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CAPA (arte Tharcus) Z A P A T I S T A S

Zapatistas

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Texto coletivo sobre a experiência Zapatista

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CAPA(arte Tharcus)

Z A P A T I S T A S

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Z A P A T I S T A S

OrganizaçãoEdson Antoni e Marcelo Argenta Câmara

Série Patrimônio Cultural: memória, coleções e conservação - 4

1ª edição - Porto AlegreMuseu da UFRGS / 2014

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Zapatistas / organização [de] Edson Antoni e Marcelo Argenta

Câmara. – 1ª ed. - Porto Alegre: Museu da UFRGS, 2014.

60 p. (Série Patrimônio Cultural: memória, coleções e conservação, 4)

ISBN 978.85.64701.07.6

1. Exército Zapatista de Libertação Nacional. 2. Movimento político - México. 3. História. I. Antoni, Edson. II. Câmara, Marcelo Argenta. III. Museu da UFRGS.

CDU 323.1

Catalogação-na-publicação: Biblioteca Central/UFRGS

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Universidade do Rio Grande do Sul - UFRGS

Reitor: Carlos Alexandre NettoVice-reitor: Rui Vicente OppermannPró-reitora de Extensão: Sandra de DeusVice-pró-reitora de Extensão: Claudia Porcellis AristimunhaDiretora do Museu da UFRGS: Claudia Porcellis Aristimunha

Colégio de AplicaçãoDiretora: Dirce Maria Fagundes GuimarãesVice-diretor: Luiz Davi Mazzei

Instituto de GeociênciasDiretor: André Sampaio MexiasVice-diretor: Nelson Luiz Sambaqui Gruber

Departamento de GeografiaChefe: Francisco Eliseu AquinoChefe-substituto: Ulisses Franz Bremer

Organizadores: Edson Antoni e Marcelo Argenta Câmara

Textos:

Fotografias: Edson Antoni e Marcelo Argenta CâmaraIlustrações: Tharcus AguilarCartografia: Nola GamalhoProjeto gráfico: Marcelo Curia / TerramarRevisão: Gabriela Hoffmann LopesProdução: Cidara Loguercio Souza

Carlos Antonio Aguirre RojasCassio BrancaleoneEdson AntoniJorge A. QuillfeldtMarcelo Argenta CâmaraRaúl Zibechi

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Série Patrimônio Cultural: Memória, coleções e conservação, Nº 4

O Museu da UFRGS, de caráter multidisciplinar, tem a proposta de pesquisar, difundir e valorizar o patrimônio cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em sentido amplo, esse patrimônio cultural compreende também o repertório intelectual/cultural produzido na Universidade ou por ela tematizado. É no debate, no dar a conhecer e na sua apropriação que o patrimônio cultural adquire e exprime significados. Com essa nova dimensão simbólica os bens materiais, as formas de expressão e de manifestações intangíveis revelam culturas e memórias das sociedades humanas, potencializando novas formas de interação.

O Museu da UFRGS, com a intenção de contribuir para as discussões teóricas e as intervenções práticas deste campo, propõe esta série organizada por sua equipe e por profissionais e pesquisadores das diferentes áreas do conhecimento.

É com muita satisfação que o quarto número da série apresenta o resultado das vivências e aprendizagens que os professores Marcelo Argenta Câmara e Edson Antoni, junto a outros tantos tiveram o privilégio de experimentar em 2013 em território zapatista. Experiências que agora, por meio desta primeira publicação eletrônica da Série, serão compartilhadas com os leitores.

Assim, esta publicação reflete as trocas de ideias e olhar sensível de brasileiros vivendo a autonomia da comunidade de Chiapas que há duas décadas atrás deixou boa parte do mundo perplexa com a aparição do movimento social chamado Zapatista e o seu Exercito Zapatista de Libertação Nacional – EZLN. Luta necessária ainda hoje em todos os territórios do planeta.

Direção e Equipe Museu da UFRGS

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Série Patrimônio Cultural: Memória, coleções e conservação, Nº 4 _______________________________ 9 (Direção e equipe Museu da UFRGS)

desde os rincões do sudeste mexicano... _____________________________ 12(Os organizadores)

Mapas ____________________________________________ 14 e 15

A anti-escola de Ivan Illich materializada nas comunidades Zapatistas _____________________________ 18 (Jorge A. Quillfeldt)

Escuelita zapatista, vida simples e revolução _______________________________________ 22(Raúl Zibechi)

Uma “Escuelita” para dialogar, sentir e viver a construção da autonomia _____________________________ 28(Edson Antoni)

A “Escuelita Neozapatista”: viver desde dentro a luta pela autonomia _________________________ 36(Carlos Antonio Aguirre Rojas)

Notas sobre Zapatismo e Autonomia ________________________________________________ 40(Cassio Brancaleone)

Territorialidades autônomas: um mundo onde caibam muitos mundos _____________________________ 48(Marcelo Argenta Câmara)

Os autores ____________________________________________________ 57

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Entre os dias 12 e 16 de agosto do ano de 2013, as comunidades pertencentes ao movimento zapatista abriram suas portas para receber cerca de mil e setecentos “alun@s” vindos de todas as partes do mundo, naquela que foi a primeira edição da “Escuelita Zapatista”, evento que tinha como subtítulo “La Libertad según l@s Zapatistas”.

A concorrência de tantas pessoas, de origens geográficas e sociais diversas, àqueles rincões isolados do sudeste mexicano não nos deve surpreender. Pois se há algo que os zapatistas souberam fazer ao longo de seus mais de vinte anos de existência pública – trinta, se considerarmos o período de formação na clandestinidade – foi atrair os olhares e a atenção de todos e todas aqueles que em suas jornadas cotidianas pensam, lutam e agem para transformar as duras realidades nas quais vivem/os.

Atração essa que, ressalte-se, não foi conquistada sem méritos. Se quando em sua espetacular primeira aparição pública, num emblemático 01 de janeiro de 1994, com armas em punho e rostos cobertos por pasamontañas, o movimento pareceu ser o ressurgimento das guerrilhas de libertação nacional que haviam se multiplicado no continente nos anos 1960 e 1970, frente ao avanço das ditaduras militares na região, o fato é que, desde então, o movimento não se cansou de inovar e de renovar-se a si mesmo, mostrando-se, assim, uma das mais emblemáticas experiências sociais surgidas neste continente nos últimos séculos. Ou, talvez, no mundo, a julgar pela numerosa assistência de sua escuelita.

Esta publicação reúne artigos de seis pesquisadores que construíram (e constroem) suas trajetórias mantendo, no cerne de suas preocupações, o vínculo com os movimentos sociais. Todos esses autores tiveram, em momentos distintos de suas caminhadas, a oportunidade de compartilhar a experiência zapatista em meio às montanhas da Selva Lacandona. Alguns, como transparece nas linhas que se seguem, também foram “alunos” da primeira edição da escuelita. Nos textos aqui reunidos, cada um deles traz a sua contribuição no sentido de interpretarmos e aprendermos com essa vigorosa experiência de autonomia e autogestão que vem, há mais de vinte anos, r-existindo no sul do México.

Esta publicação é um convite a nos aproximarmos da experiência zapatista para que, conhecendo-a, possamos também recriar nossos imaginários políticos e sociais.

Incentiva-se, totalmente, a reprodução dos textos aqui reunidos. Os organizadores

desde os rincões do sudeste mexicano...

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México(no destaque, o estado de Chiapas)

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Chiapas

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Em janeiro de 1994, no sul do México, em plena madrugada de ano novo, o mundo conheceu o EZLN (Exército Zapatista de Liberação Nacional), uma organização indígena que pegou em armas para defender os direitos das populações daquela região de Chiapas, aviltadas pelo tratamento desprezível dispendido pelas autoridades do país. Era a data da estréia do novo acordo econômico com os EUA (NAFTA), que, hoje sabemos, devastou a economia mexicana. Uma pequena exceção foi a exploração de minérios e biodiversidade da região de Chiapas, que acabou não saindo exatamente conforme o planejado devido à inesperada resistência encontrada. Apesar da pobreza preexistente, agravada pelo cerco permanente e constantes ataques, essas populações organizadas e mobilizadas resistem, há vinte anos, com irredenta dignidade.

O movimento de resistência dos povos indígenas do México, que leva o nome do mais carismático líder da Revolução Mexicana, assassinado há exatos 95 anos, Emiliano Zapata, trouxe uma série de novidades ao cenário político mundial. O Zapatismo inova o fazer político introduzindo conceitos como o “mandar obedecendo”, que, associado ao “representar, não suplantar” e ao “servir, não servir-se”, erigem toda uma nova cultura política onde as comunidades efetivamente dirigem suas próprias vidas e interesses mediante um tipo de autogestão, participativa, igualitária e autoprotegida. A partir desse eficiente referencial ético-político, os zapatistas podem até não ter todas as soluções, mas certamente têm uma atitude diferenciada para lidar com cada situação. Em sua pedagogia, convidam a ler a realidade sempre a partir da perspectiva dos de baixo (“baixar, não subir”), e articulam a resistência física e moral ao “mau governo” sempre de forma propositiva (“construir, não destruir”), proativa (“propor, não impor”) e dialético-participativa (“convencer, não vencer”). Assim, esse movimento ímpar na história planetária dos lutadores sociais, pretende – no seu ritmo e tempo (“o tempo do caracol”) – construir “um mundo onde caibam muitos mundos”, um mundo de tolerância e honestidade, generosidade e oportunidade.

Se tentarmos rotular o Zapatismo a partir das classificações acadêmicas tradicionais, acabaremos compreendendo-o erradamente: trata-se de uma concepção diferente de tudo que conheçamos historicamente. Embora possua elementos comuns a vários movimentos emancipatórios de inspiração socialista ou marxista, contém muito do velho anarquismo e do anarco-sindicalismo, além da forte presença de elementos socioculturais comunitários de origem ameríndia e ibérica. Não é socialismo, mas lembra. Não é comunitarismo cristão, mas lembra. Não é a utopia ácrata, mas lembra. O Zapatismo, enfim, é estranho aos nossos paradigmas de pensamento, é o novo, é criação pura. Só por isso já mereceria ser conhecido e estudado.

Mas, espere! Não existem “cursos de zapatismo”, não se encontram manuais nem tratados, receitas ou doutrinas, nada! Podemos até baixar e ler centenas de textos do icônico porta-voz Sub-Comandante Insurgente Marcos, com o fio de suas palavras tão verdadeiras quanto sólidas – sólidas como a casca de Don Durito – paradoxalmente disponíveis na nada sólida grande nuvem cibernética que nos embebe e (por vezes) nos sufoca. Podemos ler análises e interpretações escritas por amigos e inimigos, aderentes e dissidentes, veneradores e impacientes. Podemos achar muita coisa, mas nada que se assemelhe a um “currículo” que, ao cabo, nos gradue como “Zapatistas”.

A anti-escola de Ivan Illich materializada nas comunidades Zapatistas

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Ainda assim, qualquer um que desejar pode ser Zapatista. Trata-se de uma decisão consciente, não de uma frase de efeito, como pode parecer à primeira vista. Mas, para uma decisão dessas, é preciso conhecer e compreender. E para compreender, é preciso vivê-la.

Eis que entra em cena o último elemento do quebra-cabeças Zapatista: é preciso (vi)ver para compreender. Só a real imersão na realidade das comunidades Zapatistas, com todos os sentidos de que dispomos, permite conhecer as complexidades, os acertos e as dificuldades de um experimento sociopolítico único. Claro que isso abala o paradigma ocidental das esquerdas, que costuma simplificar relatos em busca de modelos a serem reproduzidos. O reducionismo social sempre nublou perigosamente o olhar daqueles que mais precisam ver. Impede, nesse caso em particular, perceber que o diferencial da experiência Zapatista está nas antiquíssimas raízes culturais que não podem ser recriadas magicamente, da noite para o dia, em qualquer lugar. Até porque, em quase todo o mundo ocidental, a realidade dos trabalhadores explorados é a do êxodo, do abandono, da perda de identidade histórica e cultural. Talvez percebendo isso, a maioria da esquerda tradicional desinteressou-se rapidamente pelo movimento, optando por ignorá-lo. Mas, mesmo de onde não se pode extrair um “modelo”, restam exemplos, práticas e acúmulos históricos relevantes, que só se aprendem observando in loco, no convívio quotidiano.

Esta, a meta das Escuelitas Zapatistas em suas primeiras edições de 2013: levar os interessados para conhecer a experiência Zapatista em primeira mão. Conhecer, aliás, pela mão dos integrantes das próprias comunidades. Não para ouvir discursos de experientes líderes, muito menos preleções de teóricos renomados e bem-articulados. Aliás, nem sequer para ouvir relatos em uma língua conhecida!

As Escuelitas são a porta para a imersão na maior utopia em construção de nosso tempo. Um desafio que exige mentes abertas, dispostas a desaprender o velho para aprender o novo. A materialização do desafio proposto por Ivan Illich neste mesmo fértil solo mexicano, em Cuernavaca, há quatro décadas.

Resta saber se estamos à altura do desafio.

Jorge A. Quillfeldt

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Quatro e meia da madrugada. Por detrás da montanha aparecem as primeiras luzes da alvorada. Os galos começam sua diária gritaria de cantares. Antes que Marcelino bata à porta, já estamos de pé. Já há um bom tempo, Ester e as alunas da escuelita estão moendo o milho na cozinha. Esquentam tortillas1, café e frijoles2.

Os quatro filhos de Julián e Ester permanecem na milpa3 que rodeia a casa. Ela abre as portas do galinheiro comunitário das mulheres, de onde sai uma enorme quantidade de galinhas ávidas por alimento. Nós homens caminhamos costa acima até o cafezal da família, onde passamos quase toda a manhã limpando para que as matas cresçam robustas.

Ao meio dia, voltamos cansados e suados. Ester e as companheiras prepararam a comida que Julián ajuda a esquentar. Cada um limpa seu prato e sua louça. Alguém diz que é hora da “plática”. A escuelita é trabalho nas manhãs e, nas tardes, leituras, perguntas e comentários. O EZLN nos distribuiu quatro cadernos nos quais as bases de apoio explicam, de modo muito simples, como constroem sua autonomia, sua resistência cotidiana e seus modos de governar-se.

Nos dias seguintes, conhecemos a vida cotidiana da comunidade 8 de Março, integrada ao município autônomo 17 de Novembro, no Caracol Morelia. São pouco mais de 40 famílias, quase todas zapatistas, que vivem no que foi a fazenda de um dos principais terratenientes4 de Chiapas, Pepe Castellanos, irmão de Absalón, o temido ex-governador sequestrado pelo EZLN logo após seu levante de 1º de janeiro de 1994. Dezenas de fazendeiros fugiram, e suas terras foram reapropriadas pelos indígenas de quem haviam sido usurpadas.

A escola e o posto de saúde estão onde havia sido a casa-grande do fazendeiro, onde construíram uma quadra de basquete para o deleite das crianças, que não param de jogar. Melhor dizendo, não jogam: se divertem. Mostram suas habilidades, correm, pulam, arremessam ao aro, mas não contam os pontos. Nem sequer pode se dizer que tenham formado duas equipes para jogar uma partida. As coisas são de outro modo. Jogam por jogar, mesmo os adolescentes. Não vi o menor vestígio de competição. Talvez por isso todos sorriem, não brigam, desfrutam.

O posto de saúde é atendido por três pessoas eleitas pela comunidade para cumprir essa tarefa. O aspecto é simples e humilde. Uma menina quase adolescente se encarrega da “medicina das plantas”, com as quais fazem xaropes e pomadas. Uma mulher não tão jovem é a

1  Espécie de panqueca de milho sem sal, normalmente cozinhada sobre a chapa de um fogão à lenha.2  Feijão.3  Milharal4  Latifundiários.

Escuelita zapatista, vida simples e revolução

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“huesera”5, uma especialidade que resgataram de seus anciãos, que a praticavam desde tempos remotos, e que os zapatistas evitaram que se perdesse por desuso. Um jovem é o encarregado da “medicina dos comprimidos”, que a comunidade compra com seus próprios recursos.

Nenhum dos três recebe salário, e a comunidade se encarrega de sua milpa para que possam atender no posto de saúde. Na sala há um ambiente de total tranquilidade, como em toda a comunidade. Os “médicos” não têm uniforme e vestem suas roupas comuns. Uma senhora chega com seu pequenino com febre alta. Conversam em voz baixa, quase sussurrando, quando lhes pedimos que nos expliquem como funciona o posto comunitário de saúde.

Quando algum caso ultrapassa suas possibilidades de atendimento, levam-no ao município autônomo, onde funciona uma clínica. Nos Caracóis há hospitais para os casos mais graves. Mas, por vezes, têm que recorrer aos centros estatais nas cidades, algo que os comuneros, e principalmente as comuneras, tentam evitar. São índias e pobres, e sofrem humilhações e preconceito.

Além da escuelita da comunidade, conhecemos a secundária6, a um quilômetro do Caracol. Em uma área de uns vinte hectares, há duas belas edificações de um piso, que funcionam como salas e biblioteca. Outras construções de madeira abrigam a rádio zapatista, os dormitórios, os espaços para agroecologia, refeitórios e tudo o que um centro de estudos necessita. A secundária se autoabastece de alimentos que os alunos cultivam. Não há empregados de limpeza nem de manutenção. Tudo é feito coletivamente com a participação dos docentes, também eleitos por suas comunidades, sem salário e habitualmente formados nas secundárias zapatistas.

Me contam que, nas secundárias do Estado, os docentes vivem nas cidades, viajam de carro todos os dias, não falam a língua originária e desprezam a forma de vida de seus alunos que falam “la castilla7” com grande dificuldade. Quando conseguem, emigram para escolas mais confortáveis, onde podem fazer carreira. Na secundária zapatista, todos os docentes falam línguas originárias e o currículo é construído em reuniões das quais participam todos os docentes e os estudantes que desejarem.

Julián e Ester têm cinco vacas e dois cavalos que compraram com a venda da colheita de café da horta familiar. Quando seu filho teve que ser operado, venderam uma vaca para cobrir os gastos. Todas as famílias compram gado como uma forma de poupança. O mesmo faz a comunidade com a venda do café das hortas comunitárias, e as mulheres pagam os gastos de suas viagens para tarefas de formação ou de autoridade com o que tiram do galinheiro comunitário.

A família de Ester e Julián consome os alimentos que cultivam em sua milpa, sem agrotóxicos. Só compram sabonete, açúcar, sal e óleo e, às vezes, algum outro produto. Mas não compram em qualquer lugar. Nas sedes municipais, como Altamirano, a meia hora de Morelia, há um armazém zapatista em um terreno ocupado logo depois do levante. O armazém fornece às comunidades tudo aquilo que elas não produzem, e

5  Do espanhol “hueso”, que significa “osso”. Pessoa responsável pelos cuidados com fraturas e acidentes assemelhados.6  Escola de nível análogo ao Ensino Médio, no Brasil.7  Forma como @s zapatistas se referem ao idioma espanhol.

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nele atendem, rotativamente, comuneros, sem receberem salário.

A comunidade toma suas decisões em assembleias. Uma tarde, soou, longo e profundo, o berrante com o qual as convocam. Em seguida, toda a comunidade estava na quadra de basquete para tomar algumas decisões sobre nosso retorno ao Caracol. Cada comunidade elege suas autoridades, que são rotativas. Várias comunidades formam um município autônomo que também elege suas autoridades. As autoridades dos municípios de cada região integram a Junta de Buen Gobierno, que funciona no Caracol.

A Junta é integrada por um número variável de pessoas, sendo composta por metade homens e metade mulheres, ao menos em Morelia. Todas as segundas-feiras, há rotatividade. A Junta que sai explica as tarefas pendentes e assim passa o cargo. Uma forma de rotatividade que faz com que todos aprendam a governar e que impede que se forme uma burocracia que controla - e usurpa - o poder do povo.

Tenho lido, há muito tempo, sobre a luta pela revolução, sobre a necessidade de uma vanguarda formada na teoria crítica para derrotar o capitalismo, tomar o controle do Estado e construir o socialismo. Durante anos, defendi essas ideias, apesar do fracasso das grandes revoluções. Marcelino, Ester e Julián, e os muitos com os quais falamos, nunca pronunciaram essas palavras. Jamais falaram de socialismo, nem de teoria crítica. Em geral, falam pouco e só quando é necessário. Suas palavras preferidas são “trabalhos coletivos”, “resistência”, “luta”, e outras, em tojolabal e tzeltal.

Raúl Zibechi

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Completando 20 anos de sua primeira aparição pública, o movimento zapatista provou, mais uma vez, que é um movimento social de novo tipo, muito distante dos tradicionais canais de participação política que caracterizaram as mobilizações da esquerda latino-americana e mundial ao longo da história. A organização e realização daquilo que foi chamado de “Escuelita Zapatista” se inscreve na história do digno movimento indígena mexicano como mais uma das suas inovadoras expressões de luta e resistência social. Acompanhando o grande poder de mobilização apresentado pelo movimento em 21 de dezembro de 2012, quando as comunidades zapatistas reuniram cerca de 40 mil companheiros em uma silenciosa marcha pelos territórios de Chiapas, a realização da “Escuelita” vem reafirmar ao México e ao mundo, ao final de duas décadas de atuação, toda a força e vigor do movimento zapatista. Em agosto de 2013, nas montanhas e selvas do estado de Chiapas, atendendo à convocatória realizada pelas comunidades zapatistas, reuniram-se centenas de pessoas que, vindas das mais diferentes partes do mundo, representando os mais diferentes tipos de coletivos e organizações sociais, possuíam um objetivo bastante simples: dialogar e aprender.

“Diálogo” e “aprendizagem”, duas palavras que, para qualquer um que teve a oportunidade de ter participado como aluno ou aluna deste Primer Grado da “Escuelita”, transformaram significativamente os seus sentidos. Ressignificações essas que não podem ser percebidas como uma simples alteração da definição gramatical das palavras, antes sim, foram responsáveis por promover transformações muito mais profundas. Para aqueles que participaram desse grande encontro, o diálogo deixou de ser somente realizado por meio de palavras e a aprendizagem prescindiu de estar vinculada às tradicionais cátedras. As cores, as formas, os aromas traziam, em si, toda a força da palavra e da voz gestada no processo histórico das lutas e da resistência dos povos originários; e a aprendizagem tornou-se algo sem uma hora marcada para acontecer, ela era vivenciada a cada instante, invadindo-nos por todos os sentidos.

Buscando resgatar, mas, fundamentalmente, compartilhar algumas das vivências desta transformadora experiência, convido a tod@s a ingressar, por intermédio das minhas lembranças enquanto aluno dessa digna “Escuelita”, em território zapatista. Convido a tod@s, através destas poucas linhas que se seguem, a caminharmos juntos sobre essas terras autônomas, a compartilharmos do convívio desses dignos companheiros em luta, a (re)vivermos a esperança de construirmos um novo mundo.

Chegamos à comunidade Patria Nueva (no Municipio Autónomo en Rebeldia de Francisco Villa, Caracol III La Garrucha) no início da noite. Às margens de um pequeno caminho de terra, junto a uma placa de identificação que nos lembrava estarmos em um território no qual “manda el pueblo y el gobierno obedece”, a comunidade perfilou-se para saudar a nossa chegada, a chegada dos alunos e alunas da “Escuelita”. Após as saudações iniciais dos companheiros zapatistas e de nós mesmos nos apresentarmos, foi o momento de, pela primeira vez, sentarmos juntos e conversar. Sob uma luz muito tênue, reunimo-nos, alunos, alunas e os membros da comunidade. Enquanto nos acomodávamos, os companheiros zapatistas retiravam os seus passamontanhas. Em um gesto bastante simples, mas carregado de simbolismo, lembrei-me daquilo que disse, certa vez, o Subcomandante Marcos “Hoy ya no hay más el ‘ustedes’ y el ‘nosotros’. Somos los mismos”. A partir daquele momento, estava

Uma “Escuelita” para dialogar, sentir e viver a construção da autonomia

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seguro que havíamos sido aceitos na comunidade. Ainda que por um período muito curto de tempo, faríamos parte deste outro mundo, “un mundo donde quepan muchos mundos”, um mundo de outros tempos, de outras geografias, o mundo das comunidades zapatistas.

Na manhã seguinte, enquanto os companheiros zapatistas, reunidos em um espaço central da comunidade, buscavam definir qual seria a atividade de trabalho daquele dia, sem compreender a língua tzetal, observava o meu entorno: estávamos todos juntos, formando um único e mesmo círculo, preparando-nos para uma atividade que era, fundamentalmente, coletiva. Como a tomada de decisões dentro das comunidades zapatistas são sempre consensuais, tendo como tradutor um dos companheiros zapatistas, nos coube participar daquele diálogo e também opinar acerca do trabalho que acreditávamos ser importante realizar naquele momento. Definidos os nossos objetivos (cultivar a terra e colher alimentos), colocamo-nos em marcha. Enquanto percorríamos a trilha de terra que nos levaria aos campos, cruzando caminhos e matas, fomos ouvindo histórias, fomos nos integrando, cada vez mais, àquele novo mundo. A selva, pouco a pouco, foi revelando alguns de seus segredos.

Ao regressarmos, após uma jornada de trabalho, cruzamos pelo local que recebe a escola da comunidade. Meu olhar buscava capturar toda a beleza e simbologia expressas naquela imensa pintura mural que cobria um espaço central da parede da escola. Mais uma vez, sem a necessidade de intermediações ou qualquer palavra, a mensagem estava ali representada de forma muito clara, direta. Pintada com cores fortes e vibrantes, a história dos últimos quinhentos anos materializava-se na nossa frente. Reconhecia-se a opressão exercida pelos terratenientes, de ontem e de hoje, a exploração do trabalho indígena, a emergência do EZLN e, finalmente, a constituição das comunidades autônomas zapatistas. Essa e tantas outras lições acerca da história e da resistência dos povos originários e das comunidades zapatistas estão representadas nas diferentes pinturas, espalhadas por todos os territórios autônomos. Com um colorido todo especial, carregadas de representações, essas imagens parecem estar tingidas com as cores da terra e das matas, bem como, da pele e do próprio sangue desse povo.

Por vezes, ao final das tardes, nos reuníamos para discutir alguns dos textos produzidos previamente pelos companheiros zapatistas e que havíamos recebido no início da “Escuelita”. O convívio nesse espaço, contudo, trouxe outras lições, gerou outros saberes, para além daqueles simplesmente descritos nos textos. Além de nós, alun@s, votánes e promotores de educação, todos os demais membros da comunidade se faziam presentes. Eram anciãos, mulheres e crianças. Enquanto dialogávamos, as crianças brincavam alegremente entre nós. Mesmo sem compreender o que estava sendo debatido, elas estavam ali, (con)vivendo e aprendendo com todo aquele processo de construção de um novo mundo que, certamente, também é o seu e, pelo qual, irão continuar a luta que é de seus pais e avós. Os demais membros da comunidade, que acompanhavam a reunião, aguardavam de forma sempre muito pacienciosa o momento dos promotores de educação traduzirem, para a língua tzetal, as discussões que realizávamos em espanhol. Da mesma forma, para cada questão que propúnhamos aos promotores, estabeleciam, primeiramente, um diálogo com a comunidade para, posteriormente, nos apresentar uma resposta que sempre era elaborada de forma coletiva. Sem a necessidade de citar grandes teóricos, ou mesmo se apoiar em grandes teorias pedagógicas, foi possível vivenciar ali, em plena selva mexicana, uma das manifestações mais ricas e complexas do processo de produção de conhecimento, qual seja, o de construção coletiva. Não havia autoridades, não havia hierarquias, não havia medos; havia sim um grupo de pessoas, homens, mulheres e crianças que juntos buscavam, através da sua fala e da sua escuta, a construção da sua autonomia, do seu autogoverno, da sua dignidade.

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Foi assim que, no decorrer desta “Escuelita”, junto destes que um dia decidiram esconder o rosto para serem vistos, que um dia silenciaram-se, para que o seu silêncio ecoasse pelos quatro cantos e se transformasse na voz de todos aqueles que lutam, vivenciamos a construção de um novo mundo. Um mundo que, certamente, a partir de então, é parte integrante de todos nós; um mundo de ”resistencia hacia un nuevo amanecer”.

Edson Antoni

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A recente experiência da Escuelita Neozapatista, ocorrida em agosto e em dezembro de 2013, e em janeiro de 2014, no território de Chiapas, hoje sob o controle do digno movimento indígena mexicano, foi uma vivência que, além de profunda e marcante do ponto de vista emotivo e pessoal, foi também uma experiência carregada de múltiplas e fundamentais lições teóricas, políticas, intelectuais e morais. Ao longo dos cinco dias desse primeiro Curso de “La Libertad según l@s Zapatistas”, oferecido pelos companheiros nas três ocasiões já mencionadas, se proporcionaram e se multiplicaram os muitos e diversos ensinamentos que, tanto os Votánes (ou Guardiões) de cada um dos estudantes desse Curso, como os próprios povoados e comunidades neozapatistas, transmitiram e comunicaram às várias centenas de participantes dessa rica e complexa iniciativa.

A Escuelita Neozapatista, à primeira vista, se apresenta como uma nova versão, agora radicalizada e levada ao extremo, daquilo que foram, em 2006 e em 2007, os três Encuentros de los Pueblos Zapatistas con los Pueblos del Mundo. Isto é, o esforço de mostrar e esclarecer, em sua essência mais profunda, as múltiplas formas, dimensões e variantes através das quais os povos neozapatistas constroem, de maneira concreta e cotidiana, o processo de sua verdadeira autonomia. Porém, enquanto que, no Primer, Segundo e Tercer Encuentros de los Pueblos Zapatistas con los Pueblos del Mundo, os processos de mostrar e de esclarecer foram somente unidirecionais - dos zapatistas para os seus ouvintes - e utilizaram como veículo principal e único a palavra falada, agora, o esclarecimento e a demonstração da luta pela autonomia se transformaram em um processo muito mais complexo e multidimensional, dialógico, participativo e diretamente vivencial, ao transmitir a luta vivenciando-a na própria carne, compartilhando-a diretamente com os companheiros (chamados de) Bases de Apoyo, discutindo-a com os Votánes e nas reuniões ou assembleias mais amplas, e conhecendo-a desde seu interior mais profundo e em suas manifestações mais cotidianas e essenciais.

O enorme passo à frente que a Escuelita Neozapatista representa, em comparação aos encontros de 2006 e 2007, é o de haver integrado diretamente, ainda que pelo breve período de uma semana, as centenas de participantes, ao processo complexo e cotidiano da própria construção do movimento zapatista e, com ele, de sua atual luta e resistência genuína e profundamente antissistêmica frente ao capitalismo mexicano, latino-americano e mundial. Integração essa que não tem como objetivo somente dar a conhecer, desde suas entranhas, esse movimento mexicano, mas que também se insere muito consciente e explicitamente dentro da nova estratégia global que o neozapatismo tem proposto aos movimentos sociais, aos coletivos e aos indivíduos, que, tanto no México quanto em todo o mundo, se encontram realmente comprometidos com a luta radical anticapitalista e antissistêmica. Essa nova estratégia global foi proposta a partir de sua impressionante reemergência pública em 21 de dezembro de 2012 e da série de Comunicados que antecederam, durante 2013, à realização da Escuelita.

Essa nova estratégia, entre suas muitas definições, também inclui a postura de renunciar claramente à ideia de substituir os outros companheiros ou movimentos sociais fraternos, e negar-se, assim, a enfrentar, no lugar desses companheiros, as lutas ou os combates que somente a eles correspondem, ou tentar alcançar as conquistas ou os objetivos pelos quais esses mesmos companheiros deveriam lutar. Em

A “Escuelita Neozapatista”: viver desde dentro a luta pela autonomia

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troca, o que os neozapatistas retomam nessa sua nova estratégia, é a velha tese de Marx de que “a emancipação da classe operária deve ser obra da própria classe operária”, o que hoje significa que, cada setor, classe social, grupo, coletivo ou movimento, deve promover suas próprias batalhas, defendendo sua agenda específica de lutas e objetivos, e confrontando-se, em suas próprias geografias e calendários, com aquele que, não obstante, é o inimigo comum de todos nós e o causador de todos nossos males: o sistema capitalista mundial e, por conseguinte, também o mexicano.

Por isso, a Escuelita Zapatista buscou, dentre muitas outras coisas, ser um espelho que interrogava, a cada um de seus participantes, sobre como ele ou ela levava ou poderia levar a cabo, de forma imediata, ou em um futuro próximo, em seus próprios calendários e geografias, e de seus modos e maneiras singulares, essa compartilhada e única luta antissistêmica e anticapitalista pela autonomia, pela autogestão, pelo autogoverno e pela liberdade, e também - e obrigatoriamente - contra o que os companheiros neozapatistas têm chamado de “cuatro ruedas del capitalismo”, ou seja, contra a exploração, o despojo, o desprezo e a repressão, porém ainda, contra as outras realidades que eles têm enfrentado e combatido radicalmente, como a exclusão e as múltiplas e injustas assimetrias de “acima” e “abaixo”.

Espelho esse que, ao mostrar-nos e fazer-nos viver e compartilhar os acontecimentos, não a partir de discursos nem de teorias senão na vida diária, nos interpelava direta e radicalmente a cada um de nós, os estudantes desta Escuelita, sobre como nós, em nossos espaços e nossos tempos próprios, podemos ou poderíamos também tratar de construir esses mesmos mundos novos, com essa liberdade e autonomia que vimos, vivemos, respiramos, sentimos e admiramos, na segunda semana de agosto de 2013. Isso explica a afirmação do Subcomandante Marcos, quando propôs que o “exame final” dessa peculiar Escuelita fosse uma única e muito complicada pergunta, que seria, para todos nós, a seguinte: “O que é a liberdade para você/vocês?”

Desse modo, um dos objetivos centrais da Escuelita Neozapatista é o de dar continuidade à nova estratégia global, proposta nessa nova etapa de sua luta, aplicando, às suas práticas, elementos de uma pedagogia interpeladora e dialógica, baseada na incorporação direta e vivencial do “estudante” dentro do caso ou do próprio exemplo que se pretende “ensinar”, “mostrar” ou transmitir. Essa pedagogia baseia-se em um exemplo que envolve e incorpora o “educando”, dentro da própria experiência que o “educador” deseja transmitir, cujo resultado principal é a pergunta de como o educando será capaz de “replicar” ou “reproduzir”, com seus modos, em suas formas, em seus calendários e geografias próprias, as lições desse mesmo exemplo ou caso que não somente “estudou” ou “observou”, passiva e indiretamente, mas que, acima de tudo, viveu, compartilhou, e até construiu um pouco ele mesmo na prática e com as suas próprias ações diretas.

Porque, se a teoria nasce da prática e, se o saber em geral brota primordialmente da experiência direta, então, o melhor modo de aprender a fazer algo é fazendo-o, assim como a melhor forma de aprender a lutar é lutando, e a melhor forma de aprender e assimilar o que

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é a autonomia e a liberdade é vivendo-as e exercendo-as nós mesmos, diretamente nos acontecimentos. Isso nos traz, sem dúvida, um dos sentidos mais profundos e radicais da experiência tão rica e original da Escuelita Zapatista, que, de um modo essencial, irá revolucionar a nossa habitual hierarquia dos saberes humanos, relativizando e reconduzindo ao seu justo lugar e valor o saber universitário, ou livresco, ou erudito, ou científico, ao recordar-nos que este último é somente um saber derivado e secundário, de segundo grau e sempre dependente do verdadeiro saber originário e fundante que é o profundo saber popular nascido da experiência direta. E, com ele, irá também se definir de modo radical a possível função que os intelectuais de todo tipo podem e devem ter em relação aos movimentos sociais em geral, e que não será nunca a de ser a “consciência iluminada”, nem a liderança ideológica ou espiritual, nem a lúcida assessoria que define a linha, a política ou a estratégia do movimento em seu conjunto, mas sim, mais realista e modestamente, a de contribuir com seus saberes especiais, de um modo totalmente horizontal e realmente dialógico, fazendo com que todos compreendam o que ocorre, o que é necessário fazer e o que são as melhores alternativas práticas de ação e de trabalho para os movimentos sociais atuais.

Carlos Antonio Aguirre Rojas

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Se é certo que devemos ao filósofo Cornelius Castoriadis as reflexões mais interessantes sobre a noção de autonomia, por outro lado, é inegável nossa dívida com os zapatistas por terem preenchido essa noção com seu melhor e mais avançado conteúdo prático nos dias de hoje. Com Castoriadis, aprendemos que historicamente as sociedades humanas se instituíram através do auto-ocultamento das suas próprias origens sociais e mundanas. Isso implicava na cristalização de um imaginário social que atribuía um peso inercial às instituições mais importantes das sociedades, garantindo sua reprodução perene ao longo das gerações (com suas hierarquias e seus agentes mediadores privilegiados), bloqueando qualquer movimento que visasse sua transformação. Por isso, as sociedades humanas são, via de regra, em suas manifestações históricas, o que Castoriadis denomina por heterônomas. Somente com a emergência dos primeiros experimentos democráticos (inseparáveis da crítica filosófica) é que o chamado “projeto de autonomia” se colocaria para o homem: um ser que, coletivamente ou como gênero humano, se auto-institui como sujeito, e ao fazê-lo, é responsável também pela auto-instituição das sociedades.

Não precisamos (e nem devemos) concordar com a posição ocupada pela “democracia” e a “filosofia” na versão eurocêntrica e ocidental do “projeto de autonomia” apresentado por Castoriadis. Basta tirar dele seus desdobramentos práticos e seu valor como diagnóstico radical: é autônomo somente aquele que se submete às regras e leis que são desdobramentos de sua própria participação (e é fundamental diferenciar participação de concordância) – desse modo, poderíamos concluir que ele não obedece nada mais que sua própria vontade. Quais instituições sociais permitem, aos indivíduos, espaços de participação para decidir, junto com os demais, seus propósitos, seu alcance, seus objetivos e o modo como cada um poderá e deverá se engajar como seu membro? Essas arenas praticamente inexistem no mundo do trabalho e da produção, no mundo familiar e doméstico, na educação e nos demais serviços públicos e, menos ainda, na chamada “Política” (com P maiúsculo). Eis o diagnóstico da heteronomia.

E qual seria a relação dos zapatistas com o antípoda da heteronomia: a autonomia? Os zapatistas simplesmente são protagonistas do mais importante experimento de autogoverno existente no mundo, especialmente por se concretizar em um curioso “marco institucional” que podemos considerar “antissistêmico” (por desafiar o Estado e o Capital). Essa experiência amadureceu muito com a formação dos Caracóis1 a partir de 2003, se materializando explicitamente na contracorrente de qualquer legalidade no México, legitimada pelos conteúdos dos Acordos de San Andrés2 e pelo apoio constante que a sociedade civil nacional e internacional depositou no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Tal processo, aqui resumido, implicou em uma curiosa redefinição de sua estratégia de ação, ratificando a via política como caminho; a resistência/insistência como sua principal forma de luta (consolidando o rechaço total a qualquer negociação com o Estado mexicano); e a

1 Caracóis são regiões autônomas zapatistas em torno das quais orbitam um conjunto de municípios e territórios indígenas rebeldes.2 Os Acordos de San Andrés consistiram na celebração formal, entre o governo federal mexicano e o EZLN, de um conjunto de pontos sobre a cultura e os direitos indígenas objetivando colocar fim ao conflito armado iniciado em 1994.

Notas sobre Zapatismo e Autonomia

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instauração de governos locais como uma forma de organização social inovadora ao instituir, pelas vias de fato, um projeto de autogoverno.

A partir daí muito se tem discutido se o zapatismo representaria ou não um novo paradigma que poderia vir a representar uma tendência configurativa dos movimentos sociais do século XXI. John Holloway, por exemplo, popularizou a expressão “mudar o mundo sem tomar o poder” a partir de sua leitura do fenômeno zapatista. Essa interpretação do zapatismo visa problematizar o modelo de revolução do século XX baseado na estratégia dos “dois tempos”, para citar argumento utilizado por Immanuel Wallerstein, através da qual (a) os subalternos, ou sua vanguarda, edificam uma organização revolucionária para assaltar o poder de Estado, e (b) a partir do controle do aparato estatal, se revoluciona (ou melhor, se reforma), de cima para baixo, toda a sociedade. É correto julgar que o EZLN se formou sob essa perspectiva, mas sua prática política e seu discurso após a insurreição de 1994 nos autorizam a pensá-lo em sintonia com a caracterização dada por Holloway, ainda que existam intérpretes do zapatismo que o situam tanto de um lado como de outro dessa “trincheira”. Aliás, isso é o que mais impressiona no zapatismo: sua capacidade de ser apropriado e defendido por indivíduos e organizações dos mais diversos matizes ideológicos dentro da “esquerda”: de reformistas indigenistas, socialdemocratas “de raiz”, humanistas progressistas, comunistas (de todas as estirpes), neohippies, espiritualistas, anarquistas, libertários, existencialistas até anarcopunks hightechs.

A escalada de lutas antissistêmicas do século XXI, onde incluímos o zapatismo, tende a se amparar na oposição frontal a toda forma de dominação e exploração institucionalizadas por uma certa forma de organização da economia (Capital) e da política (Estado). Mas o zapatismo, nesse sentido, também sinaliza para um aspecto que parece florescer em muitos processos e movimentos antissistêmicos contemporâneos: a manifestação e a realização de uma sociabilidade e de uma práxis que evocam a autonomia como autorregulação, autogoverno e autogestão. Essa sociabilidade emergente parece assediar as principais separações que fundamentam a modernidade capitalista: governo/governado, capital/trabalho, produtor/produto, homem/natureza, sujeito/objeto.

Os zapatistas, ao realizarem seu projeto de autogoverno com independência do Estado, e, por sua opção pela aliança com a sociedade civil, fortalecem uma leitura do processo emancipatório como identidade entre democracia e autonomia, desvelando seu conteúdo mais radical e promissor. E uma análise mais detida dessa experiência ainda permite vislumbrar que o autogoverno não se reduz à existência das instituições de autogoverno (fetichismo e jaula conceitual recorrente à ciência política), como os Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ) e as Juntas de Bom Governo (JBG)3, mas ultrapassa as mesmas no sentido de torná-las possíveis no marco de novas relações sociais, novas

3 As JBG são instâncias de coordenação política regional dos MAREZ, sediadas em cada um dos caracóis zapatistas.

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sociabilidades que fundam e reproduzem vínculos sociais e coletivos de uma “natureza especial”: pautados na horizontalidade, na criação/apropriação do valor de uso, na colaboração e na cooperação, no protagonismo, na tolerância, na diversidade e na integralidade do homem (uma nova paideia?).

A experiência de autonomia que os zapatistas ensaiam e vivenciam nos induz a refletir profundamente sobre o monopólio liberal exercido sobre o imaginário democrático ocidental, nos abrindo a uma concepção de ideal democrático, que vá além da noção de regime político ou de certos procedimentos institucionalizados, visualizando-a em pelo menos uma dimensão inescapável: um determinado tipo de configuração societária comunal organizada por práticas, valores e representações que tomem o homem e a humanidade socializada como meio e fim, fundada no ser humano como a realização da política e da política como a realização das potencialidades humanas. O experimento de autogoverno zapatista apresenta, pois, um conjunto de elementos e aspectos que corroboram conceber o “projeto de autonomia” como um movimento real e antissistêmico fundamentalmente em suas dimensões práticas, pois está baseado: a) na socialização dos meios de produção e desmercantilização da terra; b) na socialização dos meios de gestão e na administração da vida coletiva; c) na comunitarização e politização do associativismo indígena em rede; e d) na ativação de um processo de formação de sujeitos calcado no desenvolvimento da participação protagônica e polivalente, que, por sua vez, retroalimenta a própria experiência de autonomia indígena.

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“Um fantasma ronda a América Latina: o fantasma da autonomia”

É possível que o leitor já tenha se deparado com outros textos que, em seu início, tenham, assim como aqui, parafraseado a célebre sentença de abertura da clássica obra de Karl Marx e Friedrich Engels. Esse exercício literário quase sempre é feito no sentido de apresentar algum tipo de ameaça àqueles que, confortavelmente situados no poder, acostumaram-se a não ter sua situação confrontada. Também é esse o sentido com que aqui nos damos a liberdade de parafrasear esses importantes autores, talvez apenas resguardando-nos de que aquilo que aqui colocamos como ameaça não tem o caráter de acontecimento iminente a transformar de forma profunda e espetacular toda a sociedade, mas sim de reconhecer uma multiplicidade de “pequenos” eventos que, à sua maneira, fustigam e importunam constantemente a todos os poderes instituídos.

A autonomia é uma expressão que, cada vez mais, surge como reivindicação central por parte de grupos situados em condições de fragilidade - política, social, econômica e/ou cultural. Pode ser vista - e ouvida! - sendo pronunciada por povos originários, por descendentes de quilombolas, por movimentos de luta por moradia, e na luta das feministas. Mas, se quisermos compreender essa recente maior abrangência da utilização do termo, devemos buscar seus significados mais profundos e, em especial, confrontá-lo com seu antônimo - a heteronomia.

Se entendemos a heteronomia como o estado no qual nossas ações - tanto concretas quanto as possibilidades de - são definidas/delimitadas por outros, e que a autonomia, enquanto seu oposto, é o estado no qual somos os artífices de nossas possibilidades de ação, torna-se simples compreender o porquê de ela se constituir em léxico central dos movimentos sociais - e dos indivíduos que lutam por outro ordenamento possível.

A autonomia questiona todas as formas de dominação existentes na sociedade, já que todas elas implicam na imposição de algum tipo de ordenamento ou comportamento emitido desde uma posição de superioridade sobre outrem. Portanto, a autonomia é radicalmente oposta a todo tipo de hierarquização das relações. (Não nos faltariam exemplos de relações pautadas pela hierarquização das posições em nossa sociedade, mas não é precisamente esse o objetivo deste texto). O fato aqui é reconhecermos a presença crescente da demanda por autonomia na pauta dos mais diferentes movimentos sociais.

Ao trazermos esse conceito para uma leitura geográfica, vemos que a autonomia se faz presente em especial na agenda daqueles movimentos que têm na luta pelo território o eixo central de sua existência. Já transcorreram mais de duas décadas desde que os movimentos indígenas da Bolívia e do Equador se pronunciaram, quase ao mesmo tempo, mas sem qualquer articulação direta entre ambos, pela “dignidade” e pelo “território”. A simultaneidade de tal reivindicação demonstra que ter não só o acesso aos seus territórios ancestrais, mas, em especial, ter o

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direito de neles exercer suas formas tradicionais de relações intra e inter-comunitárias - incluindo-se dentro destas, a relação com a natureza - é um requisito fundamental à continuidade da existência daqueles povos. Essa mesma demanda se faz presente na ação do movimento quilombola que, assim como no caso dos povos originários, vê na autonomia territorial a possibilidade de garantir suas condições de reprodução física e cultural.

Não reconhecer nem permitir essa multiplicidade de formas de organização socioespacial sempre foi um requisito básico da dominação exercida pelo Estado que, para controlar as populações presentes dentro das fronteiras nas quais tinha a “soberania”, sempre forçou a homogeneização e a uniformização das práticas sociais ali existentes. Vê-se, assim, que eliminar a diversidade do tecido social, tornando-o legível e funcional à dominação do Estado liberal-burguês é um objetivo permanente e que nos faz entender por que a autonomia de indígenas e quilombolas é tão ameaçadora aos interesses estatais e privados: seu exercício impediria o acesso livre a uma multiplicidade de recursos necessários à manutenção do modo de vida e aos padrões de consumo da sociedade urbano-industrial.

A experiência zapatista, que, em janeiro deste ano, completou 20 anos de existência pública, nos mostra o exercício real da autonomia e da autogestão das comunidades mayas do sul do México. Ali são praticadas diariamente formas de gestão da vida coletiva que contrastam radicalmente com as formas vivenciadas hoje em nossa sociedade regida pelos padrões dominantes da cultura ocidental. E não pensem que a ameaça à continuidade da experiência zapatista se deve à sua luta por tomar o Estado; na verdade, os zapatistas são uma ameaça exatamente pelo fato de que prescindem do Estado e, consequentemente, de todos os interesses privados que têm no Estado um agente garantidor de sua dominação. Em seus territórios, não se aceitam as relações de clientelismo, corrupção ou compadrio que tanto marcam a forma como os poderes se relacionam com as comunidades camponesas. E, se as comunidades não-zapatistas são seduzidas com planos de apoio governamental, que lhes permitem o acesso a condições materiais eventualmente melhores que a das zapatistas, o estabelecimento de redes de solidariedade com distintas experiências autônomas no país e em outros lugares do mundo é a forma alternativa com que contrapõem essas relações.

Talvez seja esse o grande ensinamento da experiência do EZLN, transmitido na Escuelita Zapatista. Seu subtítulo, “A Liberdade segundo @s Zapatistas”, poderia sugerir o ensino de um modelo a ser emulado em outros rincões do planeta. Pelo contrário: o convívio diário com uma forma de existência que prima pela importância das relações comunitárias, algo que - destaque-se - não é um aprendizado de cânones esquerdistas, mas sim uma prática daqueles povos cujas origens se perdem no tempo, nos mostra que outros caminhos e outras práticas são possíveis e que, assim, também é possível a construção de outras geografias.

Colocar em prática esses aprendizados significa criar novas e múltiplas experiências de espaços autônomos, sejam eles de comunidades originárias ou quilombolas, seja na construção de práticas autônomas que ressignifiquem nossas relações cotidianas e que desafiem os modelos

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hegemônicos. É somente esse exercício que nos tornará capazes de entendermos as distintas instâncias em que somos submetidos a relações de domínio e o quanto não somos os artífices de nossas próprias existências.

Entender a necessidade de ampliação das práticas autônomas como estratégia a ser seguida não significa esquecer o quão globais são certas instâncias de dominação às quais somos submetidos. Significa, isso sim, reconhecer a potencialidade existente em tantas e tantas experiências que conseguem, persistentemente, fustigar a dominação do capital. Seu êxito talvez só não seja maior pelo fato de que ainda falta, a muitas dessas experiências, a possibilidade do diálogo e do estabelecimento de redes em escalas mais amplas.

Talvez seja esse um dos maiores ensinamentos que a experiência zapatista nos tenha trazido. Quando, em seus comunicados, o Subcomandante Insurgente Marcos se dirige a todos os povos do mundo, e enuncia, um a um, distintos grupos que, assim como os mayas de Chiapas, foram e são vítimas da opressão e do menosprezo, ele nos fala da fundamental importância do reconhecimento da sociodiversidade, o reconhecimento das múltiplas e diversas formas de existência.

Esse é o caminho percorrido pelo EZLN em seus trinta anos de existência, vinte deles à luz pública, e é por meio de um convite para compartilhá-lo que as comunidades zapatistas abriram suas portas em agosto de 2013. O caminho da autonomia por eles trilhado é um caminho para construção de um mundo tal qual se antevê numa de suas mais singelas e ao mesmo tempo profundas consignas: um mundo onde caibam muitos mundos.

Marcelo Argenta Câmara

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Sobre os autores

Carlos Antonio Aguirre Rojas é professor no Instituto de Investigaciones Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM)

Cássio Brancaleone é professor no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) - Campus Erechim (RS)

Edson Antoni é professor no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Jorge Quillfeldt é professor no Instituto de Biociências, departamento de Biofísica, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Marcelo Argenta Câmara é professor no departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Raul Zibechi é editor da revista Contrapunto da Universidad de la República - Extensión Universitária, Uruguay

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