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Autodenominação huni kuin Família linguística Pano Xamanismo Os Kaxinawa afirmam que os verdadeiros xamãs, os mukaya, aqueles que tinham dentro de si a substância amarga e xamânica chamada muka, morreram, mas este fato não os impede de praticar outras formas de xamanismo, consideradas menos poderosas mas que parecem igualmente eficientes. Somente a retirada do duri, equivalente do muka, entre os Kulina, parece ter sido o privilègio do mukaya. Outras capacidades, como a de saber se comunicar com os yuxin, são do domínio de muitos adultos, especialmente os mais velhos. Dessa maneira poderíamos tanto dizer que não existem xamãs quanto dizer que existem muitos. Uma característica saliente do xamanismo kaxinawá é a importância da discrição com relação à possivel capacidade de curar ou causar doença. A invisibilidade e ambigüidade deste poder é ligada a sua transitoriedade. Sugiro portanto que a afirmação de que não se tem mais xamãs tão poderosos quanto antigamente seja interpretada à luz de uma desenfatização da figura do xamã. Xamanismo é mais um evento do que um papel ou uma instituição cristalizada. Este fato se deve também às severas regras de abstinência que incidem sobre a prática do xamã na sua forma de mukaya, que não podia comer carne nem ter contato com mulheres. O uso da ayahuasca, considerado privilégio do xamã em muitos grupos amazônicos, é uma prática coletiva entre os kaxinawa, praticada por todos os homens adultos e adolescentes que desejam ver "o mundo do cipó". O mukaya seria aquele que não precisa de nenhuma substância, nenhuma ajuda exterior para se comunicar com o lado invisível da realidade. Mas todos os homens adultos são um pouco xamãs na medida que aprendem a controlar suas visões e interações com o mundo dos yuxin. Dois fatos facilmente observáveis que apontam nessa direção são o uso freqüente e público da ayhauasca (aproximadamente duas ou três vezes por mês) e as longas caminhadas solitárias de alguns velhos sem o objetivo de caçar ou de buscar ervas medicinais (explicação geralmente dada). Estas duas atividades mostram uma procura ativa de estabelecer um contato intenso com a yuxindade. Yunxidade é uma categoria que sintetiza bem a cosmovisão xamânica dos Kaxinawá, uma visão que não considera o espiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do humano. O espiritual ou a força vital (yuxin) permeia todo o fenômeno vivo na terra, nas águas e nos céus. Na vida diária vemos um lado da realidade onde este parentesco universal das coisas vivas não se revela: vemos corpos e sua utilidade imediata. Em estados alterados de consciência, porém, o homem se defronta com o outro lado da realidade, em que a espiritualidade que habita certas plantas ou animais se revela como yuxin, huni kuin, “gente nossa”. Por se manifestar tanto como força vital quanto como alma ou espírito com vontade e personalidade próprias, nenhum termo capta bem este caráter efêmero e polivalente do yuxin. Na região do Purus, os próprios Kaxinawá traduzem yuxin por alma quando se referem aos yuxin que aparecem de noite ou no crepúsculo da mata em forma humana. O uso desta palavra vem da convivência com os seringueiros, que também vêem e falam de almas. Quando se fala do yuda baka yuxin ou do bedu yuxin da pessoa, usa-se mais espírito: “É o espírito da gente que vê, né?, e que fala”. Outra tradução usada pelos Kaxinawá é “encantado”. A atividade do xamã que procura conhecer e relacionar-se com os yuxin é indispensável para o bem estar da comunidade. A causa última de todo mal-estar, doença ou crise tem suas raízes neste lado yuxin da realidade, em que o xamã, como mediador entre os dois lados, é necessário. O xamã trabalha com o que tem de yuxin no mundo, com a categoria que chamo de yuxindade. Os lugares com maior concentração de yuxin são os barrancos (onde moram os mawam yuxibu, identificados pelo lugar onde moram), o lago e as árvores. Foto: Paulo França, s/d Huni Kuin (Kaxinawá) Onde estão Quantos são AC 7.535 (Funasa, 2010) Peru 2.419 (INEI, 2007)

Xamanismo _ Huni Kuin (Kaxinawá)

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Aprofundamento na arte xamanica

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  • Autodenominaohuni kuin

    Famlia lingusticaPano

    XamanismoOs Kaxinawa afirmam que os verdadeiros xams, os mukaya, aqueles que tinham dentro de si a substncia amarga examnica chamada muka, morreram, mas este fato no os impede de praticar outras formas de xamanismo,consideradas menos poderosas mas que parecem igualmente eficientes. Somente a retirada do duri, equivalente domuka, entre os Kulina, parece ter sido o privilgio do mukaya. Outras capacidades, como a de saber se comunicarcom os yuxin, so do domnio de muitos adultos, especialmente os mais velhos.

    Dessa maneira poderamos tanto dizer que no existem xams quanto dizer que existem muitos. Uma caractersticasaliente do xamanismo kaxinaw a importncia da discrio com relao possivel capacidade de curar ou causardoena. A invisibilidade e ambigidade deste poder ligada a sua transitoriedade. Sugiro portanto que a afirmao deque no se tem mais xams to poderosos quanto antigamente seja interpretada luz de uma desenfatizao dafigura do xam. Xamanismo mais um evento do que um papel ou uma instituio cristalizada. Este fato se devetambm s severas regras de abstinncia que incidem sobre a prtica do xam na sua forma de mukaya, que nopodia comer carne nem ter contato com mulheres.

    O uso da ayahuasca, considerado privilgio do xam em muitos grupos amaznicos, uma prtica coletiva entre oskaxinawa, praticada por todos os homens adultos e adolescentes que desejam ver "o mundo do cip". O mukaya seriaaquele que no precisa de nenhuma substncia, nenhuma ajuda exterior para se comunicar com o lado invisvel darealidade. Mas todos os homens adultos so um pouco xams na medida que aprendem a controlar suas vises einteraes com o mundo dos yuxin.

    Dois fatos facilmente observveis que apontam nessa direo so o uso freqente e pblico da ayhauasca(aproximadamente duas ou trs vezes por ms) e as longas caminhadas solitrias de alguns velhos sem o objetivo decaar ou de buscar ervas medicinais (explicao geralmente dada). Estas duas atividades mostram uma procura ativade estabelecer um contato intenso com a yuxindade.

    Yunxidade uma categoria que sintetiza bem a cosmoviso xamnica dos Kaxinaw, uma viso que no considera oespiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do humano. O espiritualou a fora vital (yuxin) permeia todo o fenmeno vivo na terra, nas guas e nos cus.

    Na vida diria vemos um lado da realidade onde este parentesco universal das coisas vivas no se revela: vemoscorpos e sua utilidade imediata. Em estados alterados de conscincia, porm, o homem se defronta com o outro ladoda realidade, em que a espiritualidade que habita certas plantas ou animais se revela como yuxin, huni kuin, gentenossa. Por se manifestar tanto como fora vital quanto como alma ou esprito com vontade e personalidade prprias,nenhum termo capta bem este carter efmero e polivalente do yuxin.

    Na regio do Purus, os prprios Kaxinaw traduzem yuxin por alma quando se referem aos yuxin que aparecem de noite

    ou no crepsculo da mata em forma humana. O uso desta palavra vem da convivncia com os seringueiros, quetambm vem e falam de almas. Quando se fala do yuda baka yuxin ou do bedu yuxin da pessoa, usa-se mais esprito:

    o esprito da gente que v, n?, e que fala. Outra traduo usada pelos Kaxinaw encantado.

    A atividade do xam que procura conhecer e relacionar-se com os yuxin indispensvel para o bem estar da

    comunidade. A causa ltima de todo mal-estar, doena ou crise tem suas razes neste lado yuxin da realidade, em que

    o xam, como mediador entre os dois lados, necessrio. O xam trabalha com o que tem de yuxin no mundo, com a

    categoria que chamo de yuxindade. Os lugares com maior concentrao de yuxin so os barrancos (onde moram os

    mawam yuxibu, identificados pelo lugar onde moram), o lago e as rvores.

    Foto: Paulo Frana, s/d

    Huni Kuin (Kaxinaw)Onde esto Quantos soAC 7.535 (Funasa, 2010)Peru 2.419 (INEI, 2007)

  • Para os Kaxinaw, a pessoa formada por carne (ou corpo) e yuxin. Os animais tm um lado corporal e um ladoyuxin, assim como as plantas. Entre os animais h aqueles com yuxin forte e perigoso, e outros com yuxin de poder

    negligencivel. A qualidade do yuxin do animal influencia o regime e os tabus alimentcios dos seres humanos. Os yuxin

    das plantas geralmente no so nocivos ou perigosos. Em muitos jejuns banana e amendoim, por exemplo, sopermitidos, apesar dos yuxin destas plantas serem mencionados regularmente como fazendo parte das almas que

    aparecem na aldeia a pedido do xam para curar. Dentro de toda essa ambigidade, os yuxin podem aparecer como

    gente mesmo, huni kuin, assim como na forma de certos animais.

    Muka: o poder dos yuxin e do xamO poder dos yuxin, que se revela por sua capacidade de transformao, chamado muka. Muka uma qualidadexamnica, s vezes concretizada como substncia. O ser com muka tem o poder espiritual de matar e curar sem usarfora fsica ou veneno (remdio: dau). O ser humano pode receber muka dos yuxin, o que lhe abre o caminho para setornar xam, paj, mukaya. Mukaya significa homem com muka, ou na traduo de Deshayes pris par lamer (pegopelo amargo). O xam tem um papel ativo no processo de acumulao de poder e conhecimento espiritual, mas suainiciao acontecer somente a partir da iniciativa dos yuxin. Se os yuxin no o escolhem, no o pegam, pouco

    adiantam seus passeios solitrios na mata. Uma vez pego porm, o aprendiz torna-se doente nos olhos dos humanos(ficam doidos quando chega mulher perto). O ponto fraco do yuxin o corpo, o do homem seu yuxin; a yuxindade

    ameaa o corpo do homem, e o corpo, o sangue (feminino) ameaa a cabea dos yuxin.

    Se o homem que foi pego quiser seguir o caminho de mukaya, ele se submete a jejuns prolongados e severos (sama)e procura outro mukaya para instru-lo.

    Outra caracterstica do xamanismo kaxinaw, expressa pelo nome mukaya, est na oposio entre o amargo (muka)e o doce (bata). Os kaxinaw distinguem dois tipos de remdio (dau): os remdios doces (dau bata) so folhas damata, certas secrees e animais e os adornos corporais; os remdios amargos (dau muka) so os poderes invisveisdos espritos e do mukaya.

    A especialidade de huni dauya (homem com remdio doce, ervatrio) normalmente no se combina com a de huni mukaya

    (xam). O processo de aprendizagem do ervatrio bem diferente do xam. Se no lidar com folhas venenosas oervatrio no sujeito a jejuns e pode desenvolver suas atividades normais de caa e vida conjugal. Ele adquire seuconhecimento atravs da aprendizagem com o outro especialista e precisa de uma memria e percepo agudas.

    O primeiro sinal de que algum possui a potncia para ser um xam, uma desenvolvida relao com o mundo dosyuxin, o fracasso na caa. O xam desenvolve uma familiaridade to grande com o universo animal (ou com os yuxin

    dos animais), conseguindo estabelecer dilogo com eles, que no consegue mais mat-los:

    e anda no mato, bicho est falando comigo, disse. Quando vo veado, a chama hei meu cunhado, disse, a ficava parado.Quando vem porco, ah, chamava, ah, meu tio, a fica. A emnossa palavra disse em txai hua!(Hei, cunhado!), a nocome.

    Sendo assim, o xam no come carne, e no somente por motivos emocionais. A impossibilidade de comer carnetambm est ligada ao muka, mudana no olfato e no paladar da pessoa com muka amadurecido no seu corao. Ogosto e o cheiro da carne tornam-se amargos.

    O XamO xam temido por sua capacidade de causar doena e morte sem fazer nada fisicamente. Pode atirar seu muka(que invisvel quando atirado) na vtima a partir de grandes distncias; ou pode convencer algum dos yuxin com

  • quem est familiarizado a matar uma pessoa.

    Quanto maior o nmero de yuxin aliados do mukaya, maior ser o seu poder. Porque seu poder de cura reside, de um

    lado, na sua capacidade de negociao como agente ativo da cura (quando vai buscar o esprito perdido de seupaciente que se juntou aos yuxin), e de outro, na qualidade e quantidade de yuxin que pode convocar para uma sesso

    de cura, onde sero os yuxin (seus amigos) os agentes da cura, trabalhando atravs (ou reunidos ao redor) do corpo

    do xam.

    Mesmo assim, a viagem xamnica continua sendo, no entanto, uma caracterstica crucial do xamanismo Kaxinaw. Obedu yuxin viaja, livre do corpo, no sonho, ou quando o xam est em transe sob o efeito do rap ou do ayahuasca.

    Estas viagens cumprem objetivos alm da cura de um caso concreto. So excurses exploratrias. Procuram entendero mundo e as causas ltimas das doenas. Exploram os caminhos que o bedu yuxin do morto ter que seguir para

    chegar ao cu e fortalecem as relaes com o mundo espiritual pelo bem-estar da comunidade.

    Existem alguns tipos de doena: uma material (veneno) e outra espiritual (poder). A doena causada por veneno, por conta do dauya (ervatrio), e a doena provocada pelo poder espiritual (muka), tem um mukaya (xam) inimigo

    culpado. Existe um terceiro tipo: a doena causada pelos yuxin, que a perda pelo paciente de seu bedu yuxin. Adoena causada pelos yuxin a pedido de um mukaya tambm significa perda: do xam pode-se roubar seu muka, de

    um ser comum sua alma.

    Os dois tipos de doenas causadas por homens tm tratamentos diferenciados. O veneno provoca uma perda delquidos e foras vitais (o paciente vomita, tem diarrias, fica anmico). Neste caso, o xam cura com sua fora:cheira um tipo de rap preparado especialmente para a cura e sopra sobre o paciente. No caso da causa ser o muka,o problema no a perda, mas a presena de uma fora negativa que toma a forma de um corpo estranho que age edestri o corpo por dentro. Doenas provocadas por muka so dores agudas no fgado, no estmago ou no corao(trs rgos importantes na viso kaxinaw do corpo humano). Nesta fase, ainda tem cura. O xam chupa o local dador para tirar o objeto intruso. Chupa, tira o muka que o xam inimigo mandou para o paciente.

    O pensamento xamnico entre os Kaxinaw atua de forma permanente, onipresente. Embora no se tenha maissesses de cura e rituais pblicos, como houvera no passado, preciso considerar sua cosmoviso no mbito maiordas prticas de seus vizinhos (Yaminawa, Kulina, Kampa), com quem mantm relaes cada vez mais intensas,porque deixaram de ser inimigos declarados. O intercmbio ali grande e pode se tornar um estmulo para osKaxinaw revitalizarem seus poderes espirituais, guardados na memria da floresta.

    A pessoa Humana para os Kaxinaw concebida por trs partes: o corpo ou a carne (yuda), o esprito do corpo ou asombra (yuda baka yuxin) e o esprito do olho (bedu yuxin). A carne ou qualquer corpo vivo transforma-se em pquando seu aspecto yuxin lhe tirado.

    Iniciao XamnicaExistem vrias maneiras de iniciar-se no xamanismo. Algumas resultam de uma procura deliberada por parte doaprendiz, outras ocorrem espontaneamente devido iniciativa dos yuxin que pegam o escolhido desprevenido. A

    presena do muka no corao do aprendiz, condio sine qua non para qualquer exerccio de poder xamnico,depende em ltima instncia da vontade dos yuxin.

    H dois caminhos que o aprendiz pode seguir para favorecer um encontro com os yuxin que possam lhe dar o germe

    de seu muka: ele pode aumentar sua experincia onrica dormindo muito e tomando remdios (gotas do sumo decertas folhas no olho e banhos) para sonhar mais e para lembrar-se dos sonhos; ou pode pegar o caminho da mata,enfeitar-se com envira ou brotos de murmuru (pani xanku) e folhas cheirosas, cantar, assobiar para chamar os yuxin.

    O gosto das coisas tambm fornece informaes sobre a qualidade yuxin das coisas. H coisas que s yuxin ou animal

    come: husu, borboleta da noite que chupa sangue, uma das comidas preferidas; mai xena, minhoca, tambm. Mas

    homem tem horror a comer isto. A pessoa em transe, sob o efeito dos yuxin, come folhas como se fosse comida.

    Outra caracterstica relacionada ao gosto, que o homem no come nada cru: no mximo um fruto da floresta, ou no

  • caso de crianas, uma banana madura quando no agentam a fome at a hora da refeio. Tambm excepcionaltomar gua. Os yuxin, pelo contrrio, caracterizam-se pelo hbito de comerem coisas cruas e especialmente pela sedede sangue cru: todos os animais e insetos que chupam sangue so yuxin.

    O jovem xam ao ser iniciado deve seguir os caminhos indicados por cheiros, sons e imagens que levam ao contatocom os yuxin. preciso ter o corao forte, seno morre, pois a morte conseqncia do colapso do corao commedo. O colapso na iniciao (morte ou loucura) pode ocorrer devido incapacidade do iniciado/chamado/vtima defazer a ponte entre os dois lados da realidade.

    No perodo que comea com o primeiro assalto dos yuxin e termina quando o muka est maduro, o xam iniciante

    mostrar sinais de fraqueza, mas esta fase liminar necessria para o processo de aprendizagem com os yuxin. Oaprendiz est desinteressado das obrigaes sociais e dos processos corporais, porque sua mente est voltada para omundo espiritual. Ele fica a maior parte do tempo deitado na rede, ou caminha aleatoriamente na mata. Estessintomas, no entanto, no so interpretados como doena.

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