Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    1/95

    ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

    SIDNEY MATOS DA SILVA

    STANLEY MILGRAM E A INTERPRETAO SECTRIA

    NOS TEXTOS DE QUMRAN

    SO LEOPOLDO - RS2013

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    2/95

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    3/95

    SIDNEY MATOS DA SILVA

    STANLEY MILGRAM E A INTERPRETAO SECTRIANOS TEXTOS DE QUMRAN

    Trabalho Final de Mestrado Profissional

    para obteno do grau de Mestre emTeologia do Programa de Ps-Graduaoda Escola Superior de Teologia.Linha de Pesquisa: Leitura e Ensino daBblia

    Orientador: Flvio Schmitt

    SO LEOPOLDO - RS

    2013

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    4/95

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    5/95

    RESUMO

    Este trabalho de pesquisa visa a verificar quais fatores psicossociais presentes emdeterminado ambiente favorecem ou determinam a fixao de uma novainterpretao de um texto ou situao. Tomou-se como base o experimento deStanley Milgram realizado para determinao dos fatores que impem umdeterminado comportamento. A pesquisa comprova a hiptese de que os fatoresque impem comportamentos tambm esto presentes na imposio de umadeterminada interpretao. Para tanto, no primeiro captulo, analisou-se o

    experimento realizado por Milgram na Universidade de Yale em 1962 a respeito daobedincia autoridade, e deste experimento retirou-se as variveis determinantesdo comportamento dos voluntrios. No captulo segundo analisou-se os escritossectrios da comunidade do Mar Morto, especificamente a de Qumran, verificandoque houve mudanas de interpretao do texto cannico tomando como referncia olivro de Habacuque. No terceiro captulo apresenta-se a comprovao que osmesmos fatores presentes no experimento de Milgram se encontravam nacomunidade de Qumran e que estes foram refletidos nos textos sectrios. Tambmso apresentados outros eventos histricos que evidenciam a presena dasvariveis estudadas confirmando a hiptese. Na sequncia, apresentam-sesugestes de anlise complementar que podem direcionar uma futura investigao

    cientfica.

    Palavras chave: Qumran; Milgram; Interpretao; Mar Morto.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    6/95

    ABSTRACT

    The aim of this research is to verify which psychosocial factors present in a certainenvironment determine or favour the establishment of a new interpretation of a text orsituation. The Stanley Milgram experiment to determine which factors impose certainbehaviors was used as the starting point. This research proves the hypothesis thatthe factors which impose behaviors are also present in imposing a specificinterpretation. For this purpose, in the first chapter, the experiment carried out byMilgram in Yale University in the year 1962 concerning the obedience to authoritywas analyzed, and from this experiment were drawn the variables which determinethe behavior of the volunteers. In the second chapter, the sectarian scriptures of the

    Dead Sea community, specifically of Qumran were analyzed, verifying that changesof interpretation of the canonical text occurred, focusing on the book of Habakkuk. Inthe third chapter it is demonstrated that the same factors presented in the Milgramexperiment were found in the Qumran community and were reflected in the sectariantexts. Other historical events are also shown which provide evidence of the samevariables confirming the hypothesis. In sequence, some suggestions are made forfurther future scientific analysis.

    Keywords: Qumran; Milgram; Interpretation; Dead Sea

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    7/95

    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................ 061. O EXPERIMENTO DE MILGRAM......................................................... ..... 101.1. Descrio do experimento .................................................................... 101.2. A realizao. ......................................................................................... 141.3. Resultados ........................................................................................... 18

    2. OS TEXTOS DE QUMRAN......................................................................... 252.1. Os manuscritos descobertos. ............................................................... 252.2. Histrico da comunidade e sua forma de viver..................................... 282.3. A interpretao sectria nopesherde Habacuque............................... 35

    3. OS TEXTOS DE QUMRAN E AS VARIVEIS DE MILGRAM................... 503.1. Verificao das variveis de Milgram em Qumran ............................... 50

    3.2. A presena das variveis em outros exemplos histricos ................... 553.2.1. A Reforma Protestante ............................................................... 553.2.2. O advento do cristianismo primitivo ........................................... 583.2.3. A Revoluo Francesa .............................................................. 61

    CONCLUSO E PERSPECTIVAS DE NOVAS PESQUISAS....................... 66REFERNCIAS ......................................................................................... 70ANEXO APESHER DE HABACUQUEPORTUGUS ............................ 72ANEXO BPESHER DE HABACUQUEFAC SMILE ............................... 82

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    8/95

    INTRODUO

    A interpretao dos textos bblicos passa por um processo hermenuticocom suas regras e procedimentos especficos. No entanto, verifica-se que os

    contedos das novas interpretaes principalmente no processo de contextualizao

    so de difcil determinao, ficando a subjetividade como protagonista na elaborao

    destes contedos.

    No entanto, a fixao de uma determinada interpretao, qualquer que seja

    ela, pode ser resultado de alguma estrutura psicossocial de base que possa servir

    de elemento determinativo.

    Este fenmeno importante, pois, quando se trata de uma contextualizao

    de um texto bblico, precisamos entender quais os mecanismos pelos quais esta se

    d e quais os fatores que influenciaram na fixao da nova interpretao.

    Ao longo dos sculos, muitas interpretaes hermenuticas tm sido dadas

    a textos bblicos diversos, tornando importante o estudo deste fenmeno e as

    causas que as originaram.

    Diante deste quadro, temos questes que precisam ser respondidas e

    estudadas de forma cientfica, para que possamos ter ferramentas para

    entendimento e previso dentro de um arcabouo terico.

    Quais as variveis presentes em um ambiente responsveis pela facilitao

    ou origem do desenvolvimento de uma nova interpretao que se impe sobre um

    determinado texto bblico? Quais os sinais que podemos monitorar para que se

    possa prever que uma nova interpretao est a caminho e que pode aparecer a

    qualquer momento?

    Na tentativa de resposta a estas questes, esta pesquisa far uso dos

    resultados do experimento de Stanley Milgram realizado em 1962 na rea de

    psicologia social, que estudou as causas da imposio de comportamento s

    pessoas, comportamentos estes que poderiam ir inclusive contra os princpios

    morais delas.

    O experimento verificou que, em determinadas condies, pessoas comuns

    podem agir de maneira estranha ao seu perfil tico-moral, podendo at ser

    consideradas ms.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    9/95

    7

    A hiptese de trabalho adotada nesta pesquisa que as variveis que

    possibilitam a imposio de comportamentos podem ser as mesmas daquelas que

    impem interpretaes. Dado que nosso comportamento, aprovado por nossa

    conscincia, depende da interpretao que damos aos fatos ao nosso redor, antes

    do comportamento realizado, h uma interpretao adotada do contexto.

    Sendo as circunstncias que impem comportamento, cientificamente

    conhecidas, podemos por inferncia entender que estas so as mesmas que vo

    impor interpretaes.

    Assim, no aparecimento destas circunstncias, podemos supor que a estas

    se seguir uma alterao de interpretao que para nosso estudo se relacionar ao

    texto bblico.A Comunidade de Qumran ser escolhida como ambiente de estudo, visto

    que, pelos textos encontrados, adotou uma interpretao peculiar e prpria dos

    textos bblicos1. A existncia nesta comunidade dos fatores retirados do experimento

    de Milgram ser uma indicao que no somente comportamentos podem resultar

    destes fatores, mas interpretaes.

    Espera-se que, se a hiptese for confirmada, os resultados possam ser

    extrapolados para entendimento dos fatores que levaram s mudanas nainterpretao de textos bblicos em outros momentos na histria e tambm no

    monitoramento destas variveis no sentido de prever o momento de aparecimento

    de uma mudana de interpretao resultado de uma contextualizao.

    Faz-se necessrio, neste ponto, explicitar que no pretendemos pesquisar

    sobre as causas ou origens de novas interpretaes, mas pesquisar as variveis

    presentes em um Sitz im Leben que possam prover terreno frtil para o

    aparecimento e fixao de uma nova interpretao.Para comprovao da hiptese, ser utilizado como referencial terico os

    resultados do experimento de Milgram realizado na Universidade de Yale em maio

    de 1962.

    Stanley Milgram determinou os principais fatores que esto presentes na

    imposio de comportamentos.

    1 Esta interpretao peculiar se apresenta nos textos originrios da Comunidade, particularmente

    naqueles que tratam exclusivamente de interpretaes, ou seja, ospesharim, que sero abordadosmais adiante.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    10/95

    8

    A pesquisa pressupor que o comportamento adotado pelo voluntrio no

    experimento anlogo a uma interpretao determinada sobre um texto bblico

    adotado por uma comunidade, ambos influenciados pelas mesmas variveis,

    resultado de um acordo tcito com uma autoridade colocada sob as mesmas

    condies psicossociais do experimento.

    Situao parecida ocorre com a revoluo cientfica no modelo explicitado

    por Thomas Khun, quando as pesquisas giram em torno de determinado paradigma

    resultado de um acordo implcito da comunidade acadmica que direciona os

    resultados para um determinado vis.

    Ser utilizado, tambm, outro referencial terico relacionado comunidade

    de Qumran. A proposta mais amplamente aceita entre os pesquisadores a respeitodesta comunidade que ela era composta por essnios, baseando este

    entendimento principalmente nas declaraes de Flvio Josefo e Plnio, O Velho.

    A anlise dos textos sectrios da comunidade, em especial a Regra da

    Comunidade (1QS), o Rolo do Templo (1QT) e o Documento de Damasco (CD),

    mostra um posicionamento teolgico dos sectrios de forma peculiar relativamente

    ao texto bblico, atribuindo a si mesmos o cumprimento das profecias dos textos

    escatolgicos de ento, principalmente do Livro de Enoque.Desta forma, houve um ambiente gerador que deu origem a esta

    interpretao particular que se impunha sobre os membros da comunidade, fazendo-

    os obedecer de forma irrestrita. A nova interpretao dos textos impunha

    comportamentos caractersticos.

    A hiptese na qual se baseia a pesquisa considerar que os elementos

    geradores da nova interpretao dos textos bblicos so os mesmos que impunham

    o comportamento dos sectrios e estes por sua vez, so os mesmos apresentadosno experimento de Stanley Milgram.

    Comprovada esta hiptese, pode-se inferir que de forma geral estes

    elementos estejam presentes em outras situaes de mudanas de interpretao

    hermenutica, como por exemplo, o advento do cristianismo, a Reforma Protestante,

    a Lei de Moiss para o povo judeu. Todos estes casos resultariam em uma mudana

    na interpretao do seu Sitz im Leben e possuiriam as variveis presentes no

    experimento de Milgram.

    A pesquisa, ento, de corte indutivo na sua abordagem, na qual tambm

    se apresentaro alguns fatos histricos como exemplos de corroborao.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    11/95

    9

    Assim, no primeiro captulo ser descrito o experimento de Milgram, seu

    planejamento e resultados. Sero levantadas as variveis que o experimento

    apresenta como condicionantes psicossociais que impem comportamentos em um

    determinado ambiente.

    Esta parte da pesquisa ser de vis bibliogrfico, tomando por base, o

    referencial terico contido principalmente no livro Obedience to Authority , de

    autoria do prprio Stanley Milgram, realizador do experimento.

    No segundo captulo, por meio de pesquisa bibliogrfica, sero

    apresentados de forma mais geral os textos de Qumran, e de forma mais especial

    aqueles de carter sectrio, onde a comunidade apresenta uma interpretao

    particular. Esta pesquisa feita nos textos referidos acima e nos pesharimprincipalmente o de Habacuque, no qual se concentrar a pesquisa.

    Tambm ser apresentado o posicionamento da Academia para a

    comunidade relacionada aos textos de Qumran geralmente conhecida como a

    Comunidade do Mar Morto.

    No terceiro captulo, as variveis apontadas no experimento de Milgram em

    1962 sero ento procuradas no texto sectrio do livro de Habacuque, verificando

    suas existncias no contexto da comunidade e avaliadas se as mesmas serelacionam ao surgimento da interpretao especfica.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    12/95

    1. O EXPERIMENTO DE MILGRAM

    1.1. Descrio do experimento

    Stanley Milgram, estudioso das cincias do comportamento, realizou seu

    experimento na Universidade de Yale em maio de 1962. O experimento visava a

    compreender quais eram os fatores sociais e psicolgicos presentes em uma

    relao de obedincia a uma autoridade.

    O interesse surgiu devido ao holocausto nazista ocorrido na Segunda Guerra

    Mundial, que exterminara cerca de seis e meio milhes de judeus. O ocorrido

    levantava srias questes sobre como os alemes, intelectualizados (um percentual

    enorme das foras das SS possuam Ph.D.), com elevado nvel de educao,

    poderiam levar a cabo um plano de extermnio em to grandes propores.

    A filsofa poltica Hannah Arendt, que fez cobertura do julgamento de Rudolf

    Eichmann2, um dos pais da soluo final, apresentou o perfil do ru como um

    homem perfeitamente normal, burocrata e cumpridor de ordens3.

    recordativo o assunto que se levantou quando da publicao do livro deHannah Arendt, em 1963, Eichmann em Jerusalm. Arendt argumentou queo esforo da acusao para descrever Eichmann como um monstro sdicoestava fundamentalmente errado, pois, ele se assemelhava mais a umburocrata, que sentado em sua mesa, cumpriu o seu trabalho (traduonossa).

    Estas aparentes contradies levaram Stanley Milgram a realizar seu

    experimento para verificar quais variveis esto presentes em uma relao de

    obedincia autoridade e at que consequncias podem resultar desta relao.Milgram, na sua obra Obedincia Autoridade, define obedincia como

    aquele mecanismo psicolgico que relaciona a ao individual a um propsito

    2ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem. A report on the banality of evil. New York: Viking Press,

    1963.3MILGRAM, Stanley. Obedicence to Authority. New York:Harper&Row, 1974.p.5. Indeed it is highly

    reminiscent of the issue that arose in connection with Hannah Arendts 1963 book, Eichmann inJerusalem. Arendt contended that the prosecutions effort to depict Eichmann as sadistic monster wasfundamentally wrong, that he came closer to being an uninspired bureaucrat who simply sat at hisdesk and did his job.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    13/95

    11

    poltico. Este mecanismo estaria to arraigado ao comportamento humano, que

    suplantaria o treinamento tico e as condutas morais.4

    Para o experimento, Milgram publicou nos meios de comunicao da

    comunidade de New Haven, um convite para obteno de voluntrios que

    quisessem participar do mesmo.

    Primeiramente Milgram havia pensado em utilizar no experimento os alunos

    de graduao da Yale, porm, percebeu que poderia haver riscos de vazamento do

    propsito da pesquisa em conversas com os demais colegas, inutilizando todo o

    experimento.

    Alm disso, os estudantes no comporiam uma amostra representativa mais

    aberta da sociedade, visto se constituir na maioria de jovens em torno dos vinteanos, inteligentes e com grau de instruo aparentemente homogneo. Para que o

    experimento pudesse ser mais representativo, ento, seria escolhida a comunidade

    de New Haven, na poca composta de 300.000 pessoas.

    Ao comparecer ao local, o voluntrio seria recebido por um professor de

    biologia do nvel mdio (Stanley Migram acompanhava nos bastidores) envolvido no

    experimento. O voluntrio aguardaria o pesquisador em uma sala, enquanto

    chegaria um segundo voluntrio (tambm envolvido no experimento como cmplice,j com procedimentos acordados previamente com o pesquisador, mas sem o

    conhecimento do primeiro voluntrio, este sim, o objeto da pesquisa de Milgram).

    Outra pessoa apareceria ento aos dois voluntrios. Apresentava-se como

    um pesquisador e explicava, erroneamente, porm de forma proposital, que o

    experimento se tratava da relao da punio com a aprendizagem e a memria.

    Um dos voluntrios seria ento o professor e o outro o aprendiz, e por

    meio de sorteio era determinado qual dos dois seria o professor (cujo papel semprecaa para o primeiro voluntrio, deixando ao cmplice o papel de aprendiz).

    Os dois seriam encaminhados ao local do experimento dividido em duas

    salas5. Em uma delas o cmplice seria colocado e tinha seus pulsos presos a

    4MILGRAM, 1974, p.1. Obedience is the psychological mechanism that links individual action topolitical purpose. It is the dispositional cement that binds men to systems of authority. Facts of recenthistory and observation in daily life suggest that for many people obedience may be a deeplyingrained behavior tendency, indeed, a prepotent impulse overriding training in ethics, sympathy and

    moral conduct.5Em outra modalidade do experimento, Milgram colocou o aprendiz e o professor no mesmo recinto

    para verificar se haveria alterao no comportamento do professor com a presena fsica de quemlevaria o choque.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    14/95

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    15/95

    13

    A verdadeira razo do experimento era verificar at que ponto o voluntrio,

    que exerceria o papel de professor, seguiria aplicando choques no aprendiz,

    sabendo da frgil condio de sade do mesmo.

    Esta ento a descrio do experimento que Milgram se props a realizar

    para verificar at que ponto as estruturas psicolgica e social so determinantes do

    processo de obedincia das pessoas.

    O experimento de Milgram foi posteriormente criticado por alguns

    especialistas por aspectos ticos.

    A colocao das pessoas em situao de estresse poderia no ser benfica

    e trazer prejuzo s mesmas. Cabe lembrar que na poca os procedimentos ticos

    para experimentos envolvendo seres humanos ainda no estavam muito bemdefinidos.

    Milgram, em sua defesa, alegou que havia vrios experimentos na rea de

    psicologia com o intuito mesmo de produzir estresse. O experimento realizado por

    ele no previa nenhum efeito malfico sobre os voluntrios, nem isso foi ventilado

    quando da consulta prvia aos especialistas sobre os procedimentos.

    Tambm a maioria dos voluntrios agradeceu pela participao

    posteriormente via correspondncia, inclusive uma pessoa que participou na guerrado Vietn, informando que o experimento de Milgram o ajudou na avaliao de

    responsabilidade sobre as aes na guerra.

    O psiclogo Philip Zimbardo6 defendeu o experimento, informando que

    nenhum dos participantes procurou ir at a sala onde estava o aprendiz para ver

    como este se encontrava fisicamente e que apesar de ter resistido a partir de

    determinado momento em continuar aplicando os choques, nenhum deles falou que

    se devesse terminar o experimento.

    6 Philip Zimbardo, psiclogo, realizou a famosa experincia dos prisioneiros na Universidade de

    Standford. Ele se utilizou de voluntrios da graduao para verificar o comportamento dos mesmossob as condies que simulavam a de uma priso. Eles foram divididos entre aqueles que faziam opapel de prisioneiros e os de guardas de priso. Verificou-se que sob aquelas condies os

    estudantes passaram a agir com agressividade, extrapolando os limites moralmente aceitos. Por isso,o experimento foi finalizado seis dias aps. Philip Zimbardo confirmou os resultados do experimentode Milgram realizado anos antes referente influncia da autoridade na obedincia do qual tratamosneste trabalho.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    16/95

    14

    O experimento de Milgram foi utilizado posteriormente para explicaes em

    vrias situaes de atrocidade como, por exemplo, o famoso caso de massacre de

    1968 em My Lai, no Vietn.7

    1.2. A realizao

    1.2.1. O experimento bsico

    O experimento de Milgram iniciou-se pela obteno de voluntrios para os

    quais ele solicitava a colaborao, para que se verificasse de modo cientfico a

    influncia da punio na memria e aprendizagem.Para isso, foi colocado um anncio no jornal, solicitando voluntrios para

    participar de uma pesquisa sobre a memria e o aprendizado, os quais receberiam

    U$ 4,50 (quatro dlares e cinquenta centavos) de ajuda de custo.

    As 296 pessoas que responderam no eram suficientes para os propsitos

    da pesquisa. Foram ento encaminhadas cartas diretamente para milhares de

    pessoas, cujos endereos foram obtidos aleatoriamente da lista telefnica da

    comunidade.Foram, ento, escolhidos 40 voluntrios de todas as classes sociais,

    trabalhadores de todos os ramos profissionais, intelectuais, os quais compareceram

    no laboratrio da Universidade para o experimento.

    Os procedimentos ocorreram conforme explicitados anteriormente. Verificou-

    se que os voluntrios aumentavam seus nveis de ansiedade conforme o nvel de

    choque aumentava. Saber que o aprendiz possua problemas de corao

    aumentava ainda mais as preocupaes dos voluntrios nas aplicaes doschoques.

    O conflito entre obedecer ao pesquisador e parar de atuar em benefcio do

    aprendiz causava aos voluntrios tenses emocionais que, em muitos casos (cerca

    de 15%), eram demonstradas por meio de riso nervoso.

    Quando os voluntrios, pressionados pela situao, indagavam ao

    pesquisador sobre a continuidade do experimento, dado as condies do aprendiz, o

    7O massacre de My Lai foi perpetrado em 1968 por tropas americanas, que foram responsveis pela

    morte de cerca de 500 civis em uma vila no sul do Vietn. O massacre teve repercusso internacionalquando veio ao conhecimento pblico em 1968.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    17/95

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    18/95

    16

    O resultado do experimento no comprovou a previso, mostrando que nem

    sempre uma previso terica corresponde ao que ocorre na prtica.

    Para aqueles que foram at o final, o pesquisador perguntava por que o

    voluntrio no tinha parado diante da insistncia do aprendiz. A resposta mais

    frequente era que o pesquisador mandava que continuasse. Parecia que a

    autoridade do pesquisador, aceita de modo implcito, se impunha sobre os valores

    dos voluntrios.

    1.2.2. A inverso de papis

    Em um experimento secundrio, houve uma troca de funes, e neste caso,

    o aprendiz pedia para que continuasse a levar choque, pois um colega seu foi at o

    final e ele no queria fazer por menos. O pesquisador, neste caso, comandava ao

    contrrio, informando ao voluntrio que j era suficiente e que poderia parar, pois o

    choque poderia fazer mal ao aprendiz.

    Nesta situao secundria de inverso de papis, nem um s dos

    voluntrios continuou com o procedimento, mostrando que de importncia decisivaa fonte da autoridade e no o contedo do comando conforme apresenta Milgram9.

    No o contedo do comando, mas a sua fonte na autoridade que deimportncia decisiva. No experimento bsico, quando o pesquisador diz,administre 165 volts a maioria dos pesquisandos assim o fez apesar dosprotestos do aprendiz. Mas quando o prprio aprendiz diz, administre 165volts, nenhum dos pesquisandos o fez (traduo nossa).

    Ainda em uma situao secundria, procurou-se verificar o que acontecequando duas fontes de autoridade (dois pesquisadores) entram em conflito com

    comandos opostos. Neste experimento, dezoito dos vinte voluntrios pararam o

    procedimento no momento em que as autoridades entraram em conflito. Os

    voluntrios solicitaram que as autoridades decidissem quem comandava, indicando

    a necessidade de uma coerncia no fluxo do comando.

    9MILGRAM, 1974, P.92. It is not the substance of the command but its source in authority that is ofdecisive importance. In the basic experiment, when the experimenter says, Administer 165 volts,most subjects do so despite the learners protest. But when the learner himself says, Administer 165volts, not a single subject is willing to do so.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    19/95

    17

    1.2.3. A assuno de responsabilidade

    O aspecto referente responsabilidade muito importante para obteno daobedincia.

    Muitas vezes, durante o experimento, o voluntrio, incomodado com o

    estado de sade do aprendiz, pergunta quem vai se responsabilizar pelo que

    acontecer, sendo respondido que a responsabilidade era dele, do pesquisador, o

    que fazia que de alguma forma, nesta transferncia de responsabilidade, o

    voluntrio continuasse no procedimento aumentando o nvel de tenso.

    Milgram coloca que em um sistema burocrtico, quanto mais distante a

    pessoa estiver dos resultados de seus atos, menos responsvel ela se sente e mais

    fcil para obteno da obedincia10.

    A maior parte do pessoal pode consistir de homens e mulheres que pelavirtude de suas distncias dos verdadeiros atos de brutalidade, sentiropouco remorso nas suas funes de suporte. Eles se sentiro absolvidos dequalquer responsabilidade. Primeiro, uma autoridade legitimada deu-lhestotal garantia para suas aes. Depois, eles no cometeram, eles mesmos,nenhum ato fsico violento (traduo nossa).

    1.2.4. A proximidade do pesquisador

    O experimento tambm constatou que a proximidade do voluntrio com o

    pesquisador muito importante. Quando se colocou o pesquisador afastado do

    voluntrio, dando ordens pelo telefone, houve um percentual menor de obedincia.

    A presena fsica do pesquisador era de suma importncia para que o

    voluntrio continuasse obedientemente aplicando choques no aluno.

    1.2.5. A influncia da conformidade

    Um aspecto importante na pesquisa de Milgram a conformidade. O efeito

    da conformidade j havia sido observado em outra pesquisa realizada por Solomon

    10 MILGRAM, 1974, Any competent manager of a destructive bureaucratic system can arrange his

    personnel so that only the most callous and obtuse are directly involved in violence. The greater partof the personnel can consist of men and women who, by virtue of their distance from the actual acts of

    brutality, will feel little strain in their performance of supportive functions. They will feel doublyabsolved from responsibility. First, legitimate authority has given full warrant for their actions. Second,they have not themselves committed brutal physical acts.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    20/95

    18

    Asch11. O experimento de Asch mostrou como a conformidade pode alterar nossa

    percepo do meio em que vivemos, pois as percepes alheias podem influenciar

    de forma determinante as nossas prprias.

    Quando o grupo no qual vivemos apresenta certo comportamento, temos a

    tendncia de agir igualmente adotando os mesmos comportamentos. Quando

    tambm as normas sociais nos ditam certas atitudes somos levados a obedecer

    para nos conformarmos com o meio ao redor.

    A conformidade pode ento vir da influncia de outras pessoas ou situaes

    determinadas com as quais somos confrontados na vida diria.

    Em suma, somos levados a perceber o mundo e agir conforme os nossos

    pares percebem e agem. O efeito que os outros exercem em ns muitas vezes determinante para nosso comportamento e no experimento de Asch ele

    denominado conformidade. Portanto, a conformidade uma influncia no plano

    horizontal, enquanto autoridade uma influncia no plano vertical.

    1.3. Resultados

    O experimento de Milgram mostrou que ningum desobedeceu at a

    aplicao de 300 v e que 65% dos voluntrios aplicaram choques no aprendiz at o

    limite mximo de 450 v, apesar de todos os protestos da vtima e solicitao para

    que o experimento terminasse, pois no queria mais participar.

    Os voluntrios sentiram-se desconfortveis, com atitudes de nervosismo,

    mas apesar disto, diante do pesquisador, aplicaram choques no aprendiz at o

    ltimo grau da escala.

    Milgram explica que no era somente uma questo psicolgica, mas, a

    estrutura das relaes sociais que podem levar a uma situao onde a autoridade se

    impe sobre as pessoas, forando-as a comportamentos que muitas vezes vai

    contra os seus prprios valores.

    Aqui destaco, ento, derivadas do experimento de Milgram, as variveis

    presentes na estrutura social que podem facilitar ou catalisar a mudana de

    comportamento:

    11O experimento de Asch pode ser visto em http://www.youtube.com/watch?v=QcmvbXgmdsU .

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    21/95

    19

    Varivel 1 Ligao com o pesquisador numa relao autoridade

    submisso: importante para a imposio do comportamento que haja essa relao

    implcita ou explcita de autoridade submisso. Portanto, para uma melhor

    apropriao desta qualidade importante que a autoridade seja legitimada, o que,

    alis, j est na prpria definio de autoridade, ou seja, poder legitimado.

    Analisando o conceito de autoridade, dentro de estudos de cincia poltica,

    esta pode ser uma autoridade: tcnica, quando advm de conhecimento especfico

    em determinada rea; moral, quando advm do perfil moral e de vida da pessoa;

    legal ou estatutria, quando determinado por uma norma reconhecida pelas

    partes12.

    H de se reconhecer ainda a autoridade carismtica, advinda da prpria

    personalidade, portanto, intransfervel, por passar por caractersticas pessoais.

    Para o estudo de Milgram, a autoridade era a do tipo tcnica, o que, para o

    contexto apresentado (experimento na Universidade de Yale) era adequada.

    Varivel 2 Estar envolvido em um grande projeto, ou atividade significativa:

    Os voluntrios sabiam que, mesmo aplicando choques no aprendiz, toda a pesquisa

    iria resultar em um benefcio mais geral que se sobrepunha quela situao. Para ocaso de Milgram, o que se apresentava aos voluntrios de forma fictcia era a

    pesquisa sobre o papel da punio na aprendizagem das pessoas.

    A imposio de comportamento, portanto, passa pelo entendimento de que a

    pessoa saiba que sua atitude ao final resultar em benefcio para si mesmo ou para

    os outros fazendo com que os custos presentes sejam suplantados pelos benefcios

    futuros.

    A construo de uma importncia ou um sentido maior para aquilo que se

    faz, pode ser fundamental para obteno de comportamentos, principalmente em

    uma sociedade de tica utilitria como a atual onde os fins justificam os meios.

    Para exemplificar esta situao, Milgram afirma em sua obra Obedincia

    Autoridade que a ida de soldados americanos para o Vietnam era precedida de

    palestra feita a eles pelas autoridades que apresentavam suas aes no campo de

    12MAGALHES, Jos Antonio Fernandes. Cincia Poltica. Braslia: Editora VESTCOM, 2009. p.21,onde o autor discorre sobre Poder e Dominao, as caractersticas do poder como fenmeno polticoe a tipologia das formas de poder.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    22/95

    20

    guerra como tendo um propsito maior para a sociedade, que a menos que os

    inimigos fossem destrudos sua nao estava em perigo13.

    Antes de embarcar para a zona de guerra, a autoridade se esfora em

    definir o significado das aes dos soldados relacionado-as a valores ideaise propsitos maiores para a sociedade. dito aos recrutas que aquelescontra quem lutam no campo de batalha so inimigos de sua nao e que amenos que sejam destrudos, seu prprio pas corre perigo. A situao definida de uma maneira que os atos cruis e desumanos so justificados(traduo nossa).

    Varivel 3 Gradatividade: conforme a tenso dos voluntrios aumentava,

    dado o conflito de suas aes com os seus valores, o pesquisador se tornava mais

    assertivo, com palavras de comando cada vez mais fortes, suplantando dessa forma

    a reao crescente ao comportamento estabelecido pelo pesquisador.

    Podemos entender, portanto, que para obter o comportamento desejado

    preciso reforos cada vez maiores, suplantando as foras internas das pessoas.

    Este reforo, importante dizer, vem de forma gradual e crescente, o que

    ajuda a no quebrar a relao de sujeio estabelecida, conforme cita Sabini 14:

    Certamente na vida diria, ficar comprometidos gradativamente a forma mais

    comum de nos acharmos envolvidos em atos imorais(traduo nossa).

    Varivel 4 Transferncia: H um processo de transferncia envolvido,

    quando a responsabilidade passa a no ser mais do voluntrio, mas sim do

    pesquisador.

    No caso do experimento de Milgram, esta transferncia alivia a tenso do

    voluntrio de estar fazendo algo contrrio aos seus valores (como aplicar choques a

    uma pessoa doente), pois desloca a responsabilidade dela para o pesquisador. Esta

    transferncia de responsabilidade poder estar acompanhada de confiana.

    Varivel 5 Conformidade: A pesquisa mostrou que na presena de presso

    de grupo pode haver aparecimento de comportamento resistente do voluntrio

    13 MILGRAM, 1974, p.181. Before shipment to the war zone authority takes pains to define the

    meaning of the soldiers action in a way that links it to valued ideals and the larger purposes of society.Recruits are told that those he confronts in battle are enemies of his nation and that unless they aredestroyed his own country is endangered. The situation is defined in a way that makes cruel andinhumane action seem justified.Como exemplo, pode-se mencionar o massacre americano de civis deMy Lai no Vietn, em 1968. Trs americanos tentaram impedir o massacre e posteriormente foramestigmatizados pelo congresso americano como traidores recebendo inclusive diversas ameaas em

    suas casas.14SABINI, John. Critical thinking and obedience to authority p.2. Surely, in everyday life, becomingentrapped by gradual increases in commitment is among the most common ways for us to findourselves engaging in immoral acts.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    23/95

    21

    obteno do comportamento desejado pelo pesquisador. Portanto, quebrar a

    resistncia de grupo ou excluir indivduos de pensamento contrrio essencial para

    obteno do comportamento desejado pelo pesquisador. A forma oposta tambm

    importante, ou seja, conseguir que seus pares concordem com o mesmo comando

    informado pelo pesquisador, influenciando o voluntrio a agir da forma como se

    determinou.

    Quando Milgram inseriu sujeitos que estivessem coparticipando do

    experimento no mesmo nvel do voluntrio-professor, este se sentia mais forte em

    desobedecer ao pesquisador quando os seus pares o faziam (porm agindo como

    cmplices na pesquisa).

    O efeito da conformidade poderia agir no sentido de reforo da resistnciado voluntrio contra as ordens do pesquisador. Desta forma, conclui-se que o

    voluntrio era tanto influenciado pelo pesquisador quanto por seus pares na

    determinao de suas aes.

    Esse efeito nos mostra que a conformidade no deve ser desprezada na

    obteno de comportamento, mas entendida como um componente determinante

    oriundo de sentido horizontal, entre pares.

    Neste ponto, importante ressaltar novamente que a conformidade ajuda aimpor comportamentos, na medida em que os pares so determinantes na nossa

    maneira de agir. Milgram, no seu experimento, apenas comprovou o que Solomon

    Asch j havia identificado nos seus experimentos de presso de grupo e como esta

    impe comportamento aos indivduos.

    A conformidade, portanto, dentro da nossa hiptese, seria um componente

    de formao de interpretao. Aquilo que costumeiramente se interpreta pelos pares

    tende a se perpetuar pelo efeito da conformidade.Este efeito pode ser tambm encontrado na metodologia cientfica na

    abordagem de Thomas Kuhn. Este autor demonstra que as revolues cientficas se

    do por mudanas nos paradigmas adotados na comunidade cientfica. Os

    cientistas, porm, tendem a se manter em um paradigma que seus pares

    compartilhem.

    Assim, se alguma discrepncia em relao ao paradigma, chamada de

    anomalia, for encontrada em algum experimento, esta tende a ser considerada como

    problema interno referente a alguma varivel inicial, problema este resolvido por

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    24/95

    22

    algum ajuste interno e no fazendo uma mudana geral no paradigma no qual os

    seus pares se apoiam.

    Como cita Kuhn apud Gewandsznajder15, a comunidade cientfica tende a se

    manter na mesma cosmoviso ou paradigma em que esto seus pares.

    O prprio Milgram cita que seu interesse pelo assunto referente obedincia

    e o seu experimento realizado esto dentro do zeitgeistreferente pesquisa na rea

    de psicologia social que j vinha se desenvolvendo h 75 anos.16

    Varivel 6 A desvalorizao: Outro ponto importante que Milgram constatou

    no seu experimento se refere desvalorizao que o voluntrio fez com relao ao

    aprendiz. Para muitos estudados no experimento, a ao de dar choques no

    aprendiz vinha acompanhada de comentrios desvalorizando a pessoa. Como cita o

    autor17:

    De considervel interesse, contudo, o fato de que muitos voluntriosseveramente desvalorizaram a vtima como consequncia de agir contraela. Alguns comentrios comuns eram: Ele era to teimoso e estpido quemerecia levar o choque. Uma vez agindo contra a vtima, estes voluntriosacharam necessrio v-la como um indivduo sem valor para o qual apunio era inevitvel pelas suas prprias deficincias intelectuais e decarter (traduo nossa).

    Na sua obra, este mesmo autor cita que a desvalorizao sistemtica davtima prov uma justificao psicolgica para um tratamento brutal e tem sido

    acompanhada constantemente de massacres,pogromse guerras.

    No exemplo da guerra do Vietn, Milgram aponta o aspecto da discriminao

    racial como uma varivel que tornou a ao cruel mais fcil.18

    Na Guerra do Vietn, um elemento adicional tornou a ao cruel mais fcil:o inimigo era de outra raa. Os vietnamitas eram comumente chamados de

    15GEWANDSZNAJDER, Fernando. O Mtodo nas Cincias Naturais e Sociais. So Paulo; Pioneira,

    1998, p.29 [...] de uma escolha entre teorias ou paradigmas, no de estranhar que Kuhn d aentender que a aceitao do novo paradigma no se deva - ou, pelo menos, no se deva apenas arecursos lgicos ou a evidncias experimentais, mas capacidade de persuaso ou propagandafeita pelos cientistas que defendem o novo paradigma.16 MILGRAM, 1974, p.xxiii. Boris Sidis carried out an experiment on obedience in 1898, and thestudies of Asch, Lewin, Sherif, Frank, Block, Cartwright, French, Raven, Luchins, Lippittt and White,among many others, have informed my work even when they are not specifically discussed. Thecontributions of Adorno and associates and of Arendt, Fromm, and Weber are part of the zeitgeist inwhich social scientists grow up.17MILGRAM, 1974,p.10. Of considerable interest, however, is the fact that many subjects harshlydevalue the victim as a consequence of acting against him. Such comments as, He was so stupidand stubborn he deserved to be shocked were common. Once having acted against the victim, thesesubjects found it necessary to view him as an unworthy individual, whose punishment was made

    inevitable by his own deficiencies of intellect and character.18MILGRAM, 194, p.181. In the Vietnamese War, an additional element made cruel action easier: theenemy was of another reace. Vietnamese were commonly referred to as gooks, as if they weresubhuman and thus not worthy of sympathy.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    25/95

    23

    gooks como se fossem sub-humanos e desta forma no dignos desimpatia (traduo nossa).

    Outro aspecto de suma importncia para esta pesquisa abordado por

    Milgram de forma rpida, porm, para os propsitos deste trabalho essencial.Em um deles, Milgram apresenta a capacidade de controlar a maneira como

    se interpreta o mundo como um dos fatores para obteno da obedincia e,

    portanto, do comportamento desejado.

    Uma interpretao da situao vivencial adequada, Sitz im Leben, cria as

    condies sociais favorveis obteno da obedincia e consequente

    comportamento esperado, como cita Milgram19: Controle a maneira como um

    homem interpreta seu mundo, e voc j percorreu um longo caminho para controlaro seu comportamento (traduo nossa).

    Na sequncia do texto ele cita a importncia da ideologia na obteno de

    comportamentos.

    Aqui est o cerne deste trabalho, que percorrer o caminho inverso, ou seja,

    as condies sociais adequadas podem fazer surgir uma interpretao de mundo

    que se imponha sobre as pessoas. Para isso ocorrer, as condies adequadas

    devem apresentar as variveis constantes no experimento de Milgram listadas

    anteriormente.

    A esta altura, devemos fazer referncia hermenutica na sua interpretao

    sociolgica. Uwe Wegner20 cita que as pessoas que trabalham no mtodo

    sociolgico fazem uso de categorias e conceitos do materialismo histrico. Portanto,

    para este vis hermenutico, os fatores econmicos, sociais e polticos que do a

    interpretao adequada do texto.

    A matriz sobre a qual se fundamenta esta interpretao hermenutica se

    origina nas relaes sociais.

    No mbito de nossa pesquisa, diramos que a interpretao sociolgica de

    um evento atual se impor, se houver as variveis do experimento de Milgram.

    Na prxima seo ser analisada a Comunidade de Qumran, tambm

    conhecida como a Comunidade do Mar Morto, na busca de suas particularidades na

    19MILGRAM, 1974, p.145. Control a manner in which a man interprets his world, and you have gone a

    long way toward controlling his behaviorif after all, the world or the situation is as the authority

    defines it, a certain set of actions follows logically.20 WEGNER, Uwe. A Leitura Bblica por meio do Mtodo Sociolgico Mosaicos da Bblia n12.Palestra apresentada no seminrio Mtodo Sociolgico de Leitura da Bblia promovido peloprograma de Assessoria Pastoral do CEDI - Centro Ecumnico de Documentao e Informao.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    26/95

    24

    interpretao do texto bblico e posteriormente na tentativa de identificao das

    variveis de Milgram, apresentadas at aqui, no sentido de avaliar se estas variveis

    podem justificar a introduo desta interpretao peculiar e a sua manuteno.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    27/95

    2. OS TEXTOS DE QUMRAN

    Neste captulo 2 faremos um breve histrico da descoberta dos manuscritos

    nas cavernas na proximidade do stio arqueolgico de Qumran, dos quaisutilizaremos para nossa pesquisa o texto de Habacuque, descoberto na caverna 1.

    A seguir exporemos os principais posicionamentos acadmicos atuais sobre

    a origem da comunidade do Mar Morto e analisaremos ento sua interpretao

    prpria contida no texto do manuscrito 1QpHab, que contm uma interpretao

    sectria do texto cannico do profeta Habacuque.

    2.1. Os manuscritos descobertos

    Em meados de 1947, em uma regio montanhosa na margem leste do Mar

    Morto, foi descoberta por um beduno da tribo Taamireh, cujo nome era Muhammed

    edh-Dhib, uma caverna na qual se encontrou vrios objetos de cermica, vasos de

    barro e dentro destes, rolos de pergaminho envoltos em linho que continham textos

    escritos.

    A razo e a origem da descoberta desta caverna foi tema de vrios debatese contestaes, mas a verso oficial, obtida pela declarao do prprio beduno,

    apresenta que ele estava procura de uma cabra extraviada que sups estar

    escondida naquela caverna.

    Isto confirmado pelo Padre e arquelogo Roland de Vaux, que trabalhou

    no stio arqueolgico de Qumran e especialmente nesta caverna, como cita21:

    Eu tive como um dos meus trabalhadores, Muhammad edh-Dhib, o bedunoque primeiro entrou na caverna, e o fiz contar sua histria, que foiconfirmada pelos seus companheiros (traduo nossa).

    O beduno informou a um companheiro seu o achado e ambos voltaram no

    dia seguinte, retirando da caverna outros materiais rolos e vasos de barro (alguns

    foram usados para transporte de gua).

    O lder da tribo sugeriu a apresentao do material a um negociante cristo

    conhecido como Kando, que adquiriu parte do material e o levou ao lder de sua

    igreja local, a Igreja Siraca Jacobita de Jerusalm, Athanasius Yeshua Samuel.

    21DE VAUX, Roland. The Bible and the Ancient Near East. New York; Darton, Longman & Todd, Ltd.1971, (english translation) p.183 Later in 1952, I had as one of my laborers Muhammad adh-Dhib, theBedouin who had been the first to enter the cave, and I made him tell me his story in the presence ofhis comrades who verified it.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    28/95

    26

    Durante mais de um ano, o lder da Igreja Siraca tentou estabelecer a

    validade e a idade dos manuscritos, mas as consultas a alguns experts no se

    mostraram frutferas, pois alguns deles ficaram cticos a respeito do material, como

    um especialista holands da cole Biblique et Arqueologique Franaise de

    Jerusalm, instituio dominicana, responsvel poca, pelas principais pesquisas

    desenvolvidas no mbito da Igreja Romana.

    O primeiro especialista a se pronunciar sobre os manuscritos na posse de

    Samuel, chancelando sua autenticidade e idade (em torno do ano 100 A.C.) foi

    William Albright22, do Instituto Albright da American School of Oriental Research,

    ligada Universidade de Yale.

    Com a informao de autenticidade, os manuscritos em posse de Samuelforam levados para os EUA, onde se dizia, poderia obter um preo maior por eles.

    Estes manuscritos eram 4 rolos referentes a uma cpia de Isaas (1QIs)23, um

    pesher de Habacuque (1QpHab), a Regra da Comunidade (1QS) e o Gnesis

    apcrifo (1QapGen) e foram colocados nos classificados do TheWall Street Journal,

    em Nova York, para a venda.

    Estes manuscritos foram comprados por Ygael Yadin por U$ 250.000

    dlares, filho de Eleazar Sukenik, chefe do Departamento de Arqueologia daUniversidade Hebraica, que j havia comprado os demais manuscritos achados

    pelos bedunos e que estavam venda no mercado de antiguidades em Belm.

    Com autorizao do governo da Jordnia, iniciaram-se nessa poca a busca

    oficial arqueolgica por mais manuscritos e outras cavernas na regio, sendo o

    responsvel pelos trabalhos o especialista beneditino da cole Biblique et

    Arqueologique Franaise de Jerusalm, o padre Roland de Vaux.

    22BAIGENT, Michael e Leigh, Richard. As intrigas em torno dos manuscritos do Mar Morto. Rio deJaneiro: Imago, 1994 (trad.Lauro Rumchinsky) p.34. Minhas calorosas congratulaes pela maiordescoberta de manuscritos dos tempos modernos! No meu entender no h qualquer dvida que aescrita mais arcaica do que a dos Papiros de Nash [...] Eu sugeriria uma data em torno de 100 A.C[...] Um achado absolutamente incrvel! E, felizmente, no pode haver a menor dvida sobre aautenticidade do manuscrito.23 O cdigo alfanumrico foi adotado posteriormente para identificar os textos descobertos emQumran. O nmero indica a caverna onde o texto foi descoberto. A letra Q significa que foi a

    caverna em Qumran. O nome do livro vem na sequncia de forma abreviada, por ex, Is, Hab. Assim ocdigo 1QIs o texto de Isaas descoberto em Qumran na caverna 1. Algumas vezes em substituioao nome do livro vem um nmero sequencial indicativo do texto, por ex., 4Q162 um comentrio dolivro de Isaas descoberto na caverna nmero 4 em Qumran.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    29/95

    27

    Aos bedunos Taamireh, descobridores dos manuscritos da primeira

    caverna, coube a participao nos trabalhos arqueolgicos e vigilncia, para que

    outras tribos de bedunos no invadissem o stio arqueolgico.

    Assim, a caverna 1 foi achada pelos bedunos por volta do incio de 1947.

    Em 1952 foram achadas as cavernas 2, pelos bedunos, a caverna 3, pelos

    arquelogos, a caverna 4 pelos bedunos e perto desta a caverna 5, encontrada

    pelos arquelogos. A caverna 6, no mesmo ano, foi tambm achada pelos

    arquelogos.

    Em 1955 os arquelogos encontraram as cavernas de nmeros 7 a 10, e por

    fim, em 1956, a ltima caverna (11) da regio de Qumran, encontrada pelos

    bedunos.Nestas 11 cavernas foram encontradas cerca de 900 manuscritos

    pulverizados em milhares de pedaos, o que dificultou sua recomposio, traduo e

    publicao.

    Ao longo das escavaes foram descobertas runas em um local prximo s

    cavernas. Elas mostravam sinais de que haviam sido utilizadas para habitao e

    tiveram sua existncia ligada aos textos descobertos nas 11 cavernas da regio.

    Este local foi denominado de Kirbhet Qumran, e logo identificado como local dehabitao de um grupo sectrio judaico.

    Cabe ressaltar que em outros stios na regio do Mar Morto, atravs das

    buscas persistentes dos bedunos Taamirehe dos arquelogos, foram encontradas

    cavernas contendo mais manuscritos, como a regio em Massada, ao sul da

    margem oeste, escavadas por Y. Yadin, a regio do wadi Murabbaat, onde foram

    encontrados manuscritos da poca da revolta judaica de Bar Kochba (132d.C.135

    D.C.), e tambm na regio de Jeric, mais ao norte, em wadi Daliyeh, onde foramencontrados manuscritos contendo contratos e outros documentos pessoais.

    importante, portanto, destacar a diferena acadmica entre referir-se aos

    manuscritos do Mar Morto e aos manuscritos de Qumran, sendo aquela,

    especificao mais abrangente que esta.

    Basicamente so trs os tipos de manuscritos descobertos nas cavernas de

    Qumran: manuscritos referentes aos textos cannicos; manuscritos referentes a

    textos no canonizados de origem no perodo interbblico e manuscritos contendo

    textos sectrios, ou seja, de origem da comunidade em Kirbhet Qumran.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    30/95

    28

    Os manuscritos descobertos estavam escritos em hebraico, aramaico,

    nabateu e grego e as anlises paleogrficas e de carbono 14, datavam os mesmos

    como pertencentes ao perodo do sc. II a.C. a 68 d.C., ou seja, dentro do perodo

    hasmoneano e da dominao romana da palestina iniciada em 63 a.C. por Pompeu.

    Quanto aos tipos de literatura destes textos, Florentino Garcia Martnez24, na

    sua apresentao dos textos de Qumran, divide os mesmos em literatura

    escatolgica, potica, halquica, litrgica, astronmica e exegtica.

    Os textos referentes s regras da comunidade e aos targunsfazem parte do

    esforo exegtico da comunidade, porm, os textos mais representativos desta

    atividade exegtica seriam os pesharim, que so interpretaes diretamente

    vinculadas aos textos hoje canonizados.Neste tipo, h a citao direta do texto a ser interpretado, seguido depois da

    palavrapesherpara iniciar a declarao interpretativa. Da deriva o termo pesharim

    para textos exegticos deste tipo.

    Os pesharim encontrados esto relacionadas a diversos livros, como o

    pesherde Isaas (4QpIs), o de Naum (4QpNah), o de Zacarias (4QpZeph). Ao todo

    so 18pesharimidentificados por Horgan.25

    O texto escolhido para a pesquisa se concentra especialmente naqueledenominado de 1QpHab que trata do comentrio sectrio a respeito do livro

    cannico de Habacuque.

    2.2. O histrico da comunidade e sua forma de viver

    Entre os anos de 1952 a 1956 vrias cavernas foram encontradas na

    margem noroeste do Mar Morto. Nesse tempo foram encontradas as runas de

    construes antigas que indicavam que a regio havia sido habitada.

    A interpretao mais tradicional do povo que habitava o stio era apoiada por

    Roland de Vaux que fez escavaes exaustivas no local e que considerava a

    comunidade como um grupo de essnios. A teoria essnia foi uma das primeiras e

    mais amplamente utilizada para explicar a comunidade que ali habitava.

    24MARTNEZ, Florentino Garcia. Textos de Qumran. Petrpolis: VOZES, 1992, p.20.

    25HORGAN, Maurya P. Pesharim, Qumran Interpretations of Biblical Books. Washington; The CatholicBiblical Association of America, 1979. P.1. O autor apresenta 18 textos classificados como pesharimentre aqueles encontrados nas 11 cavernas em Qumran. So eles: 1QpHab, 1QpMic, 1QpZeph,1QpPs, 3QpIs, 4Q161-165, 4Q166-168, 4QpNah, 4Q170-173.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    31/95

    29

    Esta teoria foi formulada baseada nas declaraes de Filo, Flvio Josefo e

    de Plnio, o Velho. No propsito deste trabalho fazer uma anlise sobre as

    diversas correntes tericas que tentam explicar aquela comunidade, mas

    importante apresentarmos as declaraes das principais fontes sobre comunidade

    que habitava s margens do Mar Morto.

    De acordo com James Vanderkam26, o primeiro pesquisador a sugerir que

    os manuscritos tivessem relao com os essnios foi Eleazar Sukenik, que adquiriu

    parte dos textos encontrados em Qumran de comerciantes de Belm.

    Plnio, gegrafo romano, em sua obra Histria Natural27, relata que havia

    uma comunidade de essnios a oeste do Mar Morto, acima da cidade de Engedi,

    que vivia solitariamente e que tinham como companhia as palmeiras do local.Flavio Josefo tambm informa que em sua poca havia quase 4000

    essnios espalhados pelas cidades e alguns deles eram celibatrios, outros

    casados. Partilhavam uma vida comunitria. Para os novos integrantes da

    comunidade era necessrio passar por um perodo de noviciado de

    aproximadamente 3 anos, no qual o iniciante era avaliado. Faziam suas refeies

    em comum, e possuam suas regras de purificao.

    A anlise dos textos encontrados em Qumran mostra que a comunidade alipossua caractersticas semelhantes quelas informadas por Josefo.

    O Manual de Disciplina 1QS apresentava as regras que deviam ser

    observadas dentro da comunidade e estas se assemelhavam s informadas por

    Flvio Josefo quando se referiu aos essnios, trazendo os preceitos de pureza,

    trabalho, devoo religiosa, relao com os bens materiais e refeies comunais.

    De um texto encontrado na caverna 4, como apresenta Martnez28, podemos

    inferir que a comunidade de Qumran se originou do desejo de cumprimento estrito

    26VANDERKAM, James C. Os Manuscritos do Mar Morto Hoje. Rio de Janeiro: OBJETIVA, 1994 p.77. Sukenik suspeitou que houvesse alguma conexo entre Qumran e os essnios quando leu oManual de Disciplina, manuscrito encontrado na caverna 1 (1QS), o qual definia o modo de vida parauma seita no deserto.27

    VANDERKAM, 1994, p.78. A oeste do Mar Morto, mas fora de alcance das exalaes nocivas dolitoral, se encontra a solitria tribo dos essnios... estendendo-se abaixo dos essnios achava-seanteriormente a cidade Engedi, que s perdia para Jerusalm quanto fertilidade da terra e quantoaos bosques de palmeiras, mas agora Jerusalm no passa de um monte de cinzas. A referncianeste texto a Jerusalm ser um monte de cinzas provavelmente devido destruio da cidadepelos romanos na revolta de 68 d.C.28MARTNEZ, Florentino Garcia e Barrera, Jlio Trebolle, Os homens de Qumran, literatura, estruturae concepes religiosas. Petrpolis:VOZES: 1993, p.48. Um desses textos, 4QMMT, expressaclaramente por que se separaram de todos os seus irmos: por um desejo de fidelidade absoluta palavra revelada, cuja compreenso correta s eles possuam: [...]e vs sabeis que nos separamos

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    32/95

    30

    ao que se dizia nas halaks. a observncia estrita dos preceitos halquicos e a

    no concordncia com o modo como as coisas religiosas eram tratadas na cidade

    de Jerusalm que eles optaram por viver afastados no deserto s margens do Mar

    Morto.

    Roland de Vaux, responsvel pelas escavaes em Kirbhet Qumran29,

    dividiu os perodos de habitao naquele lugar em trs fases: A fase I era pr-

    comunitria, apresentando instalaes de pequeno porte, no adaptadas para uma

    vida de um grupo sectrio no local.

    A fase II deve ter iniciado por volta de 134 a.C. coincidindo com o reinado do

    rei-sacerdote hasmoneu Joo Hircano e se estendendo at aproximadamente

    poca da destruio do local pelos romanos em 68 d.C. quando a comunidade deQumran foi dissolvida.

    A fase III se estende da destruio do local pelos romanos at a revolta

    de Bar Kochba. De acordo com De Vaux30, o testemunho da numismtica claro

    quanto a estas fases.

    As moedas encontradas no nvel II so de vrias datas entre HerodesArquelau e a primeira revolta judaica. H 62 moedas do segundo ano darevolta e somente 5 do terceiro ano que comeou na primavera de 68 AD.No existe nenhuma moeda de data posterior. A concluso provvel que o

    nvel II foi destrudo em 68 AD.

    Desta anlise se depreende que os textos que nos interessam para esta

    pesquisa foram escritos aps 134 a.C. quando a data provvel da chegada da

    comunidade em Qumran e antes de 68 d.C., quando a comunidade se dissolveu

    com a destruio do lugar pelos romanos.

    Cabe destacar que esta anlise era a que foi estabelecida pela equipe

    internacional de pesquisadores, comandada pelo padre Roland De Vaux.

    da maioria do povo e nos abstemos de misturar-nos nestes assuntos, e de nos unirmos a eles nestascoisas. E vs sabeis que no se encontra em nossas obras engano, ou traio ou maldade, poissobre estas coisas ns damos [...] e tambm vos escrevemos que deveis compreender o livro deMoiss e as palavras dos profetas e de Davi e as crnicas de cada gerao. 29

    Coube a De Vaux as escavaes e os estudos arqueolgicos das runas encontradas em Qumrandurante as buscas de mais manuscritos na regio. Estas runas foram logo associadas s cavernasao redor onde foram achados os manuscritos. As camadas de habitao nas runas foram resultadode suas pesquisas in loco e atravs da numismtica pode fazer a separao entre os diferentesperodos, conforme afirma o pesquisador em sua obra The Bible and the ancient near East. 30DE VAUX,1971. p. 195. The coins found at Level II are of various dates between Herod Archelausand the First Jewish Revolt. There are sixty-two coins from the second year of the revolt and only fivefrom the third year, which began in the spring or 68 AD. There are no coins of later date. The probableconclusion is that Level II was destroyed in 68 AD.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    33/95

    31

    Aps as descobertas dos manuscritos nas cavernas 1 a 3, houve um volume

    muito grande de manuscritos da caverna 4, descoberta em 1952. Nesta caverna

    foram descobertos 525 manuscritos e se constitui na caverna com o maior volume

    de manuscritos das 11 encontradas na regio de Qumran.

    Logo foi visto a necessidade de formao de uma equipe internacional de

    especialistas para anlise, separao, traduo e publicao destes manuscritos.

    O responsvel pelas escavaes e pesquisas na rea de Qumran, o padre

    De Vaux, convidou alguns pesquisadores para a formao de uma equipe

    internacional com participao majoritria de pesquisadores ligados cole Biblique

    de Jerusalm, da qual De Vaux era o Diretor. Nenhum pesquisador judeu foi

    convidado a participar do grupo31.Esta equipe adotou como premissa, que nos meios acadmicos ficou

    conhecido como consensoda equipe internacional, que os habitantes de Qumran

    eram os essnios tradicionalmente descritos por Plnio, O Velho, Filo e Flvio

    Josefo, que estes viviam em paz com os romanos e cujos textos seriam pr-cristos.

    Este grupo, posteriormente, adotou uma poltica de no transparncia e

    impedia outros pesquisadores a terem acesso aos manuscritos.

    John Alegro, integrante da equipe internacional, foi o primeiro a quebrar abarreira, dando entrevistas e sugerindo que havia nos textos dos outros colegas

    declaraes que poderiam mudar o entendimento de consenso e o entendimento

    sobre as origens do cristianismo.

    Baigent32 afirma que havia uma preocupao da equipe, formada

    principalmente de catlicos, de que os rumos dos trabalhos levassem a uma

    interpretao dos textos que fosse contrria aos estabelecidos pela Comisso

    Bblica Pontificial, ligada Congregao para a Doutrina da F.

    31 O primeiro pesquisador judeu foi E. Tov que assumiu a partir de 1992 as pesquisas e a

    coordenao da publicao dos textos restantes.32

    BAIGENT, Michael e Leigh, Richard. As intrigas em torno dos manuscritos do Mar Morto. Rio deJaneiro: Imago, 1994. p.154 [...] se por exemplo, os manuscritos fossem datados de uma pocamuito anterior era crist, poderiam ameaar comprometer a originalidade e singularidade de Jesus ou seja, poderia mostrar que alguns de seus conceitos e palavras no eram totalmente de suaautoria, mas derivavam de uma corrente de pensamento, ensinamentos e tradies j estabelecidase conhecidas. Por outro lado, se os manuscritos datassem dos dias de Jesus, ou de pouco tempodepois, poderiam mostrar-se ainda mais embaraosos. Poderiam se usados para se argumentar queo Mestre da Justia, que neles mencionado, o prprio Jesus, e que este portanto, no eraencarado como divino por seus contemporneos.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    34/95

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    35/95

    33

    Cecil Roth e Godfrey Driver, de Oxford, elaboraram na dcada de 50 a teoria

    dos zelotes38, segundo a qual a comunidade se constitua de um grupo de judeus

    zelotes que lutavam pela emancipao do estado judeu da dominao romana.

    Outros pesquisadores vincularam os manuscritos de Qumran poca do

    cristianismo primitivo do primeiro sculo. Primeira proposta neste sentido foi feita por

    Jacob Teicher, de Cambridge, no incio da dcada de 50 que compara Jesus ao

    Mestre da Justia e Paulo, ao Sacerdote Inquo.

    Dentro desta linha concorda Robert Eisenmann, porm com uma variante: o

    Mestre da Justia seria Tiago, irmo de Jesus, que tinha o ttulo de O Justo e foi

    assassinado no templo em um compl insuflado pelos sacerdotes em 62 d.C., pouco

    antes da tomada de Jerusalm pelos romanos.O apstolo Paulo, para Eisenmann, seria o homem da iniquidade que traiu a

    Aliana, pois abandonara os preceitos da Lei ao pregar um evangelho prprio e em

    desacordo com a linha oficial da igreja de Jerusalm, majoritariamente judaica e

    legalista.

    Talvez fossem interpretaes como estas a causa principal das

    preocupaes de De Vaux. O prprio John Allegro, agnstico e inicialmente

    integrante da equipe, publicou a obra The Sacred Mushroom and the Cross39

    na qualatribuiu a origem do cristianismo a efeitos alucingenos presentes em um

    determinado tipo de cogumelo.

    Mais recentemente, em 2004, outra opinio apareceu no mundo acadmico,

    fruto de dez anos de escavaes no stio de Qumran, que desvincula este dos

    manuscritos encontrados nas cavernas prximas.

    Os resultados destas escavaes, dirigidas por Itzhak Magen, pertencente

    aos quadros da Arqueologia Civil em Judeia e Samaria e Yuval Peleg, arqueologistapara Samaria Oriental e Vale do Jordo, parecem indicar que o stio de Qumran fora

    37Conforme Flvio Josefo, na sua obra Guerra dos Judeus, o incio do aparecimento dos macabeusfoi uma dissenso que se deu quando da expulso do sacerdote Onias do sacerdcio de Jerusalm eexlio do mesmo para o Egito devido a intrigas para obteno de poder por parte de um gruposacerdotal rival ajudado pelo rei selucida Antoco Epfanes.38

    VERMES, 1997. p.30.39

    BAIGENT, 1994, p.84. The Sacred Mushroom and the Crosstornou-se um escndalo em vista dasconcluses de Allegro sobre Jesus. Ao tentar estabelecer a origem de toda a crena e prticasreligiosas, Allegro afirma que Jesus nunca existiu na realidade histrica, sendo apenas uma imagem

    evocada na psique sob a influncia de uma droga alucingena, a psilocibina, o componente ativo doscogumelos alucingenos. Com efeito, ele argumenta, o cristianismo, como todas as outras religies,provm de uma espcie de experincia psicodlica, uma cerimnia de rito de passagem disseminadapor um culto orgistico do cogumelo mgico.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    36/95

    34

    uma fbrica de cermica aps o ano 63 A.C. utilizando-se da estrutura de uma

    antiga fortaleza, conforme cita Yaron Ben-Ami:40

    Dr. Magen e o Sr. Peleg agora acreditam que estes pratos eram o produto

    principal de Qumran. Enquanto retiravam a areia e escombros que enchiama cisterna maior, acharam uma camada de barro de aproximadamente trstoneladas. Este barro era ento moldado e cozido nos fornos. Isto podeexplicar a grande quantidade de pratos encontrados na sala dearmazenagem para produtos acabados enquanto descaracteriza Qumrancomo um lugar de aprendizagem e solido. Dificilmente algum poderiaencontrar uma quietude necessria para estudo em meio a uma fbricamovimentada, barulhenta e suja. Esta era a essncia de Qumran na suaopinio: uma fortaleza que aps a ocupao em 63 A.C. e o abandonopelos exrcitos Hasmoneus foi transformada em uma fbrica de cermicapelos soldados que no exerciam mais o servio militar (traduo nossa).

    Esta nova teoria se aproxima daquela de Golb no sentido de considerar os

    escritos como no originrios da comunidade, mas vindos de Jerusalm,

    diferenciando-se no sentido de entender Qumran como uma antiga fbrica de

    cermica.

    Portanto, h acalorados debates no mundo acadmico sobre o

    enquadramento daquela comunidade como essnios, conforme afirmavam Plnio,

    Josefo e Filo, como um grupo fariseu ou um grupo saduceu, zelote ou cristo, e a

    poca a qual se referiam em seus escritos, ou se os escritos no se relacionavam

    com Qumran.O debate deve se estender por um longo perodo ainda, visto que no se

    consegue, no atual conhecimento das pesquisas, encontrar algum desses grupos de

    forma pura, pois a anlise utilizando testemunhos de pocas diferentes certamente

    verificar as variaes naturais de seus desenvolvimentos ao longo do tempo.

    Para os propsitos de nossa pesquisa, adotaremos uma viso mais prxima

    da Teoria Macabia de Geza Vermes, onde o conflito se d entre a comunidade de

    Qumran e o corpo sacerdotal na poca das transformaes scio-religiosas dosgovernantes macabeus.

    40Yaron Ben-Ami, 2004. Dr. Magen and Mr. Peleg now believe these dishes were the chief product ofQumran. While digging out the sand and rubble which filled the large cistern, they found a layer of fineclay, about three tons total. This clay was then fashioned into dishes and baked in two large ovensfound on the premises. This would account for the large number of dishes found a storage room forfinished merchandise while seemingly ruling out Qumran as a place of learning and solitude: onecan hardly be expected to find the quietude needed to study in the middle of a busy, loud, and dirtyfactory. This was the essence of Qumran, in his opinion: a fortress which, after the Roman occupation

    in 63 BCE and the disbanding of the Hasmonean army, was turned by the out-of-work soldiers into apottery factory.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    37/95

    35

    As diferentes abordagens acadmicas sobre a natureza das atividades em

    Qumran no afetam o resultado da pesquisa, visto que o trabalho se fundamenta

    sobre a interpretao particular dos escritos sectrios, sendo indiferente se o grupo

    dissidente se encontrava em Jerusalm ou em Qumran.

    2.3. A interpretao sectria do pesher de Habacuque

    Neste subitem analisaremos os principais pontos do pesherde Habacuque,

    verificando a interpretao aplicada ao texto cannico pela comunidade de Qumran

    comparando-a com o que o texto procura dizer na poca de Habacuque.O manuscrito 1QpHab, que ser objeto de anlise, foi um dos primeiros

    manuscritos descobertos em Qumran, encontrado na caverna 1, e tambm um dos

    primeiros que foram divulgados e traduzidos.

    Sua condio de conservao no permite identificar o texto em vrios

    pontos, principalmente na primeira coluna, que se encontra muito deteriorada, visto

    que esta era a coluna inicial mais exposta que dava incio ao manuscrito, sendo a

    mais atingida por intempries.

    Tambm na parte inferior das colunas algumas linhas no permitem a leitura

    e outras so inexistentes por j terem sido erodidas.

    O manuscrito possui 13 colunas e o texto cannico copiado termina no meio

    desta, no captulo 2, indicando que o texto cannico em poder do escriba no

    possua o captulo 3 de Habacuque, parte que os especialistas atribuem a um

    acrscimo posterior retirado da liturgia e que teria sido agregado antes da

    estabilizao do texto final do livro41.

    O manuscrito em fac-smile pode ser visto no Anexo B, onde se pode

    constatar seu estado de conservao e o texto original hebraico em escrita

    herodiana42.

    41 PETERLEVITZ, Luciano R. Observaes Literrias em Habacuque 3. Campinas, 2009. Revista

    Theos p.7. Para o autor o Captulo 3 de Habacuque deve ser integrado ao restante do livro, tese quedefende ao longo de todo o seu trabalho atravs de anlise literria. Na pgina 7 o autor informa:Defender que Habacuque 3.1-19 um texto independente do livro desqualificar a proposta doprofeta, pois, fica claro que no contexto do livro como um todo, Habacuque 3 funciona como uma

    concluso corroborativa que corresponde aos problemas levantados em Habacuque 1-2[...].42ALBREGO apud PETERLEVITZ, 2009, p.6. O autor informa que o Captulo 3 de Habacuque

    compunha uma unidade literria com o resto do livro. O fato de no estar presente no manuscrito1QHab que ao final o rolo estaria muito deteriorado e que teria sido excluda esta parte. Porm,

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    38/95

    36

    O texto a ser utilizado para a anlise da interpretao sectria ser o texto de

    Horgan, constante do Anexo A, que apresenta aquilo que pode ser visto do

    manuscrito, dadas as suas condies de conservao.

    A anlise ser feita por excertos do texto, nos quais os textos em itlico e em

    negrito so os textos cannicos, e os textos somente em itlico constituem os textos

    relativos interpretao sectria. As referncias sero feitas por coluna, seguida

    pelo nmero da linha onde se encontra o texto.

    A seguir passamos ento anlise dos excertos do texto de 1QpHab:

    Coluna I.1-3Peso que Habacuque o profeta viu: Quanto tempo, YHVH tenho

    clam ado , mas tu no esc ut as? A interpretao da passagem se refere a

    tudo o que Habacuque profetizou concernente expectao da gerao....a visitao nos ltimos dias.....todas as coisas que viro sobre eles

    Habacuque foi um profeta cujo ministrio ocorreu por volta do ano 625 a.C. a

    605 a.C., fato baseado na nica referncia temporal do livro que a iminente

    ascenso dos caldeus(Hc 1.6). Os caldeus comearam a se tornar proeminentes

    por volta de 625 a.C. com as conquistas de Nabopolassar, pai de Nabucodonosor, e

    que resultaram na destruio da cidade de Nnive conforme profetizado pelo profeta

    Naum.Nesta faixa temporal podemos considerar a atuao proftica de Habacuque,

    cuja profecia (peso) apontava para a invaso do territrio pelos caldeus e destruio

    da cidade de Jerusalm.

    Sobre este perodo tambm concorda Albright43, que relaciona o tempo da

    ascenso dos caldeus com a derrota do fara Neco em Carquemis e a invaso de

    Jud.

    A interpretao sectria, vindo quase 500 anos depois, considera as palavras

    de Habacuque como relacionadas aos ltimos dias, com cumprimento ainda a se

    realizar, desconsiderando totalmente a referncia aos caldeus, que na poca da

    comunidade de Qumran j no mais possua existncia poltica.

    constata-se pelo fac-smile no anexo deste trabalho, que a parte mais erodida a inicial, na Coluna 1,onde comea o livro e no a final quando o livro esta mais bem preservado e apresenta a ltimacoluna ntegra e terminando subitamente na metade, deixando meia coluna vazia. Isto indica que ocaptulo 3 do livro no estava disposio do copista no rolo que ele replicava.43

    ALBRIGHTapudTENNEY, Merrill. Enciclopdia da Bblia. So Paulo; CULTURA CRIST, 2008,

    v.3, p.13. [...]no vendo nenhuma razo vlida pela qual o livro no devia ser tratado como umaunidade substancial e datado entre 605 A.C e 589 A.C., i.e., entre a vitria decisiva deNabucodonosor sobre Neco em Carquemis e o incio da ltima invaso de Jud antes do final doPrimeiro Templo.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    39/95

    37

    Deve ser levado em considerao o ambiente apocalptico pelo qual passava

    o judasmo para podermos compreender esta mudana de entendimento por parte

    da comunidade de Qumran, diferenciando-se da aplicao aos caldeus

    originalmente feita por Habacuque.

    Quanto a este ambiente apocalptico, Alberto Soggin44informa que:

    O perodo persa tardio e o comeo do perodo macednio viu umcrescimento progressivo seguido pela extino, daquilo que era a maiorcaracterstica e movimento criativo do antigo judasmo, profecia. No seulugar, e em algum tempo paralelo a ele, apareceu outro movimento,basicamente esotrico e especulativo em contedo, a apocalptica (traduonossa).

    Coluna I.10-14..................................por isso a lei afroux a e a sentena nun ca sai. A

    interpretao disso que eles rejeitam a lei de Deus........................................................................po rqu e o mpio cerca o ju sto.A interpretao disso: quem mpio o Sacerdote Inquo e o justo oMestre da Justia

    Habacuque discorre sobre a situao da poca, que era a mesma do profeta

    Miquias, contemporneo, a respeito dos lideres religiosos e civis. Os magistrados

    exigiam suborno para dar as sentenas, e se deixavam levar pelos mais ricos, dando

    sentenas injustas que oprimiam o pobre, conforme apresenta o profeta Miquias45

    retratando a poca.

    Neste texto o profeta se refere a um mpio genrico e a um justo genrico

    retratando a situao catica da sociedade de sua poca. Porm, a interpretao

    sectria, diferentemente, atribui a impiedade citada pelo profeta a um sacerdote

    especfico designado de Sacerdote mpioeSrh Nhk khn har - e ao justo

    citado refere-se especificamente ao Mestre da Justia qduh hrm mreh

    hadeq.

    Neste ponto importante para nossa pesquisa detalharmos melhor esses

    dois personagens. Podemos ter um perfil desse Mestre da Justia em outras

    citaes nos demaispesharim.

    44SOGGIN, J. Alberto. An Introduction to the History of Israel and Judah.Valley Forge: Trinity Press

    International, 1993. p. 309. The late Persian period and the beginning of the Macedonian period sawthe progressive exhaustion, followed by the extinction, of what was one of the most characteristic andcreative movements in ancient Judaism, prophecy. In its place, and for some time parallel to it, thereappeared another movement, basically esoteric and speculative in content, apocalyptic.45 Mq 3.9-11. Ouvi, pois, isto chefes da casa de Jac e magistrados da casa de Israel, vs quedetestais o direito, que torceis o que reto, vs que edificais Sio com o sangue e Jerusalm cominjustia. Seus chefes julgam por suborno, seus sacerdotes ensinam por salrio e seus profetasvaticinam por dinheiro [...]. (ARC)

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    40/95

    38

    No pesher de Salmos 4QpSal ou 4Q171, descoberto na caverna 4, est

    detalhado que ele era sacerdote e considerado como estabelecido por Deus para

    construir a congregao dos eleitos46, indicando que possivelmente ele tenha dado

    incio comunidade estabelecida em Qumran.

    No mesmo documento, este Mestre da Justia apresentado como o

    intrprete do conhecimento, ou seja, ele d a devida interpretao da situao

    vivencial da poca, Sitz im Leben, e sua correlao com os textos dos profetas em

    contraste com outro personagem, o Homem de Mentiras, que desencaminhou a

    muitos com palavras enganosas47. O Mestre da Justia era considerado o escolhido

    de Deus pela comunidade de Qumran48.

    No Documento de Damasco, outro de origem sectria, temos uma descriodo tempo em que o Mestre da Justia apareceu. Na col. 1 da cpia deste documento

    (CD-A) descoberta no Cairo no sculo XIX, h a informao de que 390 anos aps

    Deus ter entregado o povo nas mos de Nabucodonosor, Deus suscitou para eles

    um Mestre de Justia49.

    Nas colunas XIX e XX do mesmo documento, est exposto o entendimento

    da Comunidade de Qumran que aqueles que traram e abandonaram os

    ensinamentos do Mestre da Justia (Mestre nico) desde o dia da atuao doMestre nico at a chegada do Messias no sero contados na assembleia do povo

    (a comunidade), e acrescenta que aqueles que prestam ouvidos voz do Mestre da

    Justia se regozijaro e Deus expiar por eles, e eles vero a sua salvao50.

    46 4Q171 col. 3.14-16 (MARTNEZ,1992. p.246). Pois por Deus so assegurados os passos do

    homem que ele se deleita em seu caminho; embora tropece no cair, pois Deus sustenta sua mo.Sua interpretao se refere ao sacerdote, o Mestre da Justia, a quem Deus escolheu para estardiante dele, pois o estabeleceu para construir por ele a congregao de seus eleitos e endireitou o

    seu caminho, em verdade.47 4Q171 col. 1.26 e 27 (MARTNEZ,1992. p.244). Sua interpretao se refere ao Homem deMentiras que desencaminhou a muitos com palavras enganosas, j que escolheram tolices e noescutaram o intrprete do conhecimento.48Conforme citao acima ele o ryxb- br - (escolhido) da comunidade de Qumran.49CD-A, col. 1.5,6 e 11 (MARTNEZ,1992. p.76). E no tempo da ira, aos trezentos e noventa anosaps t-los entregue nas mos de Nabucodonosor, rei da Babilnia, visitou-os e fez brotar de Israel ede Aaro um broto de plantao para possuir [...] e suscitou para eles um Mestre de Justia paragui-los no caminho de seu corao.50 CD-A, col. 19.33 col. 20.1 e col. 20.30-34 (MARTNEZ,1992. p.88 e 89). E assim, todos oshomens que entraram na aliana nova na terra de Damasco e se voltaram e traram e sedistanciaram do poo de guas vivas, no sero contados na assembleia do povo e no seroinscritos em suas listas desde o dia da reunio do Mestre nico at que surja o messias de Aaro e

    de Israel [...] e no levantam a mo contra as suas normas santas e seus juzos justos e seustestemunhos verdadeiros; e so instrudos nas ordens primeiras conforme as quais foram julgados oshomens do nico; e prestam ouvidos voz do Mestre de Justia; e no rejeitam as normas santasquando as ouvem; eles se regozijaro e se alegraro e seu corao ser forte e dominaro sobre

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    41/95

    39

    Desta forma vemos que o Mestre da Justia o intrprete oficial da

    comunidade e suas palavras so dadas por Deus requerendo das pessoas que

    participam da comunidade estrita observncia dos seus ensinos sob pena de serem

    condenado por Deus juntamente com as naes mpias.

    Quanto ao sacerdote mpio - eSrh Nhk khn har - temos referncia

    sobre ele tambm em outrospesharim.Como o Mestre da Justia, ele tambm da

    classe sacerdotal, mas os textos sectrios o apresentam como um ensinador de

    mentiras e faz oposio ao Mestre da Justia tendo poder at planejar sua morte.

    Os textos sectrios retratam a queda espiritual e cerimonial incorrida pelos

    religiosos de Jerusalm, o que originou a separao de um grupo fiel ligado ao

    Mestre da Justia.O grupo de Jerusalm era guiado pelo Sacerdote Inquo que ensinava

    mentiras e fazia desviar o povo. A comunidade de Qumran era, portanto, resultado

    de uma separao da atividade religiosa de Jerusalm por parte dos sacerdotes

    Sadoquitas cujo lder era o Mestre da Justia. A linhagem sadoquita fiel, liderada

    pelo Mestre da Justia, participava da comunidade em cujos textos sectrios

    mostrava sua oposio ao sacerdcio operante em Jerusalm na pessoa do

    Sacerdote Inquo.O texto sectrio no manuscrito da Regra da Comunidade 1QS mostra

    esse momento de tenso, e a causa da formao da comunidade em Qumran51.

    O texto citado fala ainda daqueles que querem fazer um retorno Lei,

    indicando que o grupo sacerdotal de Jerusalm, liderado pelo Sacerdote Inquo,

    havia se afastado dos mandamentos da Lei de Moiss.

    O que percebemos, portanto, neste trecho do pesher que as palavras

    originalmente genricas aplicadas ao mpio e justo na poca de Habacuque so

    todos os filhos do mundo. E Deus expiar por eles, e eles vero a sua salvao, pois se refugiaramem seu santo nome.511QS, col. 5.1 e 2 (MARTNEZ, 1992. p.51). Esta a regra para os homens da comunidade que seoferecem voluntariamente para converter-se de todo mal e para manter-se firmes em tudo o queordena segunda a sua vontade. Que se separem da congregao dos homens de iniquidade paraformar uma comunidade na lei e nos bens, e submetendo-se autoridade dos filhos de Sadoc, ossacerdotes que guardam a aliana e autoridade da multido dos homens da comunidade os que semantm firmes na aliana [...] todo o que entra no conselho da comunidade entrar na aliana de

    Deus em presena de todos os que se oferecem voluntariamente. Comprometer-se- com umjuramento obrigatrio a retornar lei de Moiss, com tudo o que prescreve, com todo o corao ecom toda a alma, segundo tudo o que foi revelado dela aos filhos de Sadoc, os sacerdotes queobservam a aliana e interpretam a sua vontade...

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    42/95

    40

    utilizadas para se referirem a pessoas especficas na poca da formao da

    comunidade em Qumran, apresentando uma aplicao toda prpria ao texto.

    Coluna I.16Coluna 2.10Vejam oh! Traido res maravilha e espantem p ois fao um ob ra nosvo sso s di as que no ac redit aro se con tarem . A interpretao dapassagem se refere aos traidores juntamente com o Homem da Mentira,porque eles no creem nas palavras do Mestre da Justia que vieram daboca de Deus. E se refere aos traidores da nova aliana pois eles no eramfiis aliana de Deus, mas profanaram o seu santo nome...da mesmamaneira.........a interpretao da passagem se refere aos traidores nos finsdos dias. Eles so os cruis da aliana que no crero quando escutaremtudo o que est para vir sobre a ltima gerao da boca do sacerdote emcujo corao Deus colocou entendimento para interpretar todas as palavrasdos seus servos os profetas por meio dos quais deus enumerou todas ascoisas que viro sobre seu povo e sobre sua congregao.

    Novamente o Mestre da Justia citado como aquele escolhido por Deus e

    que sofre oposio do Homem da Mentira.

    Este Homem da Mentira parece ser um personagem diferente do Sacerdote

    Inquo, pois [...] se refere aos traidores da nova aliana [...] . Esta nova aliana a

    aliana estabelecida na comunidade em Qumran, que fazia seus participantes se

    separarem do ramo principal de Jerusalm.

    Os preceitos desta nova aliana so estabelecidos pelo Mestre da Justia,

    aquele autorizado por Deus para dar a fiel interpretao das profecias anteriormente

    feitas pelos profetas de Deus.

    O problema deste Homem da Mentira que ele no concordou com as

    palavras do Mestre da Justia que era sacerdote em cujo corao Deus colocou

    entendimento para interpretar todas as palavras dos seus servos os profetas.

    Devemos destacar neste ponto a posio de autoridade que possua o Mestre da

    Justia.

    Coluna II.10Coluna II.15Eis q ue eu levant o o s cal deu s, aquela n ao amarga e apr essada.A interpretao se refere aos Kittim que so rpidos e vigorososna batalha, para destruir muitos pela espada e pela fome no domnio dosKittim, e os mpios trairo a aliana e no sero fiis aos mandamentos deDeus.

    Esta a nica referncia temporal no livro de Habacuque, e se refere

    vinda dos caldeus terra de Israel, o que aconteceu em 3 oportunidades: em 606

    a.C.; 597 a.C. e 586 a.C., esta ltima data sendo considerada como referncia

    quando se refere ao cativeiro babilnico.

  • 8/13/2019 Www.eetad226.Com Index Arquivos Dissertacao de Mestrado

    43/95

    41

    Habacuque discorre sobre os qaddm, os caldeus, que so osbabilnios, e que muito breve iria invadir a terra de Israel, o que primeiramente

    ocorreu em 606 A.C.

    Na interpretao sectria, diferentemente do texto cannico, os kasdim so

    chamados de kittim, e neste ponto importante nos determos para um melhor

    entendimento a respeito do termo kittim na comunidade de Qumran.

    Primeiramente cabe destacar que Flvio Josefo, em Antiguidades Judaicas I,

    6.1 quando explica pela genealogia do captulo 10 de Gnesis, a nomeao dos

    povos, fala de Kithimus, que possuiu a ilha de Kethima, que veio a ser denominada

    Chipre e disto proveio, diz ele, que todas as ilhas e a maior parte dos territrios

    banhados pela costa norte do Mediterrneo so denominados de Kittim pelos

    hebreus.

    Assim por meio de Flvio Josefo, descobrimos que o termo Kittim era

    atribudo pelo hebreus aos territrios costeiros e s ilhas de forma geral. No

    obstante esta informao de Josefo, a comunidade de Qumran parece ter atribudo

    significado especfico.

    Para Eshel52, o termo kittim sofreu mudana de interpretao ao longo do

    perodo da existncia da comunidade, o que motivou a parada de cpias dos

    pesharimentre 63 A.C. e 31 A.C.

    Podemos presumir que uma das razes, se no a principal, para cessar decopiar os pesharim (entre 63 A.C. e 31 A.C.), era que os autores desteparticular gnero compreenderam que eles erradamente identificaram osKittim. sempre mais fcil corrigir e atualizar uma tradio oral do quecomposies escritas e por isso pararam de copiar os pesharim (traduonossa).

    A anlise de Eshel demonstra que o Rolo da Guerra 1QM faz meno aos

    Kittim cerca de 18 vezes e que neste documento sectrio ele est significando os

    Selucidas53.

    52 ESHEL, Hanan. The Kittim in the War Scroll and in the Pesharim . Paper apresentado no 4

    Simpsio In