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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS JOSÉ RENATO GAZIERO CELLA VALÉRIA RIBAS DO NASCIMENTO AIRES JOSE ROVER

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS

JOSÉ RENATO GAZIERO CELLA

VALÉRIA RIBAS DO NASCIMENTO

AIRES JOSE ROVER

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Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Diretoria – Conpedi Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UFRN Vice-presidente Sul - Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo -Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie

Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente - Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias Diretor de Informática - Prof. Dr. Aires José Rover – UFSC Diretor de Relações com a Graduação - Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs – UFU Diretor de Relações Internacionais - Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC Diretora de Apoio Institucional - Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC Diretor de Educação Jurídica - Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM Diretoras de Eventos - Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen – UFES e Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA Diretor de Apoio Interinstitucional - Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira – UNINOVE

D598

Direito e novas tecnologias [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;

Coordenadores: José Renato Gaziero Cella, Aires Jose Rover, Valéria Ribas Do Nascimento –

Florianópolis: CONPEDI, 2015.

Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-054-1

Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações

Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de

desenvolvimento do Milênio.

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Tecnologia. I. Encontro

Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).

CDU: 34

Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS

Apresentação

APRESENTAÇÃO

No XXIV Encontro Nacional do CONPEDI, realizado na Universidade Federal de Sergipe -

UFS, em Aracaju, de 03 a 06 de junho de 2015, o grupo de trabalho Direito e Novas

Tecnologias novamente esteve presente com destaque pela qualidade dos trabalhos

apresentados e pelo numeroso público, composto por pesquisadores-expositores e

interessados. Esse fato demonstra a inquietude que o tema desperta na seara jurídica, em

especial nos programas de pós-graduação em Direito que procuram empreender um diálogo

que suscita a interdisciplinaridade na pesquisa e se propõe a enfrentar os desafios que as

novas tecnologias impõem ao Direito.

Foram apresentados 22 artigos que foram objeto de um intenso debate e agora fazem parte

desta coletânea. Numa tentativa de organizar quantitativa e qualitativamente os artigos e seus

temas, segue uma métrica:

Cinco artigos trataram da Internet, em diversos âmbitos.

Quatro artigos discutiram a proteção da privacidade e dos dados pessoais e corporais.

Quatro artigos foram sobre responsabilidade civil e capacidade na internet.

Dois artigos versaram sobre aspectos regulatórios das nanotecnologias.

Dois artigos sobre marco civil da internet.

Dois artigos trataram do processo eletrônico, com enfoque de questões como inclusão, acesso

à justiça e nova cultura.

Dois artigos discutiram redes sociais em temas como a violação de direitos e bloqueio de

conteúdos ilícitos.

Dois artigos foram sobre o mercado de trabalho, tratando do pleno emprego e do

analfabetismo digital.

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Dois artigos versaram sobre a democracia eletrônica, envolvendo temas como o voto

eletrônico e a democracia direta.

Um artigo sobre inovação e regulação tecnocientífica.

Um artigo sobre o direito de autor e plágio em software.

Um artigo sobre a tutela da honra no âmbito da internet.

Um artigo sobre rádio/tv na sociedade da informação.

Nota-se nessa classificação que o tema tecnológico mais tratado é a internet, mas se discute

também redes sociais, nanotecnologias, urnas eletrônicas, software e tv/rádio. Dos temas

jurídicos a privacidade e a responsabilidade civil são numericamente majoritários. Processo

eletrônico, democracia digital e mercado de trabalho estão em seguida. Com únicos artigos

seguem temas diversos, mas em pouco número considerando o total de artigos. Observa-se,

portanto, algumas temáticas se tornando focais nessa edição e mantendo o interesse que vem

das edições anteriores dessa coletânea.

Enfim, os artigos que ora são apresentados ao público têm a finalidade de fomentar a

pesquisa e fortalecer o diálogo interdisciplinar em torno do tema direito e novas tecnologias.

Trazem consigo, ainda, a expectativa de contribuir para os avanços do estudo desse tema no

âmbito da pós-graduação em Direito brasileira, apresentando respostas para uma realidade

que se mostra em constante transformação.

Os Coordenadores

Prof. Dr. Aires José Rover

Prof. Dr. José Renato Gaziero Cella

Profa. Dra. Valéria Ribas do Nascimento

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IROUSSEAU: AS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E A PLAUSIBILIDADE CONTEMPORÂNEA DA CONCRETIZAÇÃO DOS

POSTULADOS DA DEMOCRACIA DIRETA.

IROUSSEAU: INFORMATION AND COMMUNICATION TECNOLOGIES AND THE PLAUSIBILITY OF DIRECT DEMOCRACY NOWADAYS.

João Victor Rozatti LonghiRubens Beçak

Resumo

As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) alteraram o cotidiano de maneira

profunda e seus efeitos podem também ser sentidos nos plano jurídico e político. Seus

desdobramentos, contudo, são alvo de críticas ao mesmo passo que trazem esperanças em

uma sociedade mais justa e democrática. Este trabalho busca regatar algumas lições de de

Jean-Jacques Rousseau, averiguando a aplicabilidade de seus conceitos neste momento

amplamente dominado pelas TICs. Após expor algumas noções basilares na doutrina

rousseauniana, dissertar-se-á acerca da teoria da democracia participativa à luz da obra de

Carole Pateman bem como da noção de parlamento virtual em Pierre Levy para, finalmente,

apreciar a realidade sobre uma perspectiva crítica especialmente à luz dos que denunciam

que a estrutura da Internet contemporânea traz mais riscos aos postulados democráticos do

que a possibilidade de promoção de um modelo mais participativo e consequentemente

próximo do direto.

Palavras-chave: Democracia; internet; rousseau; participação

Abstract/Resumen/Résumé

Information and Communication Technologies (ICTs) have deeply changed our lives and its

effects may also be felt in the legal and political plan. Its developments, however, are target

of criticisms at the same time that bring hopes for a fairer and more democratic society. This

work seeks to rescue some lessons from Jean-Jacques Rousseau, checking the applicability of

their concepts into an social environment widely dominated by ICTs. After exposing some

basic notions of rousseanian political theory, it will focus on the Carole Patemans theory of

participatory democracy and also the Pierre Levys notion of Virtual Parliament to finally

study the critics of the structure of contemporary Internet, measuring how it can bring more

risks to democratic postulates than the possibility of promoting a more participative model.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Democracy; internet; rousseau; participation

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Introdução

O largo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) tem transformado

significativamente vários setores de nossa realidade. Com efeito, no plano jurídico e político

não é diferente. Ao passo que diversas vozes preconizam os potenciais da tecnologia para a

promoção de valores democráticos, críticos advertem riscos advindos desta realidade. Seja por

parte da Teoria do Estado, Ciência Política, Direito Constitucional, etc. seja por intermédio

daqueles que se debruçam sob o fenômeno sob o prisma específico da Tecnologia, partindo

desta análise para averiguar as intersecções com o fenômeno jurídico, o chamado Direito

Eletrônico.

Este trabalho tem por objeto inicial realizar um breve resgate da obra de Jean-Jacques

Rousseau em suas lições sobre soberania popular e representação política, verificando a

plausibilidade de sua aplicação no plano teórico de suas lições acerca da democracia direta no

ambiente contemporâneo largamente dominado pelas TICs.

Primeiramente, visa descrever em linhas gerais a visão rousseauniana sobre a

democracia direta, passando por conceitos como soberania popular, princípio democrático,

representação política, poderes constituídos, etc.

Em um segundo momento, a análise se delimita para uma das possíveis leituras e

transposições próximas da contemporaneidade que materializa muitos de conceitos através da

proposta do modelo democrático participativo na obra de Carole Pateman.

Posteriormente, o enfoque é o da análise do fenômeno pela ótica dos potenciais e

riscos da tecnologia. Primeiramente, a visão tida por otimista de Pierre Levy através do

conceito de parlamento virtual como um dos corolários de sua ciberdemocracia. O futuro

trará a democracia direta? Eis o subproblema que Levy procura enfrentar.

Por derradeiro, a última parte procura analisar o tema sob uma perspectiva crítica.

Afinal, entre a utopia rousseauniana e a realidade hodierna há um grande caminho a ser

percorrido, devendo ser necessário mensurando riscos atuais da Internet como entrave à

consagração dos postulados democráticos, eventualmente ameaçando inclusive as conquistas

modernas que delimitam os sistemas democráticos representativos contemporâneos.

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1. Linhas gerais da visão rousseauniana sobre a democracia direta: entre exercício e

titularidade do poder soberano.

O primeiro escopo deste excerto é o de analisar algumas passagens da obra de Jean-

Jacques Rousseau de modo a destacar sua peculiar visão acerca do papel do povo na estrutura

política do Estado.

Preliminarmente, salienta-se que por ser genebrino, sua biografia pessoal é apontada

como uns dos pontos que marcam sua visão de mundo, influenciando em sua teoria

democrática.1 Entretanto, é sabido que no território onde se situa Genebra, dentre outros,

funcionavam as chamadas repúblicas, em um formato de cidades-Estado. Entretanto, até o

presente momento histórico, alguns cantões do que hoje corresponde à Federação Suíça

(Glarus, Unterwalden, etc.) representam uma exceção à práxis política representativa

ocidental contemporânea, haja vista que suas características demográficas, geográficas,

culturais, etc. facilitam o recurso constante a mecanismos de participação direta na

legislatura.2

Fato que não desmerece nem diminui a importância teoria rousseauniana. Afinal, em

sua intersecção com a Teoria do Estado e da Constituição, dentre outros aspectos, o autor traz

como premissa a legitimidade do Direito quando fundado na vontade geral.3

Em uma das passagens marcantes do Contrato Social, narra que o Direito vem das

convenções, o que não pode lhe tirar o caráter de “sagrado”.4 Porém, ainda que nem sempre se

__________________________________________________________________________ 1 Genebrino, Rousseau em várias passagens parece ter em mente sua terra natal como palco de suas reflexões. É o que se extrai de uma das primeiras passagens da obra, em que transparece certa homenagem à sua terra natal. “Nascido cidadão de um Estado Livre [Genebra] e membro do soberano, por frágil que seja a influência de minha voz nos negócios públicos, basta-me o direito de votar para me impor o dever de me instruir no tocante a isso: feliz, todas as vezes que medito sobre os governos, de achar sempre, em minhas pesquisas, novas razões para amar o de meu país.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Antônio de Pádua Danese. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 7. 2 Alguns cantões suíços são um exemplo de democracia direta praticada até os dias de hoje. Explica Dalmo de Abreu Dallari que a assembleia cantonal se reúne anualmente, quando ordinária, podendo haver convocações extraordinárias, devendo ser convocada ora pelo gabinete ora por qualquer cidadão (em alguns cantões). Entretanto, sobre eventual reprodução do modelo suíço para outros locais do mundo, assevera: “Mas para isso será necessário superar as resistências dos políticos profissionais, que preferem manter o povo dependente de representantes.” DALLARI, Dalmo de Abreu. Teoria Geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 153. 3 A ideia de vontade geral, segundo o autor, justifica inclusive a imposição de sanção contra a vontade daquele que praticou o ilícito, uma vez que houve consentimento quando da elaboração da norma: “O cidadão consente todas as leis, mesmo as que são aprovadas sem o seu consentimento, inclusive as pelas quais o punem quando ele ousa infringi-las. A vontade constante de todos os membros do Estado constitui a vontade geral; devido a ela é que se tornam eles cidadãos e livres.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 55. 4 “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros. De tal modo acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo que eles. Como é feita essa mudança? Ignoro-o. Que é que a torna legítima? Creio poder resolver esta questão. Se eu considerasse tão somente a força e o efeito que dela deriva, diria: Enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão logo ele possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a liberdade graças ao mesmo direito com o qual lha arrebataram, ou este

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imponha com a legitimidade necessária,5 conclui que se o soberano não for o povo, o Direito

nunca será absoluto.6

Eis a alma do contrato social: a ideia de que o indivíduo só é realmente livre quando se

sente parte de uma comunidade, de um corpo social. Este corpo tem para Rousseau unidade,

entretanto, apenas se na comunidade estiver presente também a igualdade política.7 Sobre os

elementos que compõem uma sociedade verdadeiramente democrática para Rousseau, Joshua

Cohen:

Em suma, a solução de Rousseau para o problema fundamental [da desigualdade] é seu ideal de uma comunidade livre de iguais: livre, porque assegura a autonomia política total de cada membro; comunidade, porque ela é organizada em torno de uma compreensão partilhada do e suprema lealdade para o bem comum; e uma comunidade de iguais — uma sociedade democrática — porque o conteúdo desse entendimento reflete o bem de cada membro.8

lhe serve de base para retomá-la ou não se prestava em absoluto para subtraí-la. Mas a ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros. Esse direito, todavia, não vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre convenções.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 13. 5 “Mesmo se eu conciliasse tudo o que refutei até aqui, os favorecedores do despotismo não estariam, a este respeito, mais avançados. Sempre haverá grande diferença entre submeter uma multidão e reger uma sociedade. No fato de homens esparsos serem sucessivamente subjugados a um único, independente do número que constituam, não vejo nisto senão um senhor e escravos, e não um povo e seu chefe; é, se se quiser, um ajuntamento, mas de modo algum uma associação; não há nisto nem bem público, nem corpo político. Tal homem, tenha embora escravizado a metade do mundo, não deixa de ser sempre um particular; seu interesse, separado do interesse dos outros, não é senão um interesse privado. Se esse mesmo homem vier a perecer, seu império, após si, ficará disperso e desligado, como um carvalho que se desfaz e tomba reduzido a um montão de cinzas, depois de consumido pelo fogo.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 14. 6 “Contudo, o corpo político ou o soberano, extraindo sua existência cinicamente da pureza do contrato, não pode jamais obrigar-se, mesmo para com outrem, a nada que derrogue esse ato primitivo, como alienar qualquer porção de si mesmo, ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria aniquilar-se, e o que nada é nada produz. Tão logo se encontre a multidão reunida num corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, menos ainda ofender o corpo sem que os membros disso se ressintam. Assim, o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem de forma recíproca, e os próprios homens devem procurar reunir sob essa dupla relação todas as vantagens que disso dependem. Ora, sendo formado o soberano tão-só dos particulares que o compõem, não há nem pode haver interesse contrário ao deles; por conseguinte, não necessita a autoridade soberana de fiador para com os vassalos, por ser impossível queira o corpo prejudicar todos os membros, e por, como logo veremos, não lhe ser possível prejudicar nenhum em particular.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 15. 7 “Terminarei este capítulo e este livro por uma observação que deve servir de base a todo o sistema social: é que o pacto fundamental, ao invés de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade física que a Natureza pode pôr entre os homens, fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais por convenção e por direito.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 17. Em outro trecho do contrato social, a ideia de que a igualdade é um pressuposto da liberdade se torna mais clara: “Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.” Id. p. 30. 8 “In short, Rousseau’s solution to the fundamental problem is his ideal of a free community of equals: free, because it ensures the full political autonomy of each member; a community, because it is organized around a shared understanding of and supreme allegiance to the common good; and a community of equals—a

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Mas, para além da filosofia política e dos ideais carreados por Rousseau, sua obra

contem conceitos que posteriormente foram objeto de transposição para o plano normativo. O

primeiro deles diz respeito ao que hoje se denomina princípio da Soberania Popular.9 O que

pode ser sentido na proclamação de que todo poder emana do Povo (art. 1º, caput, CRFB)

nem sempre fora adotado de forma pacífica ao longo da história do constitucionalismo

moderno.

Como leciona Maurice Duverger, é marcante a diferença entre as duas teorias da

soberania dos cidadãos que embasam o sistema político constitucional francês (e por sua clara

influência, também o brasileiro), quais sejam a da soberania popular e soberania nacional.10

A primeira, fruto do desenvolvimento teórico refletido na obra rousseauniana, justifica

a titularidade do poder pelo povo e, como o cidadão não pode exercer individualmente sua

parcela no poder, elege representantes com mandato imperativo.11 Por seu turno, a segunda é

fruto da desconfiança dos “revolucionários moderados” da revolução francesa quanto ao

democratic society—because the content of that understanding reflects the good of each member.” COHEN, Joshua. Rousseau: a free community of equals. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 16. 9 “Vê-se por aí que o poder soberano, todo absoluto, todo sagrado, todo inviolável que é, não passa nem pode passar além dos limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente da parte de seus bens e da liberdade que lhe foi deixada por essas convenções; de sorte que o soberano jamais possui o direito de sobrecarregar um vassalo mais que outro, porque então, tornando-se o negócio particular, deixa o seu poder de ser competente.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 23. 10 Cf. DUVERGER, Maurice. Le système politique français : droit constitutionnel et système politique. Paris: Presses Universitaire de France, 1990. p. 193. 11 “A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade de modo algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 49. Eis a razão para a defesa dos referendos por Rousseau, que posteriormente se revelará em sua fala.

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sufrágio universal já que a massa era analfabeta.12 Daí porque se atribuir a soberania à França

e não ao francês, tendo por consequência a restrição do sufrágio.13

Outro ponto a que se dá destaque na teoria rousseauniana diz respeito ao papel da lei

na estrutura do Estado.14 A noção de respeito aos Poderes constituídos é carreada pela

__________________________________________________________________________ 12 Nesse sentido, Bonavides, quem afirma que na revolução francesa a Constituinte se utilizou da fala rousseauniana de “Considerações sobre o Governo da Polônia”, bem mais flexível do que aquela esboçada no Contrato Social, onde Rousseau não vê a possibilidade de se misturarem a função de soberano [povo] a da Constituinte. O que, naturalmente, faria da Constituição algo imutável já que fruto da vontade geral (uma falsa premissa a seu ver). Ao final, afirma que tende a prevalecer a ideia adotada nos Estados Unidos da América, que segrega a função de constituinte originário com a de legislador: “Na história constitucional tem-se feito menção também de um poder constituinte vinculado à doutrina da soberania popular, contraposto à doutrina já expendida doutro poder constituinte, a saber, aquele preso à doutrina da soberania nacional. A doutrina da soberania popular abrange contudo duas versões diferentes de poder constituinte: a versão francesa (revolucionária) e a versão americana; ambas, igualmente, de inspiração rousseauniana, mas de consequências distintas, senão até certo ponto opostas, conforme intentaremos demonstrar [...]. Em suma, de acordo com a doutrina da soberania popular, há duas alternativas teóricas, seguidas historicamente: a francesa, Segundo a qual a Constituinte é o povo (concepção falsa, visto que a soberania é de natureza indelegável), e a Americana, que vê na Constituinte ou Convenção apenas uma assembleia limitada cujo trabalho se legitima unicamente com a aprovação do povo.” BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 155-157. 13 Ainda segundo Duverger, a conciliação entre ambas veio meio século depois, desdobrando-se na ideia de representação da nação ao parlamento e de soberania popular aos mecanismos jurídicos de limitação do poder parlamentar como o “recall” americano e, já na na Va República, com o recurso ao referendo. Cf. DUVERGER, Maurice. Le système politique français (cit.). p. 193-194. Hodiernamente, é possível asseverar também que o princípio fundamente da soberania popular se revela na disciplina jurídica dos direitos políticos e os instrumentos constitucionalmente eleitos para estruturá-los normativamente. No que concerne à Constituição brasileira, afirma-se que o modelo democrático adotado é o da democracia semidireta ou semi-representativa com base no disposto no art. 14 e incisos. Porém, a soberania popular é exercida através de sufrágio universal; voto universal, secreto, periódico e igualitário e; os instrumentos da iniciativa popular, referendo e plebiscito. Conforme já dito anteriormente, o recuso aos meios de participação direta é tão diminuto na história recente do Brasil que é possível questionar até que ponto se trata de uma democracia semidireta ou participativa e não de um regime tipicamente representativo. O que se pode afirmar com clareza é que desde a redemocratização, o ponto marcante vem sendo a realização de eleições periódicas para Executivo e Legislativo. Id. p. 194. 14 Há quem considere ser a teoria de Rousseau uma das bases teóricas para o contemporâneo conceito de Estado Democrático de Direito (art. 1º, CRFB/88). Mas a ligação entre o papel da lei e o que hoje se compreende por Estado democrático passa por um logo caminho histórico. José Afonso da Silva sintetiza esse processo histórico ao dissertar sobre a opção constitucional brasileira: “A Democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da Democracia Liberal. O Conceito de Estado de Direito é tão histórico como o de Democracia, e se enriquece de conteúdo com o evolver dos tempos. A evolução histórica e a superação do liberalismo, a que se vinculou o conceito de Estado de Direito, colocam em debate a questão da sua sintonia com a sociedade democrática. O reconhecimento de sua insuficiência gerou o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega-se agora ao Estado-Democrático-de-Direito, que a Constituição acolhe no art. 1o como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de Estado-de-Direito-Democrático da Constituição da República Portuguesa (art. 2o) e o de Estado Social e Democrático de Direito da Constituição espanhola (art. 1o). O Estado Democrático de Direito concilia Estado Democrático e Estado de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos desses dois tipos de Estado. Revela, em verdade, um conceito novo, que incorpora os princípios daqueles dois conceitos mas os supera, na medida em que agrega um componente revolucionário de transformação do status quo. Para compreendê-lo, no entanto, teremos que passar em revista a evolução e características de seus componentes, para, no final, chegarmos ao conceito-síntese e seu real significado.” SILVA, José Afonso da. O Estado democrático de direito. in BARROSO, Luis Roberto; CLÈVE, Clemerson Merlin. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. V. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thompson Reuters, 2011. p. 972. No que concerne ao papel da lei no Estado brasileiro hodierno, dentre os princípios que elenca, José Afonso da destaque à necessidade de promoção da igualdade formal, de inserção no social como forma de cumprir o mandamento constitucional de redução das desigualdades. A doutrina portuguesa, dissertando sobre o assunto, distingue o

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justificativa de que somente a partir da lei é que o pacto social pode ser operacionalizado,

continuado.15 Em seus termos, eis o que dá legitimidade à República: “Eu chamo, pois,

república todo Estado regido por leis, independente da forma de administração que possa ter;

porque então somente o interesse público governa, e a coisa pública algo representa. Todo

governo legítimo é republicano.”16

Ademais, muitos veem nas falas de Rousseau o fundamento do que

contemporaneamente se considera como princípio democrático. Entretanto, em sua visão, a

democracia ganha formato significantemente diverso do que é dado pelos percussores da

representação política. Não que Rousseau pareça crer ser desnecessária a presença de um

legislador,17 mas o que chama de governo se trata de “um novo corpo no Estado, distinto do

Estado de Direito formal, de índole liberal, e o Estado de Direito material, de índole social, procurando conciliar parte dos dois mundos através de um programa constitucional. Nesse sentido, Canotilho: “Tem sido discutida a questão de saber se a superação do Estado de direito formal se faz através da substituição do Estado de direito liberal burguês por um Estado social ou se a solução está num revigoramento da ideia de Estado de direito material. Colocando a tónica nesta última direção, o Estado de direito, materialmente caracterizado, encontra-se vinculado a princípios jurídicos fundamentais ou mesmo a valores. Por isso mesmo, o cerne do Estado de direito não está tanto na consagração das garantias individuais (embora isso também se considere primariamente relevante), mas na criação de uma ordem jurídica materialmente justa (Gerechtigkeitstaat). Esta é a orientação de uma significativa parte da doutrina. Está fora de dúvida que o Estado de direito não se compadece hoje com a igualdade Estado de direito-Estado legal ou com uma simples “legalidade aperfeiçoada”. O Estado de direito material é “um Estado cujo fim é a criação e manutenção de uma situação jurídica materialmente justa.” Pergunta-se, porém, se a superação do Estado de direito formal por um Estado de direito material mediante o apelo abstrato a “valores fundamentais”, a uma “ordem de valores”, a “princípios jurídicos fundamentais”, não conterá, por um lado, uma medida material reconduzível a princípios fora da constituição, e, por outro lado, se a fuga para os princípios da justiça não esconde a impotência de sua operatividade prática. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. Coimbra: Almedina, 1993. p. 390-391. Portanto, obviamente que o ideal de igualdade política de Rousseau não traz consigo toda a carga semântica historicamente construída que constitui os fundamentos constitucionais do Estado democrático de direito, ainda que possa ser utilizada para uma releitura do princípio democrático, provendo-lhe de uma dinâmica mais participativa. 15 “Pelo pacto social demos existência ao corpo político; trata-se agora de lhe dar o movimento e a vontade por meio da legislação. Porque o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une não determina ainda o que ele deve fazer para se conservar.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 23. 16 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 24. 17 “As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o autor das mesmas; compete unicamente aos que se associam regulamentar as condições de sociedade; mas de que maneira as regulamentarão? Fá-lo-ão de comum acordo, como que por uma inspiração sublime? Possui o corpo político um órgão qualquer para enunciar-lhe as vontades? Quem lhe dará a previsão necessária para formar e publicar os atos antecipadamente, ou como os pronunciará no momento de necessidade? De que maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convém, executará por si mesma um empreendimento de tal importância e tão difícil como um sistema de legislação? O povo, de si mesmo, sempre deseja o bem; mas nem sempre o vê, de si mesmo. A vontade geral é sempre reta; mas o julgamento que a dirige nem sempre é esclarecido. É necessário fazer-lhe ver os objetos tais como são, e muitas vezes tais como devem parecer-lhe; é preciso mostrar-lhe o bom caminho que procura, protegê-la da sedução das vontades particulares, aproximar de seus olhos os lugares e os tempos, equilibrar o encanto das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males afastados e ocultos. Os particulares vêem o bem que rejeitam, o público deseja o bem que não vê. Todos igualmente necessitam de guias; é preciso obrigar uns a conformar suas vontades com sua razão; é necessário ensinar outrem a conhecer o que pretende. Então, das luzes públicas resulta a união do entendimento e da vontade no corpo social; dá o exato concurso das partes e, finalmente, a maior força do todo. Eis de onde nasce a necessidade de um legislador.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 23-24.

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povo e do soberano, e intermediário entre um e outro.”18 Governo este que, em um plano ideal,

deve se sujeitar à vontade geral,19 a ser extraída através sempre da consulta popular com base

na regra majoritária.20

A democracia em Rousseau, contudo, não parece ser algo pronto, mas um fim a ser

concretizado dia a dia. “Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente.

Tão perfeito governo não convém aos homens.”21 Além disso, destaca o autor que não seriam

todos os Estados que estariam prontos, adaptados à democracia. Estados diferentes e a mais

adequada forma de governo, mas apenas os “pequenos e pobres”.22

Portanto, a Democracia a que alude Rousseau, conforme dito, não parece ser a

representativa, mas sim a democracia direta. O governo em sua visão não é aquele exercido

por um representante eleito, mas um governo de cidadãos ativos que dele fazem parte. Esta

linha de argumentação dá força à ideia da participação direta e contínua do cidadão como

meio de concretização do princípio democrático.23 Em famosa passagem, concluiu:

São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso que faz da

__________________________________________________________________________ 18 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 34. 19 “Numa legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula; a vontade do corpo, própria ao governo, bastante subordinada; e, por conseguinte, a vontade geral ou soberana sempre dominante é a regra única de todas as outras.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 31. 20 “Quando uma lei é proposta na assembleia do povo, o que se lhe pergunta não é precisamente se todos aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas sim se está ou não conforme à vontade geral, que é a deles. Cada qual, dando o seu voto, profere seu parecer, e do cálculo dos votos extrai-se a declaração da vontade geral. Portanto, quando vence a opinião contrária à minha, tal coisa apenas prova que eu me enganei, e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não o era. Se o meu particular modo de ver prevalecesse, eu teria feito o que não desejava, e então eu não teria sido livre.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 51 21 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (cit.). p. 33. Convém, aqui, no sentido de caber, encaixar-se e não no sentido de ser conveniente. Continua Rousseau: “Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão freqüente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium [prefiro a liberdade perigosa à escravidão pacífica].” Id. p. 37-38. 22 Esta fala é a que leva muitos a concluírem que Rousseau afirma que a verdadeira democracia em sua teoria, a democracia direta, somente seria possível em países de pouca população, como sua Genebra. “Infere-se daí que quanto mais aumenta a distância entre o povo e o governo, mais se tornam onerosos os tributos. Assim sendo, na democracia, o povo é o menos sobrecarregado; na aristocracia, ele o é um pouco mais; na monarquia, carrega o maior peso. A monarquia, portanto, só convém às nações opulentas; a aristocracia, aos Estados medíocres em riqueza, bem como em tamanho; a democracia, aos Estados pequenos e pobres.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social (cit.). p. 42. 23 “Não dispondo de outra força senão o poder legislativo, o soberano só atua pelas leis; e, não sendo as leis mais que atos autênticos da vontade geral, não poderia o soberano agir senão quando o povo se encontra reunido. O povo reunido, dir-se-á: que quimera! Hoje é uma quimera, mas não o era há dois mil anos. Terão os homens mudado de natureza?” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 47.

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liberdade, nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la.24

Razão pela qual o autor atribui caráter fundamental ao direito do cidadão de deliberar

ou votar. Em última análise, de participar do governo e de suas leis.25 O que leva muitos a

extraírem de sua obra ideia de que Rousseau é um defensor da democracia direta, ainda que

não em todas as ocasiões e todos os Estados. Mas, àqueles em que seria impossível mantê-la

por conta do tamanho, a solução seria o mandato imperativo.26

2. Um resgate contemporâneo de Rousseau: a democracia participativa em Carole

Pateman

A democracia direta, entretanto, não se impôs como regra nos sistemas de governos

democráticos contemporâneos. Ao revés, à medida que o ideal de igualdade política

rousseauniano pareça cada dia mais longe para muitos27, a democracia representativa é que

constitui a maioria dos modelos hoje vigentes.28

__________________________________________________________________________ 24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 45. 25 “Eu teria nesta altura muitas reflexões a fazer sobre o simples direito de votar em todo ato de soberania, direito que ninguém pode subtrair ao cidadão, e sobre o direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo, com grande cuidado, sempre procura reservar apenas a seus membros; mas esta importante matéria demandaria um tratado à parte, e eu neste não posso dizer tudo.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social (cit.). p. 54. 26 Nesse sentido, Joshua Cohen, quem menciona a visão de Rousseau na análise da reforma constitucional da Polônia, em que não descarta a possibilidade de recurso à representação, desde que restrito a grandes espaços territoriais e contingentes populacionais. “Direct Democracy. Among the laws is a specification of the nature of and conditions for the exercise of legislative power: that is, a ‘constitutional’ law defining the legitimate exercise of lawmaking power. In particular, the laws must be made in a legislative assembly open to all citizens (Social Contract 3.12 – 15, 18), or by representatives to a legislative assembly who are elected, subject to frequent review, and given specific and binding instructions by citizen assemblies. This second alternative—especially prominent in the discussion of constitutional reform in Poland—is a strategy suited to large states, where ‘the legislative power cannot show itself as such, and can only act by delegation’ (P 200–1). To avoid the ‘corruption’ that characteristically (as in the English Parliament) flows from such delegation of lawmaking, and turns ‘‘the organ of freedom [the legislature] into the organ of servitude,’’ the remedies include frequent meetings of the legislature with regular elections aimed at increasing the rate of turnover (the idea, in the spirit of term limits, is that ‘often changing representatives makes it more costly and more difficult to seduce them,’ P 201), and insisting that ‘representatives . . . adhere exactly to their instructions, and . . . render a strict account of their conduct in the Diet to their constituents’ (P 201).” COHEN, Joshua. Rousseau (cit.). p. 136. 27 É o caso de Robert A. Dahl, que vê o ideal de igualdade política proposto por Rousseau distanciar-se dia após dia na contemporaneidade: “If a unit is small in numbers and area, the political institutions of assembly democracy could readily be seen as fulfilling the requirements for a ‘‘government by the people.’’ The citizens would be free to learn as much as they could about the proposals that are to come before them. They could discuss policies and proposals with their fellow citizens, seek out information from members they regard as better informed, and consult written or other sources. They could meet at a convenient place— Pnyx Hill in Athens, the Forum in Rome, the Palazzo Ducale in Venice, the town hall in a New England village. There, under the guidance of a neutral moderator, within reasonable time limits they could discuss, debate, amend, propose. Finally, they could cast their votes, all votes being counted equal, with the votes of a majority prevailing. It is easy to see, then, why assembly democracy is sometimes thought to be much closer to the ideal than a

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O que não significa que propostas que visam ultrapassar as mazelas já apontadas

séculos atrás por Rousseau não surjam dia após dia. É o caso da democracia participativa,

recorrente como forma de releitura do princípio democrático, ressalta-se a necessidade de

ampliação dos espaços de decisão coletiva na vida cotidiana dos cidadãos.

Partindo da insuficiência da participação apenas em período eleitoral, julga-se mister

que as pessoas comuns estejam presentes na gestão de sociedades empresárias, escolas, e

outros agrupamentos sociais, fazendo com que a participação democrática seja parte do dia-a-

dia. Logo, não se trata de um retorno imediato à democracia direta, mas da combinação dos

mecanismos representativos com a participação popular na base. 29-30

E um dos nomes mais recorrentes nos estudos acerca do tema é o de Carole Pateman,31

por sua obra Participation and Democratic Theory, de 1.970.32 Inicialmente, a autora centra

suas críticas nas teorias elitistas de Schumpeter, Dahl e Sartori.

Sobre Schumpeter, sublinha a passividade do eleitor em sua visão acerca do processo

democrático, pelo qual se conclui, em linhas gerais, ser o eleitor apenas o veículo para investir

representative system could possibly be, and why the most ardent advocates of assembly democracy sometimes insist, like Rousseau in the Social Contract, that the term representative democracy is self-contradictory. Yet views like these have failed to win many converts.” DAHL, Robert A. On political equality. New Heaven: Yale University Press, 2006. p. 11. 28 É o que preconiza Bernard Manin, apontado como um dos cânones contemporâneos da democracia representativa: “Contemporary democratic governments have evolved from a political system that was conceived by its founders as opposed to democracy. Current usage distinguishes between "representative" and "direct" democracy, making them varieties of one type of government. However, what today we call representative democracy has its origins in a system of institutions (established in the wake of the English, American, and French revolutions) that was in no way initially perceived as a form of democracy or of government by the people. Rousseau condemned political representation in peremptory terms that have remained famous. He portrayed the English government of the eighteenth century as a form of slavery punctuated by moments of liberty. Rousseau saw an immense gulf between a free people making its own laws and a people electing representatives to make laws for it. However, we must remember that the adherents of representation, even if they made the opposite choice from Rousseau, saw a fundamental difference between democracy and the system they defended, a system they called ‘representative’ or ‘republican’." MANIN, Bernard. The principles of representative government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 1. Os que preconizaram e concretizaram o sistema representativo naquele momento histórico, Segundo o autor foram Montesquieu e Seyès. Os quarto princípios que estruturam a democracia representativa desde então são: “1. Those who govern are appointed by election at regular intervals; 2. The decision-making of those who govern retains a degree of independence from the wishes of the electorate; 3. Those who are governed may give expression to their opinions and political wishes without these being subject to the control of those who govern; 4. Public decisions undergo the trial of debate.” Idem. p. 6. 29 MIGUEL, Luis Felipe. Teoria democrática atual: (cit.). p. 4-5. 30 No Brasil, cita-se como desdobramento bem sucedido “orçamento participativo”. AVRITZER, Leonardo. New public spheres in Brazil: local democracy and deliberative politics. in DIREITO GV Especial 1 p. 055-074 2005. Apreciando o pioneirismo da experiência em Porto Alegre-RS sob a ótica do direito administrativo, ZUGNO, Ricardo. Espaços públicos compartilhados entre a administração e a sociedade. Renovar, 2003. p. 102 e ss. 31 Outro nome sempre recorrente é o de Crawford Brought Macpherson (C. B. Macpherson). Cf. MACPHERSON, C. B. The life and times of liberal democracies. Oxford: Oxford University Press, 1977. passim. 32 No Brasil, traduzida no início da década de 1990. PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. passim.

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as elites políticas no poder. A democracia, assim, estaria na possibilidade de as elites

competirem de forma equânime e se revezarem periodicamente em seu exercício.33 Após

passar por seus postulados que reduzem o papel dos cidadãos ao voto, conclui a autora: “Em

suma, a participação limitada e a apatia têm uma função positiva no conjunto do sistema ao

amortecer o choque de discordâncias dos ajustes e das mudanças.”34

Por seu turno, relata que Robert A. Dahl se distancia pouco de Schumpeter, embora

tenha tido o mérito de fixar os pré-requisitos sociais (de reforço, neutros e negativos) para a

configuração do que denomina “poliarquia”.35 Contudo, destaca que o autor critica o aumento

da participação popular como um risco à estabilidade do sistema democrático.36

Por derradeiro, salienta o receio de Sartori quanto aos riscos de a participação

democrática redundar em totalitarismo dado o despreparo dos cidadãos, 37 algo que o próprio

autor denomina de analfabetismo político.38

A partir de então, Pateman passa a descrever o que seria seu modelo de democracia

participativa. Seu marco teórico, denominado de “teoria clássica” da democracia participativa

remonta a Rousseau, dentre outros.39 Acerca, destaca a autora:

__________________________________________________________________________ 33 Isto porque Schumpeter procura desconstruir alguns ideais do regime democrático, especialmente aqueles que o descrevem como aquele que tem como meta atingir a vontade geral (nesse ponto, referindo-se a Rousseau). O povo em regra demonstra grande desinteresse com assuntos de interesse geral, reduzindo-se a um papel passivo no sistema político: votar e escolher a minoria que exercerá o poder. A democracia, portanto, resumir-se-ia a um ciclo de alternância desses grupos. Cf. MIGUEL, Luis Felipe. Teoria democrática (cit.). p. 9. Nas palavras de Schumpeter: “Assumimos agora a visão de que o papel do povo é produzir um governo, ou melhor, um corpo intermediário que, por sua vez, produzirá um governo ou um executivo nacionais. E definimos: o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população. Em outras palavras: assumimos agora a visão de que o papel do povo é produzir um governo, ou melhor, um corpo intermediário que, por sua vez, produzirá um governo ou um executivo nacionais. E definimos: o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e democracia. Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 336. 34 Analisadas conjuntamente com Berelson. Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 16. 35 Sabe-se que Dahl prefere o termo poliarquia para descrever os regimes democráticos contemporâneos, já que não há, em sua visão, uma elite que se mantém no poder, mas elites que se alternam (e devem se alternar) em sua disputa. Seus requisitos podem ser reduzidos esquematicamente: 1. Funcionários eleitos e investidos constitucionalmente; 2. eleições livres e justas; 3. Sufrágio inclusivo; 4. Direito de concorrer a cargos eletivos; 5. liberdade de expressão; 6. fontes de informação alternativa; 7. autonomia associativa. Cf. DAHL, Robert. A. A democracia e seus críticos. Trad. Patrícia de Freitas Ribeiro; rev. de trad. Aníbal Mari. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 360-361. 36 Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 20. 37 Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 21-22. 38 Para uma resposta do autor à crítica do que chama de “antielitistas”, V. SARTORI, Giovani. A teoria da democracia revisitada: 1. o debate contemporâneo. São Paulo: Editora Ática, 1994. p. 214 e ss. 39 Pateman passa também por John Stuart Mill e George Douglas Howard Cole (G. D. H. Cole). Na visão da autora, Mill salientava a necessidade de participação com papel educativo. Embora o autor não concordasse diretamente com a necessidade de igualdade como ponto de partida conforme destacara em Rousseau, o ponto alto de Mill segundo Pateman diz respeito ao dever de prestar contas que as elites políticas devem ter com as massas, interpretando tal passagem como a oportunidade de os trabalhadores responsabilizarem os seus representantes. Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 43 e ss. Por derradeiro, destaca a autora que Mill

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Toda a teoria política de Rousseau apoia-se na participação individual de cada cidadão no processo político de tomada de decisões, e, em sua teoria, a participação é bem mais do que um complemento protetor de uma série de arranjos institucionais: ela também provoca um efeito psicológico sobre os que participam, segurando urna inter-relação contínua entre o funcionamento das instituições e as qualidades e atitudes psicológicas dos indivíduos que interagem dentro delas.40

Após descrever brevemente a visão de Rousseau, afirmando que o seu sistema político

se baseia na busca de determinadas condições para o exercício de uma democracia diversa do

modelo posteriormente adotado (o representativo), destaca que o “governo das leis”, presente

no contrato social, é compreendido como a necessidade de respeito ao produto da

participatividade, ou seja, ao sistema político por eles concebido através da participação.

Além disso, outro ponto de destaque na leitura de Pateman sobre Rousseau diz respeito ao

binômio participação-controle. Se no governo das leis o homem é forçado a ser “livre”, isto

significa que a participação deve ser um norte a ser seguido.41-42

O exemplo mais emblemático de democracia participativa nas lições de Pateman é o

da autogestão nas indústrias, lembrando a autora da experiência na antiga Iugoslávia.43

Entretanto, o fato de que seus exemplos pareçam datados historicamente não retira a

importância de sua teoria, ainda que se possa asseverar que algumas de suas conclusões

estejam datadas historicamente. No caso da menção a Rousseau como um clássico no que

concerne à crítica ao modelo democrático representativo, dentre outros, Pateman chega a

conclusões semelhantes aos que hoje analisam a incidência da tecnologia como ferramenta

política.

Especialmente quanto à possibilidade do desenvolvimento de um modelo que

ultrapasse os limites da representação política em ambientes de menor concentração

enfatiza a participação política a nível local como melhor para promoção de seu papel educacional, lembrando que em suas últimas obras salienta que esse local pode ser inclusive a indústria. Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 51 e ss. A autora também analisa a obra de G. D. H. Cole. O autor britânico tem claras influências marxistas, especialmente na vasta obra acerca da autogestão dos trabalhadores na indústria. Cf. COLE, G. D. H. Self government in industry. London, Bells and Sons, 1920. Disponível em: https://ia902707.us.archive.org/27/items/selfgovernmentin00coleuoft/selfgovernmentin00coleuoft_bw.pdf. Acesso em: 22 mar. 2015. 40 PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 35. 41 Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 36-37. 42 Acerca de seu modelo de participatividade, sintetiza a autora: “Pode-se caracterizar o modelo participativo como aquele onde se exige o input máximo (a participação) e inclui não apenas as políticas (decisões) mas também o desenvolvimento das capacidades sociais e políticas de cada indivíduo de forma que existe um "feedback" do output para o input.” PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 62. 43 Cf. PATEMAN, Carole. Participação (cit.). p. 115.

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populacional. Ou, pelo menos, em ambientes onde os limites físicos para a manifestação da

vontade e canalização de um consenso (possível) possam ser superados. Eis onde as

esperanças na intersecção entre Tecnologias da Informação e Comunicação e democracia

tornam-se mais fortes.

3. O futuro trará a democracia direta? A ciberdemocracia de Pierre Levy e o conceito

de parlamento virtual.

Pierre Levy é um autor de grande influência sobre a transposição dos postulados

democráticos à realidade das tecnologias da informação e comunicação. Entretanto, tem como

um dos pilares de sua teoria que o papel da tecnologia não é a de um ator autônomo, separado

da sociedade e da cultura.44 Portanto, a grande peculiaridade salutar da Redes é algo a ser

extraído e cultivado a partir da qualidade das relações humanas ali travadas. É o que autor

denomina de inteligência coletiva45

Levy chama de “explosão da liberdade de expressão” o ambiente promovido pela

popularização da Internet, cujas redes dali advindas criam “um novo espaço de comunicação,

inclusivo, transparente e universal que é levado a renovar profundamente a vida pública no

sentido de maior liberdade e responsabilidade dos cidadãos.”46 O que “já suscitou novas

práticas públicas”, afirmando que foram ultrapassados inclusive limites territoriais e

geográficos do mundo físico. As “cidades e regiões digitais criam uma democracia local em

rede, mais participativa.47 Porém, com demandas e valores cada vez mais mundializados, mais

transnacionalizados.

Entretanto, ao contrário do que se pensa, o futuro da democracia preconizado pelo

autor não é de natureza direta. Ainda que não descarte a possibilidade de que seria possível a

existência de formas diretas de democracia em grande escala, assevera que a “democracia

eletrônica” (ou ciberdemocracia) “não se trata de fazer votar instantaneamente uma massa de

__________________________________________________________________________ 44 Cf. LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34,1999. pp. 21-22. 45 “Traço aqui a hipótese, em concordância com um número crescente de atores políticos, econômicos e artísticos, que as técnicas de comunicação contemporâneas poderiam modificar a antiquíssima distribuição de cargas antropológicas que condenavam as grandes coletividades e formas de organização políticas muito afastadas dos coletivos inteligentes. [...] O ideal de inteligência coletiva não é evidentemente difundir a ciência e as artes no conjunto da sociedade, desqualificando ao mesmo tempo outras formas de conhecimento ou de sensibilidade. É reconhecer que a diversidade tratada, vivida como “cultura”, [...] a chave da força econômica, política ou mesmo militar reside hoje precisamente na capacidade de produzir coletivos inteligentes.” LEVY, Pierre. O que é o virtual (cit.). p. 88. 46 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O futuro da Internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010. p. 34. 47 LEVY, Pierre; LEMOS, André. Cit. p. 33.

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pessoas separadas quanto a proposições simples [...], mas sim de incitar a colaboração

coletiva e contínua dos problemas e sua solução cooperativa, concreta, o mais próximo

possível dos grupos envolvidos.”48

Algo, portanto, muito mais próximo do modelo participativo do que do direto. A

última etapa de consecução da ciberdemocracia, marcando a passagem da esfera pública para

a inteligência coletiva, diz respeito à sua natureza planetária, parecendo ser a superação dos

limites territoriais a verdadeira fronteira a ser ultrapassada em futuro próximo.49

E neste ambiente de democracia representativa, porém planetária, Levy descreve o que

seriam as “ágoras” em formato de Parlamentos Virtuais. Tais institutos, funcionariam em

paralelo às instituições políticas investidas dos poderes constituídos, podendo eventualmente

os parlamentares do Parlamento oficial serem convidados a debater os temas com direito a

voto consultivo. 50A democracia participativa, portanto, funcionaria como complemento à

representativa e não o contrário.51

Ainda que as ideias de Levy possam parecer pouco plausíveis no ambiente

contemporâneo, certamente suas assertivas já foram menos factíveis no passado. Afinal, por

exemplo, transparência digital na Administração Pública ou processo judicial eletrônico são

uma realidade nos dias de hoje, inclusive do ponto de vista normativo.52 Portanto, ainda que

sob críticas, Pierre Levy nos permite asseverar que uma maior interatividade de instituições

como o Parlamento com as “ágoras virtuais”, que representam a evolução da opinião pública

planetária, não é uma realidade tão distante nos dias de hoje. Ao menos no plano teórico.

4. Da utopia à realidade contemporânea: mensurando riscos da Internet.

Contudo, não são raras as críticas ao modelo rousseauniano e seus seguidores. Da

ciência política ao direito constitucional é possível colacionar uma série de argumentos que

visam por em cheque as tentativas de aprofundamento ou aperfeiçoamento da democracia em

direção aos valores preconizados por Rousseau.

__________________________________________________________________________ 48 LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 195. 49 Cf. LEVY, Pierre. La mutation inachevée de la sphère publique. Signo pensam. [online]. 2009, vol.28, n.54, pp. 36-43. passim. 50 Cf. LEVY, Pierre; LEMOS, André. O futuro da Internet: (cit.). p. 191. 51 LEVY, Pierre; LEMOS, André. O futuro da Internet: (cit.). p. 193. 52 No tocante ao Poder Judiciário e o paulatino processo de “virtualização” V. FREIRE, Geovana Maria Cartaxo Arruda de. Ciberdemocracia no Judiciário: uso de mapas como política de virtualização. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Dr. Aires José Rover. Florianópolis, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/129267. Acesso em: 24 mar. 2015.

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Exemplificativamente, no plano jurídico, a necessidade de abandono do modelo

imperativo de mandato;53 a identificação de que, contemporaneamente, a lei não seja mais

compreendida como fruto de uma vontade geral mas como resultado de uma vontade política,

fruto da composição das diversas forças sociais que buscam a realização de seus interesses;54

os riscos de a democracia direta resultar em totalitarismo, suprimindo-se os direitos

fundamentais das minorias em prol da vontade da maioria, dentre outras.55

Inobstante, não é possível se extrair conclusão exata acerca de qual o melhor modelo

de democracia que se amolde à realidade contemporânea (especialmente a brasileira), sendo

necessário a assunção de uma posição como ponto de partida para a mensuração de quanto o

uso das Tecnologias da Informação e Comunicação podem contribuir neste processo de

aproximação entre o polo de tomada de decisões e aquele que os aproveita.56

Desta maneira, deixando de lado as críticas teóricas ao modelo rousseauniano de

democracia, que desde sempre ocorreram em um debate muito anterior à eclosão da

__________________________________________________________________________ 53 Leciona Mônica Herman Sallem Caggiano que o mandato “vinculado” ou imperativo, em que o representante fica preso aos interesses do “representado”, é algo que vem sendo paulatinamente abandonado, sendo que em alguns países contemporaneamente lhe atribuem nulidade expressa. Especificamente França, Espanha e Romênia. Cf. CAGGIANO, Mônica. Direito Parlamentar e Direito Eleitoral. São Paulo: Manole, 2004. p. 13-14. 54 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, leciona que no período clássico da democracia moderna (Séc. XVIII , especialmente) a filosofia política preconizava ser a lei como fruto da vontade geral (Rousseau). Razão pela qual o sufrágio era limitado, geralmente caracterizada por voto censitário, e os partidos eram partidos de elite. Entretanto, a eclosão do Estado Social altera a função da lei, que deixa de ser compreendida como fruto da vontade geral mas passa a ser tratada como produto da vontade política. Este, segundo o autor é o momento contemporâneo, que obriga o legislador a compor as diversas forças políticas em jogo, em um embate que ocorre no parlamento. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 108. 55 Neste sentido, Nadia Urbinati: “É claro que as tecnologias da informação e comunicação dão aos cidadãos comuns possibilidades extraordinárias de mais conhecimento e participação do que menos (um dos nossos mitos modernos fala de uma República Virtual e numa ágora na Internet para um novo tipo de crítica e de drama social) (Taylor, 2005, p. 640). No entanto, o que é bom não vem desacompanhado de nenhuma mazela, e é sobre esta contradição que a teoria democrática deve voltar sua atenção. Os riscos para a democracia vêm do interior do complexo mundo da formação de opinião, nessa panóplia dos meios, abrangendo o poder indireto de ideias que a liberdade de expressão e a liberdade de associação criam e reproduzem. Eles vêm, como eu disse, tanto na forma de identificação plebiscitária com algum líder público, cuja popularidade faz com que ele se pareça tão carismático, ou sob a forma de reivindicações populistas que procuram representar um povo inteiro ou atribuir um verdadeiro significado dos valores e da história de uma nação. Essas aparentemente autoafirmativas funções da mobilização das pessoas são, de fato, um fenômeno preocupante da passividade e da docilidade políticas, que podem mudar a fisionomia da democracia.” URBINATI, Nadia. Crise e metamorfoses da democracia. Rev. bras. Ci. Soc. 2013, vol.28, n.82, pp. 05-16. p. 15. 56 Nesse sentido, Rubens Beçak traz como ponto de partida várias conclusões que servem de premissa para a compreensão do princípio democrático na contemporaneidade: “a) Não há como prescindir-se da democracia representativa (realizada pelos partidos políticos) pois, mesmo com todas as críticas, não se inventou sistema que a substituísse satisfatoriamente; [...] g) As experiências existentes no Brasil e nos outros países vêm a contribuir com esta assertiva, na medida em que uma serie de mecanismos surgidos nos últimos anos procura aproximar o polo da tomada de decisões daquele diretamente aonde ele aproveita; h) Aqui, rápida referencia à Internet e as redes sociais, visto o papel que possam vir a desempenhar neste rumo.” BEÇAK, Rubens. BEÇAK, Rubens. Democracia: hegemonia e aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 84.

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tecnologia, faz-se mister também a análise de óbices práticos identificados na estrutura

contemporânea das TICs, especialmente na Internet, objeto deste último momento do trabalho.

Pierre Rosanvallon expõe com precisão as expectativas, frustrações e angústias no

plano político acerca do papel da Internet. Afirma, inicialmente, que, “na década de 1980,

acreditava-se que as então novas tecnologias da comunicação iriam romper com práticas

democráticas estabelecidas, permitindo que os cidadãos intervissem mais diretamente na

política.” 57 Ou seja, que, havia a ideia de que “restrições materiais” que historicamente

levaram à inevitabilidade do recurso a procedimentos representativos, estariam prestes a

serem deixadas para trás. Mas, enquanto muitos comemoraram (e comemoram) o advento da

"teledemocracia", afirma o autor que uma análise menos precipitada se concentra menos na

dimensão eleitoral/representativa e mais ao papel de incremento da vigilância popular sobre o

poder público propiciado pela Internet58:

[...]Na minha opinião, porém, o importante papel da Internet reside em outro ponto, ou seja, na espontaneidade com que se adaptou para as funções de vigilância, denúncia e avaliação. Mais do que isso, a Internet é a expressão realizada destes poderes. [...] É impressionante, por exemplo, que as livrarias on-line solicitem aos compradores que avaliem e comentem sobre os livros que compram, uma prática que aponta em direção a uma transformação radical da ideia de crítica. Essa transformação pode ser tomada como uma metáfora para o que a Internet está em vias de fazer com a ordem política, ou seja, criando um espaço aberto para a supervisão e avaliação. A Internet não é apenas um mero "instrumento"; é a função de vigilância.59

Contudo, adverte o autor que o aumento do uso da Internet no incremento da função

de vigilância “a define e aponta não só em direção a seu potencial, mas também em direção a

__________________________________________________________________________ 57 Cf. ROSANVALLON, Pierre. Counter-democracy: politics in an age of distrust. Translated by Arthur Goldhammer. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 69. 58 Cf. Idem. p. 69. 59 In verbis: “[…] In my view, however, the major role of the Internet lies elsewhere, namely, in its spontaneous adaptation to the functions of vigilance, denunciation, and evaluation. More than that, the Internet is the realized expression of these powers. Blogs diffract the net’s supervisory power endlessly, and more organized sites are constantly seeking user interaction. It is striking, for example, that on-line bookstores ask buyers to evaluate and comment on the books they buy, a practice that points toward a radical transformation of the idea of criticism. This transformation may be taken as a metaphor for what the Internet is in the process of doing to the political order, namely, creating an open space for oversight and evaluation. The Internet is not merely an “instrument”; it is the surveillance function. Movement defines it and points not only toward its potential but also toward its possible subversion and manipulation. It is in this sense that the Internet can be regarded as a true political form. Other organized modes of surveillance have the overseers also emerged, however. Institutions of a new type have been established in many countries, along with independent oversight authorities. Their purpose is to monitor government activity in many areas.” ROSANVALLON, Pierre. Counter-democracy: politics in an age of distrust. Translated by Arthur Goldhammer. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 70. Tradução livre.

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sua possível subversão e manipulação. É neste sentido que a Internet pode ser considerada

como uma verdadeira forma de política.”60

E esta é uma preocupação constante em diversos autores. Verbi gratia, Manuel

Castells, tido como entusiasta do uso da Internet como ferramenta política, recentemente

criticou a estrutura hodierna da Rede, afirmando que o aumento da vigilância representa

riscos não só aos direitos dos cidadãos como à própria democracia e todos os avanços até aqui

sentidos no plano da transparência.61 Igualmente Cass Sustein,62 Lawrence Lessig,63 Jonathan

Zittrain,64 Siva Vaidhyanathan, 65 Tim Wu, 66 Andrew Keen67 e muitos outros têm denunciado

que as ameaças que a Internet contemporânea pode representar às conquistas democráticas.

Dentre outros problemas apontados: A força da tecnologia como uma forma autônoma

de regulamentação, muitas vezes desrespeitando a legislação através de uma “lex

informatica”; o fato de a Rede hoje ter se desenvolvido em (e ter se tornado) um ambiente

desenfreado de livre mercado, refém de abusos movidos pelos interesses privados de grandes

corporações, apontados por muitos como monopólios; o abuso por parte de governos sobre

direitos humanos de primeira dimensão, especialmente a privacidade; o aumento da

desigualdade social e econômica que a Internet mais contribui a aumentar (e não diminuir,

como sempre foi sua promessa e seu slogan).

Porém, sabe-se que a prestação de serviços online e a transparência tidos por

Rosanvallon como o grande papel da Internet na esfera política não são sua única função. Ao

revés, são apontados como passos para a consecução de outros ideais,68 que vão desde a

__________________________________________________________________________ 60 Cf. Idem. p. 70. 61 CASTELLS, Manuel. A Internet ameaçada. in OUTRAS PALAVRAS: comunicação compartilhada e pós-capialismo. 21/03/2015. Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/castells-a-internet-ameacada/. Acesso em: 25 mar. 2015. 62 SUNSTEIN, Cass R. Republic.com 2.0. Princeton: Princeton University Press, 2007. 63 LESSIG, Lawrence. Code 2.0. 2. ed. Nova Iorque: Basic Books, 2006. 64 ZITTRAIN, Jonathan. The future of Internet and how to stop it. New Haven/London: Yale University Press, 2008. passim. 65VAIDHYANATHAN, Siva. The googlization of Everything (and why se should worry). Berkeley: University of California Press, 2011. passim. 66 WU, Tim. Impérios da comunicação. Do telefone à internet, da AT&T ao Google. Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. passim. 67 KEEN, Andrew. The internet is not the answer. New York: Atlantic Monthly Press, 2015. passim. 68 Marciele Berger Bernardes, com apoio em Wilson Gomes, traz a sistematização em cinco graus da democracia na sociedade informacional: 1. A possibilidade de prestação de serviços públicos na seara virtual; 2. Em segunda posição, os mecanismos de sondagem de opinião, de aferição da vontade dos cidadãos para futura transformação da realidade; 3. O plano da transparência, que aumenta os standards de accountability política e empowerment dos cidadãos; 4. Em quarto lugar, uma avançada democracia deliberativa, que se manifesta na constante interação com o cidadão; 5. Finalmente, a possibilidade de implementação de uma democracia plebiscitaria. Cf. BERNARDES, Maciele Berger. Democracia na Sociedade Informacional: o desenvolvimento da democracia digital nos municípios brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 120-121. A autora se vale da obra de Wilson Gomes, a quem atribui paternidade da distinção, contudo, a autora traz contribuições em que se revela sua contribuição à compreensão do tema.

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superação de barreiras geográficas até a mundialização de modelos democráticos diversos,

mais próximos do participativo.

Se é utópico ou não, o futuro dirá. O que é certo é que o ideal rousseaniano de

igualdade política aliado à necessidade de maior participativatividade popular como forma de

aproximar o povo soberano do “governo” (em seus termos) não será esquecido neste mundo

cada vez mais tecnológico, rendido a Smartphones, Iphones, Tablets, Laptops e tantos outros

gadgets tecnológicos que possam surgir futuramente.

Conclusão

As TICs trouxeram alterações ao cotidiano aparentemente em um caminho se volta. A

Internet é parte deste contexto e seu uso para fins políticos está longe de um consenso. Por um

lado, entusiastas afirmam que a Rede será capaz de diminuir as distâncias entre cidadãos e

governo, que na maioria dos sistemas democráticos contemporâneos (como o Brasil) dizem

respeito a representantes eleitos. Por outro, críticos tanto da ideia de superação do modelo

representativo hegemônico de democracia quanto defensores do aperfeiçoamento, que, porém,

alertam que a Internet pode muito mais frustrar do que atender aos anseios democráticos.

Este trabalho teve objeto um estudo do tema em diálogo com a teoria política de Jean-

Jacques Rousseau. Através da análise de conceitos como soberania popular, representação

política, mandato imperativo, dentre outros, buscou-se verificar a plausibilidade de se

verificar uma democracia direta no ambiente tecnológico contemporâneo.

Posteriormente, trabalhou uma influente transposição dos ideais políticos

rousseaunianos que busca adaptar o modelo democrático representativo estruturas que

propiciam maior participação direta dos cidadãos. Trata-se da proposta de Carole Pateman

sobre a democracia participativa. Verificou-se tratar-se não de um retorno total à democracia

direta, mas sim, dentre outros possíveis desdobramentos, de que a tomada de decisões em

ambientes mais locais como trabalho, escola, bairro, etc. seja feita diretamente pelos cidadãos.

Ainda que se preconize que esta teoria esteja datada historicamente, percebeu-se ser possível

sua aplicação e concretização com recurso à tecnologia.

Em momento posterior, analisou-se o conceito de conceito de parlamento virtual como

uma das representações da ciberdemocracia na obra de Pierre Levy. Perquirindo-se a

possibilidade de o futuro trazer a democracia direta, a resposta de Levy é negativa, ainda que

o próprio autor não descarte esta possibilidade. Contudo, ao apreciar o conceito, percebe-se

que a grande chave representa a possibilidade de que haja representantes de uma esfera

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pública internacional, que dialogue com os mecanismos tradicionais de representação a fim de

dar-lhe maior legitimidade. Algo muito próximo da democracia participativa de raiz

rousseauniana proposta por Pateman.

Finalmente, procurou-se também realizar breve estudos sobre a linha crítica ao modelo

democrático proposto. Em linhas gerais, é possível concluir que há críticas de duas ordens. As

primeiras partem de majoritariamente da doutrina nacional e se dirigem à própria ideia de

participativa com recurso a Rousseau. Com relação a estas, não é possível extrair consenso

acerca do tema, devendo-se eleger um ponto de partida, que é o da plena possibilidade de se

verificarem, ao menos em tese, a teoria de Pateman e mesmo a noção de Parlamento Virtual

proposta por Pierre Levy.

Contudo, outra forma de crítica parte especialmente da doutrina estrangeira, e parte da

estrutura tecnológica e econômica da Net para por em cheque os ideais de superação dos

limites do modelo representativo. Trata-se dos inúmeros estudos que denunciam ser a Internet

hoje algo diferente do que fora ao seu início. No lugar de um ambiente colaborativo e propício

a inovação, contemporaneamente o ambiente das TICs é cada vez mais refém dos interesses

de grandes conglomerados econômicos, cuja conduta perante os consumidores faz questionar

seu potencial para a promoção da liberdade de expressão e construção de uma verdadeira

esfera pública.

Somam-se a isso a violação maciça de direitos fundamentais de primeira dimensão

como a privacidade por parte do poder público. Portanto, a tecnologia que trazia a esperança

de superação dos limites impostos pelos sistemas democráticos representativos pode ser a

mesma que permitirá que sejam suprimidos os direitos de primeira dimensão até aqui tidos

como conquistas geracionais.

Mas as críticas não significam necessariamente o fim da linha para os que acreditam

na consecução dos ideais rousseaunianos de maior participação popular como método mais

justo de se arquitetar um modelo democrático. Ao contrário, superando-se todos os obstáculos

tecnológicos, o exercício da soberania popular antes muito longe pode estar à distância do seu

smartphone.

Referências

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