Zelia Cardoso

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  • FIGURAS FEMININAS EM PLAUTO: CONVENCIONALISMO E ORIGINALIDADE

    Zella de Almeida Cardoso USP

    RESUMO

    Uma das principais caractersticas das comdias de Plauto a cuidadosa composio dos personagens. Consi-derado como o representante latino da "Comdia Nova", em seus escritos, alm dos personagens universais, recria tipos especficos da sociedade grega, muito freqentes nas comdias escritas por Menandro, Filmon e alguns outros. Embora, na composio dos personagens, Plauto faa uso do convencionalismo e, enfatizando suas caractersticas, invente caricaturas realmente cmicas, em alguns casos os resultados so surpreendentemente originais. Isso pode ser observado a respeito de Eunmia, por exemplo, um dos personagens pertencentes a "Aululria". A originalidade torna-se mais evidente quando ela comparada com os outros personagens femininos do texto, evidenciando-se, entre as marcas de originalidade, o atributo romano que ela possui. Eunmia tem as principais caractersticas da matrona romana no s pela sua austeridade, seriedade e esprito prtico, mas tambm pelo papel domstico que ela desempenha e pelo relacionamento que ela mantm com seu irmo e com seu filho. Trabalhando assim, Plauto mostra habilidade tanto ao transpor a comdia "palliata" para o mundo romano quanto ao dar-lhe uma tonalidade particular.

    Embora Lvio Andronico e Nvio tenham sido os pri-meiros escritores a adaptar em latim peas dramticas gre-gas, com Plauto que a comdia latina vai atingir seu mo-mento mais importante. A crtica de todos os tempos foi unnime em consider-lo como o principal expoente do gnero cmico em Roma. Letras. Curitiba (37) 251-261. - 1086 - UFPR 2 5 1

  • CARDOSO. Z. A. Fisuras femininas

    Pouco se conhece sobre a vida de Plauto alis como a da grande maioria dos autores latinos do chamado perodo helenstico. Sabe-se que nasceu na rabria nas imediaes de 250 a.C.; em 254 a.C., talvez. Sabe-se tambm que era de famlia humilde, que se dedicou desde cedo ao teatro e que, por volta de 220 a.C., comeou a compor peas teatrais ins-pirando-se nas obras de Menandro, Dfilo e Filemo, autores gregos que se filiaram chamada Comdia Nova e que es-creveram textos dos quais nos restam hoje alguns fragmentos.

    A Comdia Nova floresceu na Grcia entre 330 e 250 a.C., aproximadamente, e se distingua da Comdia Antiga do sculo V a.C. tanto no que diz respeito estrutura de composio das peas como e principalmente pela te-mtica e pelo tratamento conferido aos temas. A Comdia Antiga se caracterizava pelo tom agressivamente satrico e pela crtica, muitas vezes sarcstica e mordaz, feita socie-dade, ao regime poltico, s artes, aos sistemas educacionais e filosficos. A Comdia Mdia, que veio a seguir, inicial-mente se ocupou de temas mitolgicos, tratando-os com hu-morismo e esprito. Enveredou, depois, por outra linha, pro-curando retratar costumes e criticar aspectos da vida. Tais assuntos foram retomados e aperfeioados pela Comdia Nova.

    Plauto, conforme se disse antes, se inspirou em autores dessa ltima fase. Em alguns textos, como por exemplo em A corda (Rud. 32 chegou a mencionar a fonte de que se valeu: no prlogo da pea a estrela Arturo diz que a hist-ria se passa em Cirene porque assim o quis Dfilo.

    Entretanto, apesar de basear-se em obras gregas, Plauto conseguiu ser bastante original, impregnando suas peas de elementos romanos. possvel que essa romanizao, con-siderada como uma das grandes inovaes do teatro plau-tino e responsvel pelo que se considerou mais tarde como a criao de um "teatro nacional" romano, nem sequer te-nha sido intencional. Paul Veyne, em seu interessante artigo "L'hellnisation de Rome et la problmatique des accultura-tion"2, ao mencionar as comdias de Plauto procura mostrar que, se o teatrlogo no manifesta em suas obras nenhuma espcie de fascinao pela Grcia, tambm no demonstra ressentimentos. Procura, antes de mais nada, divertir o seu pblico, fazendo-o ver o objeto mais interessante que pode existir: a humanidade, ou seja, eles mesmos.

    1 Os t tulos das comdias s&o citados em por tugus . Nas referncias , porm, em-precam-se abreviaes a pa r t i r do texto lat ino. A edlc&o mencionada P LA UTE. Comdies. Texte t. t rad . A.Ernou. Par is . Les Belles Lettres, 1952.

    2 VEYNE. P. L'hellnisation de Rome et la problmat laue des accul turat ions . Dioaina, Paris , 106:8-9. 1979.

    2 5 2 Letras. Curitiba (37) 251-261 - 1988 - UFPR

  • CARDOSO, Z. A. Figuras tcmininas

    Haja ou no haja inteno de romanizar, o fato que as comdias apresentam elementos romanos em seu bojo. E isto, evidentemente, se constitui em originalidade.

    Plauto se vale exclusivamente da espcie dramtica de-nominada fabula-palliata, a pea cmica ou tragicmica de assunto grego As histrias se passam em cidades gregas se que, como ainda afirma Paul Veyne, um mundo imagi-nrio se situa realmente em algum lugar3. As personagens tm nomes gregos estranhos nomes, por vezes, por isso mesmo carregados de alto teor humorstico.

    As influncias latinas se evidenciam, porm, em numero-sas passagens. A Aulularia, a Comdia da panelinha4, uma das mais conhecidas e mais apreciadas peas de Plauto, ofere-ce-nos muitos exemplos do procedimento literrio do come-digrafo, ao introduzir no texto elementos romanos.

    Divindades itlicas se mesclam aos deuses gregos. O deus Lar, tipicamente latino e sem equivalente no panteo helnico, no s abre a comdia recitando o prlogo e fa-lando de sua importncia na casa romana como tambm o objeto das reverncias e homenagens a serem-lhe prestadas no casamento que se prepara no decorrer dos atos5. Euclio, o velho avarento, se refere, de forma um tanto irreverente, deusa Fortuna, no dilogo que mantm com Estfila, a escrava. Esta, por sua vez, menciona o templo da deusa, pr-ximo da casa de Euclio. "Em minha ausncia, no quero que se introduza ningum em minha casa", diz o avarento. "E ainda eu te digo mais: se a prpria Boa Fortuna aqui vier, no a deixes entrar". Estfila responde: "Por Plux, no te-nhas medo; eu creio que ela prpria ter o cuidado de no entrar. Nunca veio nossa casa, apesar de morar aqui perto" Fors Fortuna, ou simplesmente Fortuna, Fortuna Virilis, For-tuna Muliebris ou Fortuna Caeca a divindade romana que representa o acaso e a sorte. Adorada em cidades itlicas, tais como Preneste e ncio, teve seu culto introduzido em Roma, conforme quer a tradio, nos tempos de Srvio Tlio.

    Outra divindade muito antiga, cultuada no Lcio e men-cionada na Comdia da Panelinha Fides, a Boa F. Com medo de ser roubado, Euclio esconde a panelinha de ouro, encontrada na lareira de sua prpria casa, no templo da Boa F. Esconde-a e faz a sua prece: " Boa F, tu me co-nheces e eu te conheo. Cuidado, no vs desmentir o teu

    3 VEYNE, D. 8 o seg. 4 Ver PLAUTO. Aulularia (A Comdia da panel inha) . T rad . intr . no tas A.Costa. S&o

    Paulo, Difuso Europia do Livro, 1967. Os trechos traduzidos so t ranscr i tos desta edio.

    5 Aul,, p. 96. 6 Aul., p. 79.

    Lttras. Curitiba (37) 251-261 - 1988 - UFPR 2 5 3

  • CARDOSO. Z. A. Fisuras femininas

    nome, se te confio este depsito. Venho procurar-te, Boa F, pela confiana que me inspiras" (Aul. 582-286).

    Mais adiante, desconfiando da deusa, o velho avarento procura outro esconderijo para a panela de ouro. Diz ele: "Agora estou pensando num lugar onde esconder isto, um lugar bem deserto. H, fora dos muros, o bosque de Sil-vano, onde ningum passa e cheio de salgueiros espessos: a vou escolher um lugar. Sim, porque tenho mais confiana em Silvano que em Boa F' (Aul. 673-676). Silvano uma velha divindade campestre romana. Representada inicialmen-te por uma rvore, depois por um velho de ar brincalho, a divindidade acabou por assimilar-se aos stiros, de origem grega', o que camuflou a sua verdadeira natureza.

    Alm das divindades existem outros elementos romanos na comdia. O ritual do casamento que se prepara, segundo informaes dadas pelas prprias personagens, tem todas as caractersticas do ritual romano; a distribuio de moe-das aos pobres, mencionada por uclio no primeiro ato (Aul. 105 ss.), seria feita pelo presidente da cria e a cria, sabe-se, era a diviso distrital romana; em dilogos espar-sos h referncias a trinviros e pretores, magistrados evi-dentemente romanos.8

    Tambm no tratamento dado s figuras Plauto atribui no raro uma colorao local, talvez para conferir com-dia a atualidade que lhe to necessria. verdade que o comedigrafo apresenta muitas vezes em suas peas os "ti-pos" convencionais da Comdia Nova, no comuns na so-ciedade romana: o soldado fanfarro, pago por reis da sia, a moa raptada por piratas na infncia e vendida a "lenos" que a encaminham prostituio, o parasita guloso e baju-lador. De permeio a eles h personagens "universais" como o paterfamilias, o jovem devasso e irresponsvel, o amante pobre, o escravo astuto, "tipos" freqentes, com certeza, em Roma.

    Personagens-"tipos" costumam apresentar, via-de-regra, caractersticas estereotipadas. o que lhes confere o as-pecto de caricaturas. Em Plauto, entretanto, embora se en-contrem muitas vezes personagens com esses atributos, h tambm aquelas que apresentam traos particulares distin-tivos. Em alguns casos, at na caracterizao das figuras pode-se perceber a "romanizao". A Comdia da Panelinha, mais uma vez, oferece exemplos de figuras "romanizadas".

    7 Cf. DICIONRIO de mitologia greco-romana. So Paulo. Abril Cultural . 1973. D. 63-78.

    8 Cf. PLAUTO. Aul., p. 30 e seg.

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  • CARDOSO, Z. A. Figuras cmlnlnas

    Euclio, o avarento, e Megadoro, o vizinho rico, tm, cada um sua maneira, alguns elementos de romanidade: Euclio, em suas atitudes e em certos hbitos no tratamento rude dado aos escravos e, contudo, amparado por lei, na irreve-rncia, na irreligiosidade, na superstio, no costume de fre-qentar o barbeiro, o tonsor; Megadoro em sua ironia cida e sutil, em sua finura, em seu esprito prtico9"

    E quanto s mulheres? poderamos perguntar. Como Plauto as apresenta? Como as caracteriza? Sob que ngulos se mostra original?

    Semelhantemente ao que acontece com os "homens", muitas das figuras femininas presentes nas peas do come-digrafo umbro no passam tambm de "tipos" ocorrentes na Comdia Nova: cortess ambiciosas, esposas enganadas, velhas amas, moas de boa famlia reduzidas condio de escravas. Em algumas comdias, como Os cativos (Captivi), por exemplo, no h mulheres; em outras, como Psudolo (Pseudolus), a mulher que o motor de toda a histria no passa de mera personagem muda.

    Na Comdia da Panelinha, porm, h figuras femininas que merecem uma anlise mais pormenorizada, dada a cons-truo de que foram objeto.

    Eunmia, irm de Megadoro e me de Licnides o jovem que seduzira a filha de Euclio , e Estfila, a velha escrava, suscitam observaes em virtude das importantes peculiaridades que apresentam.

    Sobre Eunmia faz Ada Costa uma anlise precisa na "Introduo" traduo da Aulularia, por ela realizada e publicada na Pequena Biblioteca Difel (textos greco-latinos).

    Aps ter mostrado as boas intenes da mulher em seu interesse pelo casamento do irmo e a argcia que demons-ao simular humildade para convenc-lo, Ada Costa ressalta a importncia de Eunmia em sua condio de matrona e o ascendente que tem sobre os homens da famlia: o velho Megadoro e Licnides, o filho arrependido. Assim se expressa a escritora ao concluir a sua anlise: "Como se v, de sua rpida interveno na comdia, Eunmia uma mulher da burguesia romana. Tem, de romana, uma discrio mais ou menos altiva, um notrio bom senso e dedicao, que se inquieta com o celibato do mano e colabora para remediar um ato indecoroso do filho, salvaguardando a situao das vtimas. Tem, de universal, aquela humildade calculada, ma-nhosa e bem feminina, de confessar as deficincias e os de-

    fl PLAUTO. Aul., p. 30 c seg.

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  • CARDOSO. Z. A. Fisuras femininas

    feitos para tocar a masculina sensibilidade, ao lado de um zelo desinteressado e ativo para com os seres que lhe so caros, desprezando o interesse subalterno que lhe podia des-pertar a fortuna do irmo, solteiro e sem outros herdeiros, e um casamento vantajoso do filho"10

    Ope-se a Eunmia, em condio social, a velha Estfila Eunmia uma dama bem situada, rica, merecedora de con-siderao e respeito, como toda matrona romana; Estfila uma pobre escrava, j idosa, consoante informao forne cida pelo deus Lar ("Pe para fora a velha escrava" Aul. 37). Em sua condio de serva presta-se a toda espcie de maus tratos infligidos pelo amo: injrias, ofensas, ameaas, pancadas. Os dilogos travados entre ela e Euclio mostram a prepotncia do velho, consciente dos direitos de um senhor romano sobre as pessoas consideradas de sua propriedade: direitos de vida e morte.

    Estfila sofre nas mos de seu amo, pede-lhe explicaes ("Por que bates em mim, pobre infeliz", Aul. 42; "Por que motivo me puseste agora para fora da casa?" Aul. 44), lamenta-se ("Antes me levassem os deuses forca do que servir-te desse jeito" Aul. 50), procura compreender as atitudes de Euclio, sem contudo conseguir ("Por Cstor, no serei capaz de dizer que mal aconteceu ao meu senhor, no sou capaz de imaginar de que loucura est possudo" Aul. 68-69).

    Apesar das reclamaes constantes compreensveis em sua situao revela senso de humor, e tambm irrevern-cia, na zombaria disfarada, to prpria do romano, vislum-brada nas respostas que d a Euclio. Quando este lhe manda tomar conta da casa, retruca sem qualquer receio: "Tomar conta da casa? Para que no a carreguem? Sim, porque aqui em casa no h nada que interesse aos ladres. Ela est cheia, mas s de vazios e teias de aranha". (Aul. 81-84).

    Seu esprito brincalho e irnico transparece na per-gunta que faz ao escravo Estrobilo quando o v trazer os mantimentos para o casamento da jovem Fdria e no dis-tingue entre as provises e o esperado vinho: "Por acaso vo celebrar as npeias de Ceres, Estrobilo?" (Aul. 352).

    Por outro lado, Estfila se revela cheia de solicitude em relao moa de quem fora ama. Teme por ela como por si prpria e deixa estravasar suas preocupaes em um curto monlogo, espontneo e autntico, quando se mostra ao

    10 PLAUTO. Aul., p. 49.

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  • CARDOSO, Z. A. Figuras cmlnlnas

    pblico sem a presena de interlocutores: "Que fazer agora? estamos perdidas, a filha do meu senhor e eu. A vergonha do parto est muito prxima e vai tornar-se pblica. O que at agora esteve encoberto e escondido no pode continuar em segredo. Vou entrar, a fim de que quando o amo voltar, tudo que mandou fazer esteja feito. Por Cstor, temo ter de engolir hoje uma taa de desgostos e amarguras" (Aul. 274-279).

    Alm de Estfila, duas outras escravas se fazem presen-tes na Comdia da Panelinha: Frigia e Elusis, flautistas alu-gadas por Megadoro e levadas por Estrobilo casa de Euclio. So personagens mudas, sem funo dramtica e pratica-mente sem caracterizao: sabemos apenas que Frigia mais gorda que Elusis porque Estrobilo se refere, por brincadei-ra, a esse fato (Aul. 332-334). Aparecem em cena para ilus-trar um dos aspectos do ritual do casamento a exigncia de msica de flauta e provavelmente para que se pudesse executar, na cena de que tomam parte, um nmero de dana do qual participariam as flautistas e os cozinheiros. A coreo-grafia sempre desempenhou importante papel no teatro plau-tino.

    Das figuras femininas presentes na Comdia da Paneli-nha, resta-nos analisar Fdria, a filha de Euclio. Fdria no chega a surgir diante do espectador. Apenas sua voz ou-vida . e por uma nica vez quando, no momento de dar luz, ela invoca em altos brados a proteo de Juno Lucina.

    uma personagem importante, entretanto, para a mon-tagem da intriga, e uma figura instigante pela problemtica que sugere.

    Sabemos das caractersticas da moa pelo depoimento dos outros figurantes11. O deus Lar a retrata no prlogo da comdia: piedosa e boa e merece que, por sua causa, o pai avarento encontre a panela de ouro, escondida h tanto tempo, na lareira da casa (Aul. 24 ss.). Megadoro a aprecia em sua pobreza e simplicidade (Aul. 173). Os amigos a elo-giam (Aul. 476). Licnides a ama e, embora tardiamente, pro-cura reparar o mal que lhe fizera ao seduzi-la, casando-se com ela (Aul, 683-687).

    Fdria prope o aprofundamento em duas questes im-portantes. A primeira concerne s peculiaridades do casa-mento romano; a segunda a seu comportamento em relao a Licnides. Analisemo-las por partes. 11 C. CANDIDO, A. ct alii. A personagem de fico. s&o Paulo, Perspectiva, 1972

    . 88.

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  • CARDOSO. Z. A. Figuras femininas

    No que diz respeito s caractersticas do casamento ro-mano temos dados valiosos na comdia, uma vez que a trama montada em torno do matrimnio de Pdria. No Ato II, a velha Eunmia dialoga com o irmo idoso e celibatrio apregoando-lhe as vantagens do casamento e a felicidade da paternidade. Compreende-se o posicionamento da senhora. A sociedade romana se baseava na organizao familiar. O casamento necessrio para garantir a sucesso, a manuten-o do patrimnio e a continuidade do nome e do sangue. Rias, por outro lado, como aliana de famlias, o casamento romano um negcio: a moa usualmente traz um dote, a ser gerido pelo esposo, "ad onera matrimoni sustinenda"12. Tentando subtrair-se ao dever de dotar a filha, Euclio re-cusa, a princpio, o pedido da mo da jovem, feito por Mega-doro. "Eu no tenho dote para dar-te", diz ele ao vizinho (Aul. 237). Este, no entanto, lhe revela a opinio que tem a respeito do assunto: "Pois no o ds. Contanto que ela traga consigo bons costumes, trar dote suficiente" (Aid. 238-239)13 Mais alm, conversando com o futuro sogro, procura justi-ficar a atitude que tomou. Para ele, os homens ricos deve-riam casar-se com mulheres sem dote. Haveria mais paz na cidade e menos inveja. As esposas seriam menos exigentes, mais econmicas, mais tratveis. "Mulher sem dote", diz ele, "submete-se autoridade do marido. Mulher que leva dote s faz a desgraa e a misria do homem" (Aul. 534-535).

    O casamento romano, porm, enquanto celebrao, no tinha apenas seu lado jurdico. Havia tambm seu aspecto religioso e festivo. A confarreatio (forma solene do matrim-nio, em oposio coemptio e ao usus)13, realizava tais ca-ractersticas. Foi a confarreatio a forma de casamento esco-lhida por Megadoro e Euclio. "Resolvi tomar coragem, afi-nal, hoje", diz este, "para celebrar condignamente as np-cias de minha filha" (Aul. 373-374).

    Tal modalidade matrimonial se caracterizava pela obe-dincia a diversos ritos. A cerimnia previa preces e sacri-fcios, aps os quais um grande banquete era oferecido aos convidados. Euclio se dispe a adquirir no mercado o ne-cessrio para tudo isso. Mas, como as carnes custavam muito caro, desiste do lado festivo do casamento e se limita aos deveres religiosos: compra incenso e coroas de flores para enfeitar o larrio homenageando o deus Lar a fim de que este protegesse a filha em sua nova situao, dando-lhe a esperada felicidade. O deus, portanto, presidir o casamento, num ritual tipicamente romano.

    12 Cf. VASCONCELLGS. F.F. A mensagem Jurdica em Os AdcHos de Ternclo. Dilogos Clstico, Bio Paulo. 1:67. 1986. . ), ))

    13 Observao semelhante tambm encont rada na comdia Anfltrl&o.

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  • CARDOSO. Z. A. Figuras femininas

    A segunda questo proposta pela figura de Fdria diz respeito a seu relacionamento com Licnides, o jovem ena-morado. Diz o deus Lar no prlogo da comdia que "um jovem de alta posio" violentara Fdria na festa de Ceres. "Ele, o jovem", acrescentava a divindade, "sabe quem aque-la a quem violentou; ela, porm, no o conhece nem seu pai a sabe desonrada" (Aul. 29-30).

    Como explicar o incidente? Licnides afirma me que seduzira a moa sob o efeito da embriagus (Aul. 688-689) e, ao declarar-se a Euclio, confirma o que dissera: "Confesso que violentei tua filha na noite das festas de Ceres. Foi o vinho, foi o impulso da juventude" (Aid. 794-795).

    No sabemos exatamente quais as particularidades das festas de Ceres celebradas em Roma as chamadas Cerea-lla. Virglio, nas Gergicas11, aconselha os jovens a fazerem libaes com vinho em honra de Ceres, o que no condiz com o costume grego que prescrevia total abstinncia de qualquer espcie de bebida durante os festejos em homenagem a De-mter. Ovidio, nos Fastos15, se refere s Cerealia, no che-gando, contudo, a descrev-las com preciso. Lembra, en-tretanto, que no dia 11 de de abril, quando se iniciam as festividades que duram nove dias lembrana das nove noites durante as quais Ceres procurou pela filha raptada , deve-se queimar gros de incenso em homenagem deusa ou, na falta de incenso, acender tochas odorferas.

    Vinho, incenso e tochas perfumadas, cujas resinas quei-madas liberam fenis altamente txicos, tm, em comum, o poder de excitar os sentidos, despertar a libido e entorpecer a razo. Sob o efeito de tais agentes como o prprio Li-cnides confessa no de estranhar-se o comportamento dos jovens.

    Todavia, talvez possamos ir um pouco mais alm no exa-me do assunto, procurando encontrar outras significaes na festa de Ceres.

    Pierre Klossowski, em sua obra Origines cultuelles et mythiques d'un certain comportement des dames romaines16, procura relacionar o mundo da devassido romana com o mundo cultual, as solenidades religiosas e os jogos. Basean-do-se sobretudo na obra do arquelogo suio Bachofen, mas citando tambm numerosos autores antigos, Klossowski fala dos trs estgios sociais pelos quais passaram as sociedades arcaicas: o matriarcado telrico ou ctnico, sob o signo das 14 Geo.l, 343-4 (Cf. PLAUTO. Aul., p.60). 15 OVIDIO. Fastos. In t r . vrs. notas J.Q.Melgoza. Mxico Universidad Nacional Au-

    tnoma de Mxico. 1886. Libros IV-VI. p. 14 e seg. 16 KLOSSOWSKI P. Orioinos culturelles e t mythique* d 'un certain comportement

    des dames romaines. Paris , Fa t a Morgana. 1986.

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  • CARDOSO, Z. A. Figuras femininas

    divindades subterrneas, quando a prostituio seria um ato ritual pelo qual a mulher se identificaria com as deusas que representavam a terra; o estabelecimento de um matrim-nio, coincidindo com o surgimento de uma civilizao agr-ria, matrimnio esse precedido de um hetairismo de ca-rter sagrado, em que as cortess hierdulas vestgio ain-da das prticas religiosas octnicas se transformariam em matronas monogmicas aps o casamento; e, finalmente, um estgio patriarcal que se estabeleceu e ganhou contornos le-gais com a definio dos direitos masculinos.

    O primeiro estgio se relacionaria intimamente com as divindades telricas e infernais bem como com as deusas da vegetao natural e dos pntanos; o segundo com divindades que representam a transio entre o mundo das sombras e o da luz, entre a natureza bruta e a organizao racional (Ceres e Prosrpina seriam um exemplo, assim como Diana, cuja anti-face Hcate); o terceiro estgio se vincularia a Dionisio, ou Baco, preparando o triunfo do princpio viril.

    Bachofen, citado inmeras vezes por Klossowski, tentou encontrar na civilizao romana vestgios dessas estruturas sociais. As lendas que envolvem a figura de Tanaquil, esposa de Tarqunio Prisco segundo a tradio, tm muitos elemen-tos que evocam o matriarcado e a prostituio sagrada. Os atributos da esttua da rainha existente no templo do Qui-rinal aproximam-na de divindades orientais e de Vnus: o cinto, representando uma zona do universo, as sandlias, re-metendo ao mundo das cortess, a roca e o fuso, fazendo lem-brar as Parcas, divindades ctnicas e matriarcais.

    Tambm evoca o estgio matriarcal e o hetairismo sa-grado o culto a divindades femininas, muito antigas, amb-guas e misteriosas tais como Bona Dea, Fortuna Muliebris, Acca Larentia, Flora, Juno Caprotina. Bona Dea representa a terra e se assimila, portanto, Magna Mater asitica, a Ops (a equvoca e estranha Diana de Arcia ou a prpria Ceres), a Fauna (a que favorece), a Fatua (a que fala), e a Prosr-pina, filha de Ceres.

    Das solenidades rituais em homenagem a tal divindade ou a tais divindades temos dados relativamente vagos, colhi-dos em documentos histricos e literrios que deixam entre-ver algumas de suas caractersticas. Eram celebraes orgis-ticas, regadas a vinho e enfumaadas pela queima de elemen-tos txicos como o incenso e as resinas, celebraes nas quais as mulheres, embriagadas e inebriadas, caam num estado de transe ou de frenesi, ao som de flautas, de trombetas e

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  • CARDOSO, z . A. Fisuras femininas

    possivelmente de instrumentos de percusso , identifican-do com a terra sua natureza feminina e submetendo-se volun-tariamente a fecundaes fortuitas. Deixavam vir tona sua condio de hetairas sagradas, entregando-se, no numa de-generescncia ritual, mas numa retomada de cultos arcaicos, ao apelo de um amante ocasional ou de um recm-chegado desconhecido.

    Ao mencionar a festa de Ceres vrias vezes com a discrio com que se mencionam coisas aparentemente clan-destinas mas bem conhecidas e fazendo possivelmente dessa discrio insinuadora um poderoso elemento cmico provvel que Plauto haja deixado para ns mais um teste-munho daquilo que se supe ter existido, mais uma pea de um quebra-cabeas ainda por montar.

    So as consideraes que alinhvamos sobre o conven-cionalismo e a originalidade do comedigrafo ao construir as mulheres da uma obra nunca suficientemente analisada.

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS

    1 CANDIDO, A. et alii. A personagem de fico. So Paulo, Perspectiva, 1972.

    2 DICIONRIO de mitologia greco-romana. So Paulo, Abril Cultural, 1973.

    3 KLOSSOWSKI, P. Origines culturelles et mythiques d'un certain comportement des dames romaines. Paris, Fata Morgana, 198.

    4 OVDIO. Fastos. Intr. vers, notas J.Q.Melgoza. Mexico, Universidad Nacional Autonoma de Mxico, 1986. Libros IV-VI.

    5 PLAUTO. Aulularia. (A comdia da panelinha). Intr. trad, notas A. Costa. So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1967.

    6 . Comdies. Texte t. trad. A. Ernout. Plaris, Les Belles Lettres, 1952.

    7 VASCONCELLOS, F.P. A mensagem jurdica em Os Adelfos de Te-rncio. Dilogos Clssicos, So Paulo, 1:63-78, 1986.

    8 VEYNE, P. L'hellnisation de Rome et la problmatique des accul-turations. Diogne, Paris, 106:3-29, 1979.

    Letras. Curitiba (37) 251-201. - 1988 - UFPR 261