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Formas, estados e processos da cultura na atualidade. Prof. Dr. Martin Grossmann Fernanda de Jesus Ligeiro Braga Psicologia NºUSP 8534167 A alteridade no mundo moderno A industrialização e a urbanização transformam a morfologia e o funcionamento da cidade, obrigando que os indivíduos se movimentem cada vez mais pelo espaço, encurtando o espaço/tempo. Essa movimentação desenfreada produz cada vez mais “não-lugares”- novos espaços que se formaram a partir da sociedade moderna e permitem que façamos “mais coisas em menos tempo”. Conforme Marc Augé, transforma-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz verdadeiramente parte. Nesse sentido, todas estas realidades modificam a nossa relação com a paisagem, fazendo com que os espaços “antigos”, marcados por uma relação com a história individual e coletiva, tornem-se pontos desconexos na grande malha da rede, que essa sim, marca o nosso comportamento cotidiano. Esse tipo de apropriação, ainda conforme Augé, visa certos fins que são mediados por certas relações sociais; a interação entre essas duas instâncias traz a noção de “contratualidade solitária” e não relações de sociabilidade como o são os lugares antropológicos, os quais privilegiam as dimensões identitárias, históricas e relacionais (Augé, 2006). O espaço geográfico é dinamicamente modificado pela sociedade de acordo com seus interesses, assim, a sociedade é um reflexo do seu espaço, na mesma medida em que o espaço é um reflexo da sua sociedade (Moreira, 2011). Para Santos

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Formas, estados e processos da cultura na atualidade.

Prof. Dr. Martin Grossmann

Fernanda de Jesus Ligeiro Braga

Psicologia

NºUSP 8534167

A alteridade no mundo moderno

A industrialização e a urbanização transformam a morfologia e o funcionamento da cidade, obrigando que os indivíduos se movimentem cada vez mais pelo espaço, encurtando o espaço/tempo. Essa movimentação desenfreada produz cada vez mais “não-lugares”- novos espaços que se formaram a partir da sociedade moderna e permitem que façamos “mais coisas em menos tempo”. Conforme Marc Augé, transforma-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz verdadeiramente parte.

Nesse sentido, todas estas realidades modificam a nossa relação com a paisagem, fazendo com que os espaços “antigos”, marcados por uma relação com a história individual e coletiva, tornem-se pontos desconexos na grande malha da rede, que essa sim, marca o nosso comportamento cotidiano. Esse tipo de apropriação, ainda conforme Augé, visa certos fins que são mediados por certas relações sociais; a interação entre essas duas instâncias traz a noção de “contratualidade solitária” e não relações de sociabilidade como o são os lugares antropológicos, os quais privilegiam as dimensões identitárias, históricas e relacionais (Augé, 2006).

O espaço geográfico é dinamicamente modificado pela sociedade de acordo com seus interesses, assim, a sociedade é um reflexo do seu espaço, na mesma medida em que o espaço é um reflexo da sua sociedade (Moreira, 2011). Para Santos (1996), o espaço “é um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.

Consoante a isso, podemos pensar no filme Medianeras (2011). A construção do filme ressalta os efeitos da arquitetura moderna, assim como da estruturação urbana nas relações interpessoais, questão ilustrada pelas personagens Martín e Mariana. Todavia, afirmar apenas que, em analogia com o homem moderno de um modo geral, essas personagens teriam dificuldade de integrar-se ao mundo por viverem em apartamentos minúsculos e sufocantes, em espaços que primam à individualização e a hierarquia é insuficiente. Uma vez que, em El hombre del al lado (2009), mesmo Leonardo possuindo uma casa puramente modernista, ampla, com vidros enormes, os quais teoricamente permitiriam uma maior interação entre o interior e o exterior, a abertura à

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comunicação não ocorre. Isto é, esse encaixotamento individual já está tão incutido no imaginário do homem moderno que o espaço em si não é mais suficiente para reagrupar essa realidade fragmentada. “Esse modernismo busca a violenta destruição de todos os nossos valores e se preocupa muito pouco em reconstruir o mundo que põe abaixo” (Berman, 2007). Assim, a síndrome do loop, como descreve Nicolau Sevcenko (2012), afeta-nos de forma absurda, diminuindo a importância da crítica em nossa sociedade e, por conseguinte, havendo a perda não só da identidade, mas principalmente da capacidade de reflexão sobre si mesma, cujo resultado é uma aplicação descomedida de técnicas.

A experiência de realidade é irredutível a si mesmo, é um fenômeno social que envolve campos de determinação para além do indivíduo. Essa experiência constrói-se no tempo-espaço- antes, durante e depois da existência do indivíduo. “Nossas construções e realizações mais criativas estão fadadas a se transformar em prisões e sepulcros criados; para que a vida possa continuar, nós ou nossos filhos teremos de escapar delas ou então transformá-las” (Berman, 2007). Portanto, ser moderno, segundo Marshall Berman, é uma experiência tanto pessoal quanto social. Isto é, o mundo e o eu convivem em constante desintegração, contradição, reconstrução, ressignificação, etc. “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

A modernidade trouxe implicações no âmbito da comunicação interpessoal, da divisão do espaço, da constituição e composição da individualidade, da relação entre indivíduo-sociedade. A facilidade, devido à tecnologia, de executar determinadas funções do cotidiano, de locomoção, de comunicação à distância, foi primordial para o desenvolvimento da cultura e dos próprios sujeitos nos últimos séculos. No entanto, essas novas aptidões acabaram por dificultar e comprometer processos básicos e primordiais da interação no espaço físico, bem como semiológico do eu-outro. Sair na porta de casa e falar com seu vizinho, cumprimentar alguém no elevador ou na padaria, ter uma refeição em família parece se tornarem desafios recorrentes, os quais comprometem o sistema de socialização humano.

O filme Her (2013) ilustra de uma forma fictícia esse efeito contemporâneo, uma vez que Theodore, o protagonista, após o término de seu casamento recorre a um sistema operacional (inteligência artificial) para de certo modo preencher essa lacuna deixada por sua ex-mulher. Embora ainda mantenha amizades no “mundo físico”, envolve-se de fato com seu computador, reputando a tecnologia não como ferramenta para sua ação cotidiana, mas sim como uma espécie de corporeidade, estabelecendo uma relação de dependência.

Em contraponto, surgem questões acerca desse paradigma: o que seria de verdade? Seria impossível manter uma relação verdadeira sem a proximidade corporal? Será que todo aquele nosso ideal criado, mantido e ostentado em perfis e avatares na internet, não serve de nada se não for traduzido fielmente no mundo real? Se a resposta for negativa, um amor concreto e duradouro como aquele visto em cena seria impraticável.

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Esta relação também pode ser material para produção de subjetividades, entretanto partir para um plano virtual nesse caso ainda gera muitas dúvidas e contradições. Mas, afinal, não é disso que se alimenta a modernidade?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGÉ, M. (2006), Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade.

Lisboa, Editora 90.º.

BERMAN, Marshall. Introdução: Modernidade – Ontem, Hoje e Amanhã. In: Tudo o

que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia de

Bolso, 2007. P. 09 – 49.

EL HOMBRE DE AL LADO. Direção de Mariano Cohn, Gastón Duprat, Argentina,

2009. (Título no Brasil: O Homem ao Lado)

HER. Direção de Spike Jonze, EUA, 2013. (Título no Brasil: Ela).

MEDIANERAS: Buenos Aires da Era do Amor Virtual (Medianeras). Direção e

Roteiro por Gustavo Taretto. Buenos Aires, 2011

MOREIRA, Ruy. Sociedade e Espaço Geográfico no Brasil. Constituição e problemas

da relação. São Paulo, Editora Contexto, 2011.

SANTOS, Milton. [1996]. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção.

4. Ed 7ª reimpr. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

SEVCENKO, Nicolau. “Introdução”. In: A corrida para o século XXI: no loop da

montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.