiante. Ia dar mais um retoque, quando escutou uma batida na porta e preparou-se para enfrentar Alain que entrava no quarto. Fleur deu alguns passos rápidos e conseguiu tirar um par de sapatos que largara no chão e que estavam bem no caminho dele. Alain parou e ela percebeu que ele escutara o ruído do vestido. - Fleur? - chamou, os olhos cegos procurando, esperando a resposta para localizá-la. - Estou aqui - respondeu, admirando o marido. Era incrível o controle que tinha, a capacidade de esconder toda a raiva que o queimava por dentro. Alain hesitou um instante. Depois estendeu o braço, oferecendo a ela um pequeno objeto. Falou, seco: - Quero que use este perfume esta noite. É a minha nova criação, que me deixou tão ocupado durante todas essas semanas. Espero que goste. A surpresa tomou conta de Fleur, ao aceitar o pequeno frasco. Aquele era o perfume que Celestine tanto queria. Por que ele o oferecia a ela? Sentiu que a pergunta era respondida quando Alain continuou: - A maioria dos convidados de hoje são concorrentes, assim como amigos. Todos já devem ter ouvido boatos sobre o novo perfume da Maison Treville, e achei que esta era uma ocasião apropriada para apresentar minhas duas novas aquisições. - Compreendo - respondeu mecanicamente, abafando a onda de esperança que sentira ao imaginar que ele havia feito o perfume especialmente para ela. Como conde de Treville, tinha uma posição a defender, a honra familiar a manter, e eram razões mais do que suficientes para sua decisão. Certamente, depois que todos tivessem sido apresentados às duas propriedades, o perfume acabaria nas mãos de sua verdadeira dona. Assustou-se, quando ele chegou mais perto. - Vou colocá-lo em você - disse, tão frio e distante que ela podia jurar que havia sonhado toda a ternura de uma hora atrás. Fleur quis recusar, mas ele já tirava o frasco de suas mãos e o destampava. - Primeiro - afirmou, pegando a tampa como aplicador e dando um toque leve nos pulsos de Fleur -, aplica-se nos pulsos; depois, na dobra do cotovelo. - E seus

dedos queimavam-lhe a pele. - Em seguida, no pescoço. - Os dedos quentes provocaram-lhe um tremor no corpo todo. - Um toque aqui, entre os seios - a voz começava a ficar constrangida -, e um pouquinho no lábio superior, é tudo o que é necessário. - Largou-a e deu um passo atrás. Fleur respirou fundo, deliciando-se com a inebriante fragrância. - Gosta? - ele perguntou, dando a impressão de que a resposta não tinha a menor importância. - Oh, sim! - Ela deu uma volta, respirando profundamente. - Ele me traz à lembrança a minha casa, o jardim depois de uma chuva, quando os aromas ficam tão fortes e tão gloriosos que a gente se sente envolta numa nuvem mágica! É isso mesmo: me faz lembrar a minha casa! Ignorando as palavras de Fleur, Alain avisou: - Nunca coloque perfume atrás das orelhas ou na parte de trás do pescoço, porque o aroma simplesmente vai seguir você. Perfume, quando usado apropriadamente, chega a fazer milagres. Não existe um meio mais inocente e delicado de uma mulher se expressar do que quando se deixa envolver numa suave onda de perfume. Não é apenas mais um cosmético, mas uma arma eficiente para a mulher que quer ser atraente. Fleur o encarava, espantada. Se um perfume era uma coisa tão pessoal, como é que podia querer que ela usasse o que havia criado especialmente para outra mulher, uma mulher que tanto física quanto espiritualmente era o oposto dela? De repente, sentiu que não suportava mais. Suas emoções confusas, junto com a fraqueza que ainda sentia, fizeram com que se sentisse profundamente deprimida. Se houvesse tempo teria corrido para lavar qualquer traço do perfume. Sentia-se degradada, como se tivesse sido obrigada a usar as roupas de outra. Seu mal-estar era evidente, quando conseguiu responder: - Você fala como se o perfume fosse uma poção de amor, uma isca para hipnotizar o homem desprevenido! De acordo com o que acabou de dizer, a relação entre o perfume e a personalidade é essencial, mas, se isso é verdade, sua psicologia não está funcionando! Não desejo usar um perfume criado exclusivamente para mexer com as emoções masculinas, e gostaria muito que você desse o resto para a pessoa para quem ele foi especialmente criado. Tenho certeza de que nunca mais vou querer usá-lo! As sobrancelhas se levantaram, formando uma única linha negra, e todo o orgulho aristocrático ficou evidente no modo como Alain levantou o queixo para responder: - Como quiser! Por favor, esteja pronta para descer dentro de cinco minutos! Depois de ele ter saído, Fleur ficou parada um instante, indecisa. Finalmente, uma mágoa muito grande fez com que se resolvesse. Pegou o frasco com o resto do perfume, de cima da penteadeira, onde Alain o havia deixado, e correu para o corredor. O quarto de Celestine ficava no mesmo andar. Chegando lá, entrou sem bater, antes que perdesse a coragem. Estava decidida a entregar o perfume à legítima dona e, quanto mais cedo, melhor. Apesar da necessidade de fingir, por causa dos amigos de Alain, Celestine teria que ficar sabendo que a farsa era apenas por uma única noite. O quarto estava vazio. A outra devia ter acabado de sair, porque suas coisas estavam espalhadas por todos os cantos, e em cima da penteadeira havia uma enorme desordem, que a criada ainda não tivera tempo de arrumar. Fleur teve que passar por cima de peças de roupa jogadas pelo chão, enquanto ia até a penteadeira. Limpou um espaço no meio dos potes, frascos e lenços de papel usados e largou o vidro de perfume, num lugar onde não podia deixar de ser visto. Saiu do quarto e desceu a escadaria, em direção a Alain e à condessa que a aguardavam. As primeiras visitas chegaram assim que ela desceu, e durante a hora seguinte Fleur ficou ocupada em memorizar nomes e rostos que lhe foram apresentados. Senhoras elegantes, acompanhadas por homens de aparência distinta, iam sendo apresentadas, todos demonstrando uma curiosidade natural, logo substituída por simpatia genuína, ao verem o modo tímido de Fleur. Os homens, especialmente, logo demonstraram

sua admiração, e o rosto de Alain perdeu um pouco da severidade. Ao se sentarem à mesa, sua atitude em relação a ela já não era tão gelada. Fleur sabia que a mudança era apenas em benefício dos amigos, mas estava gostando da sensação de se sentir apreciada por ele, tanto que seus olhos começaram a brilhar e seus lábios se ergueram num sorriso alegre. Celestine, aborrecida, foi colocada longe demais para tomar parte na conversa de Alain, e tinha que se contentar em olhar feio para Fleur e Louis, que estavam bem na sua linha de visão. Mas depois, quando todos se levantaram e se espalharam em grupos pelo salão, foi direto para Alain, que estava no meio de um grupo de comerciantes locais, todos elogiando as virtudes do novo perfume. Fleur achava divertido ser o centro de atenções de tantos narizes indagadores, e quase não controlou o riso quando o sr. Devereux, um dos rivais de Alain, segurou-lhe o braço e começou a cheirá-lo profundamente. - Ah! - E meditou por um instante. - Uma fragrância fresca e doce! - Depois, desafiou Alain: - Bergamota, laranja doce, verbena, limão e tangerina! - E... O sr. Devereux afastou-se, vermelho de raiva, e o sr. Essalt, outro convidado, explicou: - Devereux se orgulha de ser um exímio "cheirador", condessa, e se recusa a admitir a derrota por não conseguir distinguir todas as essências que seu marido usou na fórmula do novo perfume, dizer quais são naturais e quais são sintéticas ou uma mistura das duas. Mas é que a mistura usada por Alain ficou tão perfeita que todos nós estamos meio confusos. Ao agradecer o elogio feito a Alain, Fleur sentiu-se grata por ele não ter perdido o dom pelo qual era tão conhecido. Pensava nisso, quando foi interrompida pela voz de Celestine, que se metia na conversa: - E você já decidiu que nome vai dar ao novo perfume, Alain? - A pergunta soava como um desafio, mas não chegou a perturbá-lo. - Sim, já decidi. Vai se chamar "Fleur d"Amour". Por entre os aplausos de aprovação, apenas Fleur reparou na expressão de dor e despeito de Celestine. A própria Fleur estava tão espantada com aquela declaração que apenas encarou a outra, querendo transmitir simpatia. Ela mesma sabia que o perfume era de Celestine e Alain provavelmente usara aquele nome apenas para impressionar os amigos. Acreditava nisso com tanta sinceridade, que se assustou com as palavras do sr. Essalt: - Ah, Fleur d'Amour! Não podia haver nome mais apropriado. Você conseguiu capturar fielmente a beleza e a personalidade de sua esposa. O retrato que fez com tanta perfeição teria mesmo que levar o nome dela. Fleur sentiu que o coração disparava ao ser assaltada pelas primeiras dúvidas. Com uma sensação de tristeza, escutou o sr. Devereux admitir, aborrecido: - É verdade, Alain. Você não perdeu seu dom de misturador, e nem o de acertar tão bem aroma e personalidade. Ninguém poderia mesmo duvidar de que a jovem condessa - e fez uma mesura em direção a Fleur, cujos olhos estavam começando a demonstrar alarme - tenha sido sua musa inspiradora, pois Fleur d'Amour é suave, delicado, a mistura doce que combina perfeitamente com a personalidade de sua esposa. Havia uma pergunta que Fleur precisava fazer, e ela a fez, a voz saindo meio rouca: - Muito obrigada por seus elogios, cavalheiros, mas esse perfume não combinaria também com a personalidade de outra pessoa? Celestine, por exemplo? O coro de negativas que se seguiu fez com que chegasse à conclusão de que havia se enganado em relação a Alain. Quando o sr. Essalt resolveu ele mesmo explicar melhor, ela escutou, chocada: - A condessa está certa. Deve haver outras pessoas com quem o perfume também combinaria, alguém parecida com ela. Mas Celestine? Nunca! Seu tipo de beleza pede perfumes exóticos, as essências do Oriente. De fato, o tipo de perfume jasmim-patchuli que ela está usando neste momento! Fleur não conseguia encarar Alain, mas tinha certeza de que em seu rosto devia existir uma amarga satisfação. Ele não havia tentado negar suas acusações - provavelmente, consideraria isso uma fraqueza -, mas como devia ter ficado magoado,

quando ela rejeitara o presente! Mesmo que fosse como uma nova forma de pagamento pelo que achava que devia a ela, merecia pelo menos um agradecimento. Em vez disso, havia dado o frasco de presente! Fleur sentiu uma onda de remorso e procurou mentalmente um jeito de se redimir, de esconder o que havia feito. Lembrou-se que o quarto de Celestine estava vazio, quando entrara, e que a moça provavelmente já havia descido para o jantar. Como não teve motivo para subir novamente, o frasco provavelmente ainda estava lá. Enquanto pensava nisso, olhou para a outra e viu que Celestine dava de ombros e se afastava de um grupo de homens muito ocupados em falar de negócios para dar a ela a atenção que achava que merecia. Fleur pediu licença e se afastou do grupo; as pessoas estavam tão atentas na conversa, que nem repararam em sua saída. Com os olhos fixos na porta pela qual pretendia escapar, foi passando de grupo em grupo de convidados, sorrindo e acenando, mas fugindo de qualquer tentativa de conversa. A mão já estava no trinco, quando ouviu a voz de Louis junto dela. - Para onde está escapando com tanta pressa? - perguntou, rindo do rosado que apareceu no rosto dela. Fleur disse, gaguejando: - Eu... eu esqueci uma coisa no meu quarto... um lenço... Ia subir um instantinho, para pegar. - Ficou ainda mais vermelha com a mentira. - Vou chamar uma criada - insistiu ele, resolvido a não perdê-la de vista. - Não seja tolo - respondeu preocupada com o atraso. - Sabe que não consegui me acostumar com o hábito de vocês de deixar tudo para os criados, Louis. Eu nunca pensaria em chamar um deles para fazer uma coisa que eu mesma posso fazer num instante. Os olhos dele de repente se apertaram e Louis baixou a cabeça para olhá-la mais atentamente. - Você hoje parece diferente. Primeiro, pensei que fosse o vestido; mas depois, analisando bem, vi que a causa de sua mudança não é material. Por diversas vezes, reparei que seus lábios tremiam e que você os mordia para que ninguém notasse. Suas mãos tremiam também quando levantava o copo de vinho, e umas duas vezes, quando falei com você, parecia que estava saindo de um mundo de sonhos. Fleur, o que é? O que foi que aconteceu para ficar com esse ar de madona, os olhos cheios de segredo? Fleur se ressentiu pelo fato de seu amor secreto por Alain estar se tornando público. Ficou imaginando, amedrontada, se os outros convidados também haviam reparado. Mas lembrou-se de que Louis era muito vivo, tinha uma percepção tão grande como a de Alain; maior ainda... pois podia ver! Lutando contra o pânico que as palavras dele produziam, fez uma tentativa para parecer despreocupada. Conseguiu até rir um pouco, ao dizer: - Você tem uma imaginação muito fértil, Louis, mas acho que está exagerando com o excesso de vinho. A semelhança entre os primos nunca era tão grande como quando se sentiam ultrajados. Louis levantou o queixo, com arrogância, e ela viu que ficara ofendido. - Está querendo dizer que estou bêbado? - perguntou, gelado como Alain, e Fleur ficou triste. Não tinha desejado ofendê-lo, mas não podia deixar que se metesse mais. Além disso, a cada minuto que passava as chances de recuperar o frasco de perfume diminuíam. - Ainda não - disse, procurando brincar -, mas logo estará, e mamãe vai ficar aborrecida. Por que não dá mais atenção às jovens convidadas e deixa sua imaginação se divertir com elas. Acho que ficariam muito satisfeitas. Sem esperar a resposta explosiva que certamente viria, escapou pela porta e subiu correndo a escada em direção ao quarto de Celestine. Uma criada havia arrumado a desordem, mas o resto estava do mesmo jeito. Sentindo-se aliviada, Fleur foi até a penteadeira e ia alcançar o frasco quando uma voz cortou o silêncio: - Será que pode explicar o que está fazendo aqui? Fleur virou-se e deu com Celestine, parada na porta: obviamente, a tinha seguido desde o salão. O olhar furioso que mantivera durante a noite toda estava mais zangado ainda, enquanto esperava, impaciente, por uma resposta. - Sinto muito, mas deixei

aqui uma coisa que me pertence - explicou Fleur, meio sem fôlego - e vim buscar. - Uma coisa sua? - Dirigiu-se até a penteadeira e deu com o vidro de perfume. - O que é que isto está fazendo no meu quarto? - Fui eu quem trouxe antes do jantar - resolveu confessar, pois não adiantava nada mentir. - Cometi um terrível engano, pensando que Alain o havia criado para você. E, apesar de saber que eu teria que usá-lo esta noite, achei que devia trazer o resto para você. No entanto - fechou os olhos, ao lembrar a cena -, o que escutei lá embaixo me fez compreender meu erro. O perfume é meu e vim buscá-lo de volta. Celestine soltou a respiração como um silvo de cobra e seu belo rosto se contorceu numa raiva enorme, que não tentou disfarçar. - Vou achar muito difícil conseguir perdoar Alain por me fazer acreditar que o perfume seria meu e depois esperar uma ocasião como esta para fazer seu truque diabólico! Fleur se encolheu. - Está dizendo que ele planejou isso, de propósito, para magoar você? - E o que mais pode ser? Eu devia ter desconfiado, quando ele me dispensou como assistente e contratou um rapaz, mas nunca pensei que pudesse me enganar desse jeito! Faz semanas que fico à toa na destilaria, me aborrecendo, apenas esperando para ser útil se ele precisar, e qual é o meu pagamento? Uma bofetada no rosto, dada pelo desumano conde, cujo imenso orgulho não o deixa descansar, enquanto não consegue uma vingança! - Está querendo dizer... - Fleur gaguejou, enxergando um raio de esperança - que durante todas essas semanas, enquanto ficavam juntos na fábrica, você quase não esteve com ele? Os lábios de Celestine se torceram numa careta de desprezo. - Isso mesmo, minha querida. Mas isso também fazia parte do plano de vingança: ele queria se vingar de mim por erros imaginários! Mas não fique pensando que tudo está acabado entre nós. Ora, deixe de ser tola e comece a encarar os fatos! Por que acha que ele precisa tanto de vingança? Por que um homem que finge não ligar para uma mulher tem tanto trabalho para magoá-la? - Quando Fleur se encolheu, a outra continuou, sorrindo: - Nós nos entendemos, Alain e eu. A nossa relação amorosa é muito mais forte e violenta do que a que ingleses tolos chamam de amor. Não se esqueça disso. E ele virá para mim, quando eu quiser, por mais que você tente apelar para o senso de responsabilidade dele. A mãe pode ficar falando sobre as obrigações que tem para com você, mas Alain está ligado a mim por laços muito mais fortes do que os do casamento. Ele sabe disso, a condessa sabe disso e agora você também sabe! Fleur fazia que sim com a cabeça, acreditando, quase hipnotizada pela força das palavras de Celestine, e magoada demais para poder negar a cruel afirmação. E como podia negar uma coisa que sabia ser verdade? A natureza complexa de Alain fazia com que ele tivesse prazer em ferir a pessoa mais íntima. Sabia disso por experiência própria quando na Inglaterra, durante algumas semanas, fora a única a suportar seus ataques de mau gênio. E ainda mais: ela adivinhara desde o começo que havia algo mais profundo entre Celestine e Alain e que nunca morreria. A cabeça cheia de pensamentos caóticos, Fleur foi saindo sem falar. Celestine olhava para ela, um sorriso preguiçoso e felino nos lábios. Quando ela chegou perto da porta a outra perguntou irônica: - E o seu perfume? Não foi isso que veio buscar? Fleur juntou um resto de dignidade e conseguiu responder baixo: - Obrigada, mas gostaria que você se livrasse dele para mim. Nunca mais vou usá-lo. Quando Fleur saiu, o sorriso de Celestine desapareceu. Escutou que as visitas já estavam se retirando e decidiu não voltar à festa. Seus olhos caíram sobre o frasco de perfume e ela o pegou, pensativa. Depois, com um sorriso maldoso, foi até o banheiro encher a banheira. Fleur também ouviu que os convidados se retiravam, mas nada podia fazê-la enfrentar as despedidas prolongadas que aconteceriam se voltasse. Sabia que a família arranjaria uma desculpa para para sua ausência e foi direto para o quarto, fechando a porta com um

sentimento de alívio. Ali não tinha que fingir que tudo estava bem entre ela e Alain. O esforço de comportar-se como uma esposa devotada durante tantas horas tinha sido maior do que imaginara. Suas mãos tremiam, ao se preparar para deitar, e foi só muito mais tarde, deitada e sem conseguir dormir, que começou a analisar direito as palavras de Celestine. Muitas dúvidas, abafadas até agora pelas palavras enfáticas da outra, começaram a tomar corpo em seu cérebro, e seu sentimento de justiça se rebelava em aceitar tudo o que Celestine dissera, sem primeiro uma confirmação por parte de Alain. Ele era honesto demais para continuar uma relação com a outra, agora que estava casado com ela. Tomara os votos de casamento com uma sinceridade impressionante, Fleur se lembrava muito bem, o que a impedia de acreditar que pudesse enganá-la. Alain deixara bem claro, antes do casamento, que não poderia oferecer amor e que também não esperava ser amado, mas sempre demonstrara uma consideração genuína e uma enorme responsabilidade. Estava realmente disposto a fazer com que ela não se arrependesse por tornar-se sua esposa. Agora, Fleur se agarrava a esses fatos com desespero, obrigando-os a se tornarem importantes, de modo que a ajudassem a tomar coragem para enfrentar Alain e pedir que confirmasse ou negasse as declarações de Celestine. Muito tempo depois, escutou o marido passar pelo corredor, em direção ao quarto. Gostaria de confrontá-lo ali e agora, mas já era tarde, e as perguntas que queria fazer sairiam mais fáceis pela manhã, quando talvez pudesse controlar melhor suas emoções. Exatamente naquele instante, escutou uma batida leve na porta de comunicação de seu quarto com o banheiro. Ficou assustada, imóvel. Mas, como a batida não se repetiu, acabou relaxando, achando que devia ter sido sua imaginação. Mas o ruído ficou em sua cabeça e Fleur resolveu sair da cama para ver. Vestiu o robe e foi até a porta. Hesitou um instante e abriu. Um raio de luz passava pela porta entreaberta que dava para o quarto de Alain. Ficou indecisa, mas sentiu como uma compulsão de ir adiante. Pela fresta, via boa parte do quarto, e a cena que presenciou a deixou de pernas moles e o coração cheio de dor. Exatamente quando olhava, Celestine, linda numa camisola branca com enfeites de tafetá, se dirigia a Alain, parava perto dele e levantava os braços num movimento confiante, abraçando-o pelo pescoço. Por um momento, ele pareceu atônito, como se a presença dela ali fosse inesperada. Depois, seu rosto se transformou no de um homem perdidamente apaixonado. Quando estendeu os braços, segurando Celestine pela cintura e puxando-a para si, Fleur não suportou mais. Escapou pela escuridão, o desespero ganhando força dentro de si. Antes de fechar a porta com cuidado, ainda o ouviu dizer, cheio de paixão: - Oh, minha querida, como tenho desejado ter você novamente em meus braços! Enojada, tão ferida que não conseguia controlar as lágrimas que apertavam sua garganta, Fleur voltou tropeçando para o quarto, afundou-se na cama e ficou olhando para o teto, procurando uma resposta para um problema que, de repente, se tornara insolúvel. CAPÍTULO X Ainda não eram quatro horas da manhã, quando Fleur deixou o castelo. Desceu a escada pé ante pé, a mala antiga contendo apenas as coisas que trouxera da Inglaterra. No silêncio da madrugada, o velho castelo estava cheio de ruídos inesperados, estalidos e rangidos, e uma dúzia de vezes ela parou, assustada, suando de medo de alguém acordar e querer saber onde ia. As pesadas portas de madeira se abriram com facilidade e, uma vez là fora, Fleur começou a correr pelo gramado, ao longo do caminho, sem parar, até avistar os portões de ferro e saber que não havia mais perigo de ser vista do castelo. A estrada estava deserta. Fleur não sabia que direção tomar. Sabia apenas que queria chegar a Nice, onde podia pegar um avião para a Inglaterra, para casa. Resolveu arriscar e seguiu na direção oposta a Grasse. Sabia que a cidade ficava no interior e que o castelo ficava entre ela e o

litoral; assim, imaginou estar indo na direção certa. Depois de percorrer o que pareceram quilômetros e quilômetros pela estrada ladeada de árvores, sem encontrar uma placa indicativa ou alguém que pudesse ensinar-lhe o caminho, começou a ficar cansada. A mala parecia pesar uma tonelada e, na pressa de sair do castelo, não se lembrara de trazer qualquer coisa para comer ou beber. Sua última refeição fora o jantar, e o exercício de andar tanto, junto com o ar fresco da manhã, a estava deixando morta de fome. Ia sentar-se para descansar um pouco, quando escutou atrás de si o ruído de um motor pesado. Seu primeiro impulso foi se esconder, mas depois lembrou que nenhum dos carros do castelo faria aquele barulho. Por isso, esperou na beira da estrada. Era um trator puxando uma carreta cheia de caixas com flores. O alívio de Fleur foi enorme quando, ao perguntar o caminho do aeroporto, o motorista pensou que estava pedindo carona. - Mas claro, senhorita! Fleur podia ter dado um beijo no rosto bronzeado, quando o homem abriu um espaço na carreta e a ajudou a subir. Depois de sua convivência com os trabalhadores, ela já entendia melhor o dialeto da região e não teve dificuldade em compreender que ele estava indo vender as flores no mercado de Nice. Parecia ter ficado contente com a companhia dela, apesar do barulho do trator impedir qualquer conversa. Mais tarde, tirou do bolso um pacote com queijo e pão e ofereceu um pedaço. Fleur aceitou cheia de gratidão. Mastigando sua fatia de pão recém-saído do forno e coberto com uma grossa camada de manteiga, Fleur, sentada entre as caixas de flores, observava a linha da costa que se aproximava. Pela primeira vez, desde a descoberta da traição de Alain, sentiu-se em paz. Logo estaria em casa, junto dos pais que tanto amava e dos antigos amigos de quem sentira tanta saudade. Entristecida, ficou imaginando se a condessa sentiria sua falta. Não tivera tempo de escrever um bilhete, fugira num impulso, mas prometeu á si mesma que, assim que chegasse em casa, escreveria à sogra, tentando explicar o que acontecera, do modo mais suave possível. Logo o trator se sacudia nas pedras das ruas de Nice. As ruas e avenidas estavam desertas, e apenas um ou dois vendedores de flores montavam suas bancas no mercado, quando chegaram lá. Fleur pulou da carreta, agradeceu ao homem, e depois, seguindo suas instruções, foi procurar um táxi que a levasse ao aeroporto. Estava começando a ficar com pressa. Aquela era a hora em que os moradores do castelo começavam a acordar, e queria já estar a caminho da Inglaterra quando dessem por sua falta. Com alívio, fez sinal para um táxi que passava e pediu que a levasse rápido ao aeroporto. Só quando se viu dentro do carro reparou que suas mãos tremiam e seu coração disparava. Assim que chegaram, ela saiu correndo pela ala de recepção, onde mesmo àquela hora da manhã já havia grande movimento de carregadores levando bagagem para as esteiras rolantes e de gente comprando cigarros, caixas de flores, lembranças de última hora, e pedindo informações. Seus dedos agarravam com força a bolsa quando ela chegou ao balcão da companhia de aviação e pediu: - Por favor, uma passagem no primeiro avião para a Inglaterra. O balconista sorriu, querendo ajudar, pensando que o ar tímido e nervoso de Fleur se devia ao medo de voar. - Senhorita, o vôo é muito seguro, não precisa se preocupar! Espere até que o número de seu vôo seja anunciado; depois, vá para o portão de embarque e uma aeromoça a levará ao avião. Tem tempo de sobra - acrescentou, vendo que ela agarrava a passagem e se preparava para correr. - Seu avião sai só daqui a duas horas! Duas horas! Não havia pensado nessa possibilidade. No estado de agitação em que estava, havia imaginado sair do táxi e embarcar imediatamente no avião que a levaria de volta para casa, sem ter tempo para dúvidas de última hora! Ia haver tempo de sobra para Alain alertar a polícia e mais a metade da população... Foi caminhando, desconsolada, até a sala de espera e sentou-se num lugar meio escondido, atrás de um vaso de

plantas, de onde via a pista. Preparou-se para esperar, resolvida a não pensar em Alain nem na cena que causara sua partida. No começo, foi fácil. Distraía-se com a entrada e saída dos passageiros e com a subida e descida dos aviões. Mas depois, começou a enxergar em cada grupo de passageiros que passava alguém alto e moreno, de perfil arrogante, que fazia com que seu coração quase parasse de bater, para depois começar a bater com força, quando percebia que era apenas uma sombra: sua mente atormentada enxergava Alain em todos os lugares. Uma dúzia de vezes consultou o relógio, querendo que o tempo passasse mais depressa, até que, por fim, escutou que chamavam o número de seu vôo. Levantou-se depressa e correu na direção dos portões de embarque, os olhos fixos à frente e o pensamento tão concentrado no que fazia que não ouviu chamarem seu nome pelo alto-falante. Havia acabado de tomar seu lugar na fila que se formava rapidamente em frente ao portão, quando sentiu que alguém segurava seu braço e gritava: - Fleur! Graças a Deus encontrei você! Virou-se, o rosto branco como cera. - Louis! - E o tom de sua voz implorava a ele que não a atrasasse, agora que a fila começava a se mover em direção ao avião. - Fleur, espere! Preciso falar com você! - Agora não, Louis! - gritou, desesperada. - Vou perder o avião! Escrevo assim que chegar em casa. Prometo! Estava quase passando pelo portão, quando ele conseguiu segurar novamente seu braço e virou-a. Pela primeira vez, Fleur reparou no ar desesperado do rapaz, no cabelo em desalinho e na respiração ofegante de quem acabava de chegar de uma corrida. - Fleur, é mamãe... Teve uma espécie de derrame. O médico está lá, mas ela só pede você... - Mamãe! Oh, não... - Seu grito foi abafado pelo ronco das turbinas, mas Fleur não pensava mais em embarcar no avião que aguardava na pista. - Leve-me até ela. Depressa, Louis! Só no carro, já a caminho do castelo, Louis conseguiu explicar o que acontecera, numa voz controlada, que dava mais ênfase ainda à agonia que sentia: - Foi encontrada hoje cedo, pela criada que foi levar o café. Estava caída no chão do quarto. Achamos que ficou preocupada com você... quando não voltou a noite passada, Alain contou que você tinha tido um começo de insolação e, como ainda não estava bem, havia se retirado mais cedo. Mamãe aceitou a explicação, mas deve ter acordado mais cedo do que os outros e resolvido ir ver pessoalmente como é que você estava. Tentou alcançar a campainha, mas não conseguiu. Por sorte, foi encontrada apenas uma meia hora depois, e o ataque não teve conseqüências fatais. Um derrame é sério em qualquer idade, mas na dela... - Sacudiu os ombros e deixou a frase sem terminar. - Mas como é que ela está? - Um lado do corpo está paralisado, mas o médico acha que, com os devidos cuidados, pode melhorar bem. Quando falou, suas palavras me pareceram confusas, mas Alain entendeu. Falava seu nome, chamava por você, e o único modo que conseguimos de acalmá-la foi eu dizer que vinha buscá-la. Graças a Deus comecei a procurar no aeroporto; senão, em poucos minutos você estaria a caminho da Inglaterra! Ele guiava concentrado na direção, mas a aflição de Fleur era tão intensa que acabou contagiando Louis, que levantou os olhos e ficou chocado com o desespero estampado no rosto dela. - Fleur, pelo amor de Deus! Não vá se culpar pelo ataque de mamãe... você não podia adivinhar. Quando ela se encolheu no banco e começou a soluçar, Louis blasfemou contra sua própria estupidez e parou no acostamento. Puxou-a para si e ficou ali, consolando-a, até que ela se acalmasse. Mas o remorso que Fleur sentia era grande demais; não conseguia parar de chorar e nem entendia direito o que ele dizia. - Não foi culpa sua, está me ouvindo? - Louis a sacudia. - A condessa é velha, foi um azar muito grande que tenha sido a sua ausência o fato que provocou o ataque, mas podia ter acontecido a qualquer hora. Fleur, você precisa acreditar nisso! Nervoso como estava, sacudiu-a novamente, mas ela

estava meio amortecida de dor. Ele ergueu a mão para acariciar-lhe os cabelos loiros, mas parou a meio caminho, e tentou chegar a ela de outro modo: pedindo-lhe ajuda. - Não pretendo fazer perguntas, Fleur - disse, baixo -, mas como, aparentemente, a situação entre você e Alain é muito mais grave do que imaginávamos, preciso pedir-lhe um favor. - Fleur não se mexeu, mas ele estava certo de ter sua atenção. Por isso, continuou: - Será que pode ficar no castelo? Mamãe vai precisar de uma mulher, alguém que a ame e a compreenda, assim como você. Os criados são devotados, é claro, mas não são da família. E, Fleur... - Ela levantou os olhos, ao ver que Louis hesitava, imaginando o que seria tão difícil de dizer, e ficou rubra, quando ele continuou: - Sinto que devo pedir esse favor a você tanto por causa de minha tia quanto de Alain. Apesar dos dois precisarem desesperadamente de você, está mais do que claro que, depois de sua fuga, o orgulho dele não vai permitir que peça sua ajuda. O rubor sumiu, deixando o rosto de Fleur mais pálido ainda. - Ele deve me odiar pelo que fiz a mamãe - murmurou, os olhos azuis cheios de remorsos. - E por que ele ia me querer por perto, se tem Celestine? - Ela arrumou as malas e foi para Paris, agora cedo. - E Alain sabe? - perguntou, sem poder acreditar. - Foi ele quem me contou - disse o rapaz, dando de ombros. - Parece que conversaram sobre a possibilidade de viagem ontem à noite e hoje cedo, mesmo sabendo da doença da condessa, ela não mudou de idéia. Detesta doenças e doentes. Por isso foi embora, com armas e bagagens, graças a Deus! - afirmou, com ar de desprezo. Durante algum tempo os dois continuaram em silêncio, Louis esperando que seu apelo penetrasse no cérebro atormentado de Fleur e ela lutando contra a idéia devastadora de que tinha sido a causadora do derrame que quase levara a condessa à morte, justo uma pessoa a quem tanto amava. Finalmente, Louis falou: - Bem, o que pretende fazer? Não posso forçá-la a uma decisão, mas, se acha que não pode ficar, então é melhor voltarmos daqui, pois seria melhor mamãe não chegar a ver você. Pode acreditar, minha pequena, se resolver fazer isso eu compreendo. É só falar e eu a levo de volta ao aeroporto. Louis estava fingindo que ela tinha escolha, mas Fleur sabia que não tinha. Mesmo que não gostasse tanto da condessa, sua noção do dever não permitiria que abandonasse a velha senhora naquela hora de necessidade. Mas tinha que enfrentar Alain... Louis não podia imaginar como lhe custou dizer: - Por favor, continue em frente. Claro que vou ficar. Ao chegar ao castelo, foi direto ao quarto da condessa. O médico havia saído, mas uma enfermeira cuidava da velha, cujo corpo magro mal aparecia sob as cobertas. Fleur se aproximou e ficou assustada ao ver como ela parecia pequenina e minada, as mãos delicadas parecendo sem vida. A enfermeira fez um sinal a Fleur para que não falasse e, com o movimento, o avental engomado deu um estalido que, no silêncio do quarto, soou alto demais. Houve um movimento quase imperceptível na cama; depois, um gemido baixo, e a condessa abriu os olhos, exatamente quando Fleur se inclinava sobre ela, o rosto preocupado. Os olhos drogados se alegraram e os lábios se abriram, tentando falar, mas o esforço foi grande demais e ela voltou à inconsciência, mas com um sorriso no canto da boca. A enfermeira levou Fleur para fora do quarto e disse a ela, no corredor: - Ela a reconheceu, madame, e agora está feliz. Não acordará novamente, até que passe o efeito do sedativo. Por isso, se quer um conselho, vá se deitar por uma ou duas horas. Está me parecendo cansada - concluiu, olhando com ar profissional para o rosto esgotado de Fleur. Ela agradeceu e concordou em seguir o conselho, mas, ao voltar a seu quarto, viu que não conseguiria dormir. Tinha mais um desagradável dever a cumprir, antes de ter esperança de descansar. Lavou do rosto o resto das lágrimas e trocou de roupa, antes de descer para procurar Alain. Ele estava sozinho na biblioteca, sentado numa poltrona de couro em frente à janela, e um raio de sol

descia direto sobre sua cabeça como uma lâmina prateada. O vestido de algodão não a denunciou, quando passou pela porta entreaberta, e Fleur sentiu um peso enorme no coração ao ver Alain abrindo e fechando as mãos, imerso em pensamentos solitários. - Alain! - Apesar de ter querido falar alto o nome dele, conseguiu apenas sussurrar. Mas ele a ouviu pois, de repente, suas mãos se imobilizaram. - Alain - tremia, enquanto se aproximava dele -, sinto terrivelmente o que aconteceu! Ele se levantou, enorme perto dela. - Já esteve com ela? - Já - respondeu, meio engasgada. - Ela me reconheceu... sorriu... - E não conseguiu continuar. O ar severo se atenuou um pouco, mas não o suficiente para um sorriso. Alain deu um passo meio incerto e bateu com o pé na perna da cadeira, quase perdendo o equilíbrio. Fleur inclinou-se para ajudá-lo, mas ele se endireitou, as mãos estendidas, procurando o encosto da cadeira. Fleur ficou chocada; era a primeira vez que ele demonstrava alguma falta de segurança. Parecia despido de toda a antiga arrogância que tanto incomodava Louis, mas que para ela sempre simbolizara a independência de Alain. Não teve tempo de ficar pensando sobre a mudança ocorrida. Parecendo despreocupado, como se soubesse haver demonstrado fraqueza, disse: - Fleur, por favor, sente-se. Acho que está na hora de conversarmos sobre o nosso futuro. Ela sentiu o coração em pedaços ao ver o modo desanimado como Alain passava a mão pelos cabelos, parecendo indicar que perdera todas as batalhas. De repente, pareceu importante que ele soubesse como se arrependia da atitude que tomara. Queria dizer muita coisa, mas tudo o que conseguiu dizer por entre lábios que tremiam foi: - Sinto muito, Alain! Sinto tanto... Alan ficou pálido. - Eu também sindo muito, Fleur. Sinto por tê-la levado a um casamento que só trouxe tristezas. Cometi um erro terrível, e só sinto não ser possível voltar atrás para poupá-la de mais amarguras... O significado por trás das palavras era bastante claro e trouxe novo golpe para Fleur. Ele não precisava explicar mais nada. Não precisava falar de sua necessidade da presença de Celestine, depois dela ter testemunhado pessoalmente a intensidade do amor que sentia pela outra. Tinha que impedir que continuasse; senão, não agüentaria e se sentiria mais humilhada ainda, tendo que pedir a ele que não a mandasse embora. - Não se preocupe comigo, Alain. Vou ficar aqui mais um pouco, até que sua mãe se recupere, mas depois... - Obrigado. É muita bondade sua pensar assim, nas circunstâncias... - respondeu, grave. - Sei o que a sua presença aqui significa para ela. Por isso, não posso tentar dissuadi-la de ficar, mas... - A voz tornou-se hesitante, enquanto ele pesava com cuidado as palavras que iria dizer e que não continham nem desculpas nem remorsos. - Será que sua estada ficará mais fácil, se eu disser que pretendo me afastar por algum tempo? - Provavelmente! - E o orgulho fez com que respondesse apenas isso. Alain deu alguns passos, mas se virou de costas para ela. - Será que não tem interesse nenhum em saber para onde vou? - perguntou, furioso, de repente. Outra vez, como resposta, bastava uma palavra, e ainda bem, pois Fleur não teria forças para mais nenhuma. Tensa e sem hesitar, afirmou: - Não! - E saiu correndo da sala, como se todos os demônios mundo a perseguissem. Não precisava perguntar para onde ele ia. Celestine estava em Paris. Para onde mais Alain poderia ir? CAPÍTULO XI Fleur empurrava a cadeira de rodas da condessa pelo caminho que percorria os jardins do castelo. Estavam em outubro, e já fazia quase dois meses do derrame da velha e da deserção de Alain, que tinha sido apenas uma semana depois. Mas o sol brilhava e os campos continuavam floridos, apenas os perfumes eram diferentes: haviam mudado de rosa e jasmim para os mais fortes, de gerânio e hortelã selvagem. Fleur parou a cadeira na sombra de um grande cipreste e sentou-se num banco de jardim, em frente à velha senhora. - Está confortável, mamãe? Quer uma almofada atrás da cabeça? A condessa sorriu para o rosto

ansioso da nora e disse, com gentileza: - Pare de se preocupar, querida! Estou quase recuperada, o próprio médico me disse, e você ainda insiste em ficar me mimando como se eu fosse derreter ao sol. Insisto para que você sente aí e pare de se preocupar! As palavras eram ditas com delicadeza, mas deviam ser obedecidas. Por isso, Fleur sorriu e ficou mais à vontade, feliz porque o que a condessa dizia era verdade: a não ser pelo fato de às vezes sentir alguma tontura e se cansar com mais facilidade, havia se recuperado maravilhosamente. Durante semanas, Fleur cuidara dela, praticamente não saindo do seu lado nem de dia nem de noite, até que o médico insistira para que descansasse e se cuidasse. Fleur achara impossível seguir as ordens. A toda hora, estava de volta ao lado da condessa, adivinhando cada coisa que ela desejava, e finalmente começou a sentir-se mais aliviada da culpa que carregava ao notar que a cada dia a velha melhorava um pouco. A ausência de Alain pairava entre as duas como um ponto de interrogação. A condessa nunca perguntara os motivos que haviam levado Fleur a abandonar o castelo. Era como se quisesse apagar o incidente da mente, e Fleur achou bom, pois sabia que a velha senhora ainda não estava bastante bem para enfrentar novamente aquele assunto tão triste. Claro que um dia teria que ser discutido; mais cedo ou mais tarde, Alain precisaria esclarecer seu relacionamento com Celestine, mas a ausência dele fazia as coisas ficarem mais fáceis, e a cada dia a sogra ficava mais forte e suportaria melhor qualquer explicação, quando chegasse a hora. A velha se recostou na cadeira e olhou, pensativa, para a moça à sua frente. - Sabia que falei com Alain ontem à noite pelo telefone? - perguntou, os olhos parecendo ter a capacidade de ler pensamentos. Fleur teve um sobressalto e, sem querer, levou a mão ao rosto para tentar esconder uma onda de rubor. Sabia que Alain se mantinha constantemente em contato com a mãe pelo telefone, mas, como nunca pedira para falar com ela, o orgulho a impedira de perguntar à condessa como é que ele ia. - Não - foi a resposta abafada. - Não sabia. Como é que ele está? Devagar e com cuidado, pesando bem as palavras, a condessa contou: - Parecia muito bem. De fato, a voz dele soava com tanta confiança e com tanto vigor que eu podia jurar estar falando com o homem que ele costumava ser, o filho que eu pensei ter perdido para sempre. - Passou a mão pelo rosto, enxugando uma lágrima, como resolvida a não sucumbir à autopiedade, e falou, meio áspera: - Não quis me contar nada sobre ele mesmo. Quando insisti para que me dissesse quando ia voltar, preferiu me provocar, dizendo que queria que sua volta fosse surpresa e que traria novidades que gostaria de dar pessoalmente. É muito aborrecida essa história de Alain fazer tanto segredo - disse, franzindo a testa. - Por que será que nem me conta onde está? Por que tanto mistério? Fleur não respondeu. Era uma agonia pensar nele em Paris, junto com Celestine. Por muitas vezes, nas últimas semanas, ela acordara à noite se imaginando nos braços de Alain, ouvindo nos sonhos sua voz murmurando palavras doces e apaixonadas e sentindo por um instante a delirante felicidade que conhecera apenas naquela única noite de amor, quando o aroma das rosas entrara pela janela para acrescentar maior doçura àquelas horas preciosas. Imaginava se ele também se lembrava, se tinha sido a memória daquela noite que o fez dar ao perfume o nome de Fleur d'Amour... Mas quando a condessa falou novamente, Fleur percebeu que se agarrava a uma esperança vã, sonhava sonhos impossíveis: - Ele parecia muito alegre - disse a sogra -, confiante e cheio de vigor. Se Celestine tinha conseguido uma transformação tão grande, merecia ser congratulada. Nem mesmo a condessa, com sua prevenção contra a moça, poderia deixar de aprovar uma mulher que conseguira devolver-lhe o filho, e também não poderia deixar de aprovar uma ligação entre os dois, uma vez que Alain confirmasse precisar de Celestine a seu lado para ser feliz. Levantou-se depressa, sofrendo com tais pensamentos e

procurando controlar as lágrimas, enquanto animava a velha senhora: - Tenho certeza de que Alain não vai deixá-la em suspense durante muito tempo, mamãe. Mas, enquanto isso, é melhor se acalmar. Pense como ele ficaria aborrecido se chegasse e a encontrasse doente e sem poder ouvir as novidades! Olhe, descanse um pouco. - E ajeitou a almofada. Sentou-se ao lado da cadeira por uns dez minutos, até ter certeza de que a outra adormecera. Depois, foi voltando devagar pelo caminho até seu lugar favorito, de onde se avistava grande parte das plantações de flores e dos campos ao redor. O terreno descia em declive daquele ponto e depois se elevava na distância, em lençóis vermelhos, manchados aqui e ali de cor-de-rosa. A enorme quantidade de gerânios exalava um perfume tão forte que chegava a embotar os sentidos. Foi ali que Louis a encontrou, uma meia hora mais tarde, e ela demorou alguns segundos para tomar consciência da presença dele, em pé a seu lado, olhando-a. O rosto de Fleur se acendeu num sorriso de boas-vindas. - Ora, Louis, como é que apareceu a esta hora? Ainda hoje cedo, mamãe estava comentando como o vemos pouco. De repente, você parece ter se transformado num negociante de sucesso! Louis continuou sério, sem rir da brincadeira de Fleur. Sentou-se ao lado dela e disse, grave: - Fleur, preciso falar com você. Fleur arregalou os olhos, apavorada, e virou-se para olhar em direção à cadeira de rodas, mas ele sacudiu a cabeça, calmo. - Ela está muito bem. Passei agora por lá e estava dormindo profundamente. Fleur relaxou e perguntou: - Então o que é? O que temos para conversar que faz você ficar assim tão sério? Agora que a oportunidade aparecera, ele parecia ter dificuldades em encontrar palavras. Ela esperou, com paciência, até que Louis conseguisse coordenar os pensamentos. Mas assustou-se quando ele perguntou, inesperadamente: - Está tudo acabado entre você e Alain? O mar de gerânios não era mais vermelho que seu rosto, ao responder, num sussurro: - Louis, não tem o direito de perguntar isso. A resposta fez com que ele perdesse o controle. Com uma raiva súbita, virou-se para ela. - Mas eu tenho esse direito, Fleur. Ninguém mais tem tanto direito! Há semanas venho notando você morrer aos poucos por dentro, enquanto espera por uma palavra, um sinal de vida do marido que, por negligenciá-la tanto, não tem mais direito nenhum! A cada dia seus olhos ficam mais tristes, seu rostinho lindo mais abatido, e você é agora apenas uma pequena sombra que ronda pelo castelo, cheia de remorsos e com a alma tão deprimida que não repara no amor que não consigo mais esconder. Fleur, eu a amo! - Agarrou-a pelos ombro sacudindo-a, como para forçá-la a entender. - Venha comigo agora... hoje... e juro que passarei a vida toda compensando você pelo tratamento diabólico que recebeu de Alain! Mas quando se debruçou, com a intenção de beijar-lhe os lábios trêmulos, ela o empurrou com toda a força e ele teve que largá-la. - Como pôde fazer isso, Louis? - disse, ofegante. - Como é que pôde trair a minha amizade e também o sentimento de família? Será que não se incomoda com os sentimentos de mamãe? Sei que você e Alain não se dão bem, mas ele não fez nada para merecer essa traição de sua parte. Louis, eu sou a esposa de Alain! Você pode se esquecer desse fato, e até ele também pode, mas eu... nunca! Quando a voz dela se perdeu num soluço, Louis baixou os ombros, derrotado. Durante algum tempo, houve apenas o silêncio. Depois, hesitante, ele continuou: - Fleur, eu tentei lutar contra isso. Não sou tão sem consciência assim que ache fácil roubar a esposa de um homem cego. Se Alain pudesse ver, eu não teria tanto escrúpulo como tive, nas últimas semanas, quando tentei evitar me apaixonar por você. Mas ele não merece essa consideração! Ele a abandonou, deixando-a sozinha para tratar de mamãe, e foi embora, cuidar de seus interesses, sem ligar para nenhuma das duas. Como é que pode defendê-lo? Não é possível que ainda sinta alguma coisa por ele! - Será que tenho que odiar Alain, só

porque não consegue me amar? - A maioria das mulheres que conheço faria exatamente isso! - respondeu, furioso. - Então, não é de admirar que você seja tão desiludido, Louis. - Meu Deus! Eu devia saber que não podia esperar que me amasse. Alain tem ainda mais sorte do que eu imaginava. - Enfiou as mãos nos bolsos e chutou uma pedrinha imaginária. - Acho que agora não me resta outra alternativa, além de abandonar o castelo... - Não, Louis, você não pode fazer isso! E mamãe? Como é que pode pensar em ir embora, quando a saúde dela ainda é tão precária? Precisa ficar, por amor a ela e por causa da indústria. Quem é que vai tomar decisões, se tanto você quanto Alain forem embora? - Alain! Alain! Será que não pára de pensar nele? - Abriu os braços num gesto de zanga, espantado com o fato de ela ainda se preocupar tanto com o homem responsável por sua tristeza. Estava tão furioso, que Fleur se sentiu obrigada a explicar em que ponto estavam suas relações com Alain. Perfeitamente controlada, falou: - Sou eu quem vai deixar o castelo. Quando Alain voltar, vai trazer Celestine junto... para sempre. Louis encarou-a, boquiaberto. - Não pode ser verdade! Tem certeza? - Sim, tenho certeza. - Ao ver um lampejo de esperança nos olhos do rapaz, teve que desiludi-lo. - Mas isso não faz diferença no que sinto por você, Louis. - Engoliu em seco. Quando voltou a falar, a voz saiu apenas num fio: - Nunca amarei ninguém, a não ser Alain... Nunca... Levou a mão ao medalhão que trazia no pescoço e Louis percebeu que ela pensava no que ali estava escrito e que servia exatamente para ela e Alain: "Juntos, mas sempre separados". Estavam ligados pelos votos do casamento, mas apenas por isso. A coragem de Fleur fez com que ele se sentisse covarde e envergonhado. Não era um malandro, mas durante anos se acostumara a conseguir tudo o que desejava, fosse o que fosse, custasse o que custasse. Acabou ficando vermelho e, pela primeira vez, se viu exatamente como ela devia vê-lo, e o quadro não era dos mais agradáveis. Além disso, não estava gostando da sensação de ficar envergonhado, e isso se refletiu em sua voz quando, por fim, chegou a uma decisão. - Muito bem, vou ficar, mas apenas porque me pediu. O bom Deus sabe que não dou para mártir, mas, se acha que minha presença ajudará, não posso ir embora. - Virou-se e foi saindo, as costas rígidas, mas logo adiante hesitou e voltou-se para ela. - Fleur? - O que é, Louis? - Ela quase chorava. - Sinto muito se o que eu disse a magoou. Será que me perdoa? Fleur compreendeu que aquela era a maneira de ele dizer que o assunto estava encerrado e que nunca mais falaria naquilo, e seu coração generoso aceitou as desculpas. O sorriso que deu ao rapaz era como o sol brilhando depois da tempestade. - Sua amizade será sempre muito importante para mim, Louis, e por nada eu gostaria de perdê-la. Não há o que perdoar. Naquela noite, Fleur demorou para se arrumar para o jantar. O dia estivera cheio demais de preocupações e de emoções. Ao abrir o guarda-roupa, seus olhos se dirigiram instintivamente para um sóbrio vestido de seda leve, cinza, com gola branca, que parecia combinar exatamente com o modo como se sentia. O tecido fino se movia silenciosamente a cada passo que dava, e depois voltava a se acomodar. Escovou os cabelos até que brilhassem, mas estava tão desanimada que os deixou soltos mesmo. Em algum lugar lá embaixo, estava havendo uma atividade fora do comum. A porta de um carro bateu duas vezes, vozes ecoaram no hall e depois passos começaram a subir a escadaria, passos firmes e ansiosos que demonstravam a impaciência da pessoa de chegar logo onde queria. Quando os passos pararam do lado de fora, no corredor, ela ficou tensa e com a boca de repente seca, olhando para a porta do quarto, querendo que a pessoa que estivesse do lado de fora batesse de uma vez, para acabar com sua ansiedade. Completamente imóvel ela aguardava. E deu um suspiro ao ver a alta figura de Alain entrando no quarto. Encarou-o, como que hipnotizada, enquanto se dirigia para ela. Alain estava de óculos escuros, mas

através das lentes seus olhos se fixavam em Fleur com uma enorme intensidade. Sem saber por quê, ela ficou rubra e sentiu o coração disparar, quando ele parou tão junto dela que podiam se tocar. - Alain, você voltou... - conseguiu murmurar, quebrando o silêncio. - Olá, Fleur. A condessa tinha razão: ele estava mudado. Apesar da palidez, logicamente devido a sua estada em Paris, Alain tinha uma vitalidade tão grande, uma aura de excitação tão marcante, que Fleur deu um passo atrás, confusa. - Está contente em me ver? Era uma pergunta estranha. Ele parecia um gato brincando com um ratinho, e ela ficou ressentida com o modo como Alain aparentemente se divertia às suas custas. Que estava extremamente feliz, disso não havia dúvida, mas precisava jogar aquela felicidade em seu rosto? Provavelmente, Celestine estava lá embaixo, esperando por ele, pronta para discutir um modo de se livrarem de uma esposa, uma esposa desconhecida e não desejada. O pensamento, por mais desagradável que fosse, fez com que Fleur erguesse o queixo, com orgulho. Ele estava todo confiante, certo de que ela não tinha a menor idéia de onde andara nas últimas semanas, e chegara a hora de esclarecê-lo. Com ar despreocupado, perguntou: - E como é que estava Paris? Esperava que ele ficasse chocado, mas o que viu em seu rosto mais parecia espanto. Levantando uma sobrancelha, ele repetiu: - Paris? Fleur sentia que os nervos de sua garganta quase a sufocavam. Por fim, desabafou: - Eu estou sabendo que você passou as últimas semanas com Celestine em Paris! Por favor, não tente negar! Você uma vez me disse - e mordeu o lábio para impedir que tremesse - que esperava sempre a verdade de mim. Será que não tenho o direito de esperar o mesmo de você? Podia jurar que o espanto no rosto dele era genuíno. De repente, Fleur sentiu-se confusa com a intensidade do olhar do marido e seu silêncio. Deu um passo atrás, fugindo daqueles olhos que, apesar de cegos, pareciam penetrar no fundo de sua alma, e ficou atônita quando Alain estendeu a mão e agarrou-lhe o pulso. - Fleur, você gosta muito de tirar conclusões precipitadas, não é mesmo? Não estive em Paris, nem tive mais nenhum contato com Celestine, desde o dia em que ela saiu do castelo! Fleur sentiu que o coração queria saltar-lhe do peito. - Sinto muito... - gaguejou - mas acho que tirei conclusões precipitadas... Mas isso tem importância? Sei que está apaixonado por Celestine... eu a vi em seu quarto... escutei o que você disse a ela... O tremor em sua voz acabou por se transformar num soluço e ela virou o rosto. - E, no dia seguinte, você fugiu de mim! - disse Alain, mas com tanta delicadeza que os olhos de Fleur se ergueram para o rosto dele, espantados. Alain soltou o pulso dela e foi sentar-se num sofazinho perto da janela. - Venha sentar-se aqui, perto de mim. Fleur não queria obedecer, mas acabou fazendo o que ele mandava quando Alain insistiu: - Venha, Fleur! Quero você aqui. Ia sentar-se na outra ponta, mas ficou desconcertada porque Alain a pegou pelo braço e obrigou-a a sentar-se bem perto. Estremeceu ao toque dele. Alain continuou segurando-lhe a mão e começou a falar: - Como você parece tão convencida do meu amor por Celestine, vou precisar dividir com você um segredo conhecido só por mim e por ela. Sua voz parecia vazia de qualquer sentimento e nada indicava o que estava por vir, mas Fleur sabia, pela seriedade de seu rosto, que as palavras o faziam, sofrer. - Foi Celestine quem causou minha cegueira. Fleur teve um espasmo de horror, mas conseguiu controlar o grito que quase lhe saiu dos lábios e esperou, agoniada, que ele acabasse de falar. - Nós estávamos noivos, um noivado quase sem querer, como às vezes acontece com jovens que crescem juntos e cujas famílias esperam por isso. No começo, eu não me incomodava com o mau gênio dela, que havia sido uma criança mimada, uma criança cuja palavra era lei para o pai indulgente. Mas quando meu interesse pelos negócios cresceu, comecei a achar cada vez menos graça em dançar conforme sua música, e as cenas que

acabavam sempre acontecendo me abriram os olhos. Resolvi terminar o noivado. Apertou a mão de Fleur com mais força, mas ela estava tão interessada que nem se incomodou, e ele continuou, a expressão severa: - O acidente aconteceu no dia em que eu lhe comuniquei a minha decisão. Estávamos juntos no laboratório. Eu já havia terminado o serviço do dia e começava a lavar os utensílios que usara. Talvez eu tenha tido culpa também, estava distraído, escolhendo as palavras apropriadas para dizer a ela o que havia resolvido, e devo ter derramado mais ácido do que o necessário. Mas isso não vem ao caso. - Deu de ombros. - Celestine perdeu a cabeça. Jogou um objeto em cima de mim e ele caiu dentro da vasilha que eu tinha nas mãos, espirrando o ácido em meus olhos. Durante longo tempo, houve silêncio, enquanto ele revivia os terríveis momentos. Ao perceber o tremor que sacudia o corpo de Alain, Fleur teve certeza de que nunca mais suspeitaria de que amasse Celestine. Sentia a garganta tão apertada de vergonha e de compaixão que quase não conseguiu falar. - Oh, como é que ela pôde fazer isso, Alain? Como? Alain estremeceu e deixou de lado as terríveis recordações. Passou o braço pela cintura de Fleur e puxou-a para perto do coração. - Não a condene demais, Fleur - sussurrou, contra o rosto rubro dela. - Tenho para com ela uma enorme dívida de gratidão que nunca poderei pagar. - Gratidão? Como é que pode falar em gratidão com relação a Celestine? Fleur estava imóvel, o rosto contra o peito de Alain, que arfava cada vez mais depressa. Tinha medo de levantar os olhos e não encontrar a mensagem por que seu coração tanto ansiava. Alain levantou-lhe o queixo, enquanto dizia: - Na noite do jantar... na noite em que você me viu com Celestine, Fleur, eu imaginei que ela fosse você... - A reação dela às suas palavras parecia muito importante para ele, pois a apertou mais nos braços, enquanto aguardava uma reação. - Eu? Mas como... - gaguejou, o coração disparando ao começar a entender. - Quando entrei no quarto, escutei um ruído de tafetá, um ruído que eu sempre associava a você, às roupas que usava. E também senti no ar o perfume que eu criara especialmente para você e que julgava que ninguém mais possuía. Por isso, naturalmente... - Pensou que fosse eu que o estivesse abraçando... - acrescentou Fleur, incrédula. Em poucos segundos, a cena voltou-lhe à memória: a batida leve em sua porta, a réstia de luz provavelmente deixada de propósito por Celestine, que devia estar esperando no banheiro pela entrada de Alain no quarto. Como havia conseguido enganá-los tão bem? - Fleur! A voz de Alain a trouxe de volta, e Fleur notou a urgência no tom, como se falar só não bastasse! Uma onda de excitação percorreu-lhe o corpo, ao se lembrar das palavras que ele tinha dito naquela noite: "Minha querida, como desejei ter você novamente em meus braços...". Alain procurava se controlar, esperando que ela compreendesse, antes de continuar: - Existe mais alguma coisa que eu deva explicar? Mais alguma, além das que foram causadas pelo meu humor diabólico e pelo frustrante desejo que tinha de ver minha esposa, cuja doçura uma vez me levara às portas do céu? Meu Deus! - disse baixinho, os lábios de leve nos dela. - Se existe, vai ter que esperar. Eu me recuso a esperar um minuto mais que seja! E a beijou. Fleur sentiu uma onda de calor e de desejo percorrer seu corpo e correspondeu inteiramente às carícias de Alain. Durante um longo tempo, ficaram assim. Quando ele se afastou, foi apenas para segurá-la a uma certa distância e olhar para o rosto corado e feliz de Fleur, dizendo baixinho: - Fleur, meu anjo, eu te adoro! - Depois, com um sorriso maroto, continuou: - Achei que Louis tinha exagerado ao descrever sua beleza, mas ele não disse tudo, meu amor. Você é, na verdade, a coisa mais linda que já vi! Fleur ficou completamente imóvel, assimilando as últimas palavras. Então, levantou a cabeça, atônita, e fitou os óculos escuros que protegiam os olhos de Alain. Ele os tirou e ela ficou estonteada pela vivacidade daqueles

olhos escuros. Começou a sentir uma imensa alegria e não conseguia nem balbuciar a pergunta tão necessária. Entendendo perfeitamente, Alain sorriu e fez que sim com a cabeça, como prova de que podia ler os olhos da esposa. - Sim, Fleur, posso ver você! E é essa a razão da minha dívida para com Celestine. Naquela noite, quando ela veio ao meu quarto, só ficou o suficiente para ouvir a verdade sobre ela mesma. Mas resolvi que nenhum outro corpo me abraçaria e nenhuma outra boca me beijaria, sem ser você. Foi por isso que, assim que vi mamãe fora de perigo, decidi voltar ao hospital. Por isso, se você quiser, minha querida, posso lhe dar uma prova de que não estive em Paris! - disse, provocando. Fleur não conseguiu responder à brincadeira. O choque tinha sido tão intenso, que precisava de tempo para se recompor. Mas Alain não tinha tempo a perder e ela apenas pôde perguntar: - Alain, é verdade mesmo? Sua resposta foi tomá-la novamente nos braços e beijá-la com paixão, provando, sem sombra de dúvida, que os sonhos podem se tornar realidade. As carícias de Alain demonstravam a profundidade de sua adoração e ajudaram a cicatrizar as feridas que Fleur tinha no coração. Mas uma pequenina parte de seu ser ainda estremecia, magoada, uma parcela de reserva ainda permanecia no fundo de sua mente. Alain percebeu e murmurou, enquanto beijava seu pescoço: - Diga que me ama, Fleur. Quero escutar você dizendo... - Eu sempre o amei, Alain. - Sempre? Segurou-a à distância e procurou a verdade em seus olhos. Fleur estava imensamente feliz por ele ter recuperado a visão, mas isso tornava mais difícil esconder-lhe alguma coisa, e por esse motivo nem tentou. Engolindo o medo de que a resposta dele pudesse ferir mais do que a própria dúvida, perguntou: - Você acreditou mesmo... no começo... que eu tinha casado com você por dinheiro? Fechou os olhos, esperando a resposta, que foi dada solenemente e sem reservas: - Nunca, minha pequena, eu juro! Eu mesmo quis me enganar, mas apenas porque estava procurando uma desculpa para desabafar a minha humilhação em você. Eu a tratei mal, mas não posso me arrepender do que fiz naquela noite. Vim para você cheio de ódio e amargura e saí com amor e paz no coração. - Então... já me amava? Era um grito do coração, o eco de uma mágoa tão enorme que Alain se encolheu ao reconhecer a agonia que causara nela. Fleur levantou os olhos, a tempo de ver o tormento do remorso luzindo nos olhos escuros e apaixonados. - Sim - respondeu ele, com dificuldade. - Eu amava você naquela ocasião, assim como a amarei sempre, meu anjo. Eu tinha ciúme de Louis e estava desesperado por não poder ver nunca mais, mas nada podia se igualar à loucura que senti, quando pensei ter perdido você! Seus lábios cobriram os dela com o fervor da paixão e, no abraço apertado, a fina corrente que segurava o medalhão se abriu e caiu ao chão, ficando ali, jogada, e apenas duas palavras eram agora importantes: Unis, toujours... Unidos sempre!