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Relações de poder formadas pela linguagem: uma análise de comentários de plataforma digital sob o olhar da Sociolinguística Alice Stenzel (UNIOESTE) Orientadora: Jéssica Paula Vescovi (UNIOESTE) Resumo: A variação linguística é característica indissociável de todas as línguas naturais. Quando falantes de variáveis diferentes entram em contato, há a tendência de haver um estigma social dos grupos, orientado pelas relações de poder formadas pela linguagem e, consequentemente, pelas ideologias que os permeiam. Diante disso, e partindo da ideia de que a internet é uma amplo espaço para manifestações dos internautas, este trabalho utilizou comentários postados em vídeos da plataforma digital YouTube que tratam de variáveis linguísticas diferentes para verificar quais estereótipos, opiniões e senso comum são manifestados acerca da variação linguística em cada um deles, a partir dos conceitos de variante padrão ou de prestígio e variante não-padrão ou estigmatizada. A fundamentação teórica do estudo baseia-se em Calvet (2002) e Tarallo (1990 [2005]). Palavras-chave: Sociolinguística; variação linguística; identidade linguística. Abstract: Language variation is an indissociable characteristic of all natural languages. When speakers of different varieties interact, there is a tendency to occur a social stigma of the groups, regulated by the power dynamic established by the language and, consequently, by the ideologies that permeate the groups. That said, and based on the idea the internet is a wide space for users to express themselves, this study uses comments posted on videos of the digital platform YouTube, which talk about different language varieties, to verify what stereotypes, opinions and common sense about the linguistic variation are found in each of videos, from the concepts of standard or high-prestige variety and non-standard or low-prestige variety. The theoretical framework of this study is based on Calvet (2002) and Tarallo (1990 [2005]). Key words: Sociolinguistics; language variation; language identity. Introdução Considerar a linguagem enquanto um fenômeno natural e em constante movimento é escopo recente. Ao outorgar a linguagem enquanto ciência a linguística-, Saussure propunha a existência de uma dicotomia essencial: língua e fala. Para o mestre genebriano, a língua constitui-se como “um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas”, sendo ela um objeto de natureza homogênea, compreendida como um ato social. É o conjunto do qual “permite a uma pessoa compreender e fazer-se compreender” (SAUSSURE, 2012, p. 92). A fala, por sua vez, é apresentada pelo autor como multifacetada e heterogênea, sendo um ato individual do falante, não sendo considerada em seus estudos. Como ele próprio afirma “a língua é para nós a linguagem menos a fala” (SAUSSURE, 2012, p. 92). Desta forma, para Saussure, a língua(gem) seria essencialmente arbitrária e homogênea.

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Relações de poder formadas pela linguagem: uma análise de comentários de plataforma

digital sob o olhar da Sociolinguística

Alice Stenzel (UNIOESTE)

Orientadora: Jéssica Paula Vescovi (UNIOESTE)

Resumo: A variação linguística é característica indissociável de todas as línguas naturais.

Quando falantes de variáveis diferentes entram em contato, há a tendência de haver um estigma

social dos grupos, orientado pelas relações de poder formadas pela linguagem e,

consequentemente, pelas ideologias que os permeiam. Diante disso, e partindo da ideia de que

a internet é uma amplo espaço para manifestações dos internautas, este trabalho utilizou

comentários postados em vídeos da plataforma digital YouTube que tratam de variáveis

linguísticas diferentes para verificar quais estereótipos, opiniões e senso comum são

manifestados acerca da variação linguística em cada um deles, a partir dos conceitos de variante

padrão ou de prestígio e variante não-padrão ou estigmatizada. A fundamentação teórica do

estudo baseia-se em Calvet (2002) e Tarallo (1990 [2005]).

Palavras-chave: Sociolinguística; variação linguística; identidade linguística.

Abstract: Language variation is an indissociable characteristic of all natural languages. When

speakers of different varieties interact, there is a tendency to occur a social stigma of the groups,

regulated by the power dynamic established by the language and, consequently, by the

ideologies that permeate the groups. That said, and based on the idea the internet is a wide

space for users to express themselves, this study uses comments posted on videos of the digital

platform YouTube, which talk about different language varieties, to verify what stereotypes,

opinions and common sense about the linguistic variation are found in each of videos, from the

concepts of standard or high-prestige variety and non-standard or low-prestige variety. The

theoretical framework of this study is based on Calvet (2002) and Tarallo (1990 [2005]).

Key words: Sociolinguistics; language variation; language identity.

Introdução

Considerar a linguagem enquanto um fenômeno natural e em constante movimento é

escopo recente. Ao outorgar a linguagem enquanto ciência – a linguística-, Saussure propunha

a existência de uma dicotomia essencial: língua e fala. Para o mestre genebriano, a língua

constitui-se como “um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas”, sendo

ela um objeto de natureza homogênea, compreendida como um ato social. É o conjunto do qual

“permite a uma pessoa compreender e fazer-se compreender” (SAUSSURE, 2012, p. 92). A

fala, por sua vez, é apresentada pelo autor como multifacetada e heterogênea, sendo um ato

individual do falante, não sendo considerada em seus estudos. Como ele próprio afirma “a

língua é para nós a linguagem menos a fala” (SAUSSURE, 2012, p. 92). Desta forma, para

Saussure, a língua(gem) seria essencialmente arbitrária e homogênea.

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Na intenção de reformular a dicotomia saussuriana de língua e fala, Coseriu propõe a

noção de norma, visto que, nas concepções do estudioso romeno, segundo Pietroforte (2012,

p. 92), diferentes sotaques, o uso de vocabulários próprios de alguns grupos sociais, o que, de

certa forma, caracterizariam “modos de realização linguística que não são próprios nem de um

só individuo nem de todos os falantes de uma língua, mas caracterizam variantes linguísticas

de uma mesma língua” (PIETROFORTE, 2012, p. 92, grifos nossos).

Assim, segundo Pietroforte (2012),

Para descrever essas variantes, Coseriu propõe que a dicotomia língua e fala

seja redefinida para sistema versus norma versus fala, de modo que as

variantes linguísticas sejam descritas nos domínios da norma [...] Assim, o

conceito de língua, para Coseriu, abrange o sistema, que é do domínio de

todos os falantes de uma mesma língua, e as normas, que, como variantes

desse sistema, são do domínio de grupos sociais, regionais, etc.

(PIETROFORTE, 2012, p. 92).

Deste modo, tem-se, a partir da proposta de norma linguística por Coseriu, uma

consideração ao social, a qual pode estar diretamente ligada à sociolinguística, visto que as

línguas naturais mudam constantemente, todos os dias. Mas, além dessa mudança diacrônica,

que ocorre ao longo do tempo, há a mudança chamada sincrônica, que é “a coexistência de

formas diferentes de um mesmo significado” (CALVET, 2002, p. 79). Essa mudança pode

ocorrer devido a um fator geográfico ou social. Ao conjunto formado pelas diferentes formas

de se realizar o mesmo fonema ou signo dá-se o nome de variável, enquanto que cada uma

dessas formas é chamada variante (CALVET, 2002).

Na ideia de que, com a publicação dos estudos de Labov, em 1966, teve início a

Sociolinguística, que busca investigar a estrutura e a evolução da língua em seu contexto social,

este trabalho objetiva comparar os conceitos adotados pelos pesquisadores da Sociolinguística

com os utilizados pela população leiga. Para atingir esse objetivo, serão verificados quais

estereótipos, opiniões e senso comum são manifestados acerca da variação linguística em

comentários postados em vídeos do TAG “Meu sotaque”, da plataforma digital YouTube. Dessa

forma, o presente trabalho divide-se da seguinte maneira: em um primeiro momento, são

apresentados conceitos da sociolinguística; na sequência, tecem-se comentários sobre os

procedimentos metodológicos adotados para escolha e análise dos dados; e, por fim, são

trazidas análises do corpus em questão.

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Um breve panorama teórico

Quando no tocante à língua, tem-se a clareza de que, por sua mutabilidade, distintas e

infinitas são as formas de se comunicar, o que dependerá, sempre, daqueles que estão utilizando

da linguagem para tal, ou seja, dos falantes. Assim, para Labov (1972),

A comunidade de fala não se define por nenhum acordo marcado

quanto ao uso dos elementos da língua, mas sobretudo pela

participação num conjunto de normas compartilhadas; tais normas

podem ser observadas em tipos de comportamento avaliativo explícitos

e pela uniformidade de padrões abstratos de variação que são

invariantes em relação a níveis particulares de uso (LABOV, 1972,

p.120-121).

Com isso em vista, temos que a existência de diferentes comunidades de fala, bem como

o compartilhamento de normas por determinados grupos, contribui para que haja, então, os

marcadores, os estereótipos, e os indicadores, que, na visão laboviana, mencionados por

Gorski e Coelho (2009, p. 81), são:

a) Estereótipos: é comum, por exemplo, que termos como pobrema (ao

invés de problema), nós fumo (ao invés de nós fomos) e ponharam (ao

invés de puseram) suscitem idéias preconcebidas a respeito da (falta

de) escolaridade de quem os pronunciou. Normalmente são alvos de

comentários jocosos e de rejeição explícita pelos membros da

comunidade de fala (seja escolarizada ou não).

b) Marcadores: casos como a variação dos pronomes pessoais de segunda

pessoa, tu e você, e dos pronomes possessivos de segunda pessoa, teu e

seu, usados em certas regiões do sul do Brasil, podem ilustrar esse tipo

de forma linguística [...]

c) Indicadores: apresentam escassa força avaliativa. São traços que não

identificam uma diversidade social e, geralmente, apresentam uma

distribuição regular nos diferentes estratos sociais [...] (GORSKI;

COELHO, 2009, p. 81, grifos nossos).

Interessa, neste trabalho, portanto, perceber como a noção de estereótipo está presente

nos mais variados discursos das mais variadas comunidades de fala, o que será apresentado na

análise dos comentários.

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Procedimentos metodológicos

O critério adotado para a seleção dos vídeos a partir dos quais seria feita a coleta dos

comentários foi o de que os vídeos deveriam seguir um roteiro de perguntas padrão, que é

conhecido no ambiente virtual como TAG “Meu sotaque”. Esse roteiro foi utilizado pela

primeira vez em outubro de 2015 por um usuário da plataforma de vídeos, que adaptou uma

TAG já existente na língua inglesa para as particularidades do português. A TAG escrita por

ele se divide em três partes principais, como mostra o roteiro transcrito abaixo:

a) Leia as seguintes palavras do jeito que você as pronuncia no seu dia a dia:

Nascer, gostar, arroz, cozinhar, teatro, óleo, banana, tomate, barba, bola de

gude, camaleão, erva, porta, canela, estourar, perfume, homem, tímido,

estrada, ele, menina, sotaque, tostar, elefante, belo horizonte, mais, mas,

computador, editar.

b) Agora responda as seguintes perguntas:

1. Como você chama o doce que mistura queijo com goiabada?

2. Como você chama o seu pai e sua mãe?

3. Na padaria como você fala o nome do pão que não é doce?

4. Como é chamada a brincadeira que quando era criança você tinha que

encontrar um amigo que se escondia?

5. Como é o nome do suco ou vitamina que é colocada em uma sacola plástica

e posto no freezer para congelar e depois você chupar?

6. O que seria uma mesa cheia de pequenos jogadores de futebol de metal ou

plástico que você usa umas bolinhas brancas para simular um jogo de

brincadeira?

7. Uma gíria da sua região para aos adjetivos: mentiroso, fofoqueiro e ladrão.

8. Como você cumprimenta um grupo de pessoas?

c) Agora indique pelo menos uma pessoa que você gostaria que respondesse esta

TAG [Adaptado de YouTube (2017f)].

Primeiramente, o youtuber lê uma lista de 32 palavras conforme ele as pronuncia no

seu dia a dia, ou seja, com a pronúncia do seu sotaque. Essa parte da TAG foca na variação

fonética da língua, que são as diferentes formas de se pronunciar um mesmo grafema.

Posteriormente, há oito perguntas sobre as palavras que a pessoa utiliza para denominar

determinada coisa ou pessoa. Aqui, a variação lexical é que recebe destaque, pois são elencadas

palavras diferentes do léxico utilizadas pelos falantes para se referir a um mesmo significado.

Por exemplo, conforme as informações coletadas nos vídeos, para se referir ao “pão que não é

doce”, alguns falantes utilizam a expressão “pão francês” e outros “pão de sal”.

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Apesar de os conceitos “variação fonética” e “variação lexical” terem sido utilizados

para descrever as etapas da TAG, é importante que destacar que esses termos não foram

encontrados em nenhum dos vídeos ou comentários selecionados. Neles, os internautas se

referiam à variação fonética como “sotaque”. Em um dos comentários houve a menção do

termo “variação” e no vídeo do autor da TAG foi utilizada a expressão “sofrer diferença” para

se referir à variação fonética.

Na terceira e última parte da TAG, o roteiro instrui para que outra pessoa seja convidada

a gravar um vídeo respondendo a essas mesmas perguntas. Essa estratégia é utilizada para

divulgar a TAG, o que possibilidade que mais pessoas façam parte do projeto.

Foram selecionados seis vídeos ao total, que participaram da TAG “Meu sotaque” entre

outubro de 2015 e agosto de 2016. Conforme informação divulgada pelos respondentes em

seus respectivos vídeos, os participantes são originários de Itapemirim – ES (autor da TAG),

Guarulhos – SP, São Paulo – SP, Rio de Janeiro – RJ, João Pessoa – PB, e Ceará (cidade não

informada). Os vídeos listados acima serão mencionados ao longo deste trabalho,

respectivamente, como: vídeo ES, vídeo SPa, vídeo SPb, vídeo RJ, vídeo PB e vídeo CE.

Ao longo do trabalho, serão apresentadas considerações acerca da amostra de treze

comentários coletada a partir dos vídeos selecionados. Para a análise, além dos comentários,

são destacados ao longo deste trabalho alguns trechos de enunciados dos youtubers, transcritos

a partir dos vídeos.

Análise dos comentários

A partir da exploração da seção de comentários dos vídeos, dois conceitos que foram

mobilizados logo a princípio são o de variante padrão e o de variante não padrão. Eles

perpassam a análise ao longo de todo o estudo, pois demarcam a opinião dos usuários

manifestada nos comentários e nos vídeos.

De acordo com Tarallo (2005, p. 12), “a variante considerada padrão é, ao mesmo

tempo, conservadora e aquela que goza do prestígio sociolinguístico na comunidade”. Por outro

lado, a variante não padrão é inovadora e estigmatizada pelos membros da comunidade

(TARALLO, 2005). É através dessa estigmatização que se revelam os estereótipos destacados

por Gorski e Coelho (2009).

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Uma das constatações no tocante à percepção linguística dos falantes é a de que a

variante padrão ou de prestígio tende a ser considerada “sem sotaque”. Ou seja, ela não é uma

das variantes da língua, mas o padrão a ser seguido. Essa noção é descrita por Bagno (2003)

como

o preconceito de que existe uma única maneira “certa” de falar a língua, e que

seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros

chamados gramáticas. [...] É esse modelo que recebe, tradicionalmente, o

conceito de norma culta (BAGNO, 2003, p. 43).

Os comentários que expressam esse preconceito são exemplificados abaixo pelas

figuras 1 a 3.

Figura 1 – Comentário retirado do vídeo SPa

Fonte: YouTube (2017c)

Figura 2 – Comentário retirado do vídeo SPa

Fonte: YouTube (2017c)

Figura 3 – Comentário retirado do vídeo SPa

Fonte: YouTube (2017c)

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Os três comentários reiteram o prestígio da variante paulista, tida como padrão da

língua. No terceiro, mesmo que a pessoa pareça descontente com o fato de não ter sotaque, este

é novamente negado. O mesmo ocorre no comentário a seguir, que valoriza a variante carioca.

Figura 4 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

A autora do vídeo RJ também expressa uma opinião semelhante a do comentário acima,

ao afirmar que “vocês vivem falando que eu tenho sotaque. Eu, para mim, não tenho sotaque”

(YOUTUBE, 2017d).

Enquanto os falantes das variantes de prestígio consideram que não têm sotaque, os

falantes das variantes não-padrão ou estigmatizadas demonstram ter consciência de que falam

de modo diferente. Isso fica explicito na fala da autora do vídeo PB: “Nada melhor do que a

pessoa para responder essa TAG, já que eu recebo tantos comentários: ‘De onde você é?’,

‘Você é da Bahia?’, ‘Você é do Ceará?’” (YOUTUBE, 2017b). Ou seja, a respondente afirma

que é pertinente que ela responda a TAG, já que todos percebem o sotaque dela.

O entendimento da própria variante como diferente da padrão também é verificado no

comentário da figura 5.

Figura 5 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

Nesse caso, apesar de a pessoa afirmar não ter sotaque, ela tem consciência de que os

outros classificam o seu sotaque como “baiano”, termo que carrega todos os estereótipos

associados ao estado e, como consequência, à variante baiana. Os estereótipos, definidos na

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teoria laboviana e retomados por Gorski e Coelho (2009), são discutidos por Bagno (2003) do

ponto de vista da cultura brasileira.

De todos os conjuntos de superstições infundadas que compõem a cultura

brasileira, nenhum é tão resistente, parece, quanto o das ideias preconcebidas

que impregnam nosso imaginário a respeito de línguas em geral e, mais

especificamente, da língua que falamos (BAGNO, 2003, p. 15).

A partir dessa discussão, Bagno (2003) afirma que não existe preconceito linguístico;

para o autor, o preconceito é social. Ele estabelece essa tese baseado no argumento de que o

preconceito não recai sobre o fonema ou item lexical utilizado, mas sobre o falante que o utiliza.

A diferença entre a percepção linguística dos falantes de regiões distintas é uma amostra

das relações de poder formadas pela linguagem, já que a variante baiana tem menos prestígio

na sociedade.

Frente à variação, os falantes podem assumir atitudes positivas ou negativas. Calvet

(2002) define que “em face da variação, temos atitudes de rejeição ou de aceitação que não

têm, necessariamente, influência sobre o modo de expressão dos falantes, mas que certamente

têm influência sobre o modo com que percebem o discurso dos outros” (CALVET, 2002, p.

65).

Regulado pela atitude que o falante possui em relação à determinada variante, ele julga

positiva ou negativamente a pessoa que reproduziu o fonema, léxico ou sintaxe pertencente a

essa variante. A “possibilidade de julgar pessoas pela voz” foi comprovada por Lambert, em

1960, com suas investigações sobre o bilinguismo franco-inglês em Montreal (CALVET,

2002).

Quanto à atitude dos falantes no que tange as variações, há alguns comentários que

demonstram uma atitude negativa, exemplificados através das figuras 6 a 9.

Figura 6 – Comentário retirado do vídeo SPa

Fonte: YouTube (2017c)

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Mesmo se desconsiderados os adjetivos “horrível”, “horroroso” e “podre”, utilizados

no comentário acima para desqualificar as variantes mencionadas, os termos “sotaque de

periferia” e “caipira” carregam, por si só, o estigma negativo que esses grupos possuem na

sociedade. O comentário abaixo também manifesta uma distinção entre as variantes de um

mesmo estado.

Figura 7 – Comentário retirado do vídeo SPb

Fonte: YouTube (2017a)

Nesse caso, o preconceito social associado aos falantes da “capital” e do “interior” é

explicitado, respectivamente, pelas expressões “soa agradavel” e “nao gosto”. Calvet (2002, p.

59) afirma que esses estereótipos referentes às variações geográficas da língua são

“frequentemente classificados pelo senso comum ao longo de uma escala de valores”. Esse

comportamento é percebido, por exemplo, através do preconceito que os falantes brasileiros do

interior e do Nordeste sofrem.

A escala de valores que orienta a classificação do falar alheio é resultado da relação de

poder formada entre as classes sociais. Essa hierarquia social é transferida e aplicada na

variante utilizada por cada grupo.

Além dos comentários que expressam juízo de valor sobre as variantes de forma

explícita, há outros que revelam novamente o preconceito associado ao conceito de normal

culta descrito por Bagno (2003) e já comentado anteriormente neste trabalho. O entendimento

de que há “uma única maneira ‘certa’ de falar a língua” é comum na sociedade e se manifesta

em comentários exemplificados pelas figuras 8 e 9:

Figura 8 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

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Figura 9 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

Os comentários das figuras 8 e 9 são exemplos de situações em que os usuários se

manifestaram na intenção de corrigir o “erro” observado no falante que gravou o vídeo. O

segundo (figura 9) menciona a escola. Ele revela uma prática na aula de língua materna

vivenciada pela internauta: a classificação da variação linguística como um “erro” cometido

pelos falantes, algo a ser corrigido. Esse é um padrão de comportamento criticado por Bortoni-

Ricardo (2004), que indica o papel da escola é possibilitar que o aluno saiba identificar as

diferenças e conscientizá-lo sobre o uso das variantes. Ela defende “uma pedagogia que é

culturalmente sensível aos saberes dos educandos”, que “está atenta às diferenças entre a

cultura que eles representam e a da escola” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 38).

Na prática, contudo, como demonstra o comentário (figura 9), a postura que considera

a diferença entre a variantes padrão e a não-padrão como erro ainda não foi completamente

abandonada. O ambiente escolar, por vezes, ainda trata algumas variantes com um olhar

discriminatório, sendo um reflexo do que ocorre também fora dos muros escolares.

Há outros comentários que diferem dos comentários 6 a 9 e valorizam a variação da

língua.

Figura 10 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

Figura 11 – Comentário retirado do vídeo SPb

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Fonte: YouTube (2017a)

Na figura 11, além do trecho que explicita a opinião da falante sobre a variação (“Que

legal essa variação de palavras hehe”), o segundo comentário apresenta uma amostra de uma

prática comum dos usuários: a comparação da própria variante com a do autor do vídeo. Esse

tipo de comentário não costuma vir acompanhado de opiniões desfavoráveis à variação. Isso é

resultado da disponibilidade dos usuários de compartilharem suas próprias experiências

linguísticas, nesses casos, por meio dos comentários, que é o que os youtubers fazem em seus

vídeos ao responderem a TAG “Meu sotaque”. A respondente do vídeo PB também expressa

uma atitude positiva frente às variações, ao concluir que “cada lugar tem seu jeito de falar”

(YOUTUBE, 2017b).

Um aspecto verificado tanto nos comentários como nos vídeos foi o de que os falantes

se dão conta do seu “sotaque” apenas quando entram em contato com falantes de variantes

diferentes da sua, conforme exemplificam as figuras 12 e 13 e o trecho de um dos vídeos

transcrito abaixo.

Figura 12 – Comentário retirado do vídeo RJ

Fonte: YouTube (2017d)

Figura 13 – Comentário retirado do vídeo SPb

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Fonte: YouTube (2017a)

A respondente do vídeo SPb relata que

Por muitos anos da minha vida eu achei que eu não tinha sotaque nenhum. Eu

só fui descobrir quando eu viajei para o Rio de Janeiro e as pessoas de lá, as

meninas com quem eu conversava, elas riam de mim, falando que o meu

sotaque era engraçado, que eu parecia uma caipira falando (YOUTUBE,

2017a).

Os dois comentários e o relato da youtuber apresentam situações semelhantes nas quais

houve a superação da noção de ausência de sotaque. A variante de uma determinada

comunidade de fala é a norma linguística daquele grupo, pois as variações são também

“tentativas de regularização, de normatização” (TARALLO, 1990, p. 58).

Entretanto, o relato feito pela autora do vídeo SPb se difere dos comentários 12 e 13

por revelar uma situação na qual se percebe, na prática, a estereotipação que ocorre quando

dois falantes de variantes distintas interagem.

É apenas no vídeo ES, feito pelo autor da TAG, que há a afirmação direta da existência

de sotaques. Ele menciona, inclusive, a dificuldade que as pessoas têm de perceber a própria

variante como apenas uma das possibilidades da língua, ao declarar que “ninguém acha que

tem sotaque. [...] Mas, na verdade, todo mundo tem sotaque” (YOUTUBE, 2017f). Foi essa

consciência linguística que o motivou a escrever o roteiro de perguntas.

Considerações finais

A análise dos comentários selecionados possibilitou a visualização das relações de

poder formadas pela linguagem. Uma das constatações foi a de que as variantes de maior

prestígio eram consideradas “sem sotaque”, ou seja, o padrão linguístico a ser seguido. Por

outro lado, as variantes utilizadas por falantes de estados socioeconomicamente menos

valorizados eram estigmatizadas, trazendo a tona vários estereótipos da cultura brasileira.

Alguns comentários revelaram uma postura negativa dos internautas frente às variações

linguísticas. Isso é resultado dos estereótipos sociais associados a grupos estigmatizados, que

recaem sobre a variante utilizada por eles.

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Além disso, alguns comentários traziam um relato semelhante: os falantes identificaram

as diferenças da língua quando entraram em contato com falantes que faziam uso de uma

variante diferente da sua. Em um dos comentários, foi descrita uma situação em que se

percebeu como os estereótipos fazem parte do imaginário social.

A hierarquia existente entre as classes sociais é transposta para a linguagem. Sendo a

língua um importante instrumento de controle e coerção social, essas são conclusões que

demonstram as relações, por vezes conturbada, que se dão quando falantes de variantes

linguísticas distintas interagem.

A dificuldade de interação sem a estigmatização do falante traz a tona um problema

sociolinguístico brasileiro: a percepção da língua como um sistema pronto e acabado e a

refutação das variações. Isso reitera a necessidade de tornar acessível ao público leigo as

discussões acerca das variações linguísticas feitas na academia para que os falantes sejam

conscientizados e o preconceito diminua.

Referências

BAGNO, Marcos. A norma culta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola

Editorial, 2003.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala

de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola Editorial,

2002.

GORSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl. Variação Linguística e Ensino de

Gramática. Florianópolis, 2009.

LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: Univ. of Pennsylvania Press, 1972.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da linguística. In: FIORIN, José Luiz

(org). Introdução à linguística: objetos teóricos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ed. Ática S.A., 1990.

YOUTUBE. Tag | Meu sotaque. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=82c5_zK7pUY&feature=youtu.be>. Acesso em: 19 nov.

2017a.

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