WEBER, F. Praticas Economicas e Formas Ordinarias de Calculo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

antropologia

Citation preview

  • O interesse pelos raciocnios nativos uma das principais caractersticasdo mtodo etnogrfico: compreender o que fazem as pessoas observadas, tambm, compreender o que elas crem fazer, mesmo se esta primeiraetapa no suficiente. Essa exigncia etnogrfica (restituir as categoriasdo pensamento nativo), ainda que vastamente resultado do interesse dosdurkheimianos pela lngua e pelas classificaes1, recorta a definio we-beriana de uma sociologia que se interessa ao mesmo tempo pelo quepensam os atores, pelo que eles fazem e pelo que eles so.

    seguramente ilusrio acreditar que esses raciocnios nativos2 sosempre explcitos, sempre formulados em um discurso coerente, sempreconscientes. Uma parte expressiva de nossos raciocnios so automticose infraconscientes, e encarna-se mais em objetos e em procedimentos doque em exposies. Isto tanto mais verdadeiro quando nos aproximamosda vida cotidiana, da administrao ordinria dos problemas de todos osdias, no universo profissional como no universo domstico, onde vigora oque Pierre Bourdieu chamou de o senso prtico. Esses automatismosnos so, alis, necessrios para efetuar o grande nmero de tarefas, indis-sociavelmente materiais e intelectuais, que nos esperam a cada dia. Al-guns atos, ao contrrio, raros e solenes, so objeto de longas deliberaes.Mesmo ento, preciso confrontar os princpios de justificao desses atoscom as ferramentas cognitivas que enquadram, a despeito mesmo de seuautor, o raciocnio empregado.

    Seria portanto absurdo pensar que, ao despertar, cada um de ns efe-tua um clculo explcito para o conjunto das microdecises que tomaremosao longo de todo o dia. Seria completamente absurdo tambm crer que oscomportamentos humanos se inscrevem todos nos mesmos quadros de pen-samento e de ao restitudos, mais ou menos conscientemente, peloobservador com suas capacidades limitadas de imaginao. Os economis-tas evidenciam etnocentrismo ou anacronismo quando utilizam seu mo-

    PRTICAS ECONMICAS E FORMASORDINRIAS DE CLCULO*

    Florence Weber

    MANA 8(2):151-182, 2002

  • delo de maximizao da utilidade sob limites sem dispor dos meios paraobservar a utilidade procurada pelo ator e os limites percebidos peloator, e sem se questionar sobre a inadequao entre o indivduo tericode seu modelo e os indivduos sociais tomados em seu pertencimento mu-tvel a entidades coletivas. O melhor antdoto para esse etnocentrismo daracionalidade econmica (quer dizer, da racionalidade epistmica dos eco-nomistas) consiste em tentar reconstituir os raciocnios nativos, ou racio-nalidades prticas3, empregues nos comportamentos observados. Em par-ticular, para retomar uma sugesto de Max Weber (2000) sobre a gnesede uma personalidade unificada, mostrarei que os raciocnios nativosdiferem de uma cena social para outra, e utilizarei as prticas de mensu-rao, anotao, ordenamento e contabilidade como ndices da existnciade cenas sociais distintas. Com efeito, contra as hipteses da unidade daspersonalidades individuais (unicidade e estabilidade das preferncias deum indivduo dado ex ante, da parte da teoria econmica; permannciado habitus individual de um indivduo construdo por uma socializaoprimria todo-poderosa, da parte da teoria sociolgica), adotaremos a hi-ptese que os indivduos dispem de uma pluralidade de sistemas de re-ferncia4 e agem em vrias cenas sociais em que as regras de comporta-mento, os objetivos procurados, os limites percebidos, as racionalidadesprticas, so distintos. A ateno s prticas de medida e de contabilidadepermitir compreender como os indivduos obtm xito em articular es-sas diferentes cenas sociais.

    Em um primeiro momento, mostrarei que a diversidade das unidadesde medida, evidenciada ao longo de uma pesquisa sobre horticultura ama-dora, revela as diferenas de estatuto entre vrios tipos de objeto, por umlado, e entre vrios tipos de atividade, por outro, em funo do enquadra-mento, jurdico e material, das prticas domsticas. Em um segundo mo-mento, analisarei o papel do recurso escrita nas transaes monetriasno comerciais, comparando-as com as transaes comerciais sem anota-o. Enfim, recordarei que existe uma racionalidade prtica de adminis-trao do oramento nas classes populares, apesar da ausncia de prti-cas explcitas de medida e de contabilidade. Minha proposta aqui me-nos dar conta de uma pesquisa unificada e acabada do que oferecer, apartir de alguns exemplos etnogrficos, pistas de reflexo sobre os racio-cnios nativos, suas ferramentas comuns e sua diversidade5.

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO152

  • O que revelam as prticas de medida

    O ponto de partida de minhas questes sobre as unidades nativas de me-dida reside em uma pesquisa por questionrio postal, conduzida em 1990,junto a um milhar de horticultores amadores espalhados por toda a Fran-a (sobretudo no Norte e no Oeste). O objetivo dessa investigao era re-colher dados precisos sobre as prticas da horticultura para compreendera que racionalidade prtica elas obedeciam6. A hiptese de um clculoeconmico efetuado pelo horticultor e referido aos custos efetivos e aoscustos evitados levou-me a colocar questes a respeito da superfcie dashortas cultivadas, das despesas permitidas em consumos intermedirios,da avaliao da quantidade das colheitas e dos lucros in natura (produ-tos alimentares, flores cortadas) obtidos pelos horticultores. A idia eracalcular, a partir desses dados, a rentabilidade econmica dessas prti-cas, para saber que horticultores plantavam para economizar dinheiro eque horticultores plantavam por um outro motivo.

    Pesquisas semelhantes, com o mesmo objetivo, j haviam sido condu-zidas: as monografias da escola de Le Play esforaram-se, a partir de 1850,para medir a economia domstica nas famlias operrias e, nesse qua-dro, em avaliar os bens produzidos pelas famlias; as pesquisas regularesdo Institut Nacional de la Statistique et des tudes conomiques (INSEE)sobre consumo alimentar conferem, desde 1950, um lugar ao autoconsu-mo; uma pesquisa pontual do INSEE, em 1988, sobre a produo domsti-ca consagra uma parte horticultura; mltiplas pesquisas, mais ou menosrigorosas, conduzidas por promotores da horticultura amadora, buscamavaliar, em porcentagem de autoconsumo ou em equivalente monetrio,os lucros in natura obtidos pela horta.

    O clculo cientfico dos lucros e dos custos no monetrios

    A seriedade e a importncia das avaliaes monetrias dos produtosde horticultura variam ao longo do sculo XX. No comeo deste, as dife-rentes leis de proteo social dos indigentes, que deixam a tarefa s pre-feituras e a seus gabinetes de caridade, reservam um lugar importante aosrecursos no monetrios dos pobres. Alguns gabinetes lhes concedem umahorta em lugar de uma subveno, pois levam em conta os produtos dessahorta na avaliao de seus recursos. Aps um longo eclipse, interrompi-do somente pelas duas guerras mundiais, durante as quais a questo dasvantagens in natura proporcionadas pelas hortas encontra uma reatuali-zao, no momento do estabelecimento do Revenue Minimum dInsertion

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 153

  • (RMI)*, nos anos 90, que essas avaliaes encontram o peso que haviamperdido ao longo dos Trinta Gloriosos**. Com efeito, tratou-se, por umbreve momento, de desfalcar do montante do RMI o equivalente monet-rio dos produtos da horta.

    Alm de abandonarem a questo social e as polticas sociais encar-regadas de responder a esta (ver Castel 1995), as discusses em torno des-sas avaliaes monetrias fazem sentido em relao lenta desapariodas vantagens in natura oferecidas, como complemento do salrio mo-netrio, a algumas profisses ou a algumas categorias da populao (al-bergue e alimentao das domsticas, alojamento de porteiros, diversosalojamentos funcionais, dirias nas empresas ou na funo pblica).

    Uma grande inovao nos clculos dos ganhos e despesas no mone-trios efetuados no plano individual pelos economistas ou pelos juristas(em caso de conflito trabalhista ou familiar, por exemplo), foi a tomada emconta do tempo de trabalho no remunerado. Na Frana, essa inovaoocorreu, de incio, na agricultura, quando em 1939 o direito de famlia re-conhece, no momento da sucesso, que a criana que trabalha sob a ex-plorao de seus pais sem outra contrapartida seno casa e comida temdireito a uma compensao em relao a seus irmos e irms que se tor-naram assalariados. Esta compensao, paga sob a forma de uma partemais significativa na herana, contabilizada como manque a gagner[ausncia de ganho] em contraste com um salrio, que os juristas decidemnomear salrio diferido, cujo montante fixado sob a forma de indeni-zao (Barthez 1982; Bessire 2001). O fenmeno segue confinado agri-cultura at os anos 90 (Monteillet-Geoffroy 2001), quando o princpio dosalrio diferido estendido, sob condies, da agricultura ao artesanato,ao comrcio e s profisses liberais e aos filhos de casais dos profissionaisconcernidos.

    Paralelamente a essa tmida profissionalizao do trabalho exercidono quadro de empresas familiares, a partir dos anos 80, a questo do valormonetrio do tempo de trabalho no profissional colocada por alguns eco-nomistas a propsito do trabalho domstico feminino (ver o artigo pionei-ro de Chadeau e Fouquet 1981, ou ainda Chabaud-Rychter, Fougeyrollas-Schwebel e Sonthonnaux 1985). Nesse interregno, a questo do valor mo-netrio do tempo exterior ao do trabalho aparece no campo da economia

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO154

    * Estabelecimento de uma renda mnima para os sem renda, associado preferncia de inclusono mercado de trabalho. [N.T.]

    ** Perodo de crescimento econmico entre o fim da Segunda Grande Guerra e 1975. [N.T.]

  • terica sob a forma do custo de oportunidade termo utilizado peloseconomistas para avaliar o custo individual do tempo passado em ativida-des sem remunerao (lazer, sono etc.), ou ausncia de ganhos.

    Todas essas avaliaes tm em comum no levar em considerao osraciocnios nativos, quando, na verdade, as vantagens em espcie (moasque trabalham sem salrio, alojamentos) so to claramente percebidaspelos interessados quanto se fossem contratos de trabalho escritos, enquan-to as avaliaes dos ganhos e dos custos no monetrios repousam sobreclculos efetuados por cientistas (economistas ou socilogos) a partir dequestionrios. A pesquisa que realizei em 1990 junto a 1.000 horticultoresamadores inscrevia-se nessa lgica. Mas, contrariamente s anteriormen-te citadas, tratava-se de uma pesquisa amplamente artesanal, em que asformulaes restringiam pouco as respostas dos pesquisados. Em particu-lar, eu no fixara por antecipao as unidades de medida das diversasquantidades inquiridas, quer se tratasse da superfcie das terras ou dos pro-dutos recolhidos. Ao mesmo tempo, essa enquete permitiu iluminar a di-versidade dos sistemas de medida utilizados pelos respondentes: diversi-dade segundo o meio social, mas sobretudo diversidade no prprio interiorde cada resposta, segundo o objeto medido. Se a variabilidade entre as res-postas individuais podia corresponder a diferenas nas competncias es-colares dos indivduos interrogados, a variabilidade presente no interiorde cada resposta individual abria novas perspectivas.

    Diversidade das unidades de medida nativas

    Primeiro resultado importante: a superfcie do terreno disponvel (pro-priedade ou locao) conhecida com grande preciso em mais de 80%das respostas. O sistema de medio utilizado o are e o hectare (maispara os pesquisados rurais ou de origem rural), ou ento o metro quadrado(para a maioria). As respostas so dadas em metros quadrados inteiros e ospesquisados, na ocasio, consultaram seus ttulos de propriedade ou seuscontratos. Ao contrrio, a superfcie cultive en legumes [cultivada comvegetais] dada na proporo do terreno descrito na primeira pergunta.Quando o cientista, para efetuar seus clculos (de produtividade, por exem-plo), converte desatentamente em metros quadrados essa poro planta-da da horta, ele desconsidera o fato importante que esta operao extre-mamente simples no efetuada pelo horticultor. Por que os pesquisadosno efetuam tal clculo? porque as duas questes (superfcie do terrenodisponvel e superfcie da horta cultivada) remetem a dois universos dife-rentes. No primeiro caso, a superfcie do terreno remete ao universo jurdi-

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 155

  • co da propriedade e da locao; no segundo, a superfcie da horta remeteao universo domstico do cultivo, externo a toda obrigao profissional.Ter-se-ia podido refinar a anlise, levando em conta as restries residen-ciais (regulamentos de co-propriedade, por exemplo, nos loteamentos) ouassociativas (regulamentos das hortas familiares), que podem pesar so-bre o cultivo dos terrenos. Essas restries so geralmente formuladas pro-porcionalmente ao terreno disponvel.

    Duas observaes etnogrficas vm precisar este primeiro resultado.Se a unidade de medida utilizada no universo jurdico est inscrita nos t-tulos de propriedade a que se referem os pesquisados, as modalidadesprticas de medida dos terrenos cultivados no podem ser descobertassem se recorrer observao direta. Quando de uma pesquisa efetuadanos anos 90 em Nantes7, em uma zona de hortas de operrios sem enqua-dramento associativo nem jurdico, a etngrafa observou a partilha dos ter-renos disponveis (espcie de terreno baldio) pelos primeiros horticulto-res instalados. Um deles, imigrado de origem portuguesa, delimitava a par-cela que desejava cultivar utilizando seus olhos e seus passos. Media agrandes passos, calculando instantaneamente a superfcie de que tinha ne-cessidade para alimentar seus quatro filhos com batatas durante um ano.Clculo impreciso, claro, ou antes de uma preciso suficiente para o usofuturo, mas que supe uma srie de conhecimentos prticos no acess-veis ao recm-chegado: nmero de ps de batatas a plantar em uma su-perfcie dada, quilos de batatas colhidas por p plantado, quilos de bata-tas consumidas por ano pela famlia

    No universo do campesinato e em outro contexto econmico, uma te-se etnogrfica efetuada no Nordeste do Brasil, nos anos 90 (Abreu 1993),descreve em detalhe os efeitos dessas competncias prticas, detidas peloscamponeses, sobre o fraco desempenho escolar de seus filhos. Os peque-nos plantadores cultivam a cana-de-acar e necessitam avaliar a superf-cie de suas diferentes parcelas para pagar os trabalhadores e para vendersua produo s usinas. Porque as parcelas no tm forma regular, eles efe-tuam essa avaliao recorrendo, ao mesmo tempo, ao clculo mental (pa-ra as somas) e ao clculo escrito (para as multiplicaes), utilizando os ar-redondamentos e cortando as formas irregulares em quadrados e em tri-ngulos. Esta tcnica complexa, mas eficaz para calcular uma superfcie,concorre, no momento da escolarizao de seus filhos, com os ensinamen-tos de clculo e de geometria e , ao menos em parte, responsvel pelomau desempenho escolar destes ltimos.

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO156

  • Coexistncia e articulao de diferentes

    sistemas de medio e de clculo

    Nos dois casos nos encontramos em presena de operaes cogniti-vas adaptadas s necessidades prticas, e as tcnicas de medio ou declculo no devem nada ao sistema formal sobre o qual repousa a compe-tncia dos tcnicos: interveno de agrimensores, existncia de um cadas-tro, passagem para o sistema mtrico. Ao contrrio, o sistema formal reas-sume toda a sua importncia no universo da agricultura profissional, quan-do, por exemplo, alguns subsdios so concedidos em funo do modo decultura das parcelas preciso, portanto, medir com preciso. No setrata de opor um universo jurdico e formal, que seria exterior s prticas,a um universo espontneo, informal e incorporado que ocuparia todo oespao das prticas. Muito pelo contrrio, as pesquisas evocadas aqui mos-tram a coexistncia e a articulao de vrios quadros de referncia distin-tos. Os ttulos de propriedade (mas em outros casos, os subsdios ou os re-gulamentos residenciais) levam os horticultores ao uso de uma medidaoficial que se apia no sistema mtrico utilizado por profissionais da men-surao (os agrimensores, por exemplo). O quadro profissional e comercial(pagar trabalhadores por hectares, vender uma produo) obriga os cam-poneses do Nordeste a um clculo prtico cuja preciso est adaptada aseu uso. O quadro domstico (cultivar batatas suficientes para o consumofamiliar anual) leva o portugus de Nantes a um outro clculo prtico,que no passa pela intermediao de uma medida da superfcie, mas queavalia diretamente a produo final da parcela considerada.

    A pluralidade de sistemas de medida e de clculo adaptados a usosdiferentes no significa que eles sejam incompatveis nem que a conver-so seja impossvel. Ao contrrio, observa-se, quando a situao impe,uma articulao entre os sistemas ou o recurso a sistemas alternativos. Domesmo modo que o bilingismo no leva confuso mental nem verbal8,a coexistncia de vrias unidades de contagem possvel, como o mostra,na Frana, a manuteno dos antigos francos nas classes populares quan-do se trata de montantes excepcionais ou, nas classes dirigentes, da capa-cidade de manejar os quilofrancos* paralelamente aos francos correntesda vida cotidiana. ltimo exemplo, a adaptao rpida dos profissionais auma nova moeda, o euro, em janeiro de 2002, permite apreender a incor-porao rotineira das operaes mentais. O breve momento de hesitao

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 157

    * Valor correspondente a mil francos. [N.T.]

  • dos caixas no momento da passagem do franco ao euro mostra a coexis-tncia de dois modos de dar o troco. A modalidade intelectual do clcu-lo, a das calculadoras e das caixas registradoras, opera uma subtrao: so-ma recebida menos soma devida. A prpria operadora opera a subtra-o ou fixa sua ateno no resultado desta subtrao, indicado pela cai-xa. A modalidade manual do clculo, muito mais rpida, uma vez apre-endida, opera uma soma: soma devida mais moedas devolvidas at omontante da nota dada pelo cliente (que, efetuando a mesma operaomental, facilitou o troco para facilitar a soma). A caixa conta ento asmoedas com as mos, sem passar pelo montante total da soma que devedevolver. Durante alguns dias, a chegada das moedas com valores nofamiliares desestabilizou totalmente essa modalidade manual do clculo,que repousa na identificao automtica das moedas ordenadas nos com-partimentos do caixa, e que evita ao operador todo esforo mental. As cai-xas foram ento obrigadas a contar ao contrrio de seus hbitos, se re-meter modalidade intelectual do clculo e a passar pela subtrao paradevolver uma soma intelectualmente conhecida, mas no percebida auto-maticamente. O retorno modalidade manual demorou, ao menos para osprofissionais, apenas alguns dias.

    Medidas domsticas: utenslios de estocagem, percepo do tempo

    Segundo resultado da pesquisa junto aos horticultores amadores: asquantidades de legumes estocados (em conservas ou congelados) so co-nhecidas graas aos recipientes utilizados para a estocagem. Sobre a ques-to das quantidades colhidas dos produtos, para a qual eu omitira a pre-ciso de uma unidade de medida (quilos ou litros), as respostas so dadasem vidros de conservas, por um lado, em partes do congelador, poroutro. Na ocasio, alguns horticultores precisaram o volume dos vidrosutilizados (vidros de um litro, de meio litro), ou o volume do congelador(dado assim em litros). Uma vez mais, a operao de converso de sim-ples efetuao: a metade de um congelador de tantos litros; tantos vidrosde um litro e tantos vidros de meio litro. Mas, ainda a, significativo queela no seja efetuada espontaneamente pelos pesquisados. Obtm-se as-sim uma idia da medida prtica efetuada pelos horticultores ou pelascozinheiras, inteiramente dependente dos utenslios. Ferramentas cogni-tivas e utenslios materiais esto fortemente ligados. No h necessidadede passar pelo sistema oficial para saber quanto se pode fazer de con-servas ou de congelamentos. mesmo provvel que o lugar da estocagemdisponvel condicione inteiramente no apenas a percepo das quantida-

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO158

  • des estocadas, mas a prpria prtica da estocagem: horticultores e cozi-nheiras conservam tantos legumes quanto so capazes de armazenar nasprateleiras ou no congelador; o resto, doam ou consomem imediatamente.

    Nessas condies, pode-se perguntar o que significam as medidasefetuadas pelos pesquisadores em suas pesquisas sobre a produodomstica. Porque estas medidas so efetuadas em quilogramas, unida-de mtrica divisvel, a elas faltam as unidades prticas que revelam algica da produo domstica. Bastaria conhecer o sistema de estoca-gem utilizado por cada horticultor para compreender sua lgica de pro-duo. A adaptao da prtica cotidiana aos objetos que o enquadram ,sem dvida, suscetvel a modificaes: mudana de congelador em fun-o das modificaes de tamanho da famlia, por exemplo, decises decultivo da horta em funo do espao de estocagem. Mas os objetos e osespaos so dotados de uma forte permanncia, que explica o essencialdas atividades da rotina cotidiana. Efeitos de limite e coerncia do sis-tema prtico no qual a jardinagem tem lugar: a medida mtrica, cont-nua e divisvel vontade, no restitui esses dados fundamentais da prti-ca. Assim, um dos horticultores inquiridos me devolve seu questionrioriscado com um trao irado: sua esposa morreu, ele planta somente flo-res. Como um clculo objetivo de rentabilidade poderia dar conta de umadeciso desta natureza, quando tudo revolucionado de um s golpe?

    Terceiro e ltimo resultado: alguns indivduos se recusaram simples-mente a responder questo sobre o tempo gasto na horta. Desta vez, pre-vi a unidade de medida do tempo: perguntei por um nmero de horas porsemana na boa estao e na m estao. A maior parte dos horticultoresdobrou-se de bom grado consigna, comentando s vezes sua resposta:isso depende depende do clima, das necessidades da horta e das dis-ponibilidades do horticultor. Mas algumas respostas foram radicais: euno conto. A horta, ao contrrio do tempo profissional, escapa ao relgio.Como ento aceitar avaliar, mesmo grosseiramente, o que justamentedeve todo o seu preo a essa ausncia de avaliao? Essa recusa de con-tar seu tempo no acarreta simplesmente um incmodo tcnico para hi-potticos clculos de rentabilidade, como uma suspeita da legitimidade doempreendimento. Ela inscreve de modo extremamente ntido a medidahorria do tempo no campo do trabalho assalariado, e particularmente dotrabalho submetido marcao de ponto. No se deve esquecer aqui osbelos desenvolvimentos de E. P. Thompson (1979) sobre o tempo indus-trial, nem os de P. Bourdieu sobre o tempo dos camponeses e o dos prole-trios (Bourdieu e Sayad 1964; Bourdieu et alii 1964). Os trabalhos maisrecentes de M. Bruegel mostram a dimenso ostentatria do recurso ao

    PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 159

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO160

    relgio nos meios burgueses da Nova Inglaterra no sculo XIX. Aqui adimenso liberadora da ausncia de medida do tempo que avanada,de modo alis clssico nas culturas populares do sculo XX.

    Alm dessas recusas, de resto minoritrias, pode-se reter uma ques-to importante que as pesquisas Emprego do Tempo do INSEE e as dife-rentes pesquisas sobre o tempo de trabalho evidenciavam igualmente.Uma vez que a norma do trabalho assalariado se impe progressivamentenos empregos no assalariados (por exemplo, o tempo de trabalho na agri-cultura [Barthez 1986]), o uso no profissional do tempo suscetvel dedois tipos diferentes de clculo: um clculo por subtrao (o tempo queresta para tal atividade), um clculo por soma (o tempo que necessriopara tal atividade). As diferenas entre estes dois modos de avaliao po-dem ser considerveis, como mostram as pesquisas sobre o tempo de tra-balho domstico das mulheres, caso tenham ou no um emprego. As pri-meiras subtraem seu tempo de trabalho e seu tempo de sono das 24 horasdo dia para avaliar seu tempo domstico: o que resta. As segundas somamos tempos que dedicam s suas diversas atividades. Uma vez mais, aarticulao entre os diferentes universos que est em jogo: articulao en-tre o universo profissional e o universo domstico, para as mulheres assa-lariadas; articulao entre vrios universos domsticos, para as outras (aju-da na escolaridade das crianas, arrumao, cozinha, tempo das ativida-des no profissionais fora do domiclio).

    claro, o recurso objetividade aparente da medio (tempo do re-lgio, comprimento da rgua, peso da balana, superfcie do gemetra)permite efetuar clculos liberados dos limites dos raciocnios nativos. Mas,de que vale uma medida cientfica para explicar comportamentos seela no utilizada, ou seja, percebida, pelas pessoas concernidas? O ana-cronismo faz imediatamente o historiador sorrir. Para o observador dassociedades contemporneas, menos sensvel talvez dimenso etnocn-trica de suas operaes, bom lembrar que, no universo em que o rel-gio, a balana e o cadastro so onipresentes, seu uso no se impe unifor-memente em todos os domnios da prtica nem, como veremos em segui-da, em todos os universos de relaes sociais, em todas as cenas sociais.Alm disso, o recurso s tcnicas de medida se faz acompanhar, por ve-zes, de conflitos em torno da legitimidade da medida ou da pertinncia dasferramentas9. Esquec-lo, ceder a uma viso anglica das relaes so-ciais e das relaes entre cincia (trata-se das cincias sociais) e sociedade.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 161

    O que revela a anotao das transaes

    A pesquisa sobre os horticultores amadores mostra que a utilizao deuma unidade de medio (metros quadrados ou poro da horta; quilogra-mas, potes ou poro do congelador; horas de relgio ou tempo necess-rio para tal atividade) depende do contexto de referncia da prtica (ttulode propriedade ou produo domstica, balano do comerciante ou atelida cozinheira, mquina de ponto profissional ou horas ao sol). Sustentadopor objetos materiais em que so cristalizadas relaes sociais10, esse con-texto de referncia remete a uma cena social na qual fazem sentido asprticas e as interaes.

    Para precisar o conceito de cena social, examinarei agora as transa-es, comerciais ou domsticas, vagamente separadas do fluxo das inte-raes cotidianas por instituies oficiais como a Bolsa, os bancos, o direi-to comercial e de negcios, o fisco, ou pelos mltiplos profissionais que en-quadram, sem serem forosamente visveis, as atividades econmicas le-gais. Essas transaes marginais, sob todos os pontos de vista, devem suasignificao somente a objetos e a gestos imediatamente observveis aolongo da interao. O etngrafo pode ento descobrir a olho nu o que se-para duas interaes sucessivas entre os mesmos parceiros, e mesmo com-preender como a mesma interao pode assumir simultaneamente vriassignificaes distintas para um ou para outro dos parceiros (risco do mal-entendido) ou para os dois (coexistncia de vrias interpretaes). Essesobjetos e esses gestos determinam o significado da interao, fixam o sen-tido do acontecimento em curso. Por isso, eu os considero como os qua-dros rituais dessa interao ou desse acontecimento. Com efeito, sabe-sedesde Bateson e Austin que o ritual, assim como a lngua, tem uma dupladimenso, performativa e significativa, e que as regras rituais, como as re-gras de um jogo, separam no a ao boa da ao m (o que fazem as re-gras morais), mas a ao vlida, graas qual o jogo pode continuar, daao fora de jogo, que no tem sentido e muito simplesmente no podeter lugar, que interrompe o jogo e desqualifica o jogador. Para retomar oexemplo do naven estudado por Bateson (1971[1936])11, cada um dos par-ticipantes sabe que, adotando tal comportamento, se faz o naven e que, fo-ra dos comportamentos ritualmente prescritos (o que no diz nada sobre ovalor moral), o ator deixa de fazer o naven para fazer outra coisa. Do mes-mo modo, ao longo das interaes que acabamos de examinar, alguns ges-tos e alguns objetos significam, sem dvida alguma, que o que est emvia de acontecer um contrato comercial, uma aposta ou um presente, umgesto afetuoso ou uma prestao de servio. Ao contrrio, algumas intera-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO162

    es so suscetveis de vrias interpretaes: se essa pluralidade de inter-pretaes percebida por cada um dos atores, diremos que a interao sesitua na interseo de vrias cenas sociais; se os parceiros no partilhamo conjunto dessas significaes, diremos que h mal-entendido e risco deconflito ulterior.

    Comearemos a examinar as operaes comerciais que resultam, semnenhuma dvida, da cena comercial, mas que tm lugar margem dasinstituies oficiais: elas revelam a importncia dos rituais que isolam atransao de seu contexto imediato e permitem-lhe inscrever-se em umasrie de transaes anlogas. Sugeriremos que, comumente, esse papel desempenhado pela anotao das transaes comerciais nas listas ou nosregistros: ela tem uma dimenso ritual tanto quanto uma dimenso cogni-tiva. Alm do fato de permitir fazer contas, adicionar perdas e ganhos porexemplo (dimenso cognitiva), uma tal inscrio fixa o sentido da transa-o sem contestao possvel (dimenso significativa) porque ela reagrupatodas as transaes de mesma natureza e as isola de seu contexto espa-o-temporal (dimenso performativa). Depois observamos transaes queensejam sua inscrio ainda que elas no se efetuem em um quadro ofi-cial. Sugeriremos ento que, tambm a, a anotao das transaes, por-que as reagrupa e as isola de seu contexto, inscreve-as em uma cena so-cial separada, o que permite aos parceiros conduzir suas relaes em dife-rentes cenas.

    Os quadros rituais da transao comercial

    Estamos to habituados ao enquadramento jurdico e institucionaldas transaes comerciais que esquecemos tudo o que um contrato co-mercial ou um ato de compra e venda mobiliza como atividade adminis-trativa e profissional, sem contar a complexidade dos meios de pagamen-tos ordinrios. preciso ter tentado, como simples particular, ultrapassara cadeia de intermediaes comerciais para adquirir um bem diretamentejunto unidade de produo para ter idia da complexidade das cadeiascomerciais invisveis que separam o produtor industrial do consumidor fi-nal12. Alguns meios profissionais funcionam, contudo, sem essa cadeia deinteraes entre comprador e vendedor. Sua observao etnogrfica revelaento, sob uma forma anedtica ou pitoresca, a existncia de uma formaritual obrigatria para selar uma transao. O interesse dessas pesquisasetnogrficas reside no estranhamento que elas nos proporcionam: longedas garantias jurdicas oferecidas pelos contratos e pelo direito comercial,que se fazem acompanhar de provas escritas e de assinaturas, elas nos le-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 163

    vam ao universo em que a palavra dada e o pertencimento ao grupo sosuficientes.

    A pesquisa de Alain Tarrius (1995) no bairro de Belsunce, em Marse-lha, mostra a existncia de um meio de negcios argelino muito ativo nosanos 90. Um personagem dotado de grande autoridade consuetudinria,fora de qualquer jurisdio legal, serve ali de testemunha para todas astransaes comerciais importantes. Esta garantia da palavra dada se cercade um cerimonial especfico; ela permite evitar todo recurso escrita. Suaautoridade est intimamente ligada existncia de um meio de interco-nhecimento muito extenso onde a informao circula rapidamente. Todafalta ao contrato feito oralmente diante desse tabelio consuetudinrio sancionada muito simplesmente pela excluso do meio. Tal sistema noimpede a circulao de somas considerveis e uma atividade comercialcomplexa, ligada notadamente importao/exportao entre o Magre-be e a Frana, que envolve profissionais e no-particulares.

    A pesquisa de Herv Sciardet no Mercado das Pulgas de Saint-Ouentrata tambm de um meio profissional margem das instituies, mas querepousa menos no interconhecimento pessoal do que na capacidade dedecifrar os ndices do estatuto das pessoas, garantindo o estatuto dos ob-jetos. Assim, segundo a hora do dia, os lugares da transao e a atitude ouo comportamento das pessoas, o especialista em objetos de segunda mosaber se est negociando com um marchand e com um objeto de valor,com um marginal e com um objeto de origem incerta ou com um antiqu-rio e com um objeto falsificado. Tal sistema de signos continua opaco parao leigo, mas oferece oportunidades de embuste e de lucro aos profissionais.As transaes ali obedecem a formas mnimas de ritualizao, invisveispara o observador desavisado, mas suficientes como signos de reconheci-mento entre profissionais. o quadro da interao que d sua significa-o transao, quadro ao qual o comportamento dos parceiros se adap-ta. Assim, a transao comercial, segundo a terminologia nativa (pode-ramos traduzir o termo, que designa a posio mais alta na hierarquia doscompradores, pelo de profissional), acontece ao amanhecer, vasculhan-do-se nos porta-malas dos carros vindos durante a noite de um centroprovincial de antiguidades, e consiste na troca de um objeto acabado desair de sua embalagem original por uma certa quantidade de cheques os-tensivamente retirados de um talo. A ritualizao da transao consisteaqui na unidade de tempo (amanhecer) e do lugar (a calada) e no car-ter espetacular dos objetos: o objeto vendido conserva o trao de seu uni-verso de origem; o talo de cheques permite medir de um golpe de vista aimportncia, indissociavelmente financeira e social, de quem o manipula.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO164

    Trata-se mesmo, em todos os sentidos da palavra, de uma encenao, querdizer, da inscrio da interao em um cenrio que lhe d sentido13.

    Anotao das dvidas e dos crditos

    A anlise etnogrfica dos rituais, a seu modo espetaculares, efetua-dos sem nenhum recurso notao escrita nem ao sistema administrativoe jurdico que enquadra habitualmente as transaes comerciais, mostracomo, na ausncia desses suportes, uma transao inscreve-se em umasrie aos olhos de seus diferentes protagonistas. Tal anlise revela ao mes-mo tempo o papel desempenhado pelos suportes habituais nessa definioda transao comercial. Abordaremos agora as transaes no mais entreprofissionais (como nos casos estudados por A. Tarrius e H. Sciardet) masentre particulares. O quadro oficial faz sempre falta e o risco de mal-en-tendidos muito mais presente do que nas transaes entre profissionais.Nos perguntamos como os particulares engajados nas transaes obtmxito em fixar sua interpretao, mesmo quando so tomados em numero-sas interaes de vrios tipos: a interseo das cenas sociais aqui o casomais freqente. Avanaremos a hiptese de que a escrita desempenha en-to um papel fundamental para fixar o sentido das transaes: ela isola astransaes escrituradas do curso ordinrio das coisas e as constitui emsries autnomas.

    Comearei por relatar uma observao isolada. Quando de uma pes-quisa conduzida, em torno de 1990, junto a famlias inadimplentes, ro-tuladas como tais pelos organismos de crdito e pelos bancos e designa-das como alvos de uma poltica de ajuda especfica, iniciamos com umcolega uma entrevista clssica mesa da sala e diante do gravador. Ha-vamos abordado com o casal entrevistado toda a gama de seus diversoscrditos, na moradia e no consumo, a administrao de seu oramento,suas trajetrias profissionais e residenciais. Depois, no sei como, a jovemmulher nos conduziu ao quarto de dormir para falar-nos de um emprsti-mo suplementar, desconhecido dos bancos, junto a um de seus parentes.O emprstimo estava escrito a giz no interior da porta do armrio. Cadareembolso parcial dava lugar a um trao e anotao da dvida restante.

    Nenhuma dvida de que se poderia descobrir no universo das rela-es familiares anotaes desse gnero em grande nmero. Trata-se, nes-te caso, de transaes duplamente especficas: elas ocorrem entre particu-lares e no so objeto de nenhum contrato, no assumem nenhuma formaoficial. So, portanto, distintas do fluxo das interaes ordinrias que li-gam um credor e um devedor quando estes so tambm parentes. O car-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 165

    ter no oficial da transao explica a forma no habitual da anotao: nocaso evocado, a dvida inscrita a giz, em uma porta interior do armrio,um pouco como o crdito inscrito sobre ardsia entre os pequenos comer-ciantes. a necessidade de isolar a transao, de constituir em seqnciasignificativa o emprstimo e a srie de seus reembolsos parciais, que expli-ca a prpria existncia de tais anotaes. A operao cognitiva (uma somade dinheiro de onde se subtrai os reembolsos efetuados gradativamente)torna-se possvel pela escrita em sua dimenso performativa: reconheci-mento de dvida, quitao. possvel que o trao no corresponda a umpagamento efetivo, mas deciso, por um motivo ou outro, de anular advida. A anotao fixa a significao dessas transferncias de dinheiroque, sem ela, poderiam tambm ser presentes, adiantamentos da heran-a, pagamentos de servios, reembolsos de taxas etc.14.

    Compras em grupo, redes de relaes

    Uma vez assinalada a existncia de tais anotaes e descoberta suasignificao, fcil identificar prticas anlogas. O exame das anotaesdomsticas contemporneas constitui um campo de pesquisas ainda pou-co explorado15, marcado pela abundncia e heterogeneidade das prticas,desde a manuteno de uma agenda, de um repertrio de endereos, atos mltiplos cadernos consagrados aos lazeres ou aos acontecimentos fa-miliares (Fine, Labro e Lorquin 1993), ao arquivamento de correspondn-cia e manuteno de contas ou relaes com os administradores. Toma-remos o exemplo das anotaes referentes a compras em grupo na qual atransao monetria um pretexto para o estabelecimento de uma redede relaes. Trata-se de uma tabela fotocopiada indicando encomendas deovos (nas colunas os nomes dos clientes, nas linhas a semana em ques-to, nas casas a quantidade de ovos encomendados e pagos) que foi des-coberta por acaso na casa do senhor e senhora Bricq, um casal de aposen-tados pertencente elite local dos operrios qualificados da fbrica Val-lourec, em Montbard. A esposa de origem local e tem vrios primos agri-cultores; o marido foi trabalhar na fbrica no momento em que esta recru-tava largamente no exterior seus operrios qualificados, nos anos 60. Atrajetria social do casal marcada por tentativas frustradas de sair daclasse operria para uma profisso independente (posto de gasolina, res-taurante), por uma vontade de acesso propriedade e pelo investimentoeducativo em seus filhos (um tornou-se advogado comercial, o outro som-melier e depois professor de ensino tcnico). A proximidade social com omeio dos pequenos empresrios (restauradores, agricultores) marcada

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO166

    por uma forte valorizao das competncias comerciais, que encontra umarealizao parcial na organizao de redes de compras de produtos ali-mentares16: vinhos prestigiosos comprados diretamente dos produtores,descobertos pelo filho sommelier que agrupa as encomendas de mais deuma dezena de casas; carne comprada do produtor, tambm para diversasfamlias. Nesse amlgama de compras em grupo (a senhora Bricq tambmfez parte de um grupo Tupperware), uma prtica suficientemente roti-neira para dar lugar ao estabelecimento de um quadro mensal: a com-pra de ovos de um grande produtor local que abastece os supermercadosda regio. So ovos muito grandes para serem escoados no comrcio; oprodutor vende-os diretamente a particulares. A senhora Bricq organizaas compras semanais de uma dezena de vizinhos e conhecidos graas aoquadro onde ela anota, semanalmente, semana aps semana, a quanti-dade encomendada por cada um.

    Trata-se, ento, de verdadeiras transaes comerciais nas quais a se-nhora Bricq serve simplesmente de intermediria desinteressada. A tabe-la tem um uso tcnico evidente: ela permite evitar os erros de encomendae rotinizar a prtica. Argumentaria igualmente que ela serve de quadrosemicomercial que permite isolar o ato de comprar ovos da srie de rela-es mltiplas que unem a senhora Bricq a cada um de seus parceiros: aexistncia da tabela delimita uma cena social particular, de limites estrei-tos, na qual cada transao ovos contra pagamento monetrio ganhasentido. Ela resume a posio de intermediria gratuita da senhora Bricq,que efetua uma operao duplamente benevolente: presta servios a seusvizinhos, para quem proporciona ovos muito grandes por uma quantiamdica, assim como ao produtor, a quem oferece uma possibilidade infor-mal de escoamento de produtos no padronizados. Para ela, a srie des-sas transaes constitui um pretexto para manter um feixe de boas rela-es e para utilizar competncias comerciais sem perspectiva profissio-nal. Ela camufla, portanto, um presente (dom de tempo e de organizao)que lhe permite afirmar suas qualidades sob a aparncia de uma transa-o comercial (compra e venda) e s isola esta cena social microscpicapara melhor combin-la com a das relaes de vizinhana. Os dois par-ceiros da transao comercial tornam-se assim seus obrigados. Nenhumaambigidade subsiste quanto aos pagamentos em dinheiro (trata-se mes-mo do pagamento dos ovos) nem quanto transferncia dos ovos (elesno so um presente). A ausncia de ambigidade permite que a sobre-posio de cenas sociais (todos esses clientes so amigos) jogue posi-tivamente com o estatuto da senhora Bricq, pondo-a em posio aceit-vel de intermediria competente e devotada.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 167

    Uma caderneta de horas de trabalho domstico

    Poderamos encontrar muitos outros exemplos dessas prticas decompras em grupo, freqentemente organizadas gratuitamente no uni-verso profissional. Todas as vezes, as anotaes das transaes tm umadupla funo: tcnica de organizao, de natureza cognitiva, permitemfazer rapidamente as contas e as encomendas; tcnica de separao, queisola a transao de seu contexto interpessoal, tm uma dimenso ritualem que conferem sua significao ao ato transcrito e impedem que o flu-xo contnuo de interaes pessoais seja afetado pela venda de um produtocontra o pagamento monetrio. Tomarei um ltimo exemplo para pr emevidncia a dupla funo, cognitiva e ritual, de tais anotaes e, sobretu-do, o modo como essas prticas domsticas permitem superpor sem mistu-ra dois tipos de relaes diferentes, quer dizer, articular uma relao pes-soal e uma transao comercial.

    Trata-se de uma caderneta na qual a senhora Fvrier anota as horasde trabalho domstico feito por ela em uma residncia secundria. A se-nhora Fvrier casada com um operrio especializado da Vallourec, em-pregado tambm nos anos 60, de origem parisiense. Ela filha de agri-cultores, antes horticultores em Paris, que se mudaram para assumir umagrande fazenda no Chtillonnais. Alguns de seus irmos so empresrios(agricultores ou transportadores), alguns de seus cunhados so funcion-rios. Na gerao de seus filhos, encontramos um tipo de elite operria: tc-nico em calefao, secretria, funcionrio do Service National des Che-mins de Fer (SNCF), garagista, operrio de fbrica, vendedora. A senhoraFvrier nunca trabalhou na fbrica, tendo se dedicado educao de seusquatro filhos e trabalhado de diarista. Ela trabalhou vinte anos na resi-dncia secundria de um professor parisiense e depois na da nica filhadele. Foi paga com salrio mensal durante um perodo e, aps a morte desua primeira patroa, passou a ser paga por hora de trabalho na casa ou nojardim. Foi ela quem estabeleceu o sistema de caderneta. Na ausnciade qualquer controle (ela tem as chaves e os parisienses freqentementeno esto), esta caderneta que regula a relao de trabalho: ela anotasuas horas ms aps ms, com a indicao do dia em questo e os gastosou os acontecimentos que dizem respeito casa. Ela paga todos os me-ses e o pagamento igualmente anotado na caderneta.

    Contrariamente s aparncias, no se trata apenas de uma tcnica deorganizao. Como nos casos precedentes, talvez ainda mais, a cadernetade contas isola a relao de trabalho de seu contexto, retendo apenas oselementos ligados ao pagamento (salrio ou reembolso), alm de permi-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO168

    tir patroa e diarista manter, simultaneamente, uma relao de traba-lho, transparente graas caderneta, e uma relao amigvel, sustentadapor trocas de presentes, de convites recprocos, passeios ou sadas em co-mum, cujos diversos elementos nunca so mencionados na caderneta.Considerada pela patroa simplesmente como um instrumento cmodo deadministrao da casa, a caderneta objeto de uma ligao sentimentalda parte da empregada para quem ela representa as horas trabalhadas (in-vestidas de um certo orgulho profissional) e uma fonte de ganhos no negli-genciveis dado o oramento familiar muito baixo (uma pr-aposentado-ria de operrio especializado).

    Espero ter mostrado, nesses poucos exemplos, a dupla funo, cog-nitiva e ritual, da anotao de transaes. Partindo da existncia nos uni-versos profissionais de rituais no escritos que efetuam a transao (di-menso performativa) e lhe do sentido (dimenso significativa), mostreiem seguida, nos universos domsticos, como a inscrio de vrias transa-es permite constituir sries, isolar a transao de seu contexto interpes-soal e, finalmente, articular sem confuso vrios tipos de relaes diferen-tes: relao comercial, relao de trabalho, relao de crdito com as re-laes pessoais, de parentesco, de vizinhana, de amizade. Vimos o papeldas anotaes nos raciocnios nativos elas classificam as transaes emcategorias to estanques quanto possvel , onde as unidades de medi-da servem apenas de ndices para demarcar diversas categorias nativasde percepo dos objetos e das atividades e as prticas de anotar transa-es mostram a operao de classificao em ato.

    Um ascetismo prtico sem anotao nem medida

    Retornemos, brevemente, para finalizar com os comportamentos que pa-recem corresponder, primeira vista, ao modelo proposto pela microeco-nomia do consumidor na verso mais simples (maximizar sua utilidadesob forte limitao oramentria), mesmo quando as tcnicas de adminis-trao domstica utilizadas no recorram nem escrita nem contabili-dade. O consumidor racional pode recorrer a tcnicas de autocontroleque no devem nada operao de uma competncia escritural ou cont-vel. O clculo econmico pode no ser um clculo explcito mas, mui-to simplesmente, um modo de vida que repousa sobre formas de ascetismoincorporadas: as racionalidades prticas no se oferecem sempre obser-vao sob a forma de raciocnios explcitos, listas de anotaes ou ativi-dades medidas, mas podem permanecer automticas ou inconscientes.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 169

    Tomarei dois exemplos nas classes populares francesas, antes de suadesestabilizao nos anos 8017. Trata-se de famlias estveis, em que omarido operrio qualificado ou baixo funcionrio e a esposa faz apenastrabalhos complementares, que educaram os filhos dispondo de ganhosreduzidos porm regulares. Esta forte limitao oramentria levou-os adesenvolver prticas eficazes de autocontrole, tanto mais eficazes quantomais interiorizadas, automatizadas: no h necessidade de pensar nelas.

    Os dois exemplos formam um contraponto s anlises propostas porBernard Lahire (1993) sobre os usos populares da escrita prtica. A partirde uma pesquisa com operrios homens e serventes mulheres de escolasmaternais, ele descobriu que as mulheres utilizam mais freqentemente aescrita que os homens e interpretou uma srie de prticas heterogneas(listas de compras, controle de contas, formas de dirio ntimo) como ins-trumentos de autocontrole. Os dois casos que evoquei acima assinalam aexistncia de formas eficazes de autocontrole sem nenhum recurso escri-ta. Dissociar ascetismo oramentrio e escrita prtica uma operao ain-da mais clara desde que Jean-Pierre Albert (1993) mostrou a que ponto osusos mais intensivos da escrita prtica podem ser separados de todo cuidadooramentrio e remeter a uma definio de si mais expressiva que eficaz18.Ele encontrou pessoas cujas casas eram repletas de etiquetas, bilhetes,enfeites com palavras, cujo papel era exprimir a personalidade do morador(ativo, ordenado, metdico, sistemtico) mais do que tornar sua atividademais eficaz. Encontramos em muitos outros casos uma encenao da ati-vidade que desloca o interesse, do resultado da ao, para a prpria ao19.

    Um ascetismo incorporado

    Voltemos ao caso da senhora Bricq, evocado acima por ocasio da ta-bela de venda de ovos a seus vizinhos. Vimos ento que ela dominava astcnicas da escrita prtica para atingir um objetivo complexo: imitando acompetncia comercial, prestava servios a seus vizinhos e a seu fornece-dor sem, contudo, dar a eles outro presente que a sua atividade organiza-dora, por intermdio da qual ela afirmava suas qualidades. As caracters-ticas sociais de sua famlia explicam, alis, que ela tenha desenvolvidoformas de ascetismo incorporado na relao com os objetos. Ela adquiriucomportamentos fortemente automatizados que evitam o recurso ao cl-culo numrico, aplicando uma forma muito eficaz de clculo econmico(no sentido de minimizao dos gastos). Assim, ela nunca d descarga nobanheiro sem pedir a seu marido para ir depois dela para usar apenasuma quantidade de gua para os dois. Tal comportamento tornou-se com-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO170

    pletamente rotineiro, a ponto de ela continuar a t-lo fora de sua casa,quando ela no paga a gua: observei-o de passagem em um abrigo ruralalugado por amigos onde a gua economizada favoreceria o proprietrioque ela no conhecia e que no tinha conscincia disso. Pode-se conside-rar, desse ponto de vista, que a senhora Bricq um exemplo de persona-lidade unificada no sentido de Max Weber, cujos princpios, adquiridos aolongo de sua biografia, no so recolocados em causa nem interrogadosem cada ocasio. Entretanto, esses princpios, prximos da filosofia dosovina descrita por Weber a propsito de Benjamim Franklin, podem terconseqncias paradoxais: a famlia perdeu muito dinheiro aps vriastentativas de sada da classe operria.

    Uma tcnica popular de administrao oramentria: os envelopes

    Lembrarei, para terminar, a existncia de uma tcnica de administra-o oramentria muito disseminada nos meios populares, na Frana, atos anos 70. No exemplo que nos interessa, essa tcnica era acompanhadapor um salrio mensal caracterstico da funo pblica, em um perodoem que os operrios eram em grande parte pagos por semana. Ela s seexplica em um universo em que os cheques no eram de uso corrente20,ou seja, antes de 1973, data em que os salrios dos operrios comearama ser pagos mensalmente, o que levou a uma exploso de aberturas decontas bancrias.

    Tomarei o exemplo de um casal residente em Crpand (Cte dOr)21

    entre 1945 e 1978, data em que os conheci. O marido era agente do SNCF,sua mulher nunca exerceu nenhuma atividade profissional e eles criaramquatro filhos. Eles me contaram em 1978 como conseguiram se virar,apesar de seu salrio extremamente baixo. Durante todo o perodo em queseus filhos eram pequenos, eles distribuam, assim que recebiam, o paga-mento mensal do marido, nica fonte de ganhos, nos vrios envelopes des-tinados um ao leite para as crianas, outro ao padeiro, o terceiro para opagamento da eletricidade etc., ou seja, s prioridades de despesa. Elesnunca tiravam dinheiro de um envelope para cobrir um gasto ao qual oenvelope no estava destinado. Tratava-se, ento, de uma previso ora-mentria rudimentar, de pequena escala, mas muito eficaz. O casal obser-vado sempre satisfez as necessidades que considerava prioritrias. Comesse sistema, o dinheiro no afetado, ou a entrada extra de dinheiro, pdeser utilizado sem medo para uma loucura: prtica popular bem estuda-da por Richard Hoggart (1970[1957]) e que escandaliza os observadores,sempre prontos a considerar que os pobres so irracionais.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 171

    Essa prtica dos envelopes, de grande difuso22, um exemplo not-vel de tcnica material que cumpre um papel cognitivo. Ela no utiliza aescrita, a contabilidade, a listagem, nem o clculo numrico. uma sim-ples tcnica de ordenamento que, reservando somas de dinheiro, efetuan-do uma classificao em categorias de gastos futuros, permite saber sem-pre onde esto os gastos e as receitas, permite racionalizar os gastos,controlando-os mais precisamente. H mesmo uma racionalidade prticado comportamento de consumo, sem que esta racionalidade passe pelouso da escrita nem do clculo numrico.

    Esse ascetismo oramentrio, incorporado ou objetivado em disposi-tivos materiais como os envelopes, est fortemente ligado posio socialparticular desses casais que fazem parte da elite popular honrada e rela-tivamente pobre, bem estudada nos trabalhos recentes de histria social(para uma sntese, ver Cartier 2000). Poderamos nos interrogar sobre asprticas atuais de administrao do oramento nas classes populares de-sestabilizadas, mas que conservam ganhos regulares pagos mensalmente(alocaes diversas)23. Quisemos mostrar simplesmente o interesse e acomplexidade de um estudo srio sobre as prticas econmicas das fam-lias, que leva em conta raciocnios nativos e no se contenta em imputarmotivaes e crenas s pessoas cujos comportamentos so observados,sem tampouco considerar que basta perguntar para que elas entreguemao pesquisador a verdade de suas prticas24. Tal estudo no poderia fazereconomia da reflexo sobre as relaes entre prticas de autocontrole elimites exteriores. No se trata de acreditar na espontaneidade das prti-cas de consumo e de administrao oramentria. Trata-se antes de umaadaptao, de um modo de composio com limitaes de natureza diver-sa para organizar um espao de vida vivel. Em particular, seria precisointeressar-se pelos diversos momentos da socializao econmica, des-de a escola at os primeiros contatos com as instituies bancrias, fiscais,e as proposies comerciais, para observar o triplo sistema de normas quepesam sobre os consumidores: normas familiares em sua diversidade,normas ascticas sustentadas pelas instituies encarregadas de reprimiros delitos de no-pagamento, incitaes ao consumo sustentadas pelo mar-keting e, mais recentemente, pelos apelos polticos a um civismo do con-sumo.

    Lembremos um ltimo ensinamento desses exemplos. A racionali-dade das prticas econmicas tem ainda uma dimenso normativa. Eladepende do que os diferentes observadores julgam razovel. Se algunseconomistas confundem racionalidade epistmica e eficcia prtica, acre-ditando que razovel tentar ser o mais forte, outros observadores, filan-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO172

    tropos, assistentes sociais, agentes administrativos em contato com ospobres e mais ou menos encarregados de moralizar seus comportamentos,estigmatizando a irracionalidade dos consumidores pobres, conferem aeles um julgamento moral. Uma verdadeira sociologia das prticas econ-micas dos indivduos, quer dizer, de seus comportamentos de consumo,de trabalho e de troca, deveria preocupar-se em penetrar o sistema degesto e as limitaes que pesam sobre as pessoas. preciso abandonar aconcepo desmaterializada e abstrata do clculo ou da racionalidade erestituir a materialidade das categorias nativas de classificao (o envelo-pe, a fatura, a moeda25), e mesmo sua incorporao (em manias ascticasou, ao contrrio, nos comportamentos ostentatrios). Teramos ento umaoportunidade de compreender os raciocnios implcitos que passam pelascoisas e pelos corpos.

    Concluso

    Espero ter contribudo para dar algumas pistas para a anlise dos racioc-nios nativos que operam nas prticas cotidianas, quer esses raciocnios se-jam explcitos, quer estejam inscritos nas coisas, nos corpos, nos traos es-critos deixados por interaes ritualizadas. Espero tambm ter contribudopara esclarecer os termos do debate com a teoria microeconmica do con-sumidor. Um primeiro ponto diz respeito firme distino entre raciona-lidade epistmica (a modelizao cientfica, efetuada pelos economis-tas, dos comportamentos nativos) e racionalidades prticas, quer dizer, ra-ciocnios nativos ou modos de pensar, sejam elas implcitas ou inscritasmaterialmente. Do lado da racionalidade epistmica, a formalizao eco-nmica padro dos comportamentos individuais est fora de questo. Po-de-se procurar um outro modo de explicar os comportamentos individuaispartindo de premissas diferentes. Para o interacionismo metodolgico, porexemplo, teoria bem adaptada observao etnogrfica, o indivduo no um dado ex ante, Atena com elmo sada do crebro de Jpiter, mas umalenta e instvel conseqncia de mltiplos processos de socializao, quepodem ser contraditrios nas diferentes cenas sociais por vezes estanques,por vezes imbricadas. Pode-se, por outro lado, tentar melhorar a apreen-so do real oferecida pelo instrumental matemtico da microeconomia.Esta a tarefa dos economistas tericos quando procuram propor novasformalizaes; tambm tarefa dos econometristas quando meditam so-bre os testes empricos que permitem identificar, por um lado, os limitesefetivamente percebidos pelos atores cujo comportamento modelizam e,

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 173

    por outro, os objetivos efetivamente perseguidos por estes: o que se impea economistas tericos e econometristas preencher essa concha vazia que a utilidade ou o bem-estar. mesmo possvel ajud-los, portanto, a des-crever corretamente os diferentes sistemas de valores e reduzir a hetero-geneidade dos comportamentos individuais, restituindo a dimenso cole-tiva desses sistemas de valores26. talvez possvel tambm se interrogarcom eles sobre a unidade de anlise dos comportamentos. Com efeito,depois de se ter contentado por muito tempo com figuras abstratas ocasal, a firma , a microeconomia abre hoje suas caixas-pretas para levarem considerao uma unidade menor: o indivduo fisiolgico (Browninget alii 1994). Ela no abandonou demasiado rpido a possibilidade de umadeciso coletiva? Sem negar que o indivduo fisiolgico nasce, morre e, nointervalo, sofre, sente e reflete, ele tambm se identifica com um coletivoe seus interesses individuais no se podem dissociar dos interesses de seugrupo de pertena. O interacionismo etnogrfico sugere que o indivduofisiolgico se situa no cruzamento de vrios coletivos e de vrios univer-sos de socializao. A teoria microeconmica no poderia apreender essashipteses para ajudar a etnografia a perguntar-se sob que condies Egoage como um Eu confrontado com outro Eu, sob que condies se trata dealgo como um Ns? Assim, as hipteses relativas dinmica prpria dainterao27 no poderiam ser modeladas pela teoria dos jogos?

    Enfim, deixando de lado essas questes de modelizao, espero tersugerido que o estudo dos raciocnios nativos pode vir a constituir para ascincias sociais descritivas um campo de pesquisas de grande amplitude.Apenas esboamos aqui trs pistas que poderiam ser seguidas por pes-quisas sistemticas. Primeira: para um mesmo indivduo, o raciocnio dife-re segundo a cena social em que se situa a interao. H cenas sociais emque a avaliao monetria dos objetos proibida, absurda, sem pertinn-cia; h outras em que ela permanente28. Algumas situaes impem nocontar, outras levam imediatamente ao clculo, por vezes retroativo29. Me-lhor ainda: uma nica relao interpessoal subdivide-se em vrias seqn-cias, cada uma suscetvel de um raciocnio diferente. S a ruptura ou a mor-te, dando fim de um s golpe a todas as seqncias, autoriza ou impe umtipo de contabilidade final, um balano no duplo sentido do termo30.

    Segunda pista: a significao de uma transao fixada graas aosquadros rituais, gestos e dispositivos materiais. So estes quadros que per-mitem a observao direta. As transaes deixam tambm, muito freqen-temente, traos escritos cuja forma, os detalhes, as omisses, podem sersistematicamente estudados. No se trata de considerar que esses traosrestituem uma ao anterior ou diferente de sua inscrio, mas, antes, que

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO174

    a anotao faz a transao, que ela fixa sua significao. Abre-se aqui oestudo das modalidades das transaes como fenmeno ao mesmo tempocultural, social e econmico: a questo desemboca em uma etnografia dasprticas comerciais, dos contratos entre profissionais, dos jogos entre os es-paos da transao oficial, que pe entre parnteses as relaes pessoais,e o espao de suas multiplicidades (Garcia 1986; Pradelle 1996; Hassoun2000).

    Terceira pista: a manuteno de um oramento domstico opera com-petncias prognsticas que no passam forosamente por um clculo ex-plcito dos gastos e das receitas. Restituir os raciocnios nativos supe, por-tanto, pesquisas detalhadas sobre a percepo dos limites e sobre as pr-ticas de autocontrole em diferentes classes sociais, para mostrar como seagenciam limites de ganhos, limites estatutrios e espaos de liberdadeem funo dos ritmos da vida cotidiana.

    A matematizao das cincias sociais, apesar dos excessos ligados auma confiana exagerada nesse instrumental, apesar da desconfianaigualmente excessiva que ela pde suscitar, poderia mesmo abrir umanova era na compreenso das prticas sociais, na condio de efetuar umesforo considervel de traduo dos conceitos e das questes em jogonas diferentes disciplinas em questo; na condio de sistematizar as aqui-sies da sociologia e da antropologia; e na condio, tambm, de evitarfalsos debates31 e economizar energia para cooperaes mais proveitosas.

    Traduo de Jorge Luiz Mattar Villela

    Recebido em 15 de maro de 2002

    Aprovado em 2 de julho de 2002

    Florence Weber professora de sociologia e etnologia na cole NormaleSuprieure e dirige o Laboratoire des Sciences Sociales (ENS-EHESS). auto-ra de diversos artigos sobre culturas populares na Frana, parentesco e trocasem economias no mercantis, e sobre a histria da etnografia francesa. Publi-cou Le Travail -Ct. tude dEthnographie Ouvrire (1989, reed. 2001),LHonneur des Jardiniers. Les Potagers dans la France du 20e Sicle (1998),Le Guide de lEnqute de Terrain (com Stphane Baud, 1997), e uma antolo-gia comentada de textos de Max Weber (2001).

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 175

    Notas

    * Este artigo faz parte de uma coletnea organizada por Natacha Coquery,Franois Menant e Florence Weber, crire, Compter, Mesurer. Le Calcul conomi-que lpreuve de lHistoire et de lEthnographie (Paris: Editions Rue dUlm) a serpublicada em 2003. Agradeo aos editores a autorizao a esta publicao prviaem portugus.

    1 Cf. por exemplo os dois artigos clssicos de Durkheim e Mauss (1903) eHubert e Mauss (1906). O primeiro mostra que o procedimento lgico que est nabase das classificaes cientficas (em particular as de gnero animal e de clas-se de objetos) no encontra sua origem nem no mundo sensvel, nem na nossaconscincia, mas na sociedade: As prprias expresses das quais nos servimos []autorizam a presumir que todas essas noes lgicas so de origem extralgica.Dizemos que as espcies de um mesmo gnero sustentam relaes de parentesco;chamamos algumas classes de famlia; a prpria palavra gnero no designaria pri-mitivamente um grupo familiar? (Mauss 1971:166). Ou ainda: Longe de ser fun-damentado admitir como evidente que os homens classificam tudo naturalmente,por um tipo de necessidade interna de seu entendimento individual, deve-se, aocontrrio, perguntar o que pde lev-los a dispor suas idias sob essa forma e on-de puderam encontrar o plano dessa notvel disposio (Mauss 1971:167). O se-gundo constitui uma introduo aos estudos sobre o sacrifcio e a magia e desem-boca no exame das concepes de tempo e espao: H modos de pensar em co-mum tanto quanto h modos de agir em comum (Mauss 1968:36). O acento pos-to aqui sobre a linguagem e os hbitos de pensamento, freqentemente inconscien-tes: Constantemente presentes na linguagem, sem que elas sejam necessariamenteexplcitas, [as categorias] existem comumente antes sob a forma de hbitos direto-res da conscincia, eles mesmos inconscientes (Mauss 1968:8). Esses textos inspi-raram toda a antropologia britnica e francesa aps Lvi-Strauss, toda a sociologialingstica, e uma grande parte da sociologia americana e francesa. Apesar de umaambigidade sobre a natureza desse inconsciente, precipitadamente assimilado aoinconsciente freudiano, e do individualismo dbil que espreita parte das cinciassociais contemporneas, esse programa, em um momento em que as cincias cog-nitivas e a economia experimental retomam a questo, guarda toda sua atualidade.Esperemos que elas no tenham esquecido esta primeira formulao explicativa.

    2 Apesar das conotaes coloniais deste termo, continuarei a utiliz-lo, poistem o mrito de dissociar a posio do observador da dos indivduos observados, ounativos. Ele no assinala a superioridade do primeiro sobre os segundos, mas suaexterioridade, seja esta dada (quando o observador, etngrafo ou historiador, nopertence ao universo estudado) ou trabalhosamente adquirida (quando o observa-dor estuda o seu prprio universo social). A distncia entre observador e observadosno exclui a reflexividade da anlise, muito ao contrrio. Ela permite estudar porcontraste o universo nativo ao qual pertence o observador. essa mesma compara-o, explcita ou implcita, que serve de motor s questes e s anlises do cientista.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO176

    3 Retomo a distino fundamental entre essas duas racionalidades de Gran-ger (1995).

    4 Entre os pesquisadores que avanaram recentemente uma idia anlogade pluralidade dos sistemas de referncia, que exige a anlise dos comportamen-tos individuais segundo a cena (ou circuito) na qual so observados, ver, em par-ticular, Lahire (1998) e Zelizer (2000). Nada de revolucionrio, alis, nessas propo-sies, que se contentam em utilizar, em um outro contexto cientfico e conferindo-lhe uma outra grandeza terica, a noo bem estabelecida de papis desempe-nhados por um indivduo em diferentes cenas sociais. O conceito de cenasocial plenamente desenvolvido em F. Weber (2001).

    5 Este artigo uma verso profundamente modificada de minha comunica-o Les Conditions Cognitives des Pratiques conomiques ao colquio crire,Compter, Mesurer, organizado pelo Dpartement dHistoire da cole NormaleSuprieure e pelo Laboratoire de Sciences Sociales (ENS-EHESS), 21-22 de maro2001, em Paris.

    6 Mais precisamente, desejei confrontar duas explicaes da horticulturaamadora: seu uso como contradesvantagem [contre-handicap] por frao dasclasses populares que tinham acesso fora do mercado a produtos alimentares deluxo (frescos e de boa qualidade); seu uso como afirmao de si, acentuando aatividade mais que seu resultado. A apresentao completa da pesquisa e de suasquestes encontra-se em F. Weber (1998).

    7 Para um relato dessa experincia, ver Pasquier e Petitot (2001).

    8 Pode-se aqui estender a questo do bilingismo verdadeiro coexistnciade vrios registros de linguagem, utilizveis em cenas sociais diferentes. Assim,um operrio encontrado em 1983 em Montbard reconhece ter hesitado entre em-pregar comigo a lngua dos companheiros ou a lngua dos engenheiros.

    9 Ver, sobre exemplos muito particulares, Chatury (1997). tambm essa aquesto abordada por Jrme Gautier (no prelo) e Alain Desrosires (no prelo).

    10 Tomo emprestado o conceito de cristalizao da tradio durkheimiana.

    11 Para uma releitura recente, ver Houseman e Severi (1994).

    12 Na seqncia de uma quebra do estoque em uma grande loja parisiense,na vspera do Natal, e para no privar meus filhos de seu presente (um jogo de to-t), negociei com o vendedor (a quem encomendei e paguei pela mercadoria) de irprocurar eu mesma seu fornecedor, a alguns quilmetros do meu lugar de frias.Passei o dia inteiro com um sentimento intenso de transgresso quando, finalmen-te, consegui.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 177

    13 O etngrafo particularmente sensvel a esse aspecto das interaes co-merciais (cf. Pradelle 1996). A despeito das crticas de que tal abordagem pode serobjeto, ela tem o mrito de perguntar quem encena, quem isola as transaese lhes confere um sentido unvoco. Por vezes, a resposta excede as possibilidadesda observao direta (seria necessrio levar em conta o trabalho da administraofiscal, dos bancos etc.). Outras vezes, a resposta acessvel pesquisa direta. Paraum exemplo particularmente feliz, ver Garcia (1986).

    14 O exame dos autos de um processo de filiao permitiu-me compreender aambigidade das transferncias monetrias no parentesco e a necessidade de fi-xar seu significado. Uma mulher, F., deixou seu marido para viver sozinha com seufilho; seu amante, A., dava-lhe em cheque um tipo de penso mensal regular, deum montante fixo. F. considerava essa quantia uma ajuda para o pagamento de seualuguel. Ao fim de alguns meses, F. retornou ao domiclio conjugal e A. tentou umprocesso de paternidade legtima para fazer-se reconhecer como o pai natural dacriana. A penso desempenhou ento um papel importante: A. apresentou-a co-mo a prova de que ele tinha participado das despesas da criana; o advogado de F.tentou apresent-la como o reembolso de uma dvida anterior, contratada na po-ca de suas relaes profissionais (A. e F. eram colegas de trabalho). O juiz aceitoua interpretao de A. Houve uma srie de outros depsitos entre A. e F. (A. utilizouseus extratos bancrios como prova dos depsitos), mas no havia elementos quepermitissem esclarecer seu significado interpessoal: no momento desses depsi-tos, seria necessrio considerar A. e F. como colegas, amigos, amantes, parentes?

    15 Os trabalhos pioneiros nesse domnio so os de Lahire (1993) e Albert (1993).

    16 Para a valorizao desses produtos na cultura operria local, ver F. Weber(2001).

    17 Sobre a periodizao da histria social das classes populares no fim do s-culo XX, ver Cartier (2000).

    18 Muitas cadernetas dedicadas a uma atividade de lazer valorizada, reagru-pando fotografias, artigos de jornal, relatos, remetem a uma lgica de afirmaode si em uma cena social especfica, como por exemplo as cadernetas de caados caadores populares.

    19 Chamei alhures essas duas modalidades da valorizao dos objetos e dasatividades, esttica da contemplao (interesse pelo resultado) e esttica daproduo (interesse pela prpria atividade).

    20 Lembremos que as pessoas sob interdio bancria voltam hoje situaode antes de 1973 (administrao do oramento em numerrio) em um mundo ondea ausncia de cheques constitui um estigma pesado.

    21 Estudei este caso no contexto do povoado, em F. Weber (1978/79).

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO178

    22 Seria preciso estender a pesquisa aos manuais de economia domstica pa-ra verificar se essa prtica foi difundida pela escola, o que parece provvel.

    23 Alguns elementos presentes nas pesquisas recentes nos permitem sugeriro papel dos Correios como instituio principal de enquadramento para os ora-mentos desses casais mais pobres, assim como a importncia renovada de umaadministrao que repousa no manuseio do numerrio e no nas contas mais abs-tratas implicadas pelos meios de pagamento mais modernos. Para observaesrecentes no guichet, ver Siblot (1999).

    24 Para uma crtica anloga das imputaes de motivaes e de crenas emvista dos comportamentos observados, mas desta vez no domnio da cincia polti-ca e no da cincia econmica, ver Mariot (2001).

    25 Dar a moeda, colecionar moedas: os comportamentos econmicos dasclasses populares esto ligados freqentemente, mais do que em algumas fraesdas classes superiores, materialidade do dinheiro. Para uma primeira srie de pes-quisas sobre a questo, ver o nmero especial de Terrain, Les Usages de lArgent,no 23, outubro de 1994. As transformaes dos meios de pagamento tm efeitos so-bre as prticas que seria interessante estudar.

    26 Trata-se do ethos de classe, como em Bourdieu? Do ethos de corpo, querdizer, de grupo de status, como em Weber? De ethos partilhado por toda uma so-ciedade, como para os tericos culturalistas?

    27 Em particular, o conceito de cismognese de Bateson e sua extenso an-lise configuracionista por Elias (ver F. Weber 2001a).

    28 Para dois exemplos de avaliao monetria permanente em um contextono comercial, ver a contribuio de Alban Bensa (no prelo) e Sarrasin (1994); parauma discusso sobre a legitimidade do clculo econmico, ver as contribuies deAlain Desrosires (no prelo), de Jrme Gautier (no prelo) e de Agns Gramain(no prelo).

    29 , por exemplo, o caso no momento das rupturas e das mortes. No momen-to de um divrcio, tem-se a impresso de ver revelada a verdade das relaes teci-das durante o casamento. falso: essas relaes so suscetveis de vrias inter-pretaes: antes do divrcio no se contava da mesma maneira

    30 O caso das profisses que envolvem servios pessoais e das relaes deparentesco oferece notveis oportunidades para colocar tais questes (ver, p. ex.,Cartier 2000).

    31 Assim como a questo da irracionalidade dos comportamentos observados.Do mesmo modo como, antes, os primitivos foram percebidos como seres irracio-nais simplesmente porque os observadores no os compreendiam, os comportamen-tos nativos hoje s aparecem como irracionais porque eles continuam inintelig-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 179

    veis para ns. Quando a fronteira entre racional e irracional designa a frente pio-neira da cincia (aquilo de que ela poderia dar conta, aquilo que ainda lhe esca-pa), quer dizer, da racionalidade epistmica, os estudiosos tm a tendncia de pro-jetar essa fronteira sobre seu objeto e de julgar alguns comportamentos irracio-nais quando eles no compreendem a que racionalidade prtica eles obedecem.

    Referncias bibliogrficas

    ABREU, Guida de. 1993. The Relationshipbetween Home and School Mathe-matics in a Farming Community inRural Brazil. Tese de Doutorado,Cambridge.

    ALBERT, Jean-Pierre. 1993. crituresDomestiques. In: D. Fabre (dir.),critures Ordinaires. Paris: OL/BPI.pp. 37-94.

    BARTHEZ, Alice. 1982. Famille, Travail eAgriculture. Paris: Economica.

    ___ . 1986. Du Labeur Paysan au Mti-er dAgriculteur: LElaboration Sta-tistique en Agriculture. CahiersdEconomie et Sociologie Rurales,3:45-72.

    BATESON, Gregory. 1971[1936]. La C-rmonie do Naven. Paris: Minuit.

    BENSA, Alban. (no prelo). Compter lesDons: changes Non Marchands etPratiques Comptables en Nouvelle-Caldonie Kanak Contemporaine.In: N. Coquery, F. Menant e F. Weber(orgs.), crire, Compter, Mesurer. LeCalcul conomique lpreuve delHistoire et de lEthnographie. Paris:ditions Rue dUlm.

    BESSIRE, Cline. 2001. Sexe, Cognac etCapitaux. Mmoire du DEA de Scien-ces Sociales, ENS-EHESS.

    BOURDIEU, Pierre et alii. 1964. Travail etTravailleurs en Algerie. Paris: Mou-ton.

    BOURDIEU, Pierre e SAYAD, Adbelmalek.1964. Le Dracinement. Paris: Minu-it.

    BROWNING, Martin, BOURGUIGNON,Franois, CHIAPPORI, Pierre-Andre LECHNE, Valrie. 1994. Incomeand Outcomes: A Structural Modelof Intrahousehold Allocation. Jour-nal of Political Economy, 1029(6):1067-1096.

    CARTIER, Marie. 2000. Le Calendrier duFacteur. Les Significations Socialesdun change Anodin. Genses, 41:63-84.

    CASTEL, Robert. 1995. Les Mtamorpho-ses de la Question Sociale: Une Chro-nique du Salariat. Paris: Fayard.

    CHABAUD-RYCHTER, Danielle, FOU-GEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominiquee SONTHONNAUX, Franoise. 1985.Espaces et Temps du Travail Domes-tique. Paris: Libraire des Mridiens.

    CHADEAU, Anne e FOUQUET, Anne.1981. Peut-on Mesurer le TravailDomestique?. Economie et Statis-tique, 136:29-41

    CHATURY, Giordana. 1997. Folie, Ma-riage e Mort. Pratiques Chrtiennesde la Folie en Europe Occidentale.Paris: Seuil.

    COQUERY, Natacha, MENANT, Franoise WEBER, Florence (orgs.). (no prelo).crire, Compter, Mesurer. Le Calcul

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO180

    conomique lpreuve de lHistoireet de lEthnographie. Paris: ditionsRue dUlm.

    DESROSIRES, Alain. (no prelo). Peut-ontout Mesurer? Les Deux Sens, Tech-nique et Social, du Verbe Pouvoir.In: N. Coquery, F. Menant e F. We-ber (orgs.), crire, Compter, Mesur-er. Le Calcul conomique lpreu-ve de lHistoire et de lEthnographie.Paris: ditions Rue dUlm.

    FINE, Agns, LABRO, Stphanie e LOR-QUIN, Claire-Emmanuelle. 1993.Lettres de Naissance. In: D. Fabre(dir.), critures Ordinaires. Paris: OL/BPI. pp. 117-147.

    GARCIA, Marie-France. 1986. La Cons-truction Social dun March Parfait:Le March au Cadran de Fontaine-en-Sologne. Actes de la Recherche,65.

    GAUTIER, Jrme. (no prelo). De lIn-vention du Chmage sa Dcon-struction. In: N. Coquery, F. Menante F. Weber (orgs.) crire, Compter,Mesurer. Le Calcul conomique lpreuve de lHistoire et de lEthno-graphie. Paris: ditions Rue dUlm.

    GRAMAIN, Agns. (no prelo). Les En-jeux Scientifiques et Politiques de laModlisation Micro-conomique.In: N. Coquery, F. Menant e F. We-ber (orgs.) crire, Compter, Mesurer.Le Calcul conomique lpreuvede lHistoire et de lEthnographie.Paris: ditions Rue dUlm.

    GRANGER, Gilles-Gaston. 1995. LesTrois Aspects de la Rationalit co-nomique. In: L-A. Gerard-Varet eJ.-C. Passeron (orgs.), Le Modle etlEnqute. Les Usages du Principede Rationalit dans les Sciences So-ciales. Paris: Ed. EHESS. pp. 561-575.

    HASSOUN, Jean-Pierre. 2000. Trois In-teractions Htrodoxes sur les Mar-chs la Crie du MATIF. Racional-

    it Local, Racionalit Global. Poli-tix, 13(52):99-119.

    HOGGART, Richard. 1970 [1957]. La Cul-ture du Pauvre. Paris: Minuit.

    HOUSEMAN, Michael e SEVERI, Carlo.1994. Naven ou le Donner Ver. Es-sai dInterpretation de lAction Rit-uelle. Paris: Ed. CNRS/Ed. MSH.

    LAHIRE, Bernard. 1993. La Raison desplus Flaibes. Rapport au Travail,criture Domestiques et Lectures enMillieux Populaires. Lille: Press Uni-versitaires de Lille.

    ___ . 1998. LHomme Pluriel: Les Res-sorts de lAction. Paris: Nathan.

    MARIOT, Nicolas. 2001. Les Formeslmentaires de lEffervescence Col-lective, ou ltat dEsprit Prt auxFoules. Revue Franaise de Scien-ce Politique, 51(5):707-738.

    MAUSS, Marcel. 1968. Oeuvres, tomo 1.Paris: Minuit.

    ___ . 1971. Essais de Sociologie. Paris:Seuil (Col. Point).

    MONTEILLET-GEOFFROY, Mlanie.(2001), Les Conditions de lEnrichis-sement sans Cause dans les Rela-tions de Famille. Thse de Droit,Universit dOrlans, Doctorat et No-tariat, 4, Imp. La Mouette.

    PASQUIER, Elisabeth e PETITOT, Jean-Yves. 2001. Cultiver son Jardin. Chro-niques des Jardins de la Fournillre,1992-2000. Paris: LHarmattan.

    PRADELLE, Michle de la. 1996. Les Ven-dredis de Carpentras. Faire son Mar-ch, en Provence ou Ailleurs. Paris:Fayard.

    SARRASIN, Philipp. 1994. Une Coutu-me Barbare. Les Fonctions Signifi-cantes de lArgent dans une SocitBourgeoise vers 1900. Genses, 15:84-102.

    SIBLOT, Yasmine. 1999. Le Service Pub-lic en Milleu Populaire: Stigmatisa-tion et Intgration. Une Enqute dansun Poste de Banlieue Parisien. M-

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO 181

    moire du DEA de Sciences Sociales,ENS-EHESS.

    TARRIUS, Alain. 1995. Arabes de Francedans lconomie Mondial Souterrai-ne. La Tour dAigues: Ed. de lAube.

    THOMPSON, Edward P. 1979. Temps,Travail et Capitalisme. Libre, 5.

    WEBER, F. 1978/79. Conflits et Devenirsde Familles Rurales dans un Villagede Bourgogne du Nord. Mmoire deMatrise dEthnologie, Paris V.

    ___ . 1998. LHonneur des Jardiniers.Paris: Belin.

    ___ . 2001. Settings, Interactions andThings. A Plea for Multi-IntegrativeEthnography. Ethnography, 2(4):475-499.

    ___ . 2001a. Le Travail -Cot. Paris: Ed.EHESS.

    WEBER, Max. 2000. LEthique Protestan-te et lEsprit du Capitalisme. Paris:Flammarion.

    ZELIZER, Viviana. 2000. How and WhyDo we Care about Circuits. News-letter of the Economics SociologySection of the American SociologicalAssociation.

  • PRTICAS ECONMICAS E FORMAS ORDINRIAS DE CLCULO182

    Resumo

    Este artigo parte da hiptese da exis-tncia de uma pluralidade de cenas so-ciais em que os indivduos interagem eas aes individuais adquirem sentido.A cada cena social correspondem racio-nalidades prticas diferentes. O examedas prticas de mensurao e contabili-dade permite distinguir essas cenas ecompreender como se articulam entresi. Para mostrar a diversidade de racioc-nios nativos, utiliza-se primeiro a diver-sidade das unidades de medida usadaspor horticultores amadores. Em segui-da, examinam-se os quadros rituais dediversas transaes e mostra-se que oconsumidor racional no sentido dateoria utilitarista pode no recorrer anenhum clculo explcito, pois o ethosasctico encontra-se inscrito nas rotinascorporais. Para concluir, o artigo convi-da a um estudo sistemtico da socializa-o econmica e prope trs pistas paraa pesquisa: a descrio da diversidadede cenas sociais, a anlise dos quadrosrituais das transaes, e o estudo daspercepes dos constrangimentos e dasprticas de autocontrole nas diversasclasses sociais. O artigo sugere que, des-sa forma, se poderiam definir domniosde validade para as formalizaes ma-temticas das condutas humanas elabo-radas pelos economistas.Palavras-chave Racionalidade, Econo-mia, Clculo, Cena Social

    Abstract

    This article proceeds from the hypothe-sis that a plurality of social scenes existin which individuals interact and indi-vidual actions acquire meaning. Eachsocial scene corresponds to differentpractical rationalities. Examining thepractices involved in measuring andcounting allows us to distinguish thesescenes and comprehend how they aremutually interconnected. As a demon-stration of the diversity of native rea-soning, the article first turns to the widevariety of units of measurement used byamateur horticulturists. Next, it exam-ines the ritual settings of various trans-actions and shows that the rational con-sumer in the sense expounded by util-itarian theory need not rely on any ex-plicit calculation, since the ascetic ethoscan be found inscribed in body routines.In conclusion, the article calls for a sys-tematic study of economic socializationand outlines three leads for such re-search: description of the diversity of so-cial scenes, analysis of the ritual settingsof transactions, and study of the percep-tions of constraints and the practices ofself-control among the various socialclasses. The author suggests such an ap-proach may enable us to define domainsof validity for the mathematical formal-izations of human behaviours developedby economists.Key words Rationality, Economy, Cal-culation, Social Scene