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X Seminário de Literatura Brasileira
Literatura, Memória, Esquecimento
08 a 10 de junho 2016
A MÚSICA QUE ESPELHA UM TEXTO: “BÁRBARA NO INVERNO”,
DE MILTON HATOUM
Layane Serracena da Silva1
É comum encontrar músicas citadas em obras literárias, ou ainda obras literárias
influenciando músicas. O ser humano sempre esteve ligado à música, e essa tem o poder de
traduzir nossas emoções, suscitando reações adversas tanto em nosso corpo como em nossa
mente. Sobre este fato, Duarte e Leão (2002) consideram que a canção tem o dom de
desencadear memórias, “A música tem um importante papel de estimulador de sensações, de
resgate de memória, de criar ambientes favoráveis à narrativa verbal e pode liberar a
criatividade, o questionamento e a imaginação”2.
Milton Hatoum, no seu conto Bárbara no inverno, estabelece um diálogo estreito com
a música de Chico Buarque, Atrás da porta, pois a melodia é o roteiro trágico para o desfecho
da personagem Bárbara. A aproximação de música e texto foi realizada de forma tão profunda
que, conhecendo o fascínio e o conhecimento que Hatoum tem pelos textos de Machado de
Assis, é como se autor amazonense quisesse reafirmar a teoria machadiana sobre vida e ópera,
apresentada no livro Dom casmurro.
Nessa tese, o narrador afirma que, apesar de Deus ter escrito a letra, foi satanás quem
fez a música. Assim, essa sinfonia indigna de ser tocada no céu, somente pode ser executada
aqui na terra, onde se criou uma companhia completa para a execução de tal obra. E o
narrador parece acreditar tanto nessa teoria que passa a transformar sua própria vida em uma
ópera, afirmação encontrada no capítulo X “Aceito a teoria”: “Eu, leitor amigo, aceito a teoria
do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas
porque a minha vida se casa bem a definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,
depois um quatuor...” 3.
1 Graduanda do Curso de Letras Português-Inglês da Universidade estadual de Goiás – Câmpus Posse. Esta
comunicação recebeu incentivo da PrG, por meio do Programa de Auxílio Pró-eventos da Universidade Estadual
de Goiás – UEG. 2 DUARTE E LEÃO, 2002
3 ASSIS, 2008, p.18
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08 a 10 de junho 2016
Esclarecido isso, voltemos à discussão de outro ponto capital sobre o conto de
Hatoum, no que se refere ao título que ele lhe dá: Bárbara no inverno. No nosso entender, ele
funciona como metáfora para a frieza gradativa que vai ocorrendo entre as personagens na sua
relação conjugal. Contudo, Lázaro não se mantém frio de alma, ele percebe os problemas e
busca outras saídas, como intensificar as suas saídas com os amigos, enquanto a esposa fica
na frieza da solidão, em um mundo criado por ela e somente para ela.
Esse conto, num resumo rápido, narra a história de um casal de brasileiros que foram
exilados em Paris pela ditadura. O autor afirma que só Lázaro é exilado, isso para deixar claro
que Bárbara, sua mulher, só se exila por conta do grande amor que sentia por ele. Contudo,
como dissemos, Lázaro continua tendo uma vida social intensa com os amigos nas suas
reuniões de política, não se percebe muitas mudanças para ele, a não ser de espaço. Para sua
esposa, no entanto, é que se instaura o verdadeiro exílio, pois esta não se envolve com
política, não tem amigos e esta longe da família.
Em Paris, ironicamente a cidade do amor, marido e mulher se distanciam cada vez
mais. “No começo do namoro os dois ouviam a mesma música quase todas as noites e, no
tempo em que moravam juntos no Brasil, a paixão e a política se completavam;”4 É evidente
que a política, tendo que fazer sempre uso da razão representa Lázaro, homem racional, sendo
assim a paixão fica representada na figura de Bárbara, uma mulher passional.
Com o casamento desgastado pela monotonia, Bárbara se torna cada dia mais
ciumenta e descontrolada. A vida de Lázaro passa a ser um tormento por conta das
lamentações e do ciúme excessivo de sua esposa. Com isso, ele passa a agir com frieza como
se Bárbara não existisse, e mesmo quando ela implora por seu amor, ele é indiferente a ela.
Antes, quando estavam bem no relacionamento, os dois costumavam ouvir a música
Atrás da porta. Embora, gostassem do teor da canção, sempre afirmavam que esta teria sido
feita para qualquer outro casal, menos para eles: “Essa música não conta a nossa história,
dizia ela, e Lázaro pensativo: Claro, o inferno dessa canção pertence aos outros e os dois
dançavam em silêncio [...]” 5. Na música de Chico Buarque, também a protagonista da música
parece não ter consciência de que seu relacionamento poderia chegar ao fim, como podemos
evidenciar em: “Quando olhaste bem nos olhos meus/ E o teu olhar era de adeus/ Juro que não
acreditei/ Eu te estranhei[...]”6.
4 HATOUM, 2014, p. 64
5 HATOUM, 2014, p. 64
6 BUARQUE, 1972
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Contudo, o que era só para ser apreciada, podendo até acabar com os problemas do
casal: “[...] Bárbara punha o disco e esperava a música, como se aquela canção tivesse o
poder ou a magia de exorcizar qualquer vestígio de ameaça ou mesmo indiferença à vida
amorosa.”7 (HATOUM, 2014, p.64). Contudo, a música era o prenúncio, o roteiro para o
desfecho trágico do seu casamento e da vida de Bárbara. Sobre as emoções geradas por uma
mesma música, Gattino, Rodrigues e Araujo, afirmam que ela pode causar prazer e satisfação,
podendo mesmo incitar efeito negativo na mesma pessoa mesmo em momentos próximos.
Contudo, isso vai depender do contexto em que a música for ouvida. Assim, dada a
circunstância de uma crise conjugal irreversível, para uma mulher loucamente apaixonada, é
obvio que a canção causou danos ao seu estado emocional fragilizado. Desse modo, a canção
transformou-se em um universo paralelo, convergindo o plano real toda em alucinação, por
isso ela se torna vingativa e obsessiva.
Como já dito, em sua paranóia, a protagonista desse conto de Hatoum assume o roteiro
da música como se fosse sua vida acontecendo. A composição de Chico Buarque possui um
ritmo melancólico e uma narração bastante infeliz, de um eu-lírico feminino, que se apresenta
inconformado com o fim do seu relacionamento. Essa mesma mulher maldiz o
relacionamento e ainda jura vingança ao traidor a qualquer preço: Dei pra maldizer o nosso
lar/ Pra sujar teu nome, te humilhar/ E me vingar a qualquer preço/ Te adorando pelo avesso/
Pra mostrar que inda sou tua/ Só pra provar que inda sou tua...”8.
No instante em que se vê mais solitária, Bárbara se entrega mais a música e, a partir
daí, inicia-se o processo de transfiguração do que é ficção e realidade. Também tornam-se
mais constantes as alusões à música em relação as ações de Bárbara que permanecerá sempre
atrás da porta: é escondida atrás da porta que ela vê o beijo de Francine, ao esperar que ele
volte da rua com uma faca empunho ela está atrás da porta, passa a noite vigiando o marido
atrás da porta. Parece-nos que é como se a personagem assumisse e aceitasse a postura da
protagonista da música como ideal, mesmo sabendo do destino trágico da mesma. Como se
fosse a única saída que lhe restava.
Seguindo com a exposição, mais dois episódios se assemelham, primeiro na música de
Buarque: “[...]E me arrastei e te arranhei/ E me agarrei nos teus cabelos/ Nos teus pelos/ Teu
pijama/ Nos teus pés/Ao pé da cama/ Sem carinho, sem coberta/ No tapete atrás da porta/
Reclamei baixinho[...]9. Com o trecho no conto de Hatoum, em que Bárbara, consciente do
7 HATOUM, 2014, p.64
8 BUARQUE, 1972
9 BUARQUE, 1972
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rumo em que seu casamento esta tomando, implora para Lázaro por um pouco de atenção e
de carinho:
[...] Bárbara se curvou para beijar sua boca, e ele não pode disfarçar a frieza
dos gestos quando ela tentou abraça-lo com um desespero de náufrago.
Então ela o puxou pelos cabelos como se pedisse uma última noite de amor,
e ele não reagiu [...]10
.
Desse modo, para ela, acabando o amor, acabava-se a vida. Como não recua, aceitar o fim do
relacionamento estava fora de questão. E teria coragem de matar o marido para não ter que
vê-lo com outra. A paixão se converte em ódio, ressentimentos e vingança, que culminam
com o suicídio de Bárbara:
De tocaia na varanda Bárbara reconheceu Fabiana: E eu duvidando de
Francine. Então durou sete ou oito segundos: Lázaro escutou o choro ou a
risada diabólica antes de ver o rosto de Bárbara, e entendeu que era o fim
Lázaro entende que é o fim. Ainda teve tempo de correr, mas não de agarrá-
la e evitar o salto.11
Portanto, o suicídio é o último ato de uma mente diabólica e mesquinha que quer plantar a
eterna culpa na consciência do ex-amante:
Ele ficou debruçado na varanda, de olhos fechados, e, quando virou a cabeça
para a sala, encontrou um rosto sem cor num corpo paralisado. Ele e Cláudia
ficaram assim por algum tempo, os dois imobilizados pelo pânico ou culpa, a
voz de Chico Buarque cantando baixinho: „E me vingar a qualquer preço‟...12
Concluindo, o texto de Hatoum dialoga muito bem com a ideia exposta por Machado
ao afirmar que a música é de Satanás quando a obsessão da protagonista a leva ao um
suicídio, como meio de vingança à indiferença e ingratidão do ex-amante. A música de
Buarque foi convertida em realidade pela mente esquizofrênica de Bárbara, tornando-se sua
realidade paralela, espaço em que ela se exila. Por isso, ela percorre uma trajetória de rancor,
ciúme e delírios. Nesse sentido, não restam dúvidas de que a canção Atrás da porta ilumina o
processo criador de Hatoum no que diz respeito ao enredo e ao caráter da sua personagem
principal.
10
HATOUM, 2014, p. 72 11
HATOUM, 2014, p.68 12
IDEM, 2014, p.72
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RESUMO
Para uma melhor compreensão textual do texto ficcional é necessário ler as
entrelinhas, entender sua essência e intenção. Partindo desse pressuposto, o nosso objetivo
nessa comunicação é demonstrar que a música “Atrás da Porta”, de Chico Buarque, citada
diversas vezes nessa narrativa breve, é um espelho que reflete (denuncia) antecipações do
desfecho e do caráter da personagem Bárbara, no conto “Bárbara no inverno”, de Milton
Hatoum. Teria propositadamente, Hatoum utilizado a música numa perspectiva machadiana,
para afirmar que: “A vida é uma ópera e uma grande ópera. [...] Deus é o poeta. A música é de
Satanás” (ASSIS, 2008, p.16). Esse fragmento encontra-se em Dom Casmurro, mais
especificamente, no capítulo IX “A ópera”.
PALAVRAS-CHAVE: Bárbara no inverno; Atrás da Porta; Milton Hatoum; Música;
Intertextualidade.
ABSTRACT
For a better fictional text comprehension it is necessary to read between the lines,
understand its essence and intent. Based on this assumption, our aim in this communication is
demonstrate that the song "Door Behind" by Chico Buarque mentioned several times in this
brief narrative is a mirror that reflects (complaint) anticipations of the denouement and the
ethos of Barbara, character in the story "Barbara in winter "of Milton Hatoum. Would have
purposely, Hatoum used music in Machadian perspective, to say that "Life is an opera and a
great opera. [...] God is a poet. The music is by Satan" (ASSIS, 2008, p.16). This fragment is
in Dom Casmurro, more specifically, in Chapter IX, "Opera".
Keywords: Barbara in winter; Behind the door; Milton Hatoum; Music; Intertextuality.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Joaquim M. Machado de. Dom Casmurro.2 ed-São Paulo: Ciranda Cultural, 2008. –
(Literatura brasileira)
BUARQUE, Chico. Atrás da Porta. 1972 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Letra
Disponível em: http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/atras-da-porta.html / acessado
em Maio de 2016.
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DUARTE, Jordana Vierira & LEÃO, Eliane. O processo da audição musical – o papel da
imaginação. In: 55° Reunião Anual da SBPC – Educação, Ciência e Inclusão Social. UFPE,
Pernambuco. Anais, CD Rom, 2002.
GATTINO, G. S. Algumas considerações sobre os efeitos negativos da música. Revista
Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.2, 2014. Disponível em:
http://www.musicahodie.mus.br/15.2/Musica%20Hodie_15-2.pdf Acessado em: Maio de
2016
GATTINO, G.; RODRIGUES, I.; ARAUJO, G.. Evidências do processamento auditivo-
musical nos transtornos do espectro autista. In: Simpósio de Cognição e Artes Musicais-
Edição Nacional, 10, Campinas. Anais... Campinas: ABCM., 2014.
HATOUM, Milton. A cidade ilhada:contos. 1 ed. – São Paulo: Companhia de Bolso, 2014.
In: Bárbara no Inverno.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os mistérios do texto. São Paulo, Cortez. 6ª
ed. 2009.
LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES, Nilton. (Org.). Semiótica: objetos e práticas. São Paulo:
Contexto, 2005.
MOISÉS, Massaud. A análise literária.7. ed. São Paulo: Cultrix, 1984.