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BENHUR WAGNER TABORDA ASPECTOS HISTÓRICOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO MUNICÍPIO DE CASCAVEL: DOS PRIMÓRDIOS À REGIONALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS ESPECIALIZADOS UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

XXX NOME COMPLETO DO AUTOR DO … · Web viewTrinta e quatro tinham 8 anos a menos e doze tinham menos de cinco anos” (HUBERMAN, 1981). ... Solicitou dispensa da irregularidade

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XXX NOME COMPLETO DO AUTOR DO TRABALHO XXX

BENHUR WAGNER TABORDA

ASPECTOS HISTRICOS DA EDUCAO ESPECIAL NO MUNICPIO DE CASCAVEL: DOS PRIMRDIOS REGIONALIZAO DOS SERVIOS ESPECIALIZADOS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN

CURSO DE ESPECIALIZAO EM HISTRIA DA EDUCAO BRASILEIRA

CASCAVEL PR

2006

BENHUR WAGNER TABORDA

ASPECTOS HISTRICOS DA EDUCAO ESPECIAL NO MUNICPIO DE CASCAVEL: DOS PRIMRDIOS REGIONALIZAO DOS SERVIOS ESPECIALIZADOS

Monografia apresentada para obteno do ttulo de Especialista em Histria da Educao Brasileira Curso de Pedagogia, CECA Centro de Educao Comunicao e Artes da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE.

Orientadora: Prof. Ms. Lcia T. Zanato Tureck

CASCAVEL PR

2006

BENHUR WAGNER TABORDA

ASPECTOS HISTRICOS DA EDUCAO ESPECIAL NO MUNICPIO DE CASCAVEL: DOS PRIMRDIOS REGIONALIZAO DOS SERVIOS ESPECIALIZADOS

Monografia apresentada ao Curso de Especializao em Histria da Educao Brasileira Turma I, da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE como requisito parcial para a obteno do ttulo de Especialista em Histria da Educao Brasileira.

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________________

Prof. Ms. Lcia T. Zanatto Tureck Orientadora

Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE

______________________________________________________

Prof. Ms. Jane Peruzzo Icono

Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE

______________________________________________________

Prof. Ms. Andr Paulo Castanha

Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE

CASCAVEL PR

2006

Dedico a todos que contriburam direta ou indiretamente para que este trabalho pudesse ser realizado com xito.

AGRADECIMENTOS

Agradeo a Deus por ter me permitido alcanar um estgio de minha formao acadmica inimaginvel h alguns anos atrs, e que Ele me permita ainda muito mais.

Aos familiares, que auxiliaram e entenderam muitas vezes os meus vrios nos. No posso ir..... no tenho tempo pr..... no vou chegar a tempo de.....

Aos professores do Curso de Especializao em Histria da Educao Brasileira, pela incansvel dedicao e apoio.

Agradeo em especial a professora orientadora Lucia Tureck, pela dedicao, disposio e compreenso com que sempre me atendeu.

Agradeo com especial ateno minha esposa Sandra, pela dedicao com que sempre esteve ao meu lado me auxiliando em todos os momentos.

Obrigado!

O primeiro pressuposto de toda histria humana naturalmente a existncia de indivduos humanos vivos. O primeiro ato histrico destes indivduos pelo qual se destinguem dos animais, no o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida.

O primeiro fato a constar , pois a organizao corporal destes indivduos e, pr meio disto, sua relao dada com o resto da natureza.

Marx e Engels, 1984.

RESUMO

As reflexes contidas nesse trabalho monogrfico tm por objetivo analisar de forma breve, porm sistemtica, de que maneira se deu a implantao, organizao e expanso da educao especial no municpio de Cascavel. Esse fato foi decorrncia do amplo processo de descentralizao e regionalizao dos servios especializados em educao especial, ocorrido principalmente aps o perodo de abertura poltica, vivenciado pelo Brasil nas dcadas de 1970 e 1980. Tomaremos como referencial histrico e ponto de partida para a exposio do tema, a consolidao do modo de produo capitalista. Isto se justifica devido ao fato das primeiras instituies voltadas para a educao das pessoas com deficincia terem sido fundadas nesse perodo. Alm disso, apesar dos avanos tecnolgicos e filosficos patrocinados pela classe burguesa, a fim de potencializar as foras produtivas, de um lado contriburam para a construo de concepes fatalistas e estigmatizantes para as pessoas com deficincia. Por outro, esses mesmos avanos provocaram a segregao e a excluso de uma boa parte das pessoas com deficincia, consideradas improdutivas em uma organizao social, onde as relaes econmicas, polticas e sociais esto organizadas para obteno de lucros cada vez mais crescentes. Visto que tais relaes, concepes e encaminhamentos dados a questo da deficincia desde os primrdios do capitalismo encontram-se presentes at os dias de hoje em nossas instituies, relaes interpessoais com o diferente e no percurso histrico de nossa educao especial, consideramos de suma importncia, partindo de uma concepo materialista histrica, analisarmos o percurso histrico da educao especial desde os primrdios desse modo de produo. Dessa forma, entendemos que o primeiro ato histrico , portanto, a produo dos meios que permitam a satisfao destas necessidades, a produo da prpria vida material, e de fato este um ato histrico, uma condio fundamental de toda a histria, que ainda hoje, como h milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos (MARX e ENGELS, 1984, p. 40). Norteado por tal pressuposto, esse estudo tambm se prope a verificar as relaes existentes entre a sociedade brasileira e as pessoas com deficincia, remontando para isso, a poca do descobrimento e conseqente colonizao. Nesse sentido, baseado nas bibliografias disponveis, propomos analisar a fundao das primeiras instituies voltadas para a educao das pessoas com deficincia no Brasil, bem como a expanso da educao especial no decorrer dos diferentes perodos histricos brasileiros. Por fim, em um terceiro momento estudamos a educao especial no municpio de Cascavel a partir da dcada de 1970, investigando suas primeiras instituies e o contexto em que tal processo se desenvolveu. Procuramos fazer a relao entre a educao especial que vinha se desenvolvendo no contexto nacional e paranaense, e a forma pela qual os servios especializados e as escolas especiais que concentravam-se principalmente nas capitais e grandes cidades foram descentralizadas para o interior do Estado, enfatizando essa anlise no municpio de Cascavel. Alm disso um pouco da histria desse municpio tambm exposta, para que possamos situar historicamente a ampliao do sistema educacional e a educao proposta para as pessoas com deficincia.

Palavras chave: Histria da educao especial, pessoa com deficincia, incluso social, segregao e histria.

SUMRIO

INTRODUO.....................................................................................................................

08

I A PESSOA COM DEFICINCIA NO MODO DE PRODUO CAPITALISTA....

15

1.1 A TRANSIO DO FEUDALISMO PARA O CAPITALISMO...................................

15

1.2 AS RELAES EXISTENTES ENTRE AS PESSOAS COM DEFICINCIA E A SOCIEDADE CAPITALISTA...............................................................................................

23

1.3 A EXPANSO DA ESCOLA PARA AS CLASSES POPULARES: UM INSTRUMENTO IDEOLGICO A SERVIO DA BURGUESIA.....................................

32

1.4 A EDUCAO DA PESSOA COM DEFICINCIA NO MODO DE PRODUO CAPITALISTA: A SEGREGAO DOS ELEMENTOS PERTURBADORES DA ORDEM VIGENTE................................................................................................................

38

II A EDUCAO ESPECIAL NO BRASIL.....................................................................

47

2.1 A PESSOA COM DEFICINCIA NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL................

47

2.2 A PESSOA COM DEFICINCIA NO BRASIL REPUBLICANO................................

72

2.3 ANLISE DAS POLTICAS E FILOSOFIAS PARA A EDUCAO ESPECIAL.....

91

III A EDUCAO ESPECIAL NO MUNICPIO DE CASCAVEL..............................

101

3.1 A EDUCAO ESPECIAL DO ESTADO DO PARAN.............................................

101

3.2 A EDUCAO ESPECIAL DO MUNICPIO DE CASCAVEL NO MBITO DAS INSTITUIES FILANTRPICO-ASSISTENCIAIS........................................................

107

3.3 A EDUCAO ESPECIAL DO MUNICPIO DE CASCAVEL NO MBITO DAS INICIATIVAS PBLICAS: A REGIONALIZAO DOS SERVIOS ESPECIALIZADOS...............................................................................................................

117

CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................

129

REFERNCIAS....................................................................................................................

134

INTRODUO

Para que se estabelecessem ideais de integrao e incluso social das pessoas com deficincia passaram-se inmeros sculos de estigmatizao e preconceito. Diversos autores pesquisam a histria da educao especial, porm, na maioria dos casos, as transformaes sociais e conceituais so encaradas de forma positivista, ou seja, a sociedade evoluiria progressivamente em harmonia e constante progresso. Essa explicao mostra-se extremamente limitadora na medida em que oculta as contradies existentes no interior de cada sociedade. Para que possamos entender a maneira variada com que os diferentes grupos sociais se relacionaram com as pessoas que possussem algum tipo de deficincia devemos atentar para a forma como esses grupos produziram historicamente a sua subsistncia.

Partimos do pressuposto de que o modo de se pensar, de se agir com o diferente depende da organizao social como um todo, na sua base material, isto , na organizao para a produo, em ntima relao com as descobertas das diversas cincias, das crenas, das ideologias, apreendidas pela complexidade da individualidade humana na sua constituio fsica e psquica. Da as diversas formas de o diferente ser percebido nos vrios tempos e lugares, que repercutem na viso de si mesmo (JANNUZZI, 2004, p. 01).

Dessa forma, considerando que nenhuma raa ou grupo social geneticamente perfeita, teremos nas comunidades primitivas a existncia de pessoas com algum tipo de deficincia fsica ou cognitiva. Isso pode ser comprovado atravs de alguns fsseis encontrados em escavaes que demonstram pela sua disposio a existncia de anomalias. Os homens das comunidades primitivas ou pr-histricas sobreviviam basicamente da caa e da pesca, inexistindo praticamente entre elas a diviso social do trabalho e a propriedade privada. Em conseqncia da dependncia que o homem tinha das condies naturais, o nomadismo era constante na maioria das tribos nessa poca. Assim sendo, urgia que cada homem se bastasse por si s e ainda colaborasse com o grupo.

A partir da, podemos deduzir que as prprias condies materiais impostas pela natureza faziam com que idosos e deficientes fossem relegados a sua prpria sorte para serem tragados por feras selvagens ou sucumbirem de inanio. De acordo com diversas pesquisas realizadas junto aos povos primitivos que podem ser encontrados na atualidade, constatou-se que a prtica do abandono, segregao e eliminao foi bastante recorrente na sociedade primitiva (SILVA, 1986).

No entanto, essas prticas no eram unnimes, sendo que em algumas tribos indgenas que sobreviveram at os dias de hoje, as pessoas com deficincia eram poupadas e at dignas de respeito e admirao. Isso ocorria devido a uma viso metafsica da deficincia, onde estas pessoas, principalmente os cegos, seriam dotadas de qualidades sobrenaturais tais como; o dom da adivinhao e da magia. Em outras tribos, entendia se que os deficientes eram possudos pelos demnios e dessa forma livravam os demais indivduos tribais da mesma falta de sorte (SILVA, 1986).

Com o constante aperfeioamento dos instrumentos necessrios a sua sobrevivncia, o surgimento da propriedade privada e das classes sociais, o homem alcanou uma maior organizao poltica e social. Dessa forma, surgem as primeiras civilizaes tanto no oriente mdio quanto no ocidente. Dessas sociedades, as civilizaes Grega e Romana foram consideradas os grandes imprios da antigidade. Na Grcia Antiga, a organizao poltica se dividia em Cidades-Estados nas quais existia total autonomia para ditar leis e costumes.

Em Esparta, a tradio militar exigia que os homens fossem fortes e robustos, a fim de ingressarem j aos sete anos para o servio militar, onde permaneciam por quase toda a vida (PONCE, 1992). Quando do nascimento de alguma criana, essa era entregue a um grupo de ancios que verificavam as suas qualidades fsicas. Se a criana fosse considerada fraca ou com algum tipo de deficincia, ela era levada ao monte Apotetae, que significa depsito, onde era arremessada para encontrar o seu fim (SILVA, 1986).

Em Atenas, cidade comercial considerada o bero da filosofia, a sociedade tambm era dividida entre cidados e escravos, onde o trabalho manual e agrcola era executado pelo enorme nmero de escravos. Aos cidados restava a poltica e a filosofia personificadas atravs da retrica e da beleza esttica. Apesar do grande avano filosfico alcanado pelos atenienses, a situao das pessoas com deficincia no era diferente da Espartana, pois no caso dos escravos a perfeio e a destreza fsica eram imprescindveis para a produo de sua subsistncia e de seus senhores. No caso dos cidados livres, a beleza fsica constitua se em atributo fundamental para o bom desempenho nas Olimpadas ginasiais e nos discursos polticos.

A partir da Idade Mdia, onde a sociedade estava organizada em feudos auto-suficientes, houve uma mudana de paradigma devido influncia da ideologia religiosa Judaico-Crist, que tornou-se hegemnica na poca medieval. Por decorrncia do mandamento Judaico No matars, tolerou-se inicialmente a existncia de pessoas com deficincia. A dicotomia que existia na antigidade entre o corpo e a mente, passa agora a ser representada pela separao entre o corpo e a alma. A deficincia passa a ser vista ou por castigo divino devido aos pecados ou ento por decorrncia de possesses demonacas. No entanto, o fato de a deficincia ser tolerada no significou melhores condies de vida para tais indivduos, pois encontravam-se, em sua maioria, segregados em asilos e instituies de caridade ou condenados a pedir esmola pelo resto de suas vidas. Todavia:

no feudalismo, ao contrrio do escravismo, mesmo dentre os setores explorados da populao, existiram condies objetivas que favoreceram a sobrevivncia daqueles que nasceram com algum tipo de deficincia. Esses condicionantes, decorriam do fato do servo ter a "posse" de um pedao de terra, onde vivia com a famlia produzindo seus meios de vida e a parte que cabia ao seu senhor. Da possibilidade que o mesmo teve de at certo ponto exercer o controle sobre sua prole e ser o organizador do seu processo e ritmo de trabalho, resultou na possibilidade de aproveitamento da capacidade produtiva de algumas pessoas com deficincia, numa economia familiar (CARVALHO, 2003, p. 99).

Com o fim da idade mdia, houve grande avano das cincias naturais bem como um incremento das foras produtivas, o que possibilitou a intensificao do comrcio e a ascenso da classe burguesa. Por influncia do Renascimento, que retomava os valores das sociedades clssicas Grega e Romana, o Teocentrismo cede gradativamente lugar ao Antropocentrismo, onde o homem passa a ser a medida de todas as coisas. Dessa forma, se anteriormente a deficincia era atribuda a possesses e castigos, agora ela passa a ser determinada por causas naturais e genticas. Pensadores e mdicos, tais como Paracelso e Cardano, justificam esse paradigma. Entretanto, a viso mecanicista do homem e da natureza juntamente com a utilizao da maquinaria na indstria capitalista fizeram surgir comparaes que desencadearam conseqncias nefastas para a concepo da deficincia.

Na comparao entre o corpo humano e a mquina, cada rgo passa a ter uma funo especfica, o corao, por exemplo, passa a ser a bomba, os rins so o filtro e mais atualmente o crebro humano comparado a um computador. Por tanto, se cada pea desenvolve uma funo especfica, a deficincia seria a disfuno de uma dessas peas. Ao invs de ser atribuda a causas metafsicas e teolgicas, agora ela passa a ser relacionada com disfuncionalidade (BIANCHETTI, 1996). Como a lgica do capitalismo o investimento em equipamentos e indivduos que propiciem cada vez mais produo e lucros, os limites postos pela deficincia so vistos preconceituosamente como limitadores da produo e da lucratividade capitalista, o que gerou historicamente o abandono e a discriminao de tais indivduos.

Em contra partida, na rea da filosofia pensadores como John Locke apontava, j no sculo XVIII, novas perspectivas para o entendimento da deficincia. Como representante da escola filosfica Empirista, Locke negava a existncia de idias inatas, afirmando que todo conhecimento produzido a partir das experincias dos indivduos. Assim o homem seria uma tabula rasa, onde o conhecimento poderia ser adquirido gradativamente atravs de suas experincias objetivas. Dessa maneira, o homem que antes era visto como essncia imutvel, passa agora a se modificar de acordo com sua experincia. Essa filosofia influencia substancialmente a concepo vigente at ento sobre as pessoas com deficincia, pois, agora, a partir de uma boa educao e de experincias significativas o indivduo pode progredir intelectualmente bem como nas suas relaes sociais. Esses pressupostos filosficos influenciaram o mdico Jean Itard, que foi o precursor da educao especial a partir das experincias vividas com Victor, o selvagem de Aveyron.

Aps as experincias de Itard, surgem na Europa algumas instituies oficiais de educao para deficientes, as quais incipientemente j vinham sendo implantadas desde o sculo XVI. Essas instituies em sua maioria ensinavam os rudimentos da leitura e da escrita, alm de ministrarem a educao profissional. No Brasil, a educao especial oficializada em 1854 com a inaugurao do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, no Rio de Janeiro, que seguia basicamente o modelo europeu. No sculo XX, so fundadas por todo o Brasil inmeras instituies voltadas para a educao das pessoas com deficincia, entre elas podemos destacar a sociedade Pestalozzi e as Associaes de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs), que se espalharam rapidamente por todo o territrio nacional.

Por volta da dcada de 1960, a educao especial enfrenta fortes crticas devido ao paradigma da institucionalizao, que alm de se constituir em sua maioria pela filantropia, segregava os indivduos da vida social. Procurou-se, de outra forma, oferecer uma educao que realmente propiciasse a integrao dos educandos corrente principal da vida. Os alunos que antes eram atendidos em instituies especializadas, devem agora a freqentar as classes regulares. Apesar das inmeras dificuldades existentes em tais procedimentos, a partir da luta dos prprios grupos de pessoas com deficincia, importantes conquistas tm se concretizado apontando para a possvel construo de uma sociedade inclusiva.

Nesse sentido, a partir de 1980, o Brasil passou por diversas transformaes econmicas, polticas e sociais impulsionadas principalmente pelo ideal democrtico que afirmava a igualdade entre todos os homens. Esse ideal no se fez presente apenas no Brasil, mas se verificou tambm em diversos pases e instituies. Prova disso foi a Declarao dos Direitos das Pessoas com Deficincia publicada em 1975 pela ONU Organizao das Naes Unidas, que juntamente com a Resoluo n 31/123, culminou na proclamao do ano de 1981 como o Ano Internacional da Pessoa Deficiente. Essa medida foi de suma importncia para a educao especial brasileira, pois, segundo esse documento, o direito educao e ao trabalho estavam garantidos. Assim sendo, vrias medidas foram tomadas pelo Ministrio da Educao no tocante incluso social e educacional das pessoas com deficincia.

Nesse contexto, este trabalho monogrfico se props pesquisar os aspectos histricos da Educao Especial no municpio de Cascavel, a partir da dcada de 1970. Analisamos as primeiras instituies especializadas na educao das pessoas com deficincia, bem como o contexto em que se desenvolveram. Consideramos como fator relevante os acontecimentos polticos e econmicos que permearam este perodo e as polticas educacionais implementadas pelo Estado. Tomamos como referencial histrico o modo de produo capitalista, onde se expandiram as primeiras instituies de assistncia e educao para as pessoas com deficincia.

Como afirma Jannuzzi, 2004:

Este trabalho um dilogo com o passado, passando por vrios perodos at chegar ao incio deste sculo XXI, buscando apreender a construo escolar proposta ao deficiente. Voltar ao passado, no entanto, no significa que ele explique totalmente o presente, no supe que ele nos ensine como deveria ter sido. Ele mostra-nos o que foi, e que os acontecimentos no se do de forma arbitrria, mas que existe relacionamento entre eles, que a sua construo processo humano, dentro de condies existentes e percebidas como possveis. Ao retomar o passado, tambm se poder, talvez, clarificar o presente quanto ao velho que nele persiste e perceber algumas perspectivas que incitaro a percorrer novas direes (p. 02).

O objetivo desse trabalho analisar e registrar sistematicamente os programas e escolas de educao Especial implantados na cidade de Cascavel a partir de 1970, levantando quais os benefcios adquiridos pelos alunos com deficincia, bem como as principais dificuldades encontradas pelas instituies para implantar esses servios. Como fontes de pesquisa utilizamos os documentos existentes no Ncleo Regional de Educao de Cascavel, jornais locais publicados no perodo, reportagens em revistas, bibliografia geral sobre a histria da Educao Especial no Brasil e no Paran e entrevistas com professores que atuaram na poca, visto que alguns deles ainda trabalham na educao ou residem na regio. Alm dessas, foram includas diferentes fontes tais como: depoimentos de pessoas que trabalham na educao especial de Cascavel e relatrios obtidos nas visitas realizadas nas instituies analisadas, para enriquecer o trabalho proposto.

Este trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro, analisamos o desenvolvimento do modo de produo capitalista, a expanso da instituio escolar para as classes populares, as relaes entre as pessoas com deficincia no interior dessa sociedade e o surgimento das primeiras instituies de assistncia e educao para esse segmento social. Aborda-se juntamente com o tema proposto os acontecimentos polticos e econmicos, pois entendemos que a educao gestada no interior das sociedades e por isso influenciada pelas relaes materiais estabelecidas na totalidade social.

No segundo captulo, estudamos as relaes da sociedade brasileira com as pessoas que possuam algum tipo de deficincia fsica ou cognitiva. Abordamos inicialmente o perodo colonial e imperial, pois mesmo no existindo uma educao especial sistematizada nessa poca, as pessoas com deficincia se relacionavam de alguma forma com a organizao social mais ampla. O perodo republicano tambm estudado, dando nfase expanso da educao especial tanto na esfera das instituies filantrpico-assistenciais, quanto nos limites do ensino regular. Ateno especial, tambm dada poltica educacional voltada para educao especial bem como s diferentes filosofias e paradigmas que nortearam o desenvolvimento dessa educao no Brasil.

Por fim, no terceiro captulo estudamos o desenvolvimento da educao especial no municpio de Cascavel. Fazemos a relao entre a educao especial que vinha se desenvolvendo tanto no Brasil como no Paran e a forma como ela se expandiu nesse municpio. Buscamos verificar quais foram as primeiras instituies que prestaram atendimento especializado para as pessoas com deficincia, qual a sua filosofia de trabalho e quais os principais resultados obtidos. Um pouco da histria de Cascavel tambm inserida nesse captulo a fim de contextualizarmos as questes analisadas. Alm disso, as iniciativas pblicas tambm so analisadas levando-se em considerao a sua abrangncia e o carter de seu atendimento. Outro aspecto abordado o movimento das pessoas com deficincia no sentido de estarem reivindicando melhores condies de educao e trabalho, considerando que tais lutas determinaram em grande parte os rumos tomados pela educao especial no municpio de Cascavel.

CAPTULO I

A PESSOA COM DEFICINCIA NO MODO DE PRODUO CAPITALISTA

Esse captulo objetiva resgatar de forma breve de que maneira a sociedade capitalista se relacionou com as pessoas que possussem algum tipo de deficincia fsica ou cognitiva. Adotamos como referencial histrico o modo de produo capitalista, devido ao fato das primeiras instituies voltadas para a educao de tais indivduos terem surgido nesse perodo. Inicialmente analisamos o perodo de transio da idade mdia para o capitalismo bem como os caminhos percorridos pela classe burguesa para tornar-se detentora da hegemonia poltica e econmica. Alm disso procuramos abordar a forma pela qual a educao se estendeu para as classes populares servindo aos interesses ideolgicos da classe burguesa. Pontuamos as principais concepes que a sociedade capitalista possui a respeito das pessoas com deficincia, bem como as relaes estabelecidas no interior dessa sociedade. Com o fim da idade mdia, novos paradigmas decorrentes do avano tcnico e cientfico fizeram com que novas explicaes surgissem sobre a causa e existncia das pessoas com deficincia. A partir da, respaldadas pela cincia mdica foram criadas instituies especializadas na educao desse segmento social. Buscamos dessa forma, analisar o contexto em que tais instituies surgiram e qual foi a natureza do atendimento oferecido.

1.1 A TRANSIO DO FEUDALISMO PARA O CAPITALISMO

Durante o perodo histrico denominado de baixa idade mdia, profundas transformaes polticas, econmicas e sociais abalaram significativamente a organizao social do feudalismo. Na idade mdia, a ideologia predominante era marcada por um teocentrismo dirigido pelos eclesisticos da igreja catlica. Esse teocentrismo catlico, em grande parte representava uma herana da cultura Judaica que, influenciou largamente a mentalidade do homem feudal. Alm disso, a sociedade era estamental, constituindo-se de camadas sociais que permitiam pouca mobilidade social entre si.

A economia da sociedade feudal era essencialmente agrria. Nos feudos, a produo voltava-se basicamente para a subsistncia. Um grande nmero de servos, regidos por uma hierarquia de vassalagem, trabalhavam as terras do senhor feudal, a sua pequena faixa de terra e alguns artesos dedicavam-se a fabricar os utenslios que o feudo necessitava. Dessa forma, o feudo era auto-suficiente, produzia-se internamente para atender todas as suas necessidades. Para comprovarmos tal afirmao vejamos o seguinte relato:

Nos primrdios da sociedade feudal, a vida econmica decorria sem muita utilizao de capital. Era uma economia de consumo, em que cada aldeia feudal era praticamente auto-suficiente. Se algum perguntar quanto pagamos por um casaco novo, a proporo de 100 para 1 como voc responder em termos de dinheiro. Mas se essa mesma pergunta fosse feita no incio do perodo feudal, a resposta provavelmente seria. eu mesmo o fiz . O servo e sua famlia cultivavam seu alimento e com as prprias mos fabricavam qualquer mobilirio de que necessitassem. O senhor do feudo logo atraa sua casa os servos que se demonstravam bons artfices, a fim de fazer os objetos de que precisava. Assim, o estado feudal era praticamente completo em si fabricava o que necessitava e consumia seus produtos (HUBERMAN, 1981, p. 26).

Como podemos ver, o comrcio no incio da idade mdia era bastante incipiente, porm isso no significa que era inexistente. Existiam mercados que eram realizados semanalmente nas proximidades de algum mosteiro ou castelo fortificado. Esses mercados, no entanto, eram quase sempre locais restritos onde efetuavam-se pequenas trocas de mercadorias com pouca utilizao de moedas. Alm dos fatores j elencados, havia outras dificuldades que restringiam a expanso do comrcio nessa poca:

Um outro obstculo sua intensificao era a pssima condio das estradas. Estreitas, malfeitas, enlameadas e geralmente inadequadas s viagens. E ainda mais eram freqentadas por duas espcies de salteadores bandidos comuns e senhores feudais que faziam parar os mercadores e exigiam que pagassem direitos para trafegar em suas estradas abominveis. A cobrana do pedgio era uma prtica to comum que quando Odo de Tours, no sculo XI, construiu uma ponte sobre a Loire e permitiu o livre trnsito, sua atitude provocou assombro (HUBERMAN, 1981. p. 26).

Esse mesmo autor ressalta outros motivos que dificultavam o crescimento do comrcio:

Outros obstculos retardavam a marcha do comrcio. O dinheiro era escasso e as moedas variavam conforme o lugar. Pesos e medidas tambm eram variveis de regio para regio. O transporte de mercadorias para longas distncias, sob tais circunstncias, obviamente era penoso, perigoso, difcil e extremamente caro. Por todos esses motivos, era pequeno o comrcio nos mercados feudais locais (HUBERMAN, 1981, p. 26).

Mas no permaneceu pequeno. Chegou o dia em que o comrcio cresceu, e cresceu tanto que afetou profundamente toda a vida da idade mdia. O sculo XI viu o comrcio andar a passos largos; o sculo XII viu a Europa Ocidental transformar-se em conseqncia disso (HUBERMAN, 1981).

Esses diversos fatores, aliados descentralizao do poder, que dificultava o estabelecimento de leis, moeda nica, maior segurana nas estradas, bem como a falta de um mercado consumidor que absorvesse a produo de excedentes, fizeram com que o comrcio permanecesse por alguns sculos bastante reduzido. Porm, a partir do advento das cruzadas, que foram expedies organizadas a fim de resgatar a Terra Santa das mos dos muulmanos essa situao comeou a se alterar. Segundo Huberman:

O desenvolvimento das mesmas satisfazia, basicamente, os interesses da igreja de Roma, que pretendia ampliar os seus domnios; da igreja de Constantinopla, que buscava enfraquecer os muulmanos que ameaavam o seu poder; da nobreza, que almejava mais terras para seus herdeiros, e dos comerciantes, que viam nas cruzadas um meio de ampliar seus negcios (1981 p. 28).

A partir da realizao das cruzadas o comrcio se expandiu gradativamente por toda a Europa. Se de um lado as cruzadas fracassaram no seu intento de retomar a cidade de Jerusalm dos muulmanos, por outro a abertura da navegao pelo mar Mediterrneo aos europeus possibilitou o seu contato direto com as especiarias vindas do Oriente. A nobreza feudal, enquanto lutava em terras longnquas em busca de glria e poder, tomava conhecimento de novos produtos e mercadorias de luxo, que passariam mais tarde a serem amplamente procuradas na Europa.

Esse mercado consumidor que agora era impulsionado pelas mercadorias oriundas da ndia, necessitou por conta de sua demanda, a organizao de grandes feiras onde havia enorme circulao de mercadorias que vinham de diferentes lugares do mundo. Com a realizao dessas feiras, surgiu no cenrio medieval a figura do comerciante. Na medida em que o comrcio se expandia, os comerciantes entravam em atrito com os senhores feudais que eram detentores do poder poltico. Essas feiras eram realizadas geralmente nas antigas cidades medievais, as quais eram chamadas de burgos. Assim sendo, essa nova classe que se constitua foi logo chamada de burguesia. Devido s contradies existentes entre seus interesses e a velha ordem feudal, iniciou-se um perodo de transio do feudalismo para o capitalismo.

Ao mesmo tempo que essas contradies se desenvolviam, uma nova forma de organizao social se cristalizava nos antigos burgos. Essas cidades se diferenciavam substancialmente dos feudos. Enquanto que nesses a economia era esttica e auto-suficiente, nas cidades o comrcio era dinmico, havia larga utilizao de moedas e a vida era marcada pela liberdade individual. Nas cidades, tambm existiam as corporaes de ofcio, as quais eram associaes que organizavam a produo e a distribuio de determinados produtos, reunindo profissionais do mesmo ramo, como por exemplo os sapateiros, ferreiros e alfaiates.

Nas corporaes existia uma escala hierrquica, composta de mestre, oficial e aprendiz. oficiais e aprendizes estavam organizados em cada ofcio conforme melhor correspondesse aos interesses dos mestres (MARX e ENGELS, 1981).

Durante a baixa idade mdia, os conflitos entre turcos ortomanos e os europeus foram constantes. Resultou disso, a dificuldade para os europeus estarem comercializando diretamente com o Oriente, visto que os turcos dominaram o comrcio no Mediterrneo. nesse contexto que os europeus procuraram novas rotas martimas a fim de comercializarem diretamente com as ndias. Para tanto, diversas tecnologias foram desenvolvidas a fim de permitir aos europeus viajarem a distantes lugares enfrentando mares desconhecidos.

Sem dvida, foi uma poca de grandes descobertas e avanos tecnolgicos. Podemos destacar a inveno das caravelas, o aperfeioamento do astrolbio, a confeco de vrios mapas martimos e a fundao da escola de Sagres, em Portugal. As grandes navegaes buscavam uma nova rota martima atravs do Oceano Atlntico at as ndias Orientais. Porm, no decorrer desse percurso novas terras e continentes foram descobertos e conquistados pelos europeus, dando incio a uma era de saques, pilhagens, assassnios e extermnio de povos inteiros. Nesse sentido, Huberman afirma:

As descobertas iniciaram um perodo de expanso sem par, em toda a vida econmica da Europa Ocidental. A expanso dos mercados constituiu sempre um dos incentivos mais fortes atividade econmica. A expanso dos mercados, nessa poca, foi maior do que nunca. Novas regies com que comerciar, novos mercados para os produtos de todos os pases, novas mercadorias e trazer de volta, tudo que apresentava um carter de contaminao e estmulo e anunciou um perodo de intensa atividade comercial, de descobertas posteriores, explorao e expanso (1981 p. 99).

Com o aumento do mercado consumidor e a grande demanda por mercadorias, a produo nas corporaes de ofcio tornou-se insuficiente, cedendo lugar pouco a pouco para uma nova forma de produo que foi chamada de manufatura. Nas manufaturas, cada indivduo executava uma determinada tarefa, fazendo com que a produo se intensificasse cada vez mais. Alm dessa diviso do trabalho, as manufaturas eram supervisionadas por alguns comerciantes, que agora tinham sob seus olhos a fabricao dos produtos que mais tarde venderiam nas feiras e mercados.

Nas manufaturas, buscava-se organizar e racionalizar o trabalho com a finalidade de concluir num tempo determinado uma considervel quantidade de mercadorias encomendadas. Para tanto, reparte-se o trabalho entre diversos trabalhadores e as diferentes operaes no so mais efetuadas sucessivamente pelo mesmo operrio, so determinadas em separado a tal ou tal operrio e executadas simultaneamente. Essa repartio acidental se repete, mostra suas vantagens particulares e se cristaliza pouco a pouco sob a forma de diviso sistemtica de trabalho. A mercadoria no mais o produto individual de um operrio independente que completa as diversas tarefas, torna-se o produto social de uma reunio de operrios onde cada qual faz continuamente uma nica e mesma operao parcial (MARX, 1982).

A expanso do comrcio vivida pela Europa nos fins da idade mdia, a cada dia encontrava novos mercados e novas demandas. Dessa maneira, as manufaturas tambm j no davam conta de atender s necessidades do mercado. Em vista disso, houve um grande investimento em novas tecnologias e formas de produzir, que culminaram na chamada revoluo industrial. A revoluo industrial foi marcada pela utilizao da mquina a vapor que intensificou a produo fabril. Porm, o trabalhador passa a ser uma extenso da mquina, tendo o ritmo do seu trabalho determinado por ela.

Neste momento histrico que vai do sculo XVI ao XVIII, as relaes de produo capitalistas que se originaram das contradies existentes no interior da sociedade feudal comeam a predominar em toda Europa. Gradativamente, os conflitos entre servos e senhores feudais so substitudos plos conflitos entre burguesia e proletariado. Se na idade mdia a riqueza era medida pela posse de terra e o poderio militar, agora a riqueza passa a ser medida pela quantidade de dinheiro que se possusse. A burguesia afirma-se cada vez mais enquanto uma classe detentora de grande poder econmico. As concepes medievais que eram marcadas pelo teocentrismo, agora so substitudas por concepes renascentistas e iluministas.

O capital acumulado, que do ponto de vista econmico, serviu de base para o estabelecimento do novo modo de produo, que sucedeu o feudalismo, foi constitudo principalmente atravs do comrcio. Este termo deve ser compreendido de forma elstica, significando no apenas a troca de mercadorias, mas incluindo tambm a conquista, pirataria, saque, explorao. Tal afirmao est fundamentada nas seguintes palavras de Marx:

A descoberta das minas de ouro e de prata da Amrica, o extermnio das populaes indgenas, sua escravizao ou seu enterramento nas minas, a conquista e o comeo da pilhagem das ndias Orientais, a transformao da frica num vasto cercado onde se caavam negros, tudo isso caracterizava a aurora da era da produo capitalista. Esses procedimentos idlicos so os fatores importantes da acumulao primitiva (1982 p. 183).

Para que o capitalismo se consolidasse em quanto modo de produo predominante, urgia, alm do capital acumulado, uma enorme quantidade de trabalhadores despojados dos meios de produo que se dispusessem a vender sua fora de trabalho. Esses trabalhadores foram obtidos principalmente da expulso dos camponeses de suas terras e da runa das corporaes de ofcio. No campo, as prticas econmicas capitalistas tambm se estenderam. Na Inglaterra, com o aumento do preo da l, enormes extenses de terra foram cercadas para a criao de ovelhas, fazendo com que centenas de camponeses sassem do campo em direo aos centros urbanos afim de procurarem trabalho e melhores condies de vida.

Os senhores feudais (...) criaram um proletariado bem mais numeroso ao expulsar pela fora bruta os camponeses das terras que estes possuam com os mesmos ttulos feudais que eles, ao se apropriarem dos bens comunais (...). As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza; a nova, filha de seu tempo, via no dinheiro o poder dos poderes. Sua divisa foi ento: transformao das terras cultivadas em pastagens (MARX, 1982, p 174).

Assim como os camponeses, os artesos tambm foram despojados de seus meios de produo, a fim de se enquadrarem nas relaes de produo capitalista. Com o aumento da produtividade nas manufaturas e mais tarde nas grandes indstrias, o produto artesanal que tinha um custo mais alto para ser produzido j no podia concorrer com os industrializados. Dessa maneira, os artesos tiveram que se desfazer de seus instrumentos de trabalho e vender sua mo de obra aos capitalistas.

Nesse contexto, podemos perceber que a fora de trabalho utilizada pelos capitalistas para a produo das grandes indstrias foi conseguida aps o longo processo de expropriao dos camponeses e arteses que possuam os meios de produo necessrios para fabricar suas mercadorias. Alm disso, com a formao dos Estados nacionais alguns pases se dedicaram explorao de colnias, cobrando impostos dos povos nativos e traficando escravos. Como exemplo pode ser destacado o ocorrido no sculo XX numa aldeia africana, onde um observador das condies nas colnias francesas da frica Ocidental, em 1935, conta qual foi o remdio aplicado queles que no pagavam os impostos por no estarem a servio do processo de produo capitalista:

Uma aldeia do Sul do Sudo no pode pagar os impostos; mandaram para l guardas nativos, que levaram todas as mulheres e crianas da aldeia, colocaram-nas num campo, no centro, queimaram as palhoas, e disseram aos homens que s teriam suas famlias de volta quando pagassem os impostos (HUBERMAN, 1981, p. 265).

Com a utilizao da maquinaria nas fbricas e indstrias, que se intensificou aps a revoluo industrial, no era mais necessria a utilizao de grande fora fsica nos trabalhos fabris. Portanto, tornou-se possvel o aproveitamento de mulheres e crianas nas grandes indstrias, pois o salrio pago a esses trabalhadores era bem mais baixo que os repassados aos homens adultos. Um exemplo da explorao infantil nas fbricas pode ser verificado num relatrio de uma comisso inglesa, que no ano de 1883 mostra um depoimento de Thomas Clarke, um menino de 11 anos de idade, ganhando 4 xelins por semana (com a ajuda do irmo) como emendador de fios. No documento a criana relata que:

Sempre nos batiam se adormecamos... o capataz costumava pegar uma corda da grossura do meu polegar, dobr-la, e dar-lhe ns. Eu costumava ir para a fbrica um pouco antes das 6 por vezes s 5, e trabalhar at s 9 da noite. Trabalhei toda a noite, certa vez, ns mesmos escolhamos isso. Queramos ter algum dinheiro para gastar. Havamos trabalhado desde as 6 da manh do dia anterior. Continuamos trabalhando at s 9 da noite seguinte. Estou agora na seo de cordas. Posso ganhar cerca de 4 xelins... Meu irmo faz o turno comigo. Ele tem 7 anos. Nada lhe dou, mas, se no fosse meu irmo, teria de dar-lhe 1 xelim por semana ... levo-o comigo, s 6, e fica comigo at s 8 (HUBERMAN, 1981, p. 191-192).

Um outro exemplo, mais recente, a respeito da explorao do trabalho infantil, vem dos Estados Unidos da Amrica, atravs de um relatrio apresentado em agosto de 1934. Este relatrio refere-se ao trabalho de crianas desenvolvido no sistema domstico, o qual uma herana do perodo manufatureiro. O mesmo refere-se a um levantamento do trabalho domstico realizado para a indstria de metal pr-fabricado. Os produtos incluem ganchos, colchetes, alfinetes de segurana, alfinetes de cabea e botes de metal. A colocao de cordes ou arames s etiquetas outra operao realizada por alguns dos trabalhadores domsticos pesquisados: Crianas de menos de 16 anos trabalhavam em 96 das 129 famlias estudadas. Metade delas tinha menos de 12 anos. Trinta e quatro tinham 8 anos a menos e doze tinham menos de cinco anos (HUBERMAN, 1981).

Dessa forma, a partir das contradies existentes no modo de produo feudal gradativamente foram se cristalizando as novas relaes de produo capitalista. Nesse modo de produo, a sociedade se divide basicamente em duas classes. De um lado, esto os capitalistas chamados de burgueses que detm os meios de produo e o capital necessrio para produzir nas fbricas e indstrias. De outro lado esto os proletrios, que desde a antigidade foram sendo expropriados dos seus instrumentos de trabalho, lhes restando unicamente vender a sua fora de trabalho para obter seus meios de subsistncia.

As classes fundamentais da sociedade capitalista so a burguesia e o proletariado. A classe burguesa compe-se dos grandes proprietrios no trabalhadores que possuem os meios de produo na indstria e na agricultura. So eles que organizam o trabalho nas empresas que lhes pertencem e, sob a forma de lucro, apropriam-se do produto suplementar criado pelo trabalho no pago dos operrios assalariados.

O proletariado a classe que se ope burguesia e, ao mesmo tempo, a condio indispensvel da sua existncia. Integra os operrios assalariados privados dos meios de produo e dos meios de subsistncia. Para viver, os operrios so obrigados a trabalhar como assalariados para os capitalistas, vendendo-lhes a sua capacidade de trabalhar, ou a sua fora de trabalho (HERMAKOVA E RATNIKOV, 1986, p. 49).

O capital que gerado a partir da venda das mercadorias produzidas nas fbricas e indstrias no surge simplesmente pela troca de tais mercadorias. Esse capital proveniente da explorao que o capitalista exerce sobre os proletrios, pois ao tempo que eles trabalham para garantir o seu salrio acrescentado um tempo suplementar do qual o capitalista se apropria. Esse tempo no pago do trabalho chamado de mais-valia:

A mais-valia produzida pelo emprego da fora de trabalho. O capital compra a fora de trabalho e paga em troca o salrio. Trabalhando, o operrio produz um novo valor, que no lhe pertence, e sim ao capitalista. preciso que ele trabalhe um certo tempo para restituir unicamente o valor do salrio. Mas isso feito, ele no pra, mas trabalha ainda mais algumas horas por dia. O novo valor que ele produz agora, e que ultrapassa ento ao montante do salrio, se chama mais-valia (MARX, 1982, p. 53).

Aps analisarmos o perodo de transio do feudalismo para o capitalismo e tambm a forma pela qual se consolidou o modo de produo capitalista, passamos a verificar de que maneira as pessoas com deficincia se relacionam no interior dessa sociedade.

1.2 AS RELAES EXISTENTES ENTRE AS PESSOAS COM DEFICINCIA E A SOCIEDADE CAPITALISTA

A partir do sculo XIV, a Europa passou por um movimento cultural denominado de Renascimento. Esse movimento resgatava na literatura, nas artes e em diversas manifestaes artsticas e culturais o legado do classicismo greco-romano. As humanidades se difundiram entre os principais intelectuais da poca. Paulatinamente, o teocentrismo medieval cede lugar ao antropocentrismo renascentista, e o homem passa a ser a medida de todas as coisas. Vrios questionamentos comeam a surgir, sobre como deveria se organizar a vida social e religiosa. De tais questionamentos, somados s diferentes formas de pensamento, se inicia o movimento denominado de Reforma Protestante. A Reforma Protestante foi um movimento religioso e cultural, que questionava muitos dos dogmas catlicos e buscava essencialmente colocar a religio a servio dos interesses da burguesia. Sob a Reforma Protestante vejamos o seguinte relato:

Ela dividiu-se em muitas seitas diferentes, mas em todas, e em graus variados, o capitalismo interessado nos bens materiais podia encontrar consolo. Tomemos por exemplo os Puritanos. Enquanto os legisladores catlicos advertiam que o caminho da riqueza podia ser a estrada do inferno, o Puritano Baxter dizia a seus seguidores que se no aproveitassem as oportunidades de fazer fortuna, no estariam servindo a Deus: Se Deus vos mostra o caminho pelo qual podeis ganhar mais, legalmente, do que em qualquer outro (sem dano para a nossa alma ou para qualquer outra) e se recusais, escolhendo o caminho menos lucrativo, estareis faltando a uma de vossas misses, e rejeitando a orientao divina, deixando de aceitar seus dons para us-los quando ele o desejar, podeis trabalhar para serdes ricos para Deus, embora no para a carne e o pecado (HUBERMAN, 1986, p. 179-180).

Ainda sob a Reforma Protestante, vejamos outra seita semelhante:

Tomemos os metodistas. Wesley, seu famoso lder escreveu: no devemos impedir as pessoas de serem diligentes e frugais; devemos estimular todos os cristos a ganhar tudo o que puderem, e a economizar tudo o que puderem; ou seja, na realidade, a enriquecer (HUBERMAN, 1986, p. 180).

Ainda para demonstrar que a teologia crist proposta pelos reformadores estava em conformidade com a nascente nova ordem social, pode-se destacar os calvinistas. Seu fundador, procurando dissociar o lucro do capitalista e o pecado formulou a seguinte questo: por que razo a renda com os negcios no deve ser maior do que a renda com a propriedade da terra? De onde vm os lucros do comerciante, seno de sua diligncia e indstria? (CALVINO apud HUBERMAN, 1981).

Se por um lado, os reformistas se mostravam bastante progressistas em alguns aspectos da vida econmica, por outro continuavam a defender velhas posies no que diz respeito a forma de entender e aceitar as pessoas com deficincia. Isso se torna evidente se observarmos as palavras de Martinho Lutero citado por Pessotti a esse respeito:

H oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. H doze anos, possua vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar pr uma criana normal. Mas ele no fazia outra coisa seno comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando lhe tocava, gritava. Quando as coisas no corriam como queria, chorava. Ento, eu disse ao prncipe de Anhalt: Se eu fosse o prncipe, levaria essa criana ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o prncipe de Anhalt e o prncipe de Saxe, que se achava presente, recusavam seguir o meu conselho. Ento eu disse: Pois bem, os cristos faro oraes divinas na igreja, a fim de que nosso senhor expulse o demnio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano... (1984, p. 13).

Esse relato nos mostra que os protestantes apesar de estarem enquadrados no novo modo de produo ainda defendiam concepes extremamente estigmatizantes com relao s pessoas com deficincia. Mesmo com a grande influncia exercida pela reforma protestante, a igreja catlica continuou a ocupar um importante lugar no cenrio poltico, econmico e social da Europa. Podemos verificar de acordo com os documentos do sculo XVIII, que a igreja catlica continuou a restringir o acesso aos cargos eclesisticos para aquelas pessoas que possussem algum tipo de deficincia. Vejamos de acordo com Thomassin, citado por Silva, um exemplo dessa excluso:

No dia 20 de janeiro de 1789 a sagrada congregao recusou concordar com a ascenso s Santas ordens de um Clrigo manco da diocese de Albenga, na Ligria; o Padre Francois Pujol, da diocese de Vincernnes, na Frana, tendo sofrido um acidente vascular cerebral, perdeu o uso do brao e da mo esquerda; solicitou ao Bispo a dispensa da irregularidade para exerccio das funes sacerdotais e para celebrar a missa numa capela privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregao recusou o pedido no dia 19 de agosto de 1797. O seminarista, Ambroise Lamberti, da diocese de Albenga, tinha um problema de movimentao da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o apoio contnuo de uma bengala. O Bispo da Diocese foi consultado a respeito e opinou que haveria graves inconvenientes em promov-lo s sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada Congregao no dia 20 de janeiro de 1798 (1986, p. 259).

Outro exemplo que nos mostra claramente a excluso dos sacerdotes que tivessem algum tipo de deficincia mesmo aps a sua ordenao, pode ser analisado atravs do seguinte relato:

O sacerdote Philippe Maggiorani, da diocese de Borgo San-Sepolcra, na Toscana, teve sua mo esquerda de tal forma mutilada pela acidental exploso de uma espingarda excessivamente carregada, durante uma caada, que foi necessrio amputar parte do brao para evitar sua morte. Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento de seus trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma nova e humilde solicitao, acompanhada do parecer favorvel de seu bispo e do total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregao, depois de haver submetido o assunto considerao pessoal do papa, manteve a recusa dispensa de irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787 (THOMASSIN apud SILVA, 1986, p. 259).

Com tais exemplos, podemos perceber que a igreja catlica reforou significativamente as concepes e as prticas estigmatizantes no que diz respeito s pessoas com deficincia. Muitas dessas concepes associavam as deficincias com possesses demonacas, o que tornava tais indivduos indesejveis e resultava quase sempre em sua segregao. Apesar dos avanos filosficos e cientficos, ainda hoje podemos observar que muitas seitas religiosas praticam curas e exorcismos, afirmando que a deficincia fsica est diretamente ligada a algum tipo de possesso maligna. Esse tipo de pregao refora ainda mais as concepes metafsicas a cerca da deficincia e contribui para discriminao e excluso das mesmas.

Com a consolidao do modo de produo capitalista, muitas das concepes religiosas e culturais que predominaram durante a idade mdia foram substitudas por um novo iderio cientfico e filosfico patrocinado pela burguesia. Diversos avanos tecnolgicos se fizeram necessrios para alavancar a produo de mercadorias, que deveria ser cada vez maior devido ao alargamento do mercado consumidor. Juntamente com tais avanos, as explicaes medievais sobre a existncia das pessoas com deficincia foram-se alterando gradativamente por novas explicaes calcadas na cincia mdica. Entre esses estudiosos podemos citar os trabalhos de Paracelso (1493-1514) e Cardano (1501-1576), que se dedicavam medicina alquimista.

Na concepo de Paracelso, a causa das deficincias no estava relacionada ao pecado e nem presena de maus espritos. Para ele as pessoas que as possuam eram doentes ou vtimas de foras sobre-humanas csmicas ou no, e so dignas de tratamento e complacncia (PESSOTTI, 1984)

O mdico alquimista Cardano tambm realizou estudos que tentavam desmistificar a causa das deficincias. Para tanto, uniu o misticismo neoplatnico, magia, a astrologia e a cabala, professando tambm sua crena em poderes especiais e em foras csmicas que podem ser responsveis por comportamentos inadequados: Loucos e deficientes so vtimas de tais poderes e, por vezes, at dotados de poderes mgicos desordenados, o que os torna merecedores de ateno mdica (PESSOTTI, 1984).

Apesar dos trabalhos de Paracelso e Cardano ligarem a existncia das deficincias com as foras csmicas, contriburam significativamente para romper com as concepes medievais que eram calcadas na teologia crist. Ao admitirem a possibilidade de tratamento mdico para tais pessoas, deslocaram o problema da esfera teolgica para a terrena.

Ainda no sculo XVI, a origem patolgica tanto da deficincia como da loucura, havia se tornado norma de jurisprudncia j em 1534, desautorizando completamente as vises supersticiosas em ambas.

A loucura e a deficincia mental foram definidas em jurisprudncia, concebida como bobo ou idiota de nascimento a pessoa que no pode contar at vinte moedas, nem dizer-nos quem era seu pai ou sua me, quantos anos tem, etc... de forma que no parece haver possudo conhecimento de qualquer razo da qual se pudesse beneficiar ou que pudesse perder (PESSOTTI, 1984, p. 17).

Para comprovarmos a importncia do enfoque mdico nos diagnsticos das deficincias vejamos:

Com o fortalecimento do enfoque especulativo da medicina o poder de identificar e classificar as deficincias passa a estar centralizada no clnico. Agora o mdico quem avalia e prescreve a forma pela qual a sociedade deve proceder em relao s pessoas com deficincia. O mdico o novo rbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele salva, ele condena (PESSOTTI, 1984, p. 68 grifos do autor).

Outro mdico que atuou no diagnstico das deficincias foi J. Emanuel Feder (1764-1835), nascido na Sabia, regio onde ocorriam muitos casos de bcio. Este mdico introduziu amplas reformas nos hospitais destinados a tratamento de deficientes mentais com a inteno de renovar os processos de tratamento mdico hospitalar. Esse mdico elaborou o Tratado do bcio e do cretinismo, publicado em 1791, aonde reafirma o fatalismo hereditrio da deficincia mental e transforma em lei a idia de que o bcio uma degenerescncia cujo resultado final o cretinismo. Com tal tratado, que foi elaborado a partir de um trabalho desenvolvido por uma comisso nomeada pelo governo, formula-se a lei de que o bcio o primeiro degrau de uma degenerescncia, cuja ltima expresso o cretinismo, que ele no mais que o efeito imediato do bcio, tendo por causa remota sempre pais afetados de bcio (PESSOTTI, 1984).

De acordo com o Tratado do bcio, o cretinismo seria resultado da degenerescncia transmitida pelos pais que possussem a doena. Dessa maneira, a deficincia passa a ser vista com um certo fatalismo hereditrio que pode ser melhor entendido atravs do seguinte relato:

O problema da deficincia mental encontra sua soluo radical na segregao ou esterilizao dos adultos afetados por bcio, de um lado. De outro, implica que a erradicao das causas da incidncia de bcio eliminar, seno todas, a maior parte das incidncias de deficincia mental. Isto porque, eliminando o bcio no mais existiriam cretinos e, portanto, no haveria os semicretinos a procriar filhos que fatalmente seriam cretinos ou no, mnimo, idiotas, imbecis (PESSOTTI, 1984, p. 71).

Os resultados do Tratado do bcio, que trazia uma concepo fatalista e hereditria das deficincias, foram nefastos e agravaram ainda mais a segregao e a discriminao desse segmento social.

Com a intensificao da produo capitalista aps a insero do maquinismo, mulheres e crianas foram integrados no trabalho fabril na maioria das vezes em condies sub-humanas, o que quase sempre resultava em uma limitao fsica ou sensorial. Um exemplo disso nos dado por Villerm citado por Rocha:

Eles [os trabalhadores] compem-se principalmente de famlias pobres carregadas de crianas de pouca idade... preciso v-los chegar a cada manh cidade e partir a cada tarde. Existe entre eles uma multido de mulheres plidas, magras, caminhando com os ps nus no meio da lama... e um nmero ainda mais considervel de crianas no menos sujas, no menos macilentas, cobertas de farrapos sujos com o leo dos teares que caiu sobre eles enquanto trabalhavam. Essas crianas, mais resguardadas da chuva pela impermeabilidade de suas roupas (regadas pelo leo imundo dos teares) ... Levam na mo ou escondem sob as roupas ou de qualquer maneira o pedao de po que deve aliment-las at o momento de voltarem para casa (1997, p. 20).

Um exemplo da degradao causada aos trabalhadores das fbricas aps a insero do maquinismo que provocou milhares de deficincias na Frana foi descrita da seguinte maneira:

Em 1837, o prprio Villerm estudando as condies dos dez departamentos mais industrializados, constara que, dentre dez mil jovens alistados, a inacreditvel porcentagem de invlidos e deformados de 89,8%, ou seja, mesmo entre os sobreviventes da indstria, nove em cada dez estavam definitivamente deformados por ela. Os nmeros da destruio industrial da juventude francesa caem um pouco nos anos seguintes, mas continuam alarmantes. Os alistados recusados por deficincia fsica em vrias regies francesas passam de 60% no incio dos anos 40. O relatrio nacional sobre o estado fsico dos rapazes alistados em 1866 revela que, simplesmente, um tero da populao de jovens franceses tem que ser reformada (recusada para o servio militar) por incapacidade fsica: raquticos, mutilados, reumticos, corcundas e mancos so algumas das categorias nas quais se enquadram a juventude que a espoliao fabril e sua misria degradaram (ROCHA, 1997, p. 21-22 grifos do autor).

Ento, as mutilaes e a degradao causada pelo maquinismo fabril foi a responsvel por grande parte das deficincias no sculo XIX. Porm, apesar disso ser evidente, a cincia mdica continuou se afastando da realidade material atravs de seus diagnsticos fatalistas. Dessa forma, Augustin Morel desenvolve a teoria da degenerescncia humana, que pode ser descrita da seguinte maneira:

Trata-se, como se sabe, de uma obra pr-darwinista de 1857 que, apoiada na doutrina medieval da queda, supe que a espcie humana sofreu um desmembramento involutivo, de onde se originariam os degenerados. A degenerao seria sempre hereditria e progressiva, de tal forma que, pelo seu inevitvel agravamento nos descendentes, conduziria a (...) estirpe degenerada extino (ROCHA, 1997, p. 22-23).

No h muita diferena entre o Tratado de Feder e o de Morel, no que se refere s causas da deficincia mental ao entender o cretinismo como produto fatal do bcio. Morel, porm, admite que a idiotia e a imbecilidade podem tambm resultar de outra linha de degenerescncia da espcie: a das causas txicas, mais precisamente o alcoolismo dos pais (PESSOTTI, 1984).

Por meio do Tratado da degenerescncia humana, pode-se isentar o processo de trabalho enquanto causador da degradao fsica, sensorial e mental de homens, mulheres e crianas. Plena de conivncia patronal, a cincia da degenerescncia j tinha comprometido seus diagnsticos profissionais quando formulara sua doutrina: os resultados da degradao como manifestao sintomtica de degenerados que j vinham se afastando da normalidade humana h geraes (ROCHA, 1997).

Com o Tratado das degenerescncias, agravam-se as estigmatizaes imputadas s pessoas que possussem algum tipo de deficincia fsica ou sensorial. Desse momento em diante as deficincias passam a ser vistas como uma doena que precisa ser controlada de gerao gerao.

Dessa forma, com o Tratado da degenerescncia de Morel, a deficincia mental regride ao status de ameaa segurana pblica e sade das famlias e povoaes. a nova peste, a nova lepra a requerer a mobilizao defensiva dos imunes; no que pudesse algum ser contagiado enquanto pessoa: o sangue, a genealogia, a raa que ficavam expostos ao contgio fatal (PESSOTTI, 1984).

O resultado mais imediato dessa concepo fatalista acerca da deficincia foi o retorno s velhas prticas medievais da segregao em hospitais e asilos. As pessoas com deficincia passam a ser vistas como ameaa e precisam ser separadas do restante da populao. As vtimas das grandes indstrias agora so vistas como desajustados sociais e no se enquadram na lgica capitalista. Nesse sentido vejamos:

A fbrica, que j enclausurara o trabalho, agora internar tambm o resultado de sua ao sobre a populao: sero trancafiados nos morredouros manicomiais, para serem devidamente exterminadas, as vtimas que carregavam no corpo os sinais da degenerao com os quais a fbrica e a nova medicina mental os estigmatizara (ROCHA, 1997, p. 22-23 grifos do autor).

As teorias que tratavam a deficincia enquanto degenerescncia humana contriburam para a formao de iderios que mais tarde norteariam prticas preventivas como a total segregao e a esterilizao. Vejamos o pensamento de Tredgoid, em 1909 citado por Pessotti (1984), a respeito:

Proponho, como princpio geral, que a partir do momento em que uma nao alcance um dado nvel de civilizao, e em que a cincia mdica e os sentimentos humanitrios concorram para prolongar a vida dos desequilibrados, se torne ento indispensvel que essa nao adote leis sociais que garantam que esses incapazes no propagaro a sua espcie ( p. 186).

Nesse mesmo sentido Fernal citado por Pessotti (1984), escreveu em 1912 o seguinte:

O perodo atual caracteriza-se por uma tomada de conscincia brutal, tanto por parte dos profissionais como do pblico, a respeito da extenso considervel da deficincia mental, e de sua influncia como fonte de misria para o prprio doente e sua famlia, como fator causal do crime, da prostituio, da pobreza, dos nascimentos ilegtimos, da intemperana, e de outras doenas sociais complexas. O fardo social e econmico da deficincia mental simplesmente no muito conhecido. Os deficientes mentais constituem uma classe parasita, rapace, completamente incapaz de bastar-se e de tratar de seus prprios assuntos. A sua grande maioria vem a tornar-se, de uma maneira ou de outra, num encargo pblico. Causam um desgosto inconsolvel sua famlia e so uma ameaa e um perigo para a comunidade. As mulheres deficientes mentais so quase invariavelmente imorais e, em liberdade, so geralmente agentes de propagao de doenas venreas, ou do origem a crianas to deficientes como elas ... Todo deficiente mental, e principalmente o imbecil ligeiro, um criminoso em potencial que necessita apenas de um meio favorvel para desenvolver e exprimir suas tendncias criminosas ( p.186).

Como podemos perceber, o enfoque fatalista acerca das deficincias causou atitudes extremistas para com este segmento social. Prova disso foram as medidas eugenistas que em muitos pases da Europa e da Amrica esterilizaram milhares de pessoas com deficincia. Alm disso, podemos ressaltar a eliminao de tais pessoas nos campos de concentrao nazistas, onde eram chacinadas aos milhares, com o objetivo de purificar a raa ariana.

Apesar da brutalidade de tais prticas, gradativamente a cincia mdica, que foi em parte responsvel por tais absurdos, avanou significativamente em seus diagnsticos passando a encarar a deficincia de forma mais objetiva e humana. Assim sendo, pouco a pouco as pessoas com deficincia passam a ter direitos no interior da organizao social. Isso se reflete principalmente na necessidade de estender a educao a tais pessoas. Antes de analisarmos a educao das pessoas com deficincia no capitalismo, vejamos alguns aspectos importantes a respeito da implantao da escola enquanto instituio hegemnica na transmisso dos saberes produzidos e acumulados historicamente.

1.3 A EXPANSO DA ESCOLA PARA AS CLASSES POPULARES; UM INSTRUMENTO IDEOLGICO A SERVIO DA BURGUESIA

Com a consolidao do modo de produo capitalista, ocorreram profundas transformaes no interior da sociedade medieval. Muitos dos costumes foram substitudos por novas leis, que agora passam a ter abrangncia nacional. As relaes de produo se alteraram, o trabalho servil foi substitudo pelo assalariado e a burguesia afirmou-se enquanto classe dominante. A produo artesanal, que na idade mdia era executada nas corporaes de ofcio, foi substituda inicialmente pelas manufaturas, onde introduziu-se a diviso social do trabalho e, mais tarde, aps a revoluo industrial, pela grande indstria onde o operrio passou a ser um apndice da mquina.

Essas transformaes que representaram o fim do modo de produo feudal e o incio de uma nova organizao social calcada no trabalho assalariado e na propriedade privada, trouxeram novas exigncias em diversas reas sociais. Gradativamente, os costumes e as classes sociais medievais cederam lugar para a burguesia e as relaes de produo capitalistas. Sobre essa transformao PONCE afirma:

Os burgueses compraram as suas terras: a plvora derrubou os seus castelos. Os navios apontavam agora as rotas de um continente remoto, mais inacessvel do que as princesas de Trpoli, que s poderia ser conquistado mediante a indstria e o comrcio (1992, p. 112).

No modo de produo capitalista, ocorre a sada de uma grande massa de camponeses que anteriormente trabalhavam nos feudos em direo s cidades. Alm disso, os artesos que antes trabalhavam nas corporaes de ofcio, aps serem despojados de seus meios de produo foram obrigados a incorporarem-se indstria capitalista. Tais transformaes fizeram com que surgissem novas necessidades sociais e culturais. Entre essas necessidades impem-se a organizao de uma escola que desse conta de educar essa grande massa de trabalhadores assalariados e urbanos.

A preparao para o trabalho sempre existiu de alguma forma nos modos de produo anteriores, em especial o escravismo e o feudalismo. As crianas e os jovens eram de alguma maneira preparados para a vida adulta. Porm, devemos destacar o carter classista dessa educao, pois para a classe dominante era reservada uma instruo voltada para o poder e o cio, enquanto que as classes dominadas tinham sua aprendizagem no prprio ambiente de trabalho ou no seio de suas famlias.

Na Roma arcaica, por exemplo, com uma mistura de aprendizagem familiar e participao na vida adulta em geral, essa preparao ocorria da seguinte forma:

o jovem varo simplesmente acompanha o pai no trabalho da terra, no foro ou na guerra, enquanto as filhas permanecem junto me ajudando-a em outras tarefas. Na economia camponesa, mesmo em nossos dias, a sede da aprendizagem social e para o trabalho continua sendo a famlia. Para o campons auto-suficiente, a escola no podia oferecer outra coisa que doutrinamento religioso e, em seu caso, poltico. As destrezas e os conhecimentos necessrios para seu trabalho podiam ser adquiridos no prprio local de trabalho: e de qualquer forma, a escola no os oferecia (ENGUITA, 1989, p. 104).

Na idade mdia, as prticas no se diferenciavam significativamente, da antigidade porm ocorria o intercmbio de crianas entre as famlias, a fim de que estas fossem educadas como aprendizes. Sobre esse assunto vejamos o relato de Philippe ries citado por ENGUITA a respeito:

A falta de corao dos ingleses manifesta-se particularmente em sua atitude para com seus filhos. Aps hav-los tido em casa at os sete ou nove anos (entre nossos autores clssicos, sete anos a idade em que as crianas deixam as mulheres para incorporar-se escola ou ao mundo dos adultos), colocam-nos, tanto os meninos quanto as meninas, no duro servio das casas de outras pessoas, s quais as crianas ficam vinculadas por um perodo de sete a nove anos (portanto, at a idade de quatorze a dezoito anos, aproximadamente). So chamados ento de aprendizes, durante este tempo desempenham todos os ofcios domsticos. H poucos que evitam este tratamento, pois todos, qualquer que seja sua fortuna, enviam assim seus filhos s casas de outros enquanto recebem por sua vez as crianas alheias (1989, p. 105).

Nesse contexto, o mesmo autor descreve como era a educao das classes altas na idade mdia.

As crianas eram enviadas a outra casa com um contrato ou sem ele. Ali aprendiam boas maneiras e talvez fossem levadas a uma escola embora estas no fossem muito apreciadas pelas classes altas. Desempenhavam funes servis e no ficava muito clara a fronteira entre os serventes propriamente ditos e os jovens encarregados de sua educao a eles prprios: vem da que os livros que ensinavam boas maneiras para os serventes se chamassem em ingls books, ou que a palavra Valet servisse tambm para designar os meninos, ou que o termo garon designasse tambm ambas as coisas e se conserve ainda hoje, na Frana, para designar quem serve as mesas nos restaurantes (o termo Espanhol mozo talvez inclua-se no mesmo caso). Esta era a via normal de aprendizagem, enquanto a escola, pelo menos alm das primeiras letras, ficava reservada para os que estavam chamados a ser copistas ou algo similar (ENGUITA, 1989 p. 105).

No artesanato, podemos observar o intercmbio de crianas entre diferentes mestres arteses durante o perodo da idade mdia. Vejamos a descrio de Scott citado por Enguita sobre esse assunto:

Esta espcie de intercmbio familiar tinha lugar de forma especial no artesanato. O mestre arteso acolhia um pequeno nmero de aprendizes entrando com eles numa relao de mtuas obrigaes. O aprendiz estava obrigado a servir fielmente ao mestre no apenas nas tarefas do ofcio, mas no conjunto da vida domstica. O mestre estava obrigado a ensinar-lhes as tcnicas do ofcio, mas tambm a aliment-lo e a vesti-lo, dar lhe uma formao moral e religiosa e prepar-lo para converter-se em um cidado (1989, p. 105-106).

Como podemos perceber, na idade mdia existia algum tipo de preparao para vida adulta e o trabalho, porm essa preparao raramente ocorria nas escolas. Ela se dava no prprio ambiente de trabalho, sendo que o intercmbio de jovens aprendizes era bastante recorrente. Com o desenvolvimento das manufaturas o quadro social se alterou, a utilizao das mquinas na produo e a diviso do trabalho fizeram surgir a necessidade de uma instituio que alm de resolver o problema da mendicncia e das crianas abandonadas, tambm preparasse minimamente a mo de obra que seria utilizada nessas indstrias.

Em estes reinos de seis anos a esta parte, pessoas piedosas tm dado ordem para que haja colgios de meninos e meninas, desejando dar remdio a grande perdio que de vagabundos, rfos e crianas desamparadas havia, (...) porque certo que ao se remediar estas crianas perdidas pe-se obstculos aos latrocnios, delitos graves, e enormes, que por se criado em liberdade de necessidade ho de ser quando grandes gente indomvel, destruidora do bem pblico, corrompedora dos bons costumes, contaminadora das gentes e povos (VARELA apud ENGUITA, 1989, p. 108).

Como j vimos, a insero da maquinaria na indstria permitiu a explorao de mulheres e crianas nos trabalhos fabris na medida em que no era mais necessrio grande fora fsica para a execuo de tais tarefas. Um exemplo disso exposto por Furniss citado por Enguita, da seguinte maneira:

Foi o desenvolvimento das manufaturas que converteu definitivamente as crianas na guloseima mais cobiada pelas indstrias: diretamente, como mo-de-obra barata, e indiretamente, como futura mo de obra necessitada de disciplina. O momento culminante dos orfanatos e, em geral, do internamento e disciplinamento das crianas em casas de trabalho e outros estabelecimentos similares foi o sculo XVIII. Na Inglaterra, as Workhouses converteram-se em Schools of. industry you colleges of Labour. O essencial no era j por os vagabundos e seus filhos fazer em um trabalho til com vistas sua manuteno, mas educ-los na disciplina e nos hbitos necessrios para trabalhar posteriormente (1989, p. 108).

Apesar da escolaridade se estender s camadas populares, em especial aos excludos sociais, podemos constatar que essa educao se restringia aos preceitos morais e disciplinares sendo, que na maior parte os orfanatos davam grande nfase explorao dessas crianas nos trabalhos em suas oficinas de manufaturas. Esse trabalho comeava bem cedo, geralmente aos quatro ou cinco anos e era explorado em longas jornadas de trabalho.

Quando estas crianas tiverem quatro anos, sero enviadas a uma casa de trabalho rural e ali, ensinadas a ler duas horas ao dia e mantidas plenamente ocupadas o resto de seu tempo em qualquer das manufaturas da casa (...). de considervel utilidade que estejam, de um modo ou outro, constantemente ocupadas ao menos doze horas ao dia, quer ganhem a vida ou no; pois, por este meio, esperamos que a gerao que est crescendo estar to habituada ocupao constante que, em geral, lhe ser agradvel e divertida (FURNISS apud ENGUITA, 1989, p. 108).

Como podemos constatar, desde o incio do modo de produo capitalista a burguesia percebeu a importncia de se manter escolas que atuariam tanto no sentido de estar preparando a mo-de-obra para as fbricas quanto no sentido de estar disciplinando coercitivamente esses futuros trabalhadores assalariados. Porm, a escola no se constituiu enquanto uma conceo da burguesia para as classes trabalhadoras. Ela se consolidou inserida no movimento contraditrio da sociedade capitalista, satisfazendo discimuladamente os interesses da classe burguesa. Nesse sentido, uma questo que suscitou inmeros debates e controvrsias entre os pensadores da burguesia foi a questo relativa a qual tipo de educao deveria ser dada s massas trabalhadoras. A esse respeito, vejamos:

Os pensadores da burguesia em ascenso recitaram durante um longo tempo a ladainha da educao para o povo. Por um lado, necessitavam recorrer a ela para preparar ou garantir seu poder, para reduzir o da igreja e, em geral, para conseguir a aceitao da nova ordem. Por outro, entretanto, temiam as conseqncias de ilustrar demasiadamente aqueles que, ao fim e ao cabo, iam continuar ocupando os nveis mais baixos da sociedade, pois isto poderia alimentar neles ambies indesejveis (ENGUITA, 1989, p. 109).

Entre os pensadores que se posicionaram a respeito dessa questo podemos destacar as concepes defendidas por John Locke: este filsofo que passa ainda por ser um dos inspiradores da educao moderna, porque escreveu sobre como deveria ser a educao de um gentleman (apesar de ter proposto o internamento das crianas pobres). No duvidou em declarar:

Ningum est obrigado a saber tudo. O estudo das cincias em geral assunto daqueles que vivem confortavelmente e dispem de tempo livre. Os que tm empregos particulares devem entender as funes; e no insensato exigir que pensem e raciocinem apenas sobre o que forma sua ocupao cotidiana (LOCKE apud ENGUITA, 1989, p. 109-110).

Muitas foram as divergncias acerca de qual seria a melhor educao a ser dada para a massa trabalhadora. De um lado, estavam aqueles que defendiam a expanso da escola como instrumento de preparao para o trabalho e tambm para ilustrar aqueles que viviam na ignorncia. De outro, encontravam-se aqueles que temiam a escola, pois ela poderia suscitar aspiraes indesejveis entre a massa trabalhadora. No entanto, aps algumas divergncias, a burguesia estabeleceu um consenso sobre tal questo.

A via intermediria era a nica que podia suscitar o consenso das foras bem-pensantes; educ-los, mas no demasiadamente. O bastante para que aprendessem a respeitar a ordem social, mas no tanto que pudessem question-la. O suficiente para que conhecessem a justificao de seu lugar nesta vida, mas no ao ponto de despertar neles expectativas que lhes fizessem desejar o que no estavam chamados a desfrutar. Que melhor, para isto, que a religio? (ENGUITA, 1989, p 111).

Nesse sentido, vrios ilustrados defenderam a posio de que o ensino religioso seria o mais apropriado para as classes populares. Vejamos alguns deles:

Quanto mais claro ficar que os impostos mantm o povo na misria, mais indispensvel se torna dar lhe uma educao religiosa; porque na irritao da desgraa que se precisa sobretudo tanto de uma potente cadeia quanto de uma consolao cotidiana (CHARLOT E FIGEAT apud ENGUITA 1989 p. 111-112).

nesse cenrio de conflitos ideolgicos que a escola consolida-se enquanto instrumento de doutrinamento e formao da massa trabalhadora. Uma prova disso pode ser vista da seguinte maneira:

A f, a piedade, a humildade, a resignao ou as promessas de que o reino dos cus passaria a ser dos pobres e que os ltimos seriam os primeiros podiam ser suficientes para obter a submisso passiva do trabalhador, especialmente do campons fragmentado, ignorante e apegado incondicionalmente s normas da propriedade, mas no para conseguir a submisso ativa que o trabalho industrial exige do operrio assalariado. Os cercamentos, a dissoluo dos laos de dependncia, a superpopulao relativa e a runa dos pequenos artesos bastavam para que a fora de trabalho aparecesse no mercado por seu valor de troca, mas no asseguravam a extrao de seu valor de uso. Para isto era necessrio o concurso da vontade do trabalhador, e, portanto, nada mais seguro que mold-la desde o momento de sua formao. O instrumento idneo era a escola. No que as escolas tivessem sido criadas necessariamente com este propsito, nem que j no pudessem ou fossem deixar de cumprir outras funes: simplesmente estavam ali e se podia tirar bom partido delas. Os grandes industriais logo perceberam o poderoso instrumento disciplinar que a escola representava. Desde ento passaram a incentiv-la fervorosamente. Outro ponto da educao moral sobre o qual nunca se insistira demasiadamente o que concerne obedincia e disciplina na oficina. Porque a produo moderna no verdadeiramente til e benfica seno na medida em que se baseia em uma organizao metdica. Entretanto na base, de toda a organizao no possvel substituir a autoridade pela anarquia. preciso, portanto, que o operrio aprenda a vencer suas resistncias naturais ao dever absoluto de obedecer, e isto o que lhe ensinaremos nas Epinettes (...). a disciplina na oficina constitui a dignidade bem atendida do operrio; a higiene e a previso terminam por fazer dele um homem consumado (CHARLOT e FIGEAT, apud ENGUITA 1989, p. 113-114).

A escola podia realizar isto e devia faz-lo. Era s uma questo de tempo para que os patres em seu conjunto compreendessem os belos e lucrativos frutos que podia oferecer uma educao popular bem entendida.

A respeito dos fiandeiros de linho de Westmorland afirmava-se que a educao havia melhorado a conduta e os hbitos de subordinao dos operrios fabris em geral, o que claramente observvel no fato de que no se emprega palavres, na aparncia limpa e asseada e em um aumento da diligncia na freqncia aos lugares de culto (SILVER apud ENGUITA, 1989, p. 114).

Como podemos ver, a expanso da escola para as classes populares deu-se na esteira do desenvolvimento das relaes de produo capitalistas. No objetivo desse trabalho analisar profundamente os diferentes rumos que a educao tomou em cada um dos Estados Nacionais Europeus. O que objetivamos demonstrar de que maneira a escola chegou at as classes populares e como ela serviu aos interesses das classes dominantes. Aps termos analisado essa questo, nos voltaremos para a educao das pessoas com deficincia, como ela se organizou em seus objetivos, funes e suas peculiaridades.

1.4 A EDUCAO DA PESSOA COM DEFICINCIA NO MODO DE PRODUO CAPITALISTA: A SEGREGAO DOS ELEMENTOS PERTURBADORES DA ORDEM VIGENTE

A criao de oportunidades educacionais para as pessoas com deficincia um advento da sociedade moderna. Apesar de alguns indivduos com deficincia terem recebido educao formal em perodos anteriores, a partir do sculo XVIII, que essa educao se institucionaliza. Ao analisarmos esse processo, no devemos considerar esse fato de maneira desconexa, onde a educao para as pessoas com deficincia seria apenas um prolongamento da educao que j vinha sendo oferecida para as classes populares. Pelo contrrio, devemos estud-la como um evento que se insere no movimento contraditrio que inclui de um lado a caridade pblica, e por outro a segregao dos elementos que no se enquadravam nas novas relaes capitalistas que so calcadas na homogeneidade. Partindo desse pressuposto, estudaremos alguns aspectos da educao especial que surgiu especialmente na Frana no final do sculo XVIII, e se expandiu rapidamente por diversos pases.

Silveira Bueno analisa a historiografia de educao especial e descreve de que forma os historiadores trataram do assunto:

Muito pouco tem sido escrito sobre a histria da educao especial e o material bibliogrfico disponvel apresenta como decorrncia da evoluo das civilizaes, iniciando com a morte dos anormais na pr-histria e culminando com o esforo para integrao do excepcional na poca contempornea.

Essas interpretaes sobre o percurso histrico dos excepcionais e da educao especial reproduzem, pr um lado, o cientificismo neutro que separa tanto os primeiros quanto a segunda da construo histrica da humanidade, na medida em que a excepcionalidade vista como uma caracterstica estritamente individual, diferente da espcie, enquanto que a educao especial se confina ao esforo da moderna sociedade democrtica de integrao desses sujeitos intrinsecamente diferentes ao meio social. Por outro lado, fragmentada e descontextualizada, na medida em que no os correlacionam nem com o desenvolvimento da educao em geral, muito menos com as transformaes sociais, polticas e econmicas porque passaram as diversas formaes sociais. Em decorrncia, na medida em que no partem das condies concretas de vida e das formas com que os homens se organizam para produzir sua vida material, passam a considerar a sociedade moderna, independentemente das formas de sua organizao social, como o perodo em que se est realizando a redeno dos excepcionais (1993, p.55-56).

Em seus estudos sobre a histria da educao especial Silveira Bueno critica a abordagem positivista da histria, onde as contradies existentes no interior das sociedades so relegadas a segundo plano. Este autor analisa os estudos de diversos historiadores, e sobre eles se refere da seguinte maneira:

A maior parte dos escritos que, de alguma forma, se dedica histria da educao especial, considera o sculo XVI como a poca em que se iniciou a educao dos deficientes, atravs da educao da criana surda. Antes disso, segundo esses autores, os deficientes eram encaminhados aos asilos, onde permaneciam segregados e sem ateno, ou ento, viviam como mendigos, sobrevivendo s custas da caridade pblica. Esse perodo considerado como uma poca de precursores, pr se restringir somente a criana surda, pr no se desenvolver atravs da instituio escola (como ocorrer a partir do sculo XVIII) e por envolver um nmero reduzido de deficientes (1993, p. 58).

De acordo com os historiadores da educao especial, no sculo XVI surgiram os primeiros educadores que se ocuparam com a educao especial, principalmente na rea da surdez. Assim sendo, vejamos o seguinte relato a respeito:

Cardan inventou um cdigo para ensinar os surdos a ler e escrever, semelhana do futuro cdigo de escrita e leitura Braille para os cegos que surgiria apenas no sculo XIX. Foi Cardan quem influenciou as idias do monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Lon (1520 - 1584), muito dedicado a educao dos deficientes auditivos e que nunca escreveu sobre seu mtodo de trabalho (SILVA, 1986, p. 227).

atribudo ao monge Beneditino Pedro Ponce o papel de iniciador da educao especial, atravs de seu trabalho com crianas surdas, iniciando em 1541, na Espanha, tendo educado uma dezena de surdos-mudos, filhos todos eles de grandes personagens da corte espanhola, morrendo em 1549 (QUIRS e GUELER apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 58).

No sculo XVI tambm existiram outras iniciativas para se educar a pessoa que possusse surdez. Entre essas iniciativas podemos destacar o trabalho do mdico Francs Laurent Joubert (1529-1582), que se pronunciava da seguinte maneira:

A habilidade existia em toda e qualquer criana, mesmo nas nascidas surdas ou que mais tarde viriam se tornar surdas. O mestre dessas crianas deveria agir com pacincia e cuidado, pois da mesma forma como uma criana aprende uma lngua estrangeira poder aprender a se comunicar em seu prprio ambiente se ela for surda. Devia o mestre comear por palavras simples e pequenas, reforando sempre as expresses faciais. E acrescentava sua enftica opinio: a criana com deficincia auditiva aprenderia a falar mesmo sem ouvir, desde que ensinada com pacincia (MULLETT apud SILVA, 1986, p. 228).

Ainda segundo este mesmo autor, no sculo XVII podem ser destacados como grandes expoentes na educao de pessoas surdas, os nomes do espanhol Juan Pablo Bonet e do ingls John Bulwer. O primeiro defendia que a melhor idade para que uma criana surda pudesse ser ensinada a falar, era entre os seis e oito anos e, ainda, afirmava que havia basicamente duas causas que levavam uma pessoa a no se expressar oralmente:

A mais importante era a surdez; a outra podia ser algum eventual defeito na lngua. O ltimo propunha que as pessoas, com um olhar observador, podiam entender o que lhes dito oralmente pela observao dos movimentos dos lbios. Desta forma, buscava provar que uma criana nascida surda pode ser ensinada a ouvir o som das palavras com seu olhar e de aprender a falar sua lngua (SILVA, 1986, p. 242-243).

Alm das referncias ao trabalho de preceptores de crianas surdas na Espanha e na Inglaterra, existem tambm relatos sobre a atuao de outros profissionais em diversos pases, tais como: na Itlia (Francesco Lana Terzi), na Frana (Lucas e Rousset), na Holanda (John Comad Amman) e na Alemanha ( Wilhelm Kerger ), todos ainda no sculo XVII ou incio do XVIII (Quirs e Gueler apud Silveira Bueno, 1993).

Apesar dos relatos acima irem ao encontro daqueles que afirmam que a educao das pessoas surdas foi iniciada nos sculos XVI, existem outros que apontam para perodos anteriores. Dentre estes, cabe destacar:

Rodolfo Agrcola (...), ainda no sculo XV, declarou (...) haver visto um surdo que havia aprendido a ler e escrever, apesar de estar privado da audio desde seus primeiros anos de vida e que, pr conseqncia, era tambm mudo (...) Rabelais no sculo XV, que incluiu em uma de suas obras (o terceiro livro de fatos e ditos hericos de Pantagruel) um personagem surdo que podia entender o que lhe falavam, atravs da leitura dos lbios (...) e de Bartolo, que ainda no sculo XVI, deixou registrado o fato (...) de que um surdo poderia ter leitura de lbios (QUIRS E GUELER apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 60).

Como podemos perceber, a educao dos surdos provavelmente se iniciou antes do sculo XVI, com o trabalho de diversos preceptores que utilizavam diferentes mtodos para essa instruo. Uma caracterstica marcante que deve ser observada ao estudarmos esse perodo o carter classista dessa educao.

Na Espanha a quase totalidade das crianas surdas educadas por preceptores pertencia nobreza, j na Inglaterra e na Holanda, esse atendimento se estendia a negociantes abastados que j possuam um certo poder, mesmo que somente econmico, embora o poder poltico permanecesse nas mos da nobreza (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 59).

A educao das pessoas cegas tambm se iniciou nos primrdios do capitalismo. Essa educao era ministrada geralmente por preceptores e quase sempre baseava-se unicamente na linguagem oral. Da mesma forma que na educao dos surdos, os cegos que tinham acesso a essa instruo eram em sua maioria pertencentes classe dominante.

A par daqueles milhares de cegos infortunados, pertencentes ao povo mido, que viviam prpria sorte ou internados em asilos, alguns poucos, nesse mesmo perodo, conseguiram se destacar, no porque tivessem recebido atendimento especializado, mas porque a limitao imposta por sua deficincia no impedia nem o contato social, nem a aprendizagem de conhecimentos, com exceo da escrita, porque ambos poderiam se basear exclusivamente na linguagem oral. claro que pertenciam s elites, mas no podem ser considerados como dependentes ou desassistidos (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 61).

Dos cegos que tiveram acesso a uma educao de qualidade que possibilitou a sua atuao nos mais diversos setores da sociedade, existem alguns que podemos destacar:

(...) Antnio de Cabezon, compositor cego que viveu na Espanha ainda no comeo do sculo XVI, que foi um dos maiores e mais conceituados compositores de msica para rgos da Espanha. Cabezon nasceu em Castrilho de Matajudos no dia 30 de maro de 1500 e morreu em Madri no ano de 1566. Cego desde a primeira infncia, conseguiu a custo superar todas as dificuldades que se lhe interpunham e em 1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia. Alguns anos aps, j com 26 anos de idade, foi designado organista e clavicordista da Rainha Isabel da Espanha, tal a sua competncia na execuo da msica sacra nesses dois instrumentos (SILVA, 1986, p. 232).

Tambm so reconhecidas enquanto pessoas cegas que ganharam grande dest