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“O processo de letramento e a habilidade narrativa em alunos do EJA e em adultos não alfabetizadosWinston Luiz Ramos de Farias (mestrando) Luciane De Conti (orientadora) RESUMO Nenhuma sociedade humana está destituída de cultura. E esta, ao mesmo tempo em que é (re)criada e mantida pelos indivíduos, lhes oferece instrumentos para pensar e interagir com o mundo. Cada sociedade cria e regula padrões de comportamento para todos os aspectos da vivência e as práticas linguísticas não constituem exceção. O presente estudo propõe-se a analisar narrativas orais produzidas por alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como, por adultos não alfabetizados com vistas a investigar se o letramento escolar instrumentalizará os adultos submetidos à escolarização para que produzam narrativas consideradas melhores. Participarão da pesquisa 10 indivíduos moradores da Região Metropolitana de Recife, dos quais 5 serão alunos do EJA e 5 serão adultos não alfabetizados. Os participantes assistirão a um curta-metragem e, posteriormente, será solicitado que narrem oralmente a história vista. A narrativa resultante terá registro em vídeo para posterior transcrição e análise. Palavras-chave: letramento, narrativas orais, EJA, alfabetização, adultos não alfabetizados

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“O processo de letramento e a habilidade narrativa em alunos do EJA e em adultos

não alfabetizados”

Winston Luiz Ramos de Farias (mestrando)

Luciane De Conti (orientadora)

RESUMO

Nenhuma sociedade humana está destituída de cultura. E esta, ao mesmo tempo em que é

(re)criada e mantida pelos indivíduos, lhes oferece instrumentos para pensar e interagir com o

mundo. Cada sociedade cria e regula padrões de comportamento para todos os aspectos da vivência

e as práticas linguísticas não constituem exceção. O presente estudo propõe-se a analisar narrativas

orais produzidas por alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como, por adultos não

alfabetizados com vistas a investigar se o letramento escolar instrumentalizará os adultos

submetidos à escolarização para que produzam narrativas consideradas melhores. Participarão da

pesquisa 10 indivíduos moradores da Região Metropolitana de Recife, dos quais 5 serão alunos do

EJA e 5 serão adultos não alfabetizados. Os participantes assistirão a um curta-metragem e,

posteriormente, será solicitado que narrem oralmente a história vista. A narrativa resultante terá

registro em vídeo para posterior transcrição e análise.

Palavras-chave: letramento, narrativas orais, EJA, alfabetização, adultos não alfabetizados

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1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA E JUSTIFICATIVA

O mundo pós-Segunda Guerra Mundial estabeleceu regras como o direito universal à

educação em todos os seus níveis, de elementar a superior (art. XXVI dos Direitos Universais do

Homem1). Foi conferido caráter compulsório à educação elementar por considerar que todos devem

ter um nível mínimo de instrução formal e que esta ação teria o poder de diminuir diferenças

sociais, estimular o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A legislação

brasileira, inspirada nestes ideais, estabelece que a educação “tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o

trabalho” (art 2º, Lei 9.394/962) e vai além, tornando obrigatória a educação escolar até o Ensino

Médio (art 4º, Lei 9.394/96). Este comprometimento do Estado está assentado na crença de que a

educação contribui para o pleno desenvolvimento do indivíduo em seus aspectos cognitivos, sociais

e éticos. Assim, embora não em caráter obrigatório, a lei também prevê a escolarização de jovens e

adultos, oferecida gratuitamente.

A adequação linguística é uma das formas pelas quais se pode observar, por meio da

interação, se os indivíduos estão mais ou menos aptos a adequar-se às normas sociais e como o

fazem. Isto é importante porque a não-adequação frequentemente resulta em discriminação e

exclusão social em algum nível. Sobre o preconceito linguístico, é famoso o trabalho de Marcos

Bagno (2006), por meio do qual entendemos não só como a sociedade regula as práticas

linguísticas, mas também a importância da habilidade de reconhecer contextos e adequar-se a eles.

Se considerarmos a redação dos Direitos Universais do Homem e a legislação brasileira,

seria possível supor que a educação formal funciona como um modo de instrumentalizar o

indivíduo para as práticas sociais e o trabalho (art. 3º, incisos X e XI, Lei 9.394/94), além de tornar

o indivíduo mais competente à vivência social por meio do estímulo ao desenvolvimento cognitivo.

Olson (1997), entretanto, apresenta alguns estudos em seu livro que sugerem que os resultados

podem não ser os esperados.

Consoante com os ideais da legislação, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) constitui um

recurso que visa a habilitar adultos não-alfabetizados ou que já o tenham sido, mas que dominem

esta técnica num nível ainda rudimentar, ao exercício da cidadania, oferecendo-lhes oportunidades

de melhores relações sociais e de trabalho. O sucesso dos programas de EJA, porém, tem estado

abaixo do esperado (ABADZI apud CARDOSO-MARTINS e CORRÊA, 2010), o que tem gerado

discussões sobre se tais resultados seriam consequência de fatores cognitivos relacionados à idade,

1 http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

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ou se estariam mais ligados a fatores exógenos, como a qualidade dos materiais utilizados pela

escola, e até mesmo a competência do professor.

Importante comentar que trabalhos envolvendo adultos em programas escolares muitas

vezes focam apenas no processo de alfabetização, usualmente não considerando a aplicação dos

conhecimentos obtidos na escola na vida cotidiana. A educação oferecida pela escola tende a

desconsiderar os conhecimentos trabalhados em sala de aula como recursos culturais, sendo este um

dos principais aspectos de crítica.

Cada sociedade cria e regula padrões de comportamento para todos os aspectos da vivência e

as práticas linguísticas não constituem exceção. As sociedades urbanas modernas têm instituições

de ensino que visam a preparar os cidadãos, desde tenra idade, para a vida em sociedade e para o

trabalho. A formalização do ensino e estabelecimento de um lugar para ensinar e aprender – a

escola – surgiu da necessidade de preservar e garantir a continuidade do legado cultural da

civilização (GASPAR, 2002). A escrita adquire centralidade neste processo, sendo “um dos

principais fundamentos do modo letrado de pensamento” (OLIVEIRA, 2008, p 154). Segundo

Tfouni e Seidinger (1997), a escrita e a leitura envolvem toda a sociedade letrada, embasando todas

as suas práticas, permeando, assim, a vida quotidiana.

Nas sociedades contemporâneas a principal instituição responsável pelo letramento é a

escola (KLEIMAN, 2008), embora não deva ser esquecido que um indivíduo pode ser letrado ainda

que não escolarizado. Será que a educação formal tem efeitos na habilidade narrativa de indivíduos

que só vieram a ser escolarizados na vida adulta?

Para a elaboração deste projeto, foram efetuadas buscas em bancos de dados gerais –

Academic Google, Scielo – e específicos de Psicologia - como o Pepsic -, além de livros e

periódicos impressos relacionados ao tema. Nas pesquisas eletrônicas foram utilizados como termos

chave os itens “letramento”. “letramento escolar”, “habilidade narrativa”, “narrativas”, “letramento

de adultos”, “letramento e narrativa”, “alfabetização”, “narrativas e EJA”, “letramento e EJA”.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 EDUCAÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Comecemos por definir a palavra “educação”. Dentre as várias acepções para o termo

enumeradas pelo dicionário Houaiss (2009), podemos destacar a seguinte: “aplicação dos métodos

próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser

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humano; pedagogia, didática, ensino”, bem como “conhecimento e observação dos costumes da

vida social; civilidade, delicadeza, polidez, cortesia”.

O dicionário francês Le Littré (2009) diz que éducation é:

Action d'élever, de former un enfant, un jeune homme; ensemble des

habiletés intellectuelles ou manuelles qui s'acquièrent, et ensemble des

qualités morales qui se développent3.

O dicionário espanhol da Real Academia Espanhola (1995) diz que educación é “1 – Acción

y efecto de educar. 2 - Crianza, enseñanza y doctrina que se da a los niños y a los jóvenes. 3 -

Instrucción por medio de la acción docente. 4 - Cortesía, urbanidad4.”

Já o Oxford English Dictionary diz que educate é “give intellectual, moral, and social

instruction to; train or give information on a particular subject5”.

O que é necessário observar nas definições supracitadas é que, embora o termo “cultura” não

seja citado literalmente, a ideia de educação está completamente pautada em valores culturais e é

determinada pela mesma. Culturas diferentes terão modelos diferenciados de educação – quer em

termos intelectuais, morais e sociais – mas não há a possibilidade de modelos de educação que

sejam alheios a uma cultura. “A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no

seu destino exterior como na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual” (JAEGER,

1936/2013, p 2).

Convém notar também a abrangência do conceito contido no termo. Ele não se restringe a

práticas escolares de qualquer nível, e tampouco se limita a comportamentos sociais prescritos por

normas de bom comportamento. Assim, para nos referirmos às práticas educacionais

institucionalizadas, faremos uso do termo “educação formal”.

O termo letramento, por seu turno, tem registro na língua portuguesa desde o século XIX, de

acordo com o que indica o dicionário Houaiss (2009). Outrora, entretanto, o termo fora sinônimo de

“escrita” e, com o passar do tempo, caiu em desuso. Na década de 80 do século XX o termo é

3 Ação de educar, de formar uma criança, um jovem; juntamente com as habilidades intelectuais ou manuais que são

adquiridas, bem como, com as qualidades morais que são desenvolvidas. 4 1 – Ação e efeito de educar; 2 – Criança, ensino e doutrina que se dá às crianças e aos jovens. 3 – Instrução por meio

da ação docente. 4 – Cortesia, urbanidade. 5 Oferecer instrução intelectual, moral e social; treinar ou oferecer informações sobre um assunto particular.

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retomado para traduzir a palavra inglesa “literacy” e diferenciar-se de “alfabetização”, adquirindo

assim um novo significado (SOARES, 2001). Angela Kleiman (2008) indica um trabalho de Mary

Kato, publicado em 1986, como sendo o primeiro a utilizar o vocábulo “letramento” com sua

significação moderna no Brasil.

Importante mencionar que há pesquisadores, como Emilia Ferreiro (2003), que não

diferenciam os termos alfabetização e letramento, argumentando que ambos os vocábulos se

referem ao mesmo fenômeno. Destarte, não se faria necessário utilizar dois termos diferentes, mas

apenas compreender que houve uma ressignificação do termo “alfabetização”. Ela defende que

apenas um dos termos seja escolhido e utilizado.

Outros, entretanto, defendem que alfabetização e letramento são fenômenos diferentes, ainda

que relacionados (KLEIMAN, 2008; SOARES, 2001; TFOUNI e SEIDINGER, 1997; JUSTO e

RUBIO, 2013). Também o Ministério da Educação (2013), no documento Avaliação Nacional da

Alfabetização, defende os dois processos como distintos, porém complementares.

Para Magda Soares o termo “alfabetizar” pode ser definido segundo segue:

Alfabetizar é dar condições para que o indivíduo – criança ou adulto – tenha

acesso ao mundo da escrita, tornando-se capaz não só de ler e escrever,

enquanto habilidades de decodificações e codificação do sistema da escrita,

mas, e, sobretudo, de fazer uso real e adequado da escrita com todas as

funções que ela tem em nossa sociedade e também como instrumento na luta

pela conquista da cidadania plena (SOARES, 2001, p 33).

Aprender a ler e a escrever, assim, ajudaria o indivíduo em sua inclusão nas práticas sociais,

culturais, cognitivas, linguísticas, dentre outras. Ainda sobre a alfabetização, Magda Soares

acrescenta que ela é:

[...] um processo de representação de fonemas e grafemas, e vice-versa, mas

é também um processo de compreensão/expressão de significados por meio

do código escrito. Não se consideraria ‘alfabetizada’ uma pessoa que fosse

capaz de decodificar símbolos sonoros, ‘lendo’, por exemplo, sílabas ou

palavras isoladas, como também não se consideraria ‘alfabetizada’ uma

pessoa incapaz de, por exemplo, usar adequadamente o sistema ortográfico

de sua língua, ao expressar-se por escrito. (SOARES, 2001, p 16)

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Deste modo, o termo alfabetização “refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem

de habilidades para a leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem” (TFOUNI e

SEIDINGER, 1997, p. 38), id est, está fortemente relacionada à técnica da escrita e leitura.

Para Foucambert (1994:18;118) “analfabetismo é o desconhecimento das técnicas de

utilização da escrita” traduzido como a “(...) impossibilidade de compreender ou de produzir uma

mensagem escrita simples, que trate de questões concretas ligadas à vida cotidiana: sua origem está

na falta de domínio do sistema de correspondência entre grafemas e fonemas. Esse analfabetismo

provém da ausência de alfabetização”.

Para entendermos o termo “letramento”, tomaremos por base aquilo que está expresso nos

Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – de língua portuguesa:

Letramento, aqui, é entendido como produto da participação em práticas

sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas

discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às

vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa

concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas

modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não

participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas. (PCN-LP, 1998, p.

19)

Tfouni e Seidinger (1997), quanto a letramento, escrevem:

O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição

da escrita por uma sociedade, remetendo-nos portanto ao plano social. Sob

este ponto de vista, tornar o aluno letrado significa introduzi-lo nas práticas

sociais onde a escrita faz sentido, e possibilitar-lhe que se movimente entre

formações discursivas que podem ser concretizadas em portadores de texto

cujo uso e função têm alguma relação com as suas necessidades cotidianas

de comunicação. (TFOUNI e SEIDINGER, 1997, pp 38, 39)

Magda Soares (2001) afirma que:

[...] um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo

letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o

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indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não

só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a

leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente

às demandas sociais de leitura e de escrita (p 39).

Maluf (2010, p 19) afirma que “ler e escrever com proficiência não é uma condição

suficiente para o exercício da cidadania em sociedades democráticas, mas é sem dúvida uma

condição necessária”. Entendendo o direito à educação formal como instrumento para a cidadania, o

governo investe em programas de alfabetização e educação para adultos, mas estes raramente

chegam a obter o êxito esperado (CARDOSO-MARTINS e CORRÊA, 2010). Uma das razões

apresentadas para tal problema é apresentada por Spinillo et alii (1996), que chamam a atenção para

o fato de que no contexto escolar a língua escrita não é concebida como um objeto cultural, sendo

vista em si mesma e tendo seus usos bastante restritos. Abdazi (apud CARDOSO-MARTINS e

CORRÊA, 2010) enumera algumas dificuldades que estes programas encontram, como um número

pequeno de matrículas, altos índices de evasão ou abandono e o aparente esquecimento dos

conteúdos aprendidos pelos indivíduos.

Os PCN de Língua Portuguesa, em se referindo à responsabilidade da escola, afirmam que:

O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para a participação social

e efetiva, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso

à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói

visões de mundo, produz conhecimento. Por isso, ao ensiná-la, a escola

tem a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos

saberes linguísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito

inalienável de todos. (PCN - Língua Portuguesa, p. 15)

Há numerosos estudos sobre os impactos da escrita na cultura e, por consequência, nos

indivíduos, com focos os mais diversos. São exemplos os trabalhos de Lúria (1929/2001) no campo

da Psicologia, bem como os de Tfouni e Pereira (2005) e de Marta Oliveira (2008) no campo da

Linguística.

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Um bom exemplo disto – não o único – são os trabalhos que resultaram no livro “Na vida

dez, na escola zero” (CARRAHER et alii, 1988), os quais são muito significativos no estudo do

letramento no Brasil (KLEIMAN, 2008). Sabendo que a apropriação das normas de conduta

culturalmente estabelecidas é importante para o exercício da cidadania, minimizando a

discriminação das classes populares (BAGNO, 2006), e que a linguagem escrita e a oral se

influenciam mutuamente (SULTZBY e ZECKER, 1991), é importante pesquisar sobre o quanto a

educação formal na vida adulta pode influenciar na capacidade de expressão e construção de

narrativas. E, reconhecendo que o campo da linguagem é muito amplo e que é impossível abarcá-lo

num único estudo, esta pesquisa trabalhará com narrativas orais.

2.2 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – EJA

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino que tem o objetivo de

oferecer as etapas do Ensino Fundamental e Ensino Médio para jovens e adultos que não cumpriram

com os anos de educação formal básica em idade apropriada. É oferecida mormente por escolas

públicas, mas algumas escolas particulares também o adotam.

Este segmento educacional é regulamentado pelo artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases da

educação (a LDB, ou lei nº 9394 de 20 de Dezembro de 1996).

2.3 COGNIÇÃO, NARRATIVA E EDUCAÇÃO FORMAL

A aquisição da linguagem não só possibilita e facilita interações sociais, mas também

habilita o ser humano a fazer outras cousas que, de outro modo, não seria capaz (TOMASELLO,

2003). “A linguagem natural é uma instituição social simbolicamente incorporada que surgiu

historicamente de atividades sociocomunicativas preexistentes” (idem, pp 131, 132).

O aprendizado da língua, bem como o seu uso, não são fruto apenas de interação

espontânea, id est, fruto de situações de vivência. Cada sociedade estabelece e valida formas que

são julgadas como mais adequadas, e/ou corretas, e que têm de ser aprendidas previamente para uso

posterior. A educação formal, institucionalizada, trabalha com isso e, no campo do ensino de

línguas, tende a trabalhar com a chamada gramática prescritiva – um conjunto de normas

tradicionais que representariam para os gramáticos as normas do “bem falar” (VALADARES,

2010).

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A aquisição da linguagem, tanto no nível oral quanto escrito, se dá na interação com o outro:

sendo assim este é, inegavelmente, um processo social (TOMASELLO, 2003; RIBEIRO &

SOUZA, 2012). Entretanto, após a aquisição de sua língua materna o indivíduo tem de dominar as

regras sociais de uso, as quais tratam não apenas de questões de expressão objetiva ou subjetiva,

mas de fazer um uso considerado adequado do sistema linguístico, a partir de elementos históricos,

ambientais e sociais.

Ao longo de toda a vida interpretam e contam acontecimentos de acordo com suas crenças e

valores. As histórias contadas evidenciam uma tentativa de retratar aquilo que foi experienciado,

conferindo organização aos fatos, numa disposição temporal. A este modo de contar chamamos de

narrativa. E, segundo Michael Connelly e Jean Cladinin (1990):

Os seres humanos são organismos que, individual e socialmente, vivem

vidas relatadas. O estudo da narrativa, portanto, é o estudo da forma como

nós seres humanos experimentamos o mundo. (p 11)

Bruner (1997, p 74) defende que “embora tenhamos uma predisposição ‘inata’ e primitiva

para a organização narrativa, que nos permite facilmente compreendê-la e usá-la, a cultura logo nos

equipa com poderes de narração através de seu kit de ferramentas e através das tradições de contar

histórias e interpretá-las, das quais nós logo nos tornamos participantes”.

Nossas interações primevas, espontâneas, nos ajudariam a formar uma gramática natural,

formada desde tenra idade e, possivelmente, como o defende Bruner (1997), o impulso narrativo

guiaria a prioridade das formas gramaticais a serem dominadas pela criança.

Sociedades contemporâneas, entretanto, possuem sistemas educacionais que se baseiam em

modelos que devem ser aprendidos e postos em prática pelos indivíduos. Padrões mínimos são

esperados das pessoas em vários campos do conhecimento e, no campo da linguagem, surge a visão

de maior ou menor competência linguística – que é julgada a partir de um modelo do bem-

expressar, construído culturalmente e inscrito num momento histórico.

Os padrões canônicos mais corriqueiros devem ser ensinados pela escola, em níveis de

crescente dificuldade e complexidade. Em aulas de língua portuguesa, por exemplo, diversos

gêneros textuais são apresentados e trabalhados com a turma e, dentre eles, encontra-se a narrativa.

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É importante mencionar o papel da Gramática Tradicional, também denominada gramática

culta, prescritiva ou normativa, não apenas porque ela é o modelo básico para o estudo da língua

materna na escola, mas também porque ela atua como legitimadora da tradição cultural e da

identidade nacional (VALADARES, 2010). São muitos os critérios prescritivos mantidos pela

gramática. Flávio Valadares (2010), a partir da obra de Travaglia, enumera alguns deles: “elegância,

colorido, beleza, finura, expressividade, eufonia, harmonia, devendo-se evitar vícios como a

cacofonia, a colisão, o eco, o pleonasmo vicioso” (p 38).

Há que se considerar que as sociedades não são homogêneas e grupos letrados, desde o

advento da escrita, apresentam grande variação em termos de maior ou menor domínio desta técnica

e, portanto, acesso a conhecimentos mais variados e especializados. Mas considerar a escrita e

leitura em relação direta com a oralidade pode parecer um excesso. Entretanto, o senso comum

divulga a ideia de que um bom leitor é também um melhor produtor de textos e melhor falante;

também autores reconhecidos, como o gramático Evanildo Bechara (2006), defendem tal relação:

A competência ou saber não se manifesta igualmente em todos os planos do

lingüístico. Na língua particular ele ocorre com mais freqüência; nos outros

planos – no saber elocutivo e principalmente no saber expressivo – o

domínio da competência só se alcança depois de cuidada educação

lingüística. Muitas vezes se diz que “alguém escreve mal o português”,

quando, na realidade se quer fazer referência ao saber elocutivo ou ao

expressivo, porque escreve sem congruência ou sem coerência, ou ainda com

pouca clareza. Quando se diz que “o francês é uma língua clara”, a rigor, não

se quer fazer referências a características da língua francesa, mas à

capacidade de estruturar o pensamento, o discurso ou o texto com clareza e

logicidade mais que o normal, em virtude de uma larga tradição do falar

nessa comunidade, tradição que começa no ensino escolar francês, e que

deveríamos cultivar entre nós. (BECHARA, 2006, p 35)

As sociedades urbanas modernas alimentam a crença antiga de que a língua válida, correta, é

a língua escrita, assim, os modelos prescritivos das gramáticas e Literatura deveriam ser aprendidos

e postos em prática quotidianamente, nas interações sociais (BECHARA, 2006). Quanto mais

próximo o discurso do indivíduo puder estar daqueles modelos, melhor o discurso será, defendem

os que aderem a esta ideia. Marcos Bagno (2006) discute este problema em seu livro “Preconceito

Linguístico” e discorda disso. Discorda, mas pensa que é necessária a escolarização bem como o

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domínio de diversos níveis de linguagem para um uso adequado – o que dependeria da educação

formal - para que se possa participar plenamente da vida social e ser, se necessário, fator de

mudança.

3. OBJETIVOS

3.1 OBJETIVO GERAL

Investigar se há marcas do letramento escolar na produção de narrativas orais de alunos do

EJA, aproximando-as dos modelos prescritivos e diferenciando-se de narrativas orais de adultos

não-alfabetizados.

3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

(i) Verificar se o letramento escolar na vida adulta instrumentaliza o indivíduo para que

produza narrativas orais consideradas melhores socialmente;

(ii) Estabelecer uma comparação entre os desempenhos observados nas narrativas dos

sujeitos dos dois grupos;

(iii) Discutir a relevância da alfabetização e do letramento escolar na habilidade narrativa,

a partir dos dados coletados.

4. METODOLOGIA

4.1 Participantes

Pretende-se contar para a pesquisa com um total de 10 (dez) participantes, sendo 5 (cinco)

alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e 5 (cinco) adultos não alfabetizados da Região

Metropolitana do Recife. Os sujeitos serão escolhidos segundo o critério de conveniência, que, de

acordo com Rodrigues (2006), admite todos aqueles que se disponham a participar da pesquisa

contanto que atendam aos critérios estabelecidos para o perfil proposto.

4.2 Procedimentos de coleta de dados

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Inicialmente será feito contato com a escola onde se pretende realizar o estudo a fim de

apresentar os objetivos do mesmo e obter a autorização para a realização do estudo. Uma vez obtida

a carta de anuência, iniciar-se-á um período de observação com a composição de um diário de

campo. Será feita também uma entrevista com os alunos com vistas a conhecer melhor os

participantes e suas motivações, e obter informações sobre o contato dos sujeitos com livros e

internet, seu interesse em filmes e novelas, dentre outros.

Cumprida esta etapa, será feita a seleção dos participantes do estudo, que serão contatados a

fim de apresentar os objetivos do estudo e verificar o seu interesse em participar do mesmo. Caso

concordem em participar do estudo, será lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido. Após a assinatura dos mesmos, será realizada a coleta de dados propriamente dita.

Para os participantes não alfabetizados o contato será feito em visita a seus lares. Será feita

uma entrevista para conhecer melhor os sujeitos, seus interesses e sua proximidade com práticas

letradas. Após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e sua declaração de

interesse em participar do estudo, agendar-se-á uma visita, respeitando-se a disponibilidade dos

participantes, para a coleta de dados.

Todos os participantes receberão uma cópia do TCLE, e uma segunda cópia ficará sob os

cuidados do pesquisador.

As narrativas serão gravadas para posterior transcrição e análise.

4.3 Materiais

Câmera de vídeo;

Gravador de áudio;

Computador;

Notebook ou tablet;

Fone de ouvido;

Pacote Microsoft Office;

Impressora;

Material bibliográfico.

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4.4 Do armazenamento dos dados

Os registros em vídeo e/ou áudio ficarão sob a guarda do pesquisador, o qual se

comprometerá a manter sigilosas as identidades dos participantes, e no núcleo de estudos da

universidade.

5. PROPOSTA DE ANÁLISE DOS DADOS

A pesquisa proposta não tem a pretensão de enumerar ou medir dados em termos estatísticos

(DENZIN e LINCOLN, 2010), antes, tenciona verificar se o letramento tem impactos significativos

na cognição humana, tendo como base a análise de narrativas que serão produzidas pelos

participantes da pesquisa. Assim, de acordo com Oliveira (2004), o método empregado será de

natureza qualitativa.

O presente estudo foi desenvolvido apoiado na perspectiva cultural que, de acordo com

Bruner (2001), defende que:

“Por mais que o indivíduo pareça operar por conta própria ao realizar sua

busca de significados, ninguém pode fazê-lo sem o auxílio dos sistemas

simbólicos da cultura. É a cultura que fornece as ferramentas para

organizarmos e entendermos nossos mundos de maneiras que sejam

comunicáveis. A característica da evolução humana é que a mente evoluiu de

uma forma que permite que os seres humanos utilizem as ferramentas da

cultura. Sem essas ferramentas, sejam simbólicas, sejam materiais, o homem

é um “macaco nu”, mas numa abstração vazia.” (pp 16, 17)

Esta perspectiva tem como uma de suas premissas a ideia de que a mente não poderia existir

se não fosse a cultura (Bruner, 2001), e assume-se que os processos cognitivos são permeados e

moldados pelo sistema cultural.

As narrativas transcritas e, a partir dos registros obtidos, pretende-se analisar as produções

narrativas com vistas a observar, dentre outros aspectos, a estrutura do texto, o uso adequado de

recursos coesivos (progressão do tempo, marcação do espaço e relações de causalidade), a clareza

na expressão das ideias, objetividade e linearidade da narrativa.

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REFERÊNCIAS

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