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Filosofia da linguagem, Wittgenstein – prof. Claudio F. Costa /UFRN-PPGFI (texto da dissertação de mestrado, IFCS, Rio de Janeiro 1982) WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO _________ Claudio F. Costa 1

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Filosofia da linguagem, Wittgenstein – prof. Claudio F. Costa /UFRN-PPGFI (texto da dissertação de mestrado, IFCS, Rio de Janeiro 1982)

WITTGENSTEINE A

GRAMÁTICADO

SIGNIFICADO

_________

Claudio F. Costa

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Ao professor Raul Landin

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SUMÁRIO

1. Introdução: filosofia como terapia e como protociência, p. 6

2. O significado como função do uso, p. 14

3. Jogos de linguagem, p. 19

4. Regras como relações criteriais, p. 27

5. Regras e gramática, p. 36

6. Seguir uma regra, p. 42

7. Formas de vida, p. 51

8. A indeterminação das expressões, p. 56

9. Linguagem e significado, p. 73

10. Conclusão, p. 81

Bibliografia, p. 84Apêndice (Glossário), p. 89

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CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO

Pode-se também dar o nome de “filosofia” ao que é possível antes de todas as novas descobertas e invenções (PI §126) 1.

Wittgenstein não pretendeu, em sua última filosofia, desenvolver uma teoria do significado. Nem mesmo tinha ele a intenção de fazer simples filosofia da linguagem.

Como bem o compreendeu K. T. Fann, Wittgenstein foi um pensador profundamente intuitivo, cujo impulso filosófico era de natureza obsessional e quase mística2. Aí estariam as razões do seu estilo oracular e epigramático, bem como da forma não-argumentativa e completamente assistemática de seus escritos, que seriam melhor compreendidos como um esforço de confissão e persuasão, tal como o foram antes dele os de Pascal, Kierkegaard e Agostinho3. Estes mesmos traços de personalidade talvez tenham igualmente contribuído para condicionar a sua própria concepção de filosofia. Para Wittgenstein, a filosofia deveria ser feita em grand stile, pois tratava-se de uma atividade terapêutica libertadora do espírito humano, voltada para ajudar pessoas que como ele próprio se achassem atormentadas por perplexidades filosóficas. Em semelhantes circunstâncias, torna-se compreensível que a linguagem e a teoria do significado não devessem interessá-lo, a não ser como um meio para atingir um fim, que seria o de desfazer as perplexidades filosóficas que aí se enraizassem.1 Sobre as abreviações feitas em referências a obras de Wittgenstein, consultar o glossário no final do livro.2 Ver K. T. Fann, Wittgenstein’s Conception of Philosophy, cap. X. Fann lembra, a propósito da atitude de Wittgenstein para com a filosofia, que este, pouco antes de sua morte, lembrou a um amigo a inscrição de Bach em seu “Pequeno Livro para Órgão”: “Para a glória do mais alto Deus, e que por meio disso meu próximo possa ser beneficiado!”. E apontando para a própria pilha dos seus manuscritos disse: “Isto é o que eu gostaria de ter sido capaz de dizer do meu próprio trabalho” (p. 108). 3 Cf. K. T. Fann, ibid. p. 105.

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As características acima delineadas não são suficientes para impedir-nos de procurar nos escritos de Wittgenstein o esboço de uma teoria geral da linguagem e do significado. Um esforço nesta direção foi feito por J. T. Richardson em The Grammar of Justification. Neste livro o autor argumenta a favor de uma teoria do significado em moldes construtivistas, que poderia ser encontrada latente na última filosofia de Wittgenstein, embora admitindo faltar a ela um desenvolvimento adequado 4.

A teoria do significado de que falava Richardson, revela-se extraordinariamente abrangente, apesar de vaga e fragmentária. Ela começa por produzir abstrações do mais elevado grau de generalidade, buscando então torná-las intuitivamente plausíveis pela descrição alusiva e elíptica de uma variedade de casos particulares – o que Gilbert Ryle certa vez chamou de método dos provadores de chá. Ganha-se assim generalidade o que geralmente é perdido em nitidez e objetividade.

A idéia de se procurar uma teoria do significado e da linguagem na filosofia de Wittgenstein detém-se, contudo, diante de um obstáculo mais sério: a concepção que ele próprio mantinha da filosofia como uma atividade não-teorética. Para afastarmos esta dificuldade, introduziremos, com objetivos reconstrutivos e alheios às próprias intenções de Wittgenstein, uma distinção entre duas espécies de filosofia, supondo depender da personalidade e das aptidões específicas de cada filósofo o seu desenvolvimento em uma ou em outra direção. Esta cisão de finalidades permite que sejam introduzidos dois modos opostos de se conceber a filosofia: a) a sua concepção como um método ou atividade terapêutica (Wittgenstein), b) a sua concepção como teoria protocientífica, ou seja, como uma especulação heurística que se pretende antecipadora do conhecimento científico (incluindo aí talvez parte do que Wittgenstein chamava de “metafísica” ou “enfermidade filosófica”). Não nego que há outros entendimentos possíveis para a filosofia, mas para nossa reconstrução bastarão esses dois.

Elucidaremos a seguir, separadamente, cada um desses modos de se conceber a filosofia, com o objetivo de mostrar que eles, longe de se oporem, seriam complementares, não devendo ser isoladamente concebíveis.

4 Cf. J. T. Richardson, The Grammar of Justification, (1974), pp. 45, 75, 78 e introdução. A idéia, contudo, é bem mais antiga. Ela já havia sido sugerida por Paul Feyerabend em um artigo de 1955, que assinalava a possibilidade não reconhecida por Wittgenstein de que a sua filosofia contivesse uma teoria construtivista do significado em nível metalingüístico, que seria constituída por “jogos de linguagem filosóficos” (Feyerabend, Wittgenstein’s Philosophical Investigations, in Pitcher, Wittgenstein, The Philosophical Investigations).

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A concepção da filosofia como um método ou atividade terapêutica foi a mais explicitamente defendida por Wittgenstein. Ela pressupõe uma outra, que ele geralmente chamava de “metafísica” (TLP, 6.53, BB, p.35), e que aqui designaremos pelo nome de filosofia como enfermidade, considerando-a parte da filosofia como teoria (protociência). A filosofia como enfermidade, para Wittgenstein, seria originada pelo impulso sentido pelo metafísico de investir contra as fronteiras da linguagem (PI §119). Dessa investida inglória resultam, para Wittgenstein, as “contusões do entendimento”: confusões, enganos, perplexidades, mal-entendidos, absurdos e ilusões que constituem a maior parte de nossa filosofia tradicional. Estas confusões, que é como gostaríamos de chamar as “contusões do entendimento”, ainda poderiam ser divididas em duas espécies: os pseudoproblemas filosóficos e as inúteis tentativas para resolvê-los, que ao fim não passariam de pseudo-soluções. Por exemplo: a prova da existência do mundo externo apresentada por G. E. Moore em Proof of an external world, seria interpretada por Wittgenstein como uma espécie de pseudosolução para um pseudoproblema – o problema da realidade.

Para Wittgenstein, os males filosóficos só poderiam ser curados pela nova filosofia terapêutica por ele praticada. A missão dessa nova filosofia não seria a de resolver, mas sim a de dissolver os pseudoproblemas e pseudo-soluções da filosofia como enfermidade, mostrando que eles não passavam de “ilusórios castelos de areia fundados sobre um entendimento errôneo do trabalho de nossa linguagem” (PI §118).

Wittgenstein, porém, não parece ter julgado necessário separar rigorosamente a filosofia como enfermidade da filosofia como terapia. Em sua obra, elas coexistem como se fossem as duas faces de uma mesma moeda. Para ele, a tendência a “correr de encontro às fronteiras da linguagem” faz parte da natureza profunda dos seres humanos, e seria mesmo de se supor necessário que o filósofo, para chegar a adotar a atitude terapêutica frente a uma dificuldade, tenha antes, ao menos vivenciado a atitude metafísica5.

Eis como Wittgenstein resume sua concepção de filosofia como atividade terapêutica: “Era certo dizer que nossas considerações não poderiam ser científicas (...). E não devemos construir nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada de hipotético em nossas considerações. Toda elucidação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição.” Essa descrição recebe a sua luz, isto é, a sua finalidade, dos problemas filosóficos. Tais problemas não são para Wittgenstein empíricos, mas resolvíveis pela observação cuidadosa do trabalho de nossa linguagem e apesar do impulso para mal compreendê-lo. Eles não são empíricos no sentido de que as suas respostas não dependem do acúmulo de novas informações, mas da combinação do que sempre foi sabido. 5 Ver Fann, ibid. p. 28.

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A filosofia, diz ele, é uma batalha contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios de nossa linguagem (PI §109). A julgar por tais passagens a filosofia deve, para Wittgenstein, ser pensada, não como teoria, mas como um método terapêutico; uma investigação conceitual de cunho “puramente descritivo” (Z §458; PI §124). Ela deve reorganizar uma desorganização aparentemente gratuita do que sempre foi dito e sabido, para assim “desfazer os nós do pensamento” (Z §452).

Para nós, a espécie de concepção bipolar da filosofia geralmente sustentada por Wittgenstein justifica-se apenas como uma particular conveniência metodológica. Generalizá-la para, além disso, parece conduzir-nos próximos à contradição. Wittgenstein pareceu ter tomado este caminho ao escrever no Tractatus Lógico-Philosophicus que suas próprias proposições teóricas não poderiam ser ditas, pois eram destituídas de sentido (TLP 6.54, 7), o que parece tornar aquela obra, se não contraditória, ao menos “retoricamente perversa”6. Nas Investigações Filosóficas esse negativismo teorético foi apenas atenuado: sendo as proposições de sua filosofia terapêutica simples reorganização do que já sabemos, elas devem ser consideradas lugares comuns destituídos de conteúdo informativo (PI. §128). Isso, contudo, não parece verdadeiro para a filosofia em geral e nem sequer para os escritos de Wittgenstein, pois estes são argumentativos, mesmo que os seus argumentos apareçam de forma metafórica e elusiva, e os resultados são por vezes profundamente contra-intuitivos e distantes de uma exposição de lugares comuns, como é o caso do argumento da linguagem privada, do qual resulta que não podemos nos referir a nossos estados mentais internos – como sensações e emoções – por meio da linguagem natural.7

A segunda concepção, que por razões metodológicas gostaríamos de opor à concepção terapêutica de Wittgenstein, é aquela que vê na filosofia uma espécie de saber especulativo antecipador do conhecimento científico – uma protociência. Ela foi admiravelmente descrita na seguinte passagem de J. L. Austin: “Na história da investigação humana, a filosofia ocupa o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso; de tempos em tempos, ele abandona uma parte de si próprio a fim de que assuma o estágio de ciência, como planeta, frio e perfeitamente regularizado, progredindo rapidamente para um distante estágio final. Isso aconteceu há muito tempo, no nascimento da matemática, e repetiu-se quando nasceu a física; no último século testemunhamos o mesmo processo lentamente e de modo quase imperceptível, no nascimento da lógica

6 Ver a introdução de Russell ao Tractatus Lógico-Philosophicus. Ver também a defesa de Max Black em Language and Philosophy - Studies in Method, p. 149 e segs.7 Ver, por exemplo, a calorosa discussão entre Wittgenstein e Popper, tal como foi relatada na Autobiografia Intelectual deste último (p. 131, trad. Brasileira).

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matemática, através dos esforços conjuntos dos filósofos e matemáticos. Não será possível que o próximo século possa assistir ao nascimento, através dos esforços conjuntos dos filósofos, gramáticos e outros estudiosos da linguagem, de uma verdadeira e compreensiva ciência da linguagem? Então nós deveremos livrar-nos de mais uma parte da filosofia do único modo que nós poderemos sempre livrar-nos da filosofia: por alçarmo-nos a um andar superior”8.

Esta será a concepção metodologicamente adotada nesse livro. Como não seria aqui o lugar mais apropriado para uma defesa argumentada de sua validade, apresentaremos em seguida uma interpretação concisa e inevitavelmente dogmática de tudo o que a passagem de Austin nos parece sugerir. Assim sendo, o leitor deverá considerar o que diremos mais como um conjunto de suposições instrumentalmente úteis a uma melhor compreensão de certos aspectos do pensamento de Wittgenstein, do que uma tentativa mais séria de convencê-lo de sua validade.

Eis como poderíamos interpretar a concepção acima apresentada. A filosofia tem lugar onde a ciência ainda não se pode reconhecer como ciência. Se designarmos pelo nome de espaço epistemológico o conjunto formado pelo discurso teórico de uma ciência aliado ao seu método, seu objeto específico etc., podemos dizer que a filosofia não tem um espaço epistemológico próprio. Ela apenas marca o lugar dos espaços epistemológicos ainda não preenchidos por alguma espécie de conhecimento científico, os quais ainda não puderam ser apropriados pela ciência, quer pela falta de uma apropriada metodologia de investigação, quer pela ausência de um adequado reconhecimento de seu objeto.

A filosofia como protociência, como Austin sugere, poderia ocupar tanto o lugar de uma ciência empírica como não-empírica. No caso das ciências empíricas, pode-se conceber que em uma época na qual as descobertas do elétron e dos elementos químicos eram impensáveis, o átomo de Leucipo e Demócrito e a teoria dos quatro elementos de Heráclito fossem, em um aspecto, remotas antecipações especulativas do átomo de J. J. Tompson e do sistema periódico de Mendeleev. De forma semelhante, o “Tratado das Paixões da Alma” de Descartes, poderia ser facilmente considerado um precursor introspeccionista da moderna psicologia das emoções. Justamente pelo fato de ciências empíricas como a física, a química e em parte a psicologia, já se terem firmado no horizonte do conhecimento, especulações filosóficas daquela espécie, se realizadas hoje, nos pareceriam em maior ou menor medida anacrônicas e despropositadas. Eis porque não 8 Cit. In Mats Furberg; Saying and Meaning - a main theme in J. L. Austin’s Philosophy, p. 48.

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mais parece possível uma psicologia introspeccionista, ou a espécie de cosmologia totalizadora que marcou os primórdios da filosofia ocidental.

Quanto às ciências ditas não-empíricas, estas também teriam ao seu modo se diferenciado da unidade sincrética que compunha a filosofia em seus primórdios. Sabemos que certas confusões da lógica clássica foram dissolvidas pelo advento da lógica simbólica, e que a própria matemática parece ter sido em seus primórdios em certa medida confundida com um saber empírico, tal como o professado pelas ciências naturais.

Em semelhante estado parece encontrar-se também a filosofia da linguagem, em cujos limites se desenvolveu o pensamento de Wittgenstein. A doutrina dos universais anunciada na obra de Platão, por exemplo, seria uma tentativa de solucionar uma espécie de problema para a qual Wittgenstein parece ter indicado ao menos uma nova perspectiva de solução9. Contudo, quando a solução definitiva de um problema como este tiver sido alcançada, ela não deverá mais pertencer à filosofia, mas talvez a algo como a “ciência da linguagem” profetizada por Austin – uma ciência não-empírica. Nossa última concepção de filosofia, por conseguinte, admite a existência de teorias filosóficas. Embora o que denominamos “teoria” em tal caso não devam ser mais que esboços especulativos, fragmentos hipostasiados, construções vagas e provisórias.

As duas concepções de filosofia que terminamos de expor – o método terapêutico e a teoria ou protociência – são, a nosso ver, complementares, fazendo parte de um todo único. Eis como poderíamos estabelecer a relação que haveria entre elas. Em primeiro lugar, a filosofia como protociência parece quase necessariamente conter em si mesma a filosofia como enfermidade ou violação das fronteiras da linguagem. Afinal, se a filosofia se projeta no espaço epistemológico ainda não ocupado pelo discurso científico (o qual poderá algum dia ser ocupado por sistemas ou jogos de linguagem científicos que ainda não se fazem presentes10), ela ainda não possui uma linguagem apropriada para o que tenta dizer. Como resultado, o discurso filosófico poderia muito facilmente emergir de alguma espécie de violação dos limites da linguagem (jogos de linguagem) efetivamente existentes; caso em que os pseudoproblemas e pseudo-soluções não mais necessitariam ser considerados vazios e gratuitos, mas formas defeituosas de se colocar

9 Ver, por exemplo, o ensaio de Rendford Bambrough: Universals and family resemblances, in Pitcher (ed.), The Philosophy of Wittgenstein.10 Consideraremos os jogos de linguagem como sistemas de regras capazes de determinar o uso de expressões, extendendo-os às regras (leis) que estabelecem o “espaço epistemológico” de uma ciência. Ver cap. III.

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problemas e soluções reais. Se assim o considerarmos, as confusões filosóficas só serão completamente desfeitas por ocasião do surgimento de alguma espécie de conhecimento científico que venha a tomar seu lugar.

Do ponto de vista da evolução do conhecimento, porém, antes que confusões filosóficas sejam dissolvidas à luz de alguma espécie de conhecimento científico, é possível que ao chegarmos mais perto da possibilidade desse conhecimento, sejamos capazes de desfazer, ao menos parcialmente (e com parciais “recaídas”, já que não se trata de um desenvolvimento homogêneo e contínuo) as confusões dos sistemas anteriores. Exemplos disso seriam, no campo do conhecimento empírico, a psicologia de William James em comparação com a de Descartes, e no campo da investigação conceitual, as Investigações Filosóficas em comparação com o Tractatus.

Algo semelhante parece ocorrer com relação à própria filosofia como terapia praticada por Wittgenstein. Podemos sugerir que ela só é capaz de desfazer as confusões do filósofo porque traz consigo a pressuposição tácita de uma teoria capaz de oferecer respostas mais apropriadas para os problemas reais que se encontravam ocultos por trás dessas confusões. O pseudoproblema de se saber qual é a essência necessária da linguagem, por exemplo, seria uma forma mal colocada da questão: “Qual é a espécie de unidade que a linguagem apresenta?”, que versa sobre um problema real. Wittgenstein só pode ter a pretensão de desfazer o falso problema da essência única da linguagem porque, com sua metáfora das semelhanças de família entre jogos de linguagem (ver cap. IX), já sugere à nossa intuição o esboço de uma resposta para o problema real. Sob este ponto de vista, a própria filosofia como terapia praticada por Wittgenstein, só se torna possível porque se faz acompanhar de uma especulação teórica aproximativa acerca da natureza da linguagem e do significado. Ela traz implícito um esforço involuntário rumo ao estabelecimento de alguma espécie de “ciência da linguagem”, que deveria constituir-se de jogos de linguagem “metalingüísticos”.

Se aceitarmos a argumentação acima, deveremos concluir que a filosofia como terapia pressupõe a filosofia como teoria (protociência). A primeira delas só se tornou possível para Wittgenstein porque já havia, subjacente à sua nova maneira de filosofar, toda uma sorte de pressupostos teóricos acerca do significado e da linguagem.

Em Wittgenstein, teoria e terapia se sobrepõem e se complementam. Seus escritos podem ser considerados como compostos de uma porção positiva - a teoria - que se encontra infusoriamente difundida em uma vasta porção negativa ou crítica - a filosofia como terapia. A porção positiva seria

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formada principalmente pelo esboço de uma nova teoria do significado e da linguagem. A porção negativa consiste na crítica aos pressupostos do Tractatus, às concepções causais e ideativas do significado, à possibilidade de uma linguagem privada, à filosofia do senso comum, e assim por diante.

Nosso objetivo neste livro será o de oferecer uma interpretação para alguns dos principais aspectos da “porção teórica” da última filosofia de Wittgenstein, nomeadamente, sua teoria da linguagem e do significado. Por causa disso, não nos ocuparemos da “porção terapêutica” de sua obra, a menos quando isso parecer necessário à adequada avaliação dos aspectos teóricos.

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CAPITULO II

O SIGNIFICADO COMO FUNÇÃO DO USO.

Cada signo tomado em si mesmo parece morto. O que lhe dá vida? – No uso ele vive. Tem então a viva respiração em si? Ou o uso é seu sopro vital? (PI §432).

Poderíamos, para efeito de clareza, resumir o que Wittgenstein tinha a dizer sobre o significado em uma fórmula elementar, ainda que imperfeita: O significado de uma expressão 11 pode ser considerado como seu uso conforme as regras de jogos de linguagem radicados em uma forma de vida.

Para que esta definição possa ser corretamente avaliada, faz-se necessária uma elucidação dos seus conceitos-chave, que são os de ‘uso’, ‘regra’, ‘jogos de linguagem’ e ‘formas de vida’, além de outros a eles relacionados, como os de ‘critério’, ‘semelhanças de família’ etc. Os capítulos que se seguem serão dedicados ao estudo de tais conceitos, buscando reuni-los em um sistema que constitua uma concepção geral da linguagem, da qual parecem decorrer naturalmente as conclusões semânticas de Wittgenstein. Começaremos, neste capítulo, com a discussão do conceito mais elementar e indeterminado dentre eles: o conceito de uso.

A última fase do pensamento filosófico de Wittgenstein já foi distinguida por nomes como “funcionalismo”, “construtivismo”, “contextualismo”, “operacionalismo” ou “instrumentalismo”12. A ênfase no aspecto funcional se vê justificada pelo fato de após o Tractatus Wittgenstein ter se voltado para a investigação da linguagem sob o ponto de vista do seu necessário desdobramento na ação, mais que do ponto de vista de sua estrutura assertiva. “A língua”, escreveu Wittgenstein, “é um instrumento e seus

11 Utilizaremos o termo ‘expressão’ de maneira a abranger tanto palavras isoladas como frases ou sentenças.12 Ver S. Ullmann, Semântica, pp. 134-6. Ver também Feyerabend, ibid. p. 122.

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conceitos são instrumentos” (PI §489; BB p.67). Se observarmos o que as pessoas efetivamente fazem com as palavras, veremos que elas se assemelham a ferramentas: “Há um martelo, uma tenaz, um serrote, uma chave de parafusos, um frasco de cola, pregos e parafusos; e as funções das palavras são tão diversas quanto as funções destes objetos” (PI §11; BB p.67, PG §31).

A adoção de uma perspectiva funcionalista ou instrumentalista por parte de Wittgenstein deve ter-se originado de uma constatação simples, mas fundamental: só podemos nos certificar do significado de uma palavra pela observação do seu uso. Suponhamos, escreveu ele, que eu mande uma pessoa fazer compras dando a ela um pedaço de papel onde está escrito “cinco maçãs vermelhas”. A pessoa leva o papel ao comerciante e este abre um caixote no qual está escrito “maças”; procura numa tabela de cores pela palavra “vermelho”, ao lado da qual está o modelo da cor. A seguir ele anuncia a série dos numerais até a palavra “cinco”, e a cada numeral retira do caixote uma maça da cor do modelo (Cf. PI §1). Como sabemos que o comerciante conhece o significado das palavras ‘vermelho’, ‘maça’, e ‘cinco’? A resposta é que ele conhece o significado dessas palavras porque soube usá-las corretamente e agiu em conformidade com o seu uso. Assim, a investigação do significado voltou-se em Wittgenstein para uma observação efetiva de nossas atividades discursivas. O significado de uma palavra só será esclarecido pela observação do que o ser humano faz com ela13, assim como só compreenderemos para que serve uma ferramenta pela observação de como ela é usada.

Wittgenstein, não obstante, fez muito mais do que apenas colocar em relevo o aspecto funcional da linguagem, ou sugerir a vinculação entre o estabelecimento do significado e a observação do uso. Ele foi mais além, a ponto de anunciar vigorosamente o que poderíamos qualificar como uma definição funcionalista do significado: “o uso da palavra na linguagem é seu significado” (PG §23; BB p.69). Ou, como aparece na mais conhecida passagem das Investigações Filosóficas: “Para uma grande classe de casos – embora não para todos – em que empregamos a palavra “significado”, ela pode ser definida assim: o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (PI §43).

Esta obscura e enigmática afirmação já levou intérpretes desavisados às mais contraditórias conclusões14, boa parte das quais tendo consistido, ao que

13 Cf. Ullmann, op. Cit. , p.134.14 Em uma leitura retrospectiva do que disseram os intérpretes sobre esta questão fundamental, as passagens que compõem a última fase do pensamento de Wittgenstein

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parece, em subestimar a unidade do pensamento de Wittgenstein, tentando interpretar a passagem isoladamente em relação ao contexto de sua obra.

Entre os erros cometidos na interpretação da passagem citada, existem dois que nos podem ser particularmente ilustrativos. O primeiro consiste em pensar que Wittgenstein, ao escrever que o significado é o uso “para uma grande classe de casos, mas não para todos”, havia mostrado hesitação em generalizar sua máxima, por ter reconhecido a existência de notórias exceções15. Esta conclusão, porém, não se faz necessária. Wittgenstein nunca parece ter estado a ponto de sugerir a existência de classes de palavras para as

tendem a aparentar-se a um maço de cartas que podem ser agrupadas de muitas e diferentes maneiras: para Pitcher (The Philosophy of Wittgenstein, p. 253), Wittgenstein errou ao identificar o significado ao uso, mas seu erro não teve maiores conseqüências, uma vez que na prática (e.g., PI §1) ele divorciava estas duas noções. Para C. Rardwick (Language Learning in Wittgenstein’s Philosophy, pp. 42-3), essa foi uma tentativa prematura de restaurar um desacreditado e radical nominalismo. Já para K. T. Fann (Wittgenstein’s Conception of Philosophy, pp. 102-3), Wittgenstein jamais quis dizer que o significado fosse de fato o uso, e nosso erro consiste em interpretar literalmente o que não passa de simples exortação retórica. Para R. J. Fogelin (Wittgenstein, p.108), Wittgenstein realmente identificou o significado ao uso, mas não tinha qualquer teoria articulada em mente, enquanto que, para James Bogen (Wittgenstein’s Philosophy of Language, pp. 201, 204, 206), não há em Wittgenstein qualquer evidência textual de que o uso de uma palavra ou sentença seja o seu papel em um jogo de linguagem, ou que esta última seja constituída de jogos de linguagem, como queriam Malcon, Rhees e Pitcher.15 Os exemplos destas exceções, contudo, podem aparentemente ser interpretados como demonstrações de um mau entendimento ou de uma má aplicação do que Wittgenstein sugeriu. George Pitcher, em The Philosophy of Wittgenstein (1964), inventariou algumas delas. Podemos, escreveu Pitcher, imaginar coisas que tem significado, mas não tem uso, como ‘nuvens negras no horizonte’ ou ‘pegadas na neve’. Além disso, é perfeitamente possível conhecer o significado de uma palavra sem conhecer seu uso, como no caso de alguém dizer-nos que ‘ultus’ significa ‘vingança’ em latim - pois neste caso, embora saibamos o significado da palavra , não temos idéia de como e quando usá-la. Também pode acontecer, escreveu Pitcher, que conheçamos o uso de uma palavra, mas não o seu significado, como nos casos de ‘amen’ e do signo ‘Q. E. D.’, o que não os torna destituídos de sentido. Identicamente, os nomes próprios também têm uso, mas não significado (Cf. op. Cit., pp. 251-2).

Os exemplos acima podem, no entanto, ser facilmente refutados. ‘Nuvens negras no horizonte’ poderiam ser usadas como critério (ver cap. IV) ao servir como prenúncio para uma tempestade, juntamente com ações a serem efetuadas, etc. Contudo, nada nos impede de considerar como uma espécie de “uso”, qualquer espécie de atividade que se faça determinar por signos. Quando aprendemos o significado de uma palavra como ‘ultus’, somos já capazes de dar-lhe um certo uso, mesmo que não seja aquele uso específico que ela teria dentro do contexto gramatical do latim (esta parcela do significado poderá ser aprendida mais tarde). Quem sabe utilizar signos como ‘amen’ e ‘Q. E. D.’, sabe o que eles significam, independentemente de conhecer ou não o seu significado em suas línguas de origem, pelo mesmo motivo pelo qual não é necessário que ninguém saiba o significado de

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quais o significado não pudesse ser considerado, de uma forma ou de outra, como seu uso. O que ele quis dizer na passagem citada é, como pensamos, de fato, que o significado de toda palavra é o seu uso na linguagem. Apenas que, sendo ‘significado’ uma palavra da linguagem, ela pode ter, como as demais, uma variedade de diferentes usos. Como conseqüência, a frase limitadora “para uma grande classe de casos, embora não para todos” não designa casos de palavras. O que a frase na verdade designa são aqueles casos de uso da palavra ‘significado’ (que aparece entre aspas no texto) nos quais ela não diz respeito ao uso de palavras (16). Para que isso seja correto, o conceito de ‘uso’ deverá ser aqui entendido de um modo muito amplo, abrangendo tanto o uso da expressão por parte do falante, como também se “uso” por parte do ouvinte que a compreende (ver o caso de ‘nuvens negras no horizonte’ na nota 14).

O segundo erro de interpretação é mais elementar. Ele consiste em fazer uma interpretação tout court da identificação entre uso e significado proposta por Wittgenstein, concluindo daí que o último defendia alguma espécie de nominalismo estremado. Neste caso, porém, seria demasiado fácil opor-lhe uma objeção esmagadora: se fosse simplesmente assim, alguém poderia escolher uma palavra qualquer de nossa linguagem e fazer dela um uso completamente absurdo. Cairíamos, assim, em uma situação paradoxal, na qual qualquer palavra poderia ser usada no lugar de qualquer outra, de maneira a adquirir o seu significado, o que esvaziaria a própria noção de significado – uma situação de “catástrofe semântica” que já havia sido humoristicamente aludida por Lewis Carol em um conhecido diálogo entre Alice e Humpty-Dumpty. Quando percebe que caiu em contradição, Humpty-Dumpty encerra a discussão com um argumento irrespondível: “Quando eu uso uma palavra, ela significa o que eu quero que signifique – e nada mais”. “Porque”, adiciona ele, “a questão é saber quem é o chefe”.

O erro de interpretação que conduz à objeção acima, consiste em não perceber que Wittgenstein nunca teria se referido ao uso arbitrário de palavras, mas sim ao seu uso correto, que é o uso em conformidade com regras; - o único virtualmente capaz de ser significativo. Daqui por diante, portanto, qualquer pergunta relativa ao uso deverá ser complementada com outra relativa às regras que o determinam.

‘Abat-jour’, ‘et-cetera’ e ‘necrofilia’ em suas línguas originais para conhecer seu significado (uso) na nossa. Além disso, nada nos impede de pensar, como fazia Wittgenstein (PI §§40, 79), que os nomes próprios são significativos, dando-lhes lugar em um jogo de linguagem apropriado (ver 3.12). 16 Segundo H. R. Finch (Wittgenstein - The Later Philosophy, p.33 e segs.), os dois casos mais importantes nos quais a palavra ‘significado’ não diz respeito ao uso são o significado como fisionomia (PI §568) e o significado como intenção (PI §§689, 693).

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Podemos neste ponto aproveitar para fazer uma importante constatação: se, como sugerimos, o significado de uma expressão é seu uso determinado por regras, então, uma descrição das regras que determinam o uso da expressão pode servir como forma de explicação de seu significado. Imagine-se, por exemplo, o caso do seguinte signo indicador de direção: “→”. O significado deste signo, para quem o observa, pode ser considerado como consistindo em seu uso segundo regras como a seguinte: “Sempre que nos deparamos com o signo “→”, devemos desviar nosso olhar para sua ponta”. Esta descrição contribui para mostrar-nos como usar o signo indicador de direção, servindo assim ao menos como parte da explicação do seu significado.

A explicação acima é obviamente parcial, tornando-se facilmente sujeita a objeções se não pensarmos na seta indicadora de direção como um signo cujo uso pode ser determinado por conjuntos de regras diversos em diferentes circunstâncias. Gostaríamos, pois, de concluir a discussão deste capítulo, com a sugestão de que o aparente caráter arbitrário da identificação entre significado e uso, só poderia ser finalmente resgatado pelo estabelecimento de uma “gramática” constituída pelos possíveis conjuntos ou sistemas de regras capazes de determiná-lo. Estes sistemas ou complexos de regras são o que Wittgenstein geralmente chamou de jogos de linguagem.

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CAPÍTULO III

JOGOS DE LINGUAGEM

Digamos que o significado de uma peça seja seu papel no jogo... (PI §563).

O conceito central da última fase do pensamento filosófico de Wittgenstein é o de jogo de linguagem. Uma linguagem, em seu funcionamento, é comparável a um jogo com seus participantes, peças, regras, operações e cálculos estratégicos.

Os jogos de linguagem já foram definidos por Wittgenstein como “sistemas completos de comunicação humana” (BB. P.81), ou “espécies de uso de palavras e frases” (PI §23). Já na opinião de intérpretes eles foram adequadamente considerados como “atividades discursivas”17, “sistemas de regras ou convenções”18, ou ainda, “atividades envolvendo o emprego de signos, das quais são constituídas as regras que determinam o significado desses signos”19. O conceito de jogo de linguagem, porém, é extremamente diversificado e fluido, podendo uma linguagem natural como a nossa ser considerada como uma “nebulosa massa de linguagem” (BB p.81) composta de um imensuravelmente complexo entrelaçado de jogos de linguagem. Por isso, mais proveitoso do que discutir sua definição, será seguir o fio de uma classificação que os caracterize.

De uma maneira artificial, mas esclarecedora, poderíamos classificar os jogos de linguagem apresentados por Wittgenstein em duas espécies gerais.

A primeira é a dos jogos de linguagem que são “modos de usar signos mais simples do que aqueles com os quais usamos signos na linguagem altamente complexa de nosso cotidiano” (BB p.17). Já a segunda espécie, é a

17 G. Pitcher, The Philosophy of Wittgenstein, p. 239.18 J. T. E. Richardson, The Grammar of Justification, p. 74.19 J. T. E. Richardson, Ibid. p. 75.

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dos jogos de linguagem efetivamente utilizados na linguagem natural e que são segmentos desta. Tais jogos podem geralmente ser chamados de compostos (Cf. PI §23), podendo ser “decompostos” em jogos de linguagem mais simples, segmentos mais elementares da linguagem.

Os jogos de linguagem simples podem ser introduzidos através de um exemplo paradigmático. Wittgenstein, ao que consta, fez uma tentativa frustrada de estabelecer uma ordem dos jogos de linguagem fundamentais na parte I do Brown Book20. Os primeiros a aparecer são os “jogos de dar ordens e obedecê-las” (BB p. 77 e segs., PI §23), que foram os que ele mais se preocupou em descrever, sendo possivelmente as mais distintivas dentre as formas fundamentais de comunicação humana. O mais conhecido destes jogos de comando, que é como preferimos denominá-los, é uma linguagem na qual um construtor A dá ordens ao seu auxiliar B (BB p. 77, PI §2). Eis como Wittgenstein o descreveu no início das Investigações Filosóficas:

(I) A linguagem deve servir para a comunicação entre o construtor A e seu ajudante B. A constrói um edifício com o material apropriado: tijolos, colunas, tábuas e vigas. B passa-lhe o material na medida em que A dele necessita. Para esta finalidade, eles usam uma linguagem constituída das palavras: “tijolos”, “colunas”, “tábuas”, “vigas”. A grita estas palavras: - B traz os objetos que aprendeu a trazer ao ouvir este chamado. - Conceba isso como uma linguagem totalmente primitiva (PI §2).

Eis aí o modelo em microcosmo de uma linguagem como a nossa. O exemplo mostra que um jogo de linguagem é um sistema de comunicação formado por signos, regras, usuários e o contexto dos fenômenos (ações, situações) circundantes. Ele deve incluir tanto a dimensão sintática da linguagem, como sua dimensão pragmática. “Chamarei de jogo de linguagem”, escreveu Wittgenstein, “ao todo, consistindo da linguagem e das ações por ela envolvidas” (PI §7).

A dimensão sintática é constituída de regras formais, podendo incluir as que aprendemos em nossa “gramática escolar”. A existência dessas regras torna-se evidente quando Wittgenstein descreve extensões do jogo de comando (I) apresentado acima, nas quais o construtor pede ao seu ajudante “Cinco tábuas” (BB p. 79) ou “Segundo, coluna; primeiro, tábua” (BB p. 83).

As regras formais não admitiriam nesses casos a formação de frases como “Colunas, segundo” ou “Tábuas dois”. A dimensão pragmática, por sua 20 Segundo H. L. Finch, Wittgenstein - The Later Philosophy, p. 81.

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vez, é constituída pelo que chamaremos de regras práticas, as quais têm a especial função de associar expressões a condições empíricas (circunstâncias, comportamentos e atividades humanas) capazes de validar seu uso21. Pode-se supor, por exemplo, que no jogo (I) o grito “Tijolo!” proferido por A, sirva de critério para a regra segundo a qual “Sempre que A gritar ‘Tijolo!’, B deve levar uma pedra de certo formato até ele”. Regras como essa têm um particular interesse semântico, já que enquanto regras como as de nossa gramática escolar podem servir indiferenciadamente a muitos jogos de linguagem diferentes, as últimas servem apenas a este jogo de linguagem particular, o que permite individualizarmos o uso da expressão em um particular sistema de regras.

A simplicidade do jogo de linguagem (I) não o torna, porém, alguma coisa distinta de nossa própria linguagem: ele pode efetivamente existir, como parte do verdadeiro diálogo entre um construtor e seu ajudante.

Só que neste caso, muitos outros jogos de linguagem são adicionados a ele, de maneira a torná-lo aparentemente inseparável dos demais. Com efeito, este simples jogo de comando pode admitir uma infinidade de adições e variantes, consideradas por Wittgenstein como jogos de linguagem distintos:

(II) O construtor A realiza combinações de signos como “Tábua aqui”, “Coluna ali”, etc., quando quer que B leve o material de construção até determinado lugar. Quando A pronuncia essas frases, ele as faz acompanhar de um gesto indicador do lugar onde quer que B deposite a pedra, fazendo este gesto parte do jogo (BB p. 80).(III) A dá ordens múltiplas como “Tábua, coluna, tijolos” (BB p. 83).(IV) A indica a ordem na qual B deve trazer o material, fazendo uso de ordinais como: “Segundo, coluna; primeiro, tábua; terceiro, tijolo!” (BB p.83).(V) A faz uso de cardinais como “Cinco tábuas”, “Dois tijolos” (BB p.79).(VI) Podemos imaginar ainda um jogo de linguagem que consista na combinação de toldos estes jogos (assim como (IV) contém (I) e (III). Neste jogo, seriam possíveis frases como “Primeiro, cinco tábuas ali; segundo, uma coluna; terceiro, dois tijolos”.

A seqüência de exemplos acima apresentada, parece tornar evidente que os jogos de linguagem mais simples podem ser conjugados de maneira a construir toda uma linguagem como a nossa, ou então, de maneira inversa, que nossa linguagem possa ser dividida ou decomposta (PI §§48,60) nestes jogos 21 Ver a distinção entre regras práticas e formais apresentada no capítulo IV.

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de linguagem mais simples. Os mesmos exemplos também evidenciam o fato de que esta divisão ou decomposição da linguagem pode ser feita de muitas maneiras distintas (PI §48), pois os jogos de linguagem tem as propriedades de a) se sobreporem parcialmente, compartilhando de certas regras em comum (como (III) e (IV); Cf. PI §66), e b) se incluírem uns aos outros, de modo que um contenha todas as regras de outros, além de outras que lhe sejam exclusivas (como (IV) e (III); Cf. z §648).

Assim, o estudo dos jogos de linguagem simples pode servir ao objetivo de elucidar a natureza de nossa própria linguagem; pois eles não se encontram necessariamente separados por uma interrupção dos nossos jogos de linguagem mais complexos: “Nós vemos que é possível construir as formas mais complicadas a partir das mais primitivas pela adição gradual de novas formas” (BB p. 17). Os jogos de linguagem mais simples entram em nossa linguagem como peças em um jogo de armar, e dela não costumam diferir essencialmente. Eles nos são úteis porque, estando postados do seu interior, não somos geralmente capazes de ter uma visão de conjunto da linguagem. Assim, eles podem nos servir como modelos úteis para o reconhecimento de suas estruturas, do mesmo modo que o estudo dos sistemas de trocas primitivos e simplificados pode ser útil ao economista para o conhecimento de sua matéria.

Neste ponto, duas questões podem ser levantadas acerca do que foi dito. A primeira é: qual a vantagem existente no apelo a um conceito de dimensões tão variáveis? A resposta parece ser de que ele serve em Wittgenstein a uma estratégia heurística na detecção de semelhanças e diferenças nos modos de uso (significado) de uma mesma expressão. Esta resposta decorre do seguinte raciocínio: se, 1) uma mesma expressão, como vimos nos exemplos acima, pode ser usada em vários jogos de linguagem diversos e, 2) o significado de uma expressão, como já sugerimos, pode ser considerado como determinado pelas regras do jogo de linguagem no qual ela for usada, então podemos concluir que 3) o significado de uma expressão pode variar ou mesmo alterar-se completamente, de acordo com o jogo no qual ela estiver sendo usada.

Assim sendo, é possível que os jogos de linguagem nos sejam úteis nos casos em que queiramos evidenciar uma variação ou nuance no uso da expressão. Se, por exemplo, pretendêssemos colocar à mostra uma suposta nuance no uso de uma palavra no jogo (IV) para distingui-la de seu uso em (V), será útil considerá-los como dois jogos distintos, para em seguida opô-los entre si. Neste caso, não será de qualquer valia descrevermos (VI) como um jogo de linguagem. Mas podemos imaginar também que o que pretendemos não seja distinguir uma variação fina, mas uma variação mais grosseira entre o uso da mesma expressão em (VI) e seu uso em um jogo “(VII)”. Neste caso,

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não haverá vantagem em subdividirmos (VI) em jogos como (IV) e (V). O que Wittgenstein considera como jogo de linguagem na maioria das vezes parece depender simplesmente da vantagem heurística circunstancial de uma divisão da linguagem que permita desfazer certas confusões filosóficas causadas pela assimilação dos diferentes usos de uma mesma expressão (PI §90).

A segunda questão seria a de se saber se todo e qualquer fragmento arbitrariamente escolhido do sistema de regras de nossa linguagem – chamado por Wittgenstein de “gramática” – pode ser considerado como um jogo de linguagem. Eis como pensamos que poderia ser respondida esta questão: o que confere unidade a um conjunto de regras de maneira a torná-lo um jogo de linguagem é o fato de que ele permite a formação de expressões com um “quantum” particular de significado; o que poderíamos chamar de “movimentos completos” no jogo. Estes movimentos são ações inteligíveis entre os participantes de uma linguagem que partilham de uma mesma forma de vida (divisão do mundo instituída em um agrupamento social) (ver cap. VII). Como ilustração, podemos imaginar que em um jogo de xadrez, encontrássemos uma regra segundo a qual devêssemos girar a peça três vezes antes de fazer um lance com ela (PI §567). Não perceberíamos, disse Wittgenstein, a graça (Witz) dessa prescrição, e faríamos suposições sobre sua finalidade como instrumento de ação (PI §567). Algo semelhante poderia resultar se fundíssemos arbitrariamente algumas regras do jogo de damas com outras do jogo de xadrez – os movimentos permitidos então perderiam certamente sua finalidade para nós. Da mesma forma, se assimilássemos parte das regras do jogo (I) a regras do jogo (II), de maneira que o ajudante apenas tomasse o objeto nas mãos, olhasse para o local indicado pelo construtor, e então o deixasse cair, poderíamos ser levados a observar: esta não é uma ação inteligível em nossa forma de vida, não obstante ser possível imaginar formas de vida nas quais isso poderia ser um movimento significativo em um jogo de linguagem. “Nós chamamos alguma coisa de jogo de linguagem”, escreveu Wittgenstein, “quando ela desempenha algum papel na vida humana”22.

3.112 Com base nos textos de Wittgenstein, poderíamos subdividir didaticamente os jogos de linguagem mais simples em três formas intrinsecamente relacionadas: os jogos de linguagem “infantis”, “primitivos” e “artificiais”. Os primeiros são as “formas de linguagem com as quais a criança começa a fazer uso das palavras” (BB p. 17; PI §7). Wittgenstein advertiu, porém, que não recorria a tais jogos com o objetivo de fazer psicologia infantil (Z §412), mas sim esclarecer o significado das expressões através do estudo 22 Wittgenstein; Notes for lectures on, ‘private experience and ‘sense data’, §177, in H. Morick; Introduction to Philosophy of Mind (1970).

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dos modos como poderíamos tê-las aprendido. Semelhante exame permite um maior esclarecimento do significado porque no uso adulto de uma expressão, os vários modos de sua aplicação costumam integrar-se uns aos outros de maneira complexa. Já, quando buscamos decompor as etapas do aprendizado de uma expressão, isso nos permite individualizar com mais clareza seus modos de iniciais e primitivos, ao dispô-los em sua ordem de aparecimento – o que levará a uma melhor tomada de consciência do papel desempenhado pela expressão em nossa linguagem adulta.

A segunda forma pela qual Wittgenstein se referia aos jogos de linguagem simples era como “o estudo de formas primitivas de linguagem” (BB p. 17) ou “o completo sistema de comunicação de uma tribo em um primitivo estado da sociedade” (BB p. 81)23. Também aqui Wittgenstein advertiu que não pretendia fazer algo como uma “história natural” da linguagem (PI p. 230), mas tão somente inventar linguagem primitivas fictícias, com o objetivo de esclarecer a nossa (BB p.81; pp. 93-4, 100, 102-3, 110) – o que é possível na medida em que aí se encontram versões mais fundamentais e distintas do uso de expressões como as nossas.

Por fim, embora Wittgenstein assim não os tenha denominado, poderíamos falar de jogos de linguagem “artificiais”, deliberadamente inventados com o propósito de opor contraste à nossa linguagem (BB p.28).

São eles jogos de linguagem absurdos, como o jogo da linguagem privada24, ou jogos de linguagem pertencentes a formas de vida25 que nos sejam estranhas. Tais jogos de linguagem põem a nu as confusões derivadas da assimilação de diferentes usos de uma mesma expressão, mostrando a impossibilidade de compreendermos jogos de linguagem essencialmente constituídos por elas (PI §90). Estes jogos – como outros jogos de linguagem simples – cumprem primeiramente com um objetivo terapêutico:

23 Wittgenstein foi provavelmente influenciado pela leitura do ensaio de Bronislaw Malinowski, O significado em liguagens primitivas (publicado em 1923, como suplemento de O significado do Significado, de Ogden e Richards). Neste ensaio, Malinowski ocupou-se em descrever o que poderíamos chamar de um “jogo de linguagem primitivo”, praticado pelos pescadores nativos de Nova guiné. Seu objetivo era mostrar que “uma linguagem primitiva é um instrumento de ação” no qual o significado das palavras “depende em elevado grau do contexto” (p.303), só se tornando compreensível quando visto “contra o pano de fundo dos hábitos da psicologia tribal, seu comportamento, comércio, cerimoniais religiosos etc.” (p.309). Wittgenstein percebeu, mais do que Malinowski, a dimensão universal de semelhantes constatações.24 Wittgenstein; Notes for lectures on ‘private experience and ‘sense data’, §169, in H. Morick; Introduction to Philosophy of Mind (1970).25 Para uma elucidação desta noção, ver cap. VII.

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Sempre que nós construímos ‘linguagens ideais’, não é com o objetivo de substituir nossa linguagem ordinária por elas; mas precisamente para remover algum problema causado na mente de alguém por ter pensado que alcançou o entendimento do uso preciso de uma palavra comum. Eis porque nosso método não é meramente o de enumerar as utilizações atuais das palavras, mas inventar deliberadamente novos usos, alguns deles devido à sua absurda aparência (BB p.28).

Assim, em Wittgenstein os jogos de linguagem simples servem principalmente como objeto de comparação, que por meio de semelhanças e diferenças, lançam luz sobre as confusões dos filósofos com relação à sutileza da aplicação de expressões nos jogos mais complexos de nossa linguagem ordinária: “Quando olhamos para estas formas simples de linguagem, a névoa mental que parecia ensombrecer nosso uso ordinário da linguagem desaparece” (BB p. 17).

Os jogos de linguagem altamente complexos ou “compostos” são os que constituem unidades mais amplas de nossa linguagem (as quais chamaremos também de formas de linguagem ou suas “regiões”) sendo, certamente, muito mais difíceis de serem descritos. Eles podem, tanto quanto os outros, estabelecer relações, por meio de regras, entre a expressão e um grande número de coisas ou eventos, tais como as palavras e as ações do falante e de um suposto ouvinte no presente, passado e futuro, e a dependência entre as circunstâncias “perceptíveis” da situação presente, passada e futura e a aplicação da expressão26. Wittgenstein apenas mencionava estes jogos, quase sem procurar descrevê-los ou classificá-los. Contudo, uma lista deles nos sugere que devam cobrir todos os usos possíveis da linguagem.

De acordo com uma classificação tradicional, os usos ou funções da linguagem podem ser divididos em três categorias gerais: os usos informativo, expressivo e diretivo27, sendo muitos deles mistos, com participação predominante de uma ou outra categoria. O uso informativo, mais característico da exposição científica, serve para comunicar informações, afirmar a verdade ou falsidade de proposições, expor argumentos etc. O uso expressivo, mais característico da linguagem poética, serve para suscitar emoções e sentimentos. E o uso diretivo, mais característico dos comandos, pedidos... serve para produzir ou prevenir a ação28.

26 Cf. Stegmuller, W.; A Filosofia Contemporânea, p. 451.27 Cf. Copi, I. M..; Introduction to Logic, p.45 e segs.28 Uma outra maneira mais genérica de se dividir a linguagem é pela distinção sugerida por J. L. Austin entre proferimentos constatativos, que podem ser verdadeiros e falsos, e proferimentos performativos, que realizam uma ação e podem ser bem ou mal sucedidos.

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Os jogos de nossa linguagem cotidiana incluem-se, como subdivisões, em todas as três categorias acima apresentadas. Entre os exemplos de uso predominantemente diretivo estão obedecer e dar ordens, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar (PI §23), fazer definições ostensivas (PI §27, BB p.83) e explicá-las (PI II, p.217) etc. Entre os que servem a um uso predominantemente expressivo estão recitar poesias, representar teatro, cantar uma cantiga de roda, fazer uma anedota (PI §23) etc. Por fim, entre os jogos de linguagem predominantemente assertivos estão apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas, expor uma hipótese e prová-la, descrever um objeto (ver PI §23); recordar-se de desejos passados (PI §654-6), descrever objetos físicos e impressões sensoriais (PI II, p.180), jogos de linguagem inventados como modelos de teorias filosóficas como a teoria das descrições de Russel tal como foi interpretada no Tractatus (PI §60), ou as explicações sobre os nomes apresentadas no Teeteto de Platão (PI §§48,64). Ainda uma classe de jogos de linguagem predominantemente assertivos (que abrange muitos dos já mencionados, seriam os jogos de conhecimento (knowing games)29 estudados por Wittgenstein em Sobre a Certeza, que apresentam importância epistemológica. Os jogos de conhecimento poderiam ser melhor exemplificados pelo jogo da história (OC §85), pelo jogo da dúvida (OC §115), pelas linguagens da física, química e aritmética (OC §§447,169), pelo jogo dos nomes próprios (OC §§579,628), pela linguagem das cores (colour language)30, etc., que juntos contribuem para formar o nosso quadro do mundo (concepção da realidade) (OC §95).

29 Ver T. Morawetz, Wittgenstein & Knowledge, caps. III e IV.30 L. Wittgenstein, Remarks on Colour (1978). A prática de atomização ou decomposição de jogos de linguagem complexos com o objetivo de distinguir variações no uso de uma expressão é bem exemplificada neste pequeno livro. A linguagem das cores é dividida em jogos mais simples como informar se um certo corpo é mais luminoso que outro (RC I,§1), que é aparentado com os de estabelecer relações entre a luminosidade de certas gradações de cor (RC I, §1), apontar para um amarelo avermelhado (ou branco, azul e marrom) (RC III, §30), apontar para (uma cor) mais avermelhada que outra (RC III, §30), ou menos avermelhada que outra (RC III, §30), jogos de linguagem com conceitos de cores saturadas (RC III, §15), etc.,etc.

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CAPÍTULO IV

REGRAS COMO RELAÇÕES CRITERIAIS

Os critérios, i.e., aquilo que dá às nossas palavras seus significados comuns. (BB p. 57).

Como já foi sugerido, os jogos de linguagem são sistemas de regras capazes de determinar o uso de suas expressões. Assim sendo, a compreensão da noção de regra torna-se fundamental para o entendimento do que Wittgenstein tinha a dizer.

Neste e nos dois próximos capítulos, procuraremos elucidar a noção de regra, da qual até agora pressupomos apenas um entendimento intuitivo. Para melhor caracterizarmos a noção de regra em Wittgenstein, dividiremos nossa abordagem em três pontos de vista distintos: a) do ponto de vista dos objetos aos quais elas se aplicam; b) do ponto de vista de sua relação com os sistemas de regras que constituem a gramática; c) do ponto de vista do sujeito que as aplica. Neste capítulo, começaremos investigando as regras do ponto de vista dos objetos ou entidades (coisas, eventos) as quais elas são aplicadas, o que nos conduzirá diretamente à noção fundamental de critério (Kriterium).

Antes de começarmos, porém, algumas definições e distinções conceptuais visando uma maior unificação terminológica parecem fazer-se necessárias. Elas serão um tanto vagas, mas poderão revelar-se úteis se ao final se demonstrarem capazes de abrir lugar a uma compreensão mais consistente do que Wittgenstein buscava transmitir.

Chamaremos primeiramente de signo a qualquer entidade (coisa, evento) que represente outra. Chamaremos, por sua vez, de fenômeno a qualquer entidade capaz de estimular nossos sentidos. Por contexto

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entenderemos um conjunto de entidades (coisas, eventos) relacionadas de certa maneira, com a condição de que essas entidades e a maneira como elas se relacionam sejam reconhecidas pela comunidade lingüística31. Supomos que as entidades de um contexto sejam de duas espécies: “coisas” e “eventos”. Como coisas, elas se acham espacialmente relacionadas entre si, formando o que chamaremos de contextos de situação. Como eventos, elas se acham relacionadas entre si por uma seqüência temporal, formando o que poderíamos chamar de contexto de ação. Tanto os contextos de situação como os de ação podem se apresentar, por sua vez, sob duas formas gerais: como contextos de representação e como contextos de fenômenos. Como contexto de representação, consideraremos os conjuntos de signos relacionados de certa maneira cuja função pode ser considerada como essencialmente lingüística, na medida em que serve à comunicação e expressão. As entidades de tal contexto podem ser tomadas como signos, recebendo nomes distintos como ‘palavras’, ‘símbolos’, ‘expressões’, ‘frases’, ou mesmo serem chamadas de ‘imagens’, ‘idéias’, ‘pensamentos’, ‘representações’, etc. Em contraposição ao contexto de representação, chamaremos de contexto de fenômenos aos conjuntos de fenômenos relacionados de certa maneira, os quais são essencialmente caracterizados por servirem, não como signos representacionais, mas como fenômenos, i.e., como “estímulos sensoriais” relacionados às necessidades e disposições próprias de certa forma de vida (ver cap. VII). Os contextos de fenômenos envolvem entidades empíricas independentes da vontade do sujeito, tais como os objetos do mundo externo, ou então, fenômenos mentais como ‘ser capaz’, ‘ver’, ‘acreditar’, ‘pensar’, ‘desejar’ (Z §§38, 471) ou ‘esperar’ (PI §583). As entidades desses contextos têm função lingüística (comunicacional, expressiva) secundária, acessória, ou mesmo acidental. A noção de ‘contexto de fenômenos’ deve aqui tomar o lugar de certas aplicações de termos como ‘ações ou atividades’(OC §§284,431), ‘circunstâncias’ (PI §§539,164), ‘situações’, (PI §§337, 591-2), ‘comportamentos’ (BB p.24), ‘ambientes’ (PI §250), meios, etc., que tem, para Wittgenstein, um papel necessário à linguagem humana, apesar de complementar.

Para que as distinções acima recebam validade operacional, devemos começar com uma observação elementar que, por isso mesmo, parece ter sido muito pouco considerada: uma regra pode ser definida, em sua estrutura, como uma relação de natureza prescritiva mantida entre duas espécies de entidades32, as quais chamaremos de termos ou componentes.

31 Esta é uma versão algo modificada da definição de Ogden e Richards.32 Este é, coincidentemente, o modo como P. M. S. Hacker definiu, em Insight and Illusion, a relação criterial (criterial relation ou “C-relation”), p. 285.

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Um ligeiro exame das expressões de regra que constituem a gramática dos jogos de linguagem (ver cap. V) é suficiente para convencer-nos disso.

As regras que constituem os jogos de linguagem, como já tivemos ocasião de observar, podem ser minimamente de dois tipos: formais e práticas.

Estamos agora em condições de definir melhor o que pretendíamos dizer com isso. Regras formais, no sentido em que estamos considerando, são aquelas que estabelecem relações prescritivas entre entidades (signos) pertencentes a contextos de representação (por exemplo: relações apenas entre palavras, frases, idéias, etc). Para que uma regra seja sintática, ela deve ser aplicada somente a um contexto de representações, abstraindo-se os contextos de fenômenos que possam tê-la tornado necessária. Este caso pode ser exemplificado por regras como as de nossa “gramática escolar”, como no caso daquela que afirma que “verbos transitivos necessitam de complemento”.

Basta que saibamos que ‘quebrar’ é um verbo transitivo para que possamos aplicar esta regra a uma frase como “O menino quebrou...” (cujas entidades pertencem obviamente a uma contexto de representações), fazendo-nos concluir que se trata de uma frase incompleta (uma conclusão que também se coloca em um contexto de representação).

A regra é aqui aplicada a contextos de representações, independentemente do fato de sabermos aplicar a frase a contextos de fenômenos ou mesmo entendermos o que ela significa. Não somente as regras de nossa “gramática escolar”, mas também outras de maior interesse para Wittgenstein, as regras de sua gramática profunda33, também podem desempenhar uma função sintática, sempre que se aplicam somente a contextos de representações. Podemos, por exemplo, aplicar uma regra da gramática profunda afirmando que “Um mesmo lugar não pode ser simultaneamente ocupado por duas cores” (BB p. 56) para mostrar a incorreção da frase “Este ponto é agora azul e vermelho”, e isso independentemente de sabermos ou não reconhecer em um contexto de fenômenos cores como o azul e o vermelho.

Quanto às regras práticas, podemos dividi-las em duas espécies: as regras que usualmente chamamos de práticas e as regras que poderíamos qualificar como exclusivamente práticas. As regras exclusivamente práticas são as que estabelecem relações prescritivas entre entidades (fenômenos) pertencentes a contextos de fenômenos. No caso de sermos guiados por um atalho no campo, por exemplo, podemos estar seguindo uma regra que

33 As quais são regras particularizadas para determinado(s) jogo(s) de linguagem, formando a parcela específica de sua gramática. Por essa mesma especificidade localizadora, essas regras são as que mais propriamente mereceriam o título de “semânticas”. (ver cap. IX).

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estabelece uma relação prescritiva entre o caminho que vemos diante de nós (o qual pertence a um contexto de fenômenos) e a direção de nossos passos (que também pertence a um contexto de fenômenos).

Por exercer-se somente em um contexto de fenômenos, esta regra poderia ser chamada de exclusivamente prática, apresentando certamente escassa importância do ponto de vista da linguagem.

Há, finalmente, um terceiro tipo “misto” de regra, situado a meio caminho entre as regras formais e as regras exclusivamente práticas. Estas regras apresentam extraordinária importância para o tema deste capítulo.

Gostaríamos de chamá-las aqui simplesmente pelo nome de regras práticas. As regras práticas são as que estabelecem relações prescritivas entre entidades (fenômenos) pertencentes a contextos de fenômenos e entidades (signos) pertencentes a contextos de representações. Como uma regra é uma relação prescritiva entre um termo antecedente e um termo conseqüente34, para o caso das regras práticas que relacionam entre si contextos de fenômenos e de representações, podemos ter aqui duas possibilidades: a) o componente antecedente pertence a um contexto de fenômenos, mantendo uma relação prescritiva com o termo conseqüente, pertencente a um contexto de representações; b) o termo antecedente pertence a um contexto de representações, mantendo uma relação prescritiva com o componente conseqüente, pertencente a um contexto de fenômenos.

A principal vantagem das idéias que acabamos de expor, como veremos, consiste no fato delas permitirem que uma noção freqüentemente usada por Wittgenstein, a de critério, seja incorporada à gramática dos jogos de linguagem, e assim à teoria da linguagem como um todo, incluindo suas decorrências semânticas 35.34 Essas denominações precisam ser aqui intuitivamente aceitas, já que servem como um artifício expositivo que nos permite passar ao largo de uma discussão direta da questão: “que espécie de relação criterial?” Uma das fontes iniciais dessa discussão, foi o artigo de Roger Abbrington, On Wittgenstein’s use of the term criterion, no qual o “critério definitório era interpretado como fonte de uma relação de implicação lógica”. Mais tarde, Antony Kenny em seu artigo Criterion, sugeriu que a relação criterial, embora não sendo necessariamente de implicação, deveria constituir-se em alguma espécie de “evidência não indutiva”.

Posteriormente, Gordon Baker, em seu importante artigo, “Criteria: a new foundation for semantics”, veio a considerar a relação criterial como “mais fraca que uma implicação e mais forte que uma confirmação indutiva” (p.158), sugerindo que ela devesse ser explorada por meio de lógicas multivaluadas ou modais (p.167, op. cit., publ. In Ratio 16, 1974).35 A possibilidade de uma semântica fundamentada na noção de critério foi primeiramente aventada por Gordon Baker em uma tese doutoral não publicada The Logic of Vagueness), sendo posteriormente retomada por P. M. S. Hacker no último capítulo de Insight and

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Ao que parece, poderíamos definir os critérios como componentes ou termos antecedentes de regras específicas para determinados jogos de linguagem, as quais não são compartilhadas com a maioria dos outros jogos36. Estas regras, chamadas por Wittgenstein de fundamentos (grounds) dos jogos de linguagem (OC §§110, 204, 559), são também chamadas de relações criteriais, podendo ser expressas por “proposições metodológicas” (Cf. OC §318).

Poderíamos sugerir que, para o que um intérprete como George Pitcher chamou de jogos de linguagem “impuros”37 – ou seja, aqueles que contém necessariamente regras práticas que os identifiquem em sua especificidade própria (e.g., os jogos de comando), - os critérios são termos antecedentes das regras práticas que os fundamentam. Já, para o que Pitcher chamou de jogos de linguagem “puros” - menos comuns e sempre dependentes dos anteriores (e.g., demonstrar teoremas e realizar cálculos abstratos), que conteriam apenas regras formais, - os critérios são, como signos, termos antecedentes de regras formais que os fundamentam38.

Os critérios que são, como entidades em contextos de fenômenos, termos antecedentes de regras práticas do tipo a na fundamentação de jogos de linguagem “impuros”, são os que foram geralmente como “critérios de evidência” para o estabelecimento de conclusões no contexto de

Illusion (1972) e pelo próprio Baker em Criteria: a new foundation for semantics (1974). Sua insuficiência, em parte reconhecida no último ensaio de Baker, consistia em não ter permitido clarificar suficientemente a conexão do conceito de critério “com outros conceitos técnicos como semelhanças de família, jogos de linguagem e formas de vida” (p.187). Esta dificuldade foi parcialmente superada na interpretação de Richardson (The Grammar of Justification, cap. V). Richardson considerou os critérios como regras determinadoras do significado (Cf. p. 115, op. cit) em jogos de linguagem: “Tais convenções lingüísticas determinando as condições sob as quais uma palavra pode ser justificadamente aplicada (ascribed), são regras que constituem o jogo de linguagem com aquela palavra” (p. 126, op. cit.). Na verdade, os critérios não são regras, mas seus termos antecedentes.36 Por exemplo: a regra (pragmática) do jogo de comando (I), segundo a qual “Quando A grita ‘Tábua!’, B deve trazer-lhe certo objeto”, pertence especificamente a este jogo (razão pela qual dizemos pertencer a uma “gramática profunda” (PI §664). Já uma regra (sintática) da “gramática escolar” (ou “gramática superficial”) que demonstre a incorreção da frase “Tábuas dois” no jogo de comando (V) (ver 3.11) é inespecífica, pois pode ser aplicada a uma multiplicidade de jogos de linguagem, não servindo para fundamentar (particularizar) um jogo de linguagem simples.37 G. Pitcher, The Philosophy of Wittgenstein, p. 247-8.38 Estes jogos de linguagem “puros” seriam aparentemente o que Feyerabend chamou de “jogos de linguagem metalingüísticos” (ver nota em 1.1), pois teriam com objeto a própria linguagem, tal como se dá com o que chamamos de teoria da linguagem.

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representações de um “jogo de conhecimento”. Veja-se, por exemplo, o critério “tátil” para alguém poder dizer que seu dedo tocou em seu olho:

O critério para que meu dedo tenha tocado meu olho deveria ser somente que eu tivesse uma particular sensação que poderia fazer-me dizer que eu estava tocando meu olho, mesmo se eu não tivesse evidência visual para isso, e mesmo se, olhando para um espelho, eu visse meu dedo tocando, não meu olho, mas digamos, minha testa (BB p.51).

Embora estes casos tenham sido os mais freqüentemente considerados por Wittgenstein, eles não esgotam as aplicações da noção de critério. Os critérios podem ser também termos antecedentes de regras do tipo b, como signos em contextos de representações (PI §§182, 239). Uma regra como a já mencionada para o jogo de comando (I), por exemplo, pode ser considerada como uma relação criterial na qual o grito “Tábua!”, que pertence a um contexto de representações, serve como critério para a realização de uma ação em um contexto de fenômenos.

As relações criteriais práticas dos tipos a e b, que fundamentam jogos de linguagem “impuros”, são importantes porque tem a propriedade fundamental de vincular a linguagem ao mundo em que vivemos. Porque o mundo, na medida em que for constituído por contextos com fenômenos identificáveis como componentes de regras, torna-se deste modo parte constituinte da linguagem, que serve à comunicação e expressão; razão pela qual dizemos que a gramática determina a estrutura, divisão e limites do mundo, tal como nós o concebemos (39).

Por fim, algumas passagens das Investigações Filosóficas sugerem que também termos antecedentes de regras formais possam ser tratados como critérios (PI §§182, 344, 377, 542), os quais poderiam fundamentar jogos de linguagem “puros”. Estes termos antecedentes, porém, parecem ser critérios secundários. Pois, como observou Wittgenstein, uma tabela decorada pode servir de critério em uma regra sintática, mas a própria tabela, como tal, só é confiável na medida em que tiver como critério último, entidades de contextos de fenômenos a partir das quais ela foi estabelecida (PI §265).

4.32 Wittgenstein opôs à noção de critério o que ele chamou de sintoma. Ao que parece, os sintomas poderiam ser considerados como termos conseqüentes de relações criteriais. Assim sendo, enquanto a presença de critérios costuma ser capaz de proporcionar evidência conclusiva com base em alguma forma de relação não-indutiva (ver nota em 4.2), o mesmo não ocorre 39 Cf. D. Pole; The Later Philosophy of Wittgenstein, p. 54.

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com os sintomas. Estes últimos, seriam capazes de proporcionar apenas uma evidência indutiva daquilo que é critério:

Deixe-nos introduzir dois termos antitéticos, de modo a evitar certas confusões elementares: para a questão “Como você sabe que alguma coisa é o caso?”, nós às vezes respondemos fornecendo ‘critérios’, outras ‘sintomas’. Se a ciência médica chama de angina uma inflamação causada por um bacilo e nós perguntamos em um caso particular “Porque você diz que este homem teve angina?” então a resposta “Eu encontrei tal e tal bacilo em seu sangue” dá-nos o critério definitório de angina. Se, por outro lado, a resposta fosse “Sua garganta está inflamada”, isso deve dar-nos um sintoma de angina. Eu chamo de “sintoma” um fenômeno do qual a experiência nos ensina que tem coincidido de um modo ou de outro, com o fenômeno que é nosso critério definitório (BB pp.24-5).

Por outro lado, devemos também notar que, para Wittgenstein, esses dois conceitos são fluidos, não havendo uma fronteira nítida a separá-los. Em diferentes ocasiões, uma mesma entidade poderá oscilar, tanto elevando-se à categoria de critério quanto sendo rebaixada a um sintoma (PI §354, Z §466).

Isto ocorre, ao nosso ver, porque critérios e sintomas não existem como entidades isoladas. Eles quase sempre existem como entidades que, multiplamente relacionadas em contextos, são capazes de estabelecer intrincados sistemas de relações (ver BB. p. 61-4). Por exemplo: Blue Book (p. 23-4), Wittgenstein aludiu a possibilidade de que o ato de uma pessoa colocar a mão no queixo pudesse ser critério para concluirmos que ela sente dor de dentes. Contudo, podem existir ocasiões nas quais a constatação deste fato não sirva de critério para dor de dentes, como no caso em que a pessoa está apenas fingindo (PI §§244, 249; Z §571). Neste último caso, estamos apenas diante de um sintoma. Ora, o que faz com que o fato de alguém por a mão no queixo seja por vezes critério e por vezes apenas sintoma para dor de dentes, são as entidades relacionadas de uma certa maneira e que constituem o contexto circundante. Assim, se uma pessoa encontra-se na sala de esperas de um consultório dentário, franze a testa e geme de dor, este contexto complementar adicionado ao fato de que ela põe a mão no queixo pode tornar seu gesto um critério capaz de fornecer evidência conclusiva para que possamos afirmar que ela tem dor de dentes. Por outro lado, se a mesma pessoa pusesse a mão no queixo ao escutar uma música em uma sala de concertos, isso seria simples e, no caso, irrelevante sintoma.

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4.33 Junto à questão gramatical há, por fim, uma questão semântica. A característica mais importante da relação criterial, tomada como regra gramatical fundamentadora de um jogo de linguagem é que, segundo Wittgenstein, “os critérios determinam o significado”:

É parte da gramática da palavra “cadeira”, que com ela nós possamos dizer “sentar-se em uma cadeira”, e é parte da gramática da palavra “significado” que com ela nós possamos dizer “explicação do significado”; do mesmo modo, explicar meu critério para outra pessoa ter dor de dente é dar uma explicação que concerne ao significado da expressão “dor de dente” (BB p. 24).

Os critérios que determinam o significado, na medida em que estabelecem os modos de aplicação específicos de uma expressão nos jogos de linguagem em que ela pode participar40, tem o papel fundamental de permitir que situemos uma expressão no contexto de um jogo de linguagem específico, ao relacioná-la convencionalmente com ele, determinando assim sua aplicação, uso ou significado no jogo. Melhor analisando, poderíamos admitir aqui dois casos diferentes: um para o receptor ou ouvinte, que deve compreender uma expressão proferida em um contexto, e outro para o emissor ou falante, que deve encontrar a expressão adequada a um determinado contexto.

O primeiro caso seria aquele no qual, como receptores ou ouvintes, queremos identificar o jogo de linguagem (sistema de regras) em que a expressão está sendo usada. Neste caso, a existência de contextos de qualquer espécie a envolver a expressão, estabelece certos critérios, que identificamos como termos de regras capazes de fundamentar um particular jogo de linguagem. E quando somos capazes de estabelecer o jogo de linguagem no qual a expressão está sendo usada, isso equivale a determinar seu significado.

O segundo caso, seria aquele no qual, como emissores ou falantes, usamos a linguagem ativamente. Neste caso, para que nossas expressões tenham determinado uso, devemos formulá-las de tal maneira que os contextos adjacentes forneçam os critérios necessários para a fundamentação de seu uso no jogo de linguagem pretendido. Caso contrário, não poderíamos tornar nossas expressões compreensíveis a um suposto ouvinte.

Quando as relações criteriais que fundamentam um jogo de linguagem forem estabelecidas somente entre contextos de representações, estaremos usando (ou localizando) a expressão em jogos de linguagem “puros”. Já,

40 Nos capítulos VIII e IX, veremos como uma mesma expressão pode ser usada com significados diferentes em uma diversidade de jogos de linguagem com semelhanças de família entre si.

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quando as mesmas relações forem estabelecidas entre contextos de representações e contextos de fenômenos, teremos os casos de jogos de linguagem “impuros’ que envolvem regras práticas, tal como acontece na praxis de nossa fala cotidiana.

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CAPÍTULO V

REGRAS E GRAMÁTICA

Toda proposição empírica pode servir como uma regra, se ela for fixada como peça imóvel de um mecanismo, de tal forma que a totalidade da representação gira ao seu redor tornando-a parte de um sistema de coordenadas independentes dos fatos. (RFM VII §74).

Neste capítulo iremos estudar, de maneira geral, as regras sob o ponto de vista de suas funções nos sistemas de regras gramaticais que são os jogos de linguagem. As regras da gramática podem entrar em um jogo de linguagem das mais variadas maneiras (Cf. PI §53), como atesta a seguinte passagem das Investigações Filosóficas:

A regra pode ser um auxílio no ensino do jogo. É comunicada àquele que aprende e sua aplicação é exercitada. Ou é um instrumento do próprio jogo. Ou, uma regra não encontra emprego nem no ensino nem no próprio jogo, não vindo indicada no catálogo das regras. Aprende-se o jogo observando como os outros jogam (PI §54).

Nesta passagem como em outras (Z §294, PG §73) são exemplificadas, embora não explicitamente distinguidas, o que poderíamos chamar de duas funções gerais que as regras podem ter com relação aos jogos de linguagem.

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Gostaríamos de chamá-las aqui de função constitutiva e função regulativa41, correspondendo aproximadamente ao que Wittgenstein chamou de regras essenciais e inessenciais. A diferença entre uma regra a qual atribuímos função constitutiva e uma regra a qual atribuímos função regulativa, pode ser comparada à diferença que existe entre as regras de um jogo de xadrez e as regras que constituem o regulamento determinador da ordem e do papel das partidas em um campeonato de xadrez. Ambos os conjuntos de regras têm algo a ver com o jogo. Apenas que as regras regulativas são “exteriores” ao jogo, enquanto as regras constitutivas são “interiores” a ele.

O que dissemos, porém, não deve ser interpretado como se as regras com função regulativa em relação a um jogo de linguagem particular, devessem subsistir em um espaço “agramatical” exterior ao dos jogos de linguagem. Ao que parece, podem haver aqui dois casos. No primeiro, as regras regulativas são admitidas como responsáveis por movimentos especiais em um jogo de linguagem, como é o caso do movimento de justificação em um jogo de conhecimento. A decisão por sorteio de quem receberá as peças brancas no início da partida de xadrez, por exemplo, poderia virtualmente ser considerada como uma regra regulativa que participa deste jogo na qualidade de produtora de um movimento especial (inessencial) (PI §§ 563-7). No segundo caso, as regras regulativas são mais independentes, sendo melhor considerá-las como pertencentes a um outro jogo de linguagem, que no momento não está em questão – as regras deste segundo jogo são aplicadas ao primeiro, desempenhando em relação a este papel que aparentemente poderia ser chamado de metalingüístico. O campeonato ou torneio de xadrez, por exemplo, pode ele próprio ser considerado como uma espécie de jogo, cujas regras englobam, de certa maneira, os jogos de xadrez que aí ocorrem. Tais regras, se consideradas com relação ao próprio torneio de xadrez (tomado como jogo), serão tidas, naturalmente, como regras constitutivas. Se, por outro lado, elas forem consideradas com relação a um jogo particular de xadrez ocorrido durante o torneio, serão chamadas regulativas.

O que dissemos justifica o emprego do termo “função”: uma mesma regra pode exercer, ora uma função constitutiva, ora uma função regulativa, dependendo do jogo de linguagem que estivermos considerando no momento.

Por fim, devemos observar também que os exemplos acima sugerem a existência de fronteiras imprecisas (broad borderlines) (ver 8.21) entre as regras constitutivas e as regras regulativas, bem como entre as regras tidas como movimentos especiais de um jogo de linguagem e as regras tidas como 41 As expressões ‘regulativa’ e ‘constitutiva’ são empregadas aqui independentemente do sentido a elas atribuído por J. R. Searle (Cf. What is a Speech act?, p.41).-

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movimentos de um outro jogo de linguagem, “metalingüístico” em relação àquele (escolhemos como pertencentes a um outro jogo, aquelas regras regulativas que nos parecem fazer parte de um conjunto particularmente distinto e independente). Feitas estas considerações gerais, poderemos melhor caracterizar as distinções acima, pela exposições de alguns casos adicionais.

Uma regra tem função regulativa quando ela não faz parte do processo do jogo de linguagem em questão42. Podemos tê-las em uma diversidade de casos como:

(I) Regras que servem para auxiliar alguém no aprendizado do jogo (PI §54).

(II) Regras usadas para definir um jogo como: “Xadrez é um jogo governado por tais e tais regras”43.

(III) regras que são invocadas para solucionar uma disputa entre os jogadores, como as que são usadas para a justificação de um movimento em um “jogo de conhecimento” (OC §163; ver 3.12).

(IV) Regras de “questionamento” (OC §315), que fundamentam o “movimento de colocar em dúvida” ou mesmo um particular jogo da dúvida (game of doubt; OC §§115,126). Elas servem para: 1) colocar em dúvida a validade de certos movimentos em um jogo de linguagem, tomando como base justificatória, as regras fundamentadoras destes jogos, ou 2) colocar em dúvida os próprios jogos de linguagem, tomando como base justificatória as regras fundamentadoras de outros jogos de linguagem existentes (ou supostamente existentes, no caso da dúvida teórica em filosofia), capazes de relativizar os fundamentos dos primeiros, ao transformá-los em movimentos circunstanciais destes últimos (44).42 Ver Friedrich Waismann, The Principles of Linguistic Philosophy, cap. III. Nossa classificação é essencialmente baseada no trabalho de Waismann. De acordo com G. P. Baker, em Verehrung und Verkehrung: Waismann and Wittgestein (publ. in Wittgenstein: Sources and Perspectives), aquele importante livro foi originalmente planejado como uma tentativa de realizar uma exposição sistemática do pensamento de Wittgenstein para o círculo de Viena, tendo para isso contado com a colaboração pessoal do próprio Wittgenstein até 1936, ano da morte de Schlick. O caráter sistematizador do trabalho de Waismann, torna-o particularmente importante aos nossos propósitos.43 Cf. Ibid, p. 130-1.44 Para ilustrar esta possibilidade, não prevista por Wittgenstein, imagine-se, por exemplo, uma tribo primitiva na qual as pessoas acreditam que podem ir a lua enquanto dormem (OC §106), que seus reis sejam deuses, ou que tenham o poder de provocar chuva (OC §§92,132). Tais crenças, eles as justificam por meio de certas regras (expressáveis em proposições), que fundamentam o conjunto mitológico de seus “jogos de conhecimento”: a sua pintura do mundo (OC §95). Se quisermos contentar suas crenças, poderemos talvez recorrer a “jogos de conhecimento” como os da física, psicologia, antropologia, etc., que

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(V) As regras de uma teoria da linguagem, tal como a esboçada em Wittgenstein, que, ao nível de jogos de linguagem “metalingüístico”, busca estabelecer os princípios gerais da estrutura e do funcionamento de qualquer linguagem.

Uma regra tem função constitutiva, por sua vez, quando seu uso faz parte do processo do jogo de linguagem como tal (como, por exemplo, nos casos em que a regra é um instrumento de ação (Cf. citação PI §53)). São a elas que nos referimos no capítulo anterior como regras metodológicas ou fundamentadoras dos jogos de linguagem.

Tanto as regras constitutivas quanto as regras regulativas de um jogo de linguagem podem ser também divididas, pela maneira como atuam, em duas espécies: I) quando o jogo se processa envolvendo a regra; II) quando o jogo se processa em concordância com a regra (Cf. BB pp. 12-13). Expondo em maiores detalhes, podemos dizer que:

(I) No primeiro caso, que ocorre quando o processo ou o movimento do jogo envolve a regra, o uso da regra é incorporado como signo explícito no interior do jogo. Ou, nas palavras de Wittgenstein: “o símbolo da regra faz parte do cálculo” (BB p. 13, grifo nosso).

Para ilustrar a definição acima, podemos recorrer a um jogo de linguagem semelhante aos já apresentados, no qual A entrega a B a seguinte tábua (Cf. BB p.95, PG §141):

são fundamentados por regras (leis) que constituem nossa própria pintura científica do mundo. Com estes jogos, seríamos capazes de mostrar que não é possível flutuar no espaço sem oxigênio (OC §92), e , mais, que suas crenças são motivadas por tais e tais circunstâncias culturais, sociais, econômicas, etc. Se assim o fizéssemos, poderíamos em princípio “relativizar” sua pintura do ainda mundo ao tornar as regras que a fundamentam explicáveis como movimentos circunstanciais a serem fundamentados por nossa própria pintura científica do mundo.

Em On Certainty, Wittgenstein pretendeu mostrar que uma freqüente confusão filosófica, consiste em se colocar em dúvida certas regras fundamentadoras de um jogo de linguagem, sem ter para isso um fundamento justificador substitutivo em outro jogo - o que conduz a uma dúvida ilegítima ou infundada (e.g., a dúvida cartesiana se tomada como fonte de um ceticismo prático); o mesmo se dava quando se põe em dúvida certas regras fundamentadoras de um jogo de linguagem tomando como base outras de suas próprias regras, o que conduz apenas a uma dúvida ridícula (e.g., no jogo da história, a dúvida de que Napoleão tenha de fato existido (OC §185)), pois está última denota uma má compreensão do sistema de regras constitui o jogo.

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A dá ordens para B, proferindo sentenças com o “ac”, “acadd”, “cada”, etc. B olha para a seta correspondente a cada letra, movendo-se em seguida em conformidade com elas, assim:

“ac” “acadd” “cada”

A tábua que A entrega a B é assim incorporada ao processo do jogo como configuração explícita de uma regra composta,ou, nas palavras de Wittgenstein, como “expressões de uma regra” (BB p. 95). Em nossa linguagem, estas “expressões de regra” também podem aparecer, não geralmente como tabelas, mas como proposições que expressam regras.

(II) No segundo caso, muito mais comum, que ocorre quando o processo ou movimento do jogo se dá em concordância com uma regra (BB pp. 12-13), a regra é usada sem que venha explicitada por símbolos pertencentes ao jogo.

Para ilustrar esta última definição, imagine-se agora que a correspondência entre as letras e os movimentos do jogo de linguagem apresentado acima seja, com a prática, decorada por B, de maneira que ele passe a prescindir totalmente da tabela. Neste caso, o jogo deixou de ser jogado envolvendo uma regra, passando a ser jogado em concordância com ela, pois a regra deixou de vir representada por sua expressão de regra (tabela). Contudo, a expressão de regra poderá novamente ser suscitada se, por exemplo, surgirem dúvidas sobre o procedimento e A pedir a B que este desenhe a tabela, ou que demonstre conhecê-la, movendo-se segundo as ordens “a”, “b”, “c”, “d” (movimentos que podem “expressar” a regra).

Quando aprendemos uma linguagem, é freqüente que iniciemos com jogos de linguagem que envolvem regras. Com a prática, porém, passamos a prescindir deles, agindo em concordância com regras de cuja aplicação deixamos de ter uma clara consciência.

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A →

B ←

C ↑

D ↓

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CAPÍTULO VI

SEGUIR UMA REGRA

A origem e a forma primitiva do jogo de linguagem é uma reação; só sobre ela podem crescer as formas mais complicadas.Quero dizer - a linguagem é um refinamento, ‘no princípio era a ação’ (O p.63).

Neste capítulo, iremos estudar as regras com relação aos sujeitos que as seguem.

Não basta que algo possa ser representado como uma regra para que desempenhe tal função. Qualquer um de nós pode inventar uma proposição prescritiva que tenha a estrutura formal de uma regra. Contudo, isso não será suficiente para torná-la expressão de uma regra capaz de orientar as ações humanas. Para que tal aconteça, parece antes de tudo necessário que ela exerça uma papel definido entre os seres humanos: é necessário que estes a sigam como uma regra. Só assim ela poderá cumprir o papel específico que lhe será destinado no jogo de linguagem: o de fundamento determinador da ação lingüística45.

45 No capítulo IV, quando estudamos o que poderíamos chamar de “estrutura” das regras, pressupúnhamos que o leitor já tivesse um conhecimento intuitivo do que é seguir uma regra. Pois só no caso de já ter seguido regras, poderia ele reconhecer a estrutura descrita como adequada, do mesmo modo que só podemos dizer que uma peça pertence ao mecanismo no caso de já tê-lo posto em funcionamento (PI §270-1). Uma vez que no capítulo IV já elucidamos a estrutura das regras, iremos agora utilizar-nos daquelas aquisições com o objetivo de trazer uma tomada de consciência mais efetiva do que fazíamos intuitivamente ao seguir regras, esclarecendo isso ao nível da linguagem verbal. Não há, como possa parecer, um círculo lógico (PI §208) no qual se explica a estrutura da regra com base em sua aplicação e vice-versa. Pois “seguir uma regra” é, em cada caso, usado em níveis discursivos (jogos de linguagem ) diferentes.

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Em seus comentários sobre a gramática do conceito de regra (ver RFM VI e VII, PI §§143-243, Z §§276-330), Wittgenstein descreveu um grande número de “características”, “atributos” ou “traços constitutivos” (em última análise, critérios de reconhecimento) da ação de seguir uma regra. Nenhuma dessas características, tomada isoladamente, parece suficiente para garantir-nos que uma regra está sendo seguida, e nem todas são necessárias para que isso aconteça. Isto parece suceder-se dessa maneira porque existem vários modos diferentes de se seguir uma regra, todos eles aparentados entre si pelo que Wittgenstein chamou de semelhanças de família (ver cap. VIII). O que apresentaremos a seguir será apenas um esboço fracionado e algo disperso, no qual figuram as características que nos parecem mais representativas.

A mais evidente característica de uma regra, considerada em sua relação com aqueles que a seguem, é que uma regra é alguma coisa que guia uma atividade46. Esta característica não serve, porém, como definição do que há de essencial no conceito de seguir uma regra. Ela não é uma característica suficiente, já que podemos ser guiados sem estarmos seguindo qualquer regra. Pois ‘ser guiado’ é um conceito que apresenta uma variedade de aplicações, muitas das quais incompatíveis com a atividade de seguir uma regra. A seguinte passagem das Investigações Filosóficas pode servir para ilustrar o que estamos dizendo:

Você está em um pátio de jogos, com os olhos vendados, e alguém o conduz pela mão, ora à esquerda, ora à direita; você deve estar preparado para receber um puxão em sua mão, e deve também cuidar-se para não cair a um puxão inesperado. Ou então: você é guiado violentamente pela mão, para onde não quer ir; à força. Ou: ao dançar um parceiro o guia; você faz-se a si mesmo tão receptivo quanto possível, maneira a adivinhar sua intenção e obedecer a mais leve pressão. Ou: alguém o guia em um passeio; vocês vão conversando; onde ele vai, você vai também. Ou: você segue por um atalho no campo, deixa-se guiar por ele (PI §172). Se somos violentamente carregados para onde não queremos ir, não estamos seguindo regra alguma. Mas se um atalho no campo nos guia, é provável que sim. Para que algo seja designado como uma regra, é necessário que outros atributos sejam adicionados ao de ser simplesmente alguma coisa que guia uma atividade.

Outra característica do conceito de seguir uma regra é que este é análogo à obediência de uma ordem, comando (PI §§206, 212) ou intimação 46 F. Waismann, The Principles of Linguistic Philosophy, p. 132.

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(RFM VII §§47-9, 61). Isto serve para colocar em relevo o aspecto normativo das regras. Podemos dar ordens para homens, ou, em certos casos, para animais domésticos. Mas dificilmente poderíamos dizer que uma borboleta atraída pela luz acede a um comando, ou que os movimentos das estrelas são regidos por comandos47. E a razão disso é que a palavra ‘comando’ só adquire sentido quando usada dentro de uma certa atmosfera que a vincule à sociedade humana e às relações sociais (Z §350). Eis porque, se transferirmos a ação de seguir uma ordem para organismos muito pouco aparentados aos seres humanos, como os insetos, ou à matéria inanimada, uma forma peculiar de incerteza aparece48. Regras são comandos, e comandos são normas que só ganham inteligibilidade se sua origem e aplicação forem inerentes a nossa forma de vida humana.

Outro traço que distingue a regra como comando é que não temos liberdade para não segui-las: “Quando alguém que eu temo me dá uma ordem,agirei rapidamente com toda a segurança e a falta de razões não me perturbará” (PI §212). “Quando sigo a regra não escolho. Sigo a regra cegamente” (PI §219). De algum modo isso acontece sempre e ao fim independentemente de nós mesmos porque quaisquer que sejam nossos comportamentos, atividades e manifestações lingüísticas, somos determinados por regras.

O fato das regras de um modo ou de outro equivalerem a comandos, parece uma característica necessário ao seu seguimento. Mas seguramente não é suficiente para caracterizar a atividade de seguir uma regra. Afinal, existem comandos que não são regras: uma ordem pode ser dada a uma pessoa uma única vez, ao passo que uma regra “não poderia ser seguida por uma única pessoa uma única vez na vida” (PI §199). Seguir uma regra tem, para Wittgenstein, estreita afinidade com os conceitos de ‘regularidade’, ‘uniformidade’ e ‘fazer o mesmo’ (PI §§207-8, RFM VI §43), o que não acontece com o conceito de comando. Além do mais, um comando pressupõe alguém que comanda. Uma regra não.

Ainda uma característica necessária para que uma regra seja seguida, parece ser a de que ela seja, ao menos em princípio, susceptível de identificação pública.

Para Wittgenstein, as regras da linguagem devem apoiar-se, direta ou indiretamente, em critérios públicos ou intersubjetivos, pertencentes ao que já chamamos de contexto de fenômenos. Se assim não fosse, não teríamos como distinguir entre acreditar seguir uma regra e em verdade segui-la:

47 Cf. Ibid, pp. 134-5.48 Ibid, p. 135.

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Eis porque ‘seguir a regra’ é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra (PI §202).

A suposição da existência de regras privadas pressupõe a falta de um critério independente que nos certifique do uso da mesma regra por uma mesma pessoa mais de uma vez (PI §199, RFM VI §21), o que, como já vimos, parece ser uma característica gramatical necessária ao conceito de ‘seguir uma regra’. Parece, pois, razoável admitir-se a impossibilidade de seguirmos uma regra privadamente.

Outra característica, necessária à atividade de seguir regras em nossa linguagem intersubjetiva, é que estas sejam resultado de convenção.

Elas são, porém, convenções cujo grau de arbitrariedade é limitado. As regras da culinária, por exemplo, são até certo ponto arbitrárias, assim como as regras de composição em pintura. Elas são arbitrárias na medida em que um sistema de regras pode ser substituído por outro (e.g., a cozinha suíça pela cozinha chinesa ou a pintura expressionista pelo cubismo). Esta arbitrariedade é, não obstante, limitada, na medida em que estes sistemas de regras devem de alguma forma agradar ao paladar humano ou ao nosso senso estético. Algo semelhante acontece com os sistemas de regras de nossa linguagem. Eles devem servir à forma de vida que os instituiu:

Correto ou falso é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acordo sobre opiniões, mas sobre o modo de vida (PI §241).

Wittgenstein não adere, como gostaríamos de notar, a um convencionalismo extremado, segundo o qual um sistema de regras é tão injustificável quanto qualquer outro, sendo tudo simples matéria de convenção49. Sua posição parece pressupor limites para a arbitrariedade das convenções gramaticais, já que não poderíamos tornar compreensível um sistema de regras que não fosse capaz de desempenhar algum papel em nossa forma de vida humana (Cf. 3.111).

Há uma outra característica comum à maioria das regras, que embora não seja nem necessária nem suficiente50, é quase uma constante em nossa linguagem: as regras gramaticais são geralmente automatizadas, e nosso domínio sobre elas advém de um treinamento que não exige sequer que em algum momento tenhamos tomado consciência de sua existência (aprendizado não-cognitivo).49 Cf. T. Morawetz, Wittgenstein & Knowledge, p. 29.50 Exemplo de uma exceção é o jogo apresentado no §33 do Brown Book (ver 5.2).

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Consideremos, por exemplo, o caso de um signo simples como este indicador de direção: →. Imaginemos que ele seja a expressão de uma regra segundo a qual “devemos, sempre que ele nos for apresentado, desviar os olhos para sua ponta”. Esta descrição, como já vimos, corresponde a uma explicação do significado do signo. A pergunta é: de que maneira o uso do signo segundo a regra é aprendido? Para Wittgenstein, isso ocorre por meio de um treinamento específico, que termina por dar a regra a propriedade de nos compelir a ações (RFM VII §47):

Permita-me perguntar: o que tem a ver a expressão da regra - digamos, o indicador de direção - com minhas ações? Que espécie de ligação existe aí? – Ora, talvez esta: fui treinado para reagir de uma determinada maneira a este signo e agora reajo assim (...).Alguém somente se orienta por um indicador de direção na medida em que haja um uso constante, um hábito (PI §198).

Para Wittgenstein, o aprendizado das regras não costuma resultar de explicações verbais explícitas acerca do uso das expressões. Ele é derivado diretamente da participação da criança na práxis comunal da linguagem. E suas regras são em geral aprendidas por meio de um “adestramento”:

A criança aprende a linguagem em seu desenvolvimento por ser treinada em seu uso. Eu estou usando a palavra “treinamento” de um modo estritamente análogo àquele pelo qual falamos que um animal é treinado para fazer certas coisas. Isto é feito por meio de exemplo, recompensa, punição e congêneres (BB p.77).

Por meio de um treinamento semelhante, um signo como a seta torna-se responsável por uma reação de tal forma espontânea, que o fato dela apontar para algo parece fazer parte de sua ou de nossa própria natureza (PI §454).

Sobre esta concepção mantida por Wittgenstein acerca da maneira como as regras da linguagem costumam ser aprendidas, gostaríamos de fazer duas observações. A primeira é que, a julgar por sua exposição, este aprendizado não costuma diferir da aquisição de condicionamentos operantes ou respondentes, adquiridos na infância de forma não-cognitiva - o que parece aproximar Wittgenstein do behaviorismo, que costuma fundamentar-se em teorias do condicionamento. Contudo, como observou W. Stegmuller51, qualquer aproximação neste sentido seria problemática, uma vez Wittgenstein sempre recusou o pressuposto metafísico fundamental do behaviorismo, que nega a existência de fenômenos ou processos psíquicos (PI §§ 307-8).

51 Ver W. Stegmuller, Filosofia Contemporânea I , pp.484-5.

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A segunda observação que gostaríamos de fazer, tem algum interesse para a compreensão do que no capítulo introdutório chamamos de transgressões dos limites da linguagem. Ela resulta da comparação entre o que Wittgenstein escreveu sobre o aprendizado das regras por treinamento com sua subseqüente automatização em hábitos lingüísticos, e o que um psicólogo como Jean Piaget escreveu sobre a tomada de consciência de ações automatizadas.

Wittgenstein sabia da importância do fato de que somos em geral inconscientes da enorme complexidade gramatical envolvida em nosso uso cotidiano da linguagem (Cf. Z §119). Sobre isso, poderíamos adicionar que, não só é geralmente desnecessário que tenhamos consciência das regras da linguagem quando as utilizamos, como a automatização parece ser ela própria uma condição imprescindível a nossa desenvoltura lingüística. Como escreveu Piaget: “Podemos descer rapidamente uma escada sem representarmos cada movimento das pernas e dos pés ou se procurarmos fazê-lo corremos o risco de comprometer o sucesso da ação”52.

Não obstante, embora a automatização da linguagem represente uma inegável vantagem do ponto de vista funcional, ela pode constituir-se em uma dificuldade quase insuperável quando nosso problema for falar sobre a linguagem e seu funcionamento. Piaget concluiu, ao escrever acerca de sua tomada de consciência que “a reconstrução conceitualizada que caracteriza a tomada de consciência, quando inibida por qualquer contradição, é primeiramente deformante e lacunar, completando-se depois pouco a pouco pela integração dos dados em novos sistemas conceituais”53. Algo semelhante poderia ocorrer com a tomada de consciência das regras gramaticais durante a reflexão filosófica. Podemos esperar do filósofo, que pela natureza especulativa de sua matéria é forçado a raciocinar à sombra de incertezas e preconcepções, que ao deparar-se com problemas que exigiriam uma simples, mas cuidadosa, reflexão sobre o funcionamento da linguagem, se veja, em certos casos, “inibido por qualquer contradição”, tornando-se assim presa fácil para as armadilhas gramaticais.

A última condição característica que gostaríamos de assinalar, é que as regras parecem ser seguidas apenas porque de algum modo representam extensões de “tendências comportamentais instintivas”54. Esta seria, em Wittgenstein, uma condição necessária para que alguém aprenda a seguir uma regra.

52 J. Piaget, Problemas de Psicologia Genética, p. 358.53 Ibid, p.359. Grifo nosso.54 Tendências ou disposições que, se quisermos, podem ser consideradas equivalentes inatos de regras.

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Suponhamos, segundo um bem conhecido exemplo de Wittgenstein (PI §185), que devemos ensinar a um aluno uma regra segundo a qual ele deve formar uma série com os números naturais, adicionando sempre “+2”. Uma vez ensinada a regra (não importa a maneira como isso é feito), o aluno poderá prosseguir corretamente escrevendo 0, 2, 4, 6,...18...etc. Nada do que ele faça,porém, poderá garantir-nos de que o tenhamos habilitado a perfazer a série indefinidamente do mesmo modo que nós o faríamos. Pode acontecer, por exemplo, que após 1000 ele prossiga com 1004, 1008, 1012, ...pensando ser esta a maneira correta de continuar a série. Neste caso, escreveu Wittgenstein, é possível que por sua própria natureza o aluno tenha compreendido a ordem “adicione 2” como “adicione 2 até 1000, 4 até 2000, 6 até 3000 e assim por diante” (PI §185). O que Wittgenstein quis mostrar com este exemplo é que, em nenhuma passagem de sua aplicação, a regra (sua expressão) determina a maneira como devemos segui-la ou aplicá-la. Pode ser considerada, neste sentido, mera questão de coincidência que as pessoas cheguem a aprender adequadamente o emprego das regras em uma linguagem: há um abismo intransponível entre a expressão da regra (sua representação) e o modo de sua aplicação (seu seguimento). Uma conclusão que Wittgenstein generaliza até mesmo para as regras da matemática e da lógica. A crença de que deva existir uma necessidade lógica objetiva e universalmente auto-evidente é, como veremos, simples impressão ditada por hábitos baseados em tendências comportamentais inatas: “O que você diz parece conduzir a isto; que a lógica pertence a história natural do homem. O que não combina com a dureza do ‘deve’ lógico (RFM VI §49).

Como poderíamos harmonizar o que acabamos de dizer, com a suposta concordância adquirida por todos quanto empregam uma linguagem? Como evitar a absurda suspeita de que apenas por uma misteriosa e incrível coincidência, ainda não tenhamos nos apercebido de que habitamos uma torre de Babel epistêmica? (ver RFM III §87) Santo Agostinho parece ter pressentido a mesma dificuldade, solucionando-a, ou melhor, silenciando-a em si mesmo pela sugestão de que só podemos vir a compreender-nos graças a intermediação da luz divina.

Em Wittgenstein, parece insinuar-se a possibilidade de uma melhor solução para a dificuldade acima referida, na idéia de que os sistemas de regras que são os jogos de linguagem fazem parte da “história natural do homem” como “extensões de um comportamento instintivo”:

Nosso jogo de linguagem é uma extensão de um comportamento primitivo (para nós jogo de linguagem é comportamento) (instinto). (Z §545).

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Para ilustrar tal afirmação, podemos imaginar o caso de uma criança, que ao observar o adulto apontar para algo, não tivesse uma suposta disposição natural para reagir olhando na direção que vai do punho ao fim do dedo (Cf. exemplo em PI §185), mas, ao contrário, olhasse para a direção do ombro de quem aponta, ou então permanecesse sem reação, não fixando os olhos em direção alguma...Tal criança poderia encontrar dificuldades para aprender o ‘jogo das definições ostensivas’ (PI §27), ou mesmo, ser totalmente incapaz de aprendê-lo:

É parte da natureza humana entender o apontar com o dedo da maneira como o fazemos. (Como é também parte da natureza humana jogar jogos de tabuleiro e usar linguagem de signos que consistem em escrever signos sobre uma superfície lisa.) (PG §52).

Desta maneira, podemos supor que em conjunto com as regras aprendidas, exista a herança de disposições para reagir, seguindo-as desta ou daquela maneira. Elas atuariam como meios capazes de, em última instância, regular o modo como seguiríamos as regras. Estas disposições, sendo parte de uma herança comum, seriam compartilhadas pelos usuários da linguagem, explicando porque aprendemos a seguir as regras da mesma maneira, acabando mesmo por imprimir-lhes uma falsa idéia de necessidade.

Quanto à uma questão subseqüente - a de se saber o que explicaria o fato de tais reações serem geralmente compartilhadas pela imensa maioria das pessoas - seria admissível arriscar-se uma resposta especulativa: alguma forma de seleção natural, feita por ensaio e erro ao longo do aprendizado evolutivo da espécie, teria se encarregado de preservar aqueles espécimes dotados de disposições tais que os facultassem a aprender a aplicação das regras gramaticais de maneira a ter garantida sua sobrevivência, e , por outro lado, de eliminar aqueles que mantivessem disposições para aplicá-las de modo demasiado divergente - o que bastaria para “harmonizar” suas disposições comportamentais inatas55.

As implicações que as sugestões aqui esboçadas encerram, serão melhor compreendidas no próximo capítulo, quando examinaremos a noção de forma de vida.

55 Esta sugestão encontra sua fonte de inspiração na “epistemologia evolucionária” proposta por K. R. Popper (ver seu Conhecimento Objetivo, p. 76).

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CAPÍTULO VII

FORMAS DE VIDA

Uma expressão tem significado somente no fluxo da vida56.

O fundamento último do significado de uma expressão está na forma de vida (Lebensform) da qual ela faz parte. É, pois, necessário, que se tente elucidar o que Wittgenstein quis dizer com esta noção.

Como já foi observado, os jogos de linguagem envolvem contextos que fornecem os critérios capazes de fundamentar o uso de suas expressões.

Por conseguinte, pode-se dizer que as entidades que constituem os contextos, sejam elas quais forem, uma vez que possam atuar como componentes de regras, constituem parte da gramática e mesmo da própria linguagem, visto que são condições necessárias à comunicação humana. No caso dos contextos de fenômenos, essas entidades podem ser toda sorte de fatos e eventos empíricos, processos, comportamentos, práticas, atividades, etc., o que nos faz concluir que o mundo, tal como o concebemos, é uma espécie de extensão de nossa linguagem.

À concepção acima, gostaríamos de adicionar que os contextos, particularmente o contexto de fenômenos, apresentam duas dimensões correspondentes a pontos de vista pelos quais eles podem ser estudados: uma dimensão gramatical e uma dimensão que poderíamos chamar de antropológica (RFM VII, §33)57. Um contexto apresenta uma dimensão gramatical, na medida em que se constitui de entidades que podem ser 56 L. Wittgenstein. Cit. In N. Malcon, A Memoir, p. 93.57 Ver D. Pears; Wittgenstein, cap. 9.

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descritas como componentes potenciais das regras de uma gramática. Por outro lado, um contexto tem uma dimensão antropológica, na medida em que é capaz de abranger quaisquer conjuntos de entidades (coisas, eventos) relacionadas, cuja existência é coletivamente reconhecida pelos seres humanos em um agrupamento ou comunidade social.

A definição acima evoca, tal como acreditamos, uma questão cuja resposta serviria para complementá-la: por que razão as entidades que constituem os contextos tornam-se socialmente reconhecíveis e utilizáveis? A resposta que nos parece mais apropriada seria dizer que as entidades que constituem os contextos são socialmente reconhecíveis e por isso utilizáveis, porque direta ou indiretamente relacionam-se, como “estímulos”, às necessidades e disposições culturalmente modeladas, comuns aos seres humanos que integram um agrupamento social. Pois como vimos no capítulo anterior, a concordância na aplicação das regras da gramática deve fundar-se em formas de reação comuns. Tais reações orientadoras de nosso agir comum (PI §206), seriam extensões de um “substrato orgânico compartilhado”, constituído por instintos, necessidades e disposições comportamentais inerentes à natureza humana (Z §545, RFM VII §47) e modeladas pelo efeito de uma enorme carga de influências ambientais (i.e., sócio-culturais). Supõe-se assim que os mecanismos gramaticais são postos em movimento pela busca de um equilíbrio entre estas duas determinações últimas: 1) as necessidades e disposições humanas, e 2) as circunstâncias contextuais externas, com seus fenômenos (“estímulos”) inerentes a um mundo independente da vontade individual. Nosso agir comum altamente complexo visaria, em última análise, a servir àquelas necessidades e disposições humanas culturalmente modeladas, e a linguagem receberia sua justificação última como instrumento deste agir.

O que definimos, de maneira reconhecidamente vaga, como dimensão antropológica dos contextos, e naturalmente, da linguagem que neles se enraíza, torna-se particularmente evidente quando tomamos em consideração os contextos de fenômenos dos jogos de linguagem ditos “impuros”. No contexto de fenômenos de um jogo de linguagem simples, como o jogo de comando (I), a atividade de trazer pedras de construção seria certamente parte de um comportamento social a serviço das necessidades humanas. Um exemplo mais elaborado pode ser encontrado no “jogo de linguagem” dos pescadores melanésios descrito por Malinowski, que constitui-se não só da linguagem verbal, mas também de “contextos de situação”58 tão abrangentes que sua exposição poderia demandar uma completa descrição da vida, comércio, costumes, tradições e vastos domínios da psicologia e organização 58 B. Malinowski, O significado em linguagens primitivas, in O Significado do Significado, de Ogden e Richards, p.304.

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tribal59. Um caso evidente é o da expressão “remamos em lugar”, com a qual algumas tribos melanésias querem dizer “Chegamos à aldeia de outra ilha”. A origem desta imagem, explicou Malinowski, está no fato de que mesmo junto à praia a água é muito profunda e varar a canoa é impossível, sendo necessário arriar as velas e usar os remos.

Assim, por uma associação natural aos nativos, remar significa encontrar-se próximo de um lugar habitado60. Nesta linguagem, participam do contexto de fenômenos, servindo como critérios para o uso da expressão “remamos em lugar”, atividades específicas como a de arriar as velas e remar ao aproximar-se da aldeia, o que inclui mesmo objetos físicos como barcos, velas, remos, o mar e a aldeia, como fatores determinantes do significado. E por trás de tais atividades específicas encontra-se, naturalmente, uma estrutura motivacional apropriada.

Estamos agora em condições de arriscar uma definição da noção de forma de vida. Wittgenstein escreveu que “imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida” (PI §23), que “chamamos algo de jogo de linguagem quando desempenha um papel específico em nossa vida humana”61, ou ainda, que a forma de vida é constituída pelo conjunto das regularidades fixadas na atividade humana62. Ao nosso ver, para adquirir tal espécie de abrangência, a expressão ‘forma de vida’ deve ser interpretada como uma alusão à inserção antropológica da linguagem. Assim considerado, o conceito de forma de vida revela-se propositadamente ambíguo. Ele designa os contextos em seu duplo dimensionamento, gramatical e antropológico.

Assim, por outro lado, a noção de forma de vida alude à dimensão gramatical dos contextos, tomados sob o ponto de vista lingüístico oi comunicacional (Cf. PI §23). Por outro lado, a mesma noção alude à dimensão antropológica dos contextos; isto é, aos conjuntos de entidades relacionadas que os constituem, aqui consideradas como fenômenos cuja existência é coletivamente reconhecida pelos seres humanos participantes de um agrupamento social, reconhecimento este que se dá em virtude das já mencionadas formas de reação modeladas sobre uma natureza humana comum63.

59 Cf. Ibid., p. 300.60 Ibid. , p.302-3.61 L. Wittgenstein, Notes for lectures on “private experience” and sense data, in H. Morick, Introduction to the Philosophy of Mind, p. 177.62 “Our language, characteristic taht it is built on regularities of doing (Tat) (Handlung), fixed forms of life”. Cit. in H. R. Finch, Wittgenstein - The Later Philosophy, escrito por Wittgenstein em um caderno de notas de 1937. A expressão ‘formas de vida’ é raramente mencionada de modo direto em toda a obra de Wittgenstein.

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Alguns exemplos de como o uso de expressões se insere em formas de vida diversas, servirão para aclarar a pertinência de nossa definição. Imagine-se, para começar, uma tribo de selvagens que desse nome às espécies de plantas segundo uma taxonomia baseada em seu interesse alimentar, ou que desse nome aos pássaros com base nas peculiaridades do seu canto. Como poderíamos compreender as razões pelas quais eles usam esta ou aquela expressão ao deparar-se com um novo espécime? A resposta poderia ser a de que só nos é possível vir a compreendê-las se supusermos o preenchimento de duas condições: (I) que em princípio já compartilhamos de um substrato orgânico suficientemente semelhante, a dizer, necessidades e disposições herdadas para reagir de modo similar, e (II), que iremos nos familiarizar suficientemente com as extensões e transformações específicas que sua cultura (idéias, conhecimento, religião, instituições sociais, sistemas econômicos, hábitos alimentares, valores estéticos, etc.) modelou sobre aquelas primitivas necessidades e disposições. Quanto mais familiarizados estivermos com todo este conjunto de regularidades fixadas que constituem seu modo de vida, mais aptos estaremos para adquirir plena compreensão do significado de suas expressões. É devido a uma falta de suficiente familiaridade com as extensões e transformações culturais específicas que modelaram as necessidades e disposições de um grupo social, que nos é geralmente tão difícil aprender, compreender, traduzir e empregar corretamente a linguagem de povos primitivos:

Se uma palavra da língua de nossa tribo é corretamente traduzida em uma palavra da língua portuguesa, isso depende do papel que a palavra desempenha na totalidade da vida da tribo, das ocasiões nas quais usada, as expressões de emoção que geralmente a acompanham, a idéia que ela costuma despertar ou que incita o dizer, etc., etc. (BB p.103; grifo nosso).

Enquanto permanecer desconhecido para nós o papel que a palavra desempenha na totalidade da vida da tribo, não podemos de fato compreender todas as vicissitudes de seu uso. Estas particularidades “orgânicas” e culturais são, para Wittgenstein, tão influentes a ponto de servirem para explicar as dificuldades de compreensão entre duas pessoas que falam a mesma língua,

63 Ver J. F. M. Hunter, “Forms of Life” in Wittgenstein’s Philosophical Investigations, in Essays on Wittgenstein, ed. por E. D. Klemke.

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mas que apresentam “substratos orgânicos” diversos64, ou que pertencem a diferentes povos (culturas, modos de vida) de uma mesma civilização:

Dizemos também de uma pessoa que ela é transparente para nós. Mas é importante para esta consideração que uma pessoa possa ser um completo enigma para outra. Isto se experimenta quando se chega a um país estrangeiro,com tradições totalmente desconhecidas.

Nas duas passagens de Wittgenstein acima transcritas, a condição (I) (o substrato orgânico de necessidades e disposições herdadas) é suficientemente compartilhadas para, após alguma espécie de treino, permitir uma adaptação capaz de levar a uma compreensão e aplicação adequadas das expressões. O que falta é a condição (II) (as extensões daquele substrato em uma cultura ou modo de vida humano). Neste caso, teríamos o direito de fazer a seguinte pergunta: o que aconteceria se tentássemos aprender uma linguagem falada por uma forma de vida na qual o substrato orgânico pressuposto faltasse por completo, ou que fosse completamente diverso (supondo que estes casos fossem possíveis)? A resposta seria que, como a existência de um substrato orgânico compartilhado (condição (I)) é pré-condição necessária ao aprendizado de suas extensões culturais (condição (II)), não seríamos capazes de aprender uma tal linguagem, pois faltar-nos-ia um sistema de referência que permitisse sua interpretação (Cf. PI §206). “Não poderíamos”, escreveu Wittgenstein, “compreender um leão, se este pudesse falar” (PI §216) (supondo-se que, embora falando como ser humano, em tudo o mais ele continuasse a comportar-se e agir como um leão). E tal se daria, não só porque estão ausentes os critérios usuais fornecidos por contextos de ação e situação apropriados mas, sobretudo, porque faltam os indícios naturais capazes de atestar coerência a suas palavras: faltam à sua fisionomia e ao seu comportamento animal, as marcas reconhecíveis de uma natureza humana.

64 Wittgenstein procurou mostrar em seus Remarks on Colours, que os cegos e os daltônicos são constitucionalmente incapazes de reagir (RC III, §22) de maneira a aprender toda a extensão de nosso uso (significado) das palavras-cores (RC. III, §§120, 128, 278).

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CAPÍTULO VIII

A INDETERMINAÇÃO DAS EXPRESSÕES

Esta explicação, como outras que temos dado, é vaga e destinada a ser vaga (BB p. 84).

Neste capítulo, procuraremos elucidar as funções de três noções teóricas: as noções de semelhanças de família, imprecisão e o que chamaremos de abertura das expressões. Estas três noções são, aparentemente, independentes umas das outras65, o que não fica de modo algum evidente a uma leitura das passagens 65 a 108 das Investigações Filosóficas, onde elas são introduzidas em um entrelaçamento irregular e desorientador.

As noções de semelhanças de família, imprecisão e abertura das expressões, são responsáveis pelo que chamaremos de indeterminação no significado das expressões, termo com o qual pretendemos evidenciar que o uso de uma expressão, i.e., seu significado, não costuma ser univocamente, precisamente, ou mesmo definitivamente determinável. Wittgenstein aplicou tais noções, tanto às expressões de nossa linguagem, como aos próprios conceitos teóricos por ele criados. Neste capítulo, trataremos apenas de elucidar as três noções acima referidas, deixando para o próximo a tarefa de expor o modo como eles seriam incorporados à própria estrutura da teoria da linguagem em Wittgenstein, bem como suas principais implicações semânticas. Começaremos, pois, pela idéia fundamental de que as expressões de nossa linguagem costumam exibir semelhanças de família.

65 Cf. sua apresentação em F. Waismann: The Principles of Linguistic Philosophy, pp. 181-3.

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De acordo com Wittgenstein, o filósofo por vezes sofre de uma necessidade de generalidade (BB pp. 17-18), que unida a uma “desdenhosa atitude para com os casos particulares” (BB p.18), seria capaz de conduzi-lo a generalizações impetuosas e inadequadas. Não cremos que esta necessidade seja em si mesma um erro. Mas parece que ela deverá conduzir inevitavelmente ao erro se for, como Wittgenstein supunha, sustentada por uma concepção demasiado primitiva acerca da estrutura da linguagem. Esta concepção, que chamaremos de essencialismo, é por ele apresentada como consistindo na suposição de que deve existir uma essência oculta, comum a todas as entidades subsumidas por um mesmo conceito ou termo geral (ver BB p.17), e que é graças a esta “essência” que este último é capaz de designá-las. Assim, levados por esta espécie de “tendência essencialista”, quando pensamos em um termo geral como ‘número’, somos logo tentados a procurar por alguma coisa comum às diferentes espécies de números, que seja responsável por sua união sob uma mesma denominação. Para Wittgenstein, contudo, a maioria das expressões ou termos gerais da linguagem, incluindo o conceito de número, não tem sob este aspecto, uma essência comum66 às entidades que possam designar. Ou, empregando a terminologia que julgamos mais apropriada: não há regras ou relações criteriais comuns aos múltiplos modos de aplicação de um mesmo termo geral, tal que, apenas por esta qualidade sejam capazes de justificar seu uso. O que uma expressão ou termo geral realmente apresenta são semelhanças de família entre seus múltiplos modos de aplicação67.

Para introduzir a noção de semelhanças de família, Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, tomou como exemplo o conceito de jogo (PI §66). “Considere-se”, escreveu ele, “os jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos eles?” (PI §66). Nossa 66 Entenderemos por essência comum, uma característica que seja por si mesma necessária e suficiente para justificar o uso de uma expressão.67 A noção de semelhanças de família é muito abrangente na obra de Wittgenstein. Ele a estendia aos termos de importância filosófica como ‘conhecimento’, ‘compreensão’, ‘mente’, ‘espírito’, ‘tempo’; conceitos formais como ‘proposição’, ‘conceito’, ‘matemática’, ‘identidade’, ‘número’, ‘prova’, ‘sentido’, ‘referência’ ; termos psicológicos como ‘acreditar’, ‘desejar’, ‘querer dizer’, ‘esperar’ e todos os casos de volição; termos que refletem “ações humanas” como ‘derivar’, ‘ler’, ‘ter habilidade’, ‘reconhecer’, ‘comparar’; outros termos como ‘planta’, ‘ser humano’, ‘cultura’, etc., e ainda todos os conceitos da ética e da estética. Wittgenstein, por fim, aplica sua noção aos seus próprios termos teóricos, como ‘jogos de linguagem’, ‘regra’, ‘critério’, ‘significado’, ‘uso’, ‘linguagem’, etc. (sobre a extensão da noção de semelhanças de família, ver G. Hallet, A Companion to Wittgenstein’s “Philosophical Investigation”, p. 148; Waismann, Introduction to Mathematical Thinking, pp. 237-8, e ainda Richardson; The Grammar of Justification, cap. IV).

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tendência natural é responder que deve haver alguma coisa comum a todos eles, caso contrário eles não se chamariam ‘jogos’. Esta tendência, segundo Wittgenstein, baseia-se na concepção demasiado primitiva da linguagem da qual falávamos: a concepção essencialista de que “o que seja necessário para a caracterização de um número de processos ou objetos por um mesmo conceito geral, deva alguma coisa comum a eles todos” (PG §35). Nada disso encontraremos se nos dispusermos a observar o funcionamento da linguagem sem imagens pré-concebidas. Se assim o fizermos com o conceito de ‘jogo’, descobriremos que nada há em comum entre os vários jogos, mas apenas semelhanças e parentescos:

Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para o jogo de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem. - São todos ‘recreativos’? Compare o xadrez com o jogo de amarelinha. Ou há em todos um ganhar e um perder, ou uma concorrência entre os jogadores? Pense nas paciências. Nos jogos de bola há um ganhar e um perder; mas se uma criança atira a bola na parede e a apanha outra vez, esse traço desapareceu. Veja que papéis desempenham a habilidade e a sorte. Como é diferente a habilidade no xadrez e no tênis. Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento de divertimento está presente, mas quantos outros traços e características desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem (PI §66).

Não há, pois, uma essência comum a todos os jogos, mas sim “uma complicada rede de semelhanças e parentescos que se envolvem e se cruzam mutuamente” (PI §66). Wittgenstein deu a esta propriedade, que pertence a maioria de nossos termos gerais, o nome de “semelhanças de família”, por analogia com o fato de que os membros de uma grande família podem apresentar entre si as mais diversas semelhanças:

Não posso caracterizar melhor estas semelhanças do que com a expressão: “semelhanças de família”; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor de olhos, o andar, o temperamento, etc.,etc. - E digo: os “jogos” forma uma família (PI §67).

Wittgenstein foi ainda mais longe. Ele afirmou ser até mesmo possível que dois membros de uma mesma família não compartilhem de nenhuma característica comum, e que, mesmo nos casos em que existem características comuns a todos os membros da família, pode ser que elas não desempenhem qualquer papel relevante na justificação da aplicação do conceito:

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Dois membros vizinhos podem ter traços comuns e serem semelhantes, enquanto outros, distanciados, pertencem à mesma família sem mais compartilharem de qualquer coisa comum. De fato, mesmo se um traço é comum a todos os membros da família, Não é necessário que seja aquele traço o que define o conceito (PG §35; grifos nossos).

Podemos ilustrar a situação acima por intermédio de um simples diagrama:

A1 A2 A3 A4 A5 a b c d e b c d e f c d e f g d e f g h

Neste diagrama, as colunas A1, A2, A3... Podem ser consideradas como correspondendo às várias espécies de objetos ou entidades designadas por uma mesma expressão, conceito ou termo geral. As colunas correspondem também a diferentes modos de aplicação (formas de uso) da expressão, conceito ou termo geral. As letras minúsculas a, b, c... por sua vez correspondem às várias características (propriedade, atributos, elementos, traços, etc.), as quais, como fenômenos conjugados em um contexto, constituem critérios ou termos antecedentes de regras (relações criteriais) que determinam o modo de aplicação de expressão ou termo geral68.

Como algumas letras minúsculas se repetem nas várias colunas do diagrama, podemos inicialmente ser tentados a pensar que algumas dessas 68 A terminologia de Wittgenstein é aqui particularmente pródiga e inconstante. Falaremos preferencialmente de características que são critérios ou termos antecedentes de regras que determinam os modos de aplicação de um mesmo termo geral ou expressão, já que esta terminologia, ainda que insuficientemente pouco elaborada, parece oferecer uma perspectiva teórica mais interessante. Wittgenstein apenas sugeriu sua possibilidade em algumas raras ocasiões como no seguinte trecho: “The idea that in order to get clear about the meaning of a general term one had to find the common element in all its applications has shackeled philosophical investigation” (BB p.19; grifos nossos). Mais comumente, Wittgenstein mantinha uma terminologia tradicional, menos esclarecedora, falando de palavras conceitos (concept-words) que designam várias entidades (entities) ou objetos (objects) que apresentam uma variedade de traços (features), propriedades (properties) ou constituintes (constituents) semelhantes (ver PG §35). Não obstante, é importante notar que esta aparente confusão terminológica não se funda em uma inconsistência, já que, para cada espécie de entidade ou objeto pode-se sempre fazer corresponder um modo de aplicação, e para cada característica ou critério uma regra apropriada.

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letras sejam comuns a todas elas. Contudo, uma observação mais cuidadosa vem mostrar que estávamos enganados. De fato, embora colunas A1 e A2, assim como A2 e A3, apresentam letras em comum, nenhuma letra há em comum entra A1 e A4.

Apesar de Wittgenstein ter apresentado elegantes metáforas ilustrativas (como a dos elos de uma corrente ou das cerdas trançadas em um mesmo fio), ele não se preocupou em definir claramente que espécies de condições devem ser exigidas para delimitar a extensão do emprego de um conceito com semelhanças de família. Devido a isso, já foi argumentado criticamente que, uma vez que quaisquer duas coisas se assemelham sempre entre si em algum aspecto, ou que uma coisa pode ser relacionada a qualquer outra coisa por meio de uma sucessão de elos de semelhanças mantidos com entidades intermediárias, a noção de semelhanças de família é vazia por mostrar-se incapaz de impor limites à aplicação de um conceito69.

Para fazer frente a semelhante objeção, é necessário encontrar-se um critério pelo qual se poderia delimitar a extensão do uso de um termo com semelhanças de família. Um modo possível de se fazer esta delimitação, é o de recorrer a alguma espécie de “Standard” ou “paradigma justificador”, com o qual a entidade designada pelo termo geral deve manter certa semelhança70.

Esta solução tem sido ocasionalmente sugerida por alguns intérpretes e rejeitada por outros71. A principal vantagem em sua adoção é que ela nos deixa libertos da conclusão de que a noção de semelhanças de família é incapaz de impor limites às aplicações de um conceito, parecendo subscrever uma espécie radical de nominalismo. Já o principal motivo de sua rejeição é a acusação de que esta mesma idéia elimina as vantagens anti-essencialistas da noção de semelhanças de família, já que recorre ao paradigma como uma espécie de “essência”72. O que iremos expor a seguir, será uma nova versão mas elaborada da idéia do paradigma justificador, que esperamos ser capaz de libertar-nos de um ceticismo nominalista sem para isso forçar-nos a um comprometimento com a espécie tradicional de essencialismo.

O gênero de critério que gostaríamos de propor como modo de delimitar a extensão de um termo ou expressão com semelhanças de família pode ser estabelecido sob a forma de um enunciado:

69 Pompa e Hjalmar Wennerberg; Cf. in Richardson, op.cit. p. 84-5.70 Cf. Richardson, op. cit., p.84. Ver também F. Waismann, op. cit. P.180, e ainda M. Simon, “When is a Family a Family Resemblance?”, in Mind, 78, pp. 408-16.71 Cf. Richardson, op. cit. , p. 84 e segs.72 Ibid., p.84 e segs.

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Para que seja dada uma aplicação a uma expressão, conceito ou termo geral, deve-se exigir que sejam mantidas certas “condições ou margens de similaridade” entre os termo antecedentes das regras que determinam a aplicação e um dado paradigma justificador”, constituído por um conjunto de entidades, aqui chamadas de características, elementos ou traços constituintes.

Para tornar mais compreensível este enunciado, nos serviremos de dois exemplos; o primeiro destinado a elucidar a noção de paradigma justificador, e o segundo destinado a elucidar a noção de condições ou margens de similaridade.

Com o objetivo de elucidar o que entendemos com a noção de “paradigma justificador”, tomaremos de empréstimo um exemplo apresentado por W. P. Alston73 sobre os aspectos mais característicos do conceito de religião74. As características, elementos ou traços constituintes mais relevantes deste conceito, podem ser consideradas como possíveis critérios (i.e., termos antecedentes de regras) para seu uso em determinado(s) jogo(s) de linguagem. O paradigma justificador nada mais é do que o conjunto destes possíveis termos antecedentes:

(I) Crença em seres sobrenaturais (deuses).(II) Distinção entre objetos sagrados e profanos.(III) Atos rituais concentrados em torno de objetos sagrados.(IV) Um código moral que se acredita sancionado pelos deuses.(V) Sentimentos caracteristicamente religiosos (reverência, senso de

mistério, sentimento de culpa, adoração, etc.).(VI) Rezas e outras formas de comunicação com os deuses.(VII) Uma cosmovisão, i.e., uma visão geral do mundo, sua significação

e o lugar que o homem nele ocupa.(VIII) Uma organização da vida do indivíduo baseada nesta

cosmovisão.(IX) Uma organização social estabelecida pelas características

precedentes (75).73 W. P. Alston, Filosofia da Linguagem, p.125.74 Este exemplo é tanto mais sugestivo pelo fato de que Wittgenstein havia lido e admiriado o livro de Willian James, “The Variety of Religious Experience” (1902), a ponto de usá-lo como uma espécie de “livro-texto” em suas aulas. W. James defendia neste livro, que o fenômeno religioso não tem uma essência única, mas muitos caracteres que podem ser alternativamente tornados igualmente importantes, de modo que pretender uma precisa definição de sua essência seria incorrer em uma simplificação dogmática (ver Fann, op. cit. p. 47 e Pitcher, op. cit. p.218).75 Ver Alston, op. cit., pp. 125-6.

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Como disse Alston, existem entidades culturais que exibem todas estas características em um elevado grau, como são os casos ideais do catolicismo e do judaísmo ortodoxo. Mas a exibição conjunta de todas essas características não é condição necessária para que se aplique o conceito de religião a uma entidade cultural, como também não é condição necessária a exibição de qualquer uma dessas características em particular. Os Quacres, por exemplo, repudiam completamente a demarcação de objetos sagrados, preocupando-se em cultivar a experiência mística. Mesmo a crença em seres sobrenaturais pode estar ausente, como no unitarismo ou humanismo, que orientam suas tonalidades religiosas para certos ideais sociais, algo semelhante ocorrendo com uma doutrina política como o comunismo. O budismo hynayana ignora os seres sobrenaturais, enfatizando o cultivo de uma disciplina moral e meditativa que habilite o indivíduo a atingir um estado no qual todos os desejos cessem de existir. O próprio envolvimento do grupo social pode estar ausente quando alguém se determina a desenvolver sua própria “religião” particular (como já foi dito com respeito ao filósofo Spinoza) (76).

Assim, pode-se supor que chamamos de ‘religião’ às entidades culturais que mantém suficientes “margens de similaridade” com o paradigma justificador, isto é, que compartilhem de uma quantidade e qualidade adequada de suas características. Fenômenos religiosos, como o catolicismo, o judaísmo, a filosofia de Spinoza e o comunismo, por compartilharem de certas margens de similaridade com o paradigma, terminam por manter elos de parentesco ou semelhanças de famílias entre si. Além disso, é útil observar que essas margens de similaridade requeridas não são de modo algum precisas (nem fechadas), restando sempre um “espaço de dúvida” quando tentamos aplicar o conceito de religião aos casos limítrofes (como, por exemplo, o humanismo ou o comunismo, para os quais incerta a aplicação do termo (77).

O exemplo do conceito de religião, apesar de persuasivo, não é, por vários motivos o mais esclarecedor. O primeiro motivo, é que os vários modos de aplicação particulares do termo ‘religião’ (determinados por conjuntos apropriados de características), podem vir explicitamente designados sob a forma de subconceitos como ‘catolicismo’, ‘judaísmo’, ‘budismo’, ‘humanismo’, ‘comunismo’, etc. O mesmo não ocorre, porém, com a maioria dos conceitos geralmente estudados por Wittgenstein, como ‘desejar’, ‘compreender’, ‘querer dizer’, etc. Estes últimos não só não costumam ter seus diferentes modos de aplicação distinguidos por subconceitos apropriados,

76 Alston, op. cit., pp. 126-7.77 Alston, op. cit., pp. 126-7.

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como sequer costumam possuí-los. Tal se dá com as aplicações da noção de pensamento:

Lembre-se que a nossa linguagem poderia possuir uma variedade de diferentes palavras. Uma para o ‘pensamento em voz alta’; uma para o pensamento quando alguém fala consigo mesmo na imaginação: uma para uma pausa durante a qual uma outra coisa ou outra flutua diante da mente, depois da qual, no entanto, somos capazes de dar uma resposta segura.Uma palavra para o pensamento expresso em u ma sentença; uma para o clarão de pensamento que eu poderei mais tarde ‘vestir em palavras’; uma para o pensamento sem palavras da ação (Z §122).

Como não existem os subconceitos apropriados para designar os diferentes modos de aplicação do termo geral, somos, em um caso como este, levados a construir proposições capazes de caracterizá-los; as quais substituem o termo geral (em seus modos de aplicação) da mesma maneira que subconceitos.

O segundo motivo pelo qual o exemplo do conceito de religião pode não ser inteiramente esclarecedor, é que alguma espécie de “sentimento religioso” parece estar presente em todos os casos, o que poderia com certo esforço ser tomado como uma essência comum. (Este sentimento, porém, dificilmente poderia ser responsabilizado pelo uso do termo. Pois uma pessoa que não soubesse o que é sentimento religioso, mas em compensação soubesse muito sobre as outras características, não teria grandemente prejudicada sua capacidade de operar com o conceito de religião). O terceiro motivo, é que a noção de semelhanças de família não exige a existência efetiva de um membro do grupo familiar que se identifique com o paradigma justificador, apresentando todas as características dos demais membros, como parece ser o caso do catolicismo ou do judaísmo ortodoxo. (Ainda assim, uma observação mais atenta do emprego do conceito de religião parece mostrar que, mesmo neste caso, a existência efetiva do paradigma é mero acidente completamente dispensável, tal como acontece com a característica comum entre as entidades que conservam certas margens de similaridade com ele. Podemos imaginar o caso de uma pessoa que nada soubesse sobre o catolicismo ou o judaísmo ortodoxo, mas que, em compensação, soubesse muito sobre as demais crenças religiosas. É difícil imaginar que esta pessoa não fosse capaz de identificar uma entidade cultural como ‘religião’, tanto quanto outra que estivesse familiarizada apenas com o catolicismo ou o judaísmo). O que importa, na verdade, não é a existência efetiva do paradigma, mas o que, por uma

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convenção implícita, é estabelecido como paradigma, bem como as condições ou margens de similaridade que a aplicação do termo deve manter com ele.

Ainda um quarto motivo é que no exemplo precedente, não fica evidente quais sejam as condições ou margens de similaridade exigidas para que uma entidade possa ser designada pelo conceito. Nosso próximo exemplo apresenta a vantagem relativa de ser propositadamente esclarecedor quanto a essas últimas questões.

Um método auxiliar no diagnóstico de certas doenças em medicina, consiste na aplicação de certos “critérios de diagnóstico” cuidadosamente estabelecidos. Um dos mais conhecidos dentre eles é o critério de Jones para o diagnóstico da febre reumática. O critério de Jones consiste, em primeiro lugar, na apresentação de uma lista de sinais, sintomas e dados laboratoriais tidos como características capazes de permitir o diagnóstico. Essas características são as seguintes:

(I) Manifestações maiores: cardite, poliartrite, coréia, eritema marginado e nódulos subcutâneos.(II) Manifestações menores:

a) clínicas (febre, artralgia; febre reumática ou cardite reumática prévias).b) Biológicas (reações da fase aguda, VHS acelerada, proteína C reativa positiva, leucocitose, intervalo PR alongado).

(III) Além disso são necessárias provas que demonstrem uma infecção estreptocócica precedente (antiestreptolisina aumentada ou outros anticorpos antiestreptocócicos, cultura de orofaringe positiva para os estreptococos, escarlatina recente).

Se considerarmos estas características como termos antecedentes de regras para a utilização da expressão ‘febre reumática’, o quadro acima pode ser considerado como um paradigma justificador da designação da entidade nosológica pela expressão. O segundo passo seguido pelo critério de Jones, consiste no estabelecimento das condições ou margens de similaridade aproximativamente exigidas para com o paradigma. Tais condições são, na verdade, regras ou relações criteriais exigidas para a aplicação do conceito de febre reumática. Essas relações criteriais tem como termos antecedentes, certos conjuntos de características pertencentes ao paradigma, que assim tornam-se critérios para a aplicação da expressão. No caso específico do critério de Jones, as condições de similaridade exigidas, são duas relações criteriais que costumam vir enunciadas da maneira que se segue:

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Indica grande probabilidade de que exista febre reumática na vigência de provas que indiquem uma infecção estreptocócica precedente:

(I) a presença de dois critérios maiores.(II) a presença de um critério maior e dois menores.

A aplicação do critério de Jones, tem como resultado permitir que o conceito de febre reumática seja aplicável a quadros clínicos muito diversos entre si, mesmo que estes sejam praticamente destituídos de qualquer característica comum. Se ignorarmos as exigências de provas laboratoriais da ocorrência de uma infecção estreptocócica precedente78, poderemos dar o mesmo diagnóstico aos supostos pacientes A, cujos sintomas são febre, eritema marginado e artralgia, B, que apresenta cardite e poliartrite migratória acompanhada de febre e C, que apresenta apenas coréia e cardite. Os três casos mantém certas semelhanças de família entre si, sendo interessante notar que embora A e B tenham sintomas comuns, não há qualquer sintoma em comum entre A e C, o que nem por isso impossibilita o mesmo diagnóstico para ambos os casos. Além disso, é bastante improvável que encontremos na prática o “caso paradigmático”, Istoé, o caso de um paciente que possua todas as condições diagnósticas estabelecidas pelo paradigma justificador. Mesmo que um tal paciente fosse encontrado, não teria sido ele o responsável pela formulação do paradigma apresentado no critério de Jones. Pois este critério foi estabelecido, explicitamente convencionado como tal, não pela observação do caso paradigmático, mas por intermédio de freqüências estatísticas derivadas da observação de inúmeros casos particulares79. E daí explicitamente convencional, como critério.

A vantagem do exemplo que acabamos de expor é que, por razões de rigor científico, ele estabelece explicitamente tanto o paradigma como as margens de similaridade requeridas; e a principal diferença com relação aos casos de conceitos como os de ‘mente’, ‘jogo’, ‘religião’ e ‘pensamento’ está no fato de que nestes últimos, tanto o paradigma quanto as margens de similaridade requeridas são sempre implícitos - geralmente convencionados de forma não-conjunta a partir de uma prática lingüística de exemplificação ostensiva. De fato, enquanto é recorrendo a um paradigma explicito que um texonomista reconhece um espécime vegetal, é provavelmente recorrendo à 78 O que não é incorreto, visto que na verdade existe um outro critério simplificado que efetivamente a ignora. Ele estabelece como paradigma um grupo de cinco sintomas fundamentais. O diagnóstico da doença é por ele justificado com a condição de que o paciente apresente 1 ou 2 dos 5 sintomas fundamentais.79 De maneira algo semelhante, Wittgenstein dizia que aprendemos o uso de um termo geral, não por meio de uma definição, mas através de sucessivos exemplos particulares que nos habilitam a usá-los em uma variedade de ocasiões (PI § 71, ver 6.5).

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margens de similaridade com paradigmas justificadores implícitos, imprecisos e inconstantes, que somos capazes de suspeitar que a pessoa que acaba de passar por nós possa ser membro de uma determinada família. Isto não significa, naturalmente, a impossibilidade de uma tomada de consciência que torne os paradigmas e suas margens de similaridade explícitos. Para o conceito de jogo, por exemplo, poderíamos em princípio estabelecer uma série de características como a “concorrência”, a “recreatividade”, a “habilidade”, a “sorte”, o elemento de “divertimento”, etc., e a partir disso estabelecer aproximativamente certas condições ou margens de similaridade como critérios para a aplicação do conceito, o mesmo devendo ser possível com qualquer outra expressão ou termo geral com semelhanças de família. Por fim, devemos ainda acrescentar que a noção de “condições ou margens de similaridade” deve ser entendida de maneira a abranger um espectro indefinidamente variado de exigências possíveis, pois só assim ela poderá demonstrar-se capaz de refletir a indefinida variedade de possibilidades que a metáfora das semelhanças de família parece trazer consigo.

As expressões de nossa linguagem apresentam também um segunda característica, cuja simplicidade é apenas aparente: elas são necessariamente imprecisas, no sentido de que podem, em princípio, ter aumentada a precisão de seu uso.

Para o Wittgenstein das Investigações Filosóficas, a idéia de uma exatidão ou precisão absolutas nas expressões da linguagem, não passa de um mito ou ídolo lógico80. E, filosofia, com muita facilidade somos levados a pensar que a precisão absoluta dos nossos conceitos seja um objetivo a ser alcançado ou pelo menos procurado. Wittgenstein denunciou em Frege o erro de deixar-se enganar por este paradigma ilusório: “Frege compara um conceito a uma área e diz que não se pode absolutamente chamar de área a uma região vagamente delimitada” (PI §71)81. A analogia proposta por Frege é incorreta porque encontra-se viciada pelo ídolo lógico de que falamos; - não há como delimitar com precisão absoluta os limites de uma área:

Se nós a cercássemos com um traço de giz, perceberíamos que o traço conserva ainda certa largura, e se procurássemos estabelecer aí um limite de cor, mesmo assim não teríamos como fazê-lo de maneira absolutamente precisa (PI §88).

80 Cf. W. Stegmuller, Filosofia Contemporânea,cap. XI, p. 433.81 “Para um conceito sem uma fronteira precisa, deveria corresponder uma área que não tivesse em torno de si limites vagos e esmaecidos. Isso não poderia afinal ser realmente considerado uma área; e do mesmo modo, um conceito que não seja precisamente definido é erroneamente chamado de conceito” (Frege, G.W., cit. in G. Hallet, op. cit. p. 153).

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Uma investigação mais cuidadosa mostrará que a impossibilidade de se atingir uma “precisão absoluta” no uso de uma expressão, parece inerente, não só a vocábulos como ‘área’ e ‘conceito’, mas a todo e qualquer termo de nossa linguagem.

Podemos facilmente aperceber-nos disso sempre que nos empenhamos em tornar um termo preciso. A palavra ‘cidade’, como exemplificou Alston 82, pode ser precisada se estipularmos como critério ou regra para seu uso, que “uma comunidade só pode ser chamada de cidade se tiver mais de 80.000 habitantes”. Contudo, uma palavra como ‘ habitante’ é que agora carece de definição, pois não sabemos ao certo em que medida uma pessoa pode ser considerada como habitante de uma comunidade. Poderíamos certamente precisar o uso de ‘habitante’ com outra regra, segundo a qual chamaremos de habitante “alguém que habita e trabalha na comunidade”. Mas também os conceitos de ‘habitar’ e ‘trabalhar’ são imprecisos. Já que uma pessoa pode ter apenas uma residência de verão na comunidade, ou nela trabalhar apenas durante um curto período de tempo. Além disso, seria ainda necessário precisar outros conceitos que ficaram por ser definidos, como o de ‘comunidade’, que necessitaria de critérios para a delimitação da área territorial específica por ela abrangida, e assim por diante.

O exemplo acima torna claro que, para precisarmos o uso de um termo, somos obrigados a explicá-las pela descrição de regras constituídas por outros termos que serão, também, em certa medida, imprecisos. E se quisermos precisar o uso destes últimos termos, teremos de recorrer a novas regras com conceitos imprecisos e assim ad indefinitum. Por conseguinte, o exemplo acima parece demonstrar a impossibilidade de se atingir uma precisão absoluta na aplicação de um termo, uma vez que as regras que a determinam não podem ser absolutamente precisadas. Pode-se reduzir sucessivamente a imprecisão das expressões lingüísticas, mas jamais eliminá-la (83).

Uma análise apropriada da idéia de precisão, deve começar pela observação de que ‘preciso’ é um termo contextualmente variante (PI §§46 e ss.) ou relativo84. Os termos relativos costumam poder ser agrupados em pares opostos, “preciso e impreciso”, “pequeno e grande”, “leve e pesado”, “simples e composto”, etc. Estes termos dependem, para seu emprego, de certos

82 O exemplo aqui reinterpretado encontra-se em P. W. Alston, op. cit., cap. V, p. 128.83 Conclusão que deve ser extensiva mesmo aos simbolismos da lógica e da matemática, já que para defini-los é necessário se apoiar nos termos de nossa linguagem cotidiana (ver W. Stegmuller, op. cit., vol. I, p.520).84 I. M. Copi, Introduction to Logic, p.93.

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modelos idéias de precisão, tamanho, peso, simplicidade, etc., que servem de modelo ou paradigma para seu uso em contextos apropriados.

Assim, quando alguém diz que uma poltrona é um objeto composto, é necessário saber o que está sendo considerado como simples; se as peças de madeira com as quais ela foi montada, suas moléculas ou seus átomos (PI §47). Para Wittgenstein, só faz sentido dizer que algo é composto,se tivermos antes estabelecido em que jogo de linguagem a palavra está sendo usada (PI §48). Tal jogo de linguagem estabelecerá qual o modelo de simplicidade que deverá servir de critério para o uso da palavra ‘composto’. E a cada diferente modelo que considerarmos como paradigma de simplicidade (e estes podem ser em número indefinidamente grande), podemos fazer corresponder um jogo de linguagem diferente (PI §60), fundamentado por diferentes relações criteriais.

O mesmo que acontece com termos com o “simples e composto”, “grande e pequeno”, etc., acontece também com o conceito de precisão: só faz sentido falar de precisão quando se pensa em um modelo ou ideal de precisão que sirva de critério para o uso do termo; o qual deve adaptar-se à finalidade particular que se tem em vista. Como observou Wittgenstein, não seria adequado às finalidades pelas quais comumente empregamos a expressão ‘comprimento de um passo’, se o precisássemos como exatamente 75 cm, nem mais nem menos (PI §67). Igualmente, se alguém pode confiar em seu relógio para comparecer ao jantar amanhã às 20 horas, em nada lhe será útil saber se ele está em perfeita concordância com o observatório astronômico (PI §88).

“Com freqüência”, escreveu Wittgenstein, “é justamente o conceito de contornos imprecisos aquele do qual necessitamos” (PI §71), e uma exigência de precisão inadequada poderá se supérflua, prejudicial, ou mesmo falseadora da evidência disponível.

Por isso, quando na linguagem cotidiana falamos de “precisão absoluta”, estamos nos referindo em geral apenas a uma precisão que é praticamente indistinguível do modelo que em um apropriado jogo de linguagem serve como ideal de precisão, e, com freqüência, quando este tem o mais perfeito modelo disponível. Com efeito, se acompanharmos o emprego efetivo de expressões como “precisão absoluta” e “absolutamente preciso”, veremos que seu papel não excede ao de figuras retóricas: quando alguém diz que o trem chegou com “precisão absoluta, quer dizer apenas que o trem chegou com a maior precisão possível. Se, por outro lado, insistíssemos (como fez Frege com a noção de conceito e o próprio Wittgenstein no Tractatus) em julgar a significatividade do que falamos tomando como modelo um impensável e definitivo “ideal filosófico de precisão absoluta”,

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deveríamos concluir que só dizemos absurdos, posto que este ideal não tem existência efetiva em nossa linguagem85.

Algo muito diferente ocorre quando dizemos, como no início, que as expressões de nossa linguagem são necessariamente imprecisas. Pois naquele caso, quando dissemos que as expressões de nossa linguagem eram imprecisas, não era por constatarmos que elas não podem ser corrigidas por um impensável “ideal de precisão absoluta”. Era simplesmente por constatarmos que as expressões podem ser teoricamente precisadas diante de um modelo de precisão mais perfeito, cuja possibilidade sempre se faz presente.

Outro aspecto relevante da noção de imprecisão é que, quando dizemos que os termos de nossa linguagem são imprecisos, isso equivale também a dizer que as fronteiras que demarcam os limites entre o uso de um termo e o uso de outros termos que lhe sejam “semanticamente contíguos”, são também, de certo modo, imprecisamente delimitadas.

A odeia acima torna-se bastante evidente quando pensamos em conceitos que apresentam o que os lingüistas costumam chamar de vaguidade referencial86 ao nomear entidades concretas. ‘Verde’, por exemplo, é um termo de uso impreciso porque designa entidades de limites imprecisos. Como conseqüência, não é possível determinar com exatidão sua fronteira com conceitos limítrofes com o ‘amarelo’ e o ‘azul’. De modo semelhante, ‘água’ e ‘barro’ são termos cujas fronteiras semânticas são imprecisas, já que não sabemos decidir quando devemos abandonar o uso da expressão ‘água turva’ em favor de ‘barco aquoso’87.

Wittgenstein, no entanto, não se referia geralmente à imprecisão das fronteiras entre o “uso geral”88 de um termo e o “uso geral” de outro termo, como nos casos acima apresentados. Ele se referia quase sempre a algo mais sutil, que é a imprecisão das fronteiras entre as várias utilizações (modos de aplicação) de um mesmo termo ou expressão com semelhanças de família, em jogos de linguagem diversos. Em On Certainty, por exemplo, Wittgenstein escreveu que não há uma fronteira divisória nítida entre as utilizações do conceito de proposição, quando este “pertence à lógica” do jogo de linguagem (como regra, i.e., proposição metodológica ou fundamentadora) ou quando é usada como uma proposição empírica (OC §§318-20). Não existem

85 Cf. W. Stegmuller, op. cit., p.434.86 R. M. Kempson, Teoria Semântica, cap.8.87 W. V. Quine, Word and Object, cap. 4.88 Entenderemos por “uso geral” ou simplesmente “uso”, o conjunto das utilizações ou modos de aplicação de uma mesma expressão. Com emprego referimo-nos a ocorrência singular de um utilização.

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igualmente fronteiras precisas entre a dúvida razoável e a dúvida logicamente impossível (OC §454), assim como não há nenhuma linha divisória nítida entre os múltiplos modos de aplicação (em jogos de linguagem diferentes, se assim o quisermos) de termos como ‘compreender’, ‘desejar’, ‘pensar’, ‘significar’, etc., que apresentam individualmente semelhanças de família entre seus múltiplos modos de aplicação (BB p.19).

8.3 A terceira noção que nos importa abordar, é o que poderíamos chamar de “abertura das expressões”89. Com isso, queremos dizer que a extensão do uso de um conceito pode não ser fechada por um limite definitivo; o que equivale a dizer que as fronteiras entre os uso ou aplicações particulares de nossos termos, além de serem imprecisas, não são necessariamente fixas (PI §68).

As regras que determinam o uso de nossas expressões podem ser fixadas para um grande número de contextos, mas não para todos os contextos ou situações concebíveis. Julgamos, por exemplo, que uma palavra com o ‘poltrona’ tem um significado relativamente fixo e definido. Contudo, escreveu Wittgenstein, “o que aconteceria se eu fosse lá buscá-la e ela desaparecesse repentinamente da minha vista e depois voltasse a reaparecer periodicamente? Seria uma ilusão? Poderíamos continuar chamando-a de poltrona?” (PI §80). Ou ainda, o que aconteceria se uma ave, em tudo semelhante a um pintassilgo, explodisse inesperadamente diante de nós? (90).

No primeiro caso, ficaríamos sem saber se seria ou não possível continuar ainda a aplicar a palavra ‘cadeira’, introduzindo uma radical mudança nos critérios de sua aplicação. No segundo caso, ficaríamos talvez em dúvida se aquilo era de fato um pintassilgo, ou se não seria mais conveniente chamá-lo de uma bomba-relógio capaz de imitar com perfeição um pintassilgo.

Generalizando a perspectiva acima sugerida, Wittgenstein nos faz imaginar um a futura evolução do mundo, de nosso comportamento, ou do conhecimento, que pudesse levar à ruína a totalidade de nosso presente universo conceitual:

E se as coisas se comportassem de modo totalmente diferente do que se comportam de fato – e se não houvesse, por exemplo, a expressão característica da dor, do terror, da alegria; se o que é regra se tornasse

89 Usaremos a noção de “abertura das expressões” de maneira a incluir o conceito de “textura aberta” proposto por F. Waismann com base em Wittgenstein (ver F. Waismann; Verifiability, in The Theory of Meaning, cap. II).90 J.L. Austin, Outras Mentes, in col. Os Pensadores, vol. LII, p. 101.

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exceção e o que é exceção, regra, ou se as duas se tornassem fenômenos de freqüência mais ou menos igual - então nossos jogos de linguagem normais perderiam seu sentido (PI §142).

De fato, embora não de maneira repentina, estas mudanças estão gradualmente se processando (OC §63). Há, primeiramente, uma evolução do conhecimento que o homem tem do mundo ao seu redor, o que torna ultrapassados certos jogos de linguagem e expressões que neles são usadas.

Em segundo lugar, o comportamento, as necessidades e motivações humanas, também se modificam, trazendo consigo modificações em nossos hábitos lingüísticos. Por fim, o próprio mundo externo, em geral através das mudanças que o homem nele introduz, modifica-se de modo a alterar nossas fronteiras conceptuais.

Um exemplo concreto do dissemos, ocorre com a evolução do conceito de arte91. Não podemos estabelecer uma listagem definitiva de todas as condições de aplicação do conceito de arte, pela simples razão de que se trata de um conceitos aberto, para o qual novas condições de aplicação estão sendo constantemente estabelecidas. Há casos de objetos, com relação aos quais não sabemos se o termo ‘arte’ já é, ou ainda é aplicável, como nos casos deles pertencerem a “novas formas de arte” que constantemente estão a surgir como candidatos a novas aplicações do termo, ou, antigos objetos que hoje deixaram de ser valorizados com obras de arte. O que nos leva a concluir que o conceito de arte não é nem preciso nem fechado.

O conceito de arte, a propósito, é dos que exibem múltiplos modos de aplicação aparentados por semelhanças de família. Em tais casos, a abertura (tal como a imprecisão) ocorre não somente no “uso geral” do conceito, mas também entre seus distintos modos de aplicação. A abertura dos modos de aplicação de um conceito como o de arte, é mais facilmente identificável, uma vez que eles podem ser facilmente substituídos por subconceitos que os designem, como é o caso de “formas de arte” como ‘música’, ‘pintura’, ‘literatura’, ‘comédia’, ‘novela’, ‘romance’, etc. Estes subconceitos ou modos de aplicação específicos apresentam entre si fronteiras não só indivisas como também fluidas (como, por exemplo, aquelas proporcionadas pelas distinções entre a novela e o romance, que além de serem imprecisas, tem se alterado ao longo do tempo).

A abertura dos modos de aplicação de expressões com semelhanças de família não é, contudo, uma qualidade necessária a todas as expressões. Uma expressão pode ser artificialmente fechada por “decreto”, quando se faz pesar sobre ela uma definição rigorosa. O conceito de número, por exemplo, 91 Ver o artigo de Morris Weitz, The Role of Theoryin Aestetics, in At the Arts, 1962.

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caracteriza-se por exibir semelhanças de família entre seus modos de aplicação designados pelas espécies de números, com os racionais, irracionais, complexo, etc. Estes subconceitos, porém, são passíveis de receber definições rigorosas, isto é, artificialmente fechadas:

Compara-se o conceito d proposição (também caracterizado por semelhanças de família) com o conceito de número e ainda com o conceito de número cardinal. Nós contamos como número os números cardinais os números racionais, os números irracionais, os números complexos; se chamamos outras construções de números por causa de sua similaridade com aquelas, ou delimitamos uma fronteira definitiva aqui ou em outro lugar, isso depende de nós . A esse respeito o conceito de número é como o conceito de proposição. Por outro lado, o conceito de número cardinal [ I, E, E + I] pode ser chamado de um conceito rigorosamente circunscrito, ou seja, um conceito em uma sentido diferente da palavra (PG §70; grifo nosso).

É como que conceitos científicos, de modo diverso do que costuma acontecer com os conceitos da linguagem cotidiana, sejam artificialmente precisados e fechados com o objetivo de tornar as convenções explícitas.

Como conseqüência, esses conceitos podem por vezes não evoluir se significado como costuma ocorrer com os termos da linguagem cotidiana, mas simplesmente perder sua utilidade quando a própria ciência os ultrapassa.

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CAPÍTULO IX

LINGUAGEM E SIGNIFICADO

Em caso de dificuldade, pergunte sempre: como aprendemos o significado desta palavra (“bom”, por exemplo)? Segundo que exemplos? Em que jogos de linguagem? Você verá então, mais facilmente, que a palavra deve ter uma família de significados (PI §77).

O que foi dito no último capítulo acerca da indeterminação das expressões e termos gerais da linguagem, aplica-se igualmente aos termos teóricos até agora estudados. Noções como as de linguagem, jogo de linguagem, regra, uso e significado, apresentam cada qual semelhanças de família, além de serem imprecisas e abertas. Veremos, neste capítulo, principalmente a indeterminação das noções de significado e de linguagem, a começar por esta última.

Uma descoberta fundamental esteve na origem da última filosofia de Wittgenstein. Trata-se de que ele se apercebeu do fato de que ele se apercebeu de que as várias linguagens (jogos de linguagem) não compartilham entre si de uma mesma essência comum, a qual, mesmo que exista, seria incapaz de explicar as relações entre as suas várias formas92. Como conseqüência, as 92 Cf. D. Pears, As Idéias de Wittgenstein, p. 14. Como no capítulo anterior, referimo-nos à essência comum como expressão da “primitiva” idéia de que as entidades designadas por um conceito geral devam ser elas próprias portadoras de certas características cuja presença é necessária e suficiente para que ele as possa designar. A crítica a este

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teorias tradicionais do significado e da linguagem, entre elas a do próprio Tractatus, estavam destinadas a falhar, por serem tentativas de estabelecer, com base na simples unidade de sua aparência, a estrutura única da linguagem. O desconcertante problema criado pela necessidade de uma teoria da linguagem que não recorresse a uma ingênua concepção de essência comum, recebeu de Wittgenstein uma solução não menos invulgar do que sua própria descoberta. Ele buscou refletir a natureza profundamente diversificada de tudo aquilo que podemos chamar de linguagem, em um esboço teórico que incorporasse em seus conceitos a mesma espécie de indeterminação que havia no objeto de suas investigações. Para isso, Wittgenstein concebeu as linguagens ou formas de linguagem pela metáfora dos “jogos de linguagem”, que da mesma forma que os jogos, não apresentam uma essência comum, mas famílias de semelhanças e parentescos entre si (PI §66 e 8.11).

Em Wittgenstein, a noção de linguagem identifica-se essencialmente com a noção de jogo de linguagem. Devido a isso, podemos distinguir duas acepções para o termo ‘linguagem’:1) quando este é usado para designar jogos de linguagem relativamente simples, como o jogo de comando (I) e (II) quando este é usado para designar coleções de jogos de linguagem aparentados por semelhanças de família, tais como a) jogos de linguagem compostos ou formas de linguagem (como o jogo de ‘relatar acontecimentos’ (PI §23) e a ‘linguagem das cores’) e, b) coleções de jogos de linguagem compostos capazes de constituir uma linguagem natural (ou língua humana93).

Em sua primeira e mais fraca acepção, o termo ‘linguagem’ designa os jogos de linguagem relativamente simples que, tomados separadamente uns

essencialismo ingênuo não basta para qualificar Wittgenstein como “antiessencialista” ou “nominalista extremado”. Ao contrário, se entendermos por essência algo mais amplo, poderemos repetir com H. R. Finch que “ele estava procurando pela essência da linguagem, até mesmo quando sua idéia do que isso poderia envolver tinha mudado completamente” (Wittgenstein - The Later Philosophy, p. 14). No caso de um conceito com semelhanças de família (como o de ‘linguagem’), podemos cogitar em definir sua essência em termos das “margens de similaridade” que as entidades por ele designadas devem necessariamente apresentar com um determinado paradigma.93 Para Wittgenstein, a coleção de jogos de linguagem que constitui uma linguagem, deve incluir em seu domínio as regras e signos específicos das línguas humanas, geralmente enjeitadas pelos filósofos como constituídas pelos traços inessenciais dos sistemas comunicacionais: ...”Linguagem” é para nós o nome de uma coleção, e eu a entendo como incluindo o Alemão, o Inglês, etc., e além disso os vários sistemas de signos que tem maior ou menor afinidade com estas linguagens (Z §322).

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dos outros, podem ser considerados como “unidades mínimas” daquilo que se poderia chamar justificadamente de linguagem (Cf. PI §65). No Brown Book, por exemplo, Wittgenstein chamou os jogos de linguagem simples de “linguagem completas, completos sistemas de comunicação humana” (BB p.81), querendo enfatizar com isso a possibilidade de os considerarmos como sistemas de linguagem independentes uns dos outros. Por outro lado, na segunda e mais ampla acepção do termo, Wittgenstein chamou de ‘linguagem’ a quaisquer coleções de jogos de linguagem que detenham semelhanças de família entre seus membros, o que corresponde aproximadamente ao seu sentido ordinário. Como uma coleção de jogos de linguagem aparentados por semelhanças de família pode, afinal, ser sempre considerada como uma espécie de “jogo de linguagem composto” constituído pela união dos jogos de linguagem mais simples que o compõem, torna-se admissível a conclusão de que a segunda acepção do termo ‘linguagem’ não difere essencialmente da primeira.

A coleção de jogos de linguagem, que pode ser alguma coisa relativamente modesta, como as formas de linguagem da física, da aritmética e das cores, pode torna-se indefinidamente ampla quando por ela entendemos uma linguagem natural, como a empregada em nosso cotidiano.

Wittgenstein considerava a linguagem natural como uma espécie de “nebulosa”, constituída por um número indefinido de jogos de linguagem de todas as espécies, unidos pelos mais variados parentescos. Tal é a imagem por ele sugerida no Brown Book:

Quando uma criança ou um adulto aprende o que se poderia chamar de linguagem técnicas especiais, e.g., o uso de cartas e diagramas, geometria descritiva, simbolismo químico, etc., ele aprende mais jogos de linguagem. (Observe: a imagem que temos da linguagem (language) do adulto é aquela de uma nebulosa massa de linguagem, sua língua materna (his mother tongue), circundada por discretos e mais ou menos distintos jogos de linguagem, as linguagens técnicas). (BB p.81).

Como observou R. Rhees, a forma de unidade que a linguagem apresenta, e que nos permite usar expressões como “uma linguagem comum” ou “uma mesma linguagem”, é uma espécie de unidade que não exige a preservação de uma essência comum, entendida como característica objetivamente presente em qualquer de sua várias formas94:

Ao invés de indicar alguma coisa comum a tudo o que chamamos de linguagem, digo que não há alguma coisa comum a estes fenômenos, em 94 R. Rhees, Wittgenstein builders, p. 71, in Discussions of Wittgenstein.

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virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim que eles estão aparentados uns com os outros de muitos e diferentes modos. E é por causa desse ou desses parentescos que nós os chamamos de “linguagem” (PI §65).

A questão de se saber qual é a essência da linguagem, passa a ser agora a de determinar o que confere unidade a uma coleção de jogos de linguagem (ver nota p. 109). A hipótese que aqui apenas conjecturamos é a de que o termo ‘linguagem’, como qualquer outro que apresente semelhanças de família, possa ter a unidade de seu uso justificada pela exigência de certas condições ou margens de similaridade com paradigmas justificadores, compostos por características tais como as funções comunicativa ou expressiva, o uso de signos mediado por regras, sua operação a serviço de uma forma de vida, etc.

Uma linguagem natural é também um sistema aberto, em evolução: “uma pluralidade onde nada é fixo e dado para sempre; na qual novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem nascem, enquanto outros são esquecidos” (PI §23). Wittgenstein comparava a lenta edificação de uma linguagem natural com a formação de uma cidade, cujas fronteiras, além de serem imprecisamente determinadas, são abertas:

Você quer dizer que elas por isso não são completas, então pergunte-se se a nossa linguagem é completa; se o foi antes que lhe fossem incorporados o simbolismo químico e a notação infinitesimal, pois estes são, por assim dizer, os subúrbios de nossa linguagem. (E com quantas casas ou ruas uma cidade começa a ser cidade?) Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e tudo isso cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes (PI §18).

Nesta analogia, a cidade corresponde à linguagem como coleção de jogos de linguagem, enquanto os subúrbios, praças, casas e ruas da cidade correspondem à variedade de jogos de linguagem que compõem a coleção. A mesma analogia nos permite imaginar duas espécies de limites para uma dada linguagem: seus limites externos, correspondentes às fronteiras exteriores da cidade, e seus limites internos, correspondentes às fronteiras que separam os subúrbios, casas e ruas da cidade, ou seja: os que separam os seus jogos de linguagem. Tanto os limites externos com internos de uma linguagem são indistintos ou imprecisos, pois as regras que constituem a gramática de seus jogos de linguagem são elas próprias indeterminadas. Como vimos em no

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oitavo capítulo, quando queremos precisar o significado de uma palavra, nós o fazemos pela especificação das regras que determinam seu uso. Estas regras, no entanto, são incapazes de limitar inteiramente, o emprego da palavra, porque elas próprias são imprecisas, o que as faz deixar muitas possibilidades em aberto.

Wittgenstein ilustrou este fato dando como exemplo as regras de jogo, o tênis: “Não há nenhuma regra no tênis que prescreva até que altura é permitida lançar a bola nem com quanta força; mas o tênis é um jogo e também suas regras” (PI §68). Para precisar ainda mais as regras que determinam o uso da palavra, necessitaremos complementá-las com outras, que por sua vez necessitarão ser precisadas, e assim sucessivamente. Como esta especificação de novas regras não poderá deixar de terminar em algum ponto, também o uso ou significado da palavra não poderá jamais ser absolutamente precisado (ver Z §§440-1).

Finalmente, os jogos de linguagem costumam constituir-se, não só como conjuntos ou sistemas de regras imprecisos, mas também abertos. Nas linguagens naturais, os jogos de linguagem ou desaparecem e são substituídos por outros, ou modificam-se gradualmente. E “quando os jogos de linguagem mudam, então há uma mudança nos conceitos, e com os conceitos os significados das palavras” (OC §65, ver 8.3).

O que dissemos no capítulo precedente sobre as semelhanças de família entre as múltiplas aplicações de uma mesma expressão e o que dissemos neste capítulo sobre as semelhanças de família entre jogos de linguagem, pode agora ser articulado de maneira a permitir um avanço na abordagem do problema do significado. Esta articulação irá auxiliar-nos a responder à seguinte questão: o que semanticamente une os múltiplos modos de aplicação de um mesmo termo geral? A resposta que esta questão naturalmente nos insinua, parece poder ser sumarizada da seguinte maneira: os múltiplos modos de aplicação de uma expressão que exibe semelhanças de família podem ser considerados como correspondendo a jogos de linguagem aparentados, nos quais a expressão é aplicada. Sendo assim, para cada diferente modo de aplicação de uma expressão, podemos fazer corresponder um significado diferente.

O raciocínio que leva a tal conclusão é o seguinte: uma expressão que exibe semelhanças de família, apresenta múltiplos modos de aplicação aparentados entre si. Um modo de aplicação, por sua vez, só é identificável como efeito de um dado conjunto ou sistema de regras. As semelhanças de família entre modos de aplicação equivalem, portanto, à margens de similaridade mantidas entre certas regras próprias de cada modo de aplicação, e um conjunto de regras estabelecidas em um certo paradigma justificador.

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Ora, o conjunto de regras que determina um modo de aplicação, sendo consensualmente identificável como produtor de movimentos inteligíveis em nossa forma de vida, pode efetivamente ser considerado como um jogo de linguagem. Por conseguinte, os modos de aplicação aparentados por semelhanças de família devem corresponder ao que já chamamos de jogos de linguagem aparentados por semelhanças de família (i.e., que partilham de certas regras com um mesmo paradigma justificador) (ver PI §§77, 179 e Z §645). Como o significado pode ser considerado como o uso da expressão em um jogo de linguagem, podemos concluir que, se a identificação e um modo de aplicação específico corresponde também à identificação de um jogo de linguagem particular, então, a cada modo de aplicação de uma expressão podemos fazer corresponder também um significado particular (Cf. OC §61).

Os dois exemplos que se seguem, deverão contribuir para o esclarecimento destas últimas suposições.

O primeiro exemplo foi exposto nas Investigações Filosóficas e versa sobre a diversidade dos modos de aplicação do número “1”. “Diga-se”, sugeriu Wittgenstein, “uma frase como ‘a cada 1 metro está 1 soldado, a cada 2 metros, portanto, 2 soldados’” (PI §552). O primeiro “1” é aplicado a uma determinada extensão (a de um metro), enquanto o segundo “1” é aliado a uma quantidade:

Ora, o “1” tem significado diferente ao designar ora a medida, ora a quantidade? Se a questão foi colocada assim, a resposta será: sim (PI §553, grifos nossos).

Podemos interpretar esta afirmação de maneira que se segue. Se nosso objetivo for o de estabelecer a distinção semântica, as duas ocorrências do número “1” na proposição “A cada 1 metro há 1 soldado”, há vantagem em se dizer que o número “1” é aqui aplicado segundo as regras de dois jogos de linguagem diversos. Segundo as regras do primeiro jogo de linguagem, o “1” serve para designar uma extensão, enquanto segundo as regras do segundo jogo de linguagem, o “1” serve para designar uma quantidade. Estes dois jogos são sistemas de regras aparentados entre si por semelhanças de família, certamente por apresentarem suficientes margens de similaridade com um paradigma justificador. Neste caso, como o significado pode ser considerado como ouso de uma expressão segundo as regras de um jogo de linguagem, o conceito de número “1” pode efetivamente ser visto como dotado de dois significados distintos (se bem que aparentados).

Alguém, diante do que dissemos, poderia objetar que se assim fosse, não se poderia mais falar do significado do número “1” independentemente de suas aplicações particulares, as quais devem ser inúmeras; o mesmo

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acontecendo com uma infinidade de outros termos. Esta conclusão, porém, não se justifica. Podemos, como foi feito acima, falar do ‘significado’ ao nos referirmos a um modo (ou conjunto de modos) de aplicação de uma mesma expressão. Porém, como os vários modos de aplicação de uma expressão são aparentados entre si por semelhanças de família, parece possível conceber seu uso em um jogo de linguagem que os inclua a todos. Tal se dá quando usamos a palavra ‘significado’ para designar o conjunto dos modos de aplicação de uma expressão geralmente conhecidos. Aparentemente, é a isso que uma pessoa normalmente se refere quando afirma conhecer o significado de um conceito ou termo geral. É também algo próximo a isso o que ocorre quando alguém emprega uma expressão de modo figurativo na leitura expressiva de uma poesia. Neste caso, as aplicações particulares da expressão são abstraídas e a palavra tende a se preencher inteiramente de seu (múltiplo) significado (Cf. PI p. 214-15).

A existência de um significado geral das expressões foi reconhecida por Wittgenstein em sua análise de um conceito tipicamente caracterizado por apresentar uma diversidade de modos de aplicação com semelhanças de família entre si: o conceito de compreensão. Entre seus múltiplos modos de aplicação (significado) diferentes, ‘compreender’ pode significar “ser capaz de traduzir uma palavra em um gesto ou o contrário” (PG §5). ‘Compreender’ pode igualmente ter significados diversos quando usado para designar o domínio de nossa linguagem verbal ou a familiaridade com certo conjunto de circunstâncias contextuais. Por exemplo: compreendemos a sentença “Depois que ele disse isso ele a deixou como no dia anterior” (PG §5) no sentido de que sabemos português, que poderíamos traduzi-la para outra língua.

Mas se encontrássemos esta sentença entre as páginas de uma novela, poderíamos dizer que a compreendemos em um sentido muito diverso, dependente não só de um conhecimento prévio da linguagem verbal, mas da familiaridade com as circunstâncias contextuais nas quais ela vem inserida.

Além disso, pode-se falar da compreensão de uma sentença no sentido de que ela pode ser substituída por outra que diga a mesma coisa, mas pode-se também compreender uma sentença em um sentido no qual tanto suas palavras quanto sua ordenação desempenham um papel único e dificilmente substituível, como acontece com a poesia (PI §531). Juntamente com os anteriores, estes últimos casos podem ser conjuntamente considerados, quando nosso propósito for enfatizar o seu parentesco comum em um “significado geral” do conceito. Eis o que deles escreveu Wittgenstein:

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Então ‘compreender’ tem aqui dois significados diferentes? - Prefiro dizer que essas espécies de uso de ‘compreender’ formam seu significado, o meu conceito de compreensão.Pois quero aplicar ‘compreender a tudo isso’ (PI §532).

Podemos concluir que o que comumente chamamos de significado de uma expressão depende também aqui de nossos propósitos. Com relação a uma expressão (conceito ou termo geral) com semelhanças de família, pode-se falar de dois modos de aplicação da palavra ‘significado’ que se encontram em extremos opostos: I) quando a palavra ‘significado’ é usada para designar o conjunto de todos os modos de aplicação de uma expressão segundo os sistemas de regras de todos os jogos de linguagem aparentados nos quais ela pode ser empregada - i.e., o significado geral da expressão, tal como o exemplificamos com o conceito geral de compreensão; II) quando a palavra ‘significado’ é usada para designar modos de aplicação particulares de uma expressão segundo sistemas de regras de jogos de linguagem particulares, minimamente diferenciáveis entre si. Entre estes extremos, pode-se prever, há uma variedade de casos possíveis, formados por conjuntos identificáveis de modos de aplicação mais simples, os quais, em uma outra ocasião, somos levados a chamar de ‘significado’ de uma expressão, quando pressionados por diferentes circunstâncias (critérios). Somente quando falamos de certos modos ou conjuntos de modos de aplicação de uma expressão ou termo geral, referimo-nos ao seu uso efetivo em circunstâncias práticas, certos de não estarmos tratando com ficções gramaticais. Segundo estes últimos modos de aplicação da palavra ‘significado’, as expressões de nossa linguagem são geralmente polissêmicas, pois para cada modo de aplicação particular (conquanto existam regras que o diferenciem dos demais) é possível fazer corresponder um significado algo diferente. Uma conclusão que Wittgenstein se permitia generalizar de uma maneira surpreendente:

Há palavras com vários significados claramente definidos. É fácil estabelecer aqueles significados. E há palavras das quais alguém poderia dizer: elas são usadas de mil diferentes maneiras que fundem-se gradualmente umas nas outras. Não é de se admirar que não possamos estabelecer regras estritas para seu uso (BB p. 28, grifos nossos).

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CONCLUSÃO

No capítulo introdutório, havíamos apresentado como objetivo deste trabalho, o estabelecimento do que seria o esboço de uma teoria do significado, feito a partir de uma interpretação da última fase da filosofia de Wittgenstein. O próprio Wittgenstein, contudo, não parecia pensar em sua filosofia como teoria, mas como um método terapêutico. Para contornar esta dificuldade, procuramos tornar evidente que a concepção austiniana de filosofia como “protociência” (teoria), procurando evidenciar duas coisas.

Primeiro: que a filosofia terapêutica não se opõe à filosofia como teoria.Segundo: que a filosofia terapêutica parece dever a sua verdadeira

eficácia a um saber teórico pressuposto. Ao que parece, teoria (“metafísica”) e método (terapia) são, em filosofia, as duas faces de uma mesma moeda filosófica. Caberá ao temperamento e às aptidões do filósofo, escolher sobre qual de suas faces irá se desenvolver a maior porção de sua obra.

Do capítulo II ao capítulo IX, empenhamo-nos em descrever os elementos essenciais do esboço teórico que encontramos subjacente à filosofia de Wittgenstein. Esta tarefa foi concebida como um trabalho de elucidação e estabelecimento de relações sistemáticas entre os vários conceitos-chave de sua filosofia, tais como os de uso, regra, critério, jogos de linguagem, formas de vida e semelhanças de família.

Começamos, no capítulo II, pelo esclarecimento da aparentemente enigmática identificação feita por Wittgenstein entre significado e uso. Vimos que o significado não pode ser entendido como o uso arbitrário de expressões, porque se assim fosse, cairíamos em uma situação de “catástrofe semântica” que esvaziaria a própria noção de significado. O significado é o uso correto de expressões, i.e., seu uso de acordo com regras.

No capítulo III, vimos como as regras que determinam o uso das expressões não funcionam isoladamente, costumando articular-se entre si de maneiras variadas, constituindo assim diferentes sistemas de regras - jogos de linguagem - que determinam os modos de uso ou aplicação das expressões.

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Ainda no capítulo III, assim como nos capítulos subseqüentes, vimos que os jogos de linguagem não incluem entre seus elementos apenas signos lingüísticos. Eles incluem também os contextos (definidos como conjuntos socialmente reconhecíveis de entidades relacionadas de certa maneira) nos quais aqueles signos vêm situados. As entidades que constituem estes contextos, por sua vez, podem servir de critérios, definidos como termos antecedentes das relações prescritivas que são as regras. Quando uma expressão é usada, ela ganha determinado significado na medida em que, por intermédio de relações criteriais (regras), for relacionada aos contextos que a envolvem - o que nos permite situá-la em um jogo de linguagem específico. Em decorrência disso, o significado de uma mesma expressão, sendo seu uso determinado por regras, poderá ser múltiplo, variando na dependência do sistema de regras (jogo de linguagem) no qual ela estiver sendo empregada.

No capítulo VII, evidenciamos a abrangência e a especificidade próprias da concepção de linguagem em Wittgenstein, ao mostrar mais de perto a maneira como os contextos acima mencionados incluem, não só conjuntos de signos representacionais, mas também toda sorte de instituições, situações, circunstâncias e atividades que forma o “agir comum” dos seres humanos em um agrupamento social. Por esta razão, concebemos os contextos como portadores de uma dupla dimensão, gramatical e antropológica. A noção de forma de vida designa esta ambigüidade dos contextos, aludindo assim à inserção da linguagem em seu fundamento antropológico.

Finalmente, nos dois últimos capítulos, introduzimos a noção de semelhanças de família, sob cuja luz retornamos ao problema não tematizado da multiplicidade das aplicações (significados) de uma mesma expressão em diferentes jogos de linguagem. Assim, mostramos que é correto considerar uma expressão como polissêmica em decorrência da possibilidade dela ser aplicada em uma diversidade de jogos de linguagem. Todavia, como estes jogos exibem semelhanças de família entre si, parece igualmente correto falarmos de um “significado geral” da expressão, quando consideramos o conjunto destes jogos de linguagem aparentados como um único e mais complexo “jogo de linguagem”. Estabelecemos assim condições para uma mais adequada apreciação do conteúdo da formula expressa no capítulo II, segundo a qual, o significado de uma expressão consiste em seu uso segundo as regras de jogos de linguagem pertencentes a uma forma de vida.

Os resultados acima sintetizados nada mais fazem, em nossa opinião, do que trazer confirmação à nossa hipótese inicial. Efetivamente, parece existir uma teoria da linguagem no segundo Wittgenstein, da qual decorre naturalmente uma semântica. Uma “teoria” que não é mais do que um vago, esquemático e fragmentário esboço do que se nos afigura como um vasto

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quebra-cabeças do qual nem todas as peças encontram-se à disposição. Não obstante, podemos chamá-la de ‘teoria’ na medida em que o aprofundamento de seus conceitos parece demonstrá-los cada vez mais capazes de serem articulados em um sistema fornecedor de um representação simbólica em nível metalingüístico da estrutura e funcionamento gerais da linguagem, bem como da maneira como suas expressões adquirem significado. Acreditamos ser um trabalho para as futuras gerações de intérpretes, o adequado estabelecimento desta teoria, feito a partir de um complexo exame da filosofia de Wittgenstein, bem como de seu relacionamento com as aquisições da filosofia e das ciências contemporâneas. Um trabalho como o nosso, que se pretende sistematizador, é, por certo, necessariamente limitado, correndo o risco de empobrecer, esquematizar e distorcer o pensamento de Wittgenstein. Um risco que, em nosso entender, pode ser corrido, conquanto tivermos induzido o leitor cético a uma renovada reflexão em torno dos temas aqui abordados.

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BIBLIOGRAFIA

Nesta bibliografia foram incluídos apenas os livros e artigos mais diretamente relacionados ao tema deste livro, aos quais adicionamos os que já foram designados pelas notas de rodapé.

I. Obras de Wittgenstein (por ordem de composição):

Tractatus Logico-Philosophicus. London, Routledge & Kegan Paul, 1961. Para o original em alemão, ver Werkausgabe Band I. Frankfurt, Suhrkamp, 1984. Remarks on Frazer’s “Golden Bough”, in C. G. Luckhardt, Wittgenstein - Sources and Perspectives, The harvester Press, pp. 61-81.Philosophical Remarks. Oxford, Basil Blackwell, 1975.Wittgenstein’s Lectures in 1930-33, por G. E. Moore. Mind 63 (1954), pp. 1-15, 289-316 e Mind 64 (1955), pp. 1-27.Philosophical Grammar, Oxford, Basil Blackwell, 1974.The Blue and Brown Books. Oxford, Basil Blackwell, 1975.Estética, Psicologia e Religião, por Y. Smythies, R. Rhees e J. Taylor, trad. Bras. Ed. Cultrix, São Paulo, 1970.Remarks on The Foundations of Mathematics. Oxford, Basil Blackwell, 1978.Philolsophical Investigations. Oxford, Basil Blackwell, 1967. Werkausgabe Band I, Frankfurt, Suhrkamp 1984Zettel. Oxford, Basil Blackwell, 1967.Remarks on Colours. Berkeley, Univ. of California Press, 1978.Observationes. México, siglo XXI, 1981.Notes for lectures on ‘private experience’ and ‘sense data’. In H. Morick, Introduction to the Philosophy of Mind, Chicago, Scott, Foresman and Co., 1970.On Certainty. Oxford, Basil Blackwell, 1977. Über Gewissheit, Werkausgabe, Band VIII, Frankfurt, Suhrkamp 1984.

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II. Literatura:

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APÊNDICE

GLOSSÁRIO: Abreviações referentes à obra de Wittgenstein:

TLP Tractatus Lógico-Philosophicus. Trad. Inglesa de D. F. Pears e B. F. McGuinness (London, 1961).PR Philosophical Remarks (Philosophische Bemerkungen). Trad. Inglesa de R. Hargreaves e R. White (Chicago, 1975).PG Philosophical Grammar (Philosophische Grammatik). Trad. Inglesa de A. Kenny (Los Angeles, 1978).BB The Blue and Brown Books. (Oxford, 1975).RFM Remarks on the Foundations of Mathematics. Trad. Inglesa de G. E. M. Anscombe (Oxford, 1978).PI Philosophical Investigations. Trad. Inglesa de G. E. M. Anscombe (N. York, 1968). Foi utilizada também a tradução para o português de J. C. Bruni (S. Paulo, 1979).Z Zettel. Trad. Inglesa de G. E. M. Anscombe (Oxford, 1967).OC On Certainty. Trad. Inglesa de D. Paul e G. E. M. Anscombe (Oxford, 1977).RC Remarks on Colours. Trad. inglesa de L. L. McAlister e M. Schattle (Berkley, 1978, ed. Biligue).O Observationes (Vermischte Bemerkungen). Coleção de notas selecioandas por G. H. Von Wright; trad. Espanhola de E. C. Frost (México, 1981).

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