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ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

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Dado» inecrnacionata de C;ic:iIog:i\‘íjo iin PubliciçAo (C IP) (Cílmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sobre a Metafísica de Ariscóceles: textos selecionados / coordenação de Marco Zingano. - Sáo Paulo : Odysseus Editora, 2009.

Bibliografia.

1. Aristóteles - Metafísica I. Zingano, Marco

05-6062 CDD-185

índice para catálogo sistemático:

1. Metafísica: Filosofia aristotélica 185

Todos os direitos desta edição reservados à:© 2005 Odysseus Editora Ltda.

Editor responsável: Stylianos Tsirakis

Coordenação e prefácio: Marco Zingano Tradução e copyrights: ver créditos (p. xiii)

Projeto Gráfico: Lucas Dezotti / Odysseus Editora Capa: Douglas Barzon / Odysseus Editora

Revisão técnica: Marco Zingano Diagramação: Lucas Dezotti

Odysseus Editora Ltda*R. dos Macunis, 495 - CEP 05444-001 - Tel./fax: (11) 3816-0835

[email protected] - www.odysseus.com.br

ISB N : 85-88023-70-9

Edição: 1 revisada Ano: 2009

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SU M Á R IO

Prefácio................................................................................................ ......... . . . . . i x

Créditos.................... — . . . . . . . . . . . . . ...... ...............................................xiii

Sobre a lei da contradição em Aristóteles.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1Jan Lukasiewicz

Tode ti (tóÔ€ t i ) em Aristóteles .............. 25J. A. Smith

Os motores imóveis de Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27Philip Merlan

A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles . . . 73 Suzanne Mansion

O surgimento e o significado original do nome Metafísica . . . . . . . . . . . . 93Hans Reiner

Filosofia primeira, filosofia segunda e metafísica em Aristóteles . . . . . 123 Augustin Mansion

Lógica e metafísica em algumas obras iniciais de Aristóteles . . . . . . . . 177G. E. L . Owen

O platonismo de Aristóteles.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205G. E. L. Owen

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Sobre forma, substância c universais em Aristóteles: um, d i l e m a . 215 James H. Lesher

A forma, predicado da matéria?......... ...................... .. 247

J. Brunschwig

Eiâê (eíôr|) nas teorias da substância de juventude e de maturidadede Aristóteles............................................281J. A. Driscoll

Plotino e Dexipo, exegetas das categorias de Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . 315Piem Aubenque

O caráter aporético da Metafísica de Aristóteles .................. .. 341Terence Irwin

Substância, definição e essência.............. 371David Charles

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PR EFÁ CIO

Marco Zingano

Esta coletânea apresenta, traduzidos para o vernáculo, importantes estudos sobre a Metafísica de Aristóteles, publicados ao longo do último século. Ao todo, são quatorze artigos que constituem referência obrigatória para o estudo do tópico que abordam. Circulavam, até então, em suas versões originais ou em traduções para outras línguas modernas (alguns deles foram traduzidos para mais de uma língua), mas nenhum tinha sido editado em língua nacional, o que fazemos aqui por primeira vez. Esperamos, deste modo, contribuir ao de­senvolvimento dos estudos clássicos no Brasil e, em especial, ao florescimento da exegese aristotélica, peça tão fundamental para uma sólida formação no vasto domínio que cobre a filosofia.

Algumas observações impõem-se, obviamente. Em primeiro lugar, trata- se de uma escolha, com uma marca inevitavelmente pessoal. O tema central é a Metafísica - mais exatamente, a fortuna crítica deste livro que marcou tão profundamente os estudos de filosofia a ponto de lhe fornecer um nome, hoje por uns ainda reverenciado, por outros recusado: a metafísica. Isto certamente acarreta certas limitações. Uma coletânea sobre a metafísica de Aristóteles deveria certamente conter artigos sobre o curto, mas fecundo tratado das Categorias, cuja exata posição e função no sistema aristotélico ainda é objeto de controvérsia; igualmente, seria fortemente desejável que temas abordados na Física, nos Analíticos e mesmo nos tratados biológicos fossem contemplados com análises minuciosas. A presente coletânea é mais limitada, porém: ela visa a perscrutar os meandros do livro por nós denominado Metafísica, de­limitando assim mais estritamente o tipo de artigo a ser publicado. O que, contudo, não é pouca coisa: a Metafísica se constitui seguramente no núcleo das investigações de Aristóteles sobre a doutrina do ser e, por isso mesmo, concentra de forma exemplar as aporias, as dificuldades e as exigências desta disciplina intelectual. Não toda a metafísica, mas certamente o núcleo de sua

Prefácio |

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metafísica: assim, se apresenta ao leitor a Metafísica de Aristóteles, na edição que hoje temos. É aqui, com efeito, que se anuncia e se articula a ciência do ser enquanto tal, na medida em que Aristóteles dispõe agora, graças à sua noção de unidade focal, de um dispositivo para romper as análises parciais que as diferentes ciências de sua época lhe proporcionavam, sem cair nas tentações do redutivismo platônico e sua tese dos graus de ser. No entanto, muito está ainda por ser explorado. A Metafísica, em seus quatorze livros, propõe-se a investigar diferentes domínios que pertencem de direito ao filósofo - melhor dizendo: cria uma certa figura de filósofo, o metafísico, a quem certos temas pertencem de direito: o ser enquanto tal e suas propriedades em si, tò òv j) ov ícal tò toútcü ímápxovTa Ka0’ airró.

Os textos aqui reproduzidos visam a examinar os passos de Aristóteles na constituição desta nova ciência. Nem todos os tópicos presentes na Metafísica estão refletidos nestes ensaios, mas temas centrais certamente estão debatidos ao longo deles. De um certo modo, como o leitor constatará, todos giram em torno do estatuto a ser atribuído à noção de substância - substância sensível, substância primeira, substância eminente, substância sem matéria. Se devesse ressaltar um só artigo, diria que o clássico texto de Owen sobre lógica e metafí­sica no pensamento do Estagirita, ao formular com clareza a doutrina dos pros ben legomena, fornece enfim os conceitos com os quais se pode, do ponto de vista exegético, aquilatar com mais precisão a solidez - ou não - da reivindicação filosófica do essencialismo aristotélico. Com uma base exegética mais segura, podemos então voltar-nos à questão da atualidade de seu pensamento; todos os textos aqui, se não respondem diretamente a esta última questão, certamente asseguram aquela base de que não se pode dispensar em um exame sério sobre a nossa aventura intelectual, iniciada há tanto tempo nas costas da antiga Jônia e que encontrou em Aristóteles uma de suas grandes expressões.

A ordem dos textos é cronológica, segundo a data de sua edição. E um cri­tério objetivo, simples, mas que pode também ser enganador, já pelo fato de a data de edição não necessariamente corresponder à de circulação, menos ainda à de discussão. Mesmo assim, mantive-o, pois permite ter uma certa idéia do movimento interpretativo pelo qual passou o texto de Aristóteles nos últimos cem anos. N a escolha dos textos, não me detive em uma escola particular; ao contrário, o leitor rapidamente perceberá que diferentes modos de se apropriar

a Metafísica de Aristóteles

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ti.» I littwita dt* Aristóteles estíb representadas aqui. Penso que isto é fundamen­tal »m filosofia, em especial no exame da metafísica de Aristóteles:mh niiluH cr .1 diversidade de abordagens em tratamentos que, porém, satisfazem t iii HKVinm grau a exigência de clareza conceituai e argumentação.

1 ).hIu.-. bibliográficos, atualizados e abrangentes, podem ser encontrados t lil de introdução, em especial The Camhridge Companion to Aristotle (edi- lílib pw jomthan Barnes, Cambridge 1995) e Guida ad Aristotele (editado por I ÍDtiVo Berti, Laterza 1977), e em estudos da filosofia de Aristóteles, entre os (jti.l i‘i ressalto o de Pierre-Marie Morei, Aristote (GF Flammarion 2003) e, em (Hiíif).l língua, o de Lucas Angioni, Introdução à Teoria da Predicação em Aristóteles (Unicamp 2005, no prelo).

5k * *

Não poderia deixar de agradecer a todos aqueles que me auxiliaram tão eficazmente para a realização deste projeto. Em primeiro lugar, o CN Pq for­neceu-me os meios necessários para dar vida a ele; não menos importante, em segundo lugar, foram os alunos que estiveram ligados a este projeto e que gostaria de citar expressamente: Juliana Aggio, Iracema Dulley, Rita Batista de Oliveira, Paulo Fernando Ferreira, José Wilson da Silva e Marisa Lopes, da USP; Luis Márcio Fontes, da Unicamp; Raphael Zillig, da UFRGS. Tam­pouco poderia deixar de mencionar os colegas Lucas Angioni, Luiz Henrique Lopes dos Santos e Roberto Bolzani, com quem tenho tido o grande prazer de discutir temas de filosofia nestes últimos anos em São Paulo, e, em espe­cial, Balthazar Barbosa Filho, quem por primeira vez, e definitivamente, me mostrou a fecundidade do pensamento de Aristóteles.

Prefácio |

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C R É D IT O S

(i) Jan Lukasiewicz, Über den Satz des Widerspruchs bei Aristóteles, Publicado originalmente no Bulletin International de 1’Académie des Sciences de Cracovie, classe d’kistoire et de philosophie, 1910. Traduçáo de Raphael Zillig. Direitos autorais gentilmente cedidos pela Academia Polonesa de Artes e Ciências.

(ii) J. A. Smith, TóSe t i in Aristotle. Publicado originalmente em The Classical Review 35 1921, p. 19. Tradução de Paulo Fernando Tadeu Ferreira. Direitos autorais gentilmente cedidos por Oxford University Press.

(iii) Philip Merlan, Aristotles Unmoved Movers. Publicado originalmente em Traditio IV 1946, pp. 1-30. Tradução de Paulo Fernando Tadeu Ferreira. Direitos autorais gentilmente cedidos por Fordham University Press.

(iv) Suzanne Mansion, Lapremière doctrine de la substance: la substance selon Aristote. Publi­cado originalmente na Revue Philosophique de Louvain 4 41946 , pp. 349-369. Tradução de José Wilson da Silva. Direitos autorais gentilmente cedidos pelo Centre De W ulf - Mansion.

(v) Hans Reiner, Die Entstehung und ursprüngliche Bedeutung des Namens Metaphysik. Pu­blicado originalmente no Zeitschriftfür philosophische Forschung 8 1954, pp. 210-237. Tradução de Raphael Zillig. Direitos autorais gentilmente cedidos por Vittorio Klostermann Verlag GmbH.

(vi) Augustin Mansion, Pbilosopbie première, philosophie seconde et métaphysisque chez Aristote. Publicado originalmente na Revue Philosophique de Louvain 56 1958, pp. 165-221. Tradução de Marisa Lopes. Direitos autorais gentilmente cedidos pelo Centre De W ulf - Mansion,

(vii) G. E , L. Owen, Logic and Metaphysics in some Earlier Works o f Aristotle. Publicado originalmente em Aristotle and Plato in the Mid-Fourth Century, ed. I. Düring e G.E.L. Owen, Studia Graeca et Latina Gothoburgensia vol. 11 1960, pp. 163-190. Tradução de Luis Márcio Nogueira Fontes. Direitos autorais gentilmente cedidos por Acta Universitatis Gothobur- gensis e 'pela Sra. S. Owen.

(viii) G. E . L. Owen, The Platonism o f Aristotle. Publicado originalmente nos Proceedings o f the British Society 51 1966, pp. 125-50. Tradução de Luis Márcio Nogueira Fontes. Direitos autorais da British Academy; permissão gentilmente dada pela Sra. S. Owen.

(ix) James H . Lesher, Aristotle on Form, Substance, and Universais: A Dilemma. Publicado originalmente em Phronesis 16 1971, pp. 169-178. Tradução de Paulo Fernando Tadeu Fer­reira. Direitos autorais gentilmente cedidos por Brill Academic Publishers, com permissão do autor.

(x) Jacques Brunschwig, L a forme, prédicat de la matière? Publicado originalmente em Etudes sur la Métaphysique dAristote, ed. P. Aubenque, Vrin 1979, pp. 131-160. Tradução de Marisa Lopes. Direitos autorais da Librairie Philosophique J. Vrin, com permissão do autor.

Créditos | x iü

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(xi) John Driseoll, Elâl-I in Aristotles earlicr and Later Theories o f Substanee, PubJfcado originalmente em Studies in Aristotle, ed. D. J. 0'M eara, Catholic University Press 1981, pp. 129-59. Tradução de Paulo Fernando Tadeu Ferreira. Direitos autorais gentilmente cedidos pela Catholic University Press, com permissão do autor.

(xii) Pierre Aubenque, Plotin et Dexippe, exégètes des catégories dAristote. Publicado origi­nalmente em Aristotelica - mélanges offerts à Mareei de Corte, Éditions Ousia e Presses Univer- sitaires de Liège 1985, pp. 7-40. Tradução de Marco Zingano. Direitos autorais gentilmente cedidos por Editions Ousia, com permissão do autor.

(xiii) Terence Irwin, Le camctere aporétique de la Métaphysique dAristote. Publicado origi­nalmente na Revue de Métaphysique et de Morale 95 n. 21990, pp. 221-248. Tradução de Marco Zingano. Direitos autorais gentilmente cedidos pela Revue de Métaphysique et de Morale, com permissão do autor.

(xiv) David Charles, Substance, Definition, and Essence. Publicado originalmente como capí­tulo 11 do livro de David Charles, Aristotle on Meaning and Essence, Clarendon Press, Oxford 2000, pp. 274-309. Tradução de Marco Zingano. Direitos autorais da Oxford University Press, com permissão do autor.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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SO BRE A LEI DA CONTRADIÇÃO EM A R IS T Ó T E L E S

Jan Lukasiewicz

Na monografia acima denominada, o autor propôs-se a tarefa de submeter a uma crítica pormenorizada a exposição de Aristóteles sobre a lei da contradição, a qual está basicamente contida em Mef. F . A necessidade de uma revisão da lei da contradição parece oferecer-se diretamente a partir do estupendo progresso da lógica simbólica, tal como foi iniciado G. Boole e poderosamente avançado pelos trabalhos de De Morgan, Peirce, Schròder, Frege, Peano, B. Russell entre outros. Não se pode ignorar o fato que a moderna lógica simbólica indica e significa, com relação à lógica formal tradicional e, especialmente, com relação à lógica de Aristóteles, um aperfeiçoamento talvez semelhante ao da moderna geometria com relação aos Elementos de Euclides. Assim como, no decorrer do século X IX , uma prova mais precisa do princípio euclidiano das linhas paralelas conduziu a sistemas geométricos novos não-euclidianos, do mesmo modo não seria de se excluir a suposição que uma revisão fundamental das leis básicas de Aristóteles possa fornecer o ponto de partida para sistemas de lógica novos e não-aristotélicos. E ainda que os prin­cípios aristotélicos da lógica comprovem-se válidos para todo o sempre, eles não deixam de apresentar ao pesquisador moderno uma abundância de problemas não resolvidos. Sobretudo, cabe perguntar como as leis fundamentais mais eleva­das da lógica, cujo número tem aumentado consideravelmente desde Aristóteles, devem ser formuladas e, então, em que relação elas estão umas com as outras, em particular se são todas independentes umas das outras ou se podem ser de alguma forma derivadas de um princípio último; além disso, se o seu âmbito de validade é ilimitado ou admite certas exceções e, por fim, o que nos justifica tomar essas leis básicas como irrefutavelmente verdadeiras. Trata-se de questões genuínas, que, de fato, foram ocasionalmente propostas e discutidas no passado, mas que, a partir da perspectiva da nova lógica, podem ser formuladas de modo significativamente mais acurado e postas sob uma nova luz.

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Na monografia em questão, tentei preparar o caminho para um tal tra­tamento da lei da contradição. Assim sendo, pareceu-me útil por diversas razões vincular minhas observações críticas ao pensamento de Aristóteles. Com efeito, toda crítica deve ser dirigida a algo concreto, pois, de outro modo, ela geralmente se reduz a um embate vão do crítico com suas próprias fan­tasias. As intuições de Aristóteles a respeito da lei da contradição são, em grande medida, usuais até hoje e argumentos a favor e contra esse princípio encontram-se reunidos na obra do Estagirita em maior completudè do que em qualquer manual moderno de lógica. As minhas investigações, portanto, prosseguem tendo à mão o texto de Aristóteles e com o olhar nos resultados da lógica simbólica. Os seus resultados mais importantes serão esboçados com muita brevidade no que segue.

1. Aristóteles formula a lei da contradição de três maneiras, como uma lei ontológica, lógica e psicológica, sem jamais enunciar explicitamente a diferença entre estas formulações.

(a) Formulação ontológica: Mef. T 3, 1005bl9-20: t ò yàp airrò ã\ia

v-nápxe iv Te Kai (J.f| írrrápxeiv àSúvaTov rw aÚTO ícai Korrà tò aírró- “É impossível que o mesmo simultaneamente pertença e não pertença ao mesmo sob o mesmo aspecto”.

(b) Formulação lógica: Met. T 6 , 1011bl3-14:... |3epaioTárr| 8ó£a ttoiow tò |xr) eivai à/\r|0elç â|ia tuç àvTLKeLp.évas (Jxxaeis' - “O mais seguro de todos os princípios básicos é que asserções contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras”.

(c) Formulação psicológica: Meí. F 3 ,1005b23-24: à b w a T o v y àp ò v r iv o w

tclvtÒv UTro\a|ipáveiy eivai Kal |if] eivai - “Não se pode crer que o mesmo [simultaneamente] seja e não seja”.

2. Seria possível tentar expressar esses princípios mais precisamente do seguinte modo:

(a) Formulação ontológica, i.e. formulação “objeto-teorética”: A nenhum objeto a mesma propriedade pode simultaneamente pertencer e não pertencer, - Por “objeto” entendo, com Meinong, tudo o que seja “algo” e não “nada”; com "propriedade", designo tudo o que pode ser atribuído a um objeto.

bre a Metafísica de Aristóteles

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(b) Formulação lógica: Duas asserções contraditórias não podem ser simultanm» mente verdadeiras. - Por "asserção” compreendo uma seqüência de palavras ou outros símbolos perceptíveis pela sensação cujo significado consiste em afirmar ou negar uma propriedade qualquer a um objeto.

(c) Formulação psicológica: Dois atos de crença correspondendo a duas asserções contraditórias não podem existir simultaneamente na mesma consciência. - Por "ato de crença" entendo uma função psíquica suigeneris que pode também ser designada com as palavras “convicção” “assentimento”, belief [crença] etc. e que não pode ser explicada com maior precisão, devendo ser vivenciada.

3. Essas formulações coincidirão com as de Aristóteles na medida em que também o Estagirita em algumas passagens distingue de modo muito seme­lhante, de um lado, o significado ontológico ou objeto-teorético de uma asserção e, de outro, a correspondente função psíquica da crença. Com efeito:

(a) Asserções (àTíó(()ayCTLÇ = kqtq4>ctcriç: afirmação ou àfió^oais: ne­gação), segundo Aristóteles, significam o fato que algo é ou não é, ou seja, o ser ou não ser (tò eivai f) [if| eivai) e, eventualmente, também o ser assim ou o ser não-assim de objetos. Recentemente tais fatos foram denominados “fatos objetivos” por Meinong (“estados de coisas", segundo Stumpf). Assim, em geral, as asserções significam que uma propriedade (ser ou ser assim) pertence ou não pertence a um objeto.

(b) Asserções são, segundo Aristóteles, símbolos perceptíveis pela sensação de atos de crença psíquicos (Í)ttóXt]4>is , ocasionalmente também 8ó£a).

Sobre (a): Sobre as asserções significarem fatos objetivos, são conclusivas as passagens de De Interpretatione nas quais Aristóteles esclarece o conceito de asserção: De Interpr. c. 4, r7al-3 :écm 8è X óyos á r a s p.èv arniavTiKÓg âTTO(j)avTiKÒs Sè ov iraç, â\\’ kv oj tò àXri0ei3eiv f| i|ieúÔea0ai {irrápxei- “Todo discurso significa algo, mas nem todo é uma asserção; somente aquele ao qual se aplica o ser-verdadeiro ou o ser-falso”. De Interpr. c. 1, 16al6-18: Kal yàp ô TpayéXacfioç or\\±awei |iév t i , outtcj Sè àXr)0ès f| i(jeí)8os, êàv [ií) tò eivai f| |xf| eivai TrpoaTe0fj - “Com efeito, mesmo o bode-cervo significa algo, mas não algo verdadeiro ou falso, na medida em que não se aplica 0 ser ou 0 não-ser.”

Jan Lukasiewicz |

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Sobre (b): Que asserções sejam símbolos de atos de crença resulta claro da seguinte passagem: De Interpr. c. 1 4 ,24bl-3: (ScrTe eúrep èm Só^g oíjtws ex^L, elal Sè al kv -rfj 4>wvf| KaTa^áaeis Kal aTTO ÓCTeis aí)|i|3oXa t Gsv kv tt) ^uxfl, ôfjXov õti Kal Kara^áaei èvavTÍa ... aTTÓ^aois... - "Se, por­tanto, os atos de crença relacionam-se desse modo (i.e., se os atos de crença afirmativos são opostos por contrariedade aos negativos) e se as afirmações e negações lingüísticas são símbolos de eventos psíquicos, então claramente a negação <lingüística> é oposta por contrariedade à afirmação.”

4. Nenhuma das três formulações da lei da contradição é de mesmo sig­nificado que as outras, pois cada uma delas contém expressões que significam objetos essencialmente diferentes. (Por exemplo, objeto e propriedade, asserção e verdadeiro, ato de crença e consciência etc.). - Contudo, parece que, para Aristóteles, a formulação lógica é logicamente de mesmo valor que (equiva­lente) a ontológica. De fato, Aristóteles considera que asserções são, de certo modo, representações de fatos objetivos e estabelece uma correlação de um a um entre eles1. O bordão tradicional, ainda que deficientemente formulado: veritas est adaequatio rei et intellectus é muito mais precisamente reproduzido pelo Estagirita do seguinte modo: Met. T 7 1011b26-27: t ò ... y à p Xéyeiv ...,

t ò õv eivai Kal t ò |if| ov [ifi eivai àXr|0éç... - “Dizer que o ser é e que o não-ser não é, é verdadeiro".

Da correlação de um a um entre asserções e fatos objetivos resulta necessa­riamente a equivalência entre as leis da contradição lógica e ontológica.

5. Aristóteles procura demonstrar a lei psicológica da contradição com base na lei lógica. A demonstração divide-se em duas partes:

(a) Met. r 3 , 1005b26-32: el 8è jj.fi èvòéx&Tai â\m ímápxeiv tw aírroj T àv av ría ..., èv a v r ía S’ earl 8ó£a Ôófr) f] tí)? àvTifyáoeoiÇ, <pavepòv Õti àSúvaTOv cí|ia írrroXap^áveiv tòv aírròv eivai Kal [ir) eivai tò airró, âp.a yàp av exoi r à s êvavTÍas SóÇas ò b\.ei\xív<j\iévoç Trepi toÚtou - “Se não é possível que propriedades opostas por contrariedade pertençam a um e o mesmo objeto e se dois atos de crença aos quais correspondem asserções contraditórias são opostos por contrariedade, então evidentemente não se pode crer simultaneamente que o mesmo é e não é. Ao mesmo tempo, aquele

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que estivesse errado a este respeito teria atos de etença opostos por contrarie­dade." A difícil passagem èvavTÍa 8’ ècni 86£a 86^ f| Tfjs àvri^áerétóg | "atos de crença aos quais correspondem asserções contraditórias são opos- ros por contrariedade”], na minha opinião, deve ser interpretada de acordo com a passagem paralela do capítulo final de De Interpretatione, do modo acima indicado: 8ó£a f) rf|s àTro ÓCTecus, Ôófa f) to ü évaimou = r\ t ò ivavT iov e iv a i SoÇáCoucra ["o ato de crença no contrário”] (De Interpr. c.

14, 23a27-29).(b) Met. T 6, 1011bl5-21: ètíel 8 ’ dSúvaTov tt|v â v r L ^ a a iv

dXr)0eijea0ai ã|ia KCtTà to v atiToO, ^avepòv õ t i oúôè t à v a v r í a d^a ímápxeiv év8éxeTai tú aírrô. twv p.èv yàp e v a v r íwv GÓTepov CTTépeaís ècm v ov x t)tto v , oíiaías 8è aTepeaiç. f| 8è aTepeaiç áTTÓfyaoís èo T iv â iró tlv o s wpio|iévou yévouç. el oúv àSwaTov ãp.a

KaTa4>ávaL Kai aTTocf)ávai à\r|0tòs, àSwaTOv Kal T avaim a ímdpxeiv â|ia. - “Se é impossível atribuir com verdade propriedades contraditórias ao mesmo tempo a um e mesmo objeto, então, evidentemente, proprieda­des opostas por contrariedade também não podem pertencer ao mesmo tempo a um e mesmo objeto. Pois, de duas propriedades opostas por contrariedade, uma é privação na mesma medida [em que a outra], a sa­ber, privação de ser. Mas a privação é privação de um gênero. Portanto, se é impossível ao mesmo tempo afirmar e negar algo com verdade, então também é impossível que ao mesmo objeto pertençam simultaneamente propriedades opostas por contrariedade...”

Formulada com precisão, a demonstração da lei psicológica da contra­dição é do seguinte modo;

Se dois atos de crença correspondendo a asserções contraditórias pudes­sem ocorrer ao mesmo tempo na mesma consciência, então propriedades opostas por contrariedade pertenceriam ao mesmo tempo a essa consciên­cia. Porém, com base no princípio lógico da contradição, é impossível que propriedades opostas por contrariedade pertençam simultaneamente ao mesmo objeto. Conseqüentemente, dois atos de crença correspondendo a asserções contraditórias não podem ocorrer ao mesmo tempo na mesma consciência2.

Jan Lukasiewicz j

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6. A demonstração aristotclica da lei psicológica da eonttaáiçfw ê insufi­ciente porque Aristóteles não demonstrou que atos de crença correspondendo a asserções contraditórias são opostos por contrariedade. Observações a esse respeito encontram-se no capítulo final de De Interpretatione3, mas não têm efeito de demonstração por duas razões:

(a) Propriedades opostas por contrariedade denominam-se, segundo Aristóteles, aquelas que estão o mais distante uma em relação à outra em uma série (por exemplo, “preto” e "branco”, na série das cores ditas "sem cor”). Cada série deve ser constituída a partir de uma relação seriadora. Como relação seriadora dos atos de crença, Aristóteles aceita diferenças nos seus graus de ser verdadeiro e falso e, assim, fala de atos de crença “mais verda­deiros” e “mais falsos”. (De Interpr. c. 14, 23bl7 |iâXXov áXT]9r)s sa l 8ó£a, 20. (iSXXov i|jei)8f|ç, Sóça). Contudo, é impossível que haja diferenças degrau quanto a ser verdadeiro ou falso.

(b) N a investigação psicológica dos atos de crença (De Interpr. c. 14), Aris­tóteles comete o erro muito comum do "logicismo em psicologia”, que pode ser tomado como contraparte do “psicologismo em lógica”. Ao invés de investigar funções psíquicas, o Estagirita considerou as asserções a elas correspondentes e suas relações lógicas. Isso evidencia-se:

(i) Na medida em que ele caracteriza atos de crença como verdadeiros ou falsos, embora atos de crença, considerados como funções psíquicas (assim como percepções, sentimentos e similares), não possam ser verdadeiros ou falsos no sentido primário. "Verdadeiro” e “falso" são propriedades relativas, as quais pertencem apenas a asserções na medida em que essas são representa­ções de fatos objetivos.

(ii) Aristóteles, além disso, confunde conseqüência lógica com causali­dade psíquica. É característica a esse respeito a passagem: De Interpr. c. 14, 23b25-27: f] 8è (scil. Sófa f) Tf|ç à-rrocjjáaecos) to v Õti Kaicòy t ò «yaGòv auprreuXeypivri êcrrí. Kal yàp Õti oik àyaOòv àváyKX\ laws ínToXaiifiáveiv to v airròv - “A opinião segundo a qual o bem não é bom está intimamente conectada à opinião que o bem é mal. Com efeito, o mesmo [que toma o bem por mal] deve também necessariamente supor que o bem não seja bom.” - Cer­tamente, se apenas pensar a respeito disso (e disso ele não tem necessidade) e se, de algum modo, fosse possível ter tais “opiniões” excêntricas!

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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7» À patte a argumentação de Aristóteles, pode-se observar o seguinte a ffNjirito da lei psicológica da contradição:

(ít) Â lei psicológica da contradição não pode ser demonstrada a priori, podendo, no máximo, ser estabelecida por indução como lei da experiência,

(b) A lei em, questão, até agora, não foi sequer empiricamente dernons-

irada'1,(c) Ê questionável que ela possa, em absoluto, ser demonstrada. Seja como

íüi1, liá suficientes exemplos na história da filosofia nos quais contradições fo­ram simultaneamente afirmadas com plena consciência5. Diante disso, para N.ilv.ir a lei seria necessário recorrer a hipóteses auxiliares, nas quais também Aristóteles ocasionalmente busca abrigo (cf. M et T 3, 1005b25-26: oí)K ecm yàp âvayKaZov ã t l ç Xéyei K a l irnoX a^ áveiv - “pois não é necessário que alguém acredite no que diz”). Contudo, hipóteses auxiliares prejudicam o grau de probabilidade da tese fundamental.

Por conseguinte, a formulação psicológica da lei da contradição deve ser ex­cluída das investigações subseqüentes como uma tese de valor questionável, cuja demonstração é de natureza empírica, mas que ainda não foi demonstrada.

8. Aristóteles considera a lei lógico-ontológica da contradição como uma lei absolutamente última e indemonstrável. - No entanto, ele não demonstra esta afirmação, limitando-se apenas à indicação segundo a qual “se não se pode exigir demonstração de algo, também não seria fácil indicar de qual princípio se trata” (Met. F 4 , 1006al0-ll:e í ôè tivojv p,r) ôeX ChtéIv crnóôeif iv, tÍvci. ᣠio í> G iv e i v a i [lâX X ov T o ia írrr| v à p x r )v o u k à v ê x o ie v e l iT e iv ) .

9. Diante do exposto, deve-se enfatizar que há princípios mais simples e "mais evidentes”, os quais poderiam ser tomados antes da lei da contradição como leis absolutamente últimas e indemonstráveis. Sobretudo, cabe aqui o princípio da identidade, o qual reza: a todo objeto pertence aquela propriedade que a ele pertence.

(a) O princípio da identidade é distinto da lei da contradição. Esta última não pode ser formulada sem os conceitos da negação e da multiplicação lógica (que encontra sua expressão nos termos “e simultaneamente"), ao passo que o princípio da identidade pode perfeitamente existir sem aqueles conceitos.

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(b) Somente a lógica simbólica proporcionou-nos clareza nesta questão, A dita lógica "filosófica" sob este aspecto, nada mais é do que pura fraseologia: Por principium identitatis compreende-se ora o princípio da identidade, ora a lei da contradição6; a lei da contradição é confundida com o principio da dupla negação, deficientemente formulado como “A não é não-A’; o princípio da iden­tidade, para o qual em geral se emprega a fórmula "A é A ’, que é equívoca e, no mínimo, imprecisa (a “divisibilidade por dois” é divisível por dois?), é posto no lugar como “contraparte positiva” da lei da contradição e identificado com a mesma; e assim por diante7. De fato, a lógica filosófica não tem inclinação para distinções conceituais mais refinadas porque ela não trabalha com con­ceitos precisamente delimitados e símbolos determinados inequivocamente, atolando-se no pântano das oscilantes e vagas expressões do dia-a-dia.

10. Mas nem mesmo o princípio da identidade é uma lei última, pois pode ser demonstrado a partir da definição da asserção verdadeira. Pode-se, de um modo geral, tentar estabelecer as seguintes leis básicas:

(a) Todos os princípios a priori são demonstráveis e devem ser demons­trados.

(b) H á apenas um princípio que não pode ser demonstrado com base em outros princípios, sendo demonstrado e verdadeiro “por si mesmo". Trata-se da asserção: "denomino verdadeira uma asserção afirmativa quando ela atribui a um objeto uma propriedade que lhe pertence".

Esta asserção é afirmativa e atribui a mim uma propriedade que muito se­guramente me pertence, a saber, a propriedade de denominar "verdadeiras” as asserções constituídas de tal e tal modo. Que eu assim faço, torna-se evidente no momento em que pronuncio ou escrevo a referida asserçáo. A explicação do que eu compreendo por asserção verdadeira, portanto, é verdadeira e de­monstrada "por si mesma”.

(c) Qualquer outro princípio básico a priori, portanto também a lei da contradição, deve ser derivado de princípios já demonstrados para que seja tomado como verdadeiro.

11. Embora Aristóteles proclame a lei da contradição como indemonstrável, esforçou-se para fornecer demonstrações para essa lei. Meí. T 4, 1006all-13:

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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Htfl H* U;‘(ÍI l«il “;i pi T0'6T0U t)TL á8r6vCITOV, iuu |uV<>i<

M ò áp^iaPriT&v. - "Mas pode-se prover também a respeito disso | si saber, que é impossível asserções contraditórias serem simultaneamente

verdadeiras] uma demonstração elênctica, se o oponente apenas disser algo".Nisto há uma contradição que é apenas aparentemente ocultada pela pala­

vra "elênctica” (èXeyKTiKtòs), mas que não pode de modo algum ser evitada

pel.i interpretação.

(a) Por "elenchos” Aristóteles compreende um silogismo que fornece o oposto contraditório de uma dada tese (cf. Pr. An. B 2 0 ,66b ll: ó yàp éXeyxos íiVTi<t>áaeo>s avXXoyia|iós). Se alguém afirmasse, por exemplo, que o prin­cípio da contradição não vale (tese) e fosse, então, forçado a admitir certas premissas das quais se seguisse a verdade desse princípio (das quais se se­guisse, portanto, o oposto contraditório da tese dada), então esse silogismo ou demonstração seria denominado “elênctico”. Conseqüentemente, o elenchos é, para Aristóteles, uma inferência ordinária, que é apenas externamente distinta das demonstrações genuínas e, na verdade, é distinta apenas por ser imedia­tamente usada como refutação8.

(b) Diante do exposto, a distinção fornecida em Met. F 4 entre uma de­monstração de fato da lei da contradição e outra elênctica mostra-se como uma frase vazia de quem está em apuros: Met. F 4 , 1006al5-18: tò 8 ’ èXeyKTiKÔS âiToôel^ai Xéyoj SiacJ>épeii' Kal tò àTroôelfai, õti ò ân oòeiK ivm ; jièu

av 8ó£eiev aÍTeicr0ai tò kv àpxíí> oXXov 8è toí> toioútoi; aiTÍou òvtos êXeyxoç ãv eír| Kal oijk ânóôei^is - “Distingo a demonstração elênctica da demonstração propriamente dita porque o demonstrante pareceria come­ter uma petição de princípio, sendo, porém, um outro o responsável por isso (i.e., pela petição de princípio), de modo que seria perfeitamente possível uma demonstração elênctica, mas não uma demonstração genuína”. - O sentido dessa passagem parece-me ser este: Quem quiser demonstrar a lei da contra­dição cometerá o erro da petição de princípio e a demonstração será falsa. Sendo, porém, um outro o responsável por esse erro, então será possível um elenchos - e tudo estará em ordem. Eu não compreendo o que se pretende dizer com isso.

(c) As duas primeiras demonstrações aristotélicas da lei da contradição de fato correspondem - ao menos quanto à sua intenção - à definição da

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demonstração elênctica que é fornecida nos Analíticos. Aristóteles conclui as demonstrações com as palavras: Met. T 4 , 1007bl7-18:el 8è toíito, SéStucrai

Õt i àSwcrrov à|ia KaTriyopelaQai tò s àvTi^áaeis, "Se é assim, então foi fornecida a prova que é impossível predicar contraditórios ao mesmo tempo”.

(d) Aristóteles não demonstra a lei da contradição somente de modo elênc­tico, mas também apagógico. Contudo, demonstrações apagógicas supõem esta lei e, assim, contêm uma petição de princípio no caso de serem utilizadas para demonstrá-lo.

Do exposto segue-se muito claramente que Aristóteles comete uma contra­dição quando, de um lado, apresenta a lei da contradição como indemonstrável e, de outro, procura provar a mesma lei de modo elênctico e apagógico.

12. As demonstrações aristotélicas da lei da contradição:A pressuposição das demonstrações elêncticas, cuja aceitação é forçada

sobre o oponente, é a seguinte: seja dada uma palavra que signifique algo unitário em sua essência. Por exemplo, seja dada a palavra “homem” e que ela signifique um animal bípede.

(a) A prim eira dem onstração elênctica: Met. F 4, 1006b28-34: òváyKJ] Toivvv, eí t í ecm v ô(Àr|0ès eiTTeiv, õ ti âvOpcjTTOs, £íòov eivai S ítto w to ü to

yàp f|v ò èaf|(iaive t ò avOpcoTíoç- el 8 ’ àvá~yKr\ to vto , ovk èvSéxeTai |iiq

eiv ai, t ò aírrò £íoov S ítto w toO to yàp <xn|iaívei t ò àvayKT| e iv a i, t ò

àôúvaTov e iv a i |xf) e iv ai, oúk â p a èvSéxeTai d|ia àXr|0è? e iv ai eiTrelv

TÒ a{rrò âvGpoJirov eiv ai Kal p.f] e iv ai âvOpuTTOv, “Se é possível dizer com

verdade de algo que é homem, é necessário que esse algo seja um anim al bí­

pede; pois era esse o significado da palavra hom em . Mas se isso é necessário,

então é impossível que o mesmo não seja um animal bípede. Com efeito, ser

necessário significa a impossibilidade de não ser. Por conseguinte, não é pos­sível dizer com verdade ao mesmo tem po que o mesm o é e não é hom em (e,

portanto, animal bípede)”.

Formulada com precisão e generalizada, esta demonstração reza o seguinte: Com a palavra A designo algo que em sua essência é B . Conseqüentemente, o objeto A é necessariamente um B. Mas se A é necessariamente um B, então é impossível - devido ao significado da palavra “necessariamente” - que ele não seja B. Assim sendo, nenhum A pode ser e não ser B ao mesmo tempo.

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

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(li) À segunda detnonsoração elênctica: Meí. f 4 , ,1,QG6blX-22: Icrro) § 4 , iM||ifíÍMéM ti tò ovo|io Kal ar^alvov êv. oh 8f| 4v8éxêt®i, tò àv0pórr(j)

m||!f<tímv 6iT6 p àvOpÓTnp p/r) e W i , el tò âvGpwTTOs crnuaívei ...

• t* í0! Kfil oòk cerrai elvcu Kal pi| clvai tò aírrò àXX’ f) Ka0’ ó|a.ü)vu|j.íav,

WHit |) t b d cV f)|xê!ls âv0pü)Trov KaXoí>|iev, âXXoi |xri ãvQpmov m X óiev i ò h* áw>poí)|j,ÉVOv ou to íitó èoTLu, el èvSéxeTai tò aÚTÒ ã\±a eivai Kal

|t i'| í ! wn, &0pü)uov tò ôvo|a.a, àXXà tò rrpâyiia - "Seja dada uma palavra

i|iu’ ,signifique algo e que seja algo unitário. Não é possível que ser homem

iiiy>iiiliqu6 o mesmo que não ser homem, na medida em que a palavra homem

'i'}*,! 111í(]( ic algo unitário. Assim, apenas por homonímia um e o mesmo pode ser

e llíto ser, como quando aquilo que nós denominamos homem, outros queiram

denominar não-homem. Mas a questão não é se um e o mesmo pode ao mesmo

irmpo ser denominado homem e não-homem, mas se ele pode sê-lo”.Formulada com precisão e generalizada, esta demonstração reza o seguinte:

( íOtn a palavra A designo algo que em sua essência é unitário. Conseqüente­

mente, o objeto A, que é em sua essência B, não pode ao mesmo tempo em sua

essência não ser B, pois de outra forma ele não seria unitário em sua essência.

Assim sendo, A não pode ao mesmo tempo ser e não ser B em sua essência.

Das demonstrações apagógicas, sejam mencionadas as três mais impor­

tantes:

(c) A primeira demonstração apagógica: M et T 4, 1007bl8-21: I t l el

àXqGels ai àvTi<j)áaeis à\m kütò toí> airroí) -nâaai, SrjXov ws ãnavTa

Icrrai év. êaTai yàp tò aírrò Kal Tpupris Kal Teixos Kal âv0pa)Tros...

- “Ainda, se todas as asserções contraditórias são simultaneamente verdadei­

ras com relação ao mesmo, então tudo evidentemente será um. Nesse caso,

trirreme, parede e homem seriam o mesmo”.

(d) A segunda demonstração apagógica: M et T 4, 1008a28-30: Tipos 8è

toÚto) õ ti TTÓVTes âv àÀr|0eúoiev Kal TrávTes ãv ^evôoivTO, Kal aírròs

aírròv ò|ioXoyei (jseúôecrGai ... - “Além disso, segue-se que todos diriam o ver­

dadeiro e todos diriam o falso e todos teriam de admitir que falam o falso”.

(e) A terceira demonstração apagógica: M et T 4, 1008bl2-19: Õ0ev Kal

(láX io ra <j>avepóv l a t i v õ ti oí)8els oíjtgj SiÓKeiTai oírre tojv âXXwv

oÍTe tojv XeyóvTtov tò v Xóyov to íitov . Sià t i yàp (3a8í£ei M eyapáSe

àXX’ ovi; r]ovxá£ei oió|aevos (JaÔÍCeiv; oí>8’ eí)0éa)s ecoOev TTopeúeTai

Jan Lukasiewicz | / /

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ií§ <|>plap f| eis <|>ápayya, êàv tú xxi, áXXà 4>aíveTai euXaPoúfMvof, ws oíiX ò|xoío)s oló|a.evos |xf| àya0òv eivai tò é|rrreaeTv Kal àyaOóv; SrjXov ápa Õt i tò (J.èv péXnov í>TToXa(j.pávei tò S’ oü péXnov. - “Disto, me- lhor do que de qualquer outro modo, pode-se concluir que ninguém crê em algo desse tipo, nem alguém outro, nem aquele que sustenta tal discurso. Senão, por que vai ele a Megara, ao invés de permanecer quieto em casa opinando que está indo para lá? Ou por que não se atira uma bela manhã em um poço ou em um abismo quando este encontra-se no seu caminho e, em vez disso, claramente toma cuidado, como se não considerasse a queda indiferentemente não-boa e boa? E, portanto, evidente que toma uma das opções como sendo a melhor e a outra não”.

13. Crítica às demonstrações aristotélicas da lei da contradição:Sobre (a): A primeira demonstração elênctica é insuficiente porque através

dela não se demonstra a lei da contradição, mas, no máximo, o princípio da dupla negação: se algo é um B, então ele não pode ser não-B. Contudo:

(i) O princípio da dupla negação é distinto da lei da contradição porque ele - como a lógica simbólica mostrou - pode muito bem ser expresso sem o conceito da multiplicação lógica, ao passo que a lei da contradição não poderia existir sem esse conceito.

(ii) Há objetos, a saber, os contraditórios, por exemplo, “o maior número primo”, com relação aos quais vale o princípio da dupla negação, mas não a lei da contradição. Portanto, uma inferência da lei da contradição a partir do princípio da dupla negação é inválida.

Sobre (b): A segunda demonstração elênctica é insuficiente porque:(i) Na melhor das hipóteses, a lei da contradição teria sido fundamentada

apenas para um domínio muito limitado de objetos, a saber, para a “essência” das coisas ou para a substância. A sua validade para os acidentes permaneceria em questão. - Que Aristóteles nesta demonstração esteja de fato vindicando a lei da contradição para as substâncias, isto resulta, por exemplo, da seguinte passagem: Met. T 4 , 1007bl6-18:éüTou âpa t i Kal ws oüaíav (jr\\mlvov. el Sè Toírro, SéSeiKTai Õti àSúvaTov ã\ia KaTt]yopeta0ai tÒç àvTi(J>ácreis- “E assim haverá algo que designe a substância. Mas, se é assim, então foi dada a prova que é impossível predicar contraditórios ao mesmo tempo”.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 23: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

(li) A existênda de substâncias é apenas provável Assim sendo, a lei da Kiivfradição, na medida em que está relacionada às substâncias, pode apenas

tit*p fomada como provável.(iii) A demonstração contém um erro formal porque faz aso de uma pre­

missa que pode ser demonstrada apenas de modo analógico: Se um objeto pudesse simultaneamente ser e não ser B em sua essência, então ele não seria unitário; pois B é algo outro que não-B, Mas demonstrações apagógicas pres­supõem a lei da contradição.

Sobre (c), (d) e (e): todas as demonstrações apagógicas são insatisfatórias

porque elas contêm os seguintes dois erros formais:

(i) Em todas está contida uma petição de principio. O modo de inferência apagógico depende do princípio da contraposição, o qual - como a lógica sim­bólica mostrou - pressupõe a lei da contradição. - Mas isso também se pode expor verbalmente: O modo de inferência apagógico reza: s e a é o caso, então b necessariamente será o caso; mas b não é o caso; portanto, a também não pode ser o caso. Fundamentação: Se a fosse o caso, ocorreria uma contradição, pois necessariamente b também seria o caso, o que não ocorre.

(ii) todas as demonstrações apagógicas de Aristóteles esbarram na obje­ção da ignoratio elenchi. Aristóteles não demonstra que a mera negação da lei da contradição levaria a conseqüências absurdas, mas procura fundamentar a im­possibilidade da suposição segundo a qual tudo é contraditório. Isso conclui-se muito claramente, por exemplo, da observação (cf. acima, 12. c): “se todas as asserções contraditórias são simultaneamente verdadeiras, etc.”

Porém, quem nega a lei da contradição ou apenas exige uma demonstração para ela não precisa supor que tudo seja contraditório e isso especialmente com relação àquelas ocorrências e estados de coisas que determinam a vida prática.

A partir das considerações acima resulta claramente que Aristóteles, apesar

do grande esforço, não demonstrou a lei da contradição.14. Deve-se destacar com ênfase especial o deslocamento do ponto de prova nas

demonstrações aristotélicas da lei da contradição. Além da já citada passagem de Met. V 4, 1007bl9, ainda outras vêm à consideração com respeito a esse aspecto: Met. F 4, 1006a29-31, 1008a8-16, 1008b31 - 1009a5 (final de Met. r 4). Essa última passagem é especialmente característica das exposições de

Jan Lukasiewicz \

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Aristóteles: I t l el Õti iiáXiora rrávTa oí/ro? Kal o&x, oürwf, àXXà ró ye [iâXXov Kal t)ttov êveanv kv Tfj cjjwei to jv òvtoív ov yàp ãv Ó|o.olws <t)f|aai|iev eivai T a Súo ap^ia Kal t ò Tpía, ovd’ Ò|JloÍojs ôiétJjevaQai 6 r à TÉrrapa vévTç olófievos Kal ó xíXia. el ovv t ò |iâXXov éyyírrepov, eír| y ’ ãv t l àXr)0ès oí) èyyírrepov t ò (lâXXov àXr)0és. Kav el |ir| koTiv, àXX’ f|ÔT]

yé t i èaTi pefiaiÓTepov Kal àXr^BivÚTepov, Kal toí> Xóyou àTTT)XXay|iévoi av eír||iev t o í aKpáTOU Kal kíúXúovtÓs t i tt| ôiavoía ópíoai. - “Ainda, mesmo que tudo seja bem assim e não-assim, segue havendo um mais ou um me­nos com fundamento na natureza das coisas, Pois nós não diremos de igual modo que dois e três são pares e não se enganam de igual modo quem toma quatro por cinco e quem toma quatro por mil. E se não se enganam de igual modo, então evidentemente um deles engana-se menos e, por conseqüência, diz algo mais verdadeiro. Mas se o mais verdadeiro está mais próximo da verdade, então deve haver uma verdade [absoluta] em relação à qual o mais verdadeiro está mais próximo. E se não existe tal verdade, então há ao menos algo que é [relativamente] mais seguro e mais verdadeiro e estaremos, final­mente, livres do discurso sem sentido que não admite qualquer determinação lógica de uma coisa".

A partir disso vê-se claramente que, ao fim de suas exposições, o Estagi- rita não está mais empenhado em demonstrar a lei da contradição em sua generalidade, mas em encontrar ao menos uma verdade absoluta e livre de contradição que possa fundamentar a falsidade da tese oposta por contrariedade à lei da contradição: "A mesma propriedade simultaneamente pertence e não pertence a todo objeto”.

15. Este notável deslocamento de prova, cuja significação histórica não foi, até hoje, apreciada, tem seu fundamento em certas convicções positivas de Aristóteles.

(a) Em um dos mais importantes pontos para a lei da contradição, o Es- tagirita parece não ter rejeitado de todo a intuição dos sensualistas. Podem-se mencionar as seguintes passagens de Met. F 5 , 1009a22-36: éXiíXu0e 8è toTç ôiaTTopowjii' auTri í| 8óía ek tôv ala0iyrâv, f) |ièv toO qa.a tò s àvruj>áaeis Ka l TavavTÍa írrTÓpxeiv, òpoxriy c k Taírroí) yiyvó|ieva r ã v a v r í a ... Tipòç |lèv OVV TOVJS €K TOÚTGJV ÚTT0Xa|J.páv0VTaÇ k p 0 l)\ iev , ÕTI TpOTTOV \ lév Tiva

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 25: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Hlillíil*»1 k íy o m i , rpôrrov oi n v a áywxrêmiA tò yàp ^ XéytTOu & x,fe MHt i * f i f f lv 5v TpÓTTOv !/u8êXÉTai yí/yytaOat t i c-k to v |jrf| õv rog , t o n

f>' l)v of), Kal (/|i« tò aírrò eivai Kal òv Kal |4.f] õv, áXX’ ou KaTà Totírrò õv,

h|iM/í|H i yàp IvôéxeTai â|xa Taírrò eivai t ò évavría, êvTeXexeíçt 8’ t líi» "Aqueles que vêem aqui uma dificuldade real foram levados a esta opinião (tjtit* propriedades contraditórias e opostas por contrariedade podem existir ao iliffimo tempo) a partir da percepção sensível, na medida em que perceberam t|iie contrários surgem de um e o mesmo... Aqueles que assim opinam por esse HH>ííve diremos que eles claramente têm razão em um aspecto, mas que, em outro, demonstram ignorância. Pois o ente tem dois significados, de forma

tjtie, de um modo, algo pode surgir do não-ente e, de outro, não. Também0 mesmo pode ser ao mesmo tempo ente e não-ente, apenas não no mesmo significado. Pode-se ao mesmo tempo ter propriedades opostas por contrariedade po­tencialmente, mas não atualmente.”

Em primeiro lugar, é de importância estabelecer que Aristóteles limita o domínio de validade da lei da contradição apenas ao ser atual. - Compare­mos, então, a passagem citada com a seguinte: Met. T 5 , 1010al-5: am o v 8è T% 8ó£r|S to Ú to ls 5 t i Trepl twv ovtwv |ièv rr|v àXf|0€iav éokÓttouv, t ò

8’ õvTa írrréXafJov eivai t ò alaOriTa p.óvov kv Sè to ú to i ç ttoXXt) f) toíi

àopíaTOD (j)ÚCTis èvuTíápxei Kal f) toí> õ v to ç oíitojç oxTTrep e’ÍTio|iev. 8iò c ikÓtojç |xèv XéyouCTiv, oijk àXr|0fj 8è Xéyoucxiv - "A causa dessa opinião [i.e., da opinião que as coisas sejam ao mesmo tempo assim e não-assim, 1009b32- 33] reside em que eles [i.e. os sensualistas] realmente investigavam a verdade do ente, mas tomavam por ente apenas o que é perceptível pela sensação. Mas aqui predomina a natureza do indeterminado e aquele tipo de ser [o potencial] do qual acabamos de falar. Disso resulta que eles realmente falam com plausibilidade, mas não exprimem a [completa] verdade”.

Assim, para Aristóteles, o mundo perceptível pela sensação, eternamente compreendido sob as noções de geração e corrupção, poderia conter contradições como um ser apenas potencial. De fato, Aristóteles não teve a coragem de as­sumi-lo abertamente e apenas reporta-se diplomaticamente a uma passagem anterior. O sentido de sua asserção, contudo, é completamente inequívoco e encontra sua confirmação no fato que, para o Estagirita, o indeterminado é precisamente o potencial. Cf. Met. T 4 , 1007b28-29: tò yàp 8uvá|iei ôv Kal

Jan Lukasie wicz j

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|i h èiTeXexeíçt tò àópioróv ècmv - "Com efeito, o que existe potencialmente e nâo atualmente é o indeterminado".

(b) Sob essa luz, torna-se claro não apenas o mencionado deslocamento de

prova, mas também o significado da táo importante segunda demonstração

elênctica: O mundo transitório e sensível pela percepção pode conter tantas

contradições quantas quiser, pois além dele há o outro mundo eterno e imu­

tável das essências substanciais, o qual permanece intacto e livre de quaisquer

contradições. Os sensualistas têm mesmo razão, mas não conhecem a verdade

completa. Por isso, Aristóteles pede-lhes que também “reconheçam uma outra

substância do ente, à qual não cabe nenhuma mudança, nem corrupção, nem

geração” (Met. T 5 , 1009a36-38:eTi 8 ’ «£iwao|j.ev avrovç UTToXa|J.páveiv Kal

âXXr]v Tivà ovoíav eivai twv õvtwv fi oure kÍvt]üis írnápxei oi/re cj>0opà

oure yéveais t ò T\apánav; cf. também Meí. F 5 , 1010a32-35).

Assim sendo, deve-se estabelecer que, para Aristóteles, a lei da contradição não deve ser compreendida como uma lei ontológica-geral, mas como uma lei metafísica, a qual, em primeiro lugar, deve valer para substâncias e com respeito à qual é no mínimo ques­tionável se o seu domínio de validade estende-se também a aparências9.

16. Aristóteles compreende a lei da contradição não apenas como a lei úl­tima, mas também como a mais superior. Meí. T 3 , 1005b32-34:8iò TíávTeç oi áuoSeiKVWTes eis Taúrr|y àváyouaiv èaxátt|v 8ó£av ^úcrei yàp àpxii Kai tov âXXwv à itóixdTtov aurri ttcÍvtwv - "Por isso, todos reconduzem as demonstrações a esta lei como final; com efeito, ela é o princípio natural de todos os outros axiomas".

N o entanto, a lei da contradição não é a lei mais superior nem mesmo para Aristóteles, ao menos não no sentido em que ela constituiria uma pres­suposição necessária para todos os outros axiomas lógicos. Em especial, o princí­pio do silogismo é independente da lei da contradição. Isso é claro a partir de uma passagem por muito tempo desconsiderada dos Segundos Analí­ticos10: Seg. An. A 11, 77al0-22: t ò 8è |af| èvSexecrGai ã\ia <\>ávai Kai àiTO(|>ávai otòe|iía Xa|i[3ávei ÒTTÓSeifis, âXX’ f| éàv 8ér) 8ei£aL Kai t ò

aw|XTiépaa|j.a oímos. SeÍKVirrai 8e Xapoüai t ò itpw tov k ü tò toO p.éaou, õ t i âXr)9és, àTro4>dvai 8 ’ oíik àXr|0és. t ò 8è p.éoov ovôèv 8ia(j>épei eivai Kai |if] eivai XafMv, ws 8’ aÍTtos Kai t ò TpÍTov. ei yàp èSó6ri

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 27: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

miil' iti') áXr]0£§ feiiTfetM, c4 Kal (if) ávipwrroy tUf|0i ç .tiA,\' d |iüi'i)i' (Mptórrov filjov 61 (a-í• ü v r a i y à p cXr|0< sr <■ í .tclv htíAÀfui', t i Kai (if) KaXXÍav, õ^cos C$ov, M-A C^ov 8 ’ ofl. aÍT iov

h' A i ( tò TffxBTov ov \xóvov k0,tq toO (léaov XeyeTat áXXà Kai im( t ‘ tlXXou Bià tò eivai €ttí -rcXeióvwv, m r ’ oú8’ el tò piaov Kal aírró í tiü Mil |i t| auTÓ, rrpòs tò CTU(j.Trépaü|ia oüôèv 8ia<|)épei - “Que seja impwiíífvd simultaneamente afirmar e negar, isso não é pressuposto por in nlniin.t demonstração [silogismo], a menos quando a própria conclusão drVfflJW demonstrar tal coisa. Isso, então, demonstra-se na medida em que *c Mipoe ser verdadeiro predicar o primeiro termo do termo médio e não- vrld.tdeiro não predicá-lo. Mas, no que diz respeito ao termo médio e tam- I. >r i i i ,10 terceiro termo, não faz qualquer diferença supor que ele é e não é.

dado um objeto qualquer [por exemplo, Cálias], do qual se possa dizer t mu verdade que ele é homem, apenas sendo homem um animal e não um it.it» .mimai; será, então, verdadeiro predicar de Cálias que ele é um animal

it.ui é um não-animal, ainda que homem fosse não-homem e Cálias fosse ii.ni ( l.ílias. A razão disso é que o primeiro termo vale não apenas do termo médio, mas também de outros objetos, uma vez que ele tem um âmbito de .iplintçáo maior [do que o termo médio], de modo que não faz qualquer diferença para a conclusão que o termo médio seja e não seja o mesmo”.

Assim, para Aristóteles o silogismo seguinte é correto (A = animal, B =

homem, C = Cálias):

B é A (e não também não-A).C, que é não-C, é B e não-B,

C é A (e não também não-A).

Porém, se um silogismo é correto quando não vale mais a lei da contradi­ção, então o princípio do silogismo (e, na realidade, o dictum de omni et nullo) é independente da lei da contradição.

17. Essa conclusão é totalmente confirmada pela lógica moderna sim­bólica. Além disso, a lógica simbólica mostra haver também muitos outros

Jan Lukasiewicz |

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princípios e teoremas que sáo independentes da lei da contradição. O prin­cípio da identidade, as leis fundamentais da simplificação e composição,o princípio da distribuição, as leis da tautologia e absorção, entre outros, continuariam tranqüilamente a existir mesmo se a lei da contradição não mais valesse11. Além do mais, não seria nada difícil comprovar também em palavras que tanto a lei fundamental da dedução quanto a da indução não pressupõem de modo algum a lei da contradição. Com efeito, existem inú­meras deduções e induções que se desenvolvem apenas através de asserções afirmativas. Nesse caso, a lei da contradição não tem qualquer aplicação so­bre as mesmas, pois ela diz respeito sempre a uma asserção afirmativa e à negativa que a contradiz.

No meu ponto de vista, deve-se rejeitar de uma vez por todas a opinião falsa, ainda que muito difundida, segundo a qual a lei da contradição é o princípio mais superior de toda demonstração! Essa opinião faz sentido apenas com relação às demonstra­ções indiretas e não é verdadeira das diretas.

18. Com isso, estão encerradas as observações crítico-históricas. - N a parte restante (e positiva) do trabalho, eu procuro tomar posição com rela­ção à questão sobre como estamos autorizados a tomar a lei da contradição por verdadeira.

(a) A lei da contradição não pode ser demonstrada por proclamação de sua imediata evidência. Com efeito:

(i) A evidência não parece ser um critério de verdade confiável. Ocorre que também asserções falsas são tomadas como evidentes (cf. a prova cartesiana da existência de Deus).

(ii) A lei da contradição não parece ser evidente para todos. Para os antigos pensadores erísticos de Megara ou para Hegel ela muito provavelmente não era evidente.

(b) A lei da contradição não pode ser demonstrada por seu estabeleci­mento como uma lei natural condicionada à organização psíquica do homem. Com efeito:

(i) Também poderiam asserções falsas estar condicionadas à nossa organi­zação psíquica (cf., por exemplo, muitas ilusões dos sentidos).

(ii) Ê questionável que a lei da contradição possa ser tomada como uma

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lei «w áíekm ada à organização psíquica d,o homem (<£ as observações sobre a

lei psicológica da contradição em 7).

(c) A lei da eontradição não pode ser demonstrada com base na definição

d*l íumvçêofalsa ou da negação. Sigwart tomou esse caminho12, mas já Arís- (meles tem precisamente essa demonstração em mente quando diz: Met. F

^ 1008a34-bl: ê n eí õtcxv r| fetais àXr)0f)s f|, f] cxTró<|>otais ^euôiís, Kav fifiTn àXrjOfis' f|. f] KGrrácfxxois c|jeu8f|s, ouk av elr| tò aírrò d(ia <J>ávai IVí/l áTro<|)ávai aXXr|0«s - "Ainda, sempre que a negação for falsa, a afir­mação será verdadeira e sempre que a afirmação for falsa, a negação será verdadeira. Assim, um e o mesmo não pode ser simultaneamente afirmado i* negado com verdade”. Contudo, Aristóteles imediatamente abandona esta demonstração, pois acredita "que se poderia supor haver nela uma petição de princípio" (1008bl-2: àXX’ tacos <t>aiev àv to í)t’ eivou tò àpxrjS' Kc í|X€VOv). - Esta demonstração não seria petição de princípio, mas ela é insatisfatória. Com efeito:

(i) Mesmo supondo que a negação “A não é B” significa a falsidade da afir­mação "A é B”, disso não se pode deduzir a lei da contradição. Na definição da negação e, por conseguinte, da falsidade, não está contido o conceito da multiplicação lógica e esse conceito é precisamente aquele que confere à lei da contradição o seu caráter específico. Duas asserções contraditórias não podem ao mesmo tempo ser verdadeiras; afirmação e negação, verdade e falsidade anulam-se mutuamente e não podem conjuntamente ser propriedades do mesmo objeto. Contudo, a partir da definição da falsidade ou da negação seria ainda possível supor que as asserções “A é B” e ‘A não é B” ocorram ao mesmo tempo na medida em que ambas sejam verdadeiras e falsas ao mesmo tempo.

(ii) Por outro lado, querendo impedir que se designe uma e mesma asser­ção como verdadeira e falsa, pode-se estabelecer uma outra definição da falsi­dade, a qual tem a idéia fundamental deste conceito muito mais em conta do que a definição usual, uma vez que é formulada com maior cuidado. A idéia fundamental da falsidade é, a saber, que asserções falsas não são representações de

fatos objetivos ou - dito de outra forma - que asserções falsas não correspondem a fatos objetivos, Agora, não valendo a lei da contradição, haverá casos nos quais A ao mesmo tempo é e não é B. Nestas condições, a asserção “A é B” seria falsa apenas quando A não fosse nenhum B e também não contivesse nenhuma con-

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tradição. A lei da contradição não pode de modo algum ser derivada desta definição da falsidade.

19. Toda demonstração da lei da contradição deve levar em conta o fato que há também objetos contraditórios (por exemplo, o maior número primo). Assim, na formulação mais geral de todas: "a mesma propriedade não pode ao mesmo tempo pertencer e não pertencer ao mesmo objeto”, a lei da contradição é com toda certeza falsa13. Ela poderia ser verdadeira e, então, estariaformalmente demonstrada, apenas se a palavra “objeto” designasse unicamente objetos sem contradição. Mas surge a pergunta se tais objetos existem em absoluto e, em especial, se o possível e o real não contêm contradições.

(a) Representações conceituais construtivas (objetos não-existenciais, se­gundo Meinong), como números, figuras geométricas, conceitos lógicos e ontológicos, entre outros - eu os denomino “construtivos” em oposição a con­ceitos “reconstrutivos” ou “empíricos”, os quais devem representar a realidade- várias vezes mostraram-se contraditórios a partir de uma investigação mais acurada. Basta pensar, por exemplo, na quadratura do círculo, na trissecção de um ângulo qualquer, nas dificuldades da teoria dos conjuntos transfinitos e outros casos semelhantes. Por conseguinte, não está de modo algum elimi­nada a possibilidade de construções hoje tomadas como não-contraditórias conterem uma contradição profundamente escondida, a qual nós até agora não fomos capazes de descobrir. E mesmo que fosse verdade que todas as construções sejam "livres criações do espírito humano”14 e que estivesse em nosso poder atribuir quaisquer propriedades a objetos não-existenciais, ainda assim não poderíamos demonstrar que neles não há contradição: com efeito, na medida em que nós os "criamos”, dão-se "espontaneamente" inúmeras re­lações entre eles, as quais não mais dependem da nossa vontade. Que nós às vezes encontramos dificuldades completamente inesperadas e inexplicáveis, demonstra-o a descoberta recente por B. Russell de uma contradição no to­cante aos fundamentos da matemática15.

(b) Objetos reais e representações conceituais reconstrutivas, na medida em que os mesmos correspondem à realidade, parecem estar elevados acima de todas as contradições. De fato, não nos é conhecido um único caso sequer de uma contradição existente na realidade. É, em geral, impossível supor que fôssemos

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mhHíM iintii contradição na percepção; a negação que está posta na eenerap ftiut /' perceptível. Contradições existentes em ato poderiam apenas ser

ittfw lilti*. No entanto, não se pode esquecer que na mudança contínua à qualM inimtlii eíiiá incessantemente submetido, no constante vir-a-ser, na geração9 mim t!j u,,ui, desde sempre se supôs haver contradições. Parece improvável que M»ri* Mipnflições sejam, um dia, confirmadas. Sempre se encontrarão meios e Mmiitluw para afastar contradições eventualmente inferidas. Contudo, jamais ifhl asseverar com toda segurança que objetos reais não contenham quaisqueriwithldi(MS, O homem não criou o mundo e não está em seu poder perserutar ti* milH isegmios; de fato, nem sequer de suas próprias criações conceituais ele

# mllhoe e soberano.Heíiuita de (a) e (b) que uma demonstração real da lei da contradição, ou

** (,1, um.) demonstração fundamentada em uma investigação precisa do real i tio possível não pode ser produzida.

20. A lei da contradição, de fato, não tem valor lógico, uma vez que pode v.iIiy apenas como suposição; contudo, cabe-lhe um valor ético-prático que, por Mfjo mesmo, é ainda mais importante. O princípio da contradição é a única arma < mtrn o engano e a mentira. Se não reconhecêssemos este princípio e tomásse­mos como possível a afirmação e negação simultâneas, não poderíamos nos defender das asserções falsas ou mentirosas dos outros. Alguém que fosse fal- fia mente acusado de assassinato não encontraria meios de provar sua inocência em juízo. Ele poderia, no máximo, apresentar a prova de que ele não cometeu assassinato, mas essa verdade negativa não pode eliminar a sua contraditória positiva no caso em que a lei da contradição não vale. Assim, basta haver uma única testemunha que, sem intimidar-se com a perspectiva de cometer perjúrio, responsabilize o acusado pelo crime, para que sua falsa asserção não possa ser de modo algum refutada e o acusado esteja irremediavelmente perdido.

Percebe-se disso que a necessidade de reconhecer a iei da contradição é um sinal da incompletude intelectual e ética do homem. Contudo, este fato é muito mais capaz do que qualquer outro de despertar e justificar nossas desconfianças contra o valor lógico deste princípio.

Parece que também Aristóteles, se não reconheceu claramente o valor ético-prático da lei da contradição, ao menos o pressentiu. Em uma época

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de declínio político da Grécia, Aristóteles tornou-se fundador e promotor d.o trabalho cultural científico e sistemático. Talvez ele tenha vislumbrado nisto um consolo para o futuro e a grandeza vindoura de sua nação. Ele deve ter- se empenhado em elevar o valor da pesquisa científica. A negação da lei da contradição teria escancarado as portas a toda falsidade e asfixiado a jovem e florescente ciência no seu primeiro germe de vida. Por isso, o Estagirita in­veste com palavras fortes, nas quais parece sensível um fervor interno, contra os opositores daquela lei, contra os pensadores erísticos de Megara, os cínicos da escola de Antístenes, os partidários de Heráclito, os adeptos de Protágo- rase luta com todos eles por um princípio teórico como se fosse por um bem pessoal. Ele próprio pode muito bem ter sentido as fraquezas de sua argu­mentação e ter, assim, proclamado o seu princípio como um axioma último, como um dogma intocável.

Atualmente a ciência tornou-se a poderosa soberana da vida humana. Uma crítica pormenorizada da lei da contradição não mais irá minar os seus fundamentos, mas antes fará esta que é a mais maravilhosa obra do espírito humano brilhar sob uma nova luz.

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* I í , l*i A ii. A 4b, 9 2 a l2 : tò yàp àXr)6ès t(S Icm v cVoítos TárreTeu. ["'verdadeiro' é di* de HHulw semelhante a 'ser'."].

<N* Ittft l das passagens ora citadas, concordo inteiramente com H. Maier(tl, I lii* Sjllltftlstik des Aristóteles, B L, Tübingen, 1896, p. 45, n. 2). De um modo éépmI. »|rvo diversos ensinamentos históricos ao trabalho fundamental e meritório m M<tfri i

* U«u |,t (• (iHÜeado por Alexandre de Afrodísias: õti Sè évavTÍai al 8ó£cu Tfjs rtt'ii'|nfiíi wi,1 W"h( tKTax 8ià jrXeióvMv éni TéXei toü ' Epirnveías ("Que as crenças HtffíMtlínkías sâo opostas entre si, mostra-se de vários modos no fim do De lnter- mrhiliDiH',") (Scholia in Aristotelem, Brandis, ed. Acad. Bor., p. 652).

1 NiW m‘rá inadequado lembrar novamente as observações mordazes, mas precisas tlr I liifiíiwl (Logische Untersuchungen, vol. I., Halle, 1900, p. 82): “No mesmo indiví- iltiiii oil .linda melhor, na mesma consciência não podem perdurar atos de crençai MiiK .iditÓrios, ainda que seja por um ínfimo lapso de tempo. Porém, seria isso de litlt) sinut tói Podemos mesmo pronunciá-lo com generalidade ilimitada? Onde estão

iiulu^es psicológicas que autorizam a sua adoção? Não teria havido homens e HiifMW haveria ainda que ocasionalmente, por exemplo, iludidos por sofismas, sus-ii iii.ii.iin que contraditórias são verdadeiras ao mesmo tempo? Foram desenvolvi-il.pi pcoquisas científicas para determinar se tais coisas - e mesmo as contradições i vidmtes ~ ocorrem aos loucos? O que dizer dos casos de hipnose, delírios febris, rH ,? A lei também vale para animais?”

1 A tiegufflte passagem de Hegel pode ser referida para esclarecimento (Wíssenscbaft ik f Lújrik, Werke, vol. IV, Berlin, 1834, p. 69): "Algo se move não na medida em i|(H* neste agora está aqui e em outro agora lá, mas somente na medida em que em lime mesmo agora está aqui e não-aqui, na medida em que ao mesmo tempo está e mio está neste aqui. É necessário conceder aos antigos dialéticos as contradições que fies mostram no movimento; disso, porém, não se segue que não haja movimento, mas que o movimento é a própria contradição existente.”

fl í II. Trendelenburg, Logische Untersuchungen, I, Leipzig, 1862, p. 31 e Sigwart, Logik, (%iburg i. B., 1889,1, p. 186.

1 ( ’£ Sigwart, ibidem.*' Cf. Maier, idem, vol. II. 1., p. 359: “como inferência ele [i.e,, o elenchos] é idêntico

ao silogismo demonstrativo".u Minha interpretação da lei aristotélica da contradição é, assim, essencialmente

distinta da de Maier (cf. idem, vol. 1, p. 101). Todavia, o fato que Aristóteles oca­sionalmente comete inconsistências e, de um modo geral, nem sempre tem clareza nesta questão que é muito mais difícil do que normalmente se supõe e que foi proposta pela primeira vez por ele pode, até certa medida, explicar interpretações do seu pensamento que sejam distintas e discordantes umas das outras.

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10 A esse respeito, c£ Maier, idem, vol. II. 2, p. 238, n. 3 e 1 ,Husícj Aristotle en the L m of Contradiction and the Basis of the Syüogism, Minei XV, 1906, pp. 215-222,

11 Pode servir de melhor introdução à lógica simbólica o pequeno trabalho escrito com clareza e precisão por Couturat: LÁlgèbre de la Logique, Scientia, phys.-math. 24, Paris, 1905.

12 Logik, voL I, p. 182 ss.13 Até onde eu sei, Meinong foi o primeiro a expor esse ponto de vista. Na ocasião

de uma conferência sobre certas observações críticas de B. Russell, Meinong ex­pressa-se da seguinte forma: (Über die Stellung der Gegenstanàstheorie im System der Wissenschaften, Leipzig, 1907, p. 16): "B. Russell põe a verdadeira ênfase em que, através da aceitação de tais objetos [impossíveis], a lei da contradição perderia sua validade ilimitada. Naturalmente, eu não posso de modo algum deixar passar essa conseqüência. ... De fato, a lei da contradição nunca foi aplicada por ninguém a outra coisa que o real e o possível”.

14 A expressão origina-se de Dedekind: Wías sind unà was sollen die Zablen? Prefácio.15 Cf. B. Russell, The Principies of Mathematics, vol. I., Cambridge, 1903, cap. X e Frege,

Gmndsetze der Aríthmetik, vol, II, Jena, 1903, posfácio, p. 253. Adicionalmente: K. Grelling e I. Nelson, Bemerkungen zu den Paradoxien von Russell unà Burali-Forti, Abh.d, Friesschen Schule, N. F., vol. II, 1908.

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m m TI (TOAE TI) EM ARISTÓTELES

J , A. Smith

retratar-me neste artigo por um erro concernente ao significado tn HUt ( Óbc Ti nas obras de Aristóteles, erro em cuja propagação temo

(#1 responsabilidade. Ver-se-á que, ao cometer o erro em questão, eu

M ulii ,lll «18 autoridades ou, pelo menos, andava em boa companhia. Todavia, |«ti mifgridade intelectual, abstenho-me de atribuir o erro a qualquer outro ifur H,10 a m im mesmo. De qualquer modo, deve valer a pena reconsiderar a

«jinwl.io concernente ao significado deTÓSe tui )fl i‘(|u i valentes convencionais do termo, correntes nas traduções, costuma-

Viiiti íitT hôC aliquid, dies etwas, tbis somewbat, este algo. Eram meras transverbações’ v iitiO comprometiam necessariamente aqueles que os empregavam com alguma i t| Üimo precisa acerca do significado do termo ou da interpretação de suas pa- I.IVP.l» constituintes. Ainda assim, pareciam sugerir - e provavelmente aqueles tjUt* os empregavam pretendiam sugerir - uma opinião acerca de um e de outro. iuMoniava-se que o sintagma todo significava o que em linguagem escolástica

| hhIc ser chamado o indmduum vagum da classe dos algos -i.e. este ou aquele ttlgo» qualquer algo’. Isso sugere que Aristóteles reconhecia uma classe de TI s ou algos’ e que o TÓôe aleatoriamente escolhia um membro dessa classe. I )e fato, o sintagma TÓSe t i era construído como paralelo e mesmo como a íbrma generalizada de sintagmas tais como <5Se ó dv0p(i)TTOS (este homem’). A primeira objeção do Prof. Burnet (edição da Ethíca Nicomachea, p. 66n.), que, evidentemente, entendeu seus predecessores deste modo (e eu também), foi a de que nesse caso o artigo definido seria necessário. ‘O grego’, diz ele, para dizer “este algo” tem de dizer t ò t ! TÓSe’. Imagino que ele retrocedeu diante de TÓ8e TÓ t i (que, se ocorresse, significaria apenas, penso eu, esta instância de t i ’). Se t ò t l TÓSe ocorresse nesta ordem - nunca o vi - significaria, penso eu, por paralelismo com ó t l ç ãvQpomoç (qualquer homem), o inàiviàuum

vagum da classe de TÓôes (qualquer isto’).

J. A. Smith I 25

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O equivalente alternativo proposto para a substituição foi, 'um isio’, ou qual­

quer isto'. Isso tomaria o sintagma como paralelo e forma geral de sintagmas tais como ãvOpwTTÓs t i s , ÇuXóv t i (qualquer homem’, qualquer matéria)- i.e, como significando o individuum vagum da classe de istos. Aqui, TÓSe é um tipo de substantivo genérico ou nome de classe e t i é o artigo indefinido um, ou qualquer. Construir assim o sintagma é, pelo menos, manter-se dentro das regras normais da gramática grega. A mesma interpretação foi oferecida para ToióvSe t i , onde ToióvSe era tomado como um adjetivo genérico de que XeiJKÓy t i , KaXóv t i , ktX. (algo branco’, algo belo’ etc.) são instâncias específicas.

Vejo, porém, agora mais claramente que antes as sérias objeções a tal opi­nião. Com efeito, (1) atribui-se a Aristóteles a doutrina de que existe uma classe de istos com o caráter-de-classe universal da istidade (individualidade concreta). Eu poderia entender que essa doutrina fosse atribuída - não digo corretamente - a Hegel, a Bradley ou aos scotistas, mas atribuí-la a Aristó­teles, mesmo como latente em sua mente, parece-me um anacronismo. (2) O significado a que se chegava para o todo do sintagma TÓSe t i não é o que ele porta nas obras de Aristóteles.

As duas interpretações têm isto em comum: tanto t i quanto TÓSe são no­mes de classes altamente gerais e a outra palavra o restringe aleatoriamente a uma instância singular da classe nomeada. Nenhuma dessas interpretações é satisfatória.

Subsiste, porém, ainda uma outra possibilidade de construir o termo que agora acredito que seja a correta -viz. tomar ambas as palavras como gerais. O grego para um isto’ é simplesmente TÓ8e e, para um algo', simplesmente t i ;

TÓSe ev TçoSe certamente significa um (ou “qualquer”) isto-n'-aquilo' e TÓSe

TOióvòe, qualquer coisa que seja tanto um isto quanto um tal-e-tal’. Similar­mente, TÓSe t i significaria qualquer coisa que seja tanto um isto quanto um algo’, sendo as duas caracterizações coordenadas: x é TÓSe t i se ele é tanto (a) singular e, portanto, caracterizável como ‘isto’ quanto (b) possuidor de uma natureza universal, cujo nome é uma resposta à questão TÍ ècrri (o que é') na categoria da ovava (substância); em outras palavras, x é uma ttpioTT] ovaía

(substância primária’). E 'um algo designado’ - um espécime localizado e datado de alguma natureza ou tipo definível e substancial.

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OS MOTORES IMÓVEIS DE ARISTÓTELES

Philip Merlan*

De acordo com Aristóteles1, todo movimento celeste é devido, em última .m.iiise, à atividade de quarenta e sete (ou cinqüenta e cinco) motores imóveis’.I issa doutrina é altamente digna de nota por si mesma e exerceu enorme in- f luÊncia histórica. Ela faz parte de uma visão de mundo cujas linhas gerais são ;'tíi seguintes. O universo consiste em esferas concêntricas, a girar em círculos, t )estas, a mais externa porta as estrelas fixas. As demais ou portam planetas ou, conquanto não o façam, contribuem indiretamente para os movimentos destes últimos. Cada esfera é movida por aquela que imediatamente a cerca, mas também possui um movimento próprio, devido ao motor da mesma, um ente imóvel e incorpóreo. (Foram esses entes que os escolásticos designaram como intelligentiae separatae.) Os movimentos aparentemente irregulares dos planetas são destarte vistos como resultantes da combinação de revoluções circulares regulares. A Terra não se move e ocupa o centro do universo. Tal era o sistema astronômico de Aristóteles2, cujas partes essenciais foram ado­tadas de modo praticamente universal pelos filósofos árabes, judeus e cristãos da Idade Média3.

Por mais célebre que tal teoria seja, ela parece, entretanto, inextrincavel- mente enredar Aristóteles em dificuldades e incoerências. Ela está exposta em Metafísica A 84 -e é aí que certas dificuldades apenas insinuadas se revelam. O status do problema parece ser o seguinte:

Nos capítulos precedentes do livro A, especialmente nos caps. 6 e 7, o prin­cípio do monoteísmo parece encontrar-se claramente estabelecido: refere-se aí a apenas um motor imóvel. Mas o cap. 8 reza como se uma invasão súbita de politeísmo tomasse lugar: o leitor despreparado é confrontado com a questão: e agora, apenas um tal motor existe, ou existem diversos, e, se diversos, quantos? A resposta é que existem quarenta e sete (ou cinqüenta e cinco). É apenas no cap. 9 que a concepção monoteísta retorna, mantendo-se até o fim do livro: eis

Philip Merlan |

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Koípai/os I cttüj ('haja apenas um governante'). Pode-se negar que ocorre uma contradição irreconciliável e mesmo quase grotesca entre essas duas teorias,

um motor imóvel - quarenta e sete motores imóveis?

Ademais, o cap. 8 parece ser por si mesmo inconsistente. Ele contém uma seção em que, em nítido contraste com o restante do capítulo, a posição mo- noteísta é enfatizada: de acordo com essa passagem, não existe senão um mundo e um motor5.

Finalmente, qualquer pluralidade de motores parece ser incompatível com certos princípios fundamentais de Aristóteles: se esses motores são imateriais, eles não podem diferir um do outro, uma vez que a matéria é o único princípio de individuação6; se, por outro lado, eles não são puramente imateriais, eles não podem ser eternos7. E esse dilema é o mais embaraçador, uma vez que o próprio Aristóteles o pareceria enfatizar na seção há pouco mencionada8.

Tais são as dificuldades do problema. A discussão a seguir pretende mos­trar que, na mente de Aristóteles, o problema dos motores imóveis relacionava- se intimamente com certas opiniões mantidas, de acordo com Aristóteles, por Platão e pela Academia e, em particular, com a concepção destes últimos dos Números Ideais; e que algumas das dificuldades e aparentes contradições que emergiam desse problema eram, ou pelo menos pareciam a Aristóteles, menos extraordinárias quando vistas contra esse pano de fundo platônico. Com vistas a lançar alguma luz sobre esse assunto, devemos primeiramente recordar certos fatos a respeito da estrutura da metafísica de Aristóteles9.

Uma das questões básicas na metafísica de Aristóteles é: o que é owría? Essa questão, entretanto, é expressa freqüentemente de uma outra forma: quantas oxxriai existem? E primeiramente formulada dessa maneira em Me­tafísica B 1, 995bl4 (= 2, 997a34): existem apenas oíiaíai sensíveis, ou existem também outras? E, se existem outras, quantas? Esse problema, viz. o que se refere ao número e aos tipos de oíxjíoa, remonta, segundo Aristóteles, a Platão, que, como Aristóteles defende10, distinguia três tipos de ouaía: as Formas, os objetos matemáticos e os objetos sensíveis11.

Obviamente, é nessa classificação platônica do Ser que Aristóteles baseia uma classificação das 'filosofias'12. A ‘física lida com os objetos sensíveis12a; a matemática, com os objetos matemáticos; a teologia, com aquela divisão do Ser que, na filosofia de Aristóteles, ocupa o lugar das Formas de Platão13. As

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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m m i**i i«i h díi mais importantes das Formas de Platão sâo, pois, estas; elas Mm #»*>* Mim t* imóveis14, e 'separadas’ do domínio das coisas sensíveis. E 6 óbvio (|H# •« iinwMHO da teologia de Aristóteles é precisamente da mesma natureza: i f»I|gM >«• (ui.nlo, eterno e imóvel15.

At tultilHt*!! se refere mais de uma vez à tricotomia platônica"5. Uma das mi que ele o faz é de particular interesse porque nos propicia en-

hitii.i iiti> Ji.if.i nas discussões levadas a cabo entre os discípulos de Platão17. Hh«|íi,|í)I« t*Iafão distínguia três divisões do Ser (Formas; objetos matemáti- 1 1 tu. tibjeuwi sensíveis), Espeusipo reconhecia mais de três, ao passo que outros wy,tftilor<\H de Platão identificavam o domínio das Formas com o domínio dos Nmtieim Ê óbvio que modificações na divisão tripartite de Platão estavam jt,i tutleni do dia: um pensador não deixava de ser um platônico por causa tji' i.ll modificação, pelo menos não por causa de uma modificação do tipo

Iffilir.ido,( )ra, é bem sabido que Aristóteles não reconhecia nem as Formas nem

sim abjetos matemáticos como uma divisão separada, auto-suficiente e inde- jicmknce do Ser18. É, portanto, ainda mais interessante descobrir que Meta- / fsítA igualmente se inicia com uma tricotomia. Mesmo se isso fosse tudo, poderia sugerir que Aristóteles estava, por esse tempo, ainda intimamente lidado a certas formas de pensamento platônico. Mas o platonismo da passa­gem evidentemente não se limita à forma da tricotomia. Existem três oím ai, ilíg Aristóteles: o Sensível e Perecível; o Sensível e Imperecível; e o Imóvel.I í Aristóteles prossegue: existem alguns que dividem o Imóvel em dois, as J Wmas e os objetos matemáticos, ao passo que outros evitam tal divisão, seja identificando as Formas e os objetos matemáticos, seja descartando de todo tis formas19. Essa observação mostra claramente que Aristóteles estava ciente do fato de que a sua divisão estava intimamente relacionada com as divisões propostas por Platão e seus discípulos, e isso é ainda mais significativo porque um dos principais objetivos do livro A é mostrar que realmente existe uma oíxría imóvel além dos dois tipos de oíxríoa sensíveis (perecíveis e imperecí- veis), viz. o motor imóvel. É, portanto, o próprio Aristóteles que nos incita a comparar a sua divisão com as divisões da Academia, e a seguinte sinopse delineia tal comparação:

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PLATÃO

O Sensível

Objetos m ate­máticos

As FormasO Imóvel

OUTROS PLATÔNICOS

O Sensível

O Imóvel = As Formas = Obje- tos Matemáticos; ou Objetos Matemáticos apenas (negada a existência das Formas)

ARI8TÔTM LIS

O Sensível e Perecível.0 Sensível e Imperecível

O Imóvel

Essa sinopse mostra que a divisão do Ser de Aristóteles era apenas mais uma modificação da divisão básica de Platão -um a entre diversas, com as quais ele estava perfeitamente familiarizado. Com vistas a descrevê-la como tal, devemos dizer que, ao passo que outros dividem a esfera do Imóvel em dois, Aristóteles realiza a mesma operação na esfera do Sensível, dividindo-a em Perecível e Imperecível. Como bem se sabe, a esfera do ‘Sensível e Impe- recível’ é aquela dos corpos celestes e a ciência que a investiga é a Astronomia. E, nesse sentido, pode-se dizer que, no sistema de Aristóteles, a Astronomia substituiu a Matemática.

Mas não podemos nem mesmo dizer que essa modificação do schema pla­tônico era peculiar apenas a Aristóteles, uma vez que a encontramos também em Xenócrates20. Xenócrates, como Aristóteles, postulava três divisões do Ser: objetos de sensação, i.e. coisas interiores à esfera celeste; objetos de opinião, ou compostos’, i.e. os céus; objetos de conhecimento, i.e. coisas além da esfera celeste. A primeira dessas divisões não requer nenhum comentário21. Mas é interessante saber por que os objetos na segunda divisão são denominados compostos’ por Xenócrates. E porque eles são, por um lado, visíveis e, portanto, objetos de sensação, e, por outro lado, são o assunto da astronomia, e, por­tanto, objetos de conhecimento. E é com respeito a isso que eles correspondem exatamente ao domínio do Sensível e Imperecível de Aristóteles. A terceira divisão, as coisas além’ da esfera celeste, naturalmente lembra, primeiramente, as Idéias de Platão, uma vez que estas, no Feâro, localizam-se além do céu. Mas não devemos ignorar o fato de que essa expressão pode ser apropriadamente aplicada ao Motor Imóvel de Aristóteles não menos que às Idéias de Platão, A

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W *t‘ ' lilNftilVaçfto áe Aristóteles 4 portanto, bastante platônica; praticamente (Mim Mf t um .1 de Xenócracc-s. Quem a propôs primeiro é, decerto, irrelevante.

h rltllo, eomo poderíamos determinar a questão da prioridade? Xenócrates f A i i#l 01 ebi viveram, estudaram e especularam juntos por mait ou menos vinte *•! i í'*< iidOfi, e um perpétuo toma-lá-dá-cá deve ter ocorrido entre eles.

HriOfitemos agora ao nosso diagrama. Ele mostra claramente que houve

JtiiM In Min,'' comum de opiniões compartilhadas por Aristóteles bem como )«« >>ní ros) platônicos com respeito a existirem diversas esferas do Ser (o w ía i ); (tu «tiiifi e.iraeterísticas são expressas por predicados como Perecível, Móvel, N.in Si/p, irado; Eterno, Imperecível, Imóvel, Separado; e cada uma dessas esfe-l ,m Ini mi.i o assunto de uma 'filosofia’ específica22. Logo, um problema comum ml ,í envolvido nessa herança comum: qual é a natureza dessas diversas esferasi i nino devem ser distribuídos entre elas os predicados acima enumerados? No s|tlt’ dte respeito a Aristóteles, ele, com efeito, reservou a imutabilidade total A i'nlera mais elevada, mas estendeu tanto a eternidade quanto a indestrutibi- lldildí* não, como até então tinha sido feito, aos objetos matemáticos (porque eh* negou a existência de tais objetos), mas, em vez disso, aos corpos celestes. ! )e qualquer modo, como se disse anteriormente, a Astronomia toma o lugar dt> Matemática, e uma prova posterior disso pode ser vista no fato de que não /' líkil determinar se a Astronomia de Aristóteles é um ramo da Matemática ■liiies que da Física23. Assim, é natural que, pelo menos uma vez, a fórmula *( ivs filosofias', que em Aristóteles geralmente significa teologia, matemática, fkica, signifique teologia, astronomia, física24.

Uma objeção, contudo, poderia ser feita. Mesmo admitindo, pode-se per­guntar, que a correspondência entre as duas divisões mais baixas do Ser tais tomo postuladas por Aristóteles e as duas divisões mais baixas do Ser tais como reconhecidas por Platão e alguns de seus seguidores não é puramente formal, -pode-se realmente apontar a algo que não uma analogia puramente formal entre a divisão mais elevada de Aristóteles, o motor imóvel, e a divisão mais elevada de Platão, as Formas ou Idéias? Não foi o conceito de um Pri­meiro Motor a grande descoberta por meio da qual Aristóteles deixou de ser um discípulo entre os discípulos? Embora isso possa ser correto, a analogia entre o Primeiro Motor e as Idéias ainda é real e ainda pode ser mais plena­mente elaborada. Mas deve-se ter em mente uma qualificação importante: a

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fim de ser comparável à mais elevada esfera do Ser de Aristóteles, o domínio das Idéias deve ser entendido como Aristóteles o entendeu, a saber, como abarcando, ou mesmo sendo idêntico com os Números (ideais). A té que ponto essa interpretação da teoria platônica é correta é irrelevante neste contexto. As Idéias de Platão são Números': isso é o que Aristóteles freqüentemente diz, eo que ele evidentemente julgava ser a verdade25.

Como, então, as dificuldades do livro A se apresentam a um leitor familia­rizado com a teoria dos números ideais de Platão? Nos capítulos precedentes desse livro, conforme apontado acima, foi provada a existência de uma oucría imóvel; ela é representada pelo primeiro motor. A maioria dos leitores mo­dernos sentirá que o princípio do monoteísmo foi desse modo estabelecido; mas, quanto mais convencidos estiverem disso, tanto mais provável ser-lhes-á chocarem-se ao lerem o começo do cap. 8: mas existe apenas uma tal oixjía (imóvel), ou existem diversas, e, se diversas, quantas?’ A questão que Aristóte­les aqui formula -repentinamente, como poderia parecer-, ele a justifica refe­rindo-se às doutrinas platônica e pós-platônica dos Números Ideais: os nossos predecessores, diz ele, não se preocuparam com o número de tais om im , A teoria das Idéias não contém nenhum tratamento próprio desse problema (f) fie v y àp Trepl t ò ç lôeaç ÍttóXt]<|íis oí)8epÁav é x 6L cfkgJhv’ iSíav»); idéias e números identificam-se uns com os outros; mas concernentemente ao número' desses números nenhuma declaração definitiva é feita; às vezes esses filósofos se expressam como se existissem apenas dez números (ideais), às vezes como se o número deles fosse infinito26. Mas por que apenas tal ou tal número de números é assumido nunca se faz claro, e argumentos conclusivos nunca são avançados (âpi9|ioiis y à p Xéyowi Tas lôéas o! XéyovTes ISéaç, trepl 8è to v ápi0|xôv ÔT6 |ièv ws rrepl ctrreípwf Xéyouaif, o tc 8e (bg i±éxpi t %

SeKÓôos' òpio\iév(j)v. Si’ fjv» S’ a m a v Toaoírrof tò rrXfjBos w àpiO|iwv, ouSèv XéyeTai |i€Tà cmouSíjs àrro5eiKTLKf|s). E é por meio desse parágrafo que Aristóteles introduz as suas razões para assumir 47 (ou 55) motores. É, destarte, óbvio, pelas suas próprias palavras, que os ensinamentos de Aristóteles a respeito da pluralidade e do número de motores pretendia ser um melhora­mento, ou uma contraparte, das opiniões correntes entre platônicos a respeito da pluralidade e do número dos números ideais. Ele substancialmente parece dizer: a doutrina dos números ideais introduz uma multidão indefinida de

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•», ftuf (.mio, tie ob ffía i ecemas e imóveis, mas eu sou o primeiro a liMt it lilMHmi exaeo de cais oierícu eternas e imóveis'27,

« i r i i, ê a «utfonnterpretação de Aristóteles. N a opinião dele, é uma § fimitit! qiiffitiio que foi de modo incompleto respondida pelas teorias

itit rt r («Vi pl;MÔmea dos Números Ideais, e de modo completo pelas suas :H#» «jítHn.bç&es a respeito dos Motores Imóveis, viz. qual é o número

ili» t mi iÍííi imóveis? Mas devemos lembrar que questões podem ser apenas ;Hi 4* c o;io precisam exprimir uma dúvida real. Assim, quando Aristóteles

(t omo ele faz freqüentemente na Metafísica): existem owjÍou além '(|| ítemfvel? - isso não é nada mais que uma questão retórica, porque,

«mula um platônico, ele não contempla seriamente a possibilidade de qtl# d 411*1 resposta possa ser diferente da afirmativa. E poderia parecer que,

Aristóteles pergunta: existe mais de uma obuía imóvel? -essa questão Mm) hHH « è mais que retórica, uma vez que, para um platônico, é evidente que ♦*#!«(<■ |tdi> menos mais de um número ideal28.

Aj?,wa a questão não pode mais ser evitada: o que Aristóteles realmente ijtiri tliv.iT com ow ta? Nas páginas precedentes, o termo ou não foi tradu- f liliinu, a fim de se evitar o sobrecarregado termo substância, foi parafraseado

|tni expressões como esfera' ou 'divisão do ser’. Mas deve-se ter em mente que fiMíl, à parte outros significados irrelevantes no presente contexto, pode sig- híÍ (1) a inteira esfera ou divisão do ser a que um objeto pertence29 (é nesse >n titulo do termo que Aristóteles fala em três ouríai); e (2) um objeto parti'i iil.ir c individual (independente) pertencente a tal esfera ou divisão (é nesse Mentido do termo que Aristóteles designa animais e plantas como ow íat)30,1 im outras palavras, oíwía, em Aristóteles, pode significar tanto coisa quanto 'i po de coisa’31 e, neste artigo, será doravante traduzida por entidade32 -termo que talvez seja vago o suficiente para cobrir ambos os significados. Portanto, quando Aristóteles pergunta, no começo do capítulo 8 do livro A, se se deve assumir apenas uma tal entidade’ ou diversas, ele realmente parece pergun­tar: 'Entidade Suprema’, ou ‘Entidade Imóvel’ (considerada como uma esfera do Ser), abarca apenas uma única entidade (viz. uma entidade individual) ou diversas tais entidades? E, ademais, ele parece emparelhar essa questão com outra, a qual -d e acordo com ele- Platão e seus discípulos deveriam ter feito, a saber: quantos Números Ideais a esfera dos Números Ideais abarca?

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Se isso è correto, mal se pode sustentar que o eap, 8 do livre A exibe um quê de politeísta, ao passo que os outros capítulos do livro revelam, uma inspi­ração monoteísta. Pareceria, em vez disso, que a questão a respeito do número de Motores Imóveis discutida por Aristóteles teria tido a ver com o problema relativo a monoteísmo ou politeísmo não mais que uma discussão sobre o nú­mero dos Números Ideais o teria tido para Platão. Parecer-se-ia seguir, ademais, que não haveria a menor contradição, na mente de Aristóteles, entre o cap. 8 e as precedentes seções do livro. O que ele sentiu que havia sido provado nessas seções foi que existe uma esfera (e, é claro, uma única esfera) da ‘Entidade Imóvel'. Mas se essa esfera abarca ou não mais de uma entidade imóvel era, como ele a entendia, uma questão ainda inteiramente aberta -aberta, é claro, mais para os ouvintes que para o autor que, sendo ainda um platônico, pro­vavelmente se sentia seguro desde o início de que a esfera da entidade imóvel’ abarca mais de uma entidade imóvel.

'Errei 8’ oí/to t ’ èvSéxeTai, Kal el (xf) oíircos1, èic v u k tò s éü T a i ... Kal

ék |ir] Ôv to s ... t l áX X aç 8el Cr)TeIv âpxáç ('Uma vez que assim é cabível ser e, se assim não for, <o mundo> será proveniente da noite... e não-ser,.., que outros princípios devem ser buscados?’, Metafísica A 7 ,1072al9-20)? Com efeito, de que outro modo poder-se-ia explicar que Aristóteles compôs o cap. 8 introduzindo-o com as palavras: TrÓTepov Sè { l ía v Q e r é o v T"qv Toiaúrr)V

o ix j í a v r| TiXeíous Kal iró a a g , SeT |ít} \av0dveiv (não se deve esquecer <a seguinte questão:> se se deve supor que tal entidade é uma ou muitas <e, se muitas,> quantas’)? Se ele houvesse sido um monoteísta quando compôs o cap.7, não estaria ele ciente desse monoteísmo, ou ele o teria de todo esquecido quando compôs o cap. 8? Ou, ao contrário, se Aristóteles nas primeiríssimas palavras do cap. 8 pergunta: quantas entidades imóveis existem? -não esta­mos autorizados a uma interpretação que não o faça propor uma questão já respondida no cap. 7 -a saber, a de que existe apenas uma tal entidade-, em uma palavra, não estamos autorizados a uma interpretação que não o faça contradizer-se a si mesmo?

Para um leitor de hoje, o capítulo concernente aos 47 motores é prati­camente uma afronta: ele se sente como se houvesse sido precipitado das alturas mais sublimes da especulação às mais rasas terras baixas do pedan­tismo53. Mas vamos supor que Platão ou um de seus sucessores realmente

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« tom m ijtii* Aristóteles os repreende por não haver feito =vamo8 supor•b» i* .tltueiite tenham calculado o número dos Números Ideais e que 0

tu*l»! lenha sido preservado; esse resultado não nos pareceria tão impa- ijiitüHO 0 de Aristóteles? Este último, como bcin se sabe, acusava os

itHft‘iM|HVíine©s de haver transformado a filosofia em matemática, O !tt PiaiííO O havia feito, e seu Tiweu está no limite, tolerável apenas por <!t mia forma mitológica34. A única inovação de Aristóteles consistiu

#111 iMiifilbrmar a filosofia em astronomia, em vez de matemática35, Se mais fU ‘hlortttfut matemática da Academia tivesse chegado até nós, o nosso juízo At 1 klos 47 motores de Aristóteles talvez pudesse ser menos severo -ou yivN mmos elevada a nossa opinião acerca do Platonismo, Também não tifvtMUOíí esquecer que, quando comparamos as anotações de Aristóteles com rtx publicadas de Platão, é-nos praticamente impossível ser justos para t Hi(H|uakper um deles36.

Bt‘ a súbita introdução de 47 motores pode, até certo ponto, ser justificada, no pelo menos entendida e explicada ao se perceber quão profundamente Ài ííitÓEeles estava enraizado na tradição da filosofia da velhice de Platão, esse snfíimo fato não poderia responder por algumas das demais dificuldades a

tjSit* já se referiu?Perguntemos: de que maneira diferem um do outro os números ideais

de Platão? Certamente não pela matéria dos mesmos, uma vez que a função itHÍividualizante da matéria é uma concepção puramente aristotélica37, Eles diferem porque todo número ideal é único em seu tipo38. Devemos expressar isso dizendo: não existe senão um Um, um Dois etc.; na Academia, enten- der-se-ia isso como: não existe senão um número ideal Um, um número ideal Dois etc. Portanto, se Aristóteles, ao introduzir os seus motores imóveis, tinha os números ideais de Platão em mente como os seus modelos, ele poderia ter sentido que esses motores diferem um do outro da mesma maneira: viz. por serem unica in specie, como os Números Ideais de Platão.

Ver-se-á que essa explicação é bastante aparentada àquela conhecida como tomista39. Santo Tomás interpretou os Motores Imóveis como anjos e julgou que cada um deles era ao mesmo tempo um indivíduo e uma espécie40. A interpretação acima sugerida meramente substitui os anjos dos exegetas ma- ometanos, judeus e cristãos pelos Números Ideais de Platão.

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Mas elimina isso a dificuldade relativa a entidades diferentes umas da ou­tras, de acordo com os princípios aristotélicos, não poderem, como pareceria, ser completamente imateriais, se, de acordo com esses princípios, a matéria é, com efeito, o único principium individuationis! Com efeito, a fim de responder pelas diferenças entre as espécies, Aristóteles assumia que, relativamente às espécies, o gênero comum delas desempenha um papel análogo àquele comu- mente desempenhado pela matéria relativamente aos objetos individuais: em sua relação com as espécies, o gênero é, em um certo sentido, matéria. Portanto, mesmo admitindo que, na opinião de Aristóteles, os Motores Imóveis difiram uns dos outros tais como as espécies, a dificuldade ainda permaneceria. Pois, sendo espécies, eles seriam espécies do gênero 'motor imóvel’; conseqüentemente, esse gênero, relativamente aos Motores Imóveis, seria, em um certo sentido, matéria; e, pelo menos nesse sentido, eles não careceriam inteiramente de matéria41.

Há, entretanto, uma falha nesse argumento que, para Aristóteles, não teria parecido aplicável a esse problema. Pois ele nunca abandonou uma doutrina lógica digna de nota elaborada por primeiro por seu mestre (ou atribuída a ele por Aristóteles). Platão alegava que não há Forma ou Idéia correspondente a coisas como números, figuras (e, por mais que nos pareça estranho, consti­tuições), viz. a coisas que se encontram, uma para com a outra, na relação de anterior e posterior’ -um a tese que, na terminologia de Aristóteles, significa que tais coisas não formam nem uma espécie nem um gênero42. Não existe espécie ou gênero número’ separada de todos os números particulares, não existe espécie ou gênero ‘figura’ separada de todos os triângulos, quadrângulos etc. Portanto, mesmo que comumente o gênero possa com efeito ser a ‘matéria inteligível’ por meio da qual as suas diversas espécies diferem uma da outra, ainda se teria de abrir uma exceção para os Motores Imóveis, assim como para os Números Ideais, uma vez que a relação de anterior e posterior’ obviamente se aplica a estes no mesmo sentido em que se aplica às esferas celestes em que eles se movem. De acordo com Aristóteles, Platão definia a relação de ante­rior e posterior como segue: a é anterior a b quando a pode existir sem b, ao passo que b não pode existir sem a43. Ora, de acordo com Aristóteles, toda esfera mais externa contribui para as revoluções das esferas mais internas, ao passo que estas não retroagem nos movimentos daquela. Portanto, as esferas

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in<it hiuinettte formam uma série em que toda esfera mais externa é anterior ût ( HltMMfí mais internas. Conseqüentemente, Aristóteles afirma explicitamente i|Hr m Motores Imóveis são ordenados de acordo com a ordem das suas es- (fl.nti de modo a formar uma série: o primeiro motor, o segundo motor etc44,I1 Itimbém eom respeito a isso que os Motores Imóveis se assemelham aos Números Ideais. Uma vez que, entre estes últimos, existe a relação anterior e j h W! (Ttor, não existe o gênero ‘Número Ideal’. Do mesmo modo, uma vez queii mesma relação existe entre os Motores Imóveis, não existe o gênero ‘Motor 11inível'. Segue-se que os Motores Imóveis, mesmo se encontrando na divisão bltidüde imóvel’, não devem, destarte, necessariamente ser uma espécie de um ,tj(Hicfo motor imóvel’; nem deve a divisão entidade imóvel’ necessariamente en- t Of Jtrar-se para com eles na relação de gênero. Pareceria, então, que mesmo se Aristóteles julgasse que os motores imóveis, por um lado, fossem estritamente imateriais e, ainda, por outro lado, diferissem especificamente um do outro, de tjlialquer modo essas suposições não teriam sido incompatíveis com o restante dil sua metafísica, uma vez que tal incompatibilidade teria sido eliminada por certas doutrinas da sua lógica herdadas de Platão45.

Agora talvez estejamos em posição de enfrentar a última dificuldade ofere- dda pelo cap. 8, isto é, os problemas levantados pela seção que prima facie parece constituir uma sobrevivência ou uma recaída monoteísta. A solução para esses problemas será apresentada aqui sob a forma de um comentário conciso. A seção será parafraseada e algumas notas explanatórias serão acrescidas entre colchetes. O argumento de Aristóteles pareceria ser como segue:

'Existe apenas um céu [ou mundo: oíipavóç]. Pois, se existissem muitos céus,

cada um deles teria de ter o seu próprio Primeiro M otor [i.e. pelo menos um Primeiro

Motor seu próprio: talvez em alguns dos mundos devesse existir mais de um motor;

isso dependeria do número de corpos celestes em cada um deles],

Esses Primeiros Motores participariam de uma só e mesma forma e, ainda

assim, seriam muitos em número. [Vamos supor que existissem dois céus: o nosso

presente céu, movido por 47 motores, e um outro, movido por, digamos, 10 motores.

Existiriam, então, dois Primeiros Motores, dois Segundos Motores, dois Terceiros

Motores ... e dois Décimos Motores. O s dois Motores em cada um desses pares

participaria da mesma forma, mas seriam dois em número.]

Ora, coisas diferentes em número, mas não em forma, devem possuir matéria.

M as um Primeiro M otor [e também um Segundo Motor, um Terceiro M otor etc.,

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cujo número dependesse de nó,mero de corpos ee,lestes em cada eénj deve, por de finição, carecer de matéria.

Portanto, deve existir apenas um Primeiro Motor e, conseqüentemente, apetiflí um céu.46

Se a interpretação aqui sugerida é correta, a passagem não expressa ne­nhuma crítica à suposição de que existe uma pluralidade de motores em um só e mesmo mundo e, mais especificamente, em nosso mundo; nem envolve qualquer outra alegação incompatível com o restante do capítulo. Fica, ade­mais, evidente que a seção, longe de ser uma inserção posterior de inspiração heterogênea, não poderia jamais ter-se encontrado ausente de tal contexto. Na abertura do capítulo, Aristóteles se comprometia a indicar o número pre­ciso dos motores imóveis, cumprindo depois o prometido ao mostrar que o número deles era ou bem 47 ou bem 55. Logo depois (1074al7), ele passa a provar que esse número não pode ser aumentado, Essa prova se divide em duas partes. Na primeira parte (1074al7-31), aponta-se que o nosso mundo não pode abarcar mais do que esses 47 ou 55 motores, a razão disso sendo o fato de que, neste nosso mundo, existem apenas 47 ou 55 movimentos eternos e independentes, de modo que quaisquer motores adicionais, por assim dizer, careceriam de função. Em outras palavras, motores adicionais pressuporiam movimentos (independentes e eternos) adicionais; mas, em nosso mundo, isso não ocorre. Obviamente, essa demonstração permaneceria incompleta, não pudesse a mesma ser suplementada por uma outra, concernentemente a não existirem, e não poderem existir, outros céus, além do nosso, em que possam ocorrer movimentos eternos e independentes; se tal ocorresse, um número indefinido de motores imóveis adicionais teria de ser assumido, e a alegação de que apenas 47 ou 55 tais motores existem perderia muito de sua importância. É por isso que Aristóteles, na segunda parte de seu argumento (1074a31-38), incumbe-se de provar o que ele tinha de provar, a saber, que não existem, e não podem existir, mais motores imóveis que os 47 ou 55 responsáveis pelos 47 ou 55 movimento eternos e independentes que ocorrem neste que é um e único céu. Pois é apenas em razão dessa demonstração suplementar que a conclusão ‘tem de ser esse o número de entidades (imóveis)’ (1074a21) é definitivamente estabelecida. Portanto, longe de revelar uma inspiração heterogênea, a seção 1074a31-38 é, na verdade, a pedra fundamental do argumento inteiro47.

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• Vhih) ocorreu a Aristóteles que esse argumento (que diz respeito a não liii t !>| míiíkh* 47 ou 55 o número dos motores imóveis) não pareceria convincente 4 ttitl iidversárío que acreditasse em uma pluralidade de céus? A resposta é, Üisijtlrfimmte, que o problema da pluralidade dos céus, primeiramente le- Níii.uk) pelos filósofos mais antigos, náo tinha, de modo algum, perdido a Mhl importância no tempo de Aristóteles. Ele mesmo o discute (e.g. De caãoI M *)), sempre asserindo com vigor que existe apenas um céu. Platão favore- t f>f») mesma opinião (Timeu 30d; 31a; 92c) e estigmatizava a opinião de que n oíiinero de céus é ãneipoç (‘ilimitado’) como sendo digna de uma pessoa íl IH i (K»§ ('inculta'), relutantemente admitindo, contudo, que supor cinco céus |H)dma, até certo ponto, não ser desarrazoado (Timeu 55d). Mas um outro jil.ilônieo, Heráclides Pônrico, assumia a posição oposta e ensinava que toda rHIfela era por si mesma um mundo, com terra e ar seus próprios (Aet. I I 13, l£j* Doxogr, Gr. p. 343). É, portanto, óbvio que a crença em uma pluralidade tií* céus constituía uma ameaça real e presente à posição de Aristóteles (de .H oi/do com a qual o número de motores imóveis limitava-se a 47 ou 55) e era natural, e mesmo necessário, que se empenhasse em salvaguardar tal posição

diante dessa ameaça.Os críticos que julgam que a seção 1074a31-38 é uma adição posterior

dispõem, é bem verdade, ainda de um argumento. Oútoi (1074b3) parece referir-se aos corpos celestes mencionados em 1074a30 e supõe-se que isso prova que a seção interposta tenha sido subseqüentemente inserida. Mas, na verdade, a seção que vai de 1074a38 (napaSéSorai...) até o fim do capítulo forma um epílogo ao capítulo 8 como um todo e, conseqüentemente, a pala­vra oÍjtoi não se refere aos corpos celestes enquanto mencionados apenas em 1074a30, mas, em vez disso, enquanto discutidos ao longo de todo o capítulo. Quando as sentenças finais do capítulo eram lidas em aula, a palavra oíjtol

podia ser aclarada por um gesto indicando os céus acima de nós. De qualquer modo, essas sentenças finais (1074a38 [TTapaSéôoToa] - 1074bl4) deveriam ser impressas como um parágrafo em separado.

A organização do cap. 8, portanto, parece suficientemente clara. O pro­blema básico discutido é; quantos motores imóveis (e, portanto, entidades imóveis) existem? O número exato deles pode ser determinado (1073al4-23)? A solução é: de modo geral, são tantos os motores imóveis quantos são os mo-

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vimencos independentes e eternos; pois as mesmas razões que ftôs induzem, a assumir um motor imóvel para o Primeiro Céu nos compelem a assumir um tal motor também para cada um dos outros movimentos independentes e eternos (1073a23-b3). Mas, para ser mais específico: a astronomia nos en­sina que existem 47 ou 55 movimentos independentes e eternos; portanto, o número de motores imóveis também deve ser pelo menos 47 ou 55 (1073b3- 1074al7). Mas nem esse número pode ser maior, uma vez que (a) o número de movimentos independentes e eternos em nosso céu limita-se a 47 ou 55, de modo que qualquer motor adicional careceria de função específica e seria, com efeito, supérfluo (1074al7-31); e (b) não existe senão este único céu, e nenhum outro, em existência (1074a31-38). Epílogo; com efeito, a divindade dos corpos celestes (esferas e estrelas) tem sido, de uma forma ou de outra, desde sempre reconhecida; esse reconhecimento tem sido, é bem verdade, de certo modo obscurecido na mitologia tradicional, mas constitui o seu conteúdo essencial e a sua justificação subjacente (1074a38-bl4)48. Encontra-se, portanto, lógica e satisfatoriamente organizado o cap. 8. Ele ensina uma doutrina consistente, a de que não existe senão um céu e, neste, existem 47 (ou 55) movimentos inde­pendentes e eternos, causados por tantos motores imóveis quantos movimentos independentes e eternos, motores imóveis cujo número se encontra destarte limitado e determinado de maneira exata. O capítulo não revela nenhum traço de dúvida, incerteza, inconsistência, incoerência49 ou auto-correção50.

Mas, se é assim, uma nova dificuldade parece surgir. Alegou-se aqui que, para Aristóteles, não há contradição entre o cap. 8 e o restante do livro A porque Aristóteles, com a esfera dos Números Ideais de Platão como mo­delo de entidade imóvel em mente, poderia facilmente fazer vistas grossas à discrepância entre as características ‘monoteístas’ (ou, em vez disso, ‘monoci- néticas’) e politeístas’ (ou, em vez disso, policinéticas’) de sua teologia. Mas isso não torna ainda mais difícil reconciliar o espírito do cap. 8 com o dos capítulos que o precedem, tanto mais quanto mais claramente esse espírito se revela como sendo inequivocamente politeístá? Enquanto a seção 1074a31-38 puder ser considerada como essencialmente monoteísta -mesmo que apenas como um resquício de uma fase anterior e mais definitivamente monoteísta do pensamento de Aristóteles, ou como uma adição posterior, qualificando e corrigindo as opiniões por demais politeístas expressas no restante do capí-

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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111 Io , ela pareceria» de qualquer modo, conferir um certo sabor monoteísta ao t .ipíluta como um todo e, portanto, assimilar esse capítulo, até certo ponto, dOfi precedentes caps. 6-7. Mas se essa interpretação tem de ser descartada, e .1 inspiração do cap. 8 acaba por ser puramente politeísta, consistentemente e fiem qualificação, como podemos doravante ter a esperança de harmonizar o físpírito do cap. 8 com o dos caps. 6 e 7?

Conforme citado acima, o cap. 8 se abre com as palavras: consideremos .Igwa se existe apenas uma tal entidade (eterna, imóvel etc.) ou se existem muitas e, se muitas, quantas’. Portanto, a pessoa -quer tenha sido o próprio Aristóteles ou um editor posterior- que assinalou a essas palavras o seu pre­sente lugar não pode de modo algum ter imaginado que essa questão é in­compatível com o que a precede; em outras palavras, ele não pode ter julgado que o problema concernente ao número de motores imóveis já tivesse sido encerrado e decidido nas partes anteriores do livro A. A questão, portanto, naturalmente se insinua: se ele estava ou não correto em sua visão ou, em ou- tras palavras, se não devemos interpretar os caps. 6-7 à luz do cap. 8 em vez de fazer o contrário.

Existem três entidades, vimos a saber no cap. 1 do livro A (I069a30): duas delas sensíveis, uma imóvel. As duas entidades sensíveis são discutidas na seção que vai de 1069b3 a 1071b2; à pág. 1071b3 inicia-se a discussão a respeito da terceira entidade. Uma vez que o movimento é eterno, deve existir também uma entidade imóvel eterna (1071b3-ll). Mas não basta assumir entidades eternas como as Formas (Idéias), ou talvez outras entidades eternas distintas das Formas, uma vez que tais entidades não agem (e, portanto, não podem fun­cionar como motores); nem mesmo supor entidades capazes de agir, mas que não agem sempre e necessariamente; pois a entidade que estamos procurando deve ser um princípio cuja essência é a atividade, não a mera potencialidade51. Ademais, essas entidades têm de ser sem matéria; pois elas têm de ser neces­sariamente eternas (se algo o é). Portanto, elas (têm de ser) atualidades’52.

Qual, até este ponto, é o objeto da busca de Aristóteles? Uma entidade, eterna e ativa. E qual é a entidade que não preenche as condições dessa busca; que não pode ser a entidade a ser descoberta? As formas -porque as formas carecem de atividade. Quais entidades (plural!) são sugeridas em lugar das formas (e/ou dos objetos matemáticos, uma vez que a estes obviamente se

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referem as palavras 'se deve existir alguma outra entidade desse tipo além das formas' A 6, 1071bl6; cf. 1069a34)S2a? Entidades (plural!) eternas, sem matéria e, portanto, atualidades. É óbvio e, com efeito, raramente não se tem reparado que se faz alusão a, ou pelo menos se insinua, uma plurali­dade de motores53, A partir do ponto em que Aristóteles principia a provar que uma entidade eterna e imóvel deve existir, ele concebe essa entidade como (pelo menos possivelmente) abarcando uma pluralidade de entidades (eternas e imóveis). Com efeito, a questão com a qual o cap. 8 se abre já se prenuncia aqui. E aqui, mais uma vez, essas entidades são comparadas, e mesmo opostas, às formas de Platão (ou aos Números Ideais), mas a crítica de Aristóteles a essas formas dirige-se não à sua pluralidade, mas, exclusi­vamente, à sua falta de atividade. Até agora, não há razão para esperar que a esfera da Entidade imóvel que ele está a ponto de descobrir e descrever abarque somente uma única entidade.

Segue-se (1071b22-1072a9) a prova de que o atual é (no sentido aqui re­querido) anterior ao meramente potencial. Conseqüentemente, o universoe, em particular, a Entidade imóvel responsável por seus movimentos, sendo essencialmente atuais, não podem ter existido como meras potencialidades, mas devem ter o tempo todo existido como atualidades.

Aristóteles, então (1072a9-17), prossegue mostrando que a atualidade (èvépyeia) deve ter duas faces: um tipo de atualidade responsável pela uni­formidade da mudança (dei waaúrcos kvepyovv o que sempre atualiza desse modo’), o outro pela própria mudança (evepyovv âXÀwç Kal âXXws o que atualiza de tal e tal modo’); aquele, agindo da mesma maneira em todos os tempos; este, agindo diferentemente em momentos diferentes. O significado dessa passagem é obscuro. E costumeiramente interpretada à luz de Degene- ratione et corruptione I I 10, 356bl5, e supõe-se que o seu resultado geral' seja o de que ‘o movimento da esfera das estrelas fixas... é a causa da permanência na história do mundo, ao passo que o movimento eclíptico do sol... causa a alternância de nascimento e morte’54. Mas, o que quer que a passagem queira dizer, a seqüência (1072a21) fornece terra firme em que podemos novamente nos apoiar. A existência de uma Entidade eterna e imóvel tinha sido ante­riormente deduzida da eternidade do movimento, e esse argumento é agora retomado: de acordo com Aristóteles, o Primeiro Céu é eterno, mas movido;

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'é $ * , |Hi! (iiHttí, existir algo que, tio mesmo medo, seja eterno e o mova, mas

tyip w|,i, Ht* mesmo, imóvel (1072a24),

At ji!Í( fíitíío, inicia-se a especificação dos motores imóveis e dos movimentos iHMftiW i ,!ti.'.;iJos por eles. O Primeiro Céu, de qualquer mocK é eterno, e é ftiH nua m i movimento; conseqüentemente, deve também existir algo eterno

ii mova, sem se mover. Mas Aristóteles não diz que o Primeiro Céu é o Alt!) ti (Wpo eterno eternamente movido. Nem diz, ou insinua, que não é o fim. Ki A questão concernente ao número dos motores imóveis nem é feita nem li* HH tmfra decidida de antemão. Se formulada neste momento, a resposta Irtgit >1 pareceria ser: 'Veremos. Se o movimento do Primeiro Céu vier a ser o iiitit o movimento (independente e) eterno, nenhum motor imóvel a mais terá ii*1 «<'i assumido; de outro modo, tal suposição será inevitável.’ Em outras pala- VhlM( por agora o motor imóvel do Primeiro Céu representa a entidade imóvel, ühlN mio necessariamente a esgota.

Á seção seguinte (1072a26-bl3) descreve a maneira em que o movimento ri11 no é posto em execução. O motor é a coluna dos objetos inteligíveis; *'• uma entidade (ouoía) auto-suficiente; boa e desejável; uma causa final; rüífsttí necessariamente etc. Nenhum desses predicados é inaplicável a mais* lt‘ um motor.

Ê apenas na seção seguinte (1072bl3-30) que o motor é, pela primeira Vl% denominado Deus e descrito em termos que achamos difíceis de serem iiplicados a um deus entre deuses. Mas não seria essa dificuldade devida, principalmente, à tradição monoteísta a partir da qual eruditos de uma idade l.irdia se aproximaram de Aristóteles, que em outras passagens efetivamente emprega, ao exaltar os ‘Deuses, os mesmos tons de enlevo que ele aqui emprega ao exaltar um ‘Deus’? Duas ilustrações podem ser dadas:

‘Portanto, as coisas são de uma tal natureza que não ocupam nenhum lugar,

nem o tempo as envelhece; nem existe nenhuma mudança em nenhuma delas... elas

continuam, durante toda a sua duração, inalteradas e sem modificação, vivendo a

melhor e mais auto-suficiente das vidas.”55

E, mais uma vez:

Assumimos que os deuses encontram-se acima de todos os seres vivos, são ven-

turosos e felizes... Todos supõem que eles vivem e, portanto, que eles são ativos...

Philip Merlan )

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Não podemos supor que eles durmam,.., A atividade do Deus que dbapam todosos outros em beatirude deve ser contemplativa.’56

Por que, então, devemos assumir que Aristóteles, ao descrever e deificar o motor do Primeiro Céu, deva ter pretendido negar (mesmo que por implica­ção) a existência de quaisquer outros motores?

Tendo refutado (1072b30-1073a3) a opinião de que o melhor e mais belo não é um primeiro princípio, Aristóteles (1073a3-13) recapitula os caps. 6-7. Provou-se, diz ele, que existe uma Entidade -eterna, imóvel e separada das (entidades ou coisas) sensíveis. Mostrou-se, a seguir, que essa Entidade não pode possuir magnitude e é sem partes, indivisível e livre de mudanças.

O que quer que Entidade possa significar nesse contexto, quer um só ser, quer uma esfera do ser, as palavras existe uma Entidade’ dificilmente podem significar existe apenas uma tal entidade’. Deve existir uma entidade além das entidades sensíveis -com essas palavras abriu-se o cap. 6 e encerrou-se o cap. 7: isso é o que foi provado. Nada é dito para indicar que a entidade cuja existên­cia e natureza acabou de ser estabelecida (i.e. o motor do Primeiro Céu) deva necessariamente ser única em seu tipo57. Ao contrário, o sumário que enumera as propriedades características de tal entidade forma uma transição perfeita­mente natural à discussão com a qual o cap. 8 se abre; é como se Aristóteles dissesse: sabemos agora a que a entidade imóvel deve se assemelhar e sabemos que existe pelo menos uma tal entidade; consideremos agora se essa é a única ou se existem também outras. Com efeito, o sumário (1073a3-13) é uma introdução tão indispensável ao cap. 8 que é difícil ver como este último poderia ser uma adição posterior se aquele não o fosse58.

Mas isso não nos envolve em dificuldades e perplexidades outras e ainda maiores? Se é verdade que não existe uma tendência monoteísta (ou mono- cinética’) mesmo naquelas seções que introduzem o motor do Primeiro Céu e que mesmo a doutrina policinéticá do cap. 8 encontra-se já prefigurada nos caps. 6 e 7, como podemos explicar o famoso ataque de trombetas monoteísta no final do livro A, o célebre eis Koípavos êarojr Podemos supor que tal repto aparece de súbito, sem quaisquer raízes no que precede?

Ora, este autor se atreve a provar que, independentemente da discussão pre­cedente e sem levar em consideração se as interpretações propostas são certas

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m t n.iiliiíi; sem levar em consideração até mesmo os argumentos a faver eu Htiti u » monoteísmo ou o poiieeísmo de Aristóteles - o ík icoípaw>g t (7TW HAh ptnle de modo algum ter qualquer coisa a ver tanto com, o monoteísmo

rom o politeísmo no sentido comum dos termos. Tsso é o que a dis- ( \inmi ;i seguir pretende tornar claro.

Ni) cap. 10 (1075a25ss.), Aristóteles critica, os seus predecessores. Essa cri- UM» obviamente, não se limita aos tópicos discutidos no que imediatamente i» |'h mhIc (1075all-25), onde se argumenta que o Bem é tanto transcendente t|M»Klto imanente e que existe uma ordem a permear o universo. A crítica é tlf muito maior alcance e diz respeito ao seguinte:

( !) Todos os filósofos supuseram que todas as coisas procedem de contrá-l H)fi. Mas isso é insatisfatório. Nem todas as coisas procedem de contrários e, illém disso, deve existir a matéria (1075a32; cf. Física A 6 , 189a20-b27; 7 ,191a4;

Metafísica T 2 , 1004b29; A 2 , 1069b2).(2) Nem é lícito identificar a matéria com um desses contrários (1075a32-

cf Física A 4, 187al8).(3) Se todas as coisas procedessem de contrários, todas participariam do

Mal -exceção feita ao Um (que não pode, é óbvio, proceder de contrários (!075a34-36; cf. Física A 9, 192al3)).

(4) Ainda menos certos estão aqueles que negam que o Bem e o Mal são princípios (1075a36s.).

(5) Alguns admitem que o Bem é um princípio, mas não deixam claro de que maneira (i.e. como que tipo de causa) ele o é (1075a38ss.).

(6 ) A opinião de Empédocles é igualmente absurda. Primeiramente, porque ele julga que a Amizade (que para ele é o Bem) é tanto uma causa motriz quanto um elemento material, e ambas as coisas essencialmente; em segundo lugar, ele considera que a Contenda (que para ele é o Mal) é

eterna (1075bl-7).(7) Anaxágoras, com efeito, admite que o Bem (a Inteligência) é um prin­

cípio enquanto causa motriz; mas, de acordo com ele, o Bem age com vistas a algo outro, diferente de si mesmo (não é uma causa final); ademais, ele não reconhece um princípio oposto ao Bem (1075b8-ll).

(8) Mesmo aqueles que reconhecem contrários como princípios não fazem qualquer uso apropriado dos mesmos (1075blls.).

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(9) N inguém explica por que algumas coisas são perecíveis e outras, inv perecíveis; pois, de acordo com eles, todas as coisas procedem de princípios idênticos (1075bl3s.; cf B 4 , 1000a20).

(10) Ademais, alguns erradamente supõem que o Real provém do Irreal (1075bl4s.).

(11) Outros, a fim de evitar essa conseqüência, declaram que todas as coisas são uma (1075bl5s.; cf. Física A 8 , 191a23; Metafísica B 4 , 1001a30).

(12) Ninguém aponta a causa da geração e da sua perpetuidade (1075bl6s.; cf. A 7, 988b2; A 9, 991b3).

. (13) Aqueles que reconhecem dois princípios deveriam (consistentemente) ter reconhecido também um terceiro, superior aos dois (1075bl7i.).

(14) E isso se aplica também àqueles que assumem as Formas (e as coisas perecíveis), pois (se não houvesse um terceiro princípio) o que poderia causar a participação das coisas nas Formas (1075bl8-21):)

(15) Ao passo que todos os outros filósofos são obrigados a assumir algo contrário à sabedoria e à mais preciosa forma de conhecimento, 'isso não nos é necessário'; para o Primeiro59 não há contrário, pois é destituído de matéria (1075b21-24).

(16) Muitos negam a existência também de supra-sensíveis, mas tal negação acarreta conseqüências absurdas (1075b24-27; cf. A 8, 988b22; T 5, lOlOal).

(17) Formas ou Números60 são, é bem verdade, supra-sensíveis, mas, além disso, eles não são causas, ou pelo menos não causas de movimento (1075b27s,; cf. Degeneratione et corruptione B 9, 335b7; Metafísica A 9 ,991all; 991b4; 991b9; M 5 , 1079bl2; 27; 1080a2).

(18) Ademais, como uma magnitude ou um continuum poderia provir de um Número sem extensão (1075b28-30; cf. A 8, 990al3)?

(19) Contrários, pressupondo matéria e potencialidade, não podem ser responsáveis por coisas eternas (1075b30-34).

(20 ) Ninguém é capaz de explicar a união de forma e matéria se não concor­dar com a nossa alegação de que é a causa motriz que a ocasiona' (1075b34-37),

(21) Finalmente, aqueles que (em suas descrições das esferas do Ser) pri­meiramente mencionam os Números matemáticos (não os Ideais) e, a seguir, passam a enumerar uma entidade (esfera do ser) após a outra e supõem di­ferentes princípios para cada uma têm uma concepção do universo (como

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khhIm um;t peça ruim e) como cmstetindo de cenas desconexas em, que o que jiipi t-(|f não íâg diferença pata o que segue; e íntroduzem uma multidão de

jm ii it jfiioíi (independentes) («PXÒS TroXXás). Mas a Realidade não se interessa

(|«ff nt*r torno) uma cidade mal-governada (TroXiTeiecrwxi KCtK&s). 'Muitos

ynv< i mimes (independentes uns dos outros) não são boa coisa; o governante

(wipiemo) deve ser um'.

I !oi necessário reproduzir a série inteira de críticas de Aristóteles, uma vez que fíífas formam o pano de fundo para o famoso el? Koípcivog e a to -um pd l to de fundo que não tem nada, em absoluto, a ver tanto com o monoteísmo t|il,mfo com o politeísmo.

Quais são os principais alvos da crítica de Aristóteles, no que concerne à (floíiofia platônica e pós-platônica61? Primeiramente, a teoria de acordo com a i|ii.il todas as coisas podem ser reduzidas a (deduzidas de)62 (dois) princípios nmtrários, um dos quais supõe-se ser matéria (críticas 1, 2 , 3, 13, 15, 19). Em ífegüftdo lugar, a teoria de acordo com a qual uma esfera das Formas (e/ou dos objetos matemáticos), existente fora da esfera das coisas sensíveis (crítica 17), teria de ser considerada como a causa universal (críticas 12, 14, 20) ou, pelo menos, como a primeira entidade (crítica 2 1 ).

Qual é a opinião de Aristóteles? Primeiramente, a de que existem ape­nas duas esferas do Ser, o Sensível (subdividido em Perecível e Eterno) e o Imóvel. Em segundo lugar, a de que, na Esfera do Sensível, os indivíduos não têm quaisquer princípios comuns. Matéria, Forma, Privação, Potencialidade e Atualidade podem ser designados princípios comuns apenas per analogiam. Pois, na verdade, é sempre a coisa sensível concreta aquilo que age (conquanto seja forma ou atualidade) ou aquilo sobre o que se age (conquanto seja matéria ou potencialidade)63. O único princípio comum, aqui, é a entidade imóvel, a primeira causa motriz64. Mas essa entidade não pode ser deduzida de nenhum princípio mais elevado, uma vez que é pura atualidade65.

Qual é o pano de fundo histórico da posição de Aristóteles e da atitude do mesmo em relação ao platonismo no que diz respeito a isso? O livro A se inicia com as palavras: ‘é a Entidade que tem de ser considerada, uma vez que os princípios e as causas a serem determinados são princípios e causas

de entidades'66.

Philip Merlan \

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Apontou-se, na primeira parte deste artigo, que as opiniões de Aristóteles

a respeito do número e do papel das entidades eram condicionadas por cercas doutrinas platônicas. O mesmo deve agora ser mostrado a respeito de seus ensinamentos concernentes aos princípios e às causas das entidades. Isso nos faz retornar a Metafísica A: os objetos específicos da sabedoria são os primeiros princípios e as causas67.

Tal havia sido a solução de Platão, como Aristóteles a entendia: primei­ramente, Platão assumia três entidades: o Sensível, os Objetos Matemáticos e as Formas -e, com efeito, ele e os pitagóricos que o precederam tinham sido os primeiros a reconhecer uma entidade supra-sensível essencialmente distinta de todos os objetos sensíveis68. Em segundo lugar, ele representava as Formas como as causas de todos os outros objetos69. E , em terceiro lugar, ele deduzia as próprias formas de dois elementos ou princípios últimos70: o Um e o Grande-e-Pequeno. Ao mesmo tempo, o Um, no sistema de Pla­tão, desempenhava o papel da forma (no sentido aristotélico do termo) e do Bem; o Grande-e-Pequeno, o da matéria e do Mal. Conseqüentemente, de acordo com Platão, esses dois princípios (o Um e o Grande-e-Pequeno) eram os princípios de toda a existência e, em particular, tanto das coisas eternas quanto das coisas perecíveis71.

As teorias de Platão (e as de seus discípulos) a respeito dos princípios (causas, elementos) são criticadas ex professo nos últimos dois livros da Metafí­sica (M 9 ,1086al8-N 6 , 1093b22). Mas apenas alguns poucos argumentos ali avançados são relevantes para os objetivos deste artigo72.

Todos os filósofos supuseram que os princípios têm de ser contrários; Platão e Espeusipo73 adotaram tal opinião e a aplicaram tanto às entidades imóveis quanto às entidades sensíveis. Mas essa suposição é insustentável: contrários pressupõem matéria como substrato comum a ambos e não podem existir por si mesmos74.

Também é inadmissível identificar um desses contrários (a Desigualdade, a Pluralidade, o Grande-e-Pequeno, o Muito-e-Pouco, o Excedente-e-Excedido, o Diferente, o Outro) com a matéria75. Mas é inadmissível assumir que (o outro contrário, a saber) o Um é um princípio (de toda e qualquer coisa em um só e mesmo sentido); na verdade, o Um é apenas uma medida e, conseqüentemente, em cada categoria de coisas representa algo diferente76.

J | Sobre a Metafísica de Aristóteles

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AiIcihíHs, o Eterno nS© pode consistir de elementos. Se © fizesse, teria de

fftloifi HWféria subjacente a ele c, destarte, não poderia ser completamente ÍIV9P tlr potencialidade. M as onde existe potencialidade existe sempre pelo

HtPJuVt a possibilidade de corrupção e destruição. Mesmc o número, por

MMi* permanente que seja, não poderia realmente ser eterno (no sentido es- H ti m tio termo, isto é, necessariamente permanecer para sempre) se consistisse

mm elementos77.Aqueles que introduziam os supracitados contrários (viz. o Um e o Grande-

t I Vt|iieno, este último também denominado a Díada Indefinida etc.) como ttülíM.*! (princípios, elementos) o faziam pressentindo (erradamente) que não ImVÍ.í outra maneira de evitar a conseqüência de que todas as coisas são uma78, i ílefi sustentavam que apenas opondo ao Um o seu contrário e o representando t HltH» a Causa do Não-Ser eles teriam sucesso em salvaguardar a pluralidade tl.iti coisas79. Mas, na verdade, a alegação de que todas as coisas são uma é, de ijtiillquer modo, sem sentido, uma vez que a palavra ser’ tem um significado ilili*rente de acordo com a categoria (uma entidade ‘é’, e uma qualidade do mesmo modo ‘é’, mas em um sentido completamente diferente)79a.

Os pensadores que introduziram os Números Ideais (i.e. Platão) alega­ram, pelo menos, que esses números são as causas de todas as outras coisas. Mas o filósofo que (nega os Números Ideais e) postula apenas os Números Matemáticos (viz. Espeusipo) não mais sustenta que os números matemá­ticos são causas80. O único argumento que ele tem a oferecer (em favor de reconhecer os números matemáticos como uma esfera separada do ser) é o de que, se não existisse nenhuma entidade matemática, as ciências matemáticas desapareceriam81. Na verdade, ele sustenta que nenhuma entre as diversas entidades (esferas do Ser) faz qualquer contribuição ao ser das outras, (Por exemplo,) mesmo se os números matemáticos não existissem, (a esfera se­guinte do ser, viz.) as magnitudes espaciais poderiam, não obstante, existir; e, mesmo se estas últimas não existissem, (a esfera seguinte a essa, a saber) as almas, e os corpos percebidos pelos sentidos, poderiam ainda existir. Mas, de acordo com as aparências, a natureza não é como uma tragédia ruim, a consistir em cenas incoerentes82.

Aqueles, mais uma vez, que fazem uma distinção entre números ideais e matemáticos não podem responder, e não respondem, à questão relativa a em

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que elementos (princípios, causas) devem consistir os números matemáticos*11 Se eles são o Um e o Grande-e-Pequeno, os números matemáticos não diferirão

dos números ideais, uma vez que, de acordo com Platão, é apenas o número

ideal que consiste do Um e da Díada indefinida (o Grande-e-Pequeno). Pode- se alegar que o Grande-e-Pequeno servir como matriz dos números matemá­ticos não é idêntico a serem gerados dele os números ideais (e, com efeito, tal distinção encontra-se subentendida na descrição das magnitudes)84; mas isso levaria a uma multiplicação dos elementos fundamentais. Pode-se, ademais, alegar que o Um no Domínio dos números ideais é diferente do Um no do­mínio dos números matemáticos; mas, do mesmo modo, isso levaria a uma multiplicação dos princípios fundamentais85.

Mas basta das críticas de Aristóteles. Elas podem ser assim sumariadas:De acordo com Platão, (1 ) existem três esferas do Ser: as Formas, os ob­

jetos matemáticos e as coisas sensíveis; (2 ) as Formas são as causas de todas as outras coisas; (3) dois contrários funcionam como os elementos (causas, princípios) das Formas e, conseqüentemente, de todas as outras coisas, sensíveis bem como imóveis86. Mas essas suposições são insustentáveis.

De acordo com Espeusipo, por outro lado, existem mais que três esferas do Ser, a primeira abarcando os objetos matemáticos. Mas todas as esferas estão mutuamente relacionadas de modo não essencial (nenhuma delas, c.g., causa qualquer outra); cada esfera tem os seus princípios (elementos, causas) específicos, de onde uma pluralidade indefinida de elementos (princípios, cau­sas) resulta; na verdade, em cada esfera existem dois contrários específicos a funcionar como os elementos fundamentais (de modo que o número dos ele­mentos fundamentais é o dobro do número das esferas). Mas essas alegações são igualmente inadmissíveis. Nem as esferas, nem os princípios, cada um deles inteiramente independente do outro, podem pretender ser descrições satisfatórias da realidade.

Encaremos, agora, a seguinte questão: a visão de Espeusipo é politeísta? Pois apenas se é, e na medida em que é, é lícito denominar monoteísta a visão expressa nas derradeiras palavras de Metafísica A. N a verdade, as palavras oiik àyaBbv TT0XiK0ipavír|, eis Koípavos eora) (não é bom ter muitos governan­tes; haja apenas um governante) significam isto apenas, nada mais: 'é errado assumir um número de esferas incoerentes do Ser -essas esferas dependem

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Mtift 1 1*1 mitra; e é amido assumir que cada esfera tem, apenas os seus prrneí- pin* miHnHkos nn verdade, a esfera imóvel é o princípio, i.e. a causa da esfera (MNinívrl* M as se se assume que essas palavras se referem também à série de H If Ií d?) |n)r que são precedidas, das quais a crítica à teoria de Pktão é a mais Imjtttfl .mie. este significado ulterior pode ser assinalado a elas: 'é errado assu- !n!i t|UC existem dois princípios (elementos) contrários, viz. o Um e o Grande-e-

que, por serem o princípio das Formas = Números, seriam também it (t( iin ípio de todas as coisas87; porque a entidade imóvel, por ser imaterial, não t jtj odugida por ou dependente de princípios (elementos) contrários88, mas é m Iirtlfo princípio de que todas as outras coisas dependem.

Os principais resultados deste estudo podem ser agora recapitulados:( 1) A crença em uma pluralidade de motores enunciada em Metafísica A 8

ii.U) lie encontra em contradição com a doutrina proposta no restante do livroím 1 i n levar em consideração a questão relativa a quando e por quem o cap. 8

| HK.lt* ter sido composto ou inserido. Esse capítulo não é nem mais nem menos iiMMioteísta que o restante do livro, e isso é verdade da sentença final do cap. Ií) não menos que de qualquer outra passagem.

(2) A crença em uma pluralidade de motores imóveis não é incompatí­vel com quaisquer demais doutrinas essenciais ao sistema aristotélico e, em particular, com a suposição de que a matéria é o princípio de individuação. ( 'ada um dos motores imateriais forma por si mesmo uma espécie (como os números ideais de Platão ou os anjos de Santo Tomás) e os motores não são indivíduos de uma espécie ou de um gênero comum chamado motor imóvel', uma vez que eles constituem uma série de termos que se encontram, um para com o outro, na relação de anterior e posterior.

(3) À seção 1074a31-38 não exprime nenhuma crítica à crença em uma pluralidade de motores imateriais. Ao contrário, ela pretende provar que não podem existir quaisquer motores imóveis além desses 47 (55) motores respon­sáveis pelos movimentos dos corpos celestes que nos são conhecidos, visto que não pode existir outro sistema de tais motores além daquele a que se aludiu, que consiste de 47 (55) motores. Longe de ser estranha ao corpo do capítulo,

a seção constitui uma parte essencial de seu argumento.(4) No sistema de Aristóteles, os Motores Imóveis tinham uma posição

intimamente análoga à posição que os Números Ideais tinham na filosofia de

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Platão e, portanto, era natural que estes devessem ftm dom r, de cerco modo,

como o modelo para a concepção de Aristóteles daqueles,(5) A teologia de Aristóteles encontra-se intimamente ligada às doutrinas

platônica e pós-platônica relativas às divisões do Ser e aos princípios dessas divisões.

Mas Metafísica A não tem sido desde sempre julgada como o locus dassicus do monoteísmo de Aristóteles e a interpretação aqui proposta não constitui uma contestação de uma tradição à qual os eruditos vêm se apegando há muitos séculos? Pode ser; mas talvez essa mesma interpretação possa, com não menos justiça, ser considerada como um retorno à visão de eruditos que ainda não sentiam a necessidade de dar suporte e fortificar os seus próprios dogmas mo- noteístas, fazendo-os remontar à Metafísica de Aristóteles. Isto é o que Duhem nos conta sobre a primeira reação da Idade Média a essa obra: au XHIe, siècle les premiers lecteurs de la Métaphysique ont fort bien senti que la doctrine de ce livre était en formelle contradiction avec le monothéisme chrétien; ils ont fort bien vu que les... moteurs immobiles... étaient autant de dieux’ (no século XIII, os primeiros leitores da Metafísica perceberam muito bem que a doutrina desse livro se encontrava em contradição formal com o monoteísmo cristão; eles perceberam muito bem que os... motores imóveis... eram como que deuses’)89. E mesmo da reação de Santo Tomás ele afirma: ‘St. Thomas a donc vu que la théorie des moteurs célestes proposée par Aristote conduisait au polythéisme' (‘Santo Tomás, portanto, percebeu que a teoria dos motores celestes proposta por Aristóteles conduzia ao politeísmo’)90. Talvez essas declarações sejam um pouco impetuosas demais. H á um importante elemento de ‘subordinacionismo’ na doutrina dos motores imóveis que poderia encorajar uma interpretação monoteísta903. Deus, então, seria identificado com o motor do Primeiro Céu, ou mesmo este último seria subordinado a Ele. De qualquer modo, ele poderia ser concebido como tendo criado o resto dos motores91.

Algo, porém, parece ser certo: quando Aristóteles compôs Metafísica A, estava muitíssimo interessado em demonstrar a existência enquanto atuali­dade de uma entidade divina, mas pouquíssimo interessado em provar que essa entidade é numérica e individualmente uma92. Afinal de contas, mesmo a única passagem nos escritos de Aristóteles93 em que ele explicitamente formula a questão relativa a se existe apenas um motor imóvel, e responde afirmativa-

52 | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 63: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

tsiHifí, w revdará, sob inspeção mais acurada, um tanto quanto desapomtadora

jwt ,t t ifi dèlmsores do 'monoteísmo' de Aristóteles. Pois essa passagem da física Idí j Miir tk um capítulo cuja doutrina essencial foi apropriadamente descrita |*i íí ! i,lklmo‘M ao afirmar que tem de existir um motor correspondente a cada tu* tyliWiito eterno e contínuo, imóvel tanto incidental quanto essencialmente. N,hi há como encontrar qualquer frase concernente a apenas um tal motor ser | m tv.iwl (ao contrário, na passagem 259b28-32, uma pluralidade de motores

assomar). O que Aristóteles realmente afirma é que um só e mesmo movimento não pode ser devido à atividade de mais de um motor95, uma vez tjiir uma pluralidade de motores tornaria o movimento descontínuo; e mesmo i alegação se refere apenas ao caso de diversos motores contribuindo para ,! produção de um só e mesmo movimento por atividades sucessivas, ao passo ijlie o caso de uma pluralidade de motores simultaneamente contribuindo para ,1 produção de um movimento nem mesmo é levado em consideração96. E isto tlfíirilmente tem algo a ver com o monoteísmo’.

H verdade que o próprio Jaeger -para com quem encontramo-nos em dívida por chamar a atenção para a interpretação de Eudemo- interpreta Física 0 6

ilr um modo diferente. De acordo com ele97, a teoria originalmente proposta nesse capítulo era a seguinte: existe, com efeito, apenas um motor imóvel que ê eterno e causa um movimento eterno e contínuo; e existem muitos motores imóveis (almas) que são perecíveis e causam movimentos descontínuos de natu­reza passageira. O motor eterno é imóvel no sentido de nunca ser movido nem essencial nem incidentalmente98, ao passo que os motores perecíveis podem ser movidos incidentalmente e, portanto, são imóveis apenas na medida em que nunca são movidos essencialmente ou, por assim dizer, por conta própria. O argumento oferecido em favor da alegação de que existe apenas um motor eterno dizia respeito a dever ser descontínuo e, portanto, não poder ser eterno o mo­vimento causado por uma pluralidade de motores. Mas, de acordo com Jaeger, ocorreu subseqüentemente a Aristóteles que esse argumento não teria efeito se existisse um número de movimentos co-eternos e contínuos (tal pluralidade de

movimentos co-eternos era assumida por teorias astronômicas recentes) -cau­sado por um número igual de motores imóveis e eternos. De modo a adaptaro capítulo a esse novo ponto de vista, Aristóteles adicionou duas frases -não, porém, porque ele procurasse refutar a possibilidade de movimentos co-eternos,

Philip Merlan | <»|

Page 64: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

mas, ao contrário, porque ele a estava admitindo. Essas duas frases registram: quer um, quer muitos' (258bll) e: (o primeiro motor) 'se ele for um, ou os pri­meiros motores, se mais de um (259a7s.). Mas, de acordo com Jaeger, uma nova dificuldade surgiu. Aristóteles alegara que os motores perecíveis (as almas) eram movidos incidentalmente (mesmo que não essencialmente); mas e os motores das esferas celestes cuja existência ele agora admitia? Por uma ou outra razão, parecia a Aristóteles que estes também seriam movidos incidentalmente -do mesmo modo que as almas das criaturas vivas se movem junto com os seus corpos (mesmo quando esse movimento é causado pelas próprias almas). Mas Aristóteles percebeu que, também com respeito a isso, deveria existir uma di­ferença entre os motores das esferas e as almas dos seres vivos. E, com vistas a formular tal diferença, Aristóteles introduziu uma distinção entre os dois mo­dos em que os motores imóveis podem ser movidos incidentalmente: as almas são movidas incidentalmente na medida em que são carregadas pelos corpos animais sobre cujos movimentos as mesmas presidem; e os motores celestes são movidos incidentalmente na medida em que as esferas movidas por eles tam­bém são movidas por outros motores (viz. no caso em que uma pluralidade de movimentos eternos é comunicada a um só e mesmo corpo celeste). E essa nova consideração foi expressa por outra adição, a saber, a frase 259b28-32.

Graças a essas duas séries de adições, o capítulo agora estava adaptado à nova opinião, que admitia uma pluralidade de motores imóveis e eternos. Algo, porém, permanecia por ser dito: Aristóteles ainda não declarara expli­citamente que todo movimento eterno pressupõe um motor eterno separado, e coube a Eudemo dizê-lo nessas palavras; ele o interpretou como se Aris­tóteles tivesse escrito: cada movimento eterno em separado deve ser descrito assumindo-se um motor eterno separado. E a interpretação ‘politeístá de Eudemo era perfeitamente legítima: ela simplesmente representava as opini­ões finais de Aristóteles.

Essa é a análise de Jaeger de Física 0 6" . Por ser muito complexa, pode ser contestada em alguns pontos. Mas vamos supor que está correta em cada detalhe. O que se segue? Se Aristóteles pudesse perceber -como deve ter per­cebido, de acordo com a análise de Jaeger- que o ‘monocinetismo’ original do capítulo poderia ser transformado em policinetismo’ graças à inserção de algumas sentenças, esse monocinetismo’ (ou monoteísmo’, como comumente

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 65: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

^ ) j amais poderia ter tido raízes firmes em sua mente c jam ais pt>

•I#* M n*!1 fifdo uma parte essencial, ou mesmo central, de sua filosofia100. Com

•M m , m* it* mesmo capítulo foi interpretado como expressão de policinetismo’

I ít idemo, a quem Simplício chama de yvriaiÚTaTOS ~~v 'ApicrroTeXous i ('o mais autêntico discípulo de Aristóteles’). Ademais, esse capítuloí N l, originalmente, era) monocinétíco’ apenas na medida em que também

(»u, originalmente, assumia) somente um movimento eterno. Com essa entretanto, Aristóteles não pretendia negar a possibilidade de mais

ili fflti movimento eterno e contínuo, mas ele simplesmente não considerava frtl |nv.r.ibilidade em conjunção com o problema de movimentos co-eternos. { *M| if!iH|üentemente, se endossamos a análise de Jaeger quer em maior, quer ihh menor grau, não há nada, nem mesmo em Física 0 6, que contradiga o (rMultíldo da nossa investigação, resultado esse relativo a ser consistentemente |fi)|jdnética (ou politeísta), em vez de inconsistentemente monocinética (ou 'moiweísta), a doutrina expressa em Metafísica A -embora, certamente, não m-j.t ;mtropomórfica. Em geral, é bem verdade, estamos inclinados a pensar a fl .Hlííição do monoteísmo ao politeísmo como sendo, ao mesmo tempo, uma ir.iiisíçáo do antropomorfismo mais tosco à mais pura noção de Deus. Um i mediai, um politeísmo desantropomorfizado, aparece antes como uma t ODStruçáo lógica que uma realidade viva. Mas parece que Aristóteles (e, talvez, l.imbém Platão101) representa justamente esse estágio intermediário. Foi pelo .mtropomorfismo ou, antes, pelo antropopatismo da religião popular que eles Mentiram repulsa, não por sua pluralidade de deuses102. E é bastante certo que I ipicuro, em sua polêmica contra seus adversários 'ímpios’, insiste em ambas as questões: a pluralidade dos deuses e o antropomorfismo dos mesmos, porque ,i;i ciuas questões são diferentes. Os motores imóveis de Aristóteles são deuses certamente não semelhantes aos homens; mas ainda assim eles são muitos103.

Philip Merlan j

Page 66: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

N O TA ADICIONAL

Vale a pena ler a seção de abertura da Metafísica de Teofrasto (I l-II 7; pp. 3-6 Ross and Fobes), em que se discutem todos os problemas concernentes ao número e às características das esferas do Ser; a sua concatenação; o nú­mero de Entidades na esfera mais elevada; o primeiro motor; o número de movimentos eternos; e as dificuldades relativas não menos à suposição de um motor imóvel que à suposição de muitos motores imóveis.

’Apxr) 8é, TTÓrepa awa§í\ t i s Kal olov KOivwi/ia Trpòs ãk\r\\a to ls

t ê vot)toIs Kal Tois Tf|s 4>{iaews, f| oúSepla ... eíAoytírrepov 8 ’ ow eivai

r iv a awa(j)f|y Kal |if] êTreiao8LÔ8es tò trâv...

( ‘Mas o princípio é uma certa combinação e como que uma associação dos <objetos> inteligíveis e das coisas da natureza uns com os outros, ou não é nada <disso>?... É mais plausível que o todo seja uma certa combinação, e não seja apenas uma série de episódios...’)

Os voryrá ( ‘<objetos> inteligíveis’) são as o v o ía i ( ‘entidades’) supra-sen- síveis de Aristóteles; t ò Trjç cj)í>crect)s (‘as coisas da natureza), as ala0T|Tal ouaíai (entidades sensíveis’) de Aristóteles; e a questão é se uma opinião como a de Espeusipo (Metafísica de Aristóteles N 2 , 1090a4-15; 3 , 1090bl5; cf A 10, 1076al), cujo universo consiste de esferas do ser que não contri­buem umas com as outras mutuamente, é verdadeira; ou se, em vez disso, é verdadeira uma opinião como a de Platão (Metafísica de Aristóteles N 3, 1090a2-4), que pelo menos asseria que as Formas são as causas’ de todas as outras coisas; ou como a de Aristóteles, que provou que o Supra-Sensível, sendo a causa do movimento do Sensível, encontra-se em contato’ com este. Teofrasto favorece as últimas opiniões.

El 8 ’ ow oxjto, t i s f] 4>íms aírrâv (scil. to v vot]tov) Kal kv ttoIois;

(‘Se é assim, qual é a natureza deles (scil dos <objetos> inteligíveis) e em que tipo de coisas <eles se encontram>?’)

5 6 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 67: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

I kfi.i é a questão de Aristóteles relativa a se existe apenas um ou, em. ves tliw), fif diversos tipos de ofcrtat supra-sensíveis existem, e de que tipo estas *tf»t (Metafísica de Aristóteles B 1 , 995bl6) -idéias, objetos matemáticos ou o

»jto' itui»?

Ií! |j('v yàp kv |j.a0r||j.aTLKdLs p.óvov t ò vor)Tà ... oirre ay av euarujLos t| M(n<t/<|) to ls alaOriTOLS... (Pois se os <objetos> inteligíveis <encontram- «i ; apenas nos <objetos> matemáticos, não se encontra suficientemente bem liwítwfada a combinação com os <objetos> sensíveis...’); além disso, os objetos maiemáticos parecem também ...81’ aírrâv otôejJLÍav exeiv <j){)aLV (‘...não ter pti oi mesmos natureza alguma).

Aqui Teofrasto discute a possibilidade de a entidade supra-sensível ser sim­plesmente os Objetos Matemáticos (Metafísica de Aristóteles A 1 ,1069a34; M I, I076a21; 6, 1080al4; N 4, 1092a8); ele a rejeita por razões dentre as quais

ti «egunda se encontra em Aristóteles,

Ei 8 ’ èrépa t i s ow ía upoTepa Kal KpeÍTTWv ècrrív, Taúrriv TTeipaTéov X^yeiv, TTÓTepov [úa t l ç , kctt’ àpi9|iòv í| kcxt’ eiSos f| Korrà yévos.

('Mas se a primeira entidade é algo diferente e superior, deve-se tentar dizer, a respeito da mesma, se é uma segundo o número, segundo a forma ou segundo o gênero.’)

Aqui Teofrasto discute a possibilidade de existir uma outra entidade (não- matemática) supra-sensível e conecta essa discussão com a questão relativa a se essa entidade mais elevada é uma ou são muitas, i.e. ele faz exatamente a mesma pergunta que Aristóteles em A 8 . Torna-se, portanto, absolutamente claro que dizer que não existe senão uma oíxjía supra-sensível = esfera do ser não induz a qualquer tipo de concepção prévia relativa ao número de ow íai = entidades nessa esfera do ser. Mas Teofrasto não exclui a possibilidade de a entidade supra-sensível se encontrar, para com as suas entidades, na relação

de gênero ou espécie das mesmas.

Philip Merlan j

Page 68: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

EíiXoycâTÊpov 6 ’ ouv àpx%' <|yúcav íx&ú&as ò k íyoiç ú v a i ««1•nepiTTOts, el |xr| ápa Kal ttpcótoiç Kal kv t 0 Trp(ó*r(f).

(‘E mais plausível que, por possuírem a natureza de um princípio, se encon­trem em coisas poucas e eminentes, se não nas primeiras e na primeira.')

Teofrasto, destarte, favorece o oligopoliteísmo', ou o mono-politeísmo', do um modo semelhante a Aristóteles em Física 0 . E interessante perceber que mesmo a segunda possibilidade (kv ... Trpiírrois Kal kv t o j TTpcoTO, nas pri­

meiras e na primeira') fala em uma pluralidade de causas na(s) primeira(s) scil. esfera(s).

T is 8 ’ o w auTT] Kal t l v é ç e l TrXeíouç, TTeipareov è|ic[)aíveLi'.

(‘Deve-se tentar evidenciar o que <essa entídade> é, ou o que <essas enti- dades> são, se são muitas.')

Ele, portanto, ainda permite quaisquer possibilidades quanto ao número de oíxjíai.

’ A váyicri 8 ’ í c t o j s i > v v á { i e i t i i â Kal írrcepoxfi t o j v âXXwv X a n (3 á v e iv ,

(íxjTTep a v e l t ò v Qéov. (te ia y à p f) TrdvTWv à p x ií , S i’ f|ç à n a v T a Kal

èoTLV Kal 8 ia[i.évei.(‘Talvez seja necessário apreender <essa entídade> por intermédio de al­

guma potência ou de alguma superioridade <da mesma> relativamente às demais coisas, por exemplo, como se fosse Deus. Pois é divino o princípio de tudo, por meio de que todas as coisas existem e se mantêm.’)

Aqui, de um modo semelhante a Aristóteles em Metafísica A 2, 983a7, Teofrasto experimentalmente assume que a oíxria mais elevada é Deus, e se encontra relacionada às demais coisas de um modo divino (não do modo que os objetos matemáticos se relacionariam a elas).

ToLaúrrjs- 8 ’ o v a r j ç tt]ç à p x % - n Sè <j)úcris ... év KU/r)crei ... -SfjXov

a iT Ía v ô e ré o v Taín-qv tt)ç K L ^ aecos' e u e l 8 ’ m ív riroç m 9 ’ avrr\v, (j)avepòv ú s oi)K ... t o K iveiaS ai a l r í a .

58 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 69: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

% i I | dndjm* =e encontrasse a natureza... em movimaMa..- éW» <| deve considerar como a causa desse movimento. U m a vez

«i Hiemtw é imóvel, manifesta-se que não é... por ser movido que ele

* »Htim!)

fÍnM«- i d Motor Imóvel de Aristóteles -capaz de fazer o que nem as idéias fil mi nli|i'n>:; matemáticos podem: mover. Mas, como as linhas seguintes

HlèMMitjU/u questão relativa a se ele é um ou se sáo muitos, e quantos, ainda

Dftti li ii det ídída.

Mi \|ii r o í n w oí.oi' âpTLOs ò Xóyos, á p x V ... ttoiíiv |iíav TrdvTOV...

( Aic aqui a descrição é bem articulada, ... por tornar um o princípio de

Hlili *.«.')

Aqui, mais uma vez, (xía àpxií (um princípio’) não significa monoteísmo; j'nc. ‘teofrasto prossegue:

flí) fic | ierà T a írr’ f|Sr) Xóyou S e ira i n X eíovos ... eÍTe y à p ev t ò klvoúv,

tliorrov t ò xf] TrávTa rf|v airrf)v (sál.c|)opàv la v é li ') ' eÍTe « a 0 ’ € k<k j t o v

(> il. r ò kdkXlicóv') ê re p o v , a í t ’ à p x a í TrXeíous', & o r e t ò (7Í>jj.c)3covov ...

4>avepóy. t ò Sè «erra t ò TT\f]0os twv atjxxipájv Trp a iT Ías |ieíCova

(j ]t h Xóyov.(‘O que vem a seguir ainda carece de muitas discussões... pois, se o motor

é um, é estranho que esse (movimento) não (mova) tudo; se, porém, (scil. o <movimento circular) é diferente para cada um e os princípios são muitos, então a harmonia... não é de modo algum evidente. E o que diz respeito ao número das esferas ainda requer uma razão melhor de sua causa.’)

Portanto, a resposta à questão um motor imóvel ou muitos motores imó­veis’ dependerá, em última análise, do que melhor explica os movimentos dos corpos celestes. Cada uma das respostas encontra prima facie algumas dificuldades.

Philip Merltui

Page 70: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

N O T A S

* As passagens em grego, latim, francês e alemão sem tradução no original de Philip Merlan receberam tradução para o português na presente versão do texto. (N. do T.)

1 Estou em dívida para com o falecido professor H. Gomperz por ler este artigo em manus­crito, por ajudar-me a trazê-lo à presente forma e por contribuir, graças a algumas de suas críticas, também ao conteúdo do mesmo.

2 Duas suposições posteriores, entretanto, também faziam parte desse sistema: supunha-se que as esferas e as estrelas consistiam de éter e as últimas eram vistas como seres vivos. Ver o meu artigo ‘Ein Simplikios-Zitat bei Pseudo-Alexandros und ein Plotinos-Zitat bei

. Simplikios’, em Rheinisches Museum 84 (1935) 154-160 (cf. P. Duhem, Le Système àu Monde IV [Paris 1916] 422-428; a minha resenha de R. Walzer, Aristotelis Dialogorum Fragmenta, em Philologische Wochenschrift 58 (1938) 65-69; e W . K. C. Guthrie em Aristotle, On The Heavens (Loeb Classical Library, London 1939) xv ss.

3 Sobre a importância desse sistema, ver e.g. P, H . Wicksteed em Aristotle, The Physics (Loeb Classical Library, London 1929) lxxi; P. H . Wicksteed, The Reactions Between Dogma and Philosophy (London 1920) 33s.

4 1073al4 - 1074bl4. Em Física 0 6 pouco mais se faz que aludir a ela.5 Metafísica A 8 1074a31-38.6 Pelo menos de acordo com a interpretação mais comumente aceita de Aristóteles. Mas

cf. n. 46 infra.7 Cf. Metafísica N 2 1088bl4-28.8 Cf. W . Jaeger, Aristotle (London 1934) 354. A solução de Jaeger é a seguinte: (1) O cap, 8 é,

em seu todo, uma adição posterior. Originalmente, o livro inteiro se baseava na suposição de que apenas um motor imóvel existe. (2) Posteriormente, Aristóteles adotou a concepção de 47 motores, de modo a ajustar a sua metafísica às visões da ciência sua contemporânea. Com isso, ele se envolveu em dificuldades das quais não foi capaz de se desembaraçar, principalmente porque uma pluralidade de motores imateriais é inconcebível de acordo com os princípios aristotélicos. Mas o próprio filósofo tomou consciência dessa impos­sibilidade e meditou acerca da mesma. A seção 1074a31-38 contém as suas meditações concernentemente a esse problema. Foi originalmente escrita em uma ‘folha’ separada e incorporou-se ao texto graças aos editores da Metafísica. A passagem vivamente contradiz a doutrina de uma pluralidade de motores, é obviamente estranha ao contexto do cap. 8 e é mesmo destrutiva de seu argumento. -A interpretação de Jaeger foi adotada de modo praticamente universal. Assumiu-se, porém, que a seção 1074a31-38 não foi posteriormente inserida, mas representa um vestígio de uma fase anterior e mais consistentemente mo­noteísta do desenvolvimento de Aristóteles. Cf. W . K. C. Guthrie, ‘The Development of Aristotles Theology' Classical Quarterly 1934, pp. 90-98, esp, 91 n. 1; R . Mugnier, La tkéorie du premier mottur et 1’évoluúon de la pensée aristotelicienne (Paris 1930). Para críticas, ver A. Mansion, ‘La genèse de 1’oeuvre d’Aristote daprès les travaux recents’, Revue néo-scolastique de philosophie 1927, pp. 307-341, esp. 3385.; A. Mansion, Autour des éthiques d Aristote’,

6o I Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 71: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

rf«(< i'í ili |t|). 2Í24Í4.1 J, Paulus, 'La ebéorie du premiei moícur cbea Aristefe', Rww de fiMn-n/ihii' |‘)B , pp, 259-294; 394-424 (eoncordo com muitas das conclusões d rn e artigo

ei 1 1 )j| ii i 414«.-/ mesmo que a sua principal conclusão, viz, a de que o PrimeiroMiiliti alma na Física e 'intelligentia separara' na M.etafisica, pareça ser insusten*(4i i l)j Wi I). Ross, Aristotles Physics (Oxford 1936) 94-102. Foi-nú inacessível o trabalho tl»- j I hirkx, 'De Theorie von den Onbewogen Beweger bij Aristóteles', Tijâschrift voor 1'lém fhlc I (1939) 747-800.

■ ) •( li urdo com Jaeger, Aristóteles implicitamente assinalou três diferentes significados ao i»min 'primeira filosofia em três estágios sucessivos de seu desenvolvimento. Na primeira U<íí’j utiwcbe-se a metafísica enquanto Teologia e, enquanto tal, enquanto o conhecimento >lt tipenas uma, a mais alta circunscrição do ser, sendo essa fase melhor representada por MeWjMftí A. No segundo estágio -o de transição-, significa algo como lógica metafísica, m i tilihedmento do ser enquanto ser (Metafísica T e E). No terceiro e último estágio (que,! Ili l i*l,IMO, nunca foi completa e consistentemente desdobrada), significa conhecimento do í íl!|tr,i *Scnsível, baseado em, e incluindo, o conhecimento do Sensível (este último sendo Mdibéni. um legítimo objeto da metafísica); e é esta opinião final que subjaz à discussão tle Metafísica Z, H, © (em que se concebe o eiSog' como incrustado na matéria) e M 1-9 (t)iule se inicia uma nova abordagem metafísica). -Para^críticas, ver H . F. Cherniss em The American Journal ofPhilology 56 (1935) 261-271, esp. 265. E, de qualquer modo, a metafísica flH|uanto teologia, representando quer um estágio particular, quer apenas um aspecto |Wficular da filosofia de Aristóteles, que devemos considerar aqui.

111 I )eve-se enfatizar que a questão de até que ponto a descrição da filosofia de Platão por A r i stóteles é correta pode ser completamente desconsiderada para os propósitos da presente discussão, pois estamos aqui preocupados apenas com a auto-interpretação de Aristóteles por meio da interpretação dele -certa ou errada- de Platão.

11 Metafísica A 6 ,987bl4: é tl 8è Tiapà Ta aia0T]Tà Kal Ta elôr| Ta |ia0TpaTiK:à twv TTpay- |lfÍTii)V eivai (j>r)CTi ( e ainda, além dos <objetos> sensíveis e das formas, ele [scil. Platão] afirmou que existem os objetos matemáticos’).

12 Metafísica F 2, 1004a2: T o a a v r a népr\ ipL X oao^ íaç ... õ aa n rep ai oiiaíai (tantas são as partes da filosofia... quantas são as substâncias’). Cf. E 1, 1026a6-20; K 7 ,1064bl; De anima 1 1 ,403bl0; também Jaeger, op. cit. 216; W . D. Ross, Aristotle‘s Metaphysics (London 1924) lxxviii. Em Física B 2, 193b22-36 e 194bl4, a distinção entre essas três ‘filosofias’ é igualmente pressuposta. Sobre a história dessa famosa tricotomia, ver J. Mariétan, Problème de la classification des sciences d’Aristote à St.-Thomas (St.-Maurice et Paris 1901) e L. Baur em Dominicus Gundissalinus, De divisione philosophiae (Beitrãge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters 4, Münster 1903) 194-204 e 325-397; uma interpretação moderna em J . Maritain, The Degrees o f Knowleãge (London 1937) 44-46. Cf. também E. Zeller, Die Philosophie der Greichen II 2 (quarta edição Leipzig 1921) 181 n. 3. Não se parece prestar suficiente atenção à raiz platônica dessa divisão tripartite; pretendo re­tornar a esse tópico e à questão de como graus de ser’ transformaram-se gradualmente em graus de conhecimento’. Cf. Física B 7, 198a29 e o comentário de Santo Tomás ad loc. com a nota 24.

Philip Merlan |

Page 72: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

» M etafísica 2 11, 1037al4 ; A 1 , 1 069b !; M 1, J0 7 6 a 9 ; % 1 0 8 é a 2 i. Cf. Jaeger, op, eit. 206»,

2 2 0 ss.; W . D . Ross, Aristotle (terceira edição London 1937) 69,

13 M etafísica E 1 , 1 0 2 6 a l8 ; K 1 , 1059b2; 7 ,1064b l.

14 Essas características as Form as têm em comum com os objetos da matemática, de que,

entretanto, diferem na medida em que podem existir diversos objetos matemáticos (c\|,

triângulos similares) em uma só e mesma classe, ao passo que apenas uma Form a corres»

ponde a toda uma classe. M etafísica A 6 , 9 8 7 b l6 ; B 6 , 1002bl4 .

15 M etafísica E 1 , 1 0 2 6 a l0 ; K 7 , 1064a33.

16 M etafísica A 9, 9 9 2 b l5 ; B 1, 9 9 5 b l6 ; 2, 9 9 7 b l e 12; 998a7; 6 , 1 0 0 2 b l2 (particularmente

digno de nota porque Aristóteles - ex hypothesi- dá apoio à teoria das Form as com argu­

m entos seus próprios); Z 2 , 1028b20; H 1 , 1 0 4 2 a ll e 22 ; K 1 , 1059a38; A 1 ,1069a33; M

1 , 1076a8; 6 , 1 0 8 0 b ll ; 9, 1 0 8 6 a ll e 26.

17 M etafísica L 2 , 1028b l9 ; M 1 , 1076a21.

18 M etafísica K 1 , 1059b2 e 13; M 2 , 1077b23; N 3 , 1090a29.19 M etafísica A 1 , 1069a33; cf. 6 , 1071b3.

20 Xenócrates fr. 5 H einze e pp. 3ss. e 75 H einze. Cf. Ross, Arist. M etaph. lxxv n. 2 ; Tbeophras-

tus M etaphysics ed. Ross and Fobes (London 1929) 56s. Incidentalmente, vale a pena notar

que é virtualmente impossível dizer se em R epública V I 13, 500c, Platão está falando de

idéias ou de corpos celestes. Cf. Aristóteles, M etafísica K 6 , 1063al6 ; F 5 ,1009a30 e 1010a30;

H . Cherniss, A ristotles Criticism o fP la to an â the A cadetny I (Baltim ore 1944) 199 n, 117.

21 A expressão e v t o oí)pav<j) (n o céu, ou no mundo’) para aícr0r|Tá (‘sensíveis’) ocorre em

Aristóteles, e.g. M etafísica B 2, 997b7; c f A 8 , 990a5 ; D e catlo I 9, 278bl9-21.

22 Q u e o Sensível pode ser um objeto de ‘filosofia e, portanto, de conhecimento verdadeiro,

parece ser um a doutrina peculiar a Aristóteles. M as ver F. Solmsen, Plato’s Theology (Ithaca 1942) 82í.

23 Cf. H . H. Joachim em sua edição do D e generatione et corruptione de Aristóteles (O xford

1922) xix e xxii; Ross, Aristotle3 7 0 ; M etafísica A 8, 989b34; E 1, 1026a27.

24 E m Física B 7 ,198a29, lê-se: Biò Tpeis a í TTpayixaTetai ( ‘são, portanto, três as disciplinas’),

e espera-se encontrar física, matemática, teologia, m as encontra-se, na verdade, f) |a.èv TTept

àKitT|T(oy, f) Sè TTepi n v o v p ié v o v p.èv àcfíOápTcúv Sé, t) 8è uepl t à c()0apTá (um a, sobre

os imóveis; a outra, sobre os movidos, mas incorruptíveis; e a outra, sobre os corruptíveis’).

A segunda divisão obviamente designa a astronomia. Cf. n. 12 i f .

25 M etafísica A 6 , 987b 23 ; 9 , 991b9 e 2 2 ; A 8 , 1073a l8 ; M 6 , 1 0 8 0 b l3 ; 7 ,1081a7; 8 , 1083a l8 ;

9 ,1086a5 e 12; N 3 , 1090al7; 4 , 1092a8. -P a ra todos os problemas referentes à identificação

de Idéias e N úm eros, cf. Ross, Arist. M etaph. lxiv ss.; O . Becker, ‘D ie diairetische Erzeugung

der Platonischen Idealzahlen, Quellen und Studien..., A bt. B I (1931), 464-501 . -P . Shorey

(e.g. em Plato, T h e Republíc, Loeb Classical Library II , pp. xx e 164s.) nega enfaticamente a

existência de tal doutrina nos escritos de Platão e encontra-se obviamente bastante inclinado

a negar de todo a sua existência nos ensinamentos de Platão. O motivo parece ser a sua

convicção de que tanto a identificação das Idéias com os N úm eros quanto a distinção entre

números ideais e matem áticos são tolas’ e poderiam ser mantidas apenas por estudantes

acríticos da Academia’. A atitude de Shorey em relação às notícias de Aristóteles acerca

62 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 73: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

1h ImhIim d tlf Nftteup. \ h qualquer « m io , para os nossos p r c / m m propórifo», a

*1* liiMOi i< ii ilo relato de Aristóteles não & de importância alguma, Cf; agora cambém

D b i nlw», llip tthklle o fth e fiarly A .cad m y (Berkeley/Los Angeles 1945) 17-30; 60.

' M tí, 1084a 12; Ftsiea f 6 ,206b32.A II, W h l 4 * 2 l Cf. Ross, Arist. M etaph . Ixix s . ;Jaeger, cg», cít. 220 n. 3.

ii p w qu ejá no cap. 6 (1071b21) um a pluralidade de o io ía t eternas é tão natu-

nt*1 -« iim itla , ('/. tu 53 infra e Cherniss, A ristotles Criticism 1 2 2 0 ; 458 n. 406 .

í\ H, 98% 23 . li.im I' 8, IOÍ7blO; Z 2 , 1028b8; H 1 , 1042a8.

M itrtlhlul A 8, t)89b24; B 1, 9 9 5 b ll-1 8 ; 2, 997al5-18 ; 34 ; 9 9 7 b l; T 2 , 1004a4; 3 , 1005b l;

IlHWít IHj H 1, 1026a28-30; Z 2, 1028bl0 ; 21-34; 11, 1037all-17 ; H 1 , 1042a5-13; K 1,

KW h 1-2; 7 , 1064a35; 1064bl0-14; A 1 , 1069a30-b2; 6 , 1071b4; 1 0 ,1075b38; M

i, IV 24 ; 9 , 1086a24; N 1 , 1087a29. Cherniss, op. cit. 364, sugere realidade’.

^ 1 1 iiml tlraie termo foi-me sugerido pelo falecido prof. Gom perz.

^ ( I | I ni^miige, 'Com m ent sest tranformée la pensée religieuse d’Aristote’, R evue thomiste

ItfJn, pp, 281-329, esp. 310ss.

** |(i p> <r m* ttio freqüentemente quão grande artista Platão é quando comparado com Aris-

Iíií. !* >t que eu peço licença para apontar que mesmo como um m ito o T im eu é freqüente-

mwlie le b ou. quase ridículo. Basta mencionar os pequenos pinos usados pelos deuses para

Hiidlffr o homem inteiro (43a).

w t 'I { íüihrie, Classical Q uarterly 1934, pp. 92 e 98 .

,f' ! ) : I í. 1'rank, Plato unà die sogenannten Pythagoreer (H alle 1923) 133s.

1 ( h Números Ideais de Platão não carecem de m atéria; o Grande-e-Pequeno funcionam

i imm tal, Cf. M etafísica A 6 , 987b21 e 35; N 1 , 1087b7; cf. 2 , 1088b20. M as isso, evidente­

mente, não é matéria como prin àp iu m individuationis. Seria absurdo defender que o Grande-

C I Vqueno, i.e. a Quantidade Indefinida que se transform a em um a Q uantidade definida

por eausa do número Dois era um a Grande-e-Pequeno diferente daquele ao qual o numero

‘ I Vfti confere determinação.

M etafísica M 6, 1080al7 ; 8, 1083a34; cf. L . Robin, L a théorie platonicienne des Idées et des

Nfftnbres daprès A ristote (Paris 1908) 289 ; Ross, Arist. M etaph. p. liii e I I 427.

^ Hobre essa explicação ver Ross, op. cit. exix e cxxxix. N a verdade, ela não é especificamente

lomista, uma vez que A lberto M agno já a conhecia: M etaph. X I , I I , 10: coelestes... circuli

liabent animas sed praeter animas sunt intelligentiae separatae et has intelligentias Angelos

vocant,..’ (o s círculos celestes... têm almas, m as além das almas há inteligências, e chamam

Anjos a essas inteligências...’); X I , II, 28 : omnes substantiae separatae differunt ab invicem

specie... Sicu t loco sphaerarum una est superior altera, ita etiam dignitate una substantia

díffert ab altera’ (todas as substâncias separadas diferem um a da outra por causa da espé­

cie... Assim como por causa do lugar das esferas, uma é superior a outra, do mesmo modo

por causa da dignidade um a substância difere de ou tra). M as a opinião de Santo Tom ás,

expressa em Sum m a theol. I I , II, q. 7, registra: ‘frivolum est dicere quod intelligentia movens

aliquid corporum coelestium sit Angelus’ ( ‘é trivial dizer que a inteligência que move os

corpos é um A njo’). - O s sujeitos do vocant de A lberto são, com certeza, filósofos como

Philip Merlan |

Page 74: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Avicena, Avetróis, Maimônidcs (sobre cuja interpretação des moferes Imóveis ver H , A. W olfson, Cresças C ritique o f A ristotle (Cambridge 1929] 108í. 666s.). Sobre a questão da

angelologia, cf. CL Baeumker, Witelo (M ünster 1908) 523-606, esp. 537 e 545; W icksteed,

T h e R eactions (n. 3 supra) 73 -8 6 ; D . E . Sharp, Franciscan Philosophy at O xford in the Thirteentb

Century (London 1930) 263s. Am bas as doutrinas (motores são anjos, especificamente

diferentes um do outro) estáo em al-Farabi: ver I. M adkour, L a p la c e d a l Fârâbi dans 1‘écolí

philosophique m usulm ane (Paris 1934) 82, 84, 85 n. 2 , 88, 98 ; A lfãrãbis philosophische A bhand'

lungen übers, von Fr. Dieterici (Leiden 1892) 98 ; M . H orten, D as Buch der Ringsteine Farabis

(M ünster 1906), 200s.; Duhem , op. cit. (n. 2 supra) I V 442 .

40 V er e.g. Sum m a theol. 1 50, 3 -4 : proprius effectus separatarum substantiarum videtur esse

m otus corporum coelestium... S i ergo angeli non sunt compositi ex m atéria et forma... se-

quitur quod impossibile sic esse duos angelos unius speciei... M agis et minus... secundum

quod causantur ex form is diversarum graduum... diversificant speciem... et hoc modo an­

geli diversificantur secundum magis et minus' (Vê-se que o efeito próprio das substâncias

separadas é o movimento dos corpos celestes... Se, portanto, os anjos não são compostos de

m atéria e forma,... segue-se que é impossível que existam dois anjos de um a só espécie... Mais

e menos,... de acordo com o que é causado pelas formas de diversos graus,... diversificam

a espécie,... e, desse modo, diversificam-se os anjos, de acordo com o mais e o m enos'). D e

subst. sep. 2 (I 76 M and.): ‘...sunt intellectuales substantiae coelestibus corporibus unitae.

H aru m autem numerum Aristóteles investigare conatur secundum num erum coelestium

corporum ’ ('...as substâncias intelectuais estão unidas aos corpos celestes. Ora, Aristóteles

empreendeu investigar o número destas de acordo com o número dos corpos celestes’). Op.

cit. 6 (1 93 M and.): '...invenitur in formis diversitas secundum quemdam ordinem perfectio-

nis et ímperfectionis’ (‘encontra-se nas formas a diversidade, de acordo com um certo arranjo

de perfeição e imperfeição’). De nat. m at. c. 3 (V 201 M and.): ‘...in eis (scil. formis separatis)

to t sunt species quot sunt individua’ ( ‘nelas (a saber, nas formas separadas), tantas são as

espécies quantos são os indivíduos’). D e ente et essentia c. 5 (I 156s. M and.): non oportet

quod inveniantur plura individua unius speciei in illís (scil. sine matéria) substantiis: sed

quotquot sunt individua tot sunt species ut Avicena dicit expresse’ (n ã o é preciso que se

encontrem muitos indivíduos de um a só espécie nessas substâncias (a saber, nas substâncias

sem m atéria): mas todos os que são indivíduos são espécies, do mesmo modo que Avicena

expressamente afirmava'). Cf. D uhem , op. cit. V (Paris 1917) 539-559; Siriano In M etaph. B

1, 9 9 6 a l (9, 3 0 K roll). -P a ra a relação entre estrelas e anjos, cf. tam bém D . Stim son, T h e

G radual A cieptance o f the Copernican T h eory o f the Universe (N ew York 1917) 18 n. 2, a citar

Filástrio, D e haer. c . 133 (P L 12, 1265A) e a nota de Fabrício ad loc. reimpressa em M igne;

tam bém João Escoto, D e àiv. nat. I I 23 (P L 122, 574B ).

41 Cf. Ross, A rist. M etaph. cxl; M etafísica A 2 8 ,1024b8; Z 1 2 ,1038a6; I 8 , 1058a23; Cherniss,

op. cit. (n. 20 supra) 174 n. 98.

42 M etafísica B 3, 999a6 ; Ética nicom aquéia A 6 , 1096al7 ; Ética eudêm ia A 8 , 1218al; Política F

1 , 1275a34; De an im a B 3, 414b21; V er também Ross, op. cit. I 2 37 e (sobre a importância

de tal doutrina para Platão) H . Gom perz, ‘Platos Parmenides’, T h e Personalist 1941, p.

258 n. 7. Em um a passagem como M etafísica A 2 8 ,1024a36, onde èmiTeSov ( ‘superfície’) e

64 | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 75: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

(VilttW) flínuieiiommadosY^wíç cm relaçíiõadífereneesíiTÍmfia (‘superfídes’) UTí|n i< fVílMíif)’)/ Aristóteles parece pensar em, diferenças qualitativas (ceeilíneo, eum - ;*^H) <t Imiiium'kiíit il fíren tkesp ee ifm e .

fMftti/iiiiii A 11, 101931. Cf. Física © 7, 260b l8 e Rohm, op. cit. (n. 38 supra) 612-626 , kffiii/Miii A H) 1071 bh ò ri. |j.èv o&v d o lv oò aía i Kal toútw v ú - j irpÚTri Kal Sfeirrépa

*fN frt H|i* u fm V T á |u / t o í s <|)Opdíç tú v âoT ptú v , fy a v ep ô v ( e evidente que existem- fHtM’*' ÍM (si li. oo motores imóveis) e, dessas, um a primeira e um a segunda, de acordo com

* I tttMiiM niilem das revoluções dos astros').® Ir») lijfrai’íjuicamente ordenadas form am um gênero? -essa é um a das questões cru-

f til M. Adler, P rob lem sfor T hom ists (N ew York 1940) e em seu artigo 'Solution of

>||* Mm ihlpin «I Species’, T h e T b om ist 3 (1941) 279-379 (a m im disponível por cortesia do

WltMi). ei i.i que, propondo essa questão, Adler revive, de modo não premeditado, o

|*t*ií tltiiw subjacente às opiniões acim a discutidas de Platão e Aristóteles em lógica.

^ I W i t! que essa interpretação é semelhante àquela oferecida por Tom ás de A quino e Ps.-

I >uiw ík ot, Bste último escreve, em seu comentário à M etafísica de Aristóteles (X I I , II, c.

V|* 'Potiiiet enim forsan aliquis dicere, quod sunt plures alii mundi, in quorum quolibet

*tmi pilim), et to t sphaerae et m otus, sicut et in isto et ideo oportet ponere plure imma-

ii't lillí'fi (Utbstantias. H o c ergo excludens d icit: “Q uod autem sit unum coelum tantum

iii«tl)ilt*!inim est. S i enim essent plures coeli”, supple numero et in eadem specie, "ut” sunt

pIlllCH "homines”, sequitur quod “principium”, suppleprim um etim m obíle, quod esset “circa

illl(imt|Uodque" primum coelum, fieret “unum specie, numero vero multa", íta quod essent

pllliy prima principia secundum numerum comm unicantia in una specie, quod ostendit

* lirir Impossibile dicens: “Sed quaecunque sunt multa numero", et supple unum specie,

"I nibent materiam”...' ( ‘Talvez alguém pudesse dizer que são muitos os outros mundos, em

1 jlil* existem, de qualquer modo, muitas coisas, e que são tantas as esferas e os movimentos,

tlfiíiíni- como, ademais, que neste e naquele mundo é preciso supor muitas substâncias ima-

leri.lis, Ele afirma, excluindo <tal interpretacão>, isto: “é nitidamente manifesto que existe

apenas um céu. Se existissem m uitos céus”, em número e em espécie, “do mesmo modo

que" existem m uitos “homens”, segue-se que o “princípio" prim eiro e imóvel, que existe

"relativamente a cada” primeiro céu, é “um em espécie, mas, em verdade, são muitos em

número” <e>, destarte, que são muitos, em número, os prim eiros princípios, participantes

tle uma só espécie, e evidencia-se que é impossível dizer: “mas o que quer que sqam muitos

em número”, mas apenas um em espécie, "possui matéria"...’). O comentário de Santo Tomás

ud loc. (2593-5 Catala2) é praticamente idêntico; um a nota adicional no Ps.-D uns Scot é,

portanto, ainda mais interessante: A liqui pervertentes sensum literae (!Alguns que pervertem o

sentido literal) , diz ele, sustentam, baseados nessa passagem aristotélica, que a matéria é causa

individuationis. O aliqui refere-se, é óbvio, a Santo Tom ás, e a nota é mais um a contribuição

à controvérsia m atéria vs. haecceitas como princípio de individuação. Cf. D u ns Sco t em seu

comentário In I I sent. dist. 3, q. 7; tam bém Sharp, op. cit. (n. 39) 380s.

17 D o ponto de vista do contexto, do mesmo m odo a passagem 1074a31-38 liga-se, de modo

sereno e inquestionável, com o que a precede: TeXos ... Tráaqs 4>opâs tü v c(>epo|J.évci)v

t i 0eíwv ctü)|icíto)v Korrà tò v oíipauóv, õ t i 8è e is oíipavós, fy a v e p ò v ( ‘o fim de todo

Philip Merlan |

Page 76: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

movimento dos <corpos> movidos é um dos corpos celeste divíaos. E é evidente queexiste apenas um céu').

48 É altamente significativo que essa crítica da mitologia tradicional faça objeções a seu antropomorfismo, mas não a seu politeísmo. Mesmo Santo Tomás ad loc. (2597 Catala3) parece não estar tão seguro do monoteísmo de Aristóteles.

49 À parte, é óbvio, o conhecido erro cometido por Aristóteles ao calcular o número das esferas.50 Sobre a solução como um todo, cf. H . v. Arnim, 'Die Entstehung der Gotteslehre des

Aristóteles’, Sitzungsberichte der Akademie der Wissenschaften in Wien, Phil.-hist, Klasse 212 (1931) 7255. As objeções de Arnim contra uma interpretação semelhante à apresentada neste artigo não são de todo convincentes.

51’Ett€i 8’ vpav Tpeis oíoíai, 8ío p.èv ai (j>wiKCtí, pia 8’ r| àKÍvr)Tos, Trepl Taúrr|s Xeicreov õti àváyKr\ eiv a i aíSiov Tiva oímav òkívt|tov (‘Uma vez que eram três as entidades, duas naturais e uma imóvel, deve-se dizer desta última que é necessário que uma entidade imóvel seja eterna'). Porque owríai TTpõrai t&v õvtwv, Kal el uâcrca cjjGapraí, Trávra (JrôapTá (se todas as entidades primeiras entre os entes se degeneram, tudo se degenera'). Mas àôúiwov ú.vr\üiv ... <()9apí]vca (‘é impossível que o movimento se degenere' -até este ponto Aristóteles provou que uma entidade eterna tem de existir). Ademais, oteèv õcj>eXos ... èàv oíoías Troifp-wiiev àiôtovs, wcnrep oí r à eíSr), eí jití t is 8wap.éur) evécrrai ápxT) (ieTapáXXeiv ... Ov toívw otò’ avn\ imvr\, o tò’ aXXr\ o iu ía mapa tò êiôti ... eí |xr| èvepyricxei ... "Eti oí)8’ el evepyricreL, f| 8’ ouaía aírrrjs 8wa|iis. Aei âpa eivai àpxTF TOLa{irr|v f|s r) oíxjía èvépyeia ('<não há> nenhuma vantagem... em criarmos entidades eternas, como os que postulam as Formas, se não houver nelas um princípio capaz de pôr em movimento... Não seria, pois, suficiente, nem outra entidade (p.e. matemática) além das formas... se <esta> não estiver em ato... Ademais, nem mesmo se se atualizar, mas a essência [da entidade eterna buscada] for potência. Deve, portanto, existir um princípio cuja essência seja a atualidade).

526tl toívuv Taírras ôel tò s oiwías (plural!) eivai âveu íjXtis' aiSíous yàp 8ei (elirep ye Kal âXXo t i àíSiov). 'EvepyeLai (cf. o aparato de Ross) ãpa. (portanto, estas entida­des devem ser sem matéria, pois devem ser eternas - pelo menos se é verdade que há algo outro eterno. Por conseguinte, são atualidades’.) Cf. n. 53.

521 Qual é a âXXr) oixría TTapà r à ei8r| (a outra entidade além das formas’)? A alma? Os objetos matemáticos? Sobre esse problema, ver Cherniss, op. cit. 391 n. 311. Para mim, o plural o iv í a ç em 1071b21 parece provar que se visa a estes últimos.Tal pluralidade parece ser imaginada pelo menos como possível também em A 5 ,1015bl4,

e, particularmente, em E 1, 1026al6: a Teologia lida com x^PLOTa Kal <XKÍVT|Ta (coisas separadas e imóveis') e áí8ia (coisas eternas -plural!) e Tdvra ... a m a toIs 4>avepoiS twv Geíwv (essas... <são> as causas dos <entes> divinos manifestos’, os corpos celestes). A fim de manter a sua interpretação monoteísta, Arnim (op. cit. 59) é obrigado a afirmar que é espúria a sentença inteira de ctl t o Í v w a 'Evépyeiai apa (cf. n. 52). Cf. v. Arnim, ‘Eudemische Ethik und Metaphysik’, Sitzungsber. Akad. Wien, Phil.-hist. Kl. 207 (1928) 36; Jaeger, op. cit. 217; Cherniss, op. cit. 593-95.

54 Ross, op. cit. II 371. Se essa interpretação é correta, a passagem parece implicar que Aristó-

£ | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 77: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Mm i t i tmlteda peta menos dois príndpioa diferentes de movímenco! um, responsável pelo IMHHiiinilo do Primeiro Céu; o outro, pelo movimento do sol. Pode valer a pena notar quei i (n de Platão entre os dois tipos de movimento ( Tim eu 36c) -um , caracterizado pela

Mmi|ili|,uli* e relacionado ao movimento do céu mais externo; o outro, caracterizado pela

Alit I ítliitk* e concernente aos movimentos dos p lanetas- form a uma contraparte digna de

f<i i) t iV( («lavras de Aristóteles. U m a outra explicação da passagem aristotélica encontra-se

hi| v, A m im , ’Die Entstehung...' 59 -62 ; ‘Eudemische Ethik...' 43-47.

1 >r I 9, 279a l8 (tradução da Oxford, ligeiramente modificada).

I lh íl Hkvm aquéia X 8, 1178b7 (tradução da O xford). Aqui, onde ‘Deus' e 'deuses' se alter-

it llM, Dada indica que Aristóteles fosse menos entusiástico relativamente à vida de muitos

tlniíWi do que em relaçáo à vida contemplativa do D eus único.

1 Ah palavras à|iepíis Kal à S ia íp e ro s (sem partes e indivisível’, 1073a6) certam ente não

il implicam de modo algum. Q uando se alega que a alma' é essencialmente simples e ia -

ilívítllvel, não se pretende deixar implícito que e x is t e a p e n a s uma alm a em existência. O

íftyiílilíeado é o d e q u e essas propriedades podem ser predicadas de toda e qualquer alma.

I í, do mesmo modo, a alegação de que a 'entidade imóvel’ é sem partes e indivisível encon-

I l',l -se longe de deixar implícita qualquer asserção a respeito do número de tais entidades

(nota do prof. G om perz). .1,111 B la s s -pod e valer a pena no tar- em Aristotelisches’, R heinisches M useum 30 (1875) 481ss.,

486s. e 493, sustentou, com efeito, que toda a seção 1073a3-1074bl4 era um a adição

posterior, inserida pelo próprio Aristóteles, mas originalm ente fazendo parte de um a ou-

t ra discussão. Assim, o olitol em 1074b3 tinha um a referência definida em seu contexto

original, ao passo que agora parece flutuar no ar. A lém disso, entretanto, a própria seção

inserida era interrompida por um a outra inserção: 1073b38-1074a38 (a seção a corrigir as

figuras de Eudoxo). Blass baseou a sua teoria na sua observação dos hiatos. N ão há hiato

em 1073a3-b38, ao passo que os mesmos são abundantes em 1073b38-1074a38, novamente

desaparecendo em 1074a38-bl4. O ra, mesmo de acordo com essa teoria, a passagem m o­

noteísta’ 1074a31-38 teria feito parte da seção mais abrangente 1073a3-1074bl4 antes que

a mesma fosse incorporada a M etafísica A e, conseqüentemente, não poderia ter sido escrita

com o propósito de criticar a pluralidade dos motores. M as mesmo se pudesse ser provado

que ela é, afinal de contas, um a adição posterior, ela poderia ter sido inserida apenas a f im

de suplementar e complementar a prova de que o n ú m e r o d e m o to r e s im ó v e is não pode ser

m aior do q u e 47 ou 55 -u m a prova que, de outro modo, teria permanecido incompleta.

59 Tò TrpfiTov ('o Prim eiro’) aplica-se igualmente bem a um motor e a diversos; o ponto é

apenas que o Prim eiro não pode provir de contrários.

60 E l 8 ’ éaT ai Tà elôr| r| àpiÔ|ioí ( 'Se existirem as Formas ou [ou explicativo] os N úm eros)

m a . omnes.

61 Críticas 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 16, 18 referem-se em parte a opiniões não-platônícas, em

parte a doutrinas platônicas (não só de Platão), não tendo senão pouco a ver com a pre­

sente investigação.

62 Sobre essaàvayw yn (redução’), ver e.g. M etafísica T 2 , 1004b33; K 2, 1061al0.

63 M etafísica A 4, 1070a31; 1070b9-22; 26 -3 0 ; 5, 1 0 7 1 a 3 -ll ; 19-24 (princípios comuns p e r

Philip Merlan | fiy

Page 78: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

«mlogiam). O outro caso de princípios comuns (o que é princípio de uma owría também é princípio de seus acidentes): 5 , 1070b36-1071a3; 1071a34.

64 M etafísica A 4 , 1070b34s.; 5 ,1071a36.65 M etafísica A 1 0 ,1075b22; N 2 , 1088bl4-28.66 C f M etafísica B 1, 995b8; T 2, 1003bl7.67 M etafísica A 1, 982b9.68 M etafísica A 8, 989b24-990a7. Cf. n. 11 supra.

69 M etafísica A 6, 987bl85.70 Sobre a equação elementos = princípios = causas, ver H. Diels, Elem entum (Leipzig 1899)

22, 31, 345. Sobre a diferença, ver M etafísica A 4, 1070b22: todo CTToixeíov (‘elemento’) é ttpX1! (‘princípio’) e aÍTiov (‘causa’), mas, uma vez que é sempre uma â-px l °u um arriov imanerite (um àvuTTápxov), o OTOixeíov nunca pode ser uma àpxií ou um am ov no sentido de um Kivoíiv (‘motor’). A 1, 1013a21 e bl8 e A c. 3 são irrelevantes no presente contexto. Os contrários de Platão, i.e. o Grande-e-Pequeno, são descritos não apenas como oroixeia, mas também como àpxaí e aÍTia; M etafísica A 9 ,992bl8-993al0; A 4 ,1070a34; bl-35; 5, 1071a24 e 30; M 9, 1086a28; 10, 1086b20; N 2, 1088bl5; 285.; 34; 4, 1091a31; b3; 21; 24; 31; 1092a7.

71 M etafísica A 6 ,987bl4-988al5. trapà r à ala0TiTà Kal rà eí8r| Ta p,a0T||iaTiK:à tüv npay- (iárwv eivai <{>T|aí p.eTa£ú ... 'Ettêi 8’ a m a rà et8r) toTs aXXois, T Ò K eív w CTTOixeía návTtív (I)fj0ri tov õvtcov eivai a r o ix é ia . &S M-èv o w ü\r|v tò péya kol tò (iiKpòv eivai ápxás, <Ls 8’ owíav tò ív ... ”Eti ... Tr|v toü ev Kal raicus arríav tòís CTToixelois àrréSwKev ('[Platão] dizia que existem, além dos <objetos> sensíveis e das formas, os objetos matemáticos <enquanto> intermediários... Uma vez que as formas são as causas de todas as outras coisas, ele julgava que os elementos destas são os elementos de todos os entes. Grande-e-Pequeno são causas a título de matéria; o Um, a título de entidade... Ademais,... ele atribuiu a causa do Bem e do Mal aos elementos’). Cf. A 9, 992al0 (oiiaías àváyeiv eis tÒs àpxás referir as entidades às causas’); B 1, 996a2; 4, 1000a5 e 20.

72 E.g. todos os argumentos que atacam o reconhecimento de formas e/ou objetos mate­

máticos subsistentes carecem de im portância no presente contexto e, do mesmo modo,

os argumentos que se referem à questão relativa a se os princípios (elementos, causas) das

formas são concretos ou gerais. Para a relação entre A e N , t f Jaeger, op. cit. 22355.

73 M ais abaixo ver-se-á por que apenas esses dois são mencionados.

74 M etafísica N 1 , 1087a29-b4 (cf. supra, crítica 1).

75 M etafísica N 1 ,1087b4-33 (cf. crítica 2).76 M etafísica N 1 , 1087b33-1088a8.77 M etafísica N 2 ,1088bl4-28 (cf. crítica 19).78 Cf. críticas 10 e 11, e Física A 3 , 187a7.79 M etafísica N 2 , 1088b35-1089a6. Cf. críticas 10 e 11.

791 M etafísica N 2 , 1089a7.80 M etafísica N 2 , 1090a4-15: ox tâev òs ... oírre 4>r|cjlv ò Xéycov a irrò v [scil. na0r||j.aTiKÒv

àpi9[ióv] <a’ÍTiov segundo Jaeger> elvaL. ('Q uem diz que o número matemático existe não

sustenta que é causa de algo.')

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 79: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

*' Aítíii/níií» N 1 ,1090a2S»28.* ' Mi-fil/hh ii N \ I090bl6*20 (cf. supra, critica 21), Uma comparação dessa passagem com Z

J. II) 'Htól t» A 10, 1076al tom a claro que é Espeusipo que é atacado nas três passagens.

NmIhi' tifí esferas do ser de Espeusipo, ver Frank, op. cit. (n. 36 supra) 245-261.

* ' i / M vtíijlska A 9, 991B29; N 3 , 1090b30-32.

l f M eta fk k o M 9 , 1085a9-14; 31-35; N 3 , 1090b37 .N o domínio das magnitudes espaciais,

ii I .ttll^O^Curco, o Largo-e-Estreito e o Alto-e-Baixo representam form as específicas do

( íi tlllil(*’t'«Pequeno; o Um, nesse domínio, é representado pelo ponto.

" ' M tiu/M aí N 3 , 1090b32-1091a5.

"" M cnifisim M 1, 1076al9 ; 9 , 1086a26; N 1 , 1087a30; 2, 1090a3-4; 19; 3 , 1090b20.

" Metuflsiea M 9 , 1086a26.

"" M etufkwa N 2 , 1088bl4.1,111 íyhrni, op. cit. V 355. Alberto, o Grande, e H enrique de G hent, de qualquer modo, per-

i ('bemm claramente o politeísmo de Aristóteles; ver S . Talam o, Laristotelism o delia scolastica

(lt*iwira edição Siena 1881) 162ss.; cf. Ph. Boehner, ‘D er Aristotelism us im M ittelalter,

1'VliHZtskanische Studkn 2 2 (1935) 338-347, especialmente 340 n . 4 . 0 Ps.-D uns Scot, em seu

comentário In M etaph. (loc. cit.), afirm a; philosophus videtur aperte consentire opinioni,

C|t we dicebat omnes substantias immateríales esse Deos..;’ ( vé-se que o filósofo abertamente

consente com a opinião que diz que todas as substâncias imateriais são Deuses...’). Para

H.mto Tom ás, ver n. 4 8 supra.

1,(11 )uhem, op. cit. V 548.

1.11.1 Cf D e generatione et corruptione I I 10, 337a20-22.

1.1 l'f. E . Renan, Averroès et l’A verroism e (quarta edição Paris 1882) 118.

Í!> l3,, com respeito a isso, a sua posição parece refletir a atitude da m entalidade grega em

geral. Estou em dívida para com o prof. G om perz pela seguinte citação de E . Meyer,

G eschichte des A ltertum s I I (S tu ttg art 1893) 769 ; ‘In G riechenland spielt die Frage be-

züglich eines oder mehrerer G õ tter kaum irgend eine Rolle. O b die gõttliche M acht ais

eine E inheit oder M ehrheit gedacht wird, ist belanglos im Vergleiche zu der Frage, ob

sie überhaupt existiert und wie ihre N atu r und Beziehung zur W e lt verstanden werden

muss.’ (‘N a Grécia, a pergunta relativa a um ou muitos Deuses não tinha nenhum papel. E

sem importância se o poder divino é pensado como um a unidade ou um a pluralidade, em

comparação com a pergunta relativa a se ele, em geral, existe, e com o deve ser entendida

a natureza e a relação dele com o mundo.’) Exceções, é óbvio, são sempre possíveis. U m a

delas é representada por Filodem o, que (De pietate 17-19, pp. 84 -8 6 G om p.) sustenta que

o monoteísmo é ateu e que apenas os politeístas são verdadeiramente pios. M ais tarde

C elso (Orígenes, C on tra Celsum V I I I 11; 25) atacará o ateísmo do m onoteísm o judeu.

Jaeger afirm ou (‘G reeks and Jews’, T h e Jou rn a l o fR elig ion 18 [1938] 127-143) que H ecateu

de Abdera, o prim eiro autor grego a mencionar os judeus, deve ter sido atraído por seu

m onoteísm o; e que Teofrasto deve ter considerado os judeus uma nação filosófica por

causa de seu m onoteísmo. M as mesmo se não assumirmos, com J . Bidez e F. Cum ont,

L es m ages hellenisés (Paris 1938) 240-242 , que H ecateu, em dívida para com D em ócrito

ou Leucipo, tenha sido por completo um esprit libre, tem os de conceder a possibilidade

Philip Merlan j faj

Page 80: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

de que ele tenha ficado, talvez, mais chocado que atraído pelo monoteísmo judeu. Pd» modo de vida áTrávSpomos (afastado dos homens’) e pA0ÔÇevos ('hostil a estrangeiros') mosaico (FGrHist. 1 F6), ele não tem senão pequena simpatia.

93 Física 0 6, 259a6-20.94 Fr. 80 Mullach (p. 105,5 Spengel): 8eí£as TrpwTOjv, õti ecrri K Ívrpiç áeí ... êItü é<t>eÇf|S,

Seiras, Õti tò rrpcÓTuv kivoüv « Ka0’ èKàcrrr|v kívt|Ctiv », ú? ó Euôr|(xos ttpocttí0t|ctiv, àKÍvr|Tov eivai xpTl Kal Ka0’ aírrò Kal K arà ca>|J.p€Pr]KÓs... (‘demonstrou-se primeira­mente... que o movimento sempre existe... Imediatamente a seguir, demonstrou-se que o Primeiro Motor, “segundo cada movimento”, como estabelece Eudemo, tem de ser imóvel tanto essencial quanto incidentalmente...’).

95 Mia (um ), em passagens como 259al9, obviamente significa pia Kal r| aírrr| (‘um só e mesmo’), não ‘o único’. Cf, Física 0 7, 260a26.

96 Op. cit. 357-367.97 Física 0 6, 259b25: òkívtitov Kal [pr|J kotò auppefSriKÓS'. (‘imóvel e [não] incidental­

mente’).98 Cf. Guthrie, ‘The Development’ (n. 8 supra) p. 91 n.: ‘In so far as the possibility of more

than one unmoved mover has occurred to Aristotle [scií. in Pbysics 0 6], it has presented itself in the form of a succession of movers, not a coexisting plurality like that described in M etaphysics A. The argument for unity which is based on the continuity of motion could only be valid against the conception of a series of movers succeeding one another in time...’ (‘Mesmo que a possibilidade de mais de um motor imóvel tivesse ocorrido a Aristóteles [scil. em Física 0 6], a mesma se apresentaria sob a forma de uma sucessáo de motores, não uma pluralidade coexistente como a descrita em M etafísica A. O argumento em favor da unidade baseado na continuidade do movimento poderia ser válido apenas em face da concepção de uma série de motores a suceder um ao outro no tempo...’).

99 Por conveniência citarei as passagens decisivas desse capítulo, incluindo entre colchetes du­plos as palavras que, de acordo com Jaeger, são inserções posteriores : ’EiTel 8è Sei KÍvr|aiv àel eivai ... àváyicr] el vai t i àí8iov õ Trpdrrov Kivel, [[eÍTe êv eÍTe uAeíw]], Kal tò TTpSrrov kivow (xkívt|tov ... Eijrep ow àíSios t) kÍvtictis, àíSiov Kal tò kivow êcrrai upârrov, [[ei ê v el 8è uXeíw, uXeíco tò àíSia. êv 8è pâXXov f) iroXXá...]] 'iKavòv 8è Kal êv, ô TrpiüTov tov àKiviyr(uv àíSiov òv éarai àpxfi to is aXXois Kivrçaetós... (‘Uma vez que o movimento tem de existir sempre, é necessário que seja algo eterno o que por primeiro move, [[quer seja um, quer sejam muitos]], e que seja imóvel o primeiro motor... Se, então, o movimento é eterno, também o primeiro motor será eterno, [[se é um; se, porém, são muitos, serão muitos os movimentos eternos. Mas é mais provável ser um que muitos...]] E é suficiente assumir um, o primeiro entre os imóveis, que, sendo eterno, será princípio para os outros movimentos...)

Oavepòv 8e Kal èk ToOSe õti àváyvzr] eívaí t i êv Kal àíSiov tò irpÔTOV kivow. ôéSeiKTaL yàp õti àváyicr| àel kívticjiv eivai, el Se áeí, àváyKT) awexT) eivar Kal yàp tò àel cruvexés, tò 8’ èc|>eí;fjs ov avvexés. àXXà p.T|v eiye awexns, |xía* pia 8’, T) íxj>’ évós Te toü kivowtos Kal kv òs to v Kivoupévoir ei yàp ãXXo Kal aXXo Kiviíaei, ov CTWexf| õXr| KÍvrpLS, àXX’ è^e^íjs... (’E é evidente, a partir disso, que é necessário

jq | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 81: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

q«»- «< |« iim-iro motor seja algo óafco e eterno. Pois provou-se que é ncemário que haja iniijttt imwlmmfo. Se sempre existe movimento, ê necessário que seja contínuo, pois © ijiit- «t iMpie rxiste é contínuo, e o que é sucessivo nâo é contínuo. Não obstante, se é con- fltiiiH f um, e é um se o motor é um e o movido é um, pois, se um e outro se modificam, m tmiWHifnio como vim todo não é contínuo, mas sucessivo...').

t í (|i)f segue descreve as almas como motores (relativamente) imóveis; as mesmas sáo HHH itliiM iwml: <rU|j,|3iE|3r]KÓs ('incidentalmente'). Conformemente, o movimento dos seus i mi j k in ê tlrscoMÍnuo. Mas: Eí-rrep àvóyicri auvexâs eívai KÍvricni', elvaí t i ôel t ò Trpíjrov

íW p h t o v , Kal [|xr|] KaTà <ru|j.fiepr|KÓs ... [[Ovk êcm ôè t ò aírrò t ò Kivelaôai í> i M tl (n n ijk ^kòs { $ ’ aírroO, Kal ix|>’ éTépou. t ò |i.èv yàp íx|)’ ÉTépou ínrápxei Kal tG v

í* !* m a is àpxcâs, õaa TrXeíous (J>épeTai cfcopás, GÓTepov Sè t o 'l s ^OapTols|H II'dl'. 11 (’Se é necessário que haja movimento contínuo, tem de ser algo imóvel o primeiro motor, e (não] incidentalmente... [[Não é, porém, o mesmo ser movido incidentalmente |iOl til mesmo e por um outro. Pois o ser movido por um outro ocorre também a certos (ii hidpios celestes, tantos princípios quantos sofrem diversas revoluções, mas o outro ocorre

t(|H’i*;is aos perecíveis]]’). D e acordo com Ross, Physics 102, apenas a passagem final é uma

.((líçao posterior.

11111 Rira o autor deste artigo, resultou em intensa satisfação descobrir que a sua avaliação

tio suposto monoteísmo de Aristóteles, mesmo que exclusivamente baseada em conside-

i.i^Oi-s de caráter filológico, encontra-se em pleno acordo com a opinião expressa por É.

í iílson, Lesprit d e la philosophie m édíévale I (Paris 1932), esp. pp. 48s„ 5 3 ,2 2 6 n. 6 e 230 n. 13.

t Silson convincentemente m ostra que seria inútil procurar por um monoteísmo explícito

fiu Aristóteles e que a sua teologia representa, na m elhor das hipóteses, um passo semi­

consciente na direção dessa doutrina. M . de Corte, 'La définition aristotelicienne de 1’âme’,

Révue thomiste 1939, pp, 460 -5 0 8 , defende um a solução mais ou menos semelhante àquela

proposta por Z eller: m otores são almas e, portanto, diferem necessariamente do primeiro

motor, que não é um a alma. N ão seria essa um a interpretação que mais pressupõe que

prova o monoteísmo de A ristóteles?

1111 Sobre o monoteísmo de Platão, ver Ross, A ristotles Physics 100s.; F. M . C om ford, 'T h e

"Polytheism" o f Plato’, M in d 4 7 (1938) 321-330; A . E . Taylor, 'T h e “Polytheism" o f Plato’,

ibid. 180-199; Solm sen, op. cit. (n. 22) 70.

102 Vale a pena notar que R . K . H ack, G od in G reek Philosophy to the T im e o f Plato (Princeton

1931), esp. p. 149, tam bém chegou ao conceito de um politeísmo não-antropomórfico.

105 D uas tentativas de ligar as teorias teológica e política de Aristóteles devem ser mencio­

nadas: Erik Peterson, D e r M onotheism us ais politisches Prohlem (Leipzig 1935) 14s.; H ans

Kelsen, 'T h e Philosophy o f Aristotle and the Hellenic-M acedonian Policy, International

Jou rn al o fE th ics 47 (1937) 1-64.

Philip Merlan |

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A PRIM EIRA D O U TR IN A DA SUBSTÂN CIA: A SU BSTÂN CIA SEG U N D O A R ISTÓ TELES

Suzanne Mansion

A idéia de substância ocupa um grande lugar na história da filosofia. To- i Ih*! m grandes sistemas clássicos propuseram uma definição de substância. M.lfi o acordo está longe de ser feito acerca da significação a ser dada a esta iini,.in, Certos filósofos modernos negam a existência da substância e pensam

uma concepção de universo, que dá lugar a uma realidade deste gênero, i cm lira de uma imaginação coisificada de nível infra-metafísico. Para outros,i Hino os idealistas, a idéia de substância parece não ter sentido. Outros ainda .ulinitem a substância em seu sistema, mas não concordam quando se trata dt* d izer com precisão o que ela é.

Quando se quer remontar até a origem da idéia de substância, encontra-se, por conseqüência, uma particular dificuldade para compreender a realidade

tjue se oculta sob este nome.A situação é completamente outra aqui se se quisesse, por exemplo, estudar

,i evolução da teoria do conhecimento. O conhecimento é um fato que não se pode negar sem se interditar de proferir uma única palavra. Ele constitui um ponto de partida comum a todos os pensadores, qualquer que seja a inter­pretação que eles dêem ulteriormente deste fato. A substância, ao contrário, é, se nós podemos dizer, uma conclusão metafísica. A reflexão levou alguns filósofos a admitir a existência de uma realidade, que eles caracterizaram de tal e tal maneira e que chamaram de “substância”. Se quisermos, então, tentar compreender esta realidade, sem idéia preconcebida, é somente a palavra “subs­tância” que se deve tomar como ponto de partida. Será necessário remontar na história dos sistemas até o momento no qual, pela primeira vez, se atribuiu a esta palavra uma significação técnica na filosofia. No dia, com efeito, no qual. a palavra “substância" assumiu um sentido preciso, pode-se dizer que um novo problema filosófico nasceu, que necessitava para a sua solução o emprego de um conceito novo designado por este nome.

Suzanne Mansion |

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Após haver estudado a primeira teoria elaborada da substância, pode ser interessante reencontrar prefigurações dela nos sistemas anteriores, mas este trabalho é necessariamente posterior ao primeiro, já que depende da concepção que se fará da substância, de acordo com a doutrina que, pela primeira vez, fez um uso consciente desta noção.

Nós não nos ocuparemos aqui com este aspecto da questão; procuraremos somente determinar em qual momento começou-se a falar da substância e qual foi o sentido filosófico dado a esta palavra.

Quando nos entregamos a esta investigação, percebemos facilmente que é necessário remontar à palavra “substância”, que deriva do latim “substantia”, empregada pelos filósofos da idade média; e que a própria palavra “substan­tia” é uma tradução do termo grego "oíxjía”1. “Substantia” não é, de resto, a tradução literal de ouaüx2. Esta foi antes “essentia”, pois “ououx” é o substantivo abstrato que deriva de “elvca”. Mas é fato que a palavra traduzida no latim por “substantia", pelo menos na Idade Média, é “oÍ xjloc”

A primeira questão é, portanto, saber em qual momento da filosofia grega “oíoía” tomou um sentido técnico suficientemente determinado. Ora, é possível mostrar, de maneira bem fácil, que é com Aristóteles que ela se produziu.

Por um lado, com efeito, existe em Aristóteles uma teoria da oíxsía. A oíoía é, para ele, um conceito filosófico preciso: nossa exposição vai tentar mostrá-lo. Por outro, esta mesma noção não tem antes dele um conteúdo bem definido. Um exame, mesmo superficial, da linguagem de Platão o demonstra. As pas­sagens dos Diálogos nas quais se encontra a palavra "otaux" são perfeitamente compreensíveis se nos lembrarmos do parentesco do termo com o verbo “elim” Assim, deve-se traduzir “o u ju x ” ora por “realidade”, ora por “existência”, ora por “essência”, “o que é uma coisa”. A oòaux é, por exemplo, o ser, a realidade verdadeira,

oposta ao fluxo das coisas mutáveis, é o ser em oposição ao vir-a-ser, ou bem a totalidade do real, ou, ao contrário, o elemento que compõe uma realidade. Oíoía é sempre o ser, mas com algumas nuanças especiais, conforme seja encarada como natureza, como existente, como conjunto ou como parte constitutiva daquilo que é, como realidade estável etc. 5

Em Aristóteles, ao contrário, “oínía" tem, em muitos casos pelo menos, um sentido bem preciso e mais restrito. Esta palavra não significa mais simples­mente o ser, mas uma espécie de seres, um gênero do ser, o primeiro e o mais

74 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 85: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

«ii MHtf de eecbs, como veremos. Nâo é que 0 discípulo de Platão peto de : VÍMo < * Midi ido 1 fetal do termo. A significação mais primitiva e mais geral que IP íhi*' ,1 "otería" é aquela de: realidade verdadeira, de ser no sentido forte, "daquilo (jMt* t Whludtimmente 0 real". Mas, diferentemente de sen mestre, Aristóteles |(t ihfi O nome de “ofeia” somente a uma categoria de coisas, distinguída no iWii du próprio real. Ele separa nos seres aquilo que é substância daquilo que iiiln c | íoi meio de uma definição que fixa os caracteres próprios dela.

I '.M d o justo dizer, portanto, que a noção de substância nasceu com Aris- ft*tl e é esta primeira tentativa de definição da substância que vamos tentar ditiiltan

1 }m múltiplos lugares da obra do Estagirita encontram-se indicações a res- }<t‘ilO da ofjoía, mas a questão é principalmente abordada na Metafísica e nas I íiifcijorias, além de um texto importante dos Segundos Analíticos.

ii inútil lembrar aqui o espantoso destino do Tratado das Categorias. Várias comentada na antigüidade, esta obra é uma das únicas de Aristóteles

ijOi* foi conhecida por toda a Idade Média, graças à tradução latina feita porI Sumo. Como fazia parte dos escritos lógicos de Aristóteles (Organon), nos habituamos a estudar o problema das categorias ou da predicação em lógica.1 íhI. i a Idade Média distinguiu, depois do Filósofo, dez “gêneros supremos” do

(R*r: a substância, ela mesma dividida em primeira e segunda, e os nove acidentes (qualidade, quantidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, posição, posse). Ainda hoje, muitos manuais de lógica tradicional abordam a questão das ca­tegorias e reproduzem fielmente a doutrina atribuída a Aristóteles.

Pareceria natural, portanto, dirigir-se ao livro das Categorias para abordar o estudo da substância aristotélica. Este pequeno tratado, de estilo escolar, tem chance de representar o pensamento de seu autor sob sua mais simples forma; e a abundância de comentários tem a natureza de facilitar a sua interpretação.

Infelizmente, não podemos mais ter a mesma confiança que os antigos na autenticidade das Categorias. Este tratado não foi contestado na Antigüidade4, menos ainda na Idade Média. Mas a crítica moderna mostrou-se severa com respeito a este opúsculo. Espera-se ainda, é verdade, a prova irrefutável de sua inautenticidade, mas as razões que se apresentam parecem sérias, Elas provêm tanto do estilo e do vocabulário da obra quanto de certos pontos da doutrina que nela se encontram desenvolvidos5.

Suzanne Mansion |

Page 86: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Ora, uma destas particularidades da doutrina, raramente posta em relevo,

aliás, concerne precisamente ao nosso assunto. As Categorias dão da substâiv cia uma definição diversa daquela que se encontra geralmente alhures e esta definição não se encontra em outros lugares da obra do Estagirita. Isto cria/ evidentemente, uma dificuldade àquele que quer empreender o estudo da substância em Aristóteles. Não se pode dar conta da lição das Categorias a.o mesmo título que da das obras seguramente compostas pelo Estagirita. É o conteúdo destes que se deverá examinar em primeiro lugar. Quando se tiver uma idéia suficientemente clara da substância de acordo com um Aristóteles seguramente autêntico, poder-se-á comparar com proveito esta concepção com aquela que se exprime nas Categorias e apreciar as diferenças que as separam. Esta comparação fornecerá um elemento, senão decisivo, pelo menos impor­tante no debate sobre a paternidade das Categorias,

A exposição que vamos ler começará, portanto, por ignorar deliberada­mente a obra lógica suspeita e se apoiará sobre os textos sólidos da Metafísica e dos Segundos Analíticos.

Uma última precisão é ainda necessária. O ponto exato aonde porta nossa investigação é uma definição geral da substância. Não se procura, portanto, saber quais coisas são, para Aristóteles, substâncias. Não nos preocupamos em saber como ele aplicou sua definição e se ele sempre o fez de maneira justa. Não nos perguntamos tampouco de onde vem, por assim dizer, a “substancia- lidade” da substância: se, nos compostos de matéria e de forma, é o composto unicamente que merece o nome de “ow ía”, ou se a matéria é também uma ovxjÚx, ou ainda se este nome convém, por excelência, à forma6.

Nossa pesquisa se mantém aquém destas questões. Se é forçada a tocá-las, isto será en passant e para satisfazer às exigências do problema mais primitivo que nos colocamos: como Aristóteles definiu a substância?

A atribuição a uma palavra de um sentido tecnicamente filosófico indica um progresso no pensamento e marca a solução de alguma dificuldade encontrada pelo espírito, como se observou mais acima. Esta consideração encontra sua aplicação aqui, pois é a antinomia do Um e do Múltiplo que Aristóteles quis resolver graças à noção de substância.

O mestre do Liceu é o primeiro a ter descoberto que “o ser é tomado em várias acepções" e ele espera, graças a este princípio, poder conciliar Heráclito

76 1 Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 87: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Mtti liiíiiides, Deixemos a cie a palavra para explicar como entende esta lílpllf kltlde de sentidos do ser. "O ser se diz de várias maneiras”, escreve Mffil/Wm7, "mas é com relação a um único termo, a uma única natureza e di' hi.meir.i equívoca”. Assim como o termo úyieiiw, “sadio”, que se aplica

nliji‘!tw bei» diversos, conota sempre, no entanto, uma relação com a saúde | httMi il ora o que conserva a saúde, ora o que a produz, o que é o sinal dela |Kt »i t|Mt* pode possuí-la, assim também os múltiplos sentidos da palavra h> JMiIlMliHie por sua relação a um sentido fundamental deste termo. E este pltiu ípio de unificação, esta natureza única à qual se reportam todos os modos tio <n i huo ê outra coisa senão a substância.

“ r.ii.s coisas são ditas seres”, prossegue nosso autor, "porque são substân- t l.ii:; outras, porque são afecções da substância, tais outras, porque são i(i(l í*i)caminhamento em direção à substância... ou ainda porque são causas ri ii ientes ou generatrizes, seja de uma substância, seja daquilo que é nomeadoi Hjii relação a uma substância” etc8. A substância é, por conseqüência, o ser /ít) <iVHtido primeiro e fundam ental9. Para saber o que ela é exatamente, bastará i'Mt lidar de mais perto a analogia do ser e como as significações diversas que •H reconhece a “elim” distinguem-se umas das outras.

Quando se esforça por enumerar as acepções do ser, Aristóteles as classifica th quatro aspectos. “O ser” se diz seja para significar o que convém aciden-

hilmcnte a um objeto ( ’òi> kcctix oi)|43epr|KÓç): o homem é músico, por exemplo; íH’ja para significar o que um objeto é em si (’òr> KO60’aúuó): ele se divide, então, conforme as diferentes categorias. “O ser” pode ser sinônimo de verdadeiro e, enfim, “ser” se diz igualmente do que é em potência e do que é em ato10.

Vê-se, imediatamente, que o segundo destes quatro grupos é de longe o

mais importante, já que “ser” está entendido no sentido de "possuir tal natu­reza”. E também o único que nos interessa diretamente, pois a substância ali figura em primeiro na lista das categorias.

Como Aristóteles faz, portanto, para determinar quais são as diversas na­turezas contidas no real? O procedimento nos é indicado pela denominação do ser por si: xb ’bv k<x0 ’ edruó é equivalente a tò "ou m m rà oyjpaza tf|ç «arnyopíaç: o ser segundo as formas ou as figuras da predicação11. “Karryyopeiv” significa predicar, atribuir. “Kairp/opux’’ quer dizer, portanto, “ação de atribuir” e disso vem: “predicado”, “atributo”. As categorias são, portanto, as classes

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mais gerais nas quais se ordenam os predicados das coisas. O sentido é evi­dentemente muito diferente daquele que revestirá este termo com K ant Aü categorias de Aristóteles não são conceitos a priori, Nem mesmo, de iníeio» conceitos simplesmente pensados; são conceitos postos em operação nos juízos. Muitos predicados convêm, de fato, a uma mesma realidade, mas não CK- primem a mesma coisa de seu sujeito. E, evidentemente, diferente dizer que Sócrates, por exemplo, é um homem, ou dizer que ele é branco, afirmar que ele mede tantos côvados ou que ele é filho de Sofronisco, que está em Atenas etc. Os predicados de todos estes juízos náo se unem da mesma maneira ao sujeito, eles representam modos de ser distintos. E classificando estes predicados di­versos sob um pequeno número de títulos que Aristóteles obteve sua tabela das categorias.

O detalhe desta classificação não nos importa muito (especialmente o número de categorias, que não está fixo). O ponto no qual deve reter-se nossa atenção é a maneira como nosso filósofo define a primeira categoria, que é a da substância, e a caracteriza face aos outros modos de ser.

A substância, diz ele, é o que não se diz de outro sujeito, mas ao qual se re­ferem todos os predicados12. E o sujeito último, capaz de receber atributos, mas que não pode se afirmar nada de outro. Esta definição se encontra não somente em vários lugares da Metafísica13, mas igualmente nos Segundos Analíticos e na Física14. É a definição comum de substância. Em face disso, tudo o que não preenche esta definição, tudo o que se atribui a um outro sujeito é um acidente, pois é assim que se define o OD|iPepT]KÓç15. As outras categorias: qualidade, quantidade, relação, ação, paixão etc. merecem, por­tanto, o nome de acidentes.

Esta definição de substância não é tão clara à primeira vista. Mas um texto dos Analíticos Segundos (Livro I, cap. 22) pode servir de comentário. Aristóteles estabelece aí que as demonstrações não podem ir ao infinito. As cadeias de proposições onde cada predicado é sujeito da proposição seguinte detêm-se necessariamente, porque de um lado desemboca-se em um sujeito último, que não pode mais ser predicado, e, do outro, chega-se a um predicado último

que não é sujeito de nenhum atributo16. 0 autor faz constantemente uso desta demonstração para a distinção entre substância e acidente, de tal maneira queo conteúdo destas noções encontra-se determinado nela.

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t ',11.1 wmpíecnder bem o que é, segundo o Estagirita, um sujeito último de Ifilhirit,,»», & necessário, primeiramente, ouvir suas explicações sobre o próprio Itii i!t‘ .imbuir'. Os termos de um juízo náo são, indiferentemente, sujeito ou

»h1o, Existe uma ordem a ser observada e, se nós a infringirmos, ob- fíitt ?it* Homente atribuições "por acidente". É permitido dizer, por exemplo: Vniíl t oísa branca é um homem”, mas isto não é exatamente a mesma coisa tjur ili .-.cr; "este homem é branco” e o primeiro juízo não é uma atribuição no whI nlo estrito. Se uma certa coisa branca é um homem, é porque acontece ao lutítirm ser branco, enquanto o homem é branco sem ser alguma coisa outra tjilt’ um homem. Convenhamos, portanto, chamar de "atribuições no sentido |n 11| ii‘io" estes juízos de segundo tipo, nos quais o predicado é referido a seu «tiliM rato natural18. Toda outra predicação será qualificada de “acidental” e

rH Ítiída da ciência.Quando, portanto, reporta-se um predicado a seu substrato, este predicado

oprime ou bem o que é o substrato (tÍ èotiv) ou bem uma determinação tjtu* lhe advém: qualidade, quantidade, relação etc. Está aqui o princípio da ilíísümção entre substância e acidentes. Com efeito, prossegue Aristóteles, “os predicados que significam a substância (oúoíav) significam que o sujeito ao

eles são atribuídos é por essência o predicado òu uma de suas espécies. Aqueles, ao contrário, que não significam uma substância, mas que são ditos de um sujeito diferente deles mesmos, o qual não é essencialmente este atributo mi uma espécie deste atributo, são acidentes (aup{3epi]KÓra)”19. Assim, “branco” é iim acidente do “homem”, pois o homem não é por essência nem o branco nem uma espécie do branco20, mas ele é essencialmente um animal. Os predicados acidentais são de tal natureza que devem ser atribuídos a algum outro sujeito que eles mesmos. Não existe nada, por exemplo, que seja somente branco, sem mais. O branco deve sempre ser reportado a um sujeito do qual ele não

exprime a essência, mas somente uma qualidade que o afeta21.Em outras palavras, ou bem um predicado significa alguma coisa que é um

substrato, ou seja, alguma coisa que se concebe sem que se deva fazer apelo a uma outra realidade do que ela mesma (homem, por exemplo). Neste caso, o predicado não pode ser reportado a um sujeito que significaria uma outra rea­lidade. O sujeito é o próprio substrato significado pelo predicado. Isto implica que a atribuição do predicado ao sujeito é essencial: o atributo exprime aquilo

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que é o sujeito (Sócrates é homem). Ou bem, ao contrário, um predicado significa

alguma coisa que se concebe somente com relação a um substrato distinto dele próprio. Este predicado deve estar reportado a este substrato, se não quisermos fazer uma atribuição "por acidente” mas ele não pode exprimir uma nota es­sencial dele, ele representa somente uma determinação que lhe advém e que se colocará sob uma das categorias secundárias (qualidade, quantidade etc.).

Quando se diz que a substância é o sujeito último de atribuição, isto não deve, portanto, ser tomado em um sentido estreito e material. A substância não é o "termo impredicável”, o termo que designa uma indivíduo e que não podè se encontrar no lugar de predicado em um juízo porque não é universal (este, aquele, Sócrates, Cálias). A “owia" é uma realidade e não um termo lógico, Se fosse de outro modo, haveria uma contradição manifesta ao definir a primeira categoria, ou seja, a primeira classe de predicados, como o que não pode ser senão sujeito, Mas a substância não é nela mesma nem sujeito nem predicado. Ela é um ser que caracterizamos pela maneira pela qual a julgamos. E o traço distintivo da substância é que ela não pode ser afirmada, no juízo, de nenhum sujeito que representaria uma outra realidade que ela mesma. A substância é, portanto, o que não pode ser inerente a nenhum outro, o que é em si e ao qual todo o resto é relativo.

Um predicado pode perfeitamente significar uma substância, na condição, no entanto, de exprimir a essência do sujeito do qual ele é afirmado: compre­endemos isso facilmente. As noções de substância e de essência mostram-se estreitamente ligadas. Elas o são certamente no pensamento de Aristóteles, pois ele designa freqüentemente a primeira categoria pela expressão ú haxiv22. Só um predicado da primeira categoria diz o ií konv, o qind est de seu sujeito. E, portanto, de forma justa que a classe dos predicados que significam a subs­tância é chamada de categoria da essência.

Pode-se dizer, no entanto, que substância e essência sejam absolutamente sinônimos para Aristóteles? A substância é o único ser que possui uma essência? E estudando a doutrina da substância de acordo com a Metafísica que se encon­trará a resposta para estas questões. Até aqui, somente tentamos compreender a noção de substância à luz de considerações tiradas da teoria da demonstração e estes pontos de vista exigem ser completados e enriquecidos por uma rápida olhadela na Metafísica, pois é aí que Aristóteles se ocupa ex professo da oíxsux.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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í» mIhíOiIi*, «bservemos numa palavra os resultados obtidos até aqui* A In» l.i t' 0 mijriío último de atribuição. Esta definição de aparência eom-

liytu .i lem, no entanto, implicações na ordem ontológica: fomos ‘ m .» vi'l' que a realidade visada por esta expressão: "sujeito não atribuívelI tu)i 10 íinjdto" é uma coisa que subsiste de maneira independente e que

Ml» de tudo o que "se diz de outra coisa”.Nrti t Mi: deve esperar, examinando a Metafísica de Aristóteles, encontrar nela

IttHij ( liitia que se assemelhe a um tratado da substância. E visível, quando I# i um tibnt, que o autor não está em posse de uma concepção definitiva,

mi t (intentaria em expor. As aporias surgem numerosas em seu caminho; llfa 11 vi nins ratear, hesitar, chegar por vezes a conclusões, mas freqüentemente ♦mültí Hí deixar questões sem respostas. Não é, portanto, fácil extrair deste Mimjsjmi teses precisas, ainda que nos limitemos às mais gerais. A tentativa t{* interpretação que leremos será forçosamente esquemática, negligenciará HüHMfl (uianças e passará por cima de certas dificuldades.

! { lio livro Z que Aristóteles empreende o estudo da substância. Após ter de- ífntdo ;i substância de maneira bem vaga, como o ser em sentido absoluto, o ser f i ti )< I.) mental, e após ter esboçado a maneira pela qual ele próprio concebe este ser | ii ulieiro, ele passa rapidamente em revista o que ele chama a doutrina da oioía Kit «eus predecessores23. Isto não implica de modo algum, observemos, a exis- fi'lH’í.1 nestes de uma teoria explícita da substância: Aristóteles procura somente m que estes filósofos consideravam como a realidade verdadeira, fundamental.

( ) Um de Parmênides, os elementos de Empédocles, os números dos pita- p/mcos e, sobretudo, as Idéias e as Coisas matemáticas de Platão são as dife- iruies espécies de oúoíai que o Estagirita descobre em seus predecessores.

Blè retira, assim, quatro sentidos principais em que se toma a substância: I) a qüididade (tò tÍ f|V eivai), 2) o universal (kkQóàou), 3) o gênero (yévoç), enfim 4) o sujeito (úm>KeL|j.evov)24. Cada uma destas acepções é, em seguida, objeto de um exame crítico, depois do qual conclui-se que se deve conservar

,‘somente duas delas.Ele mostra longamente (evidentemente contra Platão) que o universal não

é uma substância25. Quanto ao gênero, seu destino é estabelecido ao mesmo tempo que o do universal, já que ele é necessariamente alguma coisa de comum a vários26.

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Restam, portanto, dois sentidos para a palavra "substância": frtTOKtí|J,m)V t t ò r í f j t ' é I v k u

Por outro lado, no livro A, léxico dos termos filosóficos, no cap. 8 , qü<? enumera as significações de "oíxj ia", Aristóteles já tinha chegado à conclusão que se fala da substância de duas maneiras: seja como sujeito último, seja como aquilo que é tóôe n e ^«picrói'27,

Estes dois pares de termos (wTOKeíjjeiw - t l fip elvoa; úttokêÍ(í6vou - tÓôí tl Kal x^p latóv) são equivalentes? Representam duas espécies de substâncias, ou bem dois aspectos da mesma realidade substancial? Aristóteles modifica na Metafísica sua definição de substância ou somente a explora, deduzindo as suas conseqüências? Tantas questões quanto nos é necessário tentar resolvê-las de modo sumário.

E o sujeito que é necessário estudar primeiro, diz nosso autor, no cap. 3 de Z, pois é ele sobretudo que parece ser a substância. Contudo, prossegue Aris­tóteles, a noção que se faz da substância, pensando que ela é o que não se diz de um sujeito, mas do qual todo o resto se predica, esta noção é esquemática, ela é vaga e obscura. Ela é mesmo insuficiente. Com efeito, ela poderá levar a crer, se a compreendermos mal, que a substância é a matéria28.

Examinemos as determinações tais como o comprimento, a largura e a profundidade de um corpo, por exemplo. São quantidades e não substâncias. São distintas do substrato material ao qual são atribuídas. O mesmo ocorre com tudo o que não é a essência de um ser: são afecções, potências de outra coisa. Mas, assim como estas determinações não-essenciais são atribuídas à essência (o homem é grande, branco etc.), a própria essência se atribui à ma­téria que é substrato29. A matéria primeira, portanto, o que não é por si nem tal coisa nem tal quantidade nem nenhuma outra categoria, parece ser o ver­dadeiro imüKeLjiHW gJX<XTOv, o verdadeiro sujeito de atribuição30. Este substrato indeterminado seria, portanto, a substância? Não, responde Aristóteles, isto não é possível, pois duas características essenciais da substância lhe faltam: ele não é x^piow e não é TÓôe tu Ora, estas duas notas parecem ser o que há de mais próprio à oúoía31.

O Estagirita já reconhecia no livro A, ao lado da substância como sujeito último, a substância como xwpiaTÓv e tóôe tl. Vê-se por este texto que não se tratava de dois sentidos paralelos de uma mesma palavra, mas de dois grupos

82 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

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hmí.ii ( o im m tivas. Para ser subsfâada é necessário possuir todas estas

H»i»t ti i ifiiu .is ao mesmo tem po.

I 1 *,11 ninemos agora as duas notas "xcopioxóv" e "tóôt tl".<) primeiro destes conceitos não apresenta dificuldade especial, É xwpLOTÓv

D t|iit pode existir sem outra coisa, o que está separado. A matéria não é se- |Wt (lt|,l porque não pode existir sem a forma. Também as categorias secundá-

i |o ser (qualidades, quantidades etc.) não são separáveis de seu sujeito de elas não existem sem ele32. Quanto à forma, ela é separada somente

Jirlo pensamento. Unicamente, por conseguinte, o composto de matéria e de |im ii),i pode ser qualificado de x pi-OTÒv crnAxôç33.

No que concerne ao "toôç tl”, acreditou-se por muito tempo que esta ex- pomío era sinônimo de “m 6 ’ ecaatou" e queria dizer “indivíduo”. O p. De Voíí fez ver a verdade sobre esta interpretação e mostrou muito bem que não s*i>i nada disso34. “TÓõe tl” deve ser traduzido literalmente por uma locução tão V,!ga quanto as palavras que ela quer exprimir: “alguma coisa determinada”, Vote algo”, “tal coisa” etc.: isso poderá muito bem, em certos casos, designar lütt indivíduo, mas não o faz necessariamente. Ser tóôe tl é, em todo caso, ser ikiirminaâo, ser tal, possuir uma forma, dir-se-á mais tecnicamente. É porque < l.i não é em si nada de determinado que a matéria não é tóôe tl ou o é somente cm potência35. Mas ser róòe tl não é somente ser determinado. “tc& tl” opõe-se

"tOLÓrôe’, "Tooóvôe” (de tal qualidade, de tal quantidade) e convém somente à primeira categoria36. “tÓ5é tl” visa, portanto, a manifestar a diferença que existe entre um ser, uma coisa e o que o afeta. Ele conota a subsistência17.

Quando dizemos que as notas “yupioxov" e "tÓôé tl” convêm essencial­mente à substância, queremos, portanto, exprimir por isso que a oíwía é um ser determinado, subsistente, capaz de existir só.

Trata-se de saber se se encontra aqui uma nova definição de substância, destinada a substituir ou ao menos a corrigir a primeira, ou se esta é uma

explicação que a qualifica.É certo, em primeiro lugar, que a definição de substância como sujeito

último de atribuição não é abandonada. Nós a encontramos enunciada em uma dezena de lugares ao longo da Metafísica, quatro vezes das quais depois da passagem de Z,3 à qual fazemos alusão38. E que, portanto, ela guarda um valor incontestável aos olhos de Aristóteles. Se ela pareceu levar a um impasse:

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a identificação da substância» ser cm sentido force, com a matéria primeira, é simplesmente por causa da imprecisão do termo "ínT0Kc-í|ac4w ". Pode-se, wm efeito, ser substrato de duas maneiras, nota mais adiante Aristóteles, seja eoimi um ser determinado, um animal, por exemplo, em face do que o afeta, .seja como a matéria em relação à sua determinação, ao seu ato39. Só o "imoKtíjjx-WH»" em primeiro sentido é substância. O autor, para dizer a verdade, não no» mostra por quê, mas é bastante fácil de o ver. A substância não é qualquer sujeito último. É o sujeito último da atribuição, xò únoKeí|_ievov kccG ’ oí; tà «ÀAcc Aéyetca (1028 b 36). Ora, a matéria, substrato da “forma substancial”, nâo pode ser vista como um sujeito de atribuição em sentido próprio. O Estagí- ríta exagera de certo modo a linguagem quando diz que a essência se atribu i à matéria como a um sujeito. Santo Tomás compreendeu muito bem. Não podemos dizer, escreve ele em seu comentário da Metafísica na passagem em questão40: “matéria est homo”; deve-se dizer: “hoc materiatum est homo”, este ser material determinado é homem. E, portanto, o ser todo inteiro, com sua determinação, que é o ÚTTOKeí|JHW último do juízo e não seu princípio potencial.. Assim, a definição primitiva da substância revela-se, apesar de tudo, adequada a seu objeto, se a tomamos rigorosamente: o que ela nos faz alcançar é um ser subsistente em si, separado e determinado, um /(opiOTÓv e um TÓôe tu

Sabe-se, por outro lado, que a substância definida como sujeito último de atribuição possui um essência, ou melhor, que ela é uma essência, já que o predicado que significa o que ela é deve-lhe ser atribuído por identidade.

Esta observação nos conduz naturalmente a examinar a última acepção de “oúaía” admitida pelo Estagirita na Metafísica e da qual não dissemos nada ainda: o “to t 'i t\v etvcu”.

Pareceu-nos, diz Aristóteles no início do cap. 4 de Z , que uma das carac­terísticas pelas quais definia-se a substância era a qüididade, to tÍ rp eivai; é ela que é necessário, desde agora, considerar. Seguindo o filósofo, procuremos saber como e por que a substância, e somente ela, é uma essência.

E, logo de entrada, o que é a essência de uma coisa? E o que esta coisa é dita ser por si, responde Aristóteles. Por exemplo, “ser tu (to ooi elim), não é ser músico, porque não é por ti (Koaà aaíízóv) que tu és músico”. Ser músico não é, portanto, tua qüididade41. A essência de uma coisa é, portanto, o que é esta coisa mesma. Esta proposição tão simples vai nos conduzir rapidamente

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

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‘ ítwtiilfiicía cie que a substância possui verdadeiramente uma qüididade, jiMülü ao modalidades acidentais não a têm ou, em todo caso, têm essência in im em um sentido derivado e analógico.I ’ ti i ver bem o que representa esta tese, é necessário recolocá-la naperspec-

m * M» (jlit* seu autor a estabeleceu, ou seja, com o objetivo de refutar Platão, pilo t((‘ que, para Platão, as Idéias representam as essências das coisas sensíveis. |ÍM, 111)1,1 das principais censuras que faz o fundador do Liceu a seu mestre é,

fi.imcnte, a de separar a essência da coisa da qual ela é a essência. Como t< lttijiR*m em si poderia ser a essência dos homens particulares, objeta-lhe, li< ii.io (‘ imanente a eles?42 Isto é evidentemente impossível. Mas a teoria das

não é somente absurda aos olhos de Aristóteles, ela é ainda inútil: ela não a realidade. Eis seu raciocínio43. Admitamos por um instante, diz ele

cit) fitlbstância, que as Idéias existam (Ser, Uno, Bem): não seria desprovido de at mi ido dizer que a qüididade destas Idéias é diferente destas próprias Idéias? (,1(1? o Bem em si não é a qüididade do Bem, por exemplo? Resultaria disso t|| í<*, .sendo bom somente aquilo a que pertence a qüididade do Bem, o próprio Hflü não seria bom, o que é manifestamente impossível. Necessariamente, jXiJianto, há identidade entre a Idéia e a essência da Idéia. Mas esta identi­dade da qüididade com o ser que a possui não é própria às Idéias, continua K I Lsfagirita. Ela se realiza aqui em baixo para tudo o que não é afirmado de lim outro ser, para tudo o que é por si e primeiro44 - dito de outra maneira, para toda substância. O que podemos parafrasear desta forma: assim como 0 Bem em si é essencialmente bom, que a bondade constitui seu ser mesmo, .issim também podemos dizer de Sócrates que ele é essencialmente homem e que “ser homem” o constitui. A qüididade do homem é idêntica ao ser que é homem. E se o homem não é homem por si, a Idéia de homem não poderá lazer com que ele o seja.

A essência das substâncias é idêntica a seu ser, nós o admitimos facilmente. Resta, contudo, mostrar que se tem aqui um apanágio exclusivo da oíoía. Aris­tóteles o faz. Ele prova que se colocarmos a questão “i í krciv;” a propósito de um acidente, a resposta manifestará que sua qüididade não é idêntica a seu ser, que ele não é, portanto, uma qüididade em sentido absoluto.

Se nos perguntarmos qual é o ser do branco, por exemplo, deveremos res­ponder que é o homem ou alguma coisa deste gênero, Pois é a substância

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afetada de brancura que é branca. Enquanto a qüididade do branco é som m « a qualidade de ser branco. Ora, não há identidade entre "homem" e "branco", entre o sujeito e a qualidade. A essência do branco é por conseqüência disriWâ em alguma medida de seu ser. A essência do branco é a brancura, enquanto o ser branco é uma realidade distinta desta qualidade e afetada por ela. Dá-se o mesmo com os outros predicados acidentais, pois todos eles significam âO mesmo tempo o sujeito que possui o acidente e o próprio acidente45.

Concluamos, portanto, que as realidades acidentais não são verdadeiras qüididades46. Se quisermos a todo preço falar da essência de um acidente, será em um sentido secundário e relativo. Assim como se reconhece, por analogia com a substância, um certo ser às categorias secundárias, se lhes atribuirá uma certa essência, mas não uma qüididade absoluta. E possível, com efeito, fazer a seu respeito a questão “ií hoTiv", procurar o que é precisamente este ser diminuído, não substancial, que elas possuem. Fazendo isso, procede-se a seu respeito como se se tratasse de conhecer uma substância47. 0 acidente tem, em um certo sentido, uma qüididade, mas é uma qüididade completamente relativa: dizendo o que é uma qualidade, uma quantidade, deve-se sempre fazer referência ao sujeito que lhe dá o ser48. A definição de um acidente implica sempre a substância. É que, com efeito, para exprimir o que é em si isto que é somente por um outro, somos obrigados a fazer apelo a este outro.

A tese anunciada mais acima está agora estabelecida. O ú íy elwi, em seu sentido próprio, é bem característico da substância. Ela somente é, em termos rigorosos, uma substância. Mas este resultado não tem nada de verdadeira­mente novo. Ele já era postulado pela definição primitiva da substância. Se a oixjkt é o sujeito último, isto implica que a primeira categoria, e somente ela, é a categoria da essência. Unicamente de todos os predicados atribuídos ao seres a primeira categoria diz o que é o sujeito ao qual ela se reporta.

Acabamos de passar rapidamente em revista os pontos mais importante da doutrina da substância segundo a Metafísica.

Seguindo os passos de Aristóteles, consideramos aoíoícc sucessivamente sob vários aspectos: como sujeito, como ser separado e determinado, enfim como essência. Esta análise mostrou que todas as características que acabamos de enumerar convêm necessariamente e propriamente à substância. Estas notas não estão entre elas como partes de sua definição, como gênero e diferenças

86 I Sobre a Metafísica de Aristóteles

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•illl* iifi. ( !ada uma delas pretende dia» o que é toda a substância, de modo «c imbrieam umas nas outras. Poderíamos fazer a demonstração que,

IhiihIo sobre o que implica uma delas, terminamos por reencontrar as três |K« i ‘Oi, Ifíto manifesta a unidade da doutrina aristotélica da substância: é sem-

>t mcíima realidade que o filósofo apreende sob o conceito de “oíxjía” mas #1# ti IH.( exprimi-la de maneiras diferentes, insistindo sucessivamente sobre (IlItMr'lHeti aspectos que ela apresenta.

A Méia que ele faz dela se depreende, bastante nitidamente, daquilo que dis- li' * m* in t‘ que pode se exprimir assim: a substância aristotélica é um ser subsistente, tkhwiímdo, substrato de modalidades de ser não substanciais, os acidentes.

Kvrém, se é permitido olhar como equivalentes as quatro maneiras pe- iiíw quais Aristóteles tenta caracterizar a substância, deve-se reconhecer que tMiH t* elas existe uma que está um passo à frente das outras no pensamento ílt* furu autor, é a primeira, a definição de substância como sujeito último de dl t íbuição. Ela sempre foi favorecida pelo Estagirita, pois é ela que retorna lil.HH freqüentemente sob sua pena, não somente na Metafísica, mas também

IM IHsica e em outras obras.Se se insiste em observar este fato, é porque ele é importante para a última

(jiiestão que nos resta tratar; a comparação da doutrina aristotélica seguramente atifêntica com aquela que se encontra contida no tratado das Categorias.

Limitamos, evidentemente, esta comparação aos pontos mais relevantes. É já curioso que, nas Categorias, os diferentes gêneros supremos do ser

nrio sejam, como na Metafísica, postos em relação com a atribuição. Eles não são nem mesmo apresentados como Kazr\yop'uy.Li9, menos ainda como ayjpuxa tfjç KoariYOpíctç. São chamados de “expressões sem nenhuma ligação"50. São termos, por oposição às proposições. Já há aqui uma diferença importante, pois pôde-se ver que a distinção das categorias entre elas, e singularmente da substância com relação aos acidentes, tinha sido estabelecida em estreita

ligação com o juízo.Mas ainda tem mais. Quando ele chega à definição da substância, o au­

tor das Categorias escreve: "a substância, em seu sentido mais fundamental, primeiro e principal do termo, é o que não é nem afirmado de um sujeito nem está em um sujeito, por exemplo, tal homem ou tal cavalo”. E acrescenta: "chamamos de substâncias segundas as espécies nas quais as substâncias, to­

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madas em sentido primeiro, estão contidas e às espécies é preciso acrescentar os gêneros destas espécies”51.

Existe, portanto, segundo ele, dois tipos ou, se se quiser, dois graus de substâncias: a substância individual e a substância universal. Esta última atri­bui-se à primeira (já que exprime a espécie ou o gênero) e se a define: “o que não está em um sujeito, mas é afirmado de um sujeito”.

A característica formal da substância, tanto primeira quanto segunda, é, portanto, o fato de que ela não está em um sujeito. O autor das Categorias fez ele mesmo esta observação52. Quanto à nota que definia a substância nas outras obras de Aristóteles: o |_lti kkG’ í)TroKc:i[iévou A,éyeo9ai, ela intervém na definição da substância primeira, mas com todo um outro sentido. Esta nota não serve mais para significar a substancialidade, mas a individualidade da substância primeira. “Dizer-se de um sujeito” é aqui ser universal; “não se dizer de um sujeito” é ser particular. Isto é dito com todas a letras nas Categorias53. O “|íti Ka0’ ÚTT0Kei|iév0U A.évecj0ai" é tão desprovido de toda sig­nificação metafísica que se aplica igualmente aos acidentes, à condição que eles sejam individuados.

O acidente, com efeito, se define, por oposição à substância, como aquilo que está em um sujeito. Ele se divide em acidente individuado: o que está em um sujeito, mas não se diz de um sujeito, por exemplo tal brancura que está no corpo (to tl ÃeiKÓv), e em acidente universal: tudo o que está em um su­jeito e se diz de um sujeito: a ciência, por exemplo, que está na alma e que é afirmado da gramática54.

Esta análise muito breve basta, nós pensamos, para mostrar que as dife­renças são profundas entre as Categorias e os outros escritos de Aristóteles no que toca à doutrina da substância. Não podemos explicá-los por estas negli­gências de redação tão freqüentes no Estagirita. A distinção entre substância primeira e substância segunda, especialmente, que foi, no entanto, tornada clássica depois, não se encontra em nenhuma outra parte na obra do mes­tre. Mas o que é sobretudo interessante de ressaltar aqui é que a substância é definida nas Categorias diferentemente do que no restante dos escritos do filósofo e que uma expressão, presente tanto em um lado como em outro: kcí0' uTT0K6i[iév0u AfyeoGoa” reveste-se de um sentido totalmente diferente tanto em um como no outro caso.

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

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Isto basta para poder declarar as Categorias inautênticas? Não, pois seria necessário, primeiramente, eliminar uma outra hipótese, igualmente provável, a saber, que o opúsculo em questão é uma obra de juventude de Aristóteles55. Para que possamos declarar como falsa esta hipótese, seria necessário mostrar que a doutrina do tratado das Categorias t, por um certo lado ao menos, mais evoluída do que aquela da Metafísica ou dos Analíticos Posteriores. A imperícia da qual o escrito suspeito faz prova seria então atribuível à mão ainda inábil de um jovem discípulo de Aristóteles, por exemplo.

Evitando tomar posição neste debate, gostaríamos, contudo, de salientar, terminando, um indício em favor desta última solução. Ei-lo.

E claro que o autor das Categorias tem razão, em um certo sentido, de dizer que o universal "se diz de um sujeito". Só um termo universal pode funcionar como predicado em um juízo propriamente dito. Ao contrário, todo objeto particular, tomado em sua individualidade, deve ocupar o lugar de sujeito na proposição e não pode ocupar um outro lugar. A expressão "pli kk9’ ÚTT0Kei. év0i) AlyeaGoa” é, portanto, suscetível de receber uma dupla significação. Se nos co­locarmos no plano da lógica, ela qualifica os termos concretos por oposição aos conceitos universais. Enquanto, no plano ontológico, a mesma expressão enuncia o traço distintivo da substância por oposição aos acidentes. E o con­texto apenas que fará discernir o plano no qual nos encontramos.

H á então aí uma ocasião de confusão e pode-se pensar que o autor das Categorias procurou dissipar este equívoco modificando um pouco o vocabu­lário de Aristóteles. Ele reservou as palavras "|íti koc0' ímoKeiiaéwu ÀéyeaGai" para significar a individualidade e exprimiu a substancialidade pela locução: "|j,f| ev úrroKeipmj) elvoa”.

Mas, para dizer a verdade, esta preocupação de precisão que vai até a cor­reção de uma terminologia usual compreende-se bem, em um discípulo de Aristóteles, apenas se o uso duplo que acabamos de sinalizar já se encontrasse 110 mestre. Em outras palavras, o aluno não teria, provavelmente, pensado em mudar o vocabulário que tinha aprendido se a expressão em questão não tivesse já servido, no próprio Aristóteles, para significar ora a individualidade, ora a substancialidade.

Ora, podemos mostrar que isso é bem assim. Nos Primeiros Analíticos56, o Estagirita identifica com toda a clareza desejável, o singular, o sensível, com

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o que não se pode atribuir a outra coisa (Cleon, Cálias, do qual pode-se afir­mar “homem”, mas que não são jamais predicados). Igualmente, em uma breve passagem dos Segundos Analíticos, ele toma por sinônimos “to kcc9’ aarara" os indivíduos e “rà |if| k<x9’ írrroKeipá oiJ tlpÓç"57.

Aristóteles não está, talvez, plenamente consciente da dupla acepção que ele dá a "|if| kccG' úrroKei évou /.éyeaGoa”. E compreende-se, então, a tentativa do autor das Categorias, discípulo presumido do Estagirita. Ele pensou fazer obra útil substituindo “não se dizer de um sujeito” por “não estar em um sujeito” quando se trata de caracterizar a substância. Ele foi, por outro lado, mal ins­pirado fazendo esta correção, pois lhe teria bastado sinalizar os dois sentidos possíveis para impedir que a confusão se produzisse. No lugar disso, ele subs­tituiu uma definição da substância, que preenche muito bem sua finalidade, como se pôde constatar, por uma definição muito mais vaga (apesar das pre- cisões das quais seu autor a envolve) e que tem além disso o inconveniente de fazer apelo mais à imaginação do que ao pensamento.

O esboço que acabamos de ler concernente à primeira doutrina da subs­tância exigiria ser aprofundado e completado se se quisesse resolver todos os problemas que a concepção aristotélica da ouoía põe. Esperamos, no entanto, ter mostrado a unidade e a coerência que esta concepção possui nas obras atribuídas sem contestação a Aristóteles. E as divergências doutrinárias que se pode assinalar quanto a este assunto no tratado das Categorias têm, por isto, um peso maior no debate sobre a autenticidade deste escrito.

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NOTAS

1 Ver, por exemplo, o comentário de Santo Tom ás à M etafísica de Aristóteles.

J Ver, sobre este assunto, as considerações de C . J . W ebb em A . Lalande, Vocahulaire technique et

critique de la Philosophie, sobre a palavra substance (41 ed., vol. I I , p. 818, Paris Alcan, 1932).

1 Ver, por exemplo, Pedro, 7A1 c, 245 e, 237 c, 270 e; Fédon, 78 c, 92 d, 65 d, 101 c; Tim eu ,

29 c, 35 ab; Sofista, 232 c, 219 b, 245 cd, 248 a, 246 ab, 250 b, 251 e; Político, 285 b, 286 b;

República, V I , 509 b; V I I , 525 c etc.

4 Salvo no que concerne aos cinco últimos capítulos ou Pós-predicações, já tomados por apó­

crifos por Adrônico de Rhodes (C f. Pauly-Wissowa, Real-Enciclopãdie, I I , I, I I I . Halbband,

no verbete Aristóteles, col. 1040).

1 C f. Real-Enciclopãdie, ib id . , e P h . M erlan, Beitrãge zur Geschichte des antiken Platonimus. I. Z ur

Erklãrung der dem Aristóteles zugeschriebenen K ategorienschrift (Philologus, Band L X X X I X ,

H eft 1, Leipzig, 1934, pp. 35-53).6 Este problema tornou-se objeto de um interessante artigo de P. A . D e Vos, H et "Eidos" ais

"eerste suhstantie” in de M etaphysica van Aristóteles (T ijdschrift voor Philosophie, Louvain-Utrecht,

fevereiro 1942, pp. 57-102).

I Livro F , cap. 2, início.

8 Ihiâ., 1003 a 34 - b 9, trad. Tricot, vol. I, p. 111.

TO irpcírccix; ’òv kccl... ’òv corA,uç, M et., Z, 1,1028 a 30-31; cf. 0 , 1 , início.

111 Ibid., A, 7; 0 ,1 0 , início.

II Ibid ., A, 7 ,1 0 1 7 a 22-23.u thm vT a õe xaúra AéyeTai o ío ía o u oú kcc0’ úrroKeiijéyou ÀéyeToa, câ Js a m x à toÚkov

x & U a, M et., A, 8 ,1 0 1 7 b 13-14.

n Z, 3, 1028 b 36 -37 ,1029 a 8-9; 1 3 ,1 0 3 8 b 15; 1 6 ,1 0 4 0 23-24; K , 1 0 ,1 0 6 6 b 14; cf. A, 11,

1019 a 5; Z, 1 ,1 0 2 8 a 26-27; H, 4 ,1044 b 9.

14 A n. Post., 1 ,4 ,7 3 b 5-8; 22, 83 a 24-28; Fís., 1 ,2 ,185 a 31-32; 7 ,1 9 0 a 36-37; III, 5 204 a 23-24.

I5... e l OKI xô auupepriKÓç kccG’ ÚTroKei|jévou tlv òç arp a ív e i t tp KocrriYoplav, M eta., G ,

4, 1006 b 34-35. V er o contexto. Sl)|iPePr|KCK; significa propriamente acidente lógico, mas,

quando o opomos à "substância”, damos, por isso mesmo, um sentido a n to ló g ic o a esta

palavra, pois as realidades que ele designa são caracterizadas como não-substanciais.

16 A demonstração completa desta tese ocupa quatro capítulos (19-22).

17 TÒ Koar|Yopelv, Cf, A n . Post., 1 , 19, 81 b 25-29; 22, 83 a 1-18,

18 tò ímoKeí|jevov, ibid., 22, 83 a 6 -7 ,13 .

|1J Ibid., 83 a 24-28. Trad. Tricot, levemente modificada, p, 110.

20 oí) yóp ècruv ò ocp0pwTTOç oure 'óirep Àeucòv oure orrep AeuKÓ’ t i , 83 a 28-29.

21 83 a 2 8 -32 : Km |íti e t irn tl Àeuxóv, o oi% ecepóv tl ’bv AeuKW sjt l v (83 a 32).

22 M et., A, 1,1 0 1 7 a 25 ; Z, 1 ,1 0 2 8 a 11, 1028 a 35-37; 0 ,1 ,1 0 4 5 b 33 etc.

23 Cap. 1 e 2.

24 Cap. 3, início.

25 Cap. 13 e 14.

26 C f. H, 1, 1042 a 21-22; I, 2, 1053 b 16-24.

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27 1017 b 23-25. Retornarem os mais adiante ao sentido dessas duas últim as expressões.

28 1029 a 1-10.

29 r à lio» yàp oíV m i;f|; oú jíaç Kcar|YOpeiT<u, aürri ôe xf|ç i)Àr|ç (1029 a 23-24). Ver para

a compreensão desta frase e de toda a passagem (1029 a 11-24) o comentário de Santo

Tom ás (Lib. V II , lectzo II, ed. Cathala, n0! 1285 sq.).

30 1029 a 20-27.

311029 a 2 6 -2 8 :q< l ia 1 o w xoúrcov Gewpoímv ou|j|3aí.vei. o ix síav elvoci rrp '{Arp. ò& w ax ov

ôé- Kal yàp to x^ p tatóv Kai to TÓõe n úrrápxei.v ôoKél (ícgIloto tf) oúaía.

32 M eta,, Z, 1 ,1 0 2 8 a 2 3 -2 4 ,1 0 2 8 a 33-34; A, 1 ,1 0 6 9 a 24 ; N , 2 ,1 0 8 9 b 26.

33 Ibid ., H, 1 ,1 0 4 2 a 26-31.

34 A rtigo citado, pp. 59-60.

35 Cf. M eta., H , 1 ,1 0 4 2 a 27-28.

36 Ib id ., Z,13, 1038 b 35 - 1039 a 2 ,1 0 3 9 a 15-16.

37 V er A . D e Vos, art. cit., pp. 63-64.

38 Cf. notas 12 e 13.

39 M eta., Z, 1 3 ,1 0 3 8 b 4 -6 .

40 Lib. V II , lect. II, Cathala n° 1289.

41 1029 b 14-16.

42 M eta., M , 5 ,1 0 7 9 b 16-17.

43 Ver ibid., Z, 6 ,1 0 3 1 a 29 sq.

44 1031 b 12-14.

45 1031 b 22-26.

46 N ão existe nenhum ser que seja somente tal acidente, que se definisse, por exemplo, uni­

camente por "branco” (An. Post., I, 22, 83 a 32).

47 Cf., M et., Z, 1, 1028 a 36 - b 2. Desenvolvendo mais profundamente esta observação de

Aristóteles, vemos que, para interrogar-se sobre a essência de um acidente, devemos con­

siderá-lo em estado de abstração formal, ou seja, substantivá-lo ficticiamente: “a brancura

é uma qualidade’’, por exemplo.

48 M et., Z, 1, 1028 a 35; 5 ,1031 a 1-4; 0 , 1 , 1045 b 29-32.

49 O título da obra não deve ser levado em consideração, pois ele não é do autor.

50 r à ca eu au|aiúxx?|ç ( 2 ,1 a 18), rà Karà |j,r|ôee|iW oi4XtrÀOKiV (4 ,1 b 25).

51 C at., 5, 2 a 12 sq. C f. trad. Tricot, p. 7.

52 Ibid ., 3 a 7: k o w w Õe Kotrà u«or|ç oíxjíaç to p,rj a 1 ínroKeLi-ié^a) etvai.

53 Cap. 2.

54 2, 1 a 23 - b 3.

55 N ão é possível fazer dele outra coisa senão um ensaio de principiante. Fica-se facilmente

convencido disso ao lê-lo.

56 Livro I, cap. 27, 43 a 25-35.

571, 1, 71 a 23-24. N a M etafísica (Z, 13), A ristóteles mostra, contra Platão, que o universal

não é substância porque se diz de um sujeito, mas é possível compreender isso sem supor

uma confusão de dois sentidos da expressão K0t9’ UTTOKei|i0 Ol) AéyeoÔoa.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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O SURGIMENTO E O SIGNIFICADO ORIGINAL DO NOME M ETAFÍSICA

Hans Rdner1

1 .

O conceito ‘Metafísica origina-se sabidamente da obra de Aristóteles que nos foi transmitida com esse nome. E também sabido que esse nome não ocorre nos textos do próprio Aristóteles que nos foram conservados. Ele antes de­signa a ciência da qual trata a sua assim chamada Metafísica como ‘Filosofia Primeira ("ptím] cfuXoaoèía), também como ‘Teologia (0eoXoyiKÍ|) ou pura e simplesmente como sabedoria (aocfna),

Kant, em uma conferência, observou, acerca da pergunta sobre como essa disciplina filosófica fundamental teria obtido o nome Metafísica, que “não se pode crer que surgiu por acaso porque corresponde tão precisamente à própria ciência”2. Não obstante, o que de acordo com a visão de Kant não se pode crer é hoje aceito por todo o mundo acadêmico! Com efeito, a pergunta pelo surgi­mento do nome Metafísica é hoje geralmente respondida da seguinte maneira pelo mundo acadêmico: o nome - em sua forma inicial tò [ierà tò cjwaiKá- teria sido introduzido puramente como uma denominação paliativa de natureza editorial a partir do lugar que essa obra obteve na coleção dos escritos aristoté- licos. Além disso, esse nome teria sido obtido por ocasião de uma compilação e ordenação do legado dos escritos aristotélícos - de acordo com a suposição corrente, a compilação feita por Andrônico de Rodes - , caso em que não se teria nenhum nome objetivo transmitido para os ensaios reunidos sob esse título. Somente mais tarde esse título se teria tornado indicação do conteúdo da obra c, então, convertido no termo conceituai ‘Metafísica’ como designação para a ciência do que se situa além ou por trás da natureza.

Este ponto de vista é hoje, como foi dito, - com pequenas diferenças quanto à redação precisa e às nuances - defendido por toda a academia. Ele se encon­

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tra, entre outros, no Wòrterbuch der philosophischen Begriffe de Eisler3, no Lehrbuch der Geschichte der Philosophie de Windelband4, no neoescolástico Kompendien der Metaphysik de Baur5 e Hagemann-Endres6, no Vocabulaire technique et critique de la philosophie de Lalande7. Também eminentes pesquisadores de Aristóteles da atualidade, como W. Jaeger8, M. Heidegger9, W. D. Ross10 e O. Hamelin11 aderi­ram a esse ponto de vista12. Uma posição essencialmente diferente da descrita nunca foi defendida na atualidade (ao menos até onde o autor pôde constatar) até o ano de 195113.

A situação é de se admirar muito, pois que a conversão posterior do nosso título em uma designação para o conteúdo fosse, de alguma forma, possível pressupõe ao menos uma certa aptidão do mesmo; uma aptidão, contudo, que se apresenta como pura coincidência. E verdade que essa coincidência explica- se, em certa medida, como apenas aparente quando se aceita a sugestão de Heidegger, que somente através do dito processo de conversão a interpretação da Metafísica de Aristóteles como tal ter-se-ia tornado precisa14. No entanto, tais possibilidades de interpretação recebem do texto dado limites bastante estreitos. E W. Jaeger, com base em suas pesquisas sobre o conjunto da obra de Aristóteles, obtidas, antes de mais nada, a partir deste texto, descobriu que a palavra Metafísica "reproduz em completa exatidão o motivo fundamental da ‘Filosofia Primeira em sentido originar’15. Como Jaeger, com isso, não retirou seu assentimento anterior à teoria dominante sobre o surgimento da palavra, ele confirmou com essa afirmação a dita coincidência na maior medida ima­ginável. Assim, a objeção de Kant a tal interpretação deveria, mais do que nunca, parecer justificada.

Mas a dita teoria tem, à parte a objeção de Kant, ainda uma fraqueza in­terna à qual até agora, na maioria dos casos, não se deu atenção ou a devida importância. Por que se introduziu um novo nome onde já a partir de Aris­tóteles haviam sido transmitido três? Onde havia aqui também um “paliativo”, qualquer que fosse? Aqueles que dão uma explicação para isso dizem que os nomes transmitidos não seriam mais adequados em conseqüência dos acrés­cimos das elaborações posteriores, consagradas ao que é próprio e original da ‘Filosofia Primeira16. No entanto, foram acrescentadas discussões que apenas não se coadunavam com a forma de apresentação, nenhuma completamente estranha ou radicalmente alteradora do tema, mas sim a ele substantivamente

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pertinentes ou, ao menos, a ele aparentadas. A falta preponderante de uni­dade da coleção, relativa apenas à forma, já fora levada em conta através de uma versão expandida e menos específica do velho título aristotélico, surgida no Perípato mais antigo. Com efeito, no escrito De motu animalium, perten­cente ao corpus aristotélico, é empregada a designação t ò T T ep l T f j s u p o ír r r is

c|)iÀO(TO(t>ías17 - ao que Zeller já chamou a atenção18 - e a Metafísica de Teofrasto caracterizou seu tema como T| v n è p [ i r e p l ] t o j v u p Ó T O V O e c o p ía 19. Ao menos com a primeira dessas duas designações foi dado um nome que, por sua redação menos específica, ainda era adequado à coleção que nos foi transmitida.

Nestas condições, parece mais correto caracterizar com M ax Wundt o sur­gimento da designação 'Metafísica', por renúncia a uma explicação satisfatória, clara e simplesmente como “uma incrível coincidência e mero acaso"20, uma caracterização que, de resto, já se encontra similarmente no século passado em Schoell21 e em Brandis22. De fato, não se pode vislumbrar um motivo satisfatório para a introdução do nome Metafísica se - sim, se a afirmação do significado ori­ginal puramente editorial da designação estiver, de alguma forma, correta!

Contudo, mesmo receber essa afirmação com forte desconfiança constitui, para nós, mais fundamento do que já Kant, com razão, nutria em relação a uma interpretação dessa natureza. Na prática, essa desconfiança significa que nos vemos compelidos a testar com rigor a dita teoria universalmente aceita a partir de suas fontes, para verificar sobre que testemunhos históricos ela se baseia. Nisto está dado o caminho: em primeiro lugar rastrearemos as fontes que os próprios defensores da dita teoria invocam.

2.

Encontramos indicações mais precisas a esse respeito somente nas exposi­ções mais antigas e completas da nossa questão, as quais surgiram no século passado, nomeadamente no livro de J. C. Glaser, Die Metaphysik des Aristóteles, 1841, no volume de comentários (volume 2) da edição da Metafísica de Bonitz, 1849, assim como em Zeller, no seu Philosophie der Griechen. Também estes au­tores mais antigos já alegam que a Metafísica de Aristóteles obteve seu nome a partir da ordenação, mais precisamente do posicionamento dos seus escritos na coleção23. Como testemunho disso são indicados pelos três eruditos duas

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passagens dos comentadores antigos, a saber, de Alexandre de Afrodísia (cerca de 200 d.C.) e de Asclépio (sexto século d.C.). Trata-se, na verdade, de passagens de seus comentários à Metafísica: em Asclépio, do proêmio; em Alexandre, do início do comentário ao livro B. Bonitz, além destas duas passagens, reporta-se também ao início dos comentários à Física de Simplício e Temístio, assim como a dois escólios anonimamente transmitidos, um sobre a Metafísica, o outro sobre as Categorias.

Verifiquemos em primeiro lugar aquele que, até onde se pode aferir, é o mais antigo destes testemunhos, o de Alexandre de Afrodísia, que também é textualmente reproduzido por Bonitz. Nele, depois de já ter sido a Física o tema da discussão, consta em relação à ciência primeiramente designada comoaoc|>ía e0eoXoyiKT]:T|v Kal MeTÒ Ta cjnxjiKÒ. èTTiypác^ei tw tí} TÓ£ei [íé t ’ êKeíyr|V eivai Trpòs' rp â s 24: Ele (sc. Aristóteles) também deu a ela o título |ierà Ta (jnxriKá porque ela, na ordem, vem após aquela (ou seja, a Física). Mas em que perspectiva ela vem na ordem após aquela? FIpòç fp â s , em relação a nós!

Este Típòç r||iâg deve deixar-nos perplexos! Uma t Ó£is Tipòç rp â s é algo bem diferente do que uma ordem editorial meramente exterior! Maso que significa esse Trpòç f)| iâç positivamente? O que ele pode significar? Quem conhece um pouco de Aristóteles recorda-se aqui imediatamente de uma distinção nele corrente, a saber, aquela entre o TipÓTepov cjjúaei e o TTpÓTepOV TipÒÇ flllâs25.

O próprio Aristóteles explica-se a respeito desta distinção no início dos Segundos Analíticos (71b 33ss.) da seguinte forma: “o anterior (npÓTepa) e mais conhecido (yvwpi|ací>Tepa) é de dois modos: o anterior segundo a natureza (tt] cjwaei) não é o mesmo que o anterior para nós (upòs fp â ç), tampouco 0 mais conhecido (sc. em absoluto) é o mesmo que o mais conhecido para nós. Quero dizer com anterior e mais conhecido para nós o que é mais próximo da percepção sensível e com anterior e mais conhecido em absoluto” - aqui consta cittA.ü}s em lugar de Tfl (j)wei - "o que, por contraste, é mais distante dela. O mais distante dela é o mais universal (tò KaôóXou |0.áÂ.icrTa), o mais próximo dela é o particular (tò Ka0’ eraaT a)”.

A este duplo TTpÓTepov corresponde, naturalmente, também um WTTépov que é da mesma maneira duplicado. Agora, um UCTTepov ou |i€Tá, um pos­

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terior, na ordem TTpòç í||J.âs no sentido que acabou de ser mostrado deve, ao que tudo indica, ser pensado na passagem citada de Alexandre quando nela consta que a Metafísica apresentaria esse seu título por ocorrer depois da Física na ordem em relação a nós.

Entretanto, talvez isolada essa passagem ainda possa deixar espaço para dúvidas, já que no seu próprio contexto falta um esclarecimento mais detalhado do Trpòs ri|J-âç. A situação, contudo, torna-se totalmente inequívoca quando recorremos adicionalmente à passagem de Asclépio indicada por Glaser, Bo­nitz e Zeller, cujos comentários baseiam-se em um conhecimento rigoroso das interpretações de Alexandre (inclusive das que não mais possuímos). Na verdade, quando lemos rigorosamente a frase à qual se referem os menciona­dos autores, nela consta apenas que Aristóteles teria dado o nome Me/rà Tfi (buaiKÓ à obra 8ià rf]v devido à ordem, porque ele antes teria tratadoda (JjuaiKá26. Contudo, antes dessa frase, Asclépio fala pormenorizadamente sobre o sentido desta taxis que seria o fundamento do título. Essa ordem, assim esclarece Asclépio, é aquela posterior segundo a natureza, a partir da qual nós obtemos os primeiros princípios (rà ç àpxàç)... por isso Aristóteles teria pri­meiro tratado das coisas físicas, pois essas, embora sejam posteriores segundo a natureza (tt) 4>úaei), são anteriores para nós (r][íiv). O tratado em questão, por contraste, é anterior segundo a natureza... mas posterior para nós. Por esses motivos, assim consta expressamente, ele teria também sido intitulado MeTÒ TÒ (jnxjiKÓ, já que se tratou primeiro das coisas físicas e somente então destas coisas. Deste modo, estas pesquisas deveriam ser lidas depois das da

I üsica, como já mostra o título27.A interpretação em Asclépio é, portanto, completamente clara e está rigo­

rosamente na mesma direção para a qual já deveria remeter-nos a explicação de Alexandre através de mais do que indicações superficiais: a designação TÒ |ieTà tò 4>uCTiicá tem sua fundamentação, de fato, em uma ordenação dos escritos, mas de modo nenhum em uma ordenação meramente editorial, puramente superficial e casual. Esta ordenação está antes condicionada à via do conhecimento natural, que, por sua vez, é uma inversão da ordem objetiva.I )esta via objetivamente condicionada do conhecimento decorre a seqüência (na opinião de Asclépio já prevista pelo próprio Aristóteles) do aprendizado, ou seja, de um lado está a ordem da exposição por parte do autor e, de outro,

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a conseqüente ordem das lições para os alunos. A ordenação editorial é, por fim, somente uma conseqüência de tudo isso28.

A ordem objetiva aqui pressuposta é, porém, precisamente a mesma ex­pressa. na designação ttpojTT} c|)iÀ.0<J0([)ía. Esta é expressamente esclarecida pelo próprio Aristóteles como a ciência em causa sendo KaOóXou e TT poTepa relação à Física (Met. E, 1; 1026a30). Ou seja, ela trata do que é primeiro rfj cbúaei. Portanto, a designação tÒ \ie~ 'a t<x cjnxjiKá significa, em princípio, o mesmo que o nome aristotélico TTpÓTT] <j>iA0<70(j)ía. Esse título, apenas, foi derivado da ordem Tfj c iicrei, enquanto o outro o foi da ordem TTpòç T)[iâç - que transcorre em sentido inverso. O que é primeiro em si é último para nós ou, dito mais concretamente, o que vem após a Física. Esta é a inequívoca interpretação de Asclépio. Mas, nesse caso, ela é quase com certeza também a de Alexandre. Pois Asclépio não apenas conhecia os comentários de Alexandre primorosa e mais completamente do que nós os conhecemos hoje, como era também deles amplamente tributário e dependente29.

Ainda nos cabe examinar os testemunhos adicionalmente aduzidos por Bonitz para a interpretação dominante. Disso resulta o seguinte: a passagem de Temístio fornece à nossa questão unicamente isto: ela cita exatamente do mesmo modo a distinção entre T T p ò s f]|iâs e Tfj 4>úaei30. 0 escólio anônimo à Metafísica fala de uma Táíiç Tfjç àvoryvóaews, uma ordem da leitura, o que, por sua vez, corresponde à interpretação desenvolvida por Asclépio31. Quando é dito, ao mesmo tempo, que o nome teria sido escolhido “não segundo a na­tureza da coisa”, coisa é aqui compreendida, como mostra o texto seguinte, no sentido de tt) 4>úaei, ou seja, deve-se com isso apenas rejeitar a interpretação segundo a qual o objeto da Metafísica seria tal que fosse em si posterior ao da Física. O outro escólio anônimo (às Categorias) reporta, de fato, o nome |X€Tà TÒ «jnxriicá ao local do conjunto de escritos por ele designados no quadro da obra aristotélica reunida. Mas mesmo aqui é pressuposta uma fundamentação objetiva para essa ordenação, no sentido em que, na seqüência (do aprendizado e, com isso,) dos livros, o que surge como posterior deva ser originalmente anterior32. Finalmente, em Simplício opõe-se-nos (como também notou Zeller) já a interpretação platonizante do nosso conceito que mais tarde tornou-se dominante, a qual por muito tempo acreditou-se encontrar documentada em primeiro lugar em um escrito de Herênio (hoje reconhecido como uma

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falsificação da renascença)33. Ou seja, a |j.eTà Ta (jnjaiKa é aqui interpretada em uma representação compreendida mais ou menos espacialmente do objeto da Metafísica como situado além da natureza (irrrèp cfíúdiv ou eueK eiva tojv c()UGLK0jy). Com isso, entretanto, a idéia da taxis não foi abandonada por Sim- plício, mas trazida em conexão com essa outra perspectiva34. Mesmo aqui o nosso conceito não tem de modo algum um significado apenas editorial.

Isso tudo considerado, pode-se concluir que, dos testemunhos nos quais a teoria hoje dominante parece apoiar-se, nem um sequer de fato a comprova. Nenhuma passagem declara que o nome Metafísica seria originado apenas da ordenação editorial externa. Antes pressupõem todas que essa ordenação ex­terna estava fundada na natureza do nosso conhecer e, deste modo, em última instância, estava objetivamente condicionada. Algumas passagens mostram igualmente que essa ordenação objetiva é a mesma a partir da qual é expresso o título ‘Filosofia Primeira.

Note-se adicionalmente que também uma revisão dos demais comentários a Aristóteles dos antigos que tocam a nossa questão (à Metafísica, de Siriano e às Categorias de João Filopono) não fornece nenhum outro resultado. Siriano apresenta a interpretação platonizante em sua pureza, enquanto Filopono apresenta uma conexão da mesma com a idéia da taxis de forma semelhante

a Simplício.

3.

Através das conclusões extraídas na seção anterior, toda a questão a respeito do surgimento e significado original do conceito Metafísica é disposta em um ponto de partida diferenciado. A resposta até agora fornecida a ela, pelo menos por ora, tornou-se infundada e em seu lugar sugeriu-se outra essencialmente diferente. Entretanto, a coisa ainda não recebeu uma nova solução. Pelo con­trário, primeiro impõe-se uma seqüência de perguntas adicionais (umas de­pendentes das outras) de cuja resposta depende a solução definitiva da nossa questão principal. Essas perguntas rezam: até que ponto retrocede no tempo a interpretação defendida por Alexandre de Afrodísia? Ela era, de fato, como esse supõe, a interpretação original, à qual o nosso nome deve seu surgimentoi

Ou talvez os testemunhos históricos que nos são disponíveis forneçam base

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para supor que antes desta interpretação ainda existiu outraí E, se sim, esta interpretação mais antiga corresponde ao ponto de vista até agora dominante, ou ela vai em uma terceira direção, diferente das demais?

Que testemunhos mais antigos, anteriores a Alexandre de Afrodísia, enun­ciem o ponto de vista até agora dominante é de início muito implausíveL Nesse caso, os seus defensores teriam, antes de tudo, tomado apoio sobre estes testemunhos melhores e mais antigos, mas disso nada se encontra em qualquer um deles.

Com respeito a quanto retrocede no tempo a interpretação de Alexandre e Asclépio, segundo eles próprios o autor do nome Metafísica seria ninguém outro que Aristóteles e a ele deveria também remontar a interpretação defen­dida pelos mesmos. Conta fortemente a favor deste ponto de vista o fato que o seu fundamento apóia-se sobre uma teoria indubitavelmente característica de Aristóteles. Entretanto, conta ao mesmo tempo não menos fortemente con­tra este ponto de vista que Aristóteles, nos seus escritos conservados até nós, empregue apenas outras designações para a Metafísica, nunca este título, e que a referência precisa mais antiga ocorra apenas em Nicolau de Damasco, ou seja, apenas na segunda metade do primeiro século a.C. Além disso, parece ganhar peso contra este ponto de vista, como de costume, o fato verdadeiro que o supostamente mais antigo catálogo remanescente dos escritos de Aristóteles, transmitido por Diógenes Laírcio, não contém o título Metafísica.

Consideremos individualmente, porém, cada um dos testemunhos po­sitivos do título Metafísica anteriores a Alexandre de Afrodísia. São eles: 1. um escólio na conclusão da Metafísica de Teofrasto, no qual é mencionado um escrito composto por Nicolau de Damasco sobre a Metafísica de Aristóteles (Oewpia twv ’ ApiaTOTeXous MeTa r à 4>wiKá). (Este testemunho, já men­cionado, é o mais antigo de nosso título em absoluto)35. 2. uma referência a nosso título na Vida de Alexandre de Plutarco que, todavia, após a descoberta dos manuscritos, tornou-se tão questionável que foi rejeitado pela nova crítica textual36. 3. A referência a nosso título em dois antigos catálogos dos escritos aristotélicos, em um anônimo, publicado pela primeira vez por Ménage (e provavelmente antes tirado de Hesíquio) e em um catálogo que remonta ao peripatético Ptolomeu Queno, que nos foi conservado por dois escritores árabes do século XIII.

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Em suma, estes testemunhos nada oferecem imediatamente à nossa questão, uma vez que se trata geralmente apenas de menções a nosso título, sem a respec­tiva explicação do mesmo. Entretanto, chegaremos um pouco mais longe se con­siderarmos os referidos testemunhos em seu contexto histórico restrito e amplo.

Partiremos da pergunta sobre quanto retrocede no tempo a interpretação de Alexandre de Afrodísia e procuraremos em que medida podemos estabe­lecer uma conexão entre ele e os denominados testemunhos anteriores. A esse respeito deve-se, em primeiro lugar, assinalar que Alexandre estava profunda­mente familiarizado com a totalidade da literatura filosófica mais antiga ainda remanescente em seu tempo, especialmente na medida em que ela concernia ao âmbito dos problemas da Filosofia aristotélica. Também a concatenação acadêmica filosófica do Perípato permaneceu um contínuo vivo, especialmente a partir do tempo da renovação interna dessa escola por Andrônico de Ro­des. A este respeito, temos indícios em pormenores que mostram em parte simultaneamente a inclusão da pergunta pela ordem dos escritos aristotélicos nessa tradição acadêmica:

Pela proximidade no tempo e pelo genius loci do local de origem de Ale­xandre, é de se considerar como certo que ele esteve em conexão acadêmica com Adrasto de Afrodísia, o qual atuou na primeira metade do século II d. C. Adrasto escreveu um livro sobre a ordem dos escritos aristotélicos (irepl Tfjs TÓ^ews TÍ»y ’ ApiCTT0TéA.0us cruyypa|i|j.á™v) que, entre outras coisas, tratava dos títulos dos livros. Adicionalmente, pode-se constatar que Adrasto, por sua vez, era dependente do trabalho de Andrônico, o que sabemos a partir do modo

como èle trata dos temas37.Ainda, pode-se demonstrar que Alexandre de Afrodísia utilizou um co­

mentário às Categorias redigido por Alexandre de Ege3S. Alexandre de Ege foi professor do imperador Nero e, assim, dificilmente não teria vínculo de tra­dição com Nicolau de Damasco, que, pouco mais de meio século antes, tinha uma estreita relação com o imperador Augusto e, como filósofo, igualmente pertencia ao Perípato39. Assim se estabelece uma ligação histórica de Alexandre

de Afrodísia também a Nicolau de Damasco.Portanto, é muito improvável que entre os peripatéticos do tempo que vai

de Alexandre de Afrodísia a Andrônico de Rodes fosse conhecida qualquer circunstância ou fosse defendida alguma teoria que estivesse em contradição

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com a interpretação de Alexandre do título Metafísica. Nesse caso, com efeito, Alexandre dificilmente teria defendido seu ponto de vista a esse respeito tão inequivocamente e sem reservas como o que resulta certamente das apre­sentações de Asclépio, que é dele inteiramente dependente, quando não das respectivas passagens que nos foram conservadas dele próprio.

Com isso chegamos, na recondução do nosso título, até Nicolau de Damasco e Andrônico de Rodes, ou seja, ao tempo do qual se origina um dos testemunhos do título acima referidos (aparentemente o mais antigo deles). Agora, também por outros caminhos resulta que Nicolau de Damasco dificilmente, para dizer o mínimo, possa ter aprendido outra coisa sobre esse título do que Alexandre. A obra em questão de Nicolau era ainda conhecida por Ibn Roschd (Averroes'), que a menciona diversas vezes em seu comentário à Metafísica40. As respectivas passagens, na realidade, nada fornecem diretamente à nossa questão41. Todavia, com base nesta familiaridade de Averroes com o escrito de Nicolau, é possível extrair uma certa conclusão negativa sobre o ponto de vista de Nicolau a esse respeito, partindo da explicação dada pelo primeiro para o nome Metafísica. Averroes, de fato, explica o nosso título precisamente no mesmo sentido que Alexandre de Afrodísia e Asclépio42. Isso seria dificilmente concebível se ele conhecesse, de alguma forma, uma outra explicação convincente do nome.

De resto, esse argumento negativo em favor da recondução da interpretação de Alexandre de Afrodísia até Nicolau de Damasco é fortalecido ainda mais pelo fato que já Ibn Siwâ (Avicena’), um século e meio anterior a Ibn Roschd, apresentou da mesma forma que este os escritos de Nicolau perdidos para nós e também os de outros peripatéticos, defendendo igual e até mais decididamente a interpretação reproduzida por Alexandre e Asclépio43.

Deve-se agora examinar o que pode ensinar a menção do título |ieTÒ r à (J)'uo‘iK(X em conexão com os outros testemunhos mais antigos acima citados. Nesse caso, a passagem de Plutarco nada nos oferece, mesmo desconsiderando sua exclusão pela moderna crítica de texto. Os antigos catálogos de escritos aristo­télicos, ao contrário, compensam uma discussão mais acurada. Além dos dois catálogos que contêm o nosso título, o de Anonymus Menagii e o de Ptolomeu Queno, deve-se também recorrer àquele de Diógenes Laércio, no qual falta o tí­tulo, como já foi mencionado, mas que de resto coincide amplamente com o catálogo do autor anônimo44.

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O catálogo anônimo fornece duas vezes o título Metafísica e, fora do texto principal, uma vez em um anexo que, contudo, é uma adição muito posterior (acrescida apenas no século II d.C., como mostrou Moraux). A concatenação precisa, ou seja, a ordenação do título nessa passagem não é, portanto, original e não permite quaisquer conclusões sobre seu significado original. A ordena­ção no texto principal, ao contrário, é notável na medida em que o título aqui está entre os que contêm a designação àTTopr||-iaTa ou Trpo|3/Yf||J.aTa45. Disso resulta provável que também os iieTacjjucjiKà k’, que ocorrem aqui, tenham sido pensados como problemas e que tenham como tal obtido seu lugar após a Física e não apenas como título externo.

No catálogo de Ptolomeu a Metafísica está no fim de uma longa seqüência de escritos de Ciência Natural - essencialmente os que hoje ainda nos foram conservados - , ao passo que depois disso também se inicia uma seqüência de títulos comproblemata. Surge daí a pergunta se o sentido dessa posição da obra- de fato após a Física!’ - pode ser determinada com maior precisão.

Moraux mostrou que uma sistemática precisa serve de base não apenas ao catálogo de Ptolomeu (a respeito do qual Littig já tinha afirmado anteriormente isso)46, mas também aos dois outros e, na verdade, a mesma que fornecem os antigos comentários às Categorias (de Amônio, João Filopono, Simplício, Olimpiodoro e Elias), concordando quase inteiramente. Assim sendo, classi­ficavam-se os escritos de Aristóteles, primeiro, nos gerais (rà ícaGóXou), nos individuais (tò |iepiKÓ, cartas, no essencial) e nos intermediários (rà \iera^v, entre os quais estava, por exemplo, a coleção das constituições dos Estados). Os escritos gerais dividiam-se em sintagmáticos (ou seja, completamente desenvol­vidos) e hipomnemáticos (apenas esquemáticos, esboçados em apontamentos). Dentre os primeiros diferenciam-se os diálogos (“exotéricos”, postos na voz de outros) das exposições orais formalmente feitas pelo próprio Aristóteles (deno­minadas acroamáticas’ e também aÍTOupóaiüTra). No último grupo (ao qual pertencem quase todos os escritos que nos foram conservados) são referidos na seqüência: escritos lógicos (ou orgânicos’, isto é, pertencentes ao ‘Organon’), práticos, poiéticos e teóricos, os quais (correspondendo à introdução fornecida em Metafísica E 1) dividem-se em científico-naturais, matemáticos e teológicos. Essa classificação, na verdade, é diversas vezes seriamente rompida e desar­ticulada na lista de Diógenes e na do autor anônimo. Mas os rompimentos,

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como mostrou Moraux, são explicáveis através de diversos acidentes’ nas trans­crições. Também o fato que nessas duas listas aparece, em títulos isolados, um conteúdo não insignificantemente diferente do que na lista de Ptolomeu nada muda na concordância quanto à divisão fundamental.

Disto resulta, antes de mais nada, que a posiçáo da Metafísica após os es­critos de Ciência Natural na lista de Ptolomeu não foi mera coincidência e que o nome [Í6TÒ Ta cbuairá não era uma mera denominação paliativa de natureza editorial. Ele corresponde, antes, a uma refletida e objetiva ordenação

conjunta dos escritos aristotélicos463.Na medida em que examinamos os escritos acroamáticos' (os quais nos

interessam de maneira especial, já que a Metafísica está entre eles), o sentido objetivo dessa ordenação é esclarecido ainda mais pelas exposições sobre a ordem do aprendizado associadas pelos comentadores à discussão da divisão. N a verdade, a esse respeito ocorreram certas discordâncias nos pormenores, Mas, no geral e com respeito à grande totalidade, a seqüência assim fornecida corresponde à da divisão do conjunto. A isso, o comentário de João Filopono adiciona indicações que mostram que essa ordem do aprendizado, em seus traços fundamentais, remonta no mínimo a Andrônico. Filopono nota, a saber: “Boeto de Sídon diz que se deveria começar com a Física, uma vez que ela nos é mais confiável e mais conhecida, pois dever-se-ia começar com o mais seguro e o mais conhecido. Contudo, o professor dele, Andrônico de Rodes, disse com base em considerações mais precisas que se deveria antes ainda começar com a Lógica (xpípai TTpÓTepov Óttò rfjç XoyiKr]ç âpxeaOai), uma vez que essa trata da demonstração. Com efeito, já que em todas as suas discussões o fi­lósofo faz uso do método da demonstração, deveríamos primeiro conhecê-lo direito”47. Vemos aqui, antes de mais nada, que a ordem do aprendizado baseia- se no mesmo ponto de vista (a via natural do conhecimento) a partir do qual Alexandre e Asclépio explicam o título Metafísica. Esse ponto de vista, aqui, assim como já para Andrônico, é fartamente documentado, pois Andrônico não o contradisse, mas, ao contrário, reconheceu-o por seu próprio valor. Ele apenas adicionou o outro ponto de vista, segundo o qual a Lógica é pressuposta como instrumento para todo conhecimento.

A posição da Metafísica no quadro dessa ordenação dos escritos aristotélicos regida por pontos de vista didáticos - e, portanto, não apenas externos - que é

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seguida por Andrônico resulta ainda mais clara a partir de Porfírio. Ele relata em sua descrição da vida de Plotino (capítulo 24) que os escritos desse, deixados na seqüência casual do seu surgimento, teriam sido ordenados por ele (Porfírio) precisamente a partir do modelo da ordenação dos escritos de Aristóteles por Andrônico47a. Porfírio, então, apresenta mais pormenorizadamente a ordenação por ele assim obtida: No início estão os escritos "mais éticos” (f]0iKCJTepa), todavia com a inclusão da Dialética (que corresponde à Lógica de Aristóteles). A seguir vêm os escritos de Ciência Natural, em seqüência aos sobre a alma. Ele traz, então, os ensaios sobre o Nous e, por fim, os sobre o ser enquanto tal ou, mais precisamente, sobre o uno, ou seja, no final está - no Aristóteles de Andrônico, assim como no Plotino de Porfírio - a Metafísica.

Como já foi mostrado, pode ser corroborado ainda por outras vias que Andrônico interpretou e defendeu a ordem assim produzida no sentido da evolução estabelecida por Aristóteles do anterior a nós (TTpòs r)|iãs) ao pos­terior a nós (mas anterior em si). Para concluir, pode-se ainda obtê-lo a partir de um relato de Boécio. Ele escreve no começo do seu livro De divisione que, por meio dele, estaria transmitindo no essencial o conteúdo de um livro homônimo- irepl aipéaetoç, portanto - de Andrônico, Neste livro, a distinção entre divisio per se e divisio per accidens desempenha um papel fundamental. Ela corresponde, em grego, a uma Siaípecns Ka0’ av ró e kotò CTU|ipe(3r|KÓç, em que a última deixa-se expor mais precisamente como a segundo o upóç t l e, especialmente, como a Trpòs Tl|iâç48. Boécio nota na conclusão do seu livro que o Perípato tardio teria compreendido e distinguido muito precisamente estes dois modos da divisão (diligentíssima ratione perspexit), ao passo que a escola mais antiga teria utilizado os dois modos sem distinção. Após os testemunhos mencionados anteriormente, não pode restar dúvida que Boécio conta Andrônico entre os peripatéticos tardios’ e que tem em vista a sua tomada de posição acerca dos escritos aristotélicos.

Em suma, portanto, resulta fora de dúvida a partir destes testemunhos o seguinte: já Andrônico tinha precisamente a mesma interpretação de uma ordenação didática dos escritos aristotélicos dependente da via do conheci­mento - e a tinha defendido acirradamente - a partir da qual Alexandre de Afrodísia explica o título Metafísica. A posição da Metafísica após os escritos de Ciência Natural (em si corretamente atribuída pela teoria até hoje vigente a

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Andrônico) deve ser compreendida a partir desse ponto de vista e não apenas como denominação paliativa externa.

Com esta recondução da teoria de Alexandre de Afrodísia e Asclépio até Andrônico, estamos ao mesmo tempo situados no local de origem do conceito Metafísica em geral, caso a interpretação mais defendida até agora estiver correta. Teríamos, então, obtido a prova que o significado do nome Metafísica ensinado por Alexandre e Asclépio também foi o original. Ao mesmo tempo, nos seus pormenores, nossas conclusões sobre a interpretação de Andrônico corroboram de modo não desprezível que ele tenha, de fato, introduzido esse tí­tulo. Com efeito, o valor acentuado que Andrônico atribuiu ao seqüenciamento didático dos escritos aristotélicos a partir da ordem natural do conhecimento, como mostrada anteriormente, não poderia ser esclarecido pela ausência (até agora permanente) de uma explicação para a introdução do novo título. Como vimos, em contraste aos peripatéticos mais antigos, Andrônico acentuou ao máximo a diferença entre as duas ordens (entre aquela “segundo a natureza” e aquela “para nós”) e compreendeu a “ordem para nós” como a única adequada à via do aprendizado e, sendo assim, o nome "Filosofia Primeira”, no quadro dessa sua perspectiva geral que enfatiza a ordem da via do aprendizado, deve ter parecido a ele extremamente equívoca e confusa. Ao mesmo tempo, era natural fornecer a essa disciplina uma designação que correspondesse à sua posição na "ordem para nós”. Andrônico pode ter chegado assim ao título |J.eTÒ r à 4>uüikcL Este nome era, de acordo com seu significado e espírito, inteiramente aristotélico e sua introdução corresponderia, assim, ao estatuto filosófico de Andrônico como um autêntico renovador da Filosofia aristotélica49.

4.

Entretanto, a solução aqui em consideração para a nossa questão geral mos­tra-se insustentável. Sua pressuposição, que Andrônico tenha sido por primeiro o autor do nome Metafísica, já fora posta em dúvida por W. Jaeger, ao indicar que os assim chamados textos clássicos, em sua maioria, já haviam encontrado sua denominação definitiva no início do tempo do império50. Além disso, E. Howald, em um ensaio publicado em 1920, explica de modo diferente um dos principais fundamentos dessa pressuposição, a saber, a falta do nosso título

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na lista de Diógenes. Este e outros títulos ausentes em Diógenes não teriam sido adicionados à lista do autor anônimo; ao contrário, eles teriam caído da lista de Diógenes e, portanto, constariam na lista original geral51. Já que essa lista original é hoje geralmente reportada a Hermipo (o qual atuou por volta de 200 a.C.), então, nesse caso, é uma conseqüência necessária um surgimento correspondentemente anterior - muito anterior a Andrônico - do nosso título.

Recentemente, Paul Moraux fortaleceu extraordinariamente a plausibilidade da suposição de Howald, de forma a aproximá-la da certeza52. Moraux baseia- se, antes de mais nada, em sua exposição (já mencionada acima) de acordo com a qual é demonstrável haver nas listas do autor anônimo e de Diógenes uma ordem precisa dos títulos, ainda que danificada por diversos acidentes. Tendo como base os principais locais dos acidentes, Moraux mostrou que a lista original que serve de fundamento a ambas, em um determinado momento de sua transmissão, estava dividida em 5 colunas de 35 títulos cada (com exceção da última, que continha apenas 30 títulos), pelo que, então, na quarta coluna haviam caído cinco títulos, entre os quais o da Metafísica.

Moraux também investigou novamente a questão do autor da lista origi­nal. Ele mostrou, em primeiro lugar, que de modo algum Andrônico pode haver sido o autor dessa (como supuseram alguns pesquisadores anteriores), pois o conteúdo dessa lista claramente espelha um estágio muito anterior da transmissão dos escritos aristotélicos do que aquele do tempo de Andrônico (o qual corresponde muito mais à lista de Ptolomeu). Mas também Hermipo é recusado como autor da lista por Moraux com fundamentação pormenorizada. Em vez disso, ele toma plausível a suposição que Aristo de Céos, que se tornou escolarca do Perípato em torno de 228/5, tenha composto a lista. Sabemos de Aristo que ele transmitiu diversos testamentos de escolarcas anteriores a ele e estes testamentos estão supostamente em conexão com uma história do Perí­pato por ele redigida53. E possível que Diógenes tenha utilizado esta exposição, pois sua história da escola é interrompida com Licon, antecessor de Aristo.

Com base nestes resultados das pesquisas de Moraux, deve-se considerar como muito plausível que o título t ò ^ieTa Ta (fnmKÓ tenha surgido, no mais tardar, através de Aristo de Céos. Através disso, contudo, a explicação dada por Alexandre de Afrodísia para o significado original do nosso título náo se torna, de modo algum, mais implausível. Ao contrário, ela tornou-se

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ainda mais plausível do que se houvesse surgido com Andrônico! Pois agora, no período de apenas um século que retrocede até Aristóteles, é menos do que nunca possível demonstrar uma outra explicação. Sim, a proximidade ao próprio Aristóteles que é alcançada com Aristo reforça o peso dos fatos, se­gundo os quais o significado do título (como vimos) situa-se completamente no sentido de uma distinção essencial de Aristóteles e torna mais do que nunca plausível uma conexão causai dessa distinção com o surgimento e o significado original do título.

Mas esta plausibilidade impele-nos a retroceder nossas investigações subse­qüentes a um ponto ainda mais próximo de Aristóteles. Neste sentido, seja em primeiro lugar perseguido um ponto de vista nos próprios escritos de Aristóte­les que nos foram conservados, o qual pode contribuir para a solução da nossa questão. Ele já foi anteriormente trazido ao debate, mas nunca foi investigado com todos os meios filológicos auxiliares hoje (e já desde há muito) à disposição. Trata-se da seqüência pressuposta pelo próprio Aristóteles para seus escritos.

Investigações relativas a este ponto parecem, de início, prometer pouco sucesso porque as inúmeras referências de obra a obra que se encontram nos escritos de Aristóteles, as quais fornecem aqui o principal ponto de apoio, são ambíguas. Brandis já fez alusão ao fato que o que se pode reconhecer mais em si como sendo anterior ou posterior a outro escrito mencionado poderia estar condicionado tanto pela seqüência da edição, quanto pela seqüência (não ne­cessariamente coincidente) do aprendizado ou ainda pela ordem lógica54. Além disso, uma referência a um escrito redigido posteriormente ou posterior na seqüência do aprendizado pode ter sido incluída em uma segunda elaboração (ou ainda em uma transcrição posterior) do escrito de Aristóteles que contém a referência. Desse modo, o escrito citado pode agora ser tomado como já exis­tente e, assim, aparentemente precedente. Por isso, Brandis procurou verificar a ordem objetiva ou, mais especificamente, á ordem da via do aprendizado de outra forma, a partir de critérios internos lógicos e metodológicos. Por esse meio ele chegou ao resultado que a Metafísica teria seu lugar antes dos escritos físicos, uma vez que ela estipularia “os fundamentos tanto para a forma quanto para o conteúdo de todas as ciências reais”55.

Mas Brandis pressupõe já de início, com esta fundamentação de seu re­sultado, uma metodologia específica do aprendizado como sendo aquela em­

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pregada por Aristóteles. Fica imediatamente em questão se essa é, de fato, a metodologia de Aristóteles. Do ponto de vista metodológico, Aristóteles conhece os dois caminhos, aquele do universal e fundamental em direção ao particular, assim como também o caminho inverso. O conhecimento do mais universal e primeiro em geral, dos upura, foi, de fato, diretamente abordado pelo jovem Aristóteles no sentido de Platão, pois isso contava para ele como o que é imediatamente mais cognoscível (yvcopi iiorre pa)55:1. Contudo, é carac­terístico do desenvolvimento próprio do Aristóteles posterior que ele se tenha afastado de Platão (ainda não pela última vez) e tenha chegado à distinção entre um anterior e conhecido’ para nós’ e um anterior e conhecido’ em si', a partir da qual o anterior em si parecia ser não mais anteriormente, mas posteriormente conhecido. (Comp. a passagem referida acima na nota 25.) Correspondentemente, o Aristóteles posterior tratou da Metafísica na via do aprendizado após a Física, como pode ser provado, apesar das dificuldades re­feridas por Brandis quanto à comprovação rigorosa das referências desta obra e de outros escritos aristotélicos.

De acordo com a esmerada coleção de citações e referências uns aos outros dos escritos aristotélicos que Bonitz (após o surgimento das mencionadas expo­sições de Brandis) forneceu-nos no seu Index Aristotelicus (1870) sob o verbete

’ApiCTTOTéA.T|s, os livros da Metafísica contêm 24 referências a outros escritos e livros aristotélicos. Dessas, 2, uma das quais se refere a um outro livro da própria Metafísica, outra aos escritos exotéricos’, não interessam à nossa ques­tão. Das 22 referências restantes, 21 mencionam o objeto em questão como já tendo sido tratado anteriormente, das quais 13 em ensaios de Física. Apenas uma passagem (1078b 5) promete tratar o tema abordado no futuro, mas sem indicação do escrito em causa (“év âXXoiç êpoí>|iev”). Bonitz assinala 8 pas­sagens de outros livros aristotélicos autênticos que se referem à Metafísica ou, mais precisamente, à ‘Filosofia Primeira'; e 2 (do Da interpretação e da Etica a Nicômaco), através da redação da indicação, deixam em aberto se o tratamento já ocorreu ou ocorrerá mais tarde. Duas outras passagens, que se referem obje­tivamente à ‘Filosofia Primeira (sem, contudo, denominá-la), assinalam o tema como já tendo sido lá tratado. Isto, porém, ocorre naquelas obras (Física e De generatione et corruptione) nas quais em outras passagens a ‘Filosofia Primeira’ é mencionada como vindo posteriormente56.

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Com exceção de uma passagem da Metafísica e das duas passagens de ou­tros escritos indicadas por último, essa situação produz a imagem inequívoca segundo a qual Aristóteles via a Metafísica como vindo depois de todos os outros escritos sistemáticos, em especial depois da Física. Assim, a maioria dessas passagens faz imediatamente reconhecer que esse depois é concebido como sendo da ordem do aprendizado e objetivamente condicionado, não como sendo apenas da redação, temporal e ao acaso57.

Agora, quanto a esta única passagem da Metafísica (1078b5) que promete para mais tarde o tratamento do problema em questão, ela não permite (de acordo com a nota de Rolfe à passagem em sua tradução) indicar onde isso viria a acontecer. Portanto, Aristóteles deve, lá, ter tido em vista uma passagem que acabou não sendo escrita ou que não nos foi conservada da própria Metafísica ou de um escrito exotérico’ e, assim, a passagem referida não contradiz a posição final da Metafísica, que tem o testemunho das outras 21 passagens.

Das duas passagens contrárias de outros escritos, uma (336b 29) refere-se ao livro A da Metafísica, o qual (segundo o testemunho da lista de Dióge­nes) primeiro existiu de forma independente sob o título Trepl twv TTOcraxws \ey0\iévhív e, na verdade, não pertence ao corpo da Metafísica, A segunda pas­sagem (191b 29) refere-se ao livro 0 e, assim, a uma parte da Metafísica que (de acordo com as pesquisas de W. Jaeger) também não pertencia ao projeto pró­prio da ‘Filosofia Primeira’. Com isso, deixa de valer também para essas duas passagens a contradição em relação à posição final da Metafísica. Chegamos, por conseguinte, ao resultado esmagador, atestado por 25 (21 + 4) passagens que, para Aristóteles, a Metafísica (mais precisamente, a ‘Filosofia Primeira) situava-se ao final dos escritos teóricos.

O próprio Aristóteles, portanto, sem dúvida já pressupôs uma ordem para a sua Filosofia, de acordo com a qual a Metafísica vem depois da Física e essa ordem era tal que pertencia à via do aprendizado. Pela posição distinta que o método do conhecimento recebe em Aristóteles, é impossível que essa ordem não refletisse uma ordem objetiva, dependente de algum princípio do anterior' e do posterior. Contudo, seria relevante como tal princípio apenas aquele em relação ao qual, de acordo com Alexandre e Asclépio, a Metafísica deve seu nome. Entretanto, a lição dos dois não experimenta por esse meio apenas uma confirmação adicional pelo seu lado objetivo, mas também porque assim

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aumenta a plausibilidade que de fato a origem do nome deva ser procurada, quando não junto ao próprio Aristóteles, pelo menos em sua proximidade imediata. Além disso, um conjunto de outras circunstâncias aponta-nos para a mesma direção:

Aristóteles usa reiteradas vezes a expressão |ieTa(3aíveiv58 para a transi­ção do mais conhecido para nós' ao conhecido em si’, ou seja, para a mesma transição que assinala o passo da Física para a ‘Metafísica’. A mesma expressão encontra-se empregada para a mesma transição na Metafísica de Teofrasto e, nesse caso, imediatamente em relação à transição aos ttporra, isto é, ao campo da Metafísica59.

N a Metafísica de Teofrasto encontramos ao mesmo tempo um análogo verbal para tò. jictÒ Ta 4>uciiKá no qual isso ao que chega depois a ordem inversa da direção (dedutiva) do conhecimento é repetidamente designado como TÒ (ieTÒ. tq ç ôtpxás60. Com isso, a expressão tÒ peTÒ tÒ cf)UCTLKa é já trazida para uma proximidade palpável.

A passagem na qual Teofrasto designa a transição aos ttpojra como um |ieTa|3aívav leva-nos ainda adiante. Teofrasto explica que, por meio dessa transição, a cognição vai de encontro a impedimentos por causa das nossas fra­quezas, as quais nos tornam inaptos assim como ao vislumbrar o que há de mais brilhante contra a luz mais clara. A mesma representação encontra-se também no livro CC da Metafísica aristotélica61. Através dela somos claramente lembrados da alegoria da caverna de Platão, na qual se fala de um idêntico ofuscamento pelo vislumbre das Idéias após o abandono da caverna. Nessa conexão, já em Platão evoca-se o conceito de Metafísica. Com efeito, a Idéia de Bem, fundamento úl­timo do ente, é aqui ainda dita ser êrréiceim TÍjç oíoíaç, além do ser, superior a ele em dignidade e força62. E, em uma passagem posterior (à qual, nesse sentido, Heidegger chamou a atenção em seu ensaio sobre a teoria da verdade de Platão), consta que o pensamento iria |xer’ eKelva, por sobre aquele que é apreendido apenas por meio de sombras e reproduções, em direção às Idéias63.

Não era até aqui desconhecido que em Aristóteles (e assim também no Perípato em geral) as motivações e tendências da teoria platônica das Idéias e da Metafísica nela contida de forma alguma podem ter sido totalmente elimi­nadas. Por si só, o significado que o conceito dos xwpLCTTa64 tem na motivação da Metafísica aristotélica mostra já a conexão inseparável com a Metafísica

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de Platão. W. Jaeger perseguiu com maior rigor e apresentou as linhas dessa conexão no seu livro sobre Aristóteles. Jaeger também chamou a atenção a um fragmento de Aristóteles que, objetiva e conceitualmente (através da palavra èríéiceiva), ecoa fortemente a Metafísica de Platão: ó 9eòç f) voüç èürlv r] ETtEKeivá t l toíi voví,s. Contudo, as passagens indicadas da Metafísica a e de Teofrasto trazem-nos, a esse respeito, algo novo. Elas não apenas evocam em parte ainda mais imediatamente o conceito da Metafísica, mas também mos­tram que a interpretação do \ierá como uma seqüência ordenada da via do conhecimento, fundamentada na distinção aristotélica do anterior e posterior para nós’, nunca fora percebida no Perípato como fortemente separada do |ier’ èiceiva e ejréKeiva platônico! O [leTapaíveiv dos aía0r|Tá aos tt porra não era, portanto, apenas um passo de significação puramente metódica. Ele era percebido como a entrada em uma esfera não apenas a nós posterior e mais dificilmente acessível, mas ao mesmo tempo objetivamente diferente, consti­tutiva de um domínio próprio.

Com essa conclusão, toda a nossa questão sobre o significado original do conceito Metafísica recebe, por fim, mais uma vez um novo rumo. A nossa explicação até aqui obtida fazia parecer que esse significado era fortemente distinto do desenvolvimento posterior do nosso conceito, tanto por parte dos comentadores platonizantes, quanto na Idade Média e na Moderna. No en­tanto, resulta agora que todo esse desenvolvimento posterior já estava instalado na origem do nosso conceito no Perípato antigo! Já nesta sua origem, o conceito da Metafísica cambia de um significado relativo ao método do conhecimento a um significado objetivo. E, se no decorrer de sua história, ora distinguiu-se mais um desses dois lados, ora o outro, isso não é mais de causar espanto. Também não foi por meio de nenhum desvio da motivação aristotélica original, mas certamente apenas por uma alternância, ora de um, ora de outro lado da mesma, que ao mesmo tempo acentuou-se a significação do lado platônico.

5.

Deveria, assim, ganhar máxima plausibilidade que o nome Metafísica tenha surgido no Perípato mais antigo e, na verdade, devido a motivações e tendên­

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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cias que já estavam vivas no próprio Aristóteles e que, em parte, ainda eram herança platônica. Podemos formar uma suposição precisa sobre quem possa ter sido o autor desse nome? Sim.

Sabemos a partir dé um relato de Asclépio e de uma nota crítica de texto do Pseudo-Alexandre que Eudemo esteve, de alguma forma, envolvido com a edição da Metafísica de Aristóteles66. Provavelmente, o próprio Eudemo tam­bém redigiu uma história das representações teológicas67 e, se não escreveu um tratado de Metafísica, seguramente planejou-o68. Sabemos ainda que ten­dências platônicas (isto é, mais do que aquelas que em geral sobreviveram no Perípato) eram especialmente próprias de Eudemo69. Além disso, o livro OC da Metafísica de Aristóteles, no qual está um dos ecos acima assinalados da alegoria da caverna de Platão, é atribuído em uma nota que nos foi conservada a um homem do círculo próximo de Eudemo, a saber, seu sobrinho Pasicles70. Portanto, na medida em que as escassas fontes conservadas do Perípato mais antigo permitem-nos uma suposição, muita coisa sugere vislumbrar em Eudemo o autor do título Ta |i€Tà r à cfwaiKct.

Com a recondução do nosso título a este tempo mais antigo, resolve-se uma objeção que se poderia lançar em geral contra nossa solução. Com ela, assim talvez alguém diria, não se tornaria também inferível qualquer razão concludente ou ainda somente suficiente para a introdução do nosso título ao lado daquele já utilizado por Aristóteles, por mais que talvez a realidade histórica de um surgimento muito antigo do mesmo tenha-se tornado plausível. Entretanto, com a recondução do nosso título a um tempo tão antigo, as condições para o seu sàrgimento são também essencialmente diferentes do que se ele tivesse sido introduzido apenas com Andrônico.

Deve-se também partir do fato que os manuscritos gregos mais antigos não eram, em geral, munidos de títulos por seus editores. Para denominá-los, eles caracterizavam o início de cada um com uma palavra-chave, de um modo que lhes parecesse conveniente. Isso podia acontecer sem mais, até mesmo nos casos em que o autor havia dado uma designação para o seu escrito; não se sentia comprometido por isso. Só muito paulatinamente disseminava-se uma ou outra designação71. Ao tempo de Andrônico, os títulos já estavam adiantadamente estabelecidos. No Perípato antigo, por contraste, tudo a esse

respeito ainda estava fluido e talvez não se exigisse nenhum motivo impositivo

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ou mesmo coagente para ocasionalmente denominar os livros da Metafísica diferentemente da forma como Aristóteles designava a ciência neles tratada. A designação 'Filosofia Primeira’, que Aristóteles cunhou ainda em seu tempo platônico e manteve de lá em adiante, correspondia, então, apenas a um aspecto do seu ponto de vista posterior72. De seu outro aspecto, um título como |iexà tq (jwaiicá (no qual o |xerd, como mostrado, ecoava também uma herança platônica, ainda que em outro sentido) oferecia-se igualmente. Além disso, a circunstância que somente após a morte de Aristóteles foi feita uma compila­ção dos livros que, embora não estivessem estreitamente vinculados entre si, caíam de alguma forma sob essa ciência, pode ter estimulado o uso de uma designação inespecífica para ela. Assim, ao lado das denominações que foram acima mencionadas como ocorrendo no De motu animalium e em Teofrasto, também surgiu o título tò \ierci Ta <j>uoxK:á, o qual pode ser compreendido de modo menos específico. Mas o caráter menos específico desse título pode ter atuado apenas como motivo secundário para o seu surgimento. Ele deve sua verdadeira origem e sua forma à teoria do próprio Aristóteles sobre o caminho do conhecimento em direção aos TrpÔTa, inclusive às representações que nisso ecoam Platão (apesar do seu distanciamento fundamental de Platão).

É diferente disso o que ocorre com a explicação de por que o nosso título e nenhum outro tenha-se disseminado. Nesse caso, o seu caráter inespecífico pode ter tido um peso considerável. Quando o curso da história neste assunto chegou a Andrônico, aconteceu que somente este título correspondia à ordem didático-metódica do conhecimento por ele tão frisada, ao passo que 'Filo­sofia Primeira’, no quadro desta ordem, devia ter provocado confusões73. Por essa razão Andrônico deve ter preferido este título antes que qualquer outro. Nesta medida (mas somente nela) poderia restar para Andrônico um papel essencial no desenvolvimento histórico que conduziu ao nosso atual conceito ‘Metafísica’74.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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NOTAS

1 A tese fundamental do presente ensaio (que está exposta na seção 2) foi pela primeira vez

apresentada publicamente pelo autor em 1939, em um a conferência sobre o conceito da

M etafísica na seção de H alle e Kassel da sociedade K ant, E m 1942, durante um período

de ensino como substituto em Freiburg im Breisgau, ele transferiu a seu aluno local, o

cand. phil. M aternus Sester (de Berrweiler, na Alsácia), a elaboração e exploração dessa

tese como redator de tese de doutorado sob sua orientação. Com o não estava concluída

até o outono de 1944, M . Sester serv iu -se dela em 1946 (com o con sen tim en to d o autor,

dado antes da separação das frentes de guerra), então concluída e traduzida para o francês,

para a obtenção do Diplom e d’études supérieures na Universidade de Strassburg (então

em Clerm ont-Ferrand). Foi feita um a primeira publicação impressa da tese principal, em

uma versão muito concisa, no livro “P flich t und N eigung" (p. 106), publicado pelo autor

em 1951. U m a elaboração mais completa foi apresentada em 29/09/1952, em Marburg, no

‘Círculo restrito' da 'Sociedade G eral para a Filosofia na Alemanha'. Incitado pelos ataques

na discussão e por um a indicação bibliográfica essencial (do novo livro de P. M oraux, ao qual

se recorre abaixo) que lá obteve através de P. W ilpert, o autor levou adiante suas pesquisas,

de modo que do texto da conferência de M arburg surgiu o presente ensaio - fortem ente

divergente daquele a partir da seção 3. Sem prejuízo do auxílio essencial que o autor deve

ao apoio de M . Sester, através do fornecimento de um a parte do material, estão assim os

seus próprios resultados em grande parte ultrapassados.

2 A observação inteira, segundo os escritos conservados, reza: 'com respeito ao nome M etafí­

sica, não se pode crer que surgiu por acaso porque corresponde táo precisamente à própria

ciência; pois nele cf>íms significa a natureza, mas não podemos chegar aos conceitos da

natureza por outro meio que através da experiência, de modo que aquela ciência deno-

mina-se, assim dela se depreende, M etafísica (de ]xeTá, trans, e Física). E la é uma ciência

que se sittaa como que exteriormente aos domínios da Física, além da mesma. E porque

desse fenômeno mesclado da Física seguem-se conceitos puros do entendimento, os quais

vão além da experiência, denomina-se M etafísica tam bém com razão essa ciência; talvez,

se ela conduzisse ao nom e de um a super-Física, pudesse ser entendida sob ela a doutrina

teológica da natureza.” M . H ein ze, Vorlesungen K an ts über M etaphysik aus i r e i Sem estern,

Leipzig 1894, p, 186 (= A bh. d. Sachs. Akad. d. W issenschaft. X IV . N r. V I , Phil.-hist,

Klasse, p. 666).

3 "A palavra ‘M .’ originou-se da disposição do escritos pertencentes a Aristóteles após aque­

les da Física (h e tÒ tò 4>uaiKct) por parte de Andrônico de Rodes, N icol. Dam asceno...

Então esta denominação foi aplicada tam bém ao conteúdo daqueles escritos." 4. ed, 1929,

vol. II, p. 127.

4 "... a Metafísica, por Aristóteles denominada Ciência Primeira, isto é, Ciência Fundamental,

e designada pelo nome hoje usual apenas devido à posição após a Física que ele tomou na

antiga coleção das obras aristotélicas. §3, nas últimas edições (9. até 14.) p. 17.

Page 126: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

5 “O nome é, segundo a tradição, originalmente um a denominação de natureza

editorial, Andrônico de Rodes (primeiro século d.C .), por ocasião da ordenação conjunta

dos escritos aristotélicos, teria disposto os ensaios individuais que compõem a atual M etafí­

sica de A ristóteles após os da Física e munido-os com a denominação de natureza editorial

Ta |i€Tà tò <|>wucá. O fato que o próprio Aristóteles, nesses ensaios, rem ete aos livros

a respeito da Física (Met. I. 5, 23; 10, 1) forneceu a Andrônico o ensejo dessa ordenação.

Essa denofflinafá° originalmente locativa foi, então, posteriorm ente aplicada ao conteúdo

e referida ao objeto suprasensível (transfísico, transcendente).’’ M etap h y s ik2 1922, p. 2.

6 “Deu ensejo ao nome M etafísica um ordenador dos escritos Aristotélicos, Andrônico de

Rodes, o qual forneceu ao complexo de escritos do filósofo por ele disposto após a Física

o título TÒ |ie™ ™ tfamicá, 0u seja, os escritos seguintes aos físicos. O nome surgido

dessa denomóação paliativa seria empregado posteriorm ente não apenas para a ciência

correspondente, mas l°g° a seguir foi tam bém compreendido como expressão para algo

que é da ordem de um objeto, o suprasensível, transcendente."

7 “Metafísica. Sentido primitivo: Ta |i€Ta Ta cjwaiKa, nome dado à obra de Aristóteles que hoje denomí#amos M etafísica porque, na coleção das obras de Aristóteles compilada por Andrônico de Rodes, ela se seguia... à c|hj(tikÍ] <kpóaaiç ou Física”. Ibidem. Cinquième édition, Paris 1947 <em francês no original - N .T .x

8"... é inegável que 0 conceito unífícador dos escritos sobre <j>úots ou rj0r|, c()uaiKá, f)0iKá seja

de uma natureza mais compacta do que o vago conceito dos escritos que vêm depois daque­

les sobre i Um surgiu do objeto, o outro originou-se da posição externa posterior

aos 4>uctii«x de certos escritos no catálogo.” Studien zur Entstehungsgeschichte der M etaphysik

des Aristóteles, 1912, p. 164.

9 “É sabido que0 significado a princípio livresco da expressão fieTÒ t ò cfnjaiKá (como nome

geral paraaqueles ensaios de Aristóteles que foram dispostos após os pertencentes à ‘Física’)

posteriormente transformou-se em um a característica filosoficamente expositiva disso que

esses ensaios assim dispostos continham . K an t und das Prohlem der M etaphysik 1 1929, p.

5. “A expressão livresca... surgiu prim eiro de um em baraço na compreensão objetiva dos

escritos ordenados deste modo no corpus aristotelicum." M esm o local p. 6.

10 "... pode-se supor com segurança que ele (sc. o nome M etafísica) foi devido ao trabalho

editorial de.» Andrônico e que significa meramente os tratados que eram dispostos após

as obras de Física na edição de Andrônico . Aristotle, London 1923, p, 13 <em inglês no

original, N.T.>'11 “O título de TÒ c)rtJcn.Ká ... deve remontar a Andrônico... esse título, tornado usual

logo a seguit ® derivado do arranjo material dos escritos por Andrônico...” L e système

d'Aristote, Paris 1920, p.33 <em francês no original, N .T .x12 Similarmente; ainda: T h e Encyclopedia Britannica, 15. edition, 1929, Vol. 15, p. 332; Larousse

i e X X e sièck Tome quatrième, Paris 1931, p. 836 ; Enciclopédia Cattolica, V III , R om a 1952,

coluna 873.13 Em 1951 foi publicada em Louvain a obra de Paul M orau x ”Les listes anciennes des ouvrages

d'Aristote", ni qual ele - a princípio por meio de cam inhos diferentes daqueles tomados

pelo autor do pres®te ensaio - veio igualmente a pôr em questáo o ponto de vista tradi­

a Metafísica & Aristóteles

Page 127: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

cional, ainda, contudo, sem contestá-lo com total determinação, (p. 314 s.). Com p. a isso

os relatos sobre esse trabalho que se seguem abaixo.14 Heidegger Ibidem.1.1 Aristóteles, 1923, p. 404.1.1 Com p. a explicação de Bonitz, sob a nota de rodapé 23. Algo diferente é a interpretação

de H eidegger (Ibidem p. 6). E la parte, de um lado, da falta de homogeneidade interna da motivação da própria ‘Filosofia Primeira’, de outro, do fato que na Filosofia acadêmica do período intermediário tinha-se tom ado habitual um a divisão das suas disciplinas (em Lógica, Física e Ética) que não continha algo como a Metafísica, de form a que, em geral, teria faltado um a rubrica adequada para os fragmentos da última. Até onde essa suposição é correta - a qual pressupõe o relato de Estrabão (X III, 1, 54) e Plutarco (Sylla, X X V I) sobre os m anuscritos que, de abandonados à podridão no porão de N eleu em Skepsis, só foram novamente trazidos à luz ao tempo de Andrônico - será determinado abaixo.

17 Ü ber die Benützung der Aristotelischen M etaphysik in den Schrijten der àlteren Peripatetiker, Abh. d. Berliner Akad. 1877; impresso em Escritos M enores I, 1910,.p. 19ss.

18 700b7.19 §1, primeira linha.20 "Por um a incrível coincidência e mero acaso obteve o seu nome a área da Filosofia na qual

devem estar toda necessidade rígida e todo pensamento preciso e regular. O escrito de A ris­tóteles no qual trata das questões fundamentais m ais gerais foi posicionado no primeiro século a.C. por Andrônico, o ordenador do seu legado, após o escrito sobre a Física... O escrito onde são abordados os princípios fundam entais não tinha qualquer nome especí­

fico e, assim, ocorreu que já na mesm a época em que foi organizada aquela coleção ele foi chamado "o escrito posterior à Física”. E sse título não tinha, portanto, qualquer relação ao

conteúdo próprio...", Geschichte der M etaphysik, Berlin, 1931, p .l.21 “Segundo sua etimologia, ela (sc. a palavra M etafísica) não expressa adequadamente a ci­

ência por ela denominada, a qual poderia m ais corretamente ser cham ada a Filosofia mais elevada. Supõe-se, a partir disso, que a palavra deva seu surgimento a um a coincidência.” Geschichte der griechischen Literatur, Berlin 1830, II p.162.

22 “. . . é tanto m ais incompreensível a escolha do mesmo (sc. do título M etafísica), na m edida em que o último (sc. Aristóteles) mencionou expressa e reiteradamente um a denominação

dupla e igualmente aceitável, Filosofia Primeira e Teologia ou Teológica.” Ü ber die Aristo-

telische M etaphysik, Abh. der Berliner A kad. de 1834, p.63.23 “O título M etafísica... não ocorre nem na própria obra nem em qualquer outro escrito de

Aristóteles e provém, como indicam os comentadores, do posicionamento do livro após os ensaios de Física,” Joh. Carl Glaser, Ibidem p, 4.

“A d ordinem enim librorum hanc inscriptionem referri, ut libri de prim a philosophia excipere significentur libros physicos, communis fere est ac verissima interpretum Grae- corum sententia..." B onitz Ibidem p. 5 “H o s quatuordecim livros quicumque prim us in unum volumen conjuntix’ propter id ipsum, quia prim a philosophia non continuo ordine et ratione in iis pertractata videtur, Aristotélico ipsius disciplinae nomini TTpcoTT] 4>iXo(7o4>ía, SeoXoyía, CTO<t>ía praetulisse videtur eam inscriptionem, quae locum modo et ordinem

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horum librorum significaret, rà neTÒ TÒ (fnxjiKCt" Mesmo local, p. 27/28.“O nome p.€Tà Ta 4>uaiKá... significa... isto que, de acordo com a ordenação do apren­

dizado e da coleção dos escritos, segue-se aos escritos de Ciência N atural e não, como opinam Sim pl. Fís. e o neoplatônico H erênio ...: o que ultrapassa a natureza.” E. Zeller, D ie

Philosophie der Griechen, II, 2 3 1879, p. 80.24 A lexan dre in M etaphysica ed. Hayduck 1891, p. 171,1. 5-725 Com p. Anal. Ant. B, 23 (68b 35s.); Analit. Post. A, 2 (71b, 33ss.); Top. Z. 4 (141b 3ss.)

Fís. A, 1 (184a 16ss.); A, 5 (188b 30ss.) M et. A, 11 (1018b 30ss.); Z, 3 (1029b 3ss.); Et. N icom . A , 2 1095b 2s,).

26 C om m en taria Asclepii in Aristotelis M etaph. ed. Hayduck, página 3, linhas 28-30.

27 M esmo local, p. 1,1. 8-13 e 19-22.28 Atualmente, também P. M orau x r e fe r e - s e c o m o m e s m o sentido a Asclépio, p, 1,1.12-18,

assim como à passagem de Alexandre, ao escrever (Ibidem p. 315): “Alexandre e Asclépio sem dúvida aproximam-se m ais da verdade ao procurar justificar a ordem Física-Metafísica a partir de considerações didáticas: a fraqueza de nosso espírito força-nos a começar pelo

estudo de coisas imperfeitas e segundas, objetos da Física, para passar em seguida àqueles seres perfeitos e primeiros, objetos da Filosofia Primeira; com relação a nós, essa, portanto, vem depois da Física e merece o nome de p.eTÒ t ò 4>u(TiKá” <em francês no original N .T .X Moraux, contudo, não percebeu que também a interpretação tradicional do nosso título não encontra outro apoio (além das passagens similares tratadas abaixo) que as mesmas passagens de Alexandre e Asclépio às quais ele recorreu! Por isso M , tam bém não chegou a nenhuma tom ada de posição inteiramente decisiva com respeito à nossa questão.

29 Com p. a esse respeito, H ayduck, no prefácio ao C om entário à M etafísica de Asclépio. - A. B. K rische, D ie theolog. Lehren der Griech. D enker, 1840, foi da opinião (p. 269) que Asclépio recorreu a A drasto de Afrodísia (início do século 2. d. C .). C om isso, a fonte imediata des­sas teorias seria ainda m ais antiga do que Alexandre. Com p. a isso a referência a Adrasto feita abaixo na seção 3.

30 E la reza traduzida: “O anterior, portanto, é de dois m odos; de um lado em relação a nós (rrpòç rp âs'), de outro, em relação à natureza (npòç t t \v fyíxnv). Em relação a nós é anterior o que nos é m ais conhecido e o que nós apreendemos m ais facilmente, como os nomes e as sílabas em relação às letras. E m relação à natureza, é anterior o que é mais simples segundo a substância ( r a r a Tijv ouríav), como as letras em relação aos nomes,

e o caminho é, agora, inverso. Pois procedemos por decomposição do composto ao mais simples, m as anterior segundo a natureza; a natureza, por sua vez, elabora o composto a partir do simples.” Themistii in Arist. Phys. Comment. Ed. SchenkI. p. 1 ,1 .14ss.

31 “O tratado é intitulado M eTa TÒ cjwaiKá não a partir d a disposição da coisa (oí> Kxrrà TT)V e£iv toí> iTpáyfiaTOs), m as a partir da ordem da leitura, pois ele trata dos primeiros princípios físicos”. Scholia in Arist. Coll. Chr. A . Brandis, 1836, p. 520a 2 ss, - O comentário anonimamente transmitido (in Codex Urbinas 49) do qual provém esse escólio é, segundo constatação do autor, idêntico ao comentário à M etafísica de Jo ã o Filopono. E sse último co­mentário não foi (como indicam a p. 637 da últim a edição de Überweg-Praecbter e a Rea-

lencyclopádie de Pauly-Wissowa sob João Filopono) conservado apenas na tradução latina

rrR 1 Sobre a Metafísica de Aristóteles

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de Patrício (Ferrara 1583), mas também no original grego, em um manuscrito da Biblioteca N acional Austríaca, em Viena (Cod. Vindab. Phil. Graec. 189, foi. 130r - 213v). U m a indicação a esse respeito encontra-se já na edição Aristóteles de Buhle, vol. 1 (Biponti 1791), p. 304, e à pergunta do autor a respeito da existência do manuscrito da referida biblioteca sob o 23. X . 53, foi confirmado o mesmo simultaneamente com referências m ais precisas. O início do texto corresponde palavra por palavra ao que é reproduzido por Brandis como anônimo, conforme Codex Urbinas 49. Adem ais, o início e o final do texto da edição la­tina de Patrício são um a tradução literal deste mesmo texto grego. Sobre isso traz mais pormenores um decisivo relato do autor, a ser em breve publicado em H erm es,

12 "M as é necessário saber que existem seis títulos para essa pesquisa... O título de Aristóteles (sc. Categorias) é, porém, melhor do que todos os outros... Ele supera até o título A ntes dos Tópicos’. S e é mesmo lícito tom ar como título o lugar na ordenação (t t )v T áijiv), como na M etafísica ( ú s èv T fj M ê t ò t ò ( ( n ja i r á ) , então isso tam bém é, naquele caso, justificado; pois o N ou s é a origem de todas as coisas físicas. Aqui, contudo, isso não está justificado; pois não apenas essas (sc. as Categorias) ocorrem antes dos Tópicos, mas tam bém o Periher-

meneias e A nalíticos.” Scholia in Arist. Coll. Brandis, 32b 31 - 33a 23.53 Isso desde a indicação de R. Eucken na sua Geschichte der philosophischen Term inologie (1879),

p. 183, que foi então assum ida por R. Eisler no artigo M etaphysik ’ do seu W ôrterbuch der

philosophischen Begriffe. Sobre a falsificação, veja o artigo ‘Herennios’ de Praechter na R ea-

lencyclopãdie d er klass. A ltertumswissenschaft de Pauly-Wissowa.,4 “O que trata das essências separadas de toda matéria (TTepl t ò xwpiorò. trávTT] Trjs

í3Xr|s) e do puro ato do espírito em a to ,... a isso eles denominam Teologia e Filosofia Pri­meira e M etafísica (|o.eTÒ t ò 4>uaii<:á), pois seu lugar é além do que é físico (à s euéiceiva

Tojv 4*1X71 kü)v TeTcry|iévr|v)”, Simplicii in Phys. C om m ent, ed. Diels, p. 1,1.17-21. A isso há, ainda, a comparar; “Proceder a pesquisas rigorosas sobre o que é especialmente relativo ao princípio (àpxfjs) constitutivo da essência, o qual existe separado como ser pensável e imóvel, é matéria da Filosofia Primeira ou, o que quer dizer o mesmo, do tratado sobre o que ultrapassa o físico (rfjs ínrèp TÒ c|>UCTiK:à TTpayixaTeías), que ele próprio denomina Metafísica (|j.eTà t ò 4>wiKá)”. M esmo local, p. 257,1. 20-26.

15 O escólio reza traduzido: “esse livro (ou seja a M etafísica de Teofrasto), não o conhecem Andrônico e Herm ipo, pois dele não fazem de modo algum menção no catálogo dos li­vros de Teofrasto. Nicolau, contudo, menciona-o no Gecopía twv ’ ApiCFTOTéXous M erà Ta (|)UCTiKá, no qual diz ser ele de Teofrasto. Estão nele, contudo, como que um as poucas investigações preliminares do tratado inteiro.”

16 Texto da passagem traduzido: "Q uando Aristóteles procurou sossegar esse pedido (se. de Alexandre) por um a preferência (sc. porque Alexandre havia ouvido suas conferências esotéricas), justificou-se com respeito àquelas conferências dizendo que elas teriam sido publicadas e tam bém não publicadas. Pois, na verdade, o seu tratado é a M etafísica (f) [if TÒ t ò 4>wiicà TTpayiiaTeía), um a vez que ele não tem qualquer aptidão para o ensino c o aprendizado, mas havia sido escrito desde o início apenas como ilustração para os jâ instruídos (to Is Treiraiôevnévois).” N o lugar de f] ixerà Ta 4>imKà irpavixareía a mais nova ediçáo crítica do texto (de K . Ziegler) tem f) Trepl t ò <t>wiKà upay^aTeía, em cujo

Hans Relner

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aparato crítico tam bém não é mencionado qualquer codex que tivesse neTci. Apenas é

denominado um editor mais antigo (Xylander, século X V I ) que optou por essa leitura

(evidentemente tornada dom inante através dele).

37 Überweg-Praechter, GrundriJ.? d er Geschichte der Philosophie, 1 12 p. 562; G ercke in Pauly-W issowa,

Realencyclopãdie d. klass. Altertumswissenschajt, verbete Adrastos v. Aphrodisias.

38 Überweg-Praechter, Ibidem p. 561; Pauly-W issowa, Ibidem, verbete Alexander von Aigai,

39 Entre outras coisas, ele escreveu um a história do imperador Augusto. Com p. ao verbete

Nicolaus v. D . de R. Laqu eu r em Pauly-Wissowa.

40 As respectivas passagens estão reunidas e reproduzidas a partir da tradução latina de

Averroes por G. Roeper, em Lectiones A bulpharagianae, D anzig 1844, p. 35-43. F. Freudenthal

fornece as passagens traduzidas para o alemão a partir do texto árabe (e aumentadas em

um a citação) em D ie durch A verroes erhaltenen Fragm ente A lexanders zur M etaphysik des A ris­

tóteles, A bh. der Berliner Akadem ie 1884, p. 126/7.

41 A s duas únicas (das seis) passagens de Averroes que mencionam o escrito de N icolau e que

tocam a nossa questão, ainda que apenas de longe, rezam (na tradução de Freudenthal):

'Assim, tornou-se claro a partir dessa investigação o que contêm os livros separados dessa ci­

ência que são atribuídos a Aristóteles e que eles mostram a melhor ordem na sua seqüência,

não estando nada sem ordem e seqüência correta, conform e ouvimos afirmar N icolau de

Dam asco em seu livro. Por isso ele escolheu, como acredita, uma seqüência melhor para

ensinar essa ciência.’’ In A rist. m etaph. p rooem . p. 312 E .

“E por isso percebemos que o saber mais próprio ao prim eiro Deus é evidentemente o que

está contido na Filosofia Prim eira e que o saber próprio às essências, que estão sob ele,

corresponde às ciências particulares que estão sob a Filosofia Primeira, como explicou o

peripatético Nicolau em sua Filosofia Primeira. E por isso vemos que justam ente através

da aquisição dessa ciência o homem é apreendido na completude de seu ser.” In A rist.

m etaph. X I I . 4 n 4 4 p. 3 4 4 E .

42 “Agora, quanto à posição da M etafísica no aprendizado das ciências (na seqüência das au­

las), ela vem após a Ciência N atural... E bem de se supor que essa ciência seja denominada

M etafísica apenas porque ela é aprendida após a Física, ou seja, devido à sua posição no

aprendizado das ciências. A parte essa perspectiva, ela é anterior a todas as outras segundo

o ser e, por isso, é tam bém denominada Filosofia Primeira.” M ax H orten , D ie M etaphysik

des A verroes, nach dem Arabischen übersetzt und erlàutert, 1912, p. 8.

43 "A expressão após a Física' designa um posterior em relação a nós, pois o que nós primeiro

apreendemos (percebemos) é a existência e somente por conhecermos as suas relações

compreendemos este ser específico, a saber, o da natureza. M as o nom e com o qual essa

ciência merece ser designada quando é contemplada no seu próprio ser é o nome antes da

Física’, pois as coisas que nela são investigadas são, segundo seu ser e sua universalidade,

anteriores à Física.” Avicenna, quarta Sum m a de Buch von der Genesung der Seele, versão alemâ

de M . H orten , H alle 1907, capítulo 3, p. 35s.

44 O s principais resultados das pesquisas anteriores sobre esses catálogos encontram-se em

Überweg-Praechter, G rundrijl der Geschichte der Philosophie 1 12 p. 354. Eles agora estão ultrapassa*

dos por Paul M oraux, L es listes anciennes des ouvrages d ’Aristote, Louvam 1951 (392 páginas!)

2 0 | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 131: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

45 Assim, áiTopruiáTtóv 'O^ripiKfiv s ’, àTTopTpcnw 0eíxov a ’, 4>uctikõv Xrf, Kcrrà cttolxêIov

<TrpopXr|p.áTCúv>, TTpofiXrijiáTwv emTeGeaiiévwv <p’>, TrpopXrniáTOV ArpoKpiTeuov (3\

46 F. Littig. A ndronikos von Rhodos, Parte I., Gymanasiumsprogramm, M ünchen 1890. Essa

obra, assim como as suas continuações (Parte I I e I I I , Gymnasiumsprogramm Erlangen

1894 e 1895) tam bém são utilizadas nas exposições seguintes deste ensaio.

463 Q ue a posição da M atem ática entre os escritos de Ciência N atural e os teológicos’ não

precisa impedir uma relação de ordem direta entre os últimos, mostra-o a passagem M et.

E 1 1026a 27-30, tom ada em seu contexto.

47 Jo a . Philoponi (olim Am m onii) in Arist. Categorias C om m en taria , ed. Busse, Berlin 1898, p.

5,1. 16-22. Tam bém semelhante em : Elias (David) In Categor, em Brandis, Scholia in A rist,

p. 25b 39ss.

471 Com o segundo modelo é ainda m encionada a ordenação dos escritos de Epicarmo por

Apolodoro, o que pode, aqui, ficar fora de consideração,

48 Estas equiparações resultam de Simplício in Categ. ed. Kalbfleisch (Berlin, 1907), 63, 21ss.

e 157, 18ss., em conexão com Aristóteles, M etafísica A l. ,

49 M . Sester chegou a esta solução final para a nossa questão no seu trabalho de diplomação

acima mencionado (nota 1) e tam bém eu próprio pronunciei-me em favor dela na m inha

conferência de M arburg, 1952.

50 Studien zur Entstehungsgeschichte der M etaphysik, p. 180.

51 E. H ow ald . D ie Schriftenverzeichnisse des Aristóteles und des Theophrast, em H erm es LV, 1920,

p .205. E . H eitz já admitiu a existência de um a lista original comum (em lugar de uma

derivação da lista do autor anônimo a partir da de Diógenes) em D ie verlorene Schriften

Aristóteles, 1865.

52 V ide a obra indicada na nota 13, especialmente Chapitre III .

53 Überweg-Praechter, 1 12 p. 485.

54 Chr. A . Brandis, H andbu ch der Geschichte der griechischen und ròmischen Philosophie. II, 2, 1,

1853, p. 114-8.

K M esm o local, 432/3.

55:1 Ainda mais claro no Protréptico fr. 52 (Rose 1886, p. 60, 16 - 61, 17). Por esta razão a

“filosofia primeira" era para o jovem Aristóteles ainda primeira em cada perspectiva e não

podia chamar-se |j.eTa TÒ <f>i)CTiKá. Agradeço ao prof. M oraux a indicação desta passagem

e a p rov a a ser retirada daí de um a posição invertida de A ristóteles no início platônica

quanto ao nosso problema.

56 As 21 passagens da M etafísica que mencionam as presentes questões como já tendo sido

tratadas anteriormente são: A , 1 ,981b25; A , 3 ,983a33; A, 5 ,9 8 6 a l2 ; 986b30; A , 7 ,988a22;

A, 8 , 989a24 ; A , 1 0 ,9 9 3 a l l ; A, 1 5 ,1021a20; A, 3 0 ,1025a33; Z , 1 2 ,1037b8; H , 1 ,1042b7;

© , 8, 1049b36; I, 3, 1054a30; K , 1, 1059a34; K , 6, 1062b31; A , 7 , 1072b2; 1073a5; A , 8,

1073a32; M , 1 , 1076a9; M , 9 , 1086a32; N , 2 , 1088b24. A s 4 passagens de outros escritos

que anunciam para mais tarde o tratamento de um assunto abordado, o qual, então, ocorre

na M etafísica, são: Fís, A , 9 , 192a35; B , 2 , 194b l4 ; D egen er , et corr. A, 3, 318a6; D e caelo A ,

8, 2 7 7 b l0 . A s duas referências temporalm ente indeterminadas à M etafísica estão em D e

ínterpret. 5 , 17al4 (não 17a4, como consta erradamente em Bonitz) e E th. N i c. A , 4 , 1096b30.

Hans Reiner \

Page 132: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Por fim, as duas passagens que pressupõem a M etafísica como sendo anterior são: D egen er.

et. corr. B, 10, 336b29 e Fís. A, 8, 191b29. E m Bonitz encontram-se todas essas passagens

no In dex Aristotelicus p. 101a e 103b, com reprodução de pequenos trechos de texto.

57 Comp. por ex. Fís. A , 9 , 192a35: “sobre o princípio referente à Idéia, contudo... a determi­

nação rigorosa é matéria da Filosofia Primeira, razão pela qual isso permaneceria reservado

àquela oportunidade”. A s inúmeras passagens da M etafísica que mencionam passagens de

escritos de Física ou outros quase sempre fazem referência a provas já desenvolvidas ou

apresentações para fundamentação ou complementação das exposições em curso. A fami­

liaridade com essas outras passagens é, então, objetivam ente pressuposta.

58 M etaf. Z, 3 (1029b 3 e 12); A nal. Post. B , 13 (97b 29).

59 §25

60 § 13 e 14.

61 993b 7-11.

62 R ep. V I , 14, 509 B .

63 Rep. V II , 2, 516 C ; Heidegger Ibidem, 48 .

64 V ide especialmente E , 1.

65 Fr. 49 (Rose); Jaeger, Aristóteles, p. 163.

66 A sclepii em M etaph . ed. Hayduck, p. 4, p. 8-15; A lexan dri A phrod. em M etaph . V I I , ed.

Hayduck, 515 ,11 . O s dois relatos na verdade contradizem-se quanto aos pormenores, mas

revelam com certeza que Eudemo teve alguma participação na edição da M etafísica. Comp.

Zeller, K leinere Schriften I, p. 2 0 2 -4 ; Phílos. d, Griechen II, 2 2 p. 84.

67 Zeller, Philos. d. Griechen, II, 2, 3 870.

68 A té onde o autor pôde constatar, isso até agora não fora notado. Contudo, resulta ine­

quivocamente do fragmento I V (Spengel) de um relato de Simplício em seu comentário às

Categorias (ed. Diels p. 48 ,1 . 3 ss.). A lém disso, E udem o expôs no início de sua Física um a

questão fundamental da qual ( c o m o nota Sim plício expressamente) A ristóteles trata na

M etafísica. A sua conclusão para essa questão, no entanto, ele reservou para pesquisas pos­

teriores, mais aprofundadas e conclusivas (e is TeXeioTÉpas TrpayiiaTeías àvéfSXr|To).

69 Überweg-Praechter 12, p. 403.

70 Observação do codex E a respeito do título do livro OC. Com p. Asclep. em M etaph . ed.

Hayduck, p. 4 ,1 . 21/2.

71A esse respeito, E . N achm anson, D er griechische Buchtitel, em Gõteborgs H õskolas Arsskrift,

X L V II , 1941, caderno 19.

72 Com p. acima, nota 55“ e o texto a ela correspondente.

73 Comp. às indicações dadas acima na conclusão da seção 3.

74 U m ensaio subseqüente irá esclarecer o surgimento do engano da teoria até hoje vigente

na nossa questão e, assim, estabelecer mais firmem ente o ponto de vista recém-obtido.

| Sobre a Metafísica de Aristóteles

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FILO SO FIA P R IM E IR A , FILO SO FIA S EG U N D A E M ET A FÍSIC A EM A R IS T Ó T E L E S

Augustin Mansion

Aristóteles - costuma-se dizer - não usava o termo "metafísica”, mas desig­nava esta disciplina filosófica, a mais elevada de todas, pela expressão “filosofia primeira". Gostaríamos de examinar o que há de exato e inexato nesta afirma­ção, que se tomou um lugar comum das exposições da filosofia aristotélica. Essa afirmação penetrou até os manuais e pode, aliás, se reclamar de uma longa e venerável tradição, pois a encontramos em Alexandre de Afrodísia, que, sem dúvida, não fazia senão repetir o que já se ensinava antes dele1.

Considerando um pouco mais de perto os próprios textos de Aristóteles, percebe-se que a identificação pura e simples da “filosofia primeira” com a metafísica acarreta alguma dificuldade. Se, para evitar todo prejulgamento, começamos por identificar a “metafísica” com a ciência filosófica suprema de Aristóteles, esbarra-se com o problema levantado por W. Jaeger: Aristóteles sempre atribuiu o mesmo objeto à ciência suprema ou, antes, como Jaeger brilhantemente descreveu, não se deve reconhecer que, no curso da evolução de seu pensamento, o Estagirita aderiu a concepções notoriamente diferen­tes dessa ciência e de seu objeto? Quer se admita ou se rejeite as opiniões do crítico alemão, devemos lhe conceder, ao menos, que Aristóteles se serviu de expressões divergentes umas das outras para designar sua metafísica e que há igualmente em Aristóteles variações fáceis de constatar nas descrições do objeto da ciência filosófica em questão.

Ao contrário, a partir do momento em que se aborda os textos, não muito numerosos, mas bastante significativos, nos quais se trata expressamente da "filosofia primeira”, constata-se que o objeto que ele lhe atribui é, em suma, sempre o mesmo, ao menos a cada vez que esse objeto é mencionado de modo suficientemente claro, o que ocorre ordinariamente. O objeto em questão não é outro senão o ser supra-sensível: formas análogas ou semelhantes às

Augustin Mansion \

Page 134: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

Idéias platônicas e separadas, como elas, da matéria; ou, ainda, Deus, pri­meiro motor, caracterizado por sua imaterialidade e imobilidade; ou, enfim, a inteligência ou a alma enquanto inteligente. De fato, veremos no curso da análise desses textos, cujo exame virá a seguir, que é como seres supra-sensíveis ou espirituais que as diferentes realidades que acabamos de enumerar figu­ram, aos olhos de Aristóteles, como objeto de sua filosofia primeira. Ao que parece, ele se inspirou, aqui como em muitos outros pontos, nas posições de seu mestre Platão, embora, obviamente, as transponha: toma de empréstimo, em grandes linhas, sua problemática, busca na mesma direção que Platão a solução das questões a resolver, mas termina por propor uma solução nova, destinada a substituir a de seu mestre.

E o que transparece, ao menos parcialmente, em duas passagens da Física sobre a filosofia primeira, nas quais o estudo da forma, mas da forma não unida à matéria, é remetido a esta disciplina superior. Encontramos a primeira passagem na conclusão do livro primeiro da Física (I 9 192a34-b2): acaba de ser analisada a questão da matéria e suas propriedades; quanto ao outro prin­cípio das coisas (materiais), correlato do precedente, a forma, o autor remete o estudo para mais tarde: se se tratar de formas não unidas à matéria, portanto imperecíveis e eternas (isso não é dito no texto, mas apreende-se da oposição com o caso mencionado imediatamente depois), o problema de saber se uma tal forma é única ou se são muitas; a seguir, o que tais formas são em si mesmas, estes problemas dizem respeito à filosofia primeira; se, ao contrário, se tratar das formas naturais, isto é, das formas constitutivas dos seres da natureza e, nesta medida, perecíveis como os seres da natureza, o estudo deverá ser feito na seqüência dos estudos pertencentes ao domínio da física2.

Não se pode imaginar uma fidelidade mais acentuada ao esquema de explicação platônico, vinculada a uma independência de pensamento que res­salva expressamente a hipótese de uma explicação final claramente afastada da do platonismo clássico. Para as coisas deste mundo, onde a forma é um princípio imediato de explicação indispensável, busca-se a explicação última em um mundo superior, mundo de formas imateriais, que concerne a uma ciência igualmente superior. Porém, não se pode e não se quer dizer nada ainda concernente à essência própria destas formas, as quais poderiam se reduzir a apenas uma, entenda-se, a Deus, Primeiro Motor, cuja essência deverá, então,

I sgbre a Metafísica de Aristóteles

Page 135: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

ser concebida como totalmente diferente da essência das coisas materiais e t omada em estado puro e sublimado. Notemos, en passant, que o estudo das íbrmas imersas na matéria é atribuído à física sem que seja excluído um estudo destas mesmas formas integrando o objeto de uma ciência superior; de fato, Aristóteles não se pronuncia aqui a respeito disso.

A outra passagem da Física que nos interessa encontra-se de modo bastante semelhante no final dos dois capítulos que abrem o livro II, os quais são consa­grados à noção e à realidade correspondendo ao termo <}>í)cn.5 , isto é, em suma, ao objeto da física. O desenvolvimento termina por um parágrafo que dá a resposta à questão: é a “natureza” como matéria ou, antes, como forma que o físico deve estudar? A resposta consiste em dizer que o físico deve se ocupar de uma e de outra, mas sobretudo da forma. Isso dá ocasião a uma questão subsidiária: até onde se estenderá o estudo da forma pelo físico? E, novamente, a resposta limita o estudo às formas unidas à matéria, caracterizadas, entre outros, pelo fato de serem separadas ou separáveis como formas (eiSet, por seu conteúdo formal), mas sempre existindo em uma matéria. “Quanto à maneira de ser e à essência do que é separado”, acrescenta Aristóteles, “é obra da filosofia primeira determinar”3.

Assim, o que nos ensinam as duas passagens analisadas da Física é que o estudo das formas imateriais - quaisquer que sejam, aliás, sua natureza e seu número - pertence propriamente à filosofia primeira, enquanto as formas imersas na matéria são do domínio da física. Não se aborda, nem para rejeitar nem para admitir, o estudo dessas últimas formas por uma ciência superior (filosofia primeira ou outra).

Uma outra série de textos relaciona explicitamente a filosofia primeira com Deus, Primeiro Motor eterno, imaterial e imutável. O mais explícito deles é o do livro V I (E), capítulo 1, da Metafísica4, onde se encontra a exposição bem conhecida das três ordens de ciências filosóficas, que se distinguem segundo o grau de abstração ou de separação da matéria e do movimento que carac­teriza seus respectivos objetos5. O objeto da ciência mais elevada é descrito aqui como uma realidade eterna, imutável e separada (da matéria) e a própria ciência é dita anterior (irpOTepa) à matemática e à física (1026a 10-15) e é de­signada, imediatamente após, com o primeira (irpcurri), ocupando-se de objetos

separados e imóveis, objetos que realizam perfeitamente as condições que de­

Âugustin Mansion |

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vem desempenhar as causas entendidas no sentido forte, a saber, a de serem eternas (ibid., 1.15-18). Segue a enumeração e a designação por um vocábulo próprio das três "filosofias” que acabamos de distinguir pelas características de seus objetos: "filosofia matemática, física, teológica”6. Não nos deteremos presentemente à ordem dos termos que, nesta enumeração, pode suscitar uma questão interessante e que, sem dúvida, não deixa de ser significativa.

A denominação de filosofia teológica, chamada, antes, de filosofia primeira, é imediatamente justificada pelo autor: a divindade só se encontra entre as realidades imateriais, imutáveis e eternas mencionadas precedentemente e, de outro lado, a ciência reconhecida como a mais elevada (a mais honorável: Tip.i(imrrr|) entre as ciências teóricas deve conhecer necessariamente a re­alidade a mais elevada, caracterizada pelo mesmo superlativo que a ciência correspondente (ibid., 1.18-23). Vem, enfim, a questão subsidiária, mas de im­portância capital, tratada um pouco sob a forma de apêndice (ibid., 1. 23-32): a filosofia primeira (designada desta vez expressamente por essa expressão 1.24) é universal ou é limitada a um objeto particular, uma realidade de um gênero determinado, possuindo uma natureza própria (entenda-se, neste caso, só o ser divino ou o ser imaterial por exclusão dos outros)? O sentido da questão é esclarecido pela comparação com as ciências matemáticas, entre as quais algumas têm um objeto particular, geometria, astronomia, opondo-se, assim, à matemática universal, que é comum a todos os objetos matemáticos, quais­quer que sejam. Depois vem uma resposta em dois tempos: a) se não existisse outra substância senão as substâncias naturais (logo, materiais), a física seria a primeira das ciências; mas b) se existe uma substância imutável (imaterial etc.), é à ciência que dela se ocupa que pertence a prioridade (írpoTepa) e é ela que é filosofia primeira, e é universal no sentido em que é primeira. Ela terá que considerar o ser enquanto tal: o que é esse ser e as propriedades que lhe pertencem enquanto ser.

Podemos deixar de lado as dificuldades tanto exegéticas quanto filosóficas provocadas por essa extensão universal da filosofia primeira, ciência de Deus, ao ser enquanto tal e, assim, a todo ser. Notemos, simplesmente, o que para nosso propósito aparece com toda a clareza requerida pela exposição de Aris­tóteles. Novamente, como quando se tratava do estudo da forma, a teologia, ciência de Deus, identifica-se à filosofia primeira porque ela tem um objeto

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 137: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

imaterial, superior às substâncias físicas; é, pois, antes de tudo, um objeto dessa ordem que caracteriza formalmente a filosofia primeira.

Os outros textos em que a filosofia primeira é igualmente relacionada a Deus, Primeiro Motor, não são muito explícitos a este respeito, mas se es­clarecem perfeitamente se os lermos considerando os dados fornecidos pelo capítulo da Metafísica que acabamos de analisar. Primeiramente, há duas pas­sagens que são simples remissões à filosofia primeira, nas quais tal ponto da doutrina que Aristóteles não deseja desenvolver no momento poderia ser provado ou examinado mais minuciosamente. Assim, no De Caelo 1 8, após ter longamente exposto as provas físicas da unicidade do céu e do mundo, o autor acrescenta que isto poderia ser mostrado também por razões emprestadas à filosofia primeira e pela eternidade do movimento circular dos céus7. N o apelo a argumentos procedentes da filosofia primeira, já Alexandre de Afrodísia8 e, depois dele, os comentadores modernos9 viram uma referência, senão ao texto, ao menos à argumentação que se lê em Metafísica X II (A) 8, fim (1074a31-38): só pode existir um único céu porque existe apenas um único primeiro motor

imóvel que é imaterial.Do mesmo modo, no De motu animalium 6 700b7-9, Aristóteles lembra que

já se tratou nas exposições de filosofia primeira da maneira pela qual é movido o primeiro movido, que está sempre em movimento, e da maneira pela qual o Primeiro Motor10 move, alusão transparente ao conteúdo, senão ao próprio

texto de Metafísica X II (A) 6-8.No De generatione et corruptione 1 3 318a3-6, os termos são menos explícitos.

Da causa motriz, diz Aristóteles, que assegura a perpetuidade da geração, já se disse anteriormente, na exposição sobre o movimento, que há, por um lado, o ser imóvel em toda a duração do tempo, por outro, o ser que é sempre movido. E a uma filosofia diversa da física e anterior (upOTepcts) a ela que cabe tratar estes dois princípios11. A remissão ao tratado do movimento é uma referência à Física V III; quanto à filosofia distinta da física, à qual pertence o estudo do Primeiro Motor imóvel, é novamente aqui, sem dúvida, a filosofia primeira, ainda que não seja designada por esta expressão: é a filosofia (como bem se sabe, há o artigo Trjs) que é ao mesmo tempo diversa da física e tem a prioridade frente a ela (indicada pelo termo TTpoTépas); a designação é, no

caso presente, perfeitamente equivalente.

Augustin Mansion |

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À passagem precedente, se aproximará uma outra, na qual encontramos uma alusão semelhante a uma ciência mais elevada que a física, à qual per­tence examinar os princípios que dominam toda demonstração. A passagem encontra-se em Metafísica IV (r) 3 1005a33-b2. O texto foi emendado por W . Jaeger em sua recente edição do tratado12; como suas conjecturas não fa­zem senão tornar mais aceitável o sentido atribuído geralmente ao texto dos manuscritos, podemos adotar sem discussão as correções que o tornam mais claro. Lemos no texto que, como existe uma ciência mais elevada que a física (visto que o objeto desta, a natureza, ê apenas um gênero do ser), o estudo dos axiomas caberá àquele cujas considerações são acerca do que é universal e sobre a primeira substância; a física, acrescenta o autor, sem dúvida também é sabedoria (crocj/ia), mas não a primeira13. Observemos o duplo objeto atribu­ído às pesquisas daquele que podemos chamar o metafísico e que, no início do capítulo (1005al9-29), a propósito da posição do problema resolvido nas linhas que acabamos de resumir, assim como um pouco adiante (1005b5-ll) a propósito da solução deste mesmo problema, Aristóteles chama o "filósofo” (ò <j)iXócTOcj)Os): este objeto é, por um lado, o "universal", entenda-se, o objeto mais universal possível, o ser considerado enquanto ser (1005a28, 33, blO) e, por outro, a primeira substância. Acerca deste último ponto, no início do capítulo (1005a20-21), o autor apenas havia mencionado a substância como objeto; um pouco depois (1005b6), ele fala de toda a ordem da substância14. Em suma, não há nada de surpreendente neste momento da exposição, que está escrita, como todo o contexto, na perspectiva das posições desenvolvidas no início desse livro IV (cap. 1 e 2, início): a ciência filosófica superior é aí des­crita como tendo por objeto o ser enquanto tal e suas propriedades enquanto ser; em seguida (cap. 2), o ser sendo um termo com significações múltiplas, estas são levadas à unidade pelo fato de todas exprimirem uma relação com a significação primeira e principal, que é a da substância ou da oíxría.

O que pode surpreender é que, na passagem analisada, esteja em questão "a primeira substância” (1005a 35), o que se entende naturalmente da primeira das substâncias ou da substância mais perfeita - substância imaterial - , Deus. Isto não estava em questão desde o início do livro IV, mas, por outro lado, a expressão tem esta significação em algumas outras passagens dispersas pelas obras de Aristóteles. Assim, no Da interpretação 12 23a23-24, onde as "primeiras

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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substâncias" são dadas como exemplos de atos sem potência; em Metafísica VII (Z) 11 1037a33-b4, onde é lembrado que, fora do synolon resultante da união da matéria e forma, existem casos em que o tò t l t\v eivai é idêntico ao pró­prio ser, a saber, nas "primeiras substâncias”, nomeadas primeiras precisamente porque não existe nelas uma determinação em outras coisas ou em um sujeito que lhes sirva de matéria15. Talvez haja nesta menção da substância imaterial em 1005a35 um resíduo ou uma reminiscência de uma redação mais antiga, tal como, na linha seguinte (1005bl), no emprego do termo croctua16 e não ct)i/\o(joòía para designar a física, para marcar-lhe a dignidade e limitá-la, ao mesmo tempo em que nota que ela não é primeira (írpcífiTi), Mas, inversamente, pode-se conjeturar que mencionar, ao mesmo tempo, o universal e a substância imaterial como objetos de uma sabedoria superior à física provém do fato de o autor se posicionar do ponto de vista que adotará no fim do capítulo primeiro do livro VI (E): com efeito, conclui ali, como vimos, que a filosofia teológica ou primeira deve ser ao mesmo tempo a ciência mais universal como ciência do ser enquanto ser (1026a23-32).

Seja como for, o fato de notar, em 1005bl-2, que a física é uma sabedoria, mas uma sabedoria que não é a primeira, relembra muito naturalmente, por oposição, a expressão cj)iX.oao(j)L« TTpojTT], designando uma ciência superior, que o é, sem dúvida, em relação à física. Mas isso não impede que esta designação, objeto de nosso exame, esteja ausente de nossa passagem da Metafísica e de todo seu contexto. Por isso, não estamos de forma alguma autorizados a chamar de filosofia primeira esta ciência superior, da qual depende o estudo dos princípios do silogismo, e que é a ciência filosófica da substância, porque ela é, antes de mais nada, a do ser enquanto tal (de acordo com o início do capítulo 1). Se quisermos, podemos chamá-la “metafísica” e traduzir a palavra 4)i/Vxro<t>oç, que designa aquele que a exerce (1005a21, b6), por "metafísico”. Esta terminologia permanecerá, assim, de acordo com a que é utilizada na segunda aporia do livro III (B) 1 e 217, que encontra sua solução nesse capítulo do livro IV.

Devemos constatar, assim, para concluir este exame, talvez um pouco longo, da passagem 1005a 33-b2, que ele não nos ensina nada sobre o objeto específico da "filosofia primeira”, a qual não é sequer mencionada. É antes o inverso: ou­tras passagens estudadas acima lançam alguma luz sobre o sentido daquilo que acabamos de estudar. Inicialmente, são aquelas onde o nome e o objeto dessa

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filosofia primeira são citados expressamente; é sobretudo no texto de Da geração e corrupção I 3 318a3-6, examinado por último, que este objeto é claramente aludido, embora falte a denominação ordinária de filosofia primeira, substi­tuída pela designação de uma ciência superior, possuindo especialmente uma prioridade sobre a física.. A analogia com a passagem de Metafísica 1005a33-b2, é simultaneamente impressionante e esclarecedora. Entretanto, ela não nos permite afirmar que no último caso Aristóteles tinha em mente uma disciplina filosófica que ele teria chamado “filosofia primeira”; o contexto sugere mesmo que pensava, antes, no que, para evitar todo prejulgamento, gostaríamos de chamar uma metafísica de um tipo um pouco diferente.

Resta examinar ainda, em terceiro lugar, as passagens pouquíssimo nu­merosas nas quais a “filosofia primeira” é posta em relação com as funções superiores da alma humana.

A primeira pertence à importante introdução metodológica do De anima (I 1); ela figura em um tipo de digressão vinculada à conclusão de uma exposição que responde à questão: as “afecções” da alma - entre as quais Aristóteles cita o pensamento - pertencem todas ao indivíduo, composto de corpo e alma, ou existem algumas que são próprias apenas à alma (403a3-5)? A resposta é que estas afecções implicam em suas definições o corpo ou a matéria; a conclusão que daí resulta é que o estudo da alma pertence ao domínio da física, quer se vise toda a alma, quer se trate somente da alma que comporta as afecções que acabamos de mencionar (403a27-28). Esta conclusão conduz então à digressão que suscita a nova questão: a quem cabe o estudo das afecções ou funções que se pode fazer sem levar em consideração seu vínculo com tal matéria determinada ou são realmente independentes da matéria? A resposta à primeira alternativa pode ser negligenciada aqui (notemos somente o caso clássico do matemático que estuda certas propriedades pertencentes a um tipo de corpo determinado, sempre fazendo abstração deste pertencimento); na outra alternativa, trata-se de funções “separadas”, isto é, imateriais; elas serão então da competência daquele cujo domínio próprio é a filosofia primeira18. Aristóteles não diz quais fenômenos determinados tem em vista; de acordo com o que precede, não há dúvida que cogita o pensamento, mesmo se, como parece dizer, nem o pensamento nem, por conseqüência, a alma enquanto

Sobre a Metofiska de Aristóteles

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intelectual respondam de fato adequadamente à condição posta (403a8-16). Do ponto de vista que nos interessa, porém, tal objeto particular concerne à filosofia primeira na medida em que é imaterial.

A mesma doutrina é exposta de forma semelhante na introdução metodo­lógica do Tratado das partes dos animais livro I cap. 1, porém a filosofia primeira não é nomeadamente indicada ali. Partindo do princípio que o organismo vivo e cada uma de suas partes só possuem vida pela presença da alma ou de uma parte da alma, conclui-se que pertence ao físico estudar a alma enquanto ela determina aquilo que faz com que um ser vivo seja vivo - estudo que com­preende o da essência da alma ou da parte visada da alma e o estudo das propriedades que dependem desta essência da alma19. Daí não decorre que seja da competência do físico todo tipo de alma (641a22) ou a alma inteira (ibid., 28), mas, por isso, o autor é levado a pôr de forma expressa a questão: a física deve tratar de toda alma ou somente de uma certa alma (641a32-34)? O primeiro membro da alternativa é descartado porque, nesta hipótese, não haveria mais nenhuma outra "filosofia” distinta da ciência física. A razão su­bentendida é que, neste caso, a física deveria estudar a inteligência ou a alma intelectual. Ora, continua Aristóteles, o estudo da inteligência e o dos inte­ligíveis são inseparáveis e, por isso, todas as realidades imateriais seriam do âmbito da física (641a34-b4).

As mesmas posições que são desenvolvidas no De anima 1 e no Das partes dos animais 1 1 são retomadas, mas de um ponto de vista inverso e en passant, na Metafísica V I (E) 11026a4-6, onde, após ter exposto como os seres da na­tureza, objetos da física, devem implicar em sua definição uma referência à sua matéria, Aristóteles tira a conclusão: é da competência do físico estudar uma certa espécie de alma, a saber, toda alma que não é senão na matéria (note-se a formulação negativa).

Ao fim da argumentação, no De partibus animalium 1 1 641a36-b4, alguns detalhes podem parecer desorientadores, mas pode-se negligenciá-los aqui. Tampouco nos deteremos em outras particularidades da exposição: o autor distingue a alma de suas partes e, por extensão, as diferentes espécies de alma atribuídas a um mesmo indivíduo; é o vocabulário do período de transição20: a alma ainda não é considerada como a forma substancial do corpo, ou melhor, do ser vivo, e por isso tampouco é concebida como estritamente una. Sabe-

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se que, mais tarde, no De anima, Aristóteles afasta-se das posições de origem platônica que tomam as partes da alma como distintas em função de sua loca­lização em diversos órgãos. Inicialmente, ele oporá as partes ligadas ao mesmo organismo, mas distintas porque respondem a noções distintas e produzem atos de espécies diferentes21; finalmente, Aristóteles substituirá o vocabulário referente a partes por uma terminologia menos imagética, em que só estão em questão potências ou faculdades respondendo às diversas funções22.

Estes detalhes, aliás, não têm muita importância para o nosso propósito, exceto para nos lembrarmos que os textos examinados em último lugar não pertencem à última parte da carreira de Aristóteles, mas, antes, parecem precedê-la de pouco. Nestes textos encontraremos uma idéia já formulada pelo autor nas diversas passagens analisadas anteriormente, mas a propó­sito de objetos de outra ordem. Deve-se reconhecer, dizia Aristóteles, uma ciência filosófica superior à física, a saber, aquela que se ocupa do princípio imutável do movimento (Da geração e corrupção I 3 318a5-6). Acima da física, que é uma certa sabedoria, mas não a primeira, há uma ciência superior que se ocupa universalmente de todo ser e da primeira das substâncias (Metafí­sica IV (F) 3 1005a33-b2). E, no apêndice ao capítulo 1 do livro V I (E) do mesmo tratado, lemos na primeira parte da resposta à questão tratada nestas poucas linhas23: “se não há alguma outra espécie de substância fora daquelas constituídas pela natureza, a física deverá ser tomada como a primeira das ciências”. Mas há, de fato, uma substância imutável e a ciência que dela se ocupa terá prioridade sobre a física e será filosofia primeira. De todas as passagens passadas em revista até o momento, a última é a única na qual se trata de modo explícito, no texto ou no contexto, de filosofia primeira. Aristóteles também a tinha em vista nos lugares citados onde fala somente de uma ciência superior à física? Como notamos a propósito de cada um dos textos analisados, isto é provável em certos casos e duvidoso em outros. Resta que, tanto na introdução do De anima quanto na do Das partes dos ani­mais, é em razão de sua imaterialidade que, no ser vivo, alguns fenômenos e, em particular, o pensamento devem, aos olhos de Aristóteles, ser objeto de uma ciência filosófica superior à física, que esta ciência seja dita filosofia primeira, no primeiro caso, ou que o autor omita especificá-la, como no segundo caso. Deste modo, chega-se à conclusão que se impôs pelo exame

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das duas primeiras séries de passagens nas quais está em questão a filosofia primeira e seu objeto: este objeto, de qualquer forma que ele se diversifique in concreto, é sempre caracterizado por sua imateriaiidade, enquanto é pre­cisamente objeto próprio dessa filosofia primeira.

* * *

Podemos, portanto, concluir do exame dos textos que o objeto específico e característico da filosofia primeira de Aristóteles não é outro senão o imaterial, de qualquer modo que seja. Em suma, é o que Bonitz tinha dito há mais de oitenta anos em seu célebre Index (ver u p o / r o ç , p. 653a23): ttpcoTT] òiXocroòía, isto é, f] 4>iAocroc|)ía T] "nepl t ò TrpwTa, 0eia, àicívTiTa, x^piaTa24.

Porém, isto suscita imediatamente uma questão subsidiária: a que tí­tulo esta filosofia é dita primeira? Esta designação indica simplesmente a posição, a dignidade ou o valor que Aristóteles atribui a esta disciplina filosófica em relação a todas as outras, ou ele a nomeia primeira porque atinge como objeto a realidade mais elevada, a mais perfeita, dito de outro modo, o próprio ser primeiro? Não há dúvida que o segundo membro da alternativa corresponde ao pensamento do Estagirita, ainda que apenas em Metafísica V I (E) 1 encontremos indicações algo claras neste sentido, mas elas são suficientes e nenhum outro testemunho vem desmenti-las, alguns até discretamente as apóiam.

Quando, no apêndice que termina o capítulo supracitado (1026a27-30), Aristóteles toma primeiro a hipótese segundo a qual não haveria outras subs­tâncias senão as da natureza, concluindo que a física seria então a primeira das ciências, está claro que a prioridade da física decorreria no caso de não existir nenhum objeto superior ao seu. Depois, quando o autor opõe a isto a existência de uma substância imutável, entenda-se, imaterial e de algum modo divina, segundo as indicações dadas acima (1026al5-22), e conclui, desta vez, que a ciência que dela se ocupa tem a prioridade sobre a física e é verdadeiramente a filosofia primeira, é não menos claro que a primazia atribuída a esta última lhe pertence em razão da dignidade de seu objeto.

Aliás, antes de chegar ao parágrafo final, que parece ser cronologicamente posterior à exposição precedente relativa às três ordens de "filosofias", Aris­

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tóteles tinha anunciado de maneira expressa, a propósito da filosofia simul­taneamente primeira e teológica (cf. 1026al6,19), que a ciência mais elevada deve ter também o objeto mais elevado25, concorde com o que havia afirmado na Ética Nicomaquéia VI 6, onde utiliza uma terminologia mais frouxa, e sem dúvida mais antiga, a propósito da aotfáa, a qual, diz, deve ser entendida como ciência dominante, cujo objeto são as realidades mais elevadas (tov TifiiwTCXTOJV, 1141a 20).

Mais acima, sempre em Metafísica V I (E) 1, essa maneira de ver já é insi­nuada na passagem onde a ciência teórica que atinge o eterno, o imutável, o imaterial é dita possuir uma prioridade sobre a física e as matemáticas: para mostrá-lo, os caracteres distintivos dos objetos das três ciências em questão são imediatamente lembrados e de algum modo postos em oposição uns aos outros (1026al0-16). H á a mesma insinuação na polêmica contra os sistemas dualistas ou pluralistas dos predecessores de Aristóteles, Metafísica X II (A) 10 1075b20-22: eles deveriam admitir alguma coisa que se opõe como contrária à sabedoria (cro(j)ía) e à mais elevada das ciências: esta necessidade não existe na explicação aristotélica, segundo a qual não há nada que seja contrário ao ser primeiro (tçú upo/roj). (Sendo assim, subentende o autor, o oposto da sabedoria, não tendo objeto, não existe). Vimos que, de modo semelhante em Metafísica IV (r) 3 1005a33-b 2, se reconhece, além da física (que é uma sabedoria, mas não a primeira), uma ciência superior, cujo objeto não é mais limitado a um gênero de seres particulares e que compreende, além disso, a primeira das subs­tâncias. Há, enfim, no mesmo livro IV (r) da Metafísica, no capítulo 2 (cujo texto teve de sofrer remanejamentos), as linhas suficientemente claras, 1004a 2-6: "há, pois, tantas partes da filosofia quantos são os tipos de substâncias; será preciso, então, que haja entre estas partes uma filosofia primeira e uma outra que a siga, pois o ser26 se divide imediatamente em gêneros e, por via de conseqüência, as ciências corresponderão a estes gêneros”. Segue-se uma comparação com as matemáticas. Esta passagem, com seu contexto, suscita sérias dificuldades à exegese, às quais voltaremos mais à frente. Contudo, é manifesto que Aristóteles afirma ali que a posição e a primazia das diversas ciências filosóficas são determinadas pela posição ou pelo valor do ser de seus objetos. De momento, isso é suficiente.

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Os dados recolhidos até aqui permitem responder, doravante, à questão suscitada no início deste artigo: em que medida pode-se identificar a “filosofia primeira” com a “metafísica” de Aristóteles? De um certo modo, pode-se ter a impressão que o próprio Aristóteles deu a resposta, visto que o apêndice que fecha o capítulo Metafísica V I (E) 1 tem precisamente por objetivo mostrar que a filosofia primeira, tendo por objeto a substância imutável ou Deus, é, contudo, uma ciência universal, isto é, se estende a todo ser e estuda o ser en­quanto tal27. Mas o simples fato de Aristóteles suscitar a questão e crer dever provar, ainda que brevemente, a consistência de sua resposta mostra que há ao menos uma nuance que separa sua concepção de filosofia primeira da de ciên­cia do ser enquanto tal, ainda que elas sejam inseparáveis e, em certa medida, coincidam. Retenhamos, pois, que a filosofia primeira, considerada específica e formalmente, é aquela que tem por objeto próprio o imaterial ou Deus. Claro está que a disciplina filosófica que tem como objeto próprio o ser enquanto tal, portanto tomado em toda sua extensão, não se confundiria inteiramente com a filosofia primeira. Mas as breves indicações de Aristóteles, no final de Metafísica V I (E) 1, visam precisamente a mostrar que, sem um conhecimento do Ser primeiro, o conhecimento de todo ser permanece incompleto: assim, a filosofia primeira deverá ser integrada à ciência do ser enquanto tal, da qual ela formará, de algum modo, o fecho da abóbada. Pois não se pode mais pôr em dúvida que aos olhos de Aristóteles este Ser primeiro imutável possui a função de princípio ou causa face a todos os outros seres. Pouco importa que não seja explicada a natureza desta causalidade e que as hipóteses mais ou menos precisas que se pode formar a esse respeito atinjam apenas um grau mínimo de probabilidade, sem deixar de suscitar dificuldades. Resta que a identificação do Ser primeiro com o Primeiro princípio permanece na linha de todas as indicações dadas por Aristóteles a este respeito, desde o apêndice ao prólogo da Metafísica (I (A) 1-2, onde a divindade é contada entre as causas) até a alusão no último capítulo do livro X II (A) 10 1075bl7-22, onde o Ser primeiro é oposto aos princípios múltiplos alegados por outros filósofos.

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Uma vez de posse do estatuto da filosofia primeira, considerada em si mesma e em suas relações com o que parece ser o ponto de chegada da meta­física aristotélica, a teoria geral do ser, pode-se com razão esperar encontrar o meio de dar um sentido preciso às diversas passagens onde se trata da meta­física ou do metafísico, sem que o alcance dos termos empregados apareça à primeira vista. De fato, como se sabe, Aristóteles usa mais de uma vez a palavra croata, sabedoria (uma vez oocjúa irpÚTT], 1005b2); emprega mais freqüente­mente cjuXoCTOcjúa sem nenhum epíteto e, neste caso, pode ser que ele vise em geral à filosofia ou ainda a toda e qualquer investigação; mas o termo posto no plural c(>iÀ0<J0<j)íai se refere necessariamente a disciplinas distintas umas das outras, as quais, pode-se presumir, são de ordem filosófica; em outros casos, pode-se considerar que a palavra isolada e no singular representa uma certa metafísica. De modo semelhante, o termo éi/Vóaoóos tem, em muitos lugares, o significado específico de “metafísico”; trata-se de ver, então, em que medida pode-se precisá-lo melhor: se está em presença de uma expressão elíp­tica, equivalente a ò upÔTOS éiA.óaoóoç, ou se trata do representante de uma metafísica concebida diferentemente da filosofia primeira?

Antes de mais nada, parece que não há como dar, em uma terminologia sistemática, um lugar bem definido ao termo oocjúa face a npÓTT] c|)iX0(J0ct>ía. Com efeito, sabe-se que, na Metafísica, crocbía é empregue de modo marcada- mente preferencial no prólogo do livro primeiro (A 1-2 até 982bl0), isso para indicar precisamente suas características e seu objeto próprio. Mas o método adotado nessa exposição - a análise das significações correntes vinculadas às palavras aocjxós, aocjúa - de certo modo obrigava o autor a ater-se a estes termos, o que, aliás, o conduz apenas a uma definição bastante vaga e geral de tal sabedoria, no mais muito venerável: ciência dos princípios e causas primeiras (sem que seja dito do que estes princípios ou causas são princípios ou causas). Quando, mais tarde, no livro III (B), a palavra üOÒÍa figura em algumas passagens, a cada vez há uma remissão explícita ao prólogo do livro primeiro28, de modo que, vê-se de imediato, o termo é empregado exatamente no sentido que foi determinado no prólogo. Notemos, todavia, uma precisão que é acrescentada de fato, se não expressamente, e que não recebeu justifica­ção. Aristóteles deixa entender, nas passagens visadas e no contexto, que essa

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sophia, ciência dos princípios, corresponde a um estudo da oíxjía (sem que a significação exata de ow ía seja mais bem aprofundada)29.

E praticamente a mesma concepção que Aristóteles parece adotar a respeito da aocf>ía quando a vemos reaparecer uma vez (1075b20-22) nas discussões que ocupam a maior parte do capítulo 10 do livro X II (A) da Metafísica. Este livro, sabe-se, é um pequeno tratado sobre a oícría (ver o início, 1069al8 ss.), que culmina na teoria do Primeiro Motor, eterno, imutável e imaterial, sendo, assim, a primeira de todas as substâncias (cap. 6-10) e por isso tem a função de primeiro princípio (7 1072bl3-14). Na passagem em pauta (1075b20-24), Aristóteles, como lembramos, enfatiza a superioridade de sua sophia sobre as explicações propostas por seus predecessores: o que é característico da sabe­doria aristotélica é que ela tem um objeto único, o ser primeiro, o qual não tem contrário e basta, malgrado isso, para dar conta da diversidade das coisas. Desta maneira, esta croata, que lembra a de Metafísica I (A) 1-2 e III (B) 1-2, poderia muito bem ser dita (j)LÂ.oaoc|úa npÚTíi, entendendo-a a partir dos desenvolvimentos concernentes à sua função face a todo ser, em Metafísica VI (E) 1 fim, 1026a23-32. A terminologia é, sem dúvida, claramente diferente e poderíamos ser tentados a ver nesta diferença, que não redunda em uma diferença de doutrina, o índice de uma diferença de ordem cronológica, Mas, mesmo se os textos visados dos livros I e X II são de fato mais antigos que o parágrafo do livro VI, o índice é verdadeiramente muito fraco. E preciso lem­brar, com efeito, que esses textos de Aristóteles são posteriores à obra de Platão e que, nesta, não somente o termo técnico c[>iX0CT0(j>ía é de uso corrente, mas que seu emprego tende a prevalecer sobre o de aoc()ía quando não se trata de designar propriamente a virtude da sabedoria. Aliás, sem remontar a Platão, pode-se constatar que, no Protréptico, Aristóteles emprega indistintamente, para designar a mesma perfeição humana (não se trata de uma concepção muito elaborada da metafísica), os termos <f>póvr]CTis, crocjúa e (jHXoaocfúa, notando simplesmente e en passant a nuance exata, conforme à etimologia, de cbiXoaocjúa face à aocfáa, a filosofia sendo "aquisição e uso da sabedoria”30. Depois, após o Protréptico, há o Ilepl 4>L oaoc|)ías, cujo título é por si mesmo bastante eloqüente, e que deve ter contido um desenvolvimento sobre o ao<f)ós e a CTOcf>ía, em que se inspirou Aristóteles quando escrevia o prólogo de sua Metafísica I (A) 1, 231.

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Há, ainda, uma menção de cto4>loi em Metafísica IV (r) 2 1004bl9, em um parágrafo bem conhecido (1004bl7-26), no qual Aristóteles institui uma comparação entre o “filósofo”, o dialético e o sofista. Ali a sofistica é dita uma sophia puramente aparente. Mas, como transparece facilmente do conjunto da passagem que crocjúa e (|)iXocro(j)í.a são tomadas exatamente no mesmo sentido, parece preferível reservar o exame da significação destes termos ao desenvol­vimento que consagraremos a 4>iX0CT0(j)ía e 4>iXóaoct>os.

A propósito do parágrafo de Metafísica IV (r) 3 1005a33-b 2, vimos acima32 que o emprego que Aristóteles faz da palavra ao<j)ía pouco se explica: não está no “estilo” do contexto e as explicações que se podem imaginar da presença do termo, neste lugar, são puramente conjecturais. Ademais, a lição aocj)ía é mais ou menos tão bem atestada quanto possível: não há variante nos manuscritos; a citação feita por Alexandre (p. 266,15-16, Hayduck) é conforme ao texto e a sua paráfrase (ibid., 1.14-18) supõe este texto. A paráfrase de Asclépio (p. 255, 25-26, Hayduck), que é quase uma citação, é do mesmo tipo: à uod/ia t i s ele acrescenta corretamente Kal cj>iXocro4>ta, mas isso mostra que lia aocf)La e quis explicá-la. Só a tradição árabe apresenta um texto divergente: a Metaphysica Nova fornece a seguinte tradução (texto 7, fim): scientia enim naturalis est unius moáorum scientiarum sed non est prima scientia, conforme à versão árabe33. A ex­pressão unius modorum scientiarum poderia derivar da lição grega €TTiCTTr||j.r| t i s ao invés de cocj/ia t i s ; esta lição, que não é apoiada pelo vago paralelo com o livro X I (K) 4 1061b32-33, é demasiado incerta para que possamos nos apoiar nela. Por outro lado, ela é bastante anódina e nada pode nos ensinar. O texto tradicional guarda, assim, seu mistério.

Não há por que separar o exame das passagens nas quais o termo (f>iXÓ- cto4>os figura sem epíteto daquelas onde ocorre c|)L/Yoao4)ía, pois as últimas - aliás notavelmente menos numerosas que as primeiras - pertencem ao mesmo contexto, de modo que as significações dos dois termos são solidárias.

Em Metafísica III (B) 2 997a9-15, ao final da discussão da segunda aporia., o autor indica razões positivas que tendem a atribuir o estudo dos axiomas à ciência da substância (e dos princípios e causas primeiras das coisas): se não é ao “filósofo”, diz, que isso concerne, a quem seria? Este “filósofo” designa, assim, aquele que pratica a ciência em questão, que tinha sido chamada de

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aocf)ía no prólogo do livro I (A) e no começo do mesmo livro III (B)34. O 4>iXó(T0<j)0S é, pois, o metafísico entendido no sentido vago daquele que tem tanto os princípios e as causas primeiras das coisas quanto a substância como objeto próprio de suas investigações. As exposições do livro seguinte, IV (r), mergulham em uma atmosfera doutrinai bastante diferente e melhor definida. A metafísica ou ciência filosófica superior a todas as outras é caracterizada, desde o início35, como ciência do ser enquanto ser e dos atributos que lhe per­tencem essencialmente. E como o ser não é um termo unívoco, mas todas as suas significações se relacionam finalmente a uma significação primeira, que é a da substância, a ciência em questão será sobretudo uma ciência dos prin­cípios e causas das substâncias36. Esse duplo ponto de vista se manterá através de todos os desenvolvimentos subseqüentes.

Aquele que Aristóteles chama de “filósofo” (1003b 19), o qual se ocupa do objeto descrito há pouco, é, pois, o representante de uma metafísica, enten­dida como ciência suprema, ciência do ser como tal e em primeiro lugar da substância. Ainda que o objeto dessa metafísica tenha apenas uma unidade bastante relativa, o autor insiste na unidade da ciência de que trata e conclui por uma frase cuja interpretação não está bem fixada37. A interpretação mais corrente é bem apresentada pela tradução de G. Colle: “C est pourquoi il appar- tient aussi à une Science génériquement une, d’étudier toutes les espèces de 1'être en tant qüêtre, et, aux espèces de cette Science, d’étudier les espèces de 1’être*”38. Tal tradução, que corresponde à exegese de Alexandre de Afrodísia e de Asclépio, foi retomada pelos tradutores recentes Ross, Tricot, Carlini, Gohlke. Estes tradutores aparentemente viram neste texto uma aplicação das relações entre gênero e espécies, relações realizadas de modo paralelo nas ci­ências e seus objetos: tem-se, de um lado, uma ciência do ser que corresponde ao ser tomado em toda sua extensão e constitui, assim, um gênero impropria­mente dito, e, de outro, ciências subalternas ou específicas que se ocupam das diversas espécies de seres. Como nas linhas seguintes se trata de uma coisa completamente diferente, as relações do ser e do uno, os intérpretes em questão aproximaram muito naturalmente a presente passagem daquela que se encontra uma quinzena de linhas à frente, e na qual se encontra, desta vez, da maneira mais expressa, um esquema das divisões ou partes principais da "filosofia", uma “filosofia primeira” e uma outra que a segue39. As relações que

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parecem naturais entre as duas passagens levaram W. Jaeger a ver o parágrafo (1003b22-1004a2) que as separa como uma adição posterior de Aristóteles, inserida fora de lugar pelos editores antigos do texto. Como conseqüência, o conjunto do parágrafo foi posto entre colchetes duplos por Jaeger em sua

edição recente da Metafísica,Essa interpretação de 1003bl9-22 e a aproximação com 1004a2-9 suscitam

sérias dificuldades. Observe-se que, na primeira dessas duas passagens, Aristó­teles não fala de uma ciência geral atinente ao ser em geral, mas de uma ciência genericamente una (genericamente porque a unidade de seu objeto é no máximo genérica) que se ocupa de todas as espécies do ser; em seguida, que as ciências mais específicas têm ainda por objeto estas mesmas espécies, desta vez, evidentemente, cada ciência uma só espécie. Isso não contradiz a interpretação que examinamos: mas há ao menos uma nuance entre a interpretação e as palavras de Aristóteles, que insiste, antes, na unidade e, ao mesmo tempo, na generalidade da ciência superior. As dificuldades aumentam com a aproximação com 1004a2-9 pois, aqui, existe uma divisão das ciências filosóficas que não corresponde de modo algum àquela que se quer encontrar na primeira passagem e não se constata mais aqui as relações entre espécies e gênero; ao contrário, as ciências se distinguem entre si por sua posição, segundo a dignidade de seu objeto, substância de tal ou qual classe. De resto, uma classificação das ciências (filosóficas ou outras), segundo o esquema que se lê em 1003bl9 ss., não se encontra em parte alguma em Aristóteles, nem como esquema teórico, nem como elaboração de fato.- Quanto ao vocabulário, note-se que em 1004a5 se trata de gêneros (yéi/ri) de ser e não de espécies (eí8r|). Com efeito, é assim que normalmente Aristóteles designa as grandes classes que distingue no domínio do ser40 e esta designação concorda, desta vez, com sua concepção do ser que não é, segundo ele, um gênero propriamente dito. Assim, as classes nas quais o gênero se divide se distinguem como gêneros diversos, que não se subordinam a um gênero comum41. - Ainda outras dificuldades contra a exegese proposta para a passagem 1003bl9-22 sur­gem de suas relações com o contexto; seria melhor parar e fazer o exame da segunda interpretação que foi dada da passagem.

A segunda interpretação encontra sua expressão mais adequada na tradu­ção de Bessarion: “Quare entis quoque quot species sunt, et species specierum, speculari unius scientiae genere est”. Ela apenas difere das traduções recentes

X40 I S°bre ct Metafísica de Aristóteles

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na medida em que el8r| elSwv, da linha 22, se entende das espécies de espé» cies de ser mencionadas na linha precedente e, assim, eiôuv não designa as

espécies de ciências subordinadas à ciência genérica do ser. O que é designado por “espécies” de ser se encontra descrito no curso do desenvolvimento no qual Aristóteles mostra em que medida há identidade entre o ser e o uno: “assim", acrescenta (1003b33), “há tantas espécies’ de uno quantas há de ser”. E, um pouco à frente (1.35-36), nos fornece alguns exemplos destas “espécies” de uno, a saber: o mesmo, o semelhante e outras determinações análogas. E ainda acrescentará os contrários e, em seguida, todas as formas de oposição a partir da simples negação e da alteridade. Reconheceremos, assim, nas “espécies" de ser as realidades que, sob outra determinação, recobrindo uma noção logi­camente distinta, se confundem, malgrado isso, com o ser: tal como o uno42 (Aristóteles não assinala outro aqui; a tradição acrescentará, inspirando-se nele, ainda outros transcendentais); enquanto as “espécies” das primeiras “espécies", das quais o ser e o uno serão, a partir dos exemplos fornecidos, as formas diversas que tomam o ser e o uno nas diversas categorias ou as propriedades necessárias que apresentam em virtude de sua própria noção43.

Vê-se o quanto o termo espécie traduz de modo claramente deficiente a palavra eiSoç, que não tem e não pode ter, em todo este desenvolvimento no qual se trata do ser e de seus equivalentes, o sentido técnico de espécie cor- relativa ao gênero. Para marcar que esta tradução é puramente convencional no caso em foco, usei constantemente “espécie” entre aspas. A palavra latina species, empregada por Bessarion, como por seus predecessores medievais que

compreenderam o texto diferentemente dele, não oferece o mesmo inconve­niente, pois, tal como ei8os, tem primitivamente um sentido mais lato que

seu sentido estritamente técnico. Designa, então, a forma ou o aspecto que

possui ou que pode tomar uma coisa. E exatamente disto que se trata no presente caso: as diversas formas de que se pode revestir o ser, em primeiro lugar a de uno, em seguida, as formas ainda mais diversas que o ser e 0 uno

apresentam quando se considera a realização nas diferentes categorias, com as propriedades resultantes das relações de oposição ou de outras relações que

os caracterizam em cada caso.Tal interpretação, que se distancia de uma interpretação que podemos dha*

mar de tradicional, tem frente a esta a superioridade de não violentar o sentido

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usual da palavra eiÔoç, tomado no sentido técnico de “espécie”: com efeito, para Aristóteles, as classes nas quais se divide o ser (que não é um gênero) são gêneros e não espécies (são as categorias designadas a este título como os yévri toÍ> Õvtoç44); por outro lado, pelo fato de uma classe se subdividir em classes subordinadas que são as espécies, ela própria não é uma espécie, mas um gênero: não há, pois, como falar em sentido próprio de “espécies das espécies”, tal como querem fazer Aristóteles dizer (1003b22) os partidários da interpre­tação que acreditamos dever rejeitar. Uma outra superioridade da interpretação que preferimos é o fato de concordar melhor com o texto de Aristóteles que os manuscritos conservaram sem introduzir uma ruptura arbitrária: as linhas 1003bl9-22 introduzem naturalmente o desenvolvimento seguinte no qual se trata da equivalência do ser e do uno e de suas propriedades necessárias. Aliás, não se trata de outra coisa neste longo capítulo (que se estende até 1005al8), salvo um curto parágrafo (1004a2-9), do qual falaremos a seguir45.

Notemos, enfim, que a interpretação que nos parece se impor não é nova: ela foi proposta pela última vez por O. Apelt, em 1891, em suas Beitráge zur Geschichte der griechischen Philosophie46.

Concluindo essa discussão, talvez um pouco longa, diremos que a passa­gem 1003bl9-22, continua a falar da ciência filosófica suprema, exercida pelo "filósofo", do qual se tratava imediatamente antes (1.19), isto é, do metafísico que se ocupa do ser como tal. As linhas litigiosas não contêm, pois, nenhuma alusão direta a uma “filosofia primeira” nem a outras “filosofias” subordinadas quaisquer que sejam. Para descobrir uma tal alusão, é preciso dar uma inter­pretação em si mesma criticável e, além disso, relacioná-la com o parágrafo 1004a2-9, onde, sem dúvida, se encontra esquematizada uma divisão da “fi­losofia”, mas uma divisão completamente diversa daquela que se pode ler em 1003b21-22, se for adotada uma interpretação conforme à opinião tradicional que rejeitamos.

Examinemos o próprio texto do parágrafo de Metafísica IV (r) 2 1004a2-9, que já invocamos acima, para apoiar a conclusão já adquirida neste ponto de nossa exposição: a dignidade e a prioridade que temos motivo para atribuir aos diversos ramos da filosofia vêm da dignidade e da própria perfeição de seu objeto. O texto pode ser traduzido como segue: “E há tantas partes da 'filosofia quantas há de espécies de substância, de modo que será preciso que

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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entre estas partes haja uma que seja a primeira e outra que a siga, pois o ser47 se divide de modo imediato em gêneros distintos; por esta razão, a mesma divisão se encontra nas ciências. Com efeito, o que vale para o ‘filósofo’ vale para o matemático, no sentido em que adotamos estes termos, pois a ciência matemática compreende partes e há nas matemáticas uma ciência que é a primeira; outra, a segunda e outras ainda que a seguem”.

As posições expressas por Aristóteles são, até um certo ponto, claras, mas só o são na condição de permanecerem vagas no que concerne ao sentido da palavra “filosofia” e da especificação de suas partes. De fato, percebe-se sem dificuldade que desde que se atribua uma significação precisa ao termo filo­sofia, o que resulta, segundo o caso, são precisões bem diferentes no que diz respeito ao sentido exato destas partes. No mais,: é sobre a significação da palavra filosofia nesta passagem que se volta, agora, nosso exame. Vejamos, pois, se há como precisá-la.

Evidentemente, ela depende do contexto, mas nesse ponto podemos invo­car seja o contexto imediato, isto é, o conteúdo do parágrafo que estudamos (1004a2-9), seja o contexto tomado de modo mais lato, isto é, uma boa parte do capítulo em que se encontra este parágrafo ou, ao menos, as seções do ca­pítulo que enquadram nossa passagem. Se consideramos o contexto imediato, nos encontramos na presença de uma filosofia dividida em ciências distintas determinadas por seus objetos, que são as diversas espécies de substância: esta divisão é posta em paralelo com a das ciências matemáticas, entre as quais existe uma ordem de prioridade determinada, sem dúvida, também por seus objetos respectivos. Estes dados não impõem absolutamente tal interpreta­ção exclusiva no que concerne ao sentido do termo “filosofia” na passagem, mas, ao menos, sugerem uma, e mesmo de maneira bastante insistente. De fato, é natural ver nas diversas ciências filosóficas, correspondendo a diversas espécies de substâncias, a filosofia primeira, que tem por objeto as substân­cias imateriais, vindo em seguida a filosofia segunda, ciência das substâncias materiais, que não é senão a física ou filosofia natural, segundo o testemunho de algumas passagens das quais nos ocuparemos mais à frente. É assim que, em seu comentário (p. 52-3), G. Colle compreendeu o parágrafo; no máximo, acrescenta ele em terceiro lugar, depois da teologia e da física, a matemática,

mas a acrescenta para descartar rapidamente esta hipótese como improvável.

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Quanto ao resto, sua interpretação lhe parece tão pouco duvidosa, que conclui, sem. hesitar, que aqui a filosofia é concebida como o conjunto das ciências que tratam dos gêneros mais universais das substâncias. Como em todo o resto do capítulo, e mesmo em todo o livro IV, o nome “filósofo” é reservado àquele que se ocupa do ser enquanto ser, Colle deduz que o fragmento examinado por ele é estranho a este livro da Metafísica.

N a interpretação que adota do parágrafo, tal conclusão se impõe ao menos neste sentido: colocando as coisas do ponto de vista da autenticidade, no má­ximo se trata de uma adição posterior, feita por Aristóteles e acrescida ao texto do capítulo onde ela se encontra inserida sem que se adapte propriamente a nenhuma das passagens onde a encontramos. Se é preciso encontrar, malgrado o que foi dito, um ponto de ligação neste capítulo, pensa-se de preferência na passagem que serve de conclusão à exposição relativa à unidade sui generis da noção de ser: unidade que é devida, diz Aristóteles, às relações diversas dos diferentes seres com um ser que é ser a título primeiro, a substância ou ovaía , por isso, conclui (1003bl7-19), é das substâncias que o “filósofo” deve apreender os princípios e as causas. A este propósito, é bastante natural observar que devem existir tantas ciências diversas da substância quantas são as espécies diversas de substância. Alexandre viu corretamente isso em seu comentário à passagem (250, 32-251, 2, Hayduck), mas ao mesmo tempo nota que (251, 2- 6), se fosse preciso fazer uma transposição dos textos, seria preferível colocar 1004a2-9 depois e não antes de 1003bl9-22, visto que ele interpreta a última passagem dando-lhe um sentido paralelo à de 1004a2-9. Dissemos acima por que motivo essa exegese não parece aceitável Basta que se vincule mediata ou imediatamente 1004a2-9 à conclusão enunciada em 1003bl7-22, para que nos choquemos com a seguinte incoerência: a tarefa do “filósofo”, enunciada nesta conclusão, é a do metafísico que estuda os princípios do ser enquanto ser e, portanto, em primeiro lugar, os da substância. A “filosofia”, que se divide em filosofia primeira e filosofia segunda, não é a metafísica do ser como tal, mas deve-se entendê-la no sentido geral de filosofia abrangendo todas as subdivisões da filosofia teórica que acabamos de lembrar. Por isso, não há como inserir no lugar indicado a passagem 1004a2-9 mesmo se a tomássemos como uma nota posterior do autor ou simplesmente como uma reflexão feita por ele a propósito de um texto redigido anteriormente e sem ligação com este: uma tal

] Sabre a MetqfCsica de Aristóteles

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reflexão seria fora de propósito e não deveria ter sido anotada de modo a que os editores dos tempos futuros pudessem crer que pertencesse ao capítulo do livro IV da Metafísica. E notável, aliás, que, no resumo do livro X I (K), não se encontra do capítulo 3 - correspondendo aos capítulos 1 e 2 do livro IV (r)- nenhum paralelo do parágrafo 1004a 2-9 nem sequer qualquer traço que

o lembre. Isso confirma em alguma medida (bastante fraca, pois o resumo é muito sucinto) a opinião motivada por um outro ponto de vista, segundo o qual o dito parágrafo é um trecho errático estranho ao contexto (mesmo em sentido lato) no qual se encontra inserido nos manuscritos.

Se, ao invés do que fizemos e que nos levou a uma conclusão decepcionante, ensaia-se de interpretar as palavras "filosofia” e “filósofo”, que se encontram neste mesmo parágrafo, inspirando-nos, desta vez, no sentido que elas têm pre­cisamente no contexto, entendido em sentido lato, isto é, no resto do capítulo, e mais particularmente nas seções que precedem e seguem a passagem litigiosa, o resultado de tal confronto será, sem dúvida, diferente, mas não muito mais satisfatório. Com efeito, é claro que em todo o capítulo considerado a ‘filosofia’ é a ciência do ser enquanto ser; se esta ciência se subdivide posteriormente em ciências subordinadas segundo as diferentes espécies de substâncias que serão o objeto de cada uma delas, teremos, em primeiro lugar, uma metafísica do ser imaterial, idêntica à filosofia primeira; em segundo, uma metafísica do ser material que não podemos confundir com a física, a qual estuda, sem dúvida, ela também, o ser material, mas enquanto móvel ou mutável, e não enquanto ser. Este último ponto é problemático: em Aristóteles, não se encontra em lugar algum, fora da passagem da qual nos ocupamos, a menor alusão a uma tal metafísica especial que seria uma ciência dos seres corpóreos enquanto seres. Porque, se de fato os livros V II (Z), ao menos a partir do capítulo 3, e VIII (H), são quase exclusivamente um estudo da substância sensível, este estudo não aparece em parte alguma como constituindo uma ciência especial distinta do estudo geral da substância. Ao contrário, o autor não deixa de dizer que se trata de um estudo da substância, sem qualquer restrição a essa afirmação. E quando anuncia explicitamente o estudo da substância sensível ■1 ser feito em primeiro lugar, ele enfatiza imediatamente que é por uma razão de método: essas substâncias são mais familiares para nós, menos sujeitas à contestação enquanto substâncias e fornecem, assim, um ponto de partida

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apropriado para o estudo da substância que se estende além delas48. Não está em questão o estudo metafísico destas substâncias constituindo uma ciência

filosófica própria49.Assim, este segundo ensaio de interpretação do sentido da palavra "filo­

sofia” no parágrafo 1004a2-9 revela-se claramente menos aceitável que o pri­meiro. O que nos força a acolher, antes, a primeira interpretação, segunda a

qual a “filosofia” de que se trata não é restrita a uma metafísica do ser como tal, mas designa o conjunto das ciências filosóficas, ao menos as teóricas. Desta vez, o parágrafo nos oferece um testemunho indireto da existência de uma filosofia primeira, ciência acerca das substâncias imateriais, nas quais se deve, sem dúvida alguma, reconhecer a primeira espécie de substâncias; em seguida, a passagem insinua que deve haver ao menos uma filosofia ulterior que se ocupe das substâncias materiais, que pode ser chamada filosofia se­gunda. A comparação com as ciências matemáticas poderia incitar a prosse­guir ainda em um desenvolvimento análogo, mas os dados fornecidos alhures por Aristóteles não permitem continuar nesse sentido sem o risco de emitir

hipóteses sem fundamento suficiente.O conjunto destas considerações deve nos levar, depois de G. Colle, a

desvincular completamente o parágrafo litigioso do conjunto do capítulo no qual se insere. Por isso mesmo, já não se pode mais explicar como pôde chegar ao lugar onde o encontramos atualmente. Se o tomamos como uma nota posterior de Aristóteles, levados pela conclusão que se lê em 1003bl7-19, nota que teria se extraviado a alguma distância de sua interposição natural, se atribui ao Estagirita uma distração verdadeiramente exagerada: o “filó­sofo” de 1003bl9 designa o representante de uma disciplina bem definida, a metafísica do ser enquanto ser, enquanto em 1004a6 o mesmo termo se relaciona àquele que se dedica a uma filosofia entendida em um sentido bastante mais lato, compreendendo diversos ramos. Do ponto de vista dâ apresentação do parágrafo 1004a2-9, em uma edição crítica concebida à maneira de W . Jaeger, haveria razão para colocar estas linhas entre colchetes duplos marcando as adições posteriores que se pode acreditar serem devidas a Aristóteles50. Neste caso, uma tal indicação parece, com efeito, muito mais justificada que a da seção precedente, 1003b22-1004a2, que Jaeger pôs entre colchetes, equivocadamente, acreditamos.

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Continuando no resto do capítulo 2 do livro IV (r) nosso exame das pas­sagens nas quais se trata do papel do “filósofo” e da “filosofix, percebemos facilmente que ele é concebido da mesma perspectiva do início. Em 1004a31-b4, Aristóteles retomando a quinta aporia do livro III (B) 1, conclui que é uma só e mesma ciência, a da substância, que deverá estudar as propriedades necessárias do ser (e do uno), assim como seus opostos. Assim, concerne ao “filósofo” po­der considerar todas as coisas. Quem senão o “filósofo” seria competente para discutir sobre a identidade de duas coisas tomadas em situações diferentes e ainda os problemas suscitados pelos contrários? Novamente, o filósofo de quem se fala aqui é, sem dúvida, o metafísico que trata do ser como tal (1004b5); ele se confunde, acrescenta Aristóteles para terminar, com o “filósofo” (1004bl6), ao qual pertence determinar o que concerne às propriedades do ser enquanto ser. Tais considerações têm apoio no parágrafo seguinte (1004bl7-26) pelo paralelo bem conhecido que Aristóteles traça entre o filósofo, o dialético e o sofista. Os dois últimos parecem assumir a função do primeiro, pois é o mesmo objeto geral a que visam a sofistica, a dialética e a “filosofia”. De fato, a dialética discute sobre todas as coisas, o que coincide com o objeto da “filosofia” (o ser é comum a tudo), e a sofistica opera no mesmo domínio. Contudo, uma e outra diferem da filosofia pela intenção que anima suas pesquisas sobre um objeto de fato idêntico. Assim, a sofistica é apenas uma sabedoria (acxj/ia) aparente (1.19), uma filosofia (<t>iXocro4>ía) aparente (1. 26). As duas expressões, a sete linhas de distância uma da outra, têm evidentemente a mesma significação; o emprego da palavra CTO(|)ía, na primeira vez, sem dúvida é comandado pelo desejo dé aproximar e opor mais estreitamente do ponto de vista verbal os dois termos GO<f)iCTTiKX| e croata. Nesta ocorrência, aocj/ia tem, pois, o sentido de (|>iA.oao(j)ía. A última palavra, com o (jHXócrocjxis que lhe corresponde, tem em todo o parágrafo a mesma significação que nas passagens analisadas pre­cedentemente; se trata da metafísica que tem por objeto o ser enquanto ser e do metafísico que se dedica às especulações dessa ordem51.

Com o capítulo 3 do livro IV (r) da Metafísica começam os desenvolvi­mentos relativos ao princípio de contradição. Nos primeiros parágrafos deste capítulo, o autor se dedica a mostrar que este axioma, como todos os outros, depende da mesma ciência que estuda a substância, ciência do "filósofo”, e que tem por objeto o ser enquanto ser. Como já notamos acima52, cada vez que se

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trata do “filósofo” (1005a21, bó, 11) e da ciência que lhe é própria, é o “metafí­sico" que é visado tanto quanto uma metafísica caracterizada como ciência do ser enquanto ser e como “filosofia primeira” ou ciência do imaterial. Apenas uma passagem (1005a33-b2) oferece dificuldade, resultante do fato que, por um lado, a física é dita uma GO(j>ía e não uma (j)iAo(7o4>ía, e, por outro, o objeto atribuído à ciência que lhe é superior é, ao mesmo tempo, um objeto universal e a primeira das substâncias. Mas nada há a acrescentar presentemente ao que foi dito anteriormente53 no que concerne a essa dificuldade.

* * *

A própria denominação "filosofia primeira” implica que, ao lado e após esta disciplina que se esforça por atingir os seres mais perfeitos, haveria uma ou eventualmente várias outras que teriam por objeto realidades inferiores. Aristóteles, todavia, só usa em um único lugar - e en passant - a expressão “filosofia segunda”, a saber, no livro VII (Z) da Metafísica, no curso de seu estudo sobre as substâncias materiais, no parágrafo que de fato conclui a dis­cussão relativa às partes da substância que devem, e as que não devem, en­trar na definição de uma substância (cap. 11 1037al3-17). O conteúdo destas poucas linhas se relaciona com diversas passagens já referidas acima e trata da física entendida como uma "sabedoria” ou como uma “filosofia”, acima da qual existe uma outra que lhe é superior, a filosofia primeira. Aproximadas desse modo, todas as passagens dispersas em vários lugares da obra de Aris­tóteles se esclarecem mutualmente: a doutrina que é exposta ou lembrada é perfeitamente coerente e se entende sem dificuldade. Em Metafísica VII (Z)11 1037al3 ss., o autor nos diz expressamente que de um certo modo é tarefa da filosofia natural e segunda54 estudar as substâncias sensíveis, inicialmente, sem dúvida, sua matéria, mas também, e sobretudo, sua forma inteligível. As análises que precedem e dizem respeito às mesmas substâncias (neste texto de caráter, sobretudo, metafísico, que é o livro V II ou Z) não têm outro objetivo senão o de preparar a discussão do problema ulterior concernente à existência e à natureza das substâncias imateriais. Essa última observação repete, esclare­cendo-o ligeiramente, o que Aristóteles tinha dito no capítulo 255, onde expõe, segundo o entendimento geral, que é entre os seres corpóreos (vivos e outros)

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que manifestamente existem substâncias, enquanto certos filósofos preten­dem que as verdadeiras substâncias não são outras que os limites dos corpos, ou ainda que são seres superiores à ordem corporal, Formas, Números etc.: questões para examinar mais tarde. Ora, a ordem na qual este exame se fará é enunciada à frente, no capítulo 4 : o autor distingue quatro acepções do termo substância, retoma a substância no sentido de sujeito para descartá-la, inicia56 o problema da substância como qüididade e anuncia que abordará, em primeiro lugar, o estudo de certas substâncias sensíveis reconhecidas geralmente como substâncias (e não nas qüididades separadas do mundo corpóreo, das quais Platão e seus discípulos haviam sustentado a existência). Aparentemente, é para justificar esta ordem e método que foi escrito o parágrafo 1029b3-12, que, em

conseqüência das observações de Bonitz57, os editores modernos colocaram no fim do capítulo 3 (depois de 1029b34)58. O que encontramos no livro V II da Metafísica recupera, para precisar-lhe o sentido, a passagem que enfatizamos no livro IV (r) 3 1005a33-b 2, onde a física foi reconhecida como uma sabedoria, mas não primeira, porque acima dela há uma ciência absolutamente universal acerca da primeira das substâncias. Vimos também, no De generatione et cor- ruptione 1 3 318a3-6, que Aristóteles, por um lado, lembra o que tinha dito na Física, livro VIII (posto, como alhures, êv tc T lç T ie p l K iyf|CTeojs Xcryoiç), a respeito do Primeiro Motor imóvel e do Primeiro Motor eterno e, por outro, opõe um outro estudo desse primeiro princípio imóvel, estudo que concerne a uma “filosofia” diferente da física e anterior a ela: deve-se, assim, identificá-la à "filosofia primeira”, de que se trata em outro lugar.

Porém, a exposição mais explícita e mais esclarecedora encontra-se no apêndice do capítulo primeiro do livro VI (E), onde o autor conduz a filoso­fia primeira à ciência do ser enquanto tal. Diz Aristóteles (1027a 27-29), "se não existe outra substância que as substâncias da natureza, a física deverá ser tomada como a primeira das ciências”. Opõe-lhe a existência da substância imutável, com as conseqüências que se conhece. Trata-se, então, de uma dife­rença entre os objetos da ciência; estes objetos são caracterizados como sendo substâncias que se distinguem umas das outras por sua perfeição intrínseca; daí as duas grandes classes nas quais o Estagirita as posiciona: as substâncias materiais, objeto da física, e as substâncias imateriais, objeto da filosofia pri­meira. Esta divisão resulta do ponto de vista adotado no início do livro IV (r),

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cap. 1 e 2, sumariamente retomada no primeiro parágrafo do livro V I (E) 1. A ciência filosófica aqui considerada de maneira direta é a do ser enquanto ser (IV 1); não sendo o ser uma noção unívoca, só possui uma certa unidade por referência de todo ser ao ser no sentido principal, que náo é senão a subs­tância (IV 2). E a uma metafísica concebida deste modo que Aristóteles quer conduzir - em V I (E) 1, parágrafo final - a filosofia primeira como ciência do Ser imaterial e divino, quando indica de que modo ela é ao mesmo tempo uma ciência universal: ela será, conclui, ciência do ser enquanto ser que considera a essência do ser e suas propriedades enquanto ser.

O que precede explica também uma particularidade da exposição consecu­tiva ao desenvolvimento que reconhece a ciência filosófica mais elevada como ciência do imaterial imutável. Falando sucessivamente, segundo a progressão dos três graus de abstração, primeiro da física, depois, da matemática e, fi­nalmente, desta ciência primeira e superior às outras, Aristóteles tira de certa maneira a seguinte conclusão (1026a 18-19): “há, pois, três ‘filosofias’ teóricas: matemática, física e teologia”. Por que esta ordem que não é conforme àquela seguida acima, a qual correspondia à própria progressão das idéias? Por que, em outras palavras, a matemática parece relegada à posição inferior e vê seu lugar tomado pela física, que não tem acima dela senão a ciência teológica e primeira? Neste caso, não se pode mais invocar uma distração de Aristóteles, pois, se se tratasse de fato de uma distração, não haveria verdadeiramente ne­nhuma razão para que se desviasse nessa direção. Ao passo que, se admitirmos que Aristóteles já tinha em mente a idéia da proeminência de toda ciência filosófica que tem por objeto uma substância, frente à que se ocupa das de­terminações ulteriores de um certo gênero de substâncias, a posição superior atribuída à física em relação à matemática se explica facilmente. E verdade que, na seção que se abre pelo exame do caso da física, o autor, sem se apoiar no seu caráter substancial, qualifica os objetos, ao mesmo tempo em que diz que são substâncias que têm nelas próprias o princípio de seu movimento e repouso (1025bl9-21), Algumas linhas depois (1. 27-28), a ousia física da qual se trata é a essência compreendida como forma unida à matéria. Entende-se, contudo, que os seres físicos considerados são substâncias. Quando, depois disso, Aristóteles passa aos seres matemáticos, depois aos seres eternos e imó­veis, é sobre sua separabilidade relativa (seres matemáticos) ou absoluta (seres

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puramente imóveis) que ele insiste. Trata-se, sem dúvida, do modo imediato de sua separação da matéria; mas assim que esta separação se torna absoluta, ela é, ao mesmo tempo, a separação de um sujeito qualquer e o ser em questão é necessariamente uma substância. E bem isso que - aqui e alhures- é visado por Aristóteles, assim como mostrou o reverendo padre E. de Strycker59. E é, desta vez, por não poder afirmar mais do que uma separabilidade puramente lógica da matéria no caso dos seres matemáticos que não há meio de reco­nhecê-los como substâncias60.

Vê-se, por isso, que a idéia de substância não estava ausente do desenvolvi­mento no curso do qual física, matemática e filosofia primeira são sucessiva­mente caracterizadas pelas relações de seus objetos respectivos com a matéria, e compreende-se que a exposição alcança, assim, uma classificação na qual a ciência teológica ocupa o cume, a matemática é posta em uma posição inferior, enquanto a física, cujos objetos são os seres materiais, mas que são substâncias, tem acima dela apenas a filosofia primeira e por esse motivo poderá ser dita filosofia segunda.

Notemos, a esse propósito, que, na última expressão, bem como na enu­meração das três “filosofias” teóricas em 1026al8-19, a palavra “filosofia” não tem, ao menos não por si mesma, o sentido restrito que poderíamos traduzir pelo termo “metafísica”. Trata-se, a cada vez, de um ramo da filosofia ou de uma ciência filosófica, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, no caso das ma­temáticas e da física, de uma ciência comportando desenvolvimentos que na linguagem e na concepção modernas preferiríamos posicionar sob a rubrica de ciência enquanto se distingue da filosofia. Este uso de Aristóteles, aliás bem conhecido, encontra-se em algumas passagens dispersas em suas obras, nas quais ele fala indiferentemente de “ciência física” ou de "filosofia física”61.

Parece, então, bem estabelecido que a “filosofia segunda” que Aristóteles de certo modo opõe à “filosofia primeira” não designa em seu vocabulário uma parte de uma metafísica mais ampla que englobe o estudo dos seres materiais, ao lado e abaixo do estudo dos seres imateriais, mas uma parte não metafísica da filosofia, parte chamada filosofia natural ou física. Os textos são explícitos sobre este ponto e não permitem colocá-lo em dúvida62. Poder-se-ia pergun­tar, entretanto, se, ao mesmo tempo ou em outro momento de sua carreira, 0 Estagirita não teria admitido uma concepção diferente, a saber, aquela que

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acabamos de descartar: uma metafísica do ser material (à qual conviria perfei­tamente a denominação de filosofia segunda) ao lado de uma metafísica do ser imaterial ou filosofia primeira. Questão destinada a permanecer sem resposta, em todo caso sem resposta afirmativa, em razão da ausência de toda indicação positiva em favor de uma tal resposta nos textos que Aristóteles nos legou. A única passagem que poderia ser invocada aqui é, com efeito, o parágrafo, lon­gamente discutido acima, que se lê no livro IV (r) 2 1004a2-9. A conclusão da discussão foi, lembremos, que uma interpretação neste sentido da passagem deve ser rejeitada, entre outras razões porque em toda a obra de Aristóteles não existe nenhuma afirmação paralela suscetível de lhe fornecer qualquer apoio. Por isso, o parágrafo em questão deve ser entendido, antes, como a tradição o tem freqüentemente compreendido, e se refere a uma divisão geral da filoso­fia teórica em ciências distintas: primeiro, filosofia primeira; depois, filosofia segunda, que devemos identificar então à filosofia natural ou física. Assim, a passagem considerada é acrescentada àquelas que acabamos de analisar para estabelecer o estatuto próprio da "filosofia segunda" de Aristóteles.

* * *

Resta ainda perguntar, em último lugar, se a concepção e a denominação de uma “filosofia primeira” - à qual corresponde uma “filosofia segunda”- marcam um estágio mais ou menos bem definido na evolução das idéias de Aristóteles, no que concerne ao objeto e à natureza da ciência filosófica suprema ou metafísica.

Sob certos aspectos, uma resposta afirmativa a esta questão parece se im­por de maneira absoluta, visto que, no fim de Metafísica V I (E) 1 1026a23-32, Aristóteles se dedica a conduzir a filosofia primeira ou teológica à metafísica entendida como a ciência mais geral possível, ciência do ser com o tal. Pois não há muito mais meios de duvidar que esta metafísica do ser enquanto ser, que se ramificou em um estudo das diversas acepções do ser tomado em toda sua extensão, seja a última forma do pensamento de Aristóteles em suas reflexões sobre o objeto da ciência filosófica suprema63. Preexistia, pois, em seu espírito a concepção de uma filosofia primeira, ciência do imaterial, quando ele tentou fixar as relações com esta metafísica do ser enquanto tal. Pelo menos, poder-se-

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ia dizer, se fosse preciso aproximar ao máximo as duas concepções do ponto de vista cronológico, que sua reflexão, seguindo duas linhas dc pensamento distintas, tinha chegado mais ou menos ao mesmo tempo, de um lado, a uma ciência suprema em razão da dignidade de seu objeto, a filosofia primeira, e, de outro, a uma ciência suprema em razão da extensão absolutamente universal de seu objeto, a ciência do ser enquanto ser. Mas esta última hipótese não é muito verossímil, pois que se vê aparecer, esparsamente nos escritos de Aristó- teles, a menção da filosofia primeira em escritos que parecem bem ser de datas diversas64, sobre os quais não se tem razão alguma para acreditar que sejam contemporâneos ou mais ou menos contemporâneos das partes da Metafísica nas quais a ciência suprema é descrita como tratando do ser enquanto ser.

Porém, da idéia de uma filosofia primeira que pertença cronologicamente a uma fase do pensamento de Aristóteles anterior aos últimos desenvolvimentos consignados em sua Metafísica não se segue que a expressão corresponda a um estágio bastante primitivo de seu pensamento acerca desses temas. Bem ao contrário: uma filosofia primeira só tem sentido se a ela se opõe uma filosofia segunda e, talvez, ainda, outras filosofias de posição inferior. Por isso, os termos empregados implicam que, desde a época em que Aristóteles os usou, ele já visava a toda uma organização da filosofia em ramos diversos, compreendendo, entre outros, a filosofia natural ou física. Isso marca, apesar de toda sua liga­ção ao espiritualismo de inspiração platônica, um distanciamento fortemente pronunciado frente a certas posições bem características da filosofia de Platão. Apesar do interesse crescente que este demonstra, sobretudo no curso de seus últimos 'anos, ao mundo material e a uma explicação racional deste mundo, Platão jamais admite que uma tal explicação pudesse constituir uma ciência verdadeira e ele a mantém sempre no nível da opinião. Para Aristóteles, a fi­losofia natural, embora sendo inferior em dignidade à filosofia do imaterial, não é menos uma verdadeira filosofia e uma ciência propriamente dita, Esta maneira de ver marca nele uma etapa decisiva em sua teoria do conhecimento e na sistematização que daí resulta das diversas partes do saber filosófico. Toda a questão é, então, a de saber em que momento ele acreditou poder erigir a física em ciência filosófica, entendida no sentido estrito.

Sem dúvida, seria vão querer encontrar a menção de uma tal filosofia natural, entendida como um ramo ou uma parte da filosofia, no penúltimo

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parágrafo do texto de Filopono, no qual A. J. Festugière, após as indicações menos decisivas de Bywater e de Bignone, reconheceu um fragmento do livro

primeiro do Ilepl (juXoaocjúas de Aristóteles, retomado, primeiro em tra­dução inglesa, depois no texto grego original, por David Ross, em suas duas coletâneas de fragmentos de Aristóteles65. Trata-se apenas de um estágio da cultura humana, em que os homens foram chamados “sábios” em razão de seus estudos concernentes aos fenômenos da natureza. Mas este estágio está preci­samente destinado a ser ultrapassado por um outro, em que os homens devem adquirir a sabedoria suprema, que consiste no conhecimento dos seres divinos e imutáveis (parágrafo final do fragmento). Mesmo se a física, estágio atingido anteriormente, devesse permanecer como uma parte de seu patrimônio inte­lectual, ao lado da política, das artes que contribuem para o embelezamento da existência e das que provêm as necessidades elementares - todas formas de “sabedoria” adquiridas sucessivamente pela humanidade - , o conjunto destes diversos conhecimentos não é de modo algum considerado como um todo estruturado, cujas diferentes disciplinas seriam suas partes. Por isso, não se pode tampouco identificar a “filosofia primeira” com a filosofia tout court de que trata, segundo seu próprio título, o diálogo aristotélico Ilepl <j)iXoao4>ía<r. Sem dúvida, reconheceu-se com razão que, entre os fragmentos do diálogo, os que tratavam da divindade devem provir do terceiro livro da obra, no qual o autor expunha suas opiniões pessoais. Contudo, transparece da análise muito

perspicaz que P. Wilpert fez do conteúdo do diálogo (inclusive o fr. 9 de Ross, valorizado por Festugière), que a sabedoria suprema ou a verdadeira filosofia tinha por objeto a consideração dos seres supremos e divinos, aí compreendidos os seres imutáveis que são os astros, consideração que também fornece uma explicação do conjunto da realidade66. Assim, esta “filosofia” não era somente uma filosofia primeira, era toda a filosofia, mesmo se merecesse plenamente, desta vez, a denominação de sabedoria porque seu objeto característico eram as realidades mais elevadas, das quais dependia todo o resto.

Comparado a estes dados do diálogo Sobre a filosofia, o ponto de vista de Aristóteles já é diferente também no apêndice ao prólogo do livro primeiro da Metafísica, onde expõe as razões pelas quais a ciência excelente, da qual ainda tratará, pode ser chamada divina: uma das razões é que ela tem a divindade como objeto; ora “na opinião comum, Deus está entre o número das causas

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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de todas as coisas e é um princípio” (I (A) 2 983a8-9). Trata-se, então, em primeiro lugar, de uma ciência dos princípios e, se o tema é a divindade, é a título de princípio que deveremos falar dela. O diálogo Sobre a filosofia parece ter uma intenção mais diretamente teológica67. O que não impede que haja uma continuidade real entre o diálogo e a "filosofia primeira”, ciência do ima­terial e, a esse título, de Deus. Mas continuidade não é identidade. Ninguém, além disso, pensará em negar o interesse de um estudo das variações ou da evolução de Aristóteles em matéria teológica, mas aqui não é o lugar para

fazê-lo ou refazê-lo68.Por outro lado, há razão para nos determos, um momento, nas diversas

formas que, em Aristóteles, tomou a organização da filosofia (ao menos da filosofia teórica), na qual a "filosofia primeira”, por sua própria denominação, ocupa o primeiro lugar. De fato, os textos revelam tanto uma divisão bipartite quanto tripartite. Encontra-se em algumas passagens, ao lado da filosofia pri­meira, a menção só da física, idêntica então à filosofia segunda. Em particular, são as passagens onde a filosofia primeira é dita, sem mais, anterior à filosofia natural69 e aquelas onde é posta a hipótese da existência ou da não-existência de uma realidade imaterial, esta segunda alternativa tendo por conseqüência

fazer da física a primeira das ciências filosóficas70.Paralelamente, a exposição mais extensa e mais explícita que se lê no que

é concomitantemente a parte mais antiga e a mais característica do capítulo inicial dojivro V I (E) da Metafísica (1025bl8-1026a23) leva à conclusão que deve haver três “filosofias teóricas” que distinguimos e caracterizamos pelo distanciamento de seus objetos respectivos face ao que é material e móvel. Mas, como notamos acima, a ordem na qual são enumeradas as três disciplinas na conclusão (1026al9) não corresponde à gradação dos objetos resultantes do procedimento sistemático empregado e, assim, a matemática encontra-se relegada ao último lugar, enquanto a física é posta em segundo lugar, imedia­tamente abaixo da ciência teológica, que é a filosofia primeira. Expusemos, acima, a razão desta anomalia: se esta explicação tem algum valor, deve-se admitir que Aristóteles considerou em sua classificação final, antes de mais nada, o nível de ser dos objetos especificadores das diversas ciência considera­das, e que, segundo ele, os objetos matemáticos, não pertencendo à ordem da substância, são inferiores, nesta perspectiva, aos objetos físicos, os quais são,

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antes de mais nada, substâncias, Isso é tão verdadeiro que no parágrafo final de Metafísica V I (E) 1, Aristóteles retorna à divisão bipartite, abandonada no curso do capítulo, para substituí-la por uma divisão tripartite dos objetos da ciência, Com efeito, neste parágrafo que, mesmo se não é mais recente que a seção que precede, não pode em hipótese alguma lhe ser anterior, Aristóteles conclui - e isso depois de uma aproximação com as ciências matemáticas, umas mais universais, outras mais particulares - que a física seria filosofia primeira se não existisse outra substância senão as substâncias da natureza, mas esta hipótese é falsa, visto que existe uma substância mais perfeita, a substância imutável, objeto da filosofia primeira verdadeira.

Sem dúvida, seria errado ver nestas últimas observações um retorno puro e simples à divisão bipartite das ciências propriamente filosóficas, do mesmo modo que a exposição precedente, que conduz a uma divisão ternária, tempe­rada de modo bastante inesperado por um tipo de desvalorização da ciência matemática, não é uma etapa de um percurso em direção à divisão mais simples em duas ciências filosóficas. De fato, é preciso ver quais princípios dominam ambas as divisões, para se dar conta que a segunda, mais complicada e talvez menos satisfatória, representa um ensaio de organização mais potente das diversas partes do saber na ordem teórica e corresponde, assim, a um estágio mais avançado da reflexão de Aristóteles.

A divisão bipartite, com efeito, é baseada no nível dos objetos na ordem do ser, porém sem relação explícita com a diferença entre a substância e as realidades nâo-substanciais. Trata-se simplesmente da distinção platônica entre o inteligível puro, isto é, imaterial, e o sensível ou o material. Mas a sistema- tização de ordem científica que decorre daí absolutamente não é mais platô­nica; ela é especificamente aristotélica em si própria e em seus pressupostos doutrinais. Com efeito, tal sistematização atribui à física, contrariamente à tradição platônica, o estatuto de uma ciência propriamente dita. Ora, isto só seria possível em uma teoria do conhecimento que já comportasse a descoberta do procedimento de abstração intelectual, destinado a explicar a formação do conceito a partir do sensível. A substituição da Idéia platônica, ao mesmo tempo real e o único verdadeiro inteligível, pelo conceito exige uma dissociação, ao menos parcial, entre o lógico e o real, permitindo elevar ao nível científico o conhecimento das realidades inferiores, as quais, nelas mesmas, não se prestam

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a uma forma de conhecimento tão perfeita. Esta é uma das conquistas fun5 damentais do aristotelismo que seria extremamente interessante poder situar com alguma precisão cronológica no curso da carreira filosófica de Aristóteles, Não encontramos traços disso nos fragmentos que restaram do diálogo Sobre a filosofia, mas temos toda razão para crer que o momento em que estas posições germinaram no espírito de Aristóteles não está muito distante da composição deste texto. De fato, não se levantam muitas objeções contra as conclusões de W , Jaeger, no que diz respeito à cronologia das partes mais antigas da Física de Aristóteles, as quais seriam o fruto ou eco de seu ensinamento em Assos.

A divisão tripartite das ciências filosóficas teóricas, tal como exposta e jus- tificada em Metafísica VI (E) 1, não está propriamente em contradição com a divisão bipartite, há pouco tratada, mas, constituindo um ensaio de explicação mais elaborado, faz apelo, desta vez, a dois princípios diferentes para deter­minar a dignidade do objeto de cada ciência, e, por isso, a posição atribuída a esta mesma ciência. Esta dignidade é mensurada, em primeiro lugar, pelo nível de ser pertencente ao objeto na ordem real: trata-se, nesse caso, do caráter substancial ou não substancial do objeto, distinção inspirada pela concepção de uma metafísica do ser enquanto ser, ser que é, ao mesmo tempo, um termo com acepções múltiplas, entre as quais a substância obtém o primeiro lugar, os outros seres tendo sua denominação de ser por intermédio de suas relações com a substância. Em virtude deste princípio, o objeto da física lhe assegura uma prioridade frente à matemática, cujos objetos não são substâncias. Mas, em segundo lugar, a dignidade do objeto é mensurada também pelo grau de imaterialidade que lhe é próprio como objeto: essa imaterialidade é tanto a de uma realidade imutável por sua natureza e tem-se, então, uma ciência superior a todas as outras, ciência teológica ou filosofia primeira, quanto a imateria­lidade que pertence ao objeto em virtude de uma consideração do espírito, que desconsidera no objeto real a mobilidade e tudo o que o aproxima da matéria, e tem-se, então, a ciência matemática que obtém a segunda posição, deixando abaixo dela a física, cujo objeto é francamente material e estudado em sua materialidade.

Mostramos71 como esta construção, em suma bastante complicada, cor­respondia, no espírito de Aristóteles, ao cuidado de fornecer um estatuto satisfatório para as três ordens de ciências já desenvolvidas em seu tempo,

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sem cair, na esteira de Platão, em um tipo de realismo extremado, que atribui uma existência real, mas com valor de ser a cada vez diferente, respectivamente aos seres físicos, matemáticos e, enfim, às realidades puramente imateriais (Idéias e Números ideais na concepção platônica). No caso da ciência filo­sófica superior a todas as outras, filosofia primeira ou teológica, a aplicação de um ou outro princípio lhe assegura a primeira posição, pois o objeto que é em si uma substância imutável e imaterial é, em todos os sentidos, o mais perfeito, e é atingido graças ao processo de abstração pelo qual é reconhecido como separado da matéria no pensamento e na realidade. Estas considerações um pouco tortuosas, destinadas a fundar a ordem hierárquica dos diversos ramos do saber teórico, são visivelmente o fruto de um esforço de organiza­ção, posterior à acepção pura e simples de duas grandes ordens de realidade, distinguidas pelo Platão dos Diálogos, realidade sensível e realidade inteligível, retomadas, de início, por Aristóteles para fazê-las objetos respectivos de uma ciência primeira e de uma ciência segunda.

Além disso, é pertinente observar, como já fizemos em outro contexto72, que o esquema de classificação das ciências teóricas, tal como se lê em Metafísica V I (E) 1 (e X I (K) 7), é relativamente recente, pois é encaixado de algum modo em uma classificação mais ampla, compreendendo também as ciências não teóricas: tal classificação é bem conhecida, é a divisão tripartite, ela também, em ciências teóricas, práticas e poiéticas. Ora, sabe-se que, ao invés desta divi­são tripartite, Aristóteles tinha adotado anteriormente uma divisão bipartite, compreendendo somente as ciências teóricas e as poiéticas73.

Para concluir, podemos dizer que sua “filosofia primeira”, oposta por Aris­tóteles a uma “filosofia segunda”, na evolução de suas concepções acerca do objeto da ciência filosófica suprema e da organização geral do saber filosó­fico, marca uma etapa bastante bem definida, mas que, no curso dessa etapa, suas concepções sofreram ainda um certo desenvolvimento. A distinção que se exprime pelas denominações que acabamos de lembrar deve remontar ao momento em que Aristóteles, graças à teoria da abstração, pôde reconhecer o valor de ciência estrita à física, sempre dispondo acima dela uma ciência superior, filosofia no sentido forte da palavra, porque, como no diálogo Sobre a filosofia, ela se eleva até o Ser imaterial supremo, Deus, no qual encontra a explicação última de toda realidade. Mais tarde, sempre respeitando as posi­

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ções adquiridas desta maneira, Aristóteles fez entrar as matemáticas em sua classificação das ciências teóricas em virtude do que se chamou teoria dos três graus de abstração. Finalmente, quando tinha descoberto que a ciência filosófica suprema devia atribuir as causas últimas ao ser enquanto ser, isto é, a tudo que é considerado enquanto existindo, Aristóteles se dedicou a reduzir a esta metafísica absolutamente geral sua filosofia primeira, fundando-se nesta consideração: a filosofia primeira, tendo por objeto o Ser absolutamente pri­meiro, ao qual todos os outros se relacionam de algum modo, deve fornecer a explicação última de tudo o que é. Neste último estágio, a filosofia primeira, ciência do imaterial, encontra-se assumida de certo modo na metafísica do ser enquanto ser; sem dúvida, é pelo cuidado de unidade que Aristóteles afirma sem restrição, mas às custas de uma exatidão absolutamente rigorosa, que a filosofia primeira é também a ciência filosófica plenamente universal.

* * *

A PÊN D IC E: O livro X I ou K da MetafísicaN o que precedeu, evitamos sistematicamente usar testemunhos tomados

deste livro, salvo para encontrar indicações concernentes à presença ou ausência de certos parágrafos ou de certas palavras nos textos paralelos dos livros III, IV, V I (B, F, E). E necessário justificar tal procedimento, visto que no livro em questão encontram-se muitas passagens que apóiam posições estabelecidas a partir de textos tirados de outras partes da obra de Aristóteles, assim como se encontràm também as que contradizem claramente afirmações lidas em outros lugares. A bem da verdade, em todo o livro só se faz menção nomeadamente da filosofia primeira em um único lugar74, a filosofia segunda tampouco é mencionada, embora esteja em questão, em larga medida, a ciência filosófica suprema, que podemos chamar de metafísica, e seu objeto, especialmente nos capítulos 1 e 2 correspondendo ao livro das aporias (III ou B), nos capítulos 3 e 4, correspondendo ao livro IV (r), cap. 1-3 até 1005bl0, e no capítulo 7 paralelo a V I (E.) 1. Além disso, encontram-se nas mesmas passagens freqüen­tes menções à física, que aparece como uma ciência bem constituída e uma sabedoria de ordem inferior, se se quer, à metafísica, mas ciência filosófica tal como Aristóteles a descreve alhures sob a denominação de filosofia segunda.

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Sabe-se do problema que pôs para a crítica a existência do livro K no in­terior da seqüência das npay|iaTeiai chamada de Metafísica de Aristóteles: a primeira metade do livro (1-8 até 1065a26) tem a aparência de uma repetição abreviada de três dos livros precedentes e a segunda metade (8 1065a26 até o fim) é composta de extratos da Física do começo ao fim. A questão suscitada por esse estado de coisas ainda não recebeu solução unanimemente aceita. No curso do século X IX , alguns simplesmente rejeitaram a autenticidade de todo o livro, outros o defenderam com considerações que não deixam de ser pertinentes, mas que não chegam a explicar a presença da repetição constituída pelos capítulos 1-8 no lugar onde os manuscritos da Metafísica os conservaram. Deixando de lado a segunda parte do livro, cuja autenticidade não encon­trou muitos defensores, os críticos parecem haver esgotado todas as hipóteses possíveis quanto às relações de K 1-8 com os livros precedentes. Alguns até adotaram sucessivamente opiniões contraditórias. Assim, W . Christ, em sua tese de 185375, sustentava que a redação mais clara, mais cuidadosa, mais ele­gante de K era destinada a apresentar de um modo melhor a exposição mais desajeitada e menos ordenada das passagens paralelas dos livros precedentes. Porém, em sua edição de 1885, o mesmo Christ, sob a influência de trabalhos publicados nesse intervalo, declara, em seu prefácio e em uma nota do início do livro K, que, na sua opinião, todo o livro deve ter sido redigido por um discípulo de Aristóteles antes que o livro V (A) tivesse sido inserido na série dos livros que formam nossa Metafísica atual.

Pouco depois, em 1888, Paul Natorp, que havia estudado longamente a composição da Metafísica de Aristóteles76, publicou um breve artigo sobre a origem de K 1-877. Não dando senão uma importância secundária aos critérios lingüísticos, que não vê como decisivos para negar ao Estagirita a paternidade do texto, ele se atém sobretudo a uma comparação minuciosa do conteúdo do livro B e de K 1-2, observando todas as diferenças e mesmo as nuances na exposição da doutrina e a ordem na qual as idéias são apresentadas. A con­frontação entre K 3-8 e TE é mais sumária. A conclusão é bastante firme: o autor é um antigo membro da Escola Peripatética que resumiu de modo bas­tante servil, adaptando-se mesmo bastante bem ao estilo do mestre, os livros B rE da Metafísica, mas, em razão da incompreensão de diversas passagens e de um interesse bem mais marcado que em Aristóteles pela existência de

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realidades supra-sensíveis e de uma substância imaterial e eterna subsistente por si, deu ao conjunto da exposição uma coloração muito diferente daquela de seu modelo.

E a este estado da questão, tal como tinha sido deixado por Natorp, que reagiu ulteriormente W. Jaeger, de início em seu livro de 1912 sobre a for­mação da coletânea conhecida sob o título Metafísica de Aristóteles78, em que especialmente submete a uma crítica detalhada os argumentos de Natorp contra a autenticidade do livro K79, sobre a qual não nos deteremos, visto que o próprio Jaeger renunciou em parte a suas críticas em seu Aristóteles de 192380. Com efeito, nesta última obra ele pode sustentar com verossimilhança a autenticidade de K 1-8, na mesma medida em que considera o conteúdo na perspectiva da evolução doutrinai de Aristóteles e, se ainda são encontrados muitos traços de uma tendência ainda platonizante, é porque esta exposição está cronologicamente posicionada antes da redação definitiva que possuímos dos livro B, r e E. Isso supõe, entretanto, que “o ser como tal”, tò ôv fi õv, que é dado como objeto à metafísica em ambas as versões tinha uma signifi­cação diferente em cada uma delas: na primeira (K), a expressão designa de modo exclusivo o que é imperecível e eterno, enquanto, na versão posterior, se trata de tudo o que existe de algum modo e a análise remete às diversas acepções do ser. Encontramos, assim, a interpretação tradicional da fórmula. Mas aqui Jaeger não faz a menor tentativa em vista de mostrar como, do ponto de vista gramatical, esta fórmula tomada em sua totalidade pode designar de modo exclusivo o ser absolutamente estável; mesmo se, na esteira de Platão, não se’ quer conceder a denominação de “ser” senão ao que é subtraído a toda mudança, não se vê o que é visado pela adição fi ôv, a menos que se trate de apoiar-se na plenitude do ser pertencente a uma tal realidade e excluindo por essa primazia todo devir: “o ser enquanto ser” significaria então “o imutá­vel enquanto imutável”81. Examinaremos à frente se uma tal interpretação é compatível com as exposições dos capítulos 3 e 4 de nosso livro K, que soam de modo totalmente diferente. Enquanto isso, notemos que Jaeger se declara de acordo com Natorp para atribuir a um discípulo a redação do documento em litígio: simples redator de uma série de lições do mestre, retomou o estilo deste, mas se traiu involuntariamente pelo emprego de tais palavrinhas, de resto, pouco dignas de serem realçadas82.

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Esta concessão, que não parece nada, é, em suma, gravíssima, pois se o re­dator não é Aristóteles, ele pode tanto ter traído o pensamento deste quanto ter cometido algumas infidelidades sem importância no que concerne à lin­guagem da exposição que ele pretendia reproduzir.

Não está em questão retomar aqui, em sua totalidade, o problema da autenticidade aristotélica de nosso livro K, mesmo reduzido aos seus oito pri­meiros capítulos. Mas pode-se examinar se a doutrina que o redator atribui a Aristóteles quanto ao objeto da metafísica pode corresponder ao pensamento do filósofo em um momento dado de sua carreira. O problema não será tanto o de ver se as opiniões que ele exprime ou que pressupõe nesse domínio são conformes ou não ao que Aristóteles ensina em outros lugares sobre o mesmo tema, mas sobretudo o de perguntar se são suficientemente coerentes entre elas. Apenas depois de um tal exame poderemos alocar de maneira útil tais passagens significativas do livro K no dossiê da pesquisa que empreendemos no que concerne à concepção aristotélica da “filosofia primeira” e, em geral, da ciência filosófica suprema, chamada metafísica na tradição peripatética.

Com esta finalidade, examinaremos em seqüência as três seções que distin- guimos acima, nas quais se trata do objeto da metafísica (cap. 1-2, 3-4 e 7).

Na primeira seção, a ciência filosófica é constantemente designada pelo termo aocjxa, como no prólogo do livro I (A). Esta seção começa por uma frase lembrando que essa “sabedoria” é uma certa ciência que tem por objeto os princípios, tal como resulta da discussão histórica nas exposições do iní­cio. Pode-se ver aí uma referência ao livro I (A) 3-7 (ou mesmo 3-10, caso se queira) ou a uma exposição paralela. Segue-se imediatamente o enunciado e a discussão da primeira aporia, acompanhada de toda a série de aporias subseqüentes. O exame dos problemas suscitados revela ainda as seguintes particularidades relativas ao objeto da sabedoria que se ocupa dos princípios. Percebe-se, desde a terceira aporia (1059a26-29), que esta sabedoria trata de substâncias (oíxríai), cuja menção é anunciada sem nenhuma advertência nem justificativa prévias. Outras questões sobre as substâncias aparecerão de forma semelhante nas aporias subseqüentes. Natorp83 observou que a terceira aporia se conecta de maneira menos natural à precedente do que a aporia cor­

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respondente no livro B: aqui, a segunda aporia suscita a questão de saber se os primeiros princípios a estudar seriam unicamente os da substância ou ainda princípios do gênero como o princípio de contradição (em K, segunda aporia, se trata exclusivamente dos últimos, ditos princípios da demonstração). A essa crítica, W. Jaeger respondeu, de modo muito pertinente84, que a exposição su­cinta de K evita explicações que não são indispensáveis e que é baseada assim de maneira tácita em certas pressuposições, entre as quais a que a metafísica deve se ocupar de substâncias.

Esta observação judiciosa deve, sem dúvida, ser estendida a outros dados que intervém no curso da discussão das aporias. Isso foi expressamente en­fatizado por uma outra particularidade de grande importância. Com efeito, Natorp nota85 que, aos olhos do autor, o único objeto essencial da ciência superior, a respeito do qual ele examina os problemas característicos, é, em suma, a realidade supra-sensível. Constata-se, de fato, em cinco passagens di­ferentes, indicações bastante claras neste sentido. Em primeiro lugar, supõe-se que este objeto é uma realidade separada das coisas sensíveis e é imperecível (I 1059bl2-14); é ainda a matéria dos seres matemáticos (chamada, às vezes, por Aristóteles, matéria inteligível - Metafísica V II (Z) 10 1036a9-12; 11, 1037a4- 5 - e concebida como um princípio interno imutável dos seres matemáticos- 1 1059bl4-19); é sobretudo a existência de uma substância distinta das substâncias do mundo inferior e subsistente por si em estado separado (2 1060al0-13); do mesmo modo, uma substância eterna, separada das coisas sensíveis e existente por si e, a este título, princípio da ordem das coisas (2 1060a23-27); e, enfim, este princípio ou esta substância, tal como descritos, se entende como um princípio único frente a todos os seres, sejam eternos ou corruptíveis (2 1060a27-b 3). Notemos que essas indicações são dadas no curso da exposição ou da discussão das aporias; elas não são diretamente o objeto posto em discussão em uma ou outra dessas aporias. A questão relativa à matéria dos seres matemáticos (1059bl4-19) parece ser, antes, uma questão subsidiária aludida pela menção ao objeto das matemáticas na aporia prece­dente (1059bl2-13). Por duas vezes, além disso, o próprio autor sublinha que é à "filosofia” (a palavra aparece desta vez) que ele se propõe construir, que pertence o objeto mencionado (1059b20), ou que a tarefa que se impõe a ele é ver se existe um ser separado em si, que não pertença a nenhum ser sensível

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(1060all-13). Também W . Jaeger, longe de rejeitar ou querer minimizar tais constatações, as vê como o testemunho de um estágio da metafísica aristotélica no qual ela era ainda muito próxima do platonismo e inteiramente inclinada à afirmação de um mundo supra-sensível86.

Note-se, de outra parte, que, em K 1, ao lado das matemáticas, menciona­das como um gênero de ciência bem conhecido (1059b9-13), também a física é nomeada e seu objeto é descrito nos termos clássicos do aristotelismo (ibid., 16-18). Além disso, há uma referência à doutrina das quatro causas tal como ela é exposta na Física (II 3) (kv Totç 4>wiKots: 1059a34).

Resulta, pois, que o redator de K 1-2 tem da ciência superior, cujas aporias ele examina, uma concepção muito próxima da de Aristóteles quando nos fala de sua filosofia primeira, ciência do imaterial e, assim, ciência de Deus, substância imutável que se encontra no cume da perfeição. Obviamente, em K, 1-2, como, aliás, em B, os limites do objeto desta ciência não estão ainda bem fixados; as discussões aporéticas que preenchem os dois escritos, mais ou menos paralelos, são precisamente destinadas, por um lado, a determinar do que, exatamente, a ciência terá de se ocupar. Não se deve mais surpreen- der-se se a exposição de K, 1-2 parece ao menos deixar ainda aberta a hipótese segunda a qual as substâncias sensíveis poderiam ser o objeto da ciência em questão (1059a26-29; cf. 1059a38-b 1). Além disso, ao lado desta sabedoria, tão semelhante à filosofia primeira, figura a física, disciplina identificada por Aristóteles a uma filosofia segunda.

Com a segunda seção (K 3-4), encontramo-nos desde o início bruscamente transportados para uma atmosfera doutrinai completamente diferente, com um vocabulário igualmente diferente. Esta seção começa de forma abrupta, do mesmo modo que o livro IV (r), pela afirmação sobre a existência de uma ciência, dita ciência do filósofo, que tem por objeto o ser enquanto ser, tomado de modo universal e não particular. Na seqüência, esta ciência é chamada filo­sofia (1061b5, 25) e, por uma vez, "filosofia primeira” (1061bl9) sem diferença de sentido; quem a exerce é o “filósofo" (1061bl0), como na frase do início. O ser, objeto dessa ciência, não é equivocidade pura, mas um termo com acep­ções múltiplas, comportando, malgrado isso, uma certa unidade em razão de referências diversas a um mesmo termo primeiro. Porém, este ser no sentido primeiro ao qual todo ser deve se reportar não é designado, aqui, como sendo

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a substância (não há nenhuma alusão às categorias), é simplesmente “o ser enquanto ser” (1061a8) ou “o ser” sem mais (ibid., 16). Següem-se, de modo breve, as considerações sobre as oposições e sobre a equivalência do uno e do ser, o que permite reunir sob uma só e mesma ciência todos os contrários.

Talvez tenha sido a passagem que resumimos que induziu a erro alguns críticos e os fez crer que “o ser como tal” designa aqui o Ser primeiro ou a subs­tância imaterial imutável, do qual todo o resto depende. Para admiti-lo é pre­ciso, todavia, forçar o sentido imediato do parágrafo, pois mesmo o movimento é dito "ser” porque é movimento do ser como tal (1061a8-10). De resto, uma tal exegese é absolutamente impossível, como o evidenciam as aproximações ulteriores com as matemáticas e com a física. O autor, em suma, procede duas vezes à comparação da "filosofia” com as duas ciências inferiores. A primeira vez para explicar como a ciência matemática faz abstração, nas coisas sensíveis, de todas as suas qualidades sensíveis para reter apenas a quantidade e o con­tínuo, e considera então seus objetos de um só ponto de vista: da quantidade e das propriedades pertencentes aos objetos enquanto quantificáveis e contí­nuos. De modo semelhante, a física considera seus objetos não enquanto seres, mas enquanto dotados de movimento (ponto de vista próprio dessa ciência); enquanto a “filosofia” dedica suas investigações ao "o que é ” e às propriedades que lhe pertencem enquanto ser (3 1061a28-b 11).

Outra exposição: a matemática considera tais partes do seu objeto próprio, não enquanto seres (oi>x f] ovTa), mas enquanto cada um desses objetos par­ticulares é contínuo. A física estuda os princípios e as propriedades dos seres (tojv oVtwv: entenda-se, de alguns seres), não enquanto seres, mas enquanto movidos. Por sua vez, a "filosofia” ou a primeira das ciências também consi­dera esses mesmos seres particulares (especialmente, de ordem matemática) não enquanto têm tais propriedades particulares, mas considera “o que é” e considera enquanto ser cada um dos seres particulares; ela se ocupa dos seres em movimento na medida em que esses objetos são seres, mas não enquanto são qualquer outra coisa (4 1061b21-32).

O autor, vê-se, retoma da maneira mais clara a doutrina desenvolvida no início do livro IV (G) 1-2 sobre o objeto de uma metafísica do ser como tal, doutrina retomada no início de V I (E) 1, sem que esteja em questão a filosofia primeira. Ele afirma, do mesmo modo, com toda a clareza e precisão desejá-

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wfe, que o objeto desta metafísica engloba o da física e o das matemáticas, na medida em que estas ciências se ocupam de realidades, mas o ponto de vista- o do ser - é diferente. Não se pode pretender que o objeto direto desta me­

tafísica seja o ser imaterial ou divino por exclusão de outros seres: o objeto é “o que existe”, isto é, todos os seres quaisquer que eles sejam. Tampouco susten­taríamos que a precisão contida na expressão f] ôv significasse “enquanto ser- imaterial-ou-imutável”, pois que sentido haveria em afirmar que a física estuda os princípios dos seres (seres imutáveis?) não enquanto seres-imutáveis mas enquanto movidos? Pois se se trata seres móveis, é bastante evidente que não se pode estudá-los enquanto imutáveis, e se se trata de seres imutáveis então a proposição é simplesmente absurda. Igualmente, vemos sem dificuldade que esta mesma expressão f) õv não se coaduna com to õv que precede e indica o objeto de estudo (o que é, o que existe), mas que a expressão indica o ponto de vista segundo o qual este objeto é estudado: isso transparece claramente da menção dos pontos de vista que são opostos e que são próprios às ciências diversas da metafísica, tais fi nocrá, f) au v exés, fi Kivoú|ieva, expressões rigo­rosamente paralelas àquela que caracteriza o objeto da metafísica87. 0 sentido desta última expressão resulta, além disso, do emprego repetido da expressão sinônima, mais desenvolvida, mas que tem exatamente a mesma significação: Ka0’ õgov è cm v õv (1061b4,9-10) out<a8’ õctov õvTa... èaTÍv (ibid., 31). Do nosso ponto de vista, podemos negligenciar a conclusão do capítulo: o autor termina sua comparação da “filosofia” com a física e as matemáticas afirmando, em conseqüência do que precede, que estas duas ciências são, ambas, partes da sabedoria (<70(j>ía). Por que da sabedoria? Isso não tem muita importância para o exame ao qual nos dedicamos. Talvez a palavra seja empregue para prevenir uma confusão com a “filosofia”, a que se fez referência oito linhas acima (1061b

25) e que designa a metafísica88.O que deve nos reter, sobretudo, é a profunda diferença que se manifesta,

por um lado, entre a concepção da ciência filosófica superior, chamada sabedoria, pressuposta pela discussão sobre as aporias nos capítulos 1 e 2, e, por outro, a descrição bastante precisa da “filosofia” ou “filosofia primeira” e de seu objeto que se lê nos capítulos 3 e 4. Elas aparecem como claramente incompatíveis uma com a outra. O autor se deu conta disso? Talvez, e então a exposição do capítulo 7 poderia ser uma tentativa de conciliação, o que é preciso examinar.

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H á muito foi observado que esta exposição é muito mais próxima de seu paralelo em E 1 do que os capítulos precedentes em relação às partes corres­pondentes dos livros anteriores que eles parecem resumir. Só se percebem algumas diferenças materiais mínimas, cuja significação é, no entanto, das mais graves.

O parágrafo de introdução expõe do modo mais correto a característica das ciências particulares, cujo objeto se limita sempre a um gênero determinado, o qual, sem dúvida, é tomado como ser e existente, mas que elas não estudam enquanto ser; uma outra ciência (que não é nomeada aqui) os estuda deste ponto de vista (1063b36-1064a4). É exatamente a doutrina já encontrada nos capítulos 3-4 e que se confunde com a do livro IV (r) 1-2 e VI (E) 1 início, 1025b3-10.

Porém, na seqüência, depois de ter situado a física na classificação das ci­ências em ciências teóricas, práticas e poiéticas e de haver indicado o objeto e o que é característico das definições dos objetos físicos, o autor, no momento de abordar a questão da distinção da ciência superior com a física (e depois, com a matemática) inicia assim (1064a 28): èuel 8’ êcm t l ç êm (7T r| | ir| t o í i

õ v t o ç f| õv Kal x^piaTÓv... O que deve ser entendido como segue: “Visto que existe uma ciência do ser enquanto ser e enquanto separado...”. Os dois pontos de vista em relação aos quais esta ciência estuda o ser, o do ser e o da separação (da matéria), são, aos olhos do autor, equivalentes e de algum modo sinônimos? Se nos ativermos à doutrina exposta nos capítulos 3 e 4 e no início do presente capítulo, deveríamos responder que não. Mas, ao lermos as linhas subseqüentes e todo o fim deste capítulo, nos damos conta que é só o ser separado que lhe interessa, a substância imaterial e imutável, Deus, cuja existência, mais tarde, buscará estabelecer89. E, por isso, o ponto de vista do ser, do qual não se trata mais no contexto imediato, deverá se confundir com o ponto de vista do ser separado. Assim, sem nenhuma advertência prévia e em contradição com as exposições anteriores, que deveriam esclarecer o emprego, aqui, da expressão clássica r\ õv, "enquanto ser", deveremos compreender que o ser visado neste texto é o ser no sentido forte, o Ser primeiro ao qual todo o resto deve ser reportado. Não se pode recriminar Pseudo-Alexandre por haver parafraseado nesse sentido a passagem que nos ocupa90. Porém, ajusto título, recriminamos o redator da passagem por ter misturado e confundido,

Augustin Mansion \

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ao usar fórmulas técnicas do próprio Aristóteles, o que este tinha cuidadosa­mente distinguido.

Depois disso, já não é surpreendente que o redator do livro K tenha enu­merado as três ciências - ele não diz as três filosofias - física, matemática e teologia (1064b 2-3), - na ordem dos graus de abstração, ao contrário de Aris­tóteles na passagem correspondente do livro E; visivelmente, ele não domina a tradição que se esforça por apresentar,

Quando, para terminar, ele oferece sua versão da aporia final concernente ao caráter universal da ciência superior, que acaba de ser tratada, ele a designa não mais como filosofia teológica, como havia feito, tampouco como filosofia primeira, tal como fez Aristóteles, em E 1, mas como ciência do ser enquanto ser. Se tomarmos a expressão em seu sentido óbvio, correspondendo ao que decorre dos capítulos 3 e 4, a questão é desprovida de sentido: é muito claro que a ciência do ser é a mais universal de todas. Então, sem dúvida, de novo, como em 1064a29, o ser é entendido no sentido de ser imaterial e separado; de outro modo, aliás, o apelo feito na solução da aporia à existência de uma tal substância separada e imutável não teria, na verdade, nenhum sentido. Constata-se, assim, como o autor, em todo este fim de capítulo, de certo modo se atola no equívoco a respeito da palavra ser, tò õv. Sem advertência, ele a emprega no sentido de ser primeiro e, depois, o põe em relação com os seres (t ò õvTa) diversos dele (1064b5, 10. Cf. ib. 9: TTepl TTávTwv), quando o ser, tomado sem restrição, deveria englobar tudo o que é.

Podemos terminar por aqui esta investigação. Ela é suficiente para constatar em que incoerências cai o redator do livro K, em um ponto de importância capital em filosofia, o objeto da ciência filosófica suprema. Não se trata de con­cepções que variam no decorrer de uma evolução ou de um aprofundamento das opiniões filosóficas do autor, como é o caso quando se comparam entre si diversos escritos de Aristóteles, ou mesmo diversas partes inseridas na coleção que é a Metafísica. Os oito primeiros capítulos de K parecem ser de um só jato. O vocabulário é claramente aristotélico, mas podemos nos perguntar em que medida o autor apreendeu o alcance filosófico de cada um dos termos que ele retoma. Sua maneira de ver parece inspirada pela conclusão de Aristóteles no último parágrafo do capítulo primeiro do livro VI (E): identidade de fato entre a filosofia primeira, ciência de Deus, e a filosofia do ser como tal, isto é,

i6 8 | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 179: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

de todo ser considerado como existente. Mas ele não viu as etapas pelas quais Aristóteles pode chegar a esta conclusão nem o itinerário de ordem lógica que ela pressupõe; por isso, ele apresentou o todo sob uma forma de aparência límpida, mas, de fato, em um conjunto freqüentemente confuso, onde, a pro­pósito de um ponto preciso da doutrina, os termos técnicos de Aristóteles são empregados confusamente e as noções correspondentes não são distinguidas. Também acreditamos dever dar razão a Natorp que atribuía a exposição a um peripatético antigo; gostaríamos de acrescentar: em uma data já bastante distante da morte de Aristóteles.

Não vamos examinar, aqui, se o autor quis reproduzir o conteúdo de uma série de lições de Aristóteles mais antiga que os livros III, IV e V I (B, F eE ) da Metafísica em sua redação atual, ou se ele só teve como modelo estes livros mesmos, ou ainda qualquer outra hipótese concernente às suas fontes. Em todo caso, porém, nos parece perfeitamente impossível atribuir ao próprio Aristóteles as incoerências e as confusões que pudemos constatar em alguns destes capítulos. Sem dúvida, ocorre que Aristóteles conserve em escritos mais recentes e representativos de um estágio mais evoluído de seu pensamento partes que pertencem a redações mais antigas, cujo conteúdo conserva ainda os traços de um pensamento menos desenvolvido, em certos casos incompatível com as novas idéias expostas no mesmo contexto. Foi isso que tornou possível a obra admirável de W. Jaeger e de seus continuadores. Mas, nas redações compósitas desse gênero, Aristóteles tem o cuidado de utilizar extratos de suas lições anteriores que não estejam em oposição demasiado gritante com as novas posições que quer ínculcar e, quando necessário, insere nestes textos reutilizados algumas observações incidentais, para deixar aberta a possibili­dade de uma explicação diferente, correspondendo às suas preferências atuais. Como vimos, é bem diferente o modo como se apresenta a composição do livro K da Metafísica.

f f Biblioteca ,:3 Com unitária

Augustin Mansion I t&a

Page 180: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

NOTAS

1 Ver o início dos prólogos de seus comentários aos livros B e T da Metafísica (p. 171, 5-8 e 237, 3-5 Hayduck),

2 Ilepl 8è Tfjs Kcrrà tò el8os àpxrjs, TTÓTepov pia f) TToXXal Kal tís r| TÍves elalv, 8l’ àKpifteías Tfjs TTp(ímr|s 4>iXocro<t>ías epyov ècmv 8iopíaal üxjt’ eis ètcelvov tòv Kaipòv aTroK€i(j0cü. Ilepl Sè twv ({rtxriKwv Kal 4>0apTÚv eíSwv èv toís WTepov 8enaa)|iévois èpoíifiev.

3 ... TTepl r a v r a ã èori xwpicrrà fièv eíSei, k v uXfl 8é (194bl2-13) ... ttôs 8’ ex e i tò Xwpioròv Kal t l ecTTL, <J>iXoaoi|)ías êpyov 8iopíaaL tíís Trpúrris (14-15).

4 As razões que nos fizeram negligenciar a passagem paralela do livro X I (K), 7, serão apre­sentadas à frente.

5 Ver nossa Introduction à la physique aristotélicienne, Louvain / Paris, 19452, cap. V, § 1, pp. 122-126, e o artigo "Lobjet de Ia science philosophique suprême daprès Aristote, Méta­physique, E, 1" in Mélanges de philosophie grecque offerts à Mgr. Diès, Paris, 1956, pp. 151-168, especialmente as pp. 161-164.

6 íxrre Tpets ãv elev 4>iXoaocj>íai 0e(opr)TLKaí, |i.a0r||j.aTLKT|, <|>u(7ikt|, 9eoXoyiicr| (1026al8-

19)‘7 €tl 8è Kal 8ià tov èk Tfjs ttpútt|s 4>LXoCTo4>ías Xóyiov 8eix0eÍT| âv, Kal eK TÍjs kíikXü) KLvriaeus, r|v àvayKaíov àí8iov Ó|íolws èvTaíi0á t’ eivai Kal kv toTs âXXois kóct[íois (277b9-12).

8 Alexandre segundo Simplício in De Caelo, p. 270, 5-9 Heiberg.9 Como Prantl em sua tradução alemã de 1857, p. 65.10 uepl 8è toü rrpÚTOu Kivou^évou Kai àel Kivoup.evou, TÍva TpÓTrov KiveiTai, Kal

TTWS KlV€l TÒ ITpWTOV KIVO0V, 8l(ópiGTai TTpÓTepov év TOLS TTepL Tfjs TTp(0Tr|S cfílXo- ao<t>ías, ...

11 tTepl [ièv yàp eKeívris eípr|TaL TTpÓTepov k v tols TTepl KÍvriaeus Xóyois, õti ècm tò |lèv àKLVT|TOV TOV SlTaVTa XpOVOV, TÒ 8è KLVOÚp.eVOV àeí toútcov 8è TTepl |lèv t% àKivT|Tou àpxf|S Tfjs eTepas Kal TTpoTépas 8ieXelv ècm cf>iXoao(j)ías epyov....

12 Aristotelis Metaphysica rec. W, Jaeger (Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis), Oxonii, 1957.

13 è-rrel 8’ ecjTLv €tl tot) 4>wikoíj tis àvarrépco (ev yáp Tl yévos TOÍI ÕVTOS T) 4>úais), TOÜ (iTepl tò) Ka0óXou Kal [toü] TTepl tt)v irpám^v oíxríav 0ewpriTiKOÍi Kal f) tTepl toútuv av e’ír| crKá|jis' « t t l 8è aocj/La tis Kal r) ()wctikt|, aXX’ oi) TrpÚTT|.

14 Parece-me que é assim que se dever traduzir a expressão de Aristóteles: TTepl Trá<7r|S Tfls oíiaías. Não se vê muito bem que sentido atribuir à tradução de Bessarion: de tota substan­tia; de modo praticamente unânime, os tradutores modernos falam “de toda substância", o que, frente à fórmula que adotamos, quase não muda o alcance filosófico da expressão. Aliás, eles podem invocar Alexandre de Afrodísia, que, no curso de suas explicações, cita por três vezes o texto de Aristóteles sob a forma: irepl rráar)s oíx/ias (p. 267, 24, 24e 27 Hayduck). Asclépio simplesmente copiou Alexandre (p. 256, 36 ss. Hayduck), porém, parece ter lido TÍjs.

j | Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 181: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

15 Kal õ ti t ò t l f|v e iv a i Kal ê ra a T o v èn i t lv ô v [iev ravró, u au ep èm t o v TrpwT(i)v

OlKJLÕjV [OLOV KajiTTllXÓTriS Kal Ka|XTTvXÓTT)TL e iv a i, e l TrpÚTT| êcTTLv] (Xéyco 8è TTp(ÓTr|V

f| |a.f) .Xéy€Tai T<jj aXXo kv aXXtó e iv a i Kal ÚTTOKei^évü) ws uXr))..,

16 Assim como no prólogo propriamente dito da M etafísica I (A) 1-2 até 982bl0, só aoc|>ía é constantemente empregada (981a 27, b 10, 28; 982a 2, 6,16, 20).

171 995b6-10; 2, 997a 11-15: para efeito de designação, trata-se apenas da ciência da oíma e de quem a exerce, o c()iXócioc|>os.

18 403bl5-16: f| 8è Kexwpia^éva, ò upwTOS 4>lXócto4>os.19 641a 17-25.20 Ver F, Nuyens, Lévolu tion de la psychologie dA ristote (Louvain, 1948), cap. IV, § 33, pp. 199-

202 e cap. V, § 37, pp. 209-214. Nesta obra, estão, além disso, traduzidos e discutidos os textos do D e partibus anim alium examinados acima. A base da doutrina não está em causa onde nossa interpretação se distancia da de Nuyens em razão de alguns detalhes de tra­dução propostos por ele.

21 D e an im a II 2 413bl3-32.22 A partir de D e an im a II 3, início, 414a29.231026a 27-29.0 que precede é destinado apenas a precisar o sentido da questão e, portanto,

o da resposta.24 No texto impresso aparece áxwpicjTa, lapso evidente cuja correção se impõe,25 1026a21-22: Kal tt|v TL|ii(i)TcnT|v 8ei Trepl tò TifucoraTov yévos elvaL. No começo

de seu comentário ao livro III (B) da M etafísica, Alexandre (171, 5-9 Hayduck) retoma os próprios termos de Aristóteles para justificar a denominação iTpwTri ao4>ía, que ele cita, aliás, ao lado de outras denominações aristotélicas ou tradicionais da metafísica, como designando a mesma disciplina (linhas 7-8): Xéyei 8è aírrr]v Kal TrpwTT|v ao<júav õtl tov TTpÚTUV Kal Tl[UWTCÍTü)V èoTL 0eCOpT|TLICr|.

26 Omito as palavras Kal tò êv, na linha 5, postas entre colchetes por Natorp, Ross e Jaeger.27 Ver em M etafísica IV (r) 1 a oposição entre a ciência do ser como tal e as ciências parti­

culares, nenhuma das quais dirige suas pesquisas universalmente para o ser enquanto tal, mas as- limita a um gênero de ser (1003a 21-26); idéias retomadas e resumidas sob uma forma menos clara no parágrafo da introdução do livro VI (E) 1 1025b3-18.

28III (B) 1 995bl2: ...f| tòs (lèv ao4>ía? tòs 8è ãXXo tl. cf. linha 5: nepl wv kv tols Trecf)poL|iLaa|j.évoLS...; 2 996b6-10:eK p.èv oúv twv TiáXai SiwpKJiiévwv TÍva xpTl KaXetvTUV êtTLCTTTIlxfiv <JO<t>íaV...

29 M etafísica III (B) I 995b6-10: enunciado da segunda aporia; do mesmo modo, terceira aporia (linhas 10-13), quarta (linhas 13-18), quinta (linhas 18-25); a ousia não é mais nomeada nos enunciados ulteriores. Nas exposições que seguem, a partir do cap. 2, em primeiro lugar, no que concerne à primeira aporia, se nos ativermos à descrição da sophia

como ciência dominante, ela será antes ciência do fim e do bem; mas como ciência do que há de mais cognoscível, ela será, antes, a ciência da oíxiía - entendida como causa formal; ela se confunde, todavia, com a substância e sua essência, quando se tomam as coisas no sentido estritamente próprio (III (B) 2,996b8-18), Na seqüência do capítulo 2 - discussão das quatro aporias seguintes -, oíxiía é, naturalmente, muitas vezes mencionada, visto ter

Augustin Mansion |

Page 182: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

sido incluída no enunciado dos problemas a serem discutidos, enumerados no capítulo

precedente,

30 Protréptico, fr. 5a W alzer; fr. 52 Rose, 1886, a partir da p. 60, 16; fr. 5 Ross, a partir da p.

32, 7 (Jâmblico, Protréptico, 6, p. 37, 22-41, 5 Pistelli). N otem os, sobretudo: e l i r e p èffTiv

fi |j.èv <ju\oao4>ía KaBánep oió^eGa ta r ja is Te kol x p íp is ao4>ías (p. 29, últim a linha-

30, 2 W alzer; p. 62, 7-8 Rose; p. 33, 21-22 Ross), onde se encontra resumida a doutrina

e os term os de Platão, Eutidem o, 288d, com o desenvolvimento subseqüente 288e-290e

relacionado com o que precede 278e-282d (onde se enfatizará o que concerne à aoc(>ia,

280a-b e 281b).

31 Fr. 8, extraído de Fíloponos in N icom . Isagogen I, 1, na coleção W . D . Ross (trad. inglesa

de 1952; edição do texto de 1955). O fragmento, sobre o qual voltaremos mais tarde, não

figura nas coleções anteriores.

32 pp. 7-8 e n. 16.

33 Esclarecim ento fornecido por meu amável colega, o cônego A . Van Roey, que teve a bon­

dade de verificar o teor do texto árabe na edição que acompanha o Comentário de Averróis,

feita pelo padre Bouyges,

34 Ver, acima, p. 15 e notas 28 e 29.

35 Frase inicial do livro, 1003a 21.

36 M etafísica IV (r) 2,1003a33-b 19.

37 1003b21-22: Siò Kal to í) õv to s f| ôv õ a a el8ri 0ewpf|aai fu â s ècrrlv èmcrrr||ar|s Tí> yévei, t ó Te e’ÍSr| tu v elSõv. N a linha 21, fj õv é omitido pelos manuscritos E J1, pelo lema

de Alexandre e pela citação de Asclépio, sendo atestado somente por A bJ 2mg. e retomado

em uma parte da paráfrase de Alexandre; a omissão torna mais natural a interpretação

corrente e não é requerida pela outra interpretação, que nos parece preferível. N a linha

22, r e é a lição dos mss. e de Asclépio (cit.), retomada por R oss e Jaeger; Bonitz e Christ

preferiram Sè, tirado de Alexandre (lema e citação), mas R oss (Com entário, I, p. 257, a â

loc.) observa que a lição Te é compatível com a interpretação corrente, à qual adere. A o

contrário, a outra interpretação exige a lição Te.

* “E por isso que pertence também a uma ciência genericamente una estudar todas as espécies

de ser enquanto ser e as espécies dessa ciência estudar as espécies de ser”. N . T ,

38 G . Colle, Aristote. L a M etaphysique, L ivre IV . Traduction et commentaire (Louvain, 1931),

p. 5.39 M etafísica, I V (r), 2 , 1004a 2-6. A passagem foi citada acima, p. 13; ver nota 26.

40 Cf. Bonitz, In dex , p. 378a 35-38. N o entanto, Aristóteles às vezes emprega no mesmo

sentido elSos por yévos, por exemplo, Física I I I 1 201a8-9.

41 M etafísica I I I (B ) 3 998b22-27; Segundos Analíticos I I 7 9 2 b l4 ; Tópicos I V l,121al4-19.

42 1003b22-33.

43 Ver M etafísica I V (r) 2 1003b33-36 e, à frente, 1004b5-9, onde se trata das TtáQr) m d ’

a i r r á do ser e do uno, de seu t l è cm e seus "acidentes”, acidentes necessários, pois são

propriedades, lô ia , como é dito na seqüência (ibid., 10-17), ou ímápxovTa, como o autor

as chama na conclusão do capítulo (1005al3-18).

44 Cf. Bonitz, In dex , 378a 35-38.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 183: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

45 Q uanto ao resto, não desejamos sustentar que esta longa exposição sobre o ser e o uno e

sobre suas propriedades apresenta uma ordenação satisfatória. A s repetições abundam e

o progresso do pensamento é quase imperceptível. E verossímel que haja restos de duas

recensões paralelas postos sem muita ordem uns após os outros.

46 N as páginas 223-224 (na seção IV , Beitrãge zur E rklãrung der M etaphysik des Aristóteles, p.

217-252), ele declara aderir completamente à exegese de W . Shuppe (D ie aristotelischen K a -

tegorien, 1866). Vão no mesmo sentido as discussões que P. N atorp (T h em a und Disposition

der aristotelischen M etaphysik in Philosophische M onatshejte, Bd. 24, H . 1, pp. 36-65, 1887)

consagra (§§ 3 e 4, pp. 41-45) à M etafísica 1003bl9-1005a 18.

47 O m ito , como acima à p. 13 (ver n. 26), as palavras K a i t ò ev (linha 5 ), assim como os

melhores críticos.

48 V er V I I (Z) 3 fim, 1029a33-34 com o parágrafo 1029b3-12, que todos os editores recentes,

após Bonitz, acrescentaram, aliás, por excelentes razões. Ver também, 2, início, 1028b8-15

e 11 1037al3-14. W , Jaeger (Aristóteles, p. 205 e nota, n. 1 da p. 206) considera que a pas­

sagem 1028b 8-15 (e, sem dúvida, também 1029a33-34), assim como 1037al0-20 (além de

outras) são adições posteriores do autor, que datam do momento em que ele teria inserido

em seu grande curso de metafísica (tal como, atualmente, o possuímos, grosso modo) uma

exposição mais antiga TTepl oíia ías, que se encontram nos livros Z e H atuais da M etafísica.

M as isso absolutamente não enfraquece nossa conclusão geral, pois, segundo a opinião do

próprio W . Jaeger (ibid., p. 207, n. 3), esta exposição primitiva não era nem puramente me­

tafísica nem puramente física, mas apresentava antes um caráter compósito e pertencente

simultaneamente à física, à metafísica e, mesmo, à analítica.

49 N o livro V I I (Z) 11 1037al4-16 trata-se de um estudo filosófico acerca das substâncias,

porém, neste lugar, Aristóteles visa expressamente à física.

50 V er em sua edição, Praefatio, p. X V I I I ,

51 Se se quiser, pode-se reportar à frase que serve de conclusão ao capítulo 2 1005al3-18, na

qual, um a vez mais, o objeto visado por essa metafísica é descrito em term os bem claros

e em toda sua amplitude.

52 pp. 6 -8 .‘

53 Ib idem .

54 Linha 14:Tf|S cjiucrifcíis Kal Seurépas 4>iX0(T0cj>ías. O s dois epítetos de 4>iXoao(()Las desig­

nam, de modo diferente, o mesmo objeto, pois, aqui, <f>imicr| é puro adjetivo determinando

4>iX.oao4>ía; de fato, o artigo Tfjs não é repetido antes de SeuTepas; tam bém o Kal que o

segue tem valor copulativo e não explicativo, físico ou natural não sendo um sinônimo de

segundo; mas é a filosofia natural que é idêntica à filosofia segunda, pois só há uma filosofia,

a filosofia primeira ou teológica, que seja superior à filosofia natural, razão pela qual deve

ser dita segunda. A m aior parte dos tradutores vertem a frase como se a palavra 4>uctikt|

fosse tom ada, aqui, substantivamente, subentendendo ém arrpr| ou cf>iAocro(j>ía (como

Aristóteles o faz muitas vezes); nesta passagem, porém, não é possível subentender o que

quer que seja: o substantivo ao qual se reporta o adjetivo <j)U(jiKT| é enunciado na mesma

frase: é (|>iXocro4>ía, os dois termos form am juntos um a expressão igualmente corrente em

Aristóteles. Cf. Bonitz, In dex , 821a 43-45.

Augustin Mansion |

Page 184: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

55 1028b8-32.

56 1029a29-34.

57 Aristotelis Metaphysica, vol. II, Com m ent., p. 303.

58 Como já enfatizei acima (n. 4 8 ) , W . Jaeger (Aristóteles, pp. 205-206 e notas) sustenta de

modo argumentado que o parágrafo em questão, do mesmo modo que aquele que nos ocupa

principalmente, Z 1 1 1037al0-17, são ambos adições posteriores de Aristóteles, adições da

época em que introduziu os livros ZH (Substanzbücher) em um conjunto mais amplo, para

integrá-los em seu grande curso de metafísica. Para o primeiro desses parágrafos, a asserção

foi contestada por E . von Ivánka em um a nota de seu artigo "V om Platonism us zur T h e-

orie der Mystik” in Scholastik, X I , 1936, p. 170, n. 5. Para a presente questão, isto não tem

importância, mas ela poderia ter quando fôssemos exam inar a que estágio do pensamento

de Aristóteles estão relacionadas a expressão e a concepção de uma "filosofia primeira”,

59 E. de Strycker, S . J ., L a notion aristotélicienne de séparation dans son application a u x Idées de

Platon (em Autour dA ristote, Louvain, 1955, pp. 118-139), pp. 122-124.

60 Cf. Metafísica V I (E) 1 1026a8-10 e, sobretudo, 14-15. E m outro lugar, A ristóteles é muito

mais explícito; deste ponto de vista, o texto certam ente m ais tardio do livro X I I (A) 8

1073b3-8 não deixa nada a desejar: "M as o número destas translações deve ser examinado

à luz das ciências m atemáticas que é a mais vizinha da Filosofia, quero dizer, a Astrono­

mia: a Astronomia, com efeito, tem por objeto um a substância, sensível, é verdade, mas

eterna, enquanto as outras ciências matem áticas não tratam de nenhuma substância, por

exemplo a Aritmética e a Geom etria” ([no original francês] trad. Tricot, 1953, II , p. 690).

''Filosofia", neste texto, evidentemente tem o sentido restrito de "metafísica".

61 Debngitudine et brevitate vitae 1464b33 (cjnJcriK. ((ilXoct.); D epartibu s anim alium 1 1 641a35-36

(oi8e[úa... napà rf)v 4>iktikt]v èmcrrípT|v 4>iÀoao<t)ía); I I 7 653a9 (4>iktik. 4>iXoa.).

62 W.Jaeger (Aristóteles, p. 399) observou, com razão, que Aristóteles em sua concepção de

uma física, dita filosofia segunda, se inspirou em Platão, que, no Filebo, 59c, designa os

objetos da física submetidos ao devir (cf. 59 a-b) como Seírrepá r e Kal W T e p a , ainda que

a expressão Seírrepá 4>iXoaoct>ía, de fato, esteja ausente do diálogo.

63 Cf. W.Jaeger, Aristóteles, pp. 214-215.64 Física 19 192a34-b2; I I 2 194b9-15; D e caelo 1,8 277b9-12; D e generatione et corruptione I 3

318a3-6; De anim a 1 1 4 0 3 b ll-1 6 ; D e m otu anim alium 6 700b7-9. Todos esses textos foram

discutidos acima.

65 Ver A.J. Festugière, L a révélation d'H erm ès Trismégiste. I I : Le Dieu cosmique, Paris, 19492,

pp. 219-259, 587-591; David Ross, T h e W orks o f Aristotle Translated into English, vol. X I I ;

Select Fragments, Oxford, 1952; idem , Aristotelis Fragm enta Selecta (Scriptorum Classicorum

Biblíotheca Oxoniensis, Oxford, 1955). A passagem em questão do fragmento foi traduzida

em francês por Festugière, p. 224, alínea I ; em inglês, por R oss (On Philosophy, fr. 8), p. 82,

linhas 3-7; texto grego, p. 77, linhas 10-13.

66 P. Wilpert, "D ie aristotelische Schrift ‘U eber die Philosophie’” in A utour dA ristote, Lou­

vain, 1955, pp. 114-115; “D ie Stellung der Schrift 'Ueber die Philosophie'" in d er G edan ke-

nentwicklung des Aristóteles in T h e Jou rn a l o fH ellen ic Studies, vol. 77, Parte 1 = Mélanges S ir

David Ross, 1957, pp. 157-158.

74 | Sobre a Metafísica de Aristóteles

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67 A afirmação de W.Jaeger (Aristóteles, p. 229, n. 3 fim) que, em M etafísica A 2 982b28-983all, a ciência visada por Aristóteles é compreendida de início como umaçÇeologia nos parece forçada; aliás, o prólogo propriamente dito, na medida em que descreve a natureza e o objeto da sabedoria, termina em 982bl0; o restante é acrescentado a título de complemento e de apêndice e é en passant que o autor nota que as coisas divinas são objeto da sabedoria.

68 Um estudo desse gênero foi desenvolvido na obra de H . J. A. Noite, H et Godsbegrip bij

Aristóteles (Thèse de Nimègue, Nimègue-Utrecht, 1940, 199 pp.): a documentação é lar­gamente suficiente; expusemos, noutro lugar, as razões que temos para rejeitar o método e as conclusões do autor (ver Tijdschrift voor Philosophie, VII, 1945, Vooruitgang in de studie

van Aristóteles wijsgerige ontwikkeling?, pp. 127-140).69 D e gen. et corr. I 3 318a3-6.70 D e partibus anim al. 1 1 641a32-b 2; M etafísica IV (r) 3 1005a33-b2, V I (E) 1 1026a27-30,

V II (Z) 11 1037al0-17.71 Introduction à la physique aristotílicienne, 2“ ed., pp. 127-143.72 “Lobjet de la Science philosophique suprême dàprès Aristote, Métaphysique, E, 1”, pp.

155-156.73 Divisão atestada em Ética E u dêm ia I 5 1216bl0-ll; I I 11 1227b28 e ss.; Ética N icom aquéia

V II 5 1447a28-31; e no apêndice ao prólogo da M etafísica I (A) 2 982bll-21.74 Cap. 4 1061bl9.75 Guilelmus Christ, Studia in Aristotelis libros M etaphysicos collata. Berolini, 1853. Ver pp. 113

e ss..76 T h e m a und Disposition der aristotelischen M etaphysik, citada acima, n. 46, publicado em 1887-

1888.77 “Ueber Aristóteles' Metaphysik, K, 1-8, 1065a 26” in A rch iv fü r Geschichte der Philosophie, I

(1888), pp. 178-193.78 W . Jaeger, Stuâien zur Entstehungsgeschichte der M etaphysik des Aristóteles, Berlim, 1912.79 Op. cit., pp. 64-86.80 Ver p. 217, n. 2 no fim.81 Cf. W . Jaeger, Aristóteles, pp. 215-216.82 Ibid ., p. 216 e n. 2 da p. 217.83 Artigo citado, p. 182.84 Studien zur Entstchngsgeschichte..., p. 6685 Artigo citado, p. 185.86 Ver W.Jaeger, Aristóteles, pp. 219-222.87 Ou ainda, de modo talvez mais incisivo, no caso da dialética (de tipo aristotélico) e da

sofistica que estudam, nos é dito, os acidentes dos seres, oi>x Tl 8’ ó v ra (1061b 7-9).88 P. Gohlke (Aristóteles. D ie Lehrschriften herausgegeben, übertragen ..., Paderborn, vol. V, 1951,

p. 327) interpreta a passagem 1061b32-33 no sentido em que as ciências em questão podem no m áxim o serem chamadas de partes da sabedoria. Esta interpretação não é impossível, mas o texto não fornece nenhuma indicação positiva neste sentido. O valor filosófico que Aristóteles e o redator do livro K podem encontrar nestas ciências vem do fato de elas remontarem aos princípios de seus objetos de estudo.

Augustin Mansion | j jç

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89 1064a 35-36.90 Ad loc., p. 660, 40 - 661, 2 Hayduck. Mas pode-se reprovar ao mesmo escoliasta não ter

mantido, mais adiante, o equívoco que ele encontrava em seu autor, pois na seqüência (p. 661, 19-22) ele identifica ciência universal e ciência do ser, que não considera uma parte do ser (como o fazem as ciências particulares), mas o ser enquanto ser.

obre a Metaftska de Aristóteles

Page 187: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

LÓ G IC A E M ET A FÍSIC A E M A LG U M A S O BR A S IN IC IA IS D E A R IS T Ó T E L E S

G. E. L. Owen

Boa parte do trabalho inicial de Aristóteles em lógica surgiu da prática e das discussões na Academia, durante a vida de Platão. Este é um lugar-co­mum, mas tentei ilustrá-lo aqui com evidências que lançam uma luz pouco familiar ao desenvolvimento de algumas das teorias mais características de Aristóteles. O próprio lugar-comum não deve ser confundido com uma tese mais restrita sobre a origem da teoria do silogismo: sobre este assunto batido, não tenho nada a dizer aqui. Confinei-me a outra parte dos estudos lógicos de Aristóteles, a saber, aquela parte que moldou sua visão sobre a natureza e possibilidade de qualquer ciência geral de to on hêi to on ('ser enquanto ser"), qualquer investigação da natureza geral do que existe. Aqui, suas maiores questões eram problemas de ambigüidade, em particular a ambigüidade que ele dizia ter encontrado em "ser” ou to on, tal como esta expressão é usada nas diferentes categorias. E seus problemas eram compartilhados por seus contemporâneos da Academia. Por oposição e por sugestão, eles ajudaram a formar a lógica que subjaz à Filosofia Primeira.

Há uma imagem famosa - e com razão - do desenvolvimento de Aristó­teles com a qual tentarei comparar meu argumento. De acordo com esta ima­gem, Aristóteles, por muitos anos após a morte de Platão, permaneceu ligado ao projeto de construir uma ciência-mestra platônica da metafísica. Somente posteriormente, quando este período platônico foi deixado para trás, ele passou a concentrar sua atenção nas ciências departamentais. Quando ele escreveu Me­tafísica IV, assim como quando ele escrevera o Protréptico e a Ética Eudêmia, ele ainda podia ver-se como o “Érneuerer der übersinnlichen Philosophie Platons (com a exceção de que, agora, ele havia reformado sua herança a ponto de descartar as Formas transcendentes, deixando apenas Deus como objeto de estudo). Mas- de acordo com esta mesma explicação - em Metafísica IV um novo interesse se

G. E. L. Owen | jyy

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infiltrou por trás do interesse antigo. Pois agora Aristóteles tenta encontrar um lugar para uma segunda investigação, uma investigação bastante diferente, sob a velha rubrica de "Filosofia Primeira”, uma investigação que não é “platônica”, mas essencialmente aristotélica: o estudo geral do ser, tou ontos bêi on1.

A evidência que pretendo discutir não se encaixa bem nesta explicação. Ela parece mostrar que, quando Aristóteles escreveu Metafísica IV, ele retornou ou primeiramente chegou à crença na possibilidade de uma metafísica geral, após um período em que denunciara qualquer projeto deste tipo como logicamente indefensável e castigara Platão e a Academia por buscá-lo. Foi neste período que, por razões de lógica, ele confinou seus interesses às ciências especiais (uma das quais é a teologia). Foi neste período que ele escreveu, inter alia, todo o Organon ou sua maior parte, a Ética Euâêmia e a polêmica contra a Academia; e sua atitude, nesta época, para com uma ciência-mestra platônica certamente deve ser recobrada tanto desta polêmica quanto de seu interesse contínuo na ciência especial da teologia. Visto por esta perspectiva, o tipo de investigação que é introduzido no quarto livro da Metafísica parece mais uma revitalização da simpatia com os objetivos de Platão (ou com aquilo que Aristóteles tomava por estes objetivos) do que um novo distanciamento deles.

A m b ig ü id a d e e o a t a q u e à m e t a f ís ic a

"Em geral”, diz Aristóteles em Metafísica I 9, “é infrutífero procurar pelos elementos de todas as coisas que existem sem distinguir os diferentes sentidos em que as coisas são ditas existir” (992bl8-24). Este interesse pela ambigüidade era compartilhado por outros na Academia. Espeusipo, tanto quanto Aristó­

teles, estabeleceu critérios para sinonímia e homonímia2. E podemos ouvir um debate geral por trás da observação nas Refutações Sofísticas de que, enquanto al­guns casos de homonímia não enganam ninguém, alguns parecem iludir até os especialistas, uma vez que eles freqüentemente discordam sobre palavras como "um” e “ser”: alguns mantêm que as palavras têm um único sentido em todas suas aplicações, outros refutam os eleáticos negando isto (l82bl3-27). Aristó­teles foi um dos que negavam isto. Em sua visão, ser era ser alguma coisa ou outra’. para uma soleira, ele diz, "ser” significa "ter tal e tal posição”; para gelo, significa "ter-se solidificado de tal e tal maneira"3. E, no nível de maior generalidade, ser

' a Metafísica de Aristóteles

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é ser ou uma substância de algum tipo, ou uma relação, ou uma qualidade, ou um membro de uma outra categoria. Não há nenhum sentido para aafirmação de que algo existe além e à parte de um dos sentidos particulares.

Que esta disputa sobre a ambigüidade de "ser” e “um” tomou parte de seu ímpeto do Parmênides e do Sofista dificilmente pode ser posto em dúvida. Que

ela era mais do que uma digressão lexical prova-se por muitos dos principais argumentos de Aristóteles e particularmente por aqueles que, como a objeção já citada, tinham como alvo os platônicos. Um dos mais impressionantes faz parte da polêmica contra a Academia do primeiro livro da Ética Eudêmia4. Nele, Aristóteles argumenta que, uma vez que “ser” e “bom" têm sentidos diferentes em categorias diferentes, não pode haver uma ciência unitária do ser ou do bem5; e ele posteriormente acrescenta que uma ciência só pode estudar um idion agatbon, “bem especial” (1218a34-6) - ou, por implicação, algum idion on, “ser especial". Esta é uma conclusão que faz qualquer leitor da Metafísica ou da Ética Nicomaquéia esfregar seus olhos. É verdade, a Ética Eudêmia não nega toda conexão entre os diferentes tipos de bem, ou entre as ciências que os estudam: como a Ética Nicomaquéia, ela ordena os bens alcançáveis pelos homens em uma hierarquia de meios e fins (1218bl0-25). E também é verdade que a Ética Nicomaquéia ainda retém o antigo argumento contra qualquer ciência geral do bem6. Mas a Ética Nicomaquéia acrescenta o pensamento redentor de que todos os usos de “bom” podem estar conectados ou por afiliação a um uso central, ou então por analogia7, e disso não há nenhum sinal na Ética Eudêmia. Então, na obra anterior, quando Aristóteles argumenta que cada coisa busca seu próprio bem separado, ele cita o olho que busca a visão e o corpo que busca a saúde (1218a33-6), mas na Ética Nicomaquéia ele usa estes exemplos para mostrar a analogia entre os diferentes usos de “bom” (1096b28-9). E há outra diferença relacionada, cuja importância ficará clara à medida que prosseguimos. A Ética Eudêmia prefacia sua polêmica com uma advertência: os tópicos a serem dis­cutidos necessariamente pertencem a outra investigação, uma que é em geral mais dialética (logikôteras), pois é esta (sc. dialética ou “lógica”), e não qualquer outra ciência, que lida com argumentos que são ao mesmo tempo gerais e des­trutivos8. Mas a Ética Nicomaquéia suaviza estes argumentos gerais e destrutivos eom sua sugestão construtiva acerca dos sentidos de “bom”; e então comenta que a precisão nestas questões deve ser deixada para outra filosofia (1096b30-l).

G. E. L. Owen j

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Comentadores corretamente identificaram esta outra filosofia com o tipo de investigação introduzido em Metafísica IV, uma metafísica geral cujo primeiro objetivo é mitigar a ambigüidade de palavras que têm diferentes usos nas dife­rentes categorias, para isso mostrando que todos seus sentidos têm um foco, um elemento comum9. Assim, podemos dizer, provisoriamente: na ética anterior, uma palavra como “bom”, que é usada em diferentes categorias, é ambígua, e a análise destas ambigüidades pertence à dialética. N a ética posterior, a am­bigüidade é evitada, e isto é trabalho da metafísica.

Ainda mais surpreendente que a intransigência sobre o "bom" na Ética Eu­dêmia é o corolário de que apenas pode haver ciências departamentais do ser. Ele diretamente contradiz o argumento em Metafísica IV, VI, X I10, onde Aris­tóteles discute que “ser” é usado não homonimicamente, mas, de certo modo, sinonimicamente (tropon tina kath’ hen), uma vez que todos seus sentidos podem ser explicados em termos de substância e do sentido de "ser” que é apropriado à substância. Para explicar qual é o ser das qualidades ou relações, deve-se explicar o ser (em um sentido anterior) das substâncias que têm qualidades e relações, E disso Aristóteles prontamente conclui que há uma única ciência do ser enquanto ser, e que ela é universal em escopo, e não mais uma investigação departamen­tal11. Não há nada de novo na sugestão de que, em algum momento, Aristóteles restringiu a Filosofia Primeira a um único departamento da realidade; mas seria difícil encontrar melhor evidência para isso do que esta controvérsia da Ética Eudêmia, que ao mesmo tempo evidencia que a restrição era deliberada e por que ela era assim12. E verdade que, se esta fosse a única evidência, ela seria suspeita. Sua singularidade poderia reforçar aquelas dúvidas sobre a autenticidade da Ética Eudêmia que são anotadas em outras partes deste capítulo13. Mas ela não é única, e nós só precisamos tomá-la como uma pista para encontrar outras evidências que, por si mesmas, compeliriam as mesmas conclusões.

Em resumo, então, o argumento de Metafísica IV, V I parece marcar um novo distanciamento. Ele proclama que "ser” nunca deveria ter sido assimilado aos casos simples de ambigüidade e conseqüentemente que a antiga objeção contra qualquer metafísica geral do ser malogra. O novo tratamento de to on e outras expressões cognatas como sendo pros hen kai mian tinaphusin legomena, “ditas relativas a uma coisa e a um único caráter" - ou, como direi daqui pra

frente, como tendo sentido focal - possibilitou Aristóteles converter uma ciência

| Sobre u Metafísica de A ristóteles

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especial da substância em uma ciência universal do ser, “universal na medida em que ela é primária”14.

Agora é hora de algumas advertências. Não estou dizendo que, quando Aristóteles escreveu a Ética Éudêmia, ele ainda não estava familiarizado com a idéia de sentido focal. Ele estava, e seu uso desta idéia persuadiu von Arnim de que ele já deveria ter desdobrado todo o argumento de Metafísica IV15. Mas isto é um erro. Von Arnim menosprezou a passagem que consideramos. Aristóteles de fato usa a idéia de sentido focal na Ética Eudêmia: ele a aplica a seu exemplo paradigmático, “medicinal”, e, então, com detalhes, a “amizade" (1236a7-33). Mas ele não viu sua aplicação a expressões tão gerais quanto “ser” ou “bom”. Quando ele a usa, esforça-se para explicá-la, e é característico de seu trabalho inicial - o trabalho de um jovem aficionado por argumentos esquemáticos - que a explicação que dá na Ética Eudêmia é muito mais do que os argumentos na Ética Nicomaquéia e na Metafísica que dependem da mesma idéia (EN 1156bl9-21, 35- 1157a3). Uma palavra como “medicinal", ele diz, não é unívoca - ela tem várias definições, respondendo a seus diferentes sentidos, mas um destes sentidos é primário, pois sua definição reaparece como um componente em cada uma das outras definições. Se ser um homem medicinal é ser XY, ser uma faca medi­cinal será do tipo usada pelo homem que é X Y (1236al5-22). Este é o padrão de tradução redutiva que Aristóteles posteriormente aplica a “ser”16 e àquelas outras expressões, como “um”, “mesmo”, “oposto", que têm um uso em todas as categorias, mas um uso primário na primeira (Meta. 1004a23-31; cf. 1018a31-8). Mas, na obra anterior, falta esta aplicação ambiciosa. Além disso, na análise da amizade, somos advertidos contra a suposição de que, se um sentido da palavra é primário, então ele é universal (EE 1236a22-9); e esta é outra advertência sobre a qual o Aristóteles de Metafísica IV e VI, ansioso por minimizar o contraste entre sinonímia e sentido focal, precisará se retratar ou reformular.

P r i o r id a d e l ó g ic a , p r io r i d a d e n a t u r a l

H á outra objeção a ser enfrentada antes de passarmos a outra evidência. Até agora sugeri que, em sua polêmica contra a Academia, a Ética Eudêmia não leva em consideração a análise lógica de “ser” e a possibilidade conseqüente de uma única ciência geral do ser que é proposta em certas partes da Metafísica.

G. E. L. Owen \

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Mas, no mesmo contexto, a Ética Éudêmia, como a Ética Nicomaquéia, reconhece não apenas a diferença nos sentidos de "bom” tal como ele é usado nas dife­rentes categorias, mas também reconhece uma ordem geral de prioridade entre os diferentes tipos de bem (EE 1218al-15, EN 1096al7-23). É natural assumir que estes tipos de bem correspondem aos sentidos de “bom”, e, portanto, que a prioridade em questão é simplesmente a prioridade da primeira categoria. E se aceitarmos esta suposição, então a Ética Eudêmia deve estar pressupondo o argumento de Metafísica IV e V I que professa mostrar como as outras catego­rias são logicamente subordinadas à primeira? Uma vez concedido este ponto, temos um dilema que é de qualquer modo fatal. Pois ou a inconsistência entre estas duas obras - inconsistência na qual pus grande ênfase - é uma ilusão, ou a Ética Eudêmia foi escrita com total consciência da análise proposta na Metafísica e ainda assim contradiz a inferência retirada de lá, a saber, a de que pode haver uma ciência única do ser. N a última alternativa, a Ética Eudêmia deve ser uma produção posterior e, presumivelmente, não uma obra de Aristóteles17.

Poderíamos pôr em questão o primeiro passo da objeção. Pois, tanto na Ética Eudêmia quanto na Ética Nicomaquéia, o argumento da prioridade é bas­tante distinto daquele que alega haver uma ambigüidade e explora a teoria das categorias. Parece duvidoso se a forma original do argumento da prioridade sequer envolvia as categorias; em sua versão na Ética Eudêmia, elas não são mencionadas (1218al-15), e, na Ética Nicomaquéia, a menção a elas é superada pela antiga dicotomia acadêmica entre kath’ hauto, “per se, epros ti, “relativo”, da qual as categorias eram um rival mais elaborado18. Ainda assim, suponhamos que a prioridade em questão é a prioridade da primeira categoria. De forma alguma isto implica que Aristóteles já tinha chegado à sua análise da prioridade lógica da substância, a análise que é proposta em Metafísica IV e que depende diretamente do reconhecimento do sentido focal de "ser”. Afinal, prioridade lógica - prioridade em logos ou definição - é apenas um dos tipos de primazias que Aristóteles vem a atribuir às substâncias (Meta. 1028a32-b2). Outro tipo é prioridade "natural”, uma noção mais primitiva, que Aristóteles tomou como sendo a mais antiga das duas, uma vez que ele atribui sua paternidade a Platão, e diz que, de certo modo, os outros tipos de prioridade receberam seu nome dela (Meta. 1019al-4). A é naturalmente anterior a B (proteron kata phusin, kat’ ousian) apenas no caso de que A possa existir sem B e não vice versa; e é óbvio

Sobre a Metafísica de Aristóteles

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que, assim como esta prioridade simples não implica o tipo mais sofisticado, tampouco o reconhecimento da primeira em um certo caso requer o reconhe­cimento da segunda. Assim, um exemplo paradigmático de prioridade natural era a seqüência pontos, linhas, planos, sólidos; contudo, a Academia parece ter considerado esta relação como permitindo a definição dos termos posteriores pelos anteriores, ou o inverso, ou nenhum dos dois19.

Pois bem: o único tipo de prioridade que é expressamente invocado em nossa passagem da Ética Éudêmia é a prioridade natural (1218a4-5). No começo da polêmica, a Idéia do Bem foi dita ser anterior a outras coisas boas apenas no sentido de que sua destruição envolveria a destruição do resto, mas não vice versa20. E verdade que a Idéia também é dita ser aquilo com referência a que outras coisas são chamadas boas (1217bl2-13; cf. Meta. 987b7-9); mas o fato surpreendente é que nem aqui nem em suas outras críticas às Formas, Aristóteles pensa que sua fórmula implica que a definição de "bom” ou de qualquer outro predicado difere quando a palavra é aplicada à Idéia e quando ela é aplicada ao participante21. Isto significa dizer que, neste estágio ou contexto, de modo algum ele considera a idéia de sentido focal ou a noção associada de prioridade lógica; e são estas idéias, e não uma explicação mais antiga e mais vaga da primazia da substância, que posteriormente o permitem escapar de sua própria polêmica e evitar a ambigüidade de “ser”.

Assim, a objeção não tem sucesso e podemos continuar.

A m b i g ü i d a d e e m e t a f í s i c a n o O r g a n o n

*

Em outras partes, podemos ver a busca pelo sentido focal, em contraste com a simples detecção da homonímia, ganhando interesse e importância para Aristóteles. Quando ele elucida algumas expressões cardinais apresen­tando alguns de seus sentidos como sendo elaborações com base em um sentido primário, sua técnica marca um grande avanço em relação à busca socrática por definições. Ele a emprega ocasionalmente em seus escritos físi­cos22 e no Léxico, Metafísica V, às vezes com o ar de uma reflexão posterior23. De um modo especial, ela começa a dominar sua psicologia. Aristóteles já está um escolho à frente do método socrático quando argumenta, nos Tó­picos, que, uma vez que “vida” é usada em diferentes sentidos para plantas

G. E. L, Owen \ jfty

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e animais, é errado intentar uma definição geral da palavra: precisamos de uma definição separada para cada forma de vida (148a23-26). Mas ele está além dos Tópicos quando diz, no De Anima, que, se, por um lado, não pode­mos ficar contentes com uma definição geral de alma, tampouco podemos parar neste ponto, o de dar definições separadas dos vários tipos de alma. Nossa explicação deve mostrar como estes tipos estão ordenados, o posterior potencialmente contendo o anterior (414b25-415al). Aqui parece haver para­lelos com a linguagem da Metafísica bastante conscientes: com a alma, assim como com ser, é o primeiro sentido da palavra que mostra o que é comum a todos os sentidos (415a23-5) e é apenas o que é denotado pela palavra em seu sentido primário que pode ter existência “separada” (413a31-bl0). Mas há ao mesmo tempo grandes diferenças entre os dois usos do sentido focal, e aqui nós não estamos preocupados com a psicologia. O exemplo traz ou­tros problemas que ficam em nosso caminho. Os Tópicos são um livro de lugares-comuns cuja compilação e cujo subseqüente acréscimo podem ter-se prolongado por um período considerável. E razoável, então, dizer, como eu disse sobre este exemplo, que, por sua preocupação posterior com o sentido focal, Aristóteles está “além dos Tópicos”? Ou, como pretendo argumentar, que ele está além do Organon como um todo?

Considere, primeiro, quais sinais do interesse geral pelo sentido focal exis­tem nestas obras, desconsiderando o uso especial que Aristóteles encontra para a idéia em Metafísica IV. Nos Tópicos, ele cita vários exemplos que mais tarde servirão como casos padrões depros hen legomena24. Mas aqui eles pare­cem ser tratados como meros casos de ambigüidade ("bom”, por exemplo, é equiparado a oxu, "afiado”, “agudo”, atribuído em diferentes sentidos a notas, facas e ângulos). Robin descartou este tratamento como sendo "une expression insuffisante etpeu exacte de la doctrine dAristote"25: talvez ele pensasse esta inade­quação como um sinal das metas negativas dos Tópicos. Mas o lado destrutivo da dialética foi muito exagerado, e é igualmente provável que Aristóteles ainda não tinha desenvolvido a "doutrina” geral que Robin procurava. De qualquer modo, tivesse ele ou não encontrado a noção de sentido focal (uma questão que encararemos depois) e estivesse ou não esta noção implicada ou prenun­ciada por outras passagens dos Tópicos26, a obra não dá nenhum sinal de que

ele tenha atribuído qualquer importância a ela. Quando ele reconhece uma

j Sobre a Metafísica de Aristóteles

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terceira possibilidade além da simples sinonímia e homonímia, a possibili­dade é “metáfora” (juntamente com, como um quarto caso, algo "pior do que uma metáfora”), e não há nenhuma intenção de explicar a metáfora por meio do sentido focal27. E há passagens reveladoras, tal como a discussão de um problema no quinto livro. O problema depende da possibilidade de atribuir um predicado tanto para o sujeito primário quanto para outras coisas que "recebem seu nome” a partir do sujeito (134al8-25); ele seria solucionado pela introdução do sentido focal - isto é, se se permitisse ao predicado definições diferentes, mas conectadas, em seus diferentes usos. Mas, embora num ponto ele pareça à beira desta solução (134a32-bl, cf. 145a28-30), Aristóteles trata o predicado como sendo uma unidade simples em todos os casos, e apenas recomenda ao orador dizer se a expressão está sendo aplicada a seu sujeito primário ou não (134bl0-13). Este tratamento simples adquire significado es­pecial em seu ataque às Idéias, pois ele reconhece que o uso que os platônicos fazem do prefixo auto ou bo estin, “absoluto” ou "aquilo que [realmente] é”, é simplesmente esta tentativa de tomar a Idéia como sendo o sujeito primário de um predicado; ainda assim, também aqui ele não supõe que este prefixo implique qualquer variação no logos, na definição do predicado (cf. n. 21). Para ele, a Idéia é “a primeira de um conjunto de sinônimos” naturalmente, mas não logicamente anterior a seus participantes28.

Tampouco o sentido focal encontra-se formalmente reconhecido na classe de parônimos que é introduzida nas Categorias e reconhecida nos Tópicos, pois a definição dos parônimos é meramente gramatical. Ela não mostra de que modo os sentidos subordinados de uma palavra podem estar logicamente afiliados a um sentido primário, mas como adjetivos podem ser fabricados a partir de nomes abstratos pela modificação da terminação da palavra29. Ob­viamente as Categorias não fazem e não poderiam fazer uso desta idéia para explicar como as categorias subordinadas dependem da primeira. Tampouco usam o sentido focal para este propósito (2b4-6). Se o sentido focal pode ser visto nas Categorias, é na análise de alguma categoria - clara o bastante na definição de quantidade (5a38-bl0), bem mais duvidosa na explicação dos dois usos de “substância" (2b29-37, 3bl8-21) - mas não na ordenação lógica das diferentes categorias e dos diferentes sentidos de "ser”, que está na base do argumento de Metafísica IV.

C. E. L. Owen | / # < *

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Este ponto pode ser reforçado e generalizado, e então ele é fundamental. Quer Aristóteles tenha ou não pensado, à época da redação dos Tópicos (e das Categorias, se ele escreveu esta obra), que o sentido focal tinha algum interesse para filósofos, nem lá nem no restante do Organon há algum indício do uso que a idéia tem no quarto livro da Metafísica. Nesta estrutura, não há lugar para uma ciência geral do “ser enquanto ser”. Retórica à parte, a única disciplina que Aristóteles reconhece nestes trabalhos como passível de lidar com material que é comum a todas as ciências e a todos os campos do discurso é a dialética30; e a dialética não tem nenhuma pretensão ao título de Filosofia Primeira, Em sua relação com as ciências, ela é uma técnica preliminar para clarificar e for­talecer as idéias em uso corrente, idéias que ela toma e emprega mais apura- damente31. Os princípios comuns que ela investiga têm um uso diferente nas diferentes ciências e nas diferentes categorias (An. Post. 76a37-40, 88a36-b3)- há aqui um inevitável paralelo com o tratamento de “ser” e “bom” na Ética Éudêmia - e os usos destes princípios estão conectados apenas por “analogia” (76a38-9). Com certeza, a própria conexão analógica é uma admissão de que as palavras e fórmulas que são partilhadas por todos os campos do discurso não são, por esta razão, simplesmente equívocas; mas ela não explica o porquê disso. Veremos depois o quanto ela está longe de implicar a conexão sistemática de significados com a qual Metafísica IV desarma a mesma ambigüidade. Ela não faz nada para mostrar a possibilidade de uma ciência geral do "ser e das características necessárias do ser", que toma os axiomas comuns das ciências como parte de seu domínio apenas porque estes axiomas pertencem ao ser enquanto ser. Quando Aristóteles pensa ter estabelecido esta possibilidade, ele pode reclamar nova importância para as técnicas dialéticas incorporando-as na nova ciência32. Mas este tipo de ciência não está presente no Organon.

Ainda assim, comentadores ansiosos pela unidade do pensamento de Aris­tóteles conseguiram ver a metafísica posterior nos textos lógicos. Eles a des­cobriram nas Refutações Sofísticas, quando Aristóteles explica que o argumento dialético não é restrito a determinada classe de objetos, não prova nada e - a frase crítica - não é hoios ho katholou, “como o raciocínio universal” (172all-13). O que é este raciocínio universal (perguntam os intérpretes, de pseudo-Ale- xandre a Jean Tricot) senão a ciência universal do ser anunciada em Metafísica IV? Ainda assim, nas linhas seguintes, Aristóteles nega abertamente que todas

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as coisas possam ser agrupadas sob os mesmos princípios e, um pouco depois, diz, no mesmo estado de espírito, que as idéias comuns com as quais a dialética lida não formam um assunto positivo: elas são mais como conceitos negativos (apophaseis, cuja pretensão a um gênero comum Aristóteles negou a partir do De Ideis)33. Waitz percebeu que, neste contexto, o método “universal” com o qual a dialética é contrastada só pode ser aquele que é explicado nos Segundos Analíticos, o método das ciências especiais, cujo objeto de investigação é definido como “universais que não são equívocos”34. Alternativamente, se pretendemos ver uma referência à metafísica geral na frase, ela deve ser glosada por aquela passagem dos Segundos Analíticos onde Aristóteles distingue as ciências especiais não só da dialética, mas também de "qualquer ciência que tentasse dar provas universais dos axiomas comuns, como a lei o terceiro excluído” (77a26-31). Também aqui, comentadores desde João Filopono sentiram o cheiro de Metafísica IV. Contudo, Aristóteles consistentefriente mantinha que os axiomas comuns eram amesa, "imediatos”, e não podem ser provados; no melhor dos casos, como no quarto livro da Metafísica, eles podem ser recomendados por métodos dialéticos (Meta. 1006all-18). Deste modo, a ciência que Aristóteles tem em mente aqui não pode ser uma invenção sua. Ao contrário, como Ross percebeu, é aquilo que ele repu­dia: “uma tentativa metafísica, concebida à maneira da dialética de Platão, (sc. como ela é representada nos livros centrais da República), de deduzir hipóteses a partir de um primeiro princípio não-hipotético”35. 0 mesmo é verdade quando Aristóteles diz, um pouco antes nos Segundos Analíticos, que uma ciência não pode provar os teoremas de uma outra e (quase no mesmo fôlego) que a geometria não pode provar o princípio geral de que o conhecimento dos contrários é um único conhecimento (75bl2-15): se (como intérpretes assumem, sem garantias) aqui ele está pensando em outra ciência que professe provar tais princípios gerais, é a República, e não a Metafísica, que lhe fornece o modelo. E este é um modelo de filosofia que ele rejeita como completamente mal concebido.

Assim como é uma metafísica platônica que tem em vista quando nega que os axiomas comuns possam ser provados, é também com este alvo em mente que rejeita a possibilidade de deduzir as premissas especiais de qualquer ciência dada (76al6-25). Tal prova, ele diz, se basearia em uma ciência-mestra, kuria pantôn. Não nos precisamos demorar nos esforços de Zabarella e outros que leram este trecho como uma referência à metafísica geral do próprio Aristóteles

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e ter então de explicar o claro repúdio de qualquer procedimento deste tipo no texto diante deles. A investigação descrita em Metafísica IV não é mencionada no Organon; nem está escondida na manga de Aristóteles. Em contextos como os que consideramos, ela deveria ser mencionada se já estivesse estabelecida, mas não há nem sinal dela.

A natureza dos textos faz do argumento do silêncio um argumento forte, mas ele pode ser corroborado comparando estas passagens que acabamos de considerar com um eco posterior de seu argumento. Pois as conclusões diretas dos Segundos Analíticos reaparecem na Metafísica com uma outra roupagem: elas se tornaram problemas que devem ser resolvidos para que uma ciência geral do ser seja possível. Os Analíticos argumentaram contra qualquer tentativa de provar os axiomas comuns a todas as ciências e, em bases similares, contra qualquer tentativa de provar os princípios especiais de uma dada ciência. Am­bos os argumentos reaparecem em Metafísica III, mas ambos foram relegados às aporiai preliminares do assunto (997a2-ll, 15-25) - do mesmo modo que a razão que fora dada na Ética Eudêmia para a rejeição de uma única ciência do ser aparece novamente na Metafísica apenas como uma dificuldade a ser evitada (1003a33, 1060b31-5). A conclusão parece inevitável. Os argumentos contra uma ciência universal que se encontram coíigidos e até certo ponto desarmados na Metafísica foram - pelo menos em alguns casos importantes - primeira­mente formulados quando Aristóteles os julgava conclusivos, a saber, quando a polêmica contra a Academia estava em seu auge e quando o único modelo de metafísica geral que Aristóteles tinha em vista era alguma forma ou versão da dialética platônica. Qualquer pretensa ciência universal, ele então acreditava, deve cometer dois crimes lógicos. Deve almejar produzir provas inteiramente gerais de assuntos pertencentes a ciências particulares e deve ignorar a ambi­güidade de “ser' e de todas aquelas palavras onipresentes com as quais tentou definir seu próprio objeto de estudo. Posteriormente, quando ele introduz seu próprio programa para uma metafísica geral, ele lida diferentemente com estas duas objeções. A primeira, ele está pronto para acomodá-la. A nova empresa não está disposta na forma de um sistema dedutivo e não dita premissas às ciências especiais. Ao invés de provas gerais, ela se incumbe de análises gerais do uso daquelas mesmas palavras e fórmulas onipresentes: mas, neste ponto, ela vai de encontro à segunda objeção. E o que dá ao novo começo seu ímpeto

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e caráter é justamente que, agora, Aristóteles viu no conceito de sentido focal um modo de desbancar aquela objeção36.

A n a l o g ia e s e n t i d o f o c a l

Espero que surja a figura razoavelmente clara de um estágio no pensa­mento de Aristóteles. Em sua lógica, ele tendia, neste momento de sua obra, a trabalhar com a simples dicotomia entre sinonímia e homonímia; aparen­temente, via pouca, se alguma, importância naquele tertium quid para o qual ele encontraria, gradualmente, usos tão notáveis. N a metafísica, este esquema simples o possibilitou, como parte de sua crítica a Platão e à Academia, a negar a possibilidade de uma ciência universal do ser. Esta rejeição foi estruturada sem uma cláusula para o sistema que ele mesmo proporia em Metafísica IV, VI e VII. E verdade, ele já mantinha uma teoria das categorias na qual uma prioridade era atribuída à substância, mas esta prioridade era de uma linhagem mais antiga e acadêmica, e não envolvia o sentido focal. Assim, ela era incapaz de mitigar a ambigüidade que Aristóteles dizia ter encontrado em “ser”.

A mesma polêmica contra uma ciência universal figura amplamente em Metafísica 1 9. Também aqui uma importante arma é a afirmação de que os pla­tônicos negligenciaram as questões de ambigüidade e também aqui Aristóteles parece menosprezar o sentido focal. Assim, ele mantém que, se os platônicos tivessem reconhecido a ambigüidade da expressão ta onta (“seres"), eles teriam visto a futilidade de procurar por elementos de todas as coisas que existem, pois apenas os elementos das substâncias podem ser descobertos (992bl8-24). Isto não contradiz formalmente o argumento no quarto livro, mas não está sintonizado com a afirmação de que uma investigação geral dos elementos das coisas que são é legítima e que todos que se engajaram nesta investigação estavam no caminho correto (1003a28-32). Isto também contrasta com o argumento em Metafísica X II de que todas as coisas podem ser ditas terem os mesmos elementos “por analogia" (X I I 4, especialmente 1070bl0-21). Mas agora é hora de retomar uma promessa anterior e mostrar que estes dois pro­nunciamentos, o de IV e o de X II respectivamente, não são de modo algum equivalentes, apesar da tendência imemorial dos comentadores de descrever a teoria em IV como “a analogia do ser”37.

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A afirmação de IV de que “ser” é uma expressão com sentido focal é uma afirmação de que sentenças sobre não-substâncias podem ser reduzidas- traduzidas - a sentenças sobre substâncias; e parece ser um corolário desta teoria que não-substâncias não podem ter matéria ou forma próprias, dado que elas não são mais do que sombras lógicas da substância (1044b8-ll). A formulação em termos de “analogia” não envolve este tipo de redução e está, portanto, livre para sugerir que a distinção entre forma, privação e matéria não está confinada à primeira categoria (1070bl9-21). Estabelecer um caso de sentido focal é mostrar uma conexão particular entre as definições de uma palavra de multiuso. Encontrar uma analogia, seja entre os uso de uma tal palavra ou de qualquer outra coisa, não é engajar-se em uma análise dos significados deste tipo: é apenas arranjar certos termos em um esquema de proporção (supostamente) auto-evidente38. Então, quando Aristóteles diz em Metafísica X II que os elementos de todas as coisas são os mesmos por analogia, a prioridade que atribui à substância é apenas a prioridade natural (1071a33-5) e não reconhece nenhuma ciência geral do ser enquanto ser39. Não há nenhuma menção a pros hen legomena em X II e nenhuma m enção à analogia em IV. E quando ele diz nos Analíticos que cada axioma tem tantos usos quanto há ciências e tipos de seres, sua concessão de que estes usos são conectados por analogia não é nenhum substituto para a afirmação posterior de que os axiomas pertencem ao ser enquanto ser e que devem, portanto, ser estudados por uma única ciência, descrita em IV. E IV, não X II, que avança decisivamente além da velha polêmica, a denúncia de qualquer investigação geral dos “elementos das coisas”, que ainda é audível em Metafísica I.

Esta polêmica se baseou na negligência ou supressão da idéia do sentido focal num ponto em que, posteriormente, seu uso foi de grande importância para Aris­tóteles. Negligência ou supressão: mas qual? Não podemos, aqui, tomar como certa a honestidade de Aristóteles; mas o que havemos de pensar dela dependerá do que pudermos fazer com alguns antigos traços da idéia na Academia.

S e n t i d o f o c a l n a A c a d e m ia

Não há nada de novo na reclamação de que, quando Aristóteles ataca a Academia, ele ignora o sentido focal. Um exemplo familiar desta omissão é o

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dilema que força a seus oponentes em Metafísica I 9: ou é um mero equívoco usar a mesma palavra para a Forma e para seu participante, ou devem ter o mesmo nome sinonimicamente e, então, serem especificamente iguais (991a2-8 = 1079a33-b3). Notoriamente, a penalidade por se tomar a segunda opção era o regresso que a Academia chamou “terceiro homem”: a Forma “Homem” e o homem individual poderiam agora ser tratados como uma única classe cuja exis­tência implica a de mais uma Forma "Homem”, e assim por diante, ad infinitum, A este dilema os críticos de Aristóteles retrucam que, se tivesse permitido aos platônicos o beneficio de seu próprio tertium quid, o sentido focal, o argumento se desfaria. Pois suponha que Sócrates é dito "homem” em um sentido que não seja idêntico ao da Forma, nem meramente diferente dele, mas derivado daquele sentido: então, o regresso não decola. Se a existência de uma classe de coisas dependentes de X implica a existência de uma coisa X , de forma alguma isso prova que a existência da classe de coisas dependentes de X e de uma coisa X implica a existência de uma outra coisa que é X .

Esta negligência do sentido focal é agravada por um argumento que aparece somente na versão da polêmica que está preservada em Metafísica X III. Lá - e em mais nenhum outro lugar - Aristóteles sugere que os platônicos podem desejar variar a definição do predicado, a fim de distinguir seu uso quando ele

nomeia uma Idéia e seu uso em outros contextos (1079b3-ll). Mas a variação que tem em mente é apenas a incorporação de ho esti, "o que [realmente] é”, quando o predicado é atribuído à Idéia40; e isto nem chega perto do sentido focal. Não é nada além dos índices de aviso que os Tópicos recomendaram para estes casos (134bl0-13, cf. p. 9-10 acima). Os absurdos que extorque disto aqui não poderiam ser extorquidos da análise que é acusado de suprimir.

Mas talvez agora tenhamos o material para uma defesa. Aristóteles, po­demos argumentar, não estava suprimindo aquela análise: o que ocorre é que suas críticas à Academia foram estruturadas naquele período inicial em que ele habitualmente trabalhava com a simples dicotomia de sinônimo e homônimo. Foi apenas depois, quando o calor do debate havia passado, que ele veio a re­conhecer a terceira possibilidade e a explorá-la em suas próprias explicações. E talvez a defesa pudesse encerrar aí - isto é, se não houvesse evidência de que a Academia já estava familiarizada com o sentido focal e que Aristóteles deveria conhecer isso.

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Não precisamos recorrer ao Lísis para obter esta contra-evidência. Desde o capítulo de Grote sobre este diálogo, estudiosos vêm aclamando seu argu­mento em prol de um próton philon, “uma coisa cara primária", como sendo a fonte da análise da amizade feita por Aristóteles na Ética Éudêmia e na Ética Nicomaquéia41, e a versão da Eudêmia é provavelmente a primeira e mais clara exposição do sentido focal no corpus. Sem dúvida, Aristóteles a escreveu com o Lísis em mente; mas a estratégia lógica que é o nervo do argumento da Ética Eudêmia não é encontrada no diálogo de Platão. Platão diz que as coisas que são amadas com vistas à outra coisa são apenas chamadas caras, e que somente aquilo que é amado com vistas a si mesmo é de fato caro (220a6-b3). Mas a relação entre estas ordens de coisas caras, que Platão expressa dizendo que a primeira é phila beneka philou, “caras em virtude de algo caro”, não é lógica, mas psicológica; ele está preocupado não com o nexo dos significados, mas com a valoração dos meios em relação a um fim42. Muito mais danosos para Aristóteles, à primeira vista, são dois outros textos. O primeiro parece mos­trar que ele próprio já fizera uso do sentido focal no desenvolvimento de uma teoria substancialmente platônica; o segundo implica que, ao expor a teoria das Formas, o uso da idéia era doutrina comum na Academia. Esta é a evi­dência que faz sua negligência em outras partes parecer um pouco de erística, e o estágio de puritanismo lógico que delineei pareceria o resultado não de inocência, mas de malícia.

A primeira evidência ocorre na reconstrução do Protréptico feita por Jaeger43. Os extratos familiares de Jâmblico não apenas fazem uso da antiga noção de prioridade natural corrente na Academia44; eles estão igualmente confortáveis com a sugestão de que uma palavra pode ter dois sentidos (dittôs legomenon), dos quais um é primário (kuriôs, alêthôs, proteron) e o outro é definido em ter­mos do primeiro45. E o autor baseia uma argumento importante neste último tipo de prioridade. Ele discute que, mesmo quando uma palavra é usada em seu sentido primário de A e em seu sentido derivado de B, ainda assim uma comparação pode ser feita entre A e B no próprio aspecto que é marcado pela palavra ambígua. Pois mâllon pode significar tanto “em um sentido mais estrito” como "em maior grau”; e assim, o que é bom em um sentido absoluto pode ser dito melhor do que aquilo que é bom num sentido relativo. E aquilo que está efetivamente vivo (sendo este o sentido primário da palavra) está mais

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vivo do que é potencialmente vivo (57, 6-23). Esta afirmação é contradita pela doutrina mais rigorosa de outras obras aparentemente iniciaisde Aristóteles. Mais de uma vez ele insiste que, se uma coisa pode ser dita mais X do que outra, o predicado deve aplicar-se a ambas exatamente no mesmo sentido46. E, neste contraste, o Protréptico parece mostrar sua base, pois a convenção de que o que realmente é X também é X superlativamente é característica de Platão47. Platão ignorara ou explorara a ambigüidade em mâllon, e, quando o autor do Protréptico propõe um argumentum exgradibus platônico, ele procura salvaguardar seu argumento, reconhecendo a ambigüidade, mas tratando-a como inofensiva. Somente ao minimizá-lo ele pode seguir argumentando que um homem su­perlativamente vivo conhece aquilo que é superlativamente exato e inteligível; pois o primeiro superlativo e o segundo correspondem a diferentes sentidos de malista. Admitídamente, esta é uma ambigüidade que o próprio Aristóteles não esclarece sem dificuldade em algumas passagens importantes dos Tópicos48 e com a qual parece lutar desajeitadamente em um ponto das Categorias (3b33- 4a9). Mas, posteriormente nesta obra e nos outros textos que acabei de citar, ele parece ver seu perigo e parece, deste modo, atingir seus próprios padrões de rigor lógico; por outro lado, no argumento preservado por Jâmblico, Aris­tóteles - se é de fato seu autor - ainda está ocupado em construir uma lógica para teorias que eram parte de sua herança49.

Então, sem levantar dúvidas sobre a reconstrução do texto feita por Jaeger, podemos dizer que ela não é capaz de desacreditar Aristóteles. Se isto fosse tudo, seu silêncio subseqüente acerca do sentido focal poderia ser desculpado: seu interesse seria cancelado por pensamentos posteriores sobre o argumento que ele havia construído com ele. Se uma palavra tem um uso primário e um derivado, então ela é ambígua, e o Protréptico tentara fechar os olhos para este fato bruto. E, mais tarde, se sua análise do significado de palavras deste tipo tivesse sido uma contribuição original à lógica de uma antiga teoria, ele cer­tamente teria o direito de arquivá-la com outras idéias promissoras, mas não factíveis, e de ignorá-la em seu debate com os platônicos.

Mas esta defesa é arruinada por outra evidência. A idéia não era dele para que a arquivasse assim. Ela já havia sido introduzida na defesa da teoria das Formas e o uso dela por seus oponentes havia sido registrado pelo próprio Aristóteles. Pois ela pode ser encontrada, eu penso, completamente desenvol­

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vida, no mais complexo e impressionante argumento em favor das Idéias dentre aqueles que Alexandre de Afrodísia preservou do ensaio perdido de Aristóteles sobre esta teoria50. O argumento, de acordo com Alexandre, é uma amostra daqueles que Aristóteles descreve na Metafísica como produzindo Idéias de ta pros ti, os relativos (Meta. 990bl6 = 1079al2). Ele começa distinguindo dife­rentes usos de um predicado como "homem”. Podemos dizer “aquilo é um homem” quando apontamos para uma criatura de carne e sangue, ou pode­mos dizê-lo quando apontamos para uma pintura de um homem. Os usos são diferentes, mas a diferença não chega a ser uma homonímia: pois, em ambos os casos, estamos-nos referindo à mesma phusis, “caráter” - o que ocorre é que, no segundo caso, a referência é indireta, e aquilo que agora significamos por “um homem” é “uma semelhança de homem” (onde “homem” em seu primeiro sentido reaparece como um elemento do significado). E então se argumenta que, sempre que chamamos qualquer coisa no mundo físico de “igual”, nosso uso de “igual” comporta a mesma relação a um uso primário da palavra que o segundo uso da palavra “homem” comportava ao primeiro. A definição de “igual” em seu sentido primário (ison auto, “absolutamente igual”, ison kuriôs, “estritamente igual”) não se ajusta a nenhum caso mundano de igualdade akribôs, sem modificação: assim como a definição de “homem” no caso do retrato, ela deve ser suplementada nestes casos secundários. (O argumento parece mostrar que, para “igual”, o suplemento requerido é a especificação de algo de que ou em respeito a que a igualdade particular e mundana ocorre - um suplemento que variará de caso a caso e que não é requerido no uso primário da palavra, quando, o argumento conclui, ela representa uma Forma.) Em tudo isso, há paralelos impressionantes de pensamento e linguagem com as próprias explicações de Aristóteles acerca do sentido focal, particularmente aquela que é dada na Ética Eudêmia51. E, se isto é verdade, parece ser uma evidência prejudicial contra ele. Depois disso, sua insistência de que a Idéia e seu participante são parceiros de uma ambigüidade ou pais de um regresso infinito repousa sobre uma supressão indefensável da terceira possibilidade

proposta por seus oponentes.Mas este quadro, por sua vez, é, eu penso, falso.Em primeiro lugar, não temos nenhum tipo de evidência que mostre que o

sentido focal tenha sido evocado em algum momento como uma resposta gerai

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ao ‘terceiro homem”. A prova acadêmica na qual o encontramos não se aplica a todos os tipos de predicado para os quais a Academia em um momento ou outro estabeleceu Idéias. Ela não diz, nem implica que, quando um predicado qualquer é usado das coisas neste mundo, seu uso deve ser analisado de modo que a prova analisa o uso de "igual”; pelo contrário, diz que “homem” é usado de coisas físicas em seu sentido primário e secundário, e sua razão para negar isto de “igual” é precisamente o ponto em que “igual” difere de “homem”, a saber, na sua relatividade: no uso cotidiano das palavras, nada mundano pode ser igual sem qualificações da maneira que Sócrates é homem sem qualifica- ções. É por isso que, na Metafísica, Aristóteles distingue o tipo de prova que produz Idéias de relativos daquelas que envolvem o “terceiro homem” (990bl5- 17 = 1079all-13). Se predicados como “homem” hão de ter Idéias, eles não podem proteger-se do regresso atrás de uma prova que encontra sentido focal em todo uso mundano do predicado: pois nenhuma prova deste tipo foi dada. Também, o sentido focal não desempenha nenhum papel nos argumentos mais gerais em favor das Idéias que são relatados por Alexandre. Aristóteles poderia tratar os “argumentos das ciências”, por exemplo, como capazes de provar não tanto quanto seus autores esperavam, mas pelo menos a existência de universais (koina) no seu sentido (Alexandre, Meta. 79.15-19); e certamente não acreditava que "homem” deve ser definido diferentemente quando usado de Sócrates e quando nomeia o universal, isto é, a espécie (Caí. 2al9-27, 3a33- b9, Top. 122b7-ll, 154al5-20). As mesmas considerações explicam por que, antes de lançar sua dicotomia simples de sinonímia ou homonímia contra as Idéias, Aristóteles tem o cuidado de eliminar, por meio de um argumento independente (e provocativamente obscuro), todas as Idéias que não aquelas respondendo a termos de substâncias, tal como “homem” (990b22-991a8). Se o sentido focal não era e não podia ser usado como um asilo geral contra o regresso, Aristóteles pode ser desculpado por não designá-lo para tal papel.

Esta explicação para seu silêncio avança um tanto, mas não o bastante. Pois permanece o fato de que o autor da prova acadêmica ilustrara o sentido focal analisando a descrição que se aplicava tanto ao original quanto ao retrato; e a relação entre o original e o retrato (ou uma relação mais genérica da qual esta é uma espécie) fora usada de modo bastante geral por Platão para ilustrar a conexão entre qualquer Idéia e seu participante. Então, a possibilidade de

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estender a análise focal para todos os predicados e todas as Idéias certamente deve ter ocorrido à Academia e, por conseguinte, deveria ter-se afigurado na polêmica de Aristóteles. Além disso, se seu silêncio neste contexto pode ser explicado, como justificar sua aparente incapacidade de, neste momento, ver qualquer valor neste expediente para o seu próprio trabalho? Uma razão para ele se recusar a permitir este refúgio geral aos platônicos parece clara. Ele não achava que um argumento comensuravelmente geral (isto é, um argumento que englobasse todos os predicados e não apenas os relativos) para a propo­sição de que os conteúdos deste mundo são retratos e cópias de entidades transcendentais tinha sido dado. Tomada desta forma irrestrita, a teoria dos Paradigmas e Cópias lhe parecia repousar sobre a suposição de que algo tra­balhava no fazer do mundo como um copista; e isto não era um argumento,

apenas uma metáfora (991a20-3).Mas parece haver outra razão por que a polêmica de Aristóteles não presta

mais atenção ao expediente de que a prova de seus oponentes depende; e ela é também, o que é mais importante, uma razão por que ele ainda não viu seu valor para o seu próprio trabalho. É que, como indicam todas as aparências, ele achava a análise pela qual o autor acadêmico introduzira e ilustrara o sentido focal um erro cabal. O exemplo o preocupava: repetidas vezes em seus escritos, ele cita o caso de um predicado que é aplicado tanto ao original quanto a uma figura ou estátua; mas ele sempre - mesmo nas obras que fazem bom uso do sentido focal - o cita simplesmente para ilustrar um caso de homonímia52. Sua razão para fazê-lo é clara e invariável. Um olho ou um médico, uma mão ou uma flauta são definidos por aquilo que fazem; mas um olho ou um médico em uma pintura não pode ver ou curar, uma mão ou uma flauta de pedra não pode agarrar ou tocar. Então, quando são usados deste modo, “olho” e outros substantivos devem ser usados homonimicamente. E Aristóteles, que aceita que ambigüidade é dada em graus (Fís. 249a23-5, EN 1129a26-31), em lugar algum sugere que esta homonímia é resgatada e trazida mais próxima da sinonímia por causa da semelhança sensível, que, a seus olhos, forma a única conexão entre o olho ou o médico na pintura e sua contraparte de carne. Esta semelhança, que seja notado, não só é o resultado de uma imitação consciente, mas é expressamente evocada para definir um sentido do predicado em ques­tão: ainda assim, que Aristóteles tencionava rejeitar o exemplo de sentido focal

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da Academia parece ser confirmado por seus próprios exemplos. Após citar “saudável" e "medicinal" ele acrescenta apenas que outras palaVras que se com­portam deste modo poderiam ser encontradas (Meta. 1003a33-b5); mas, se ele aceitasse a pretensão de seus oponentes, poderia ter-se referido a uma classe inesgotável de predicados - a saber, todos aqueles que podem ser aplicados a coisas dentro e fora de pinturas53.

No ponto geral em questão, Aristóteles parece estar certo. Se o sentido focal deve ser contado como uma extensão convincente da sinonímia - se, do seu ponto de vista tardio, ele deve carregar o peso do argumento que Aristó­teles coloca sobre ele então não é uma condição forte o bastante para ser sentido focal que os portadores de um predicado exibam alguma semelhança física e que essa semelhança seja usada para definir um sentido do predicado. (Considere a palavra “collar” [“colar”; “gola”]. Dentre seus significados, de acordo com o Pocket Oxford Dictionary [Dicionário Oxford de Bolso], está “coílar-sha- ptd piece in mackines” [“peça de máquinas com forma de colar/gola”]. Mas não há nenhuma conexão substancial entre este e o sentido mais familiar. Seria absurdo, por exemplo, afirmar que ninguém entenderia o uso da palavra por um engenheiro sem entender seu uso mais familiar; por outro lado, é uma afirmação análoga a esta que Aristóteles deseja fazer em Metafísica IV com relação a "ser” e "um”, e outros pros hen legomena54. Sem isto, a noção de sentido focal seria de pouco uso para ele.) Mas se uma semelhança deste tipo não é uma condição forte o bastante, qual é? Quando o próprio Aristóteles vem a especificar os critérios do sentido focal, ele é, a um só tempo, rigorosamente escolástico e bastante hospitaleiro. Ele requer definições precisas que exibam uma conexão formal particular - logoi ek tôn logôn55, uma definição contida nas demais; mas seu critério admitiria o exemplo acadêmico que em outros mo­mentos ele parece rejeitar. Mas isso não é, estou seguro, inconsistência de um polemista. Aristóteles não solucionou o problema de definir o sentido focal completamente e exatamente, de modo a dar a esta idéia todo o poder filosó­fico que ele vem a pretender para ela: ele deu apenas as condições necessárias, não as suficientes, para seu uso. Mas não há nenhuma razão para pensarmos que este problema tem uma resposta geral. A evasão de Aristóteles pode vir da convicção de que qualquer resposta seria artificial, colocando limites que devem sempre ser muito amplos ou muito restritos para seus propósitos variá­

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veis. O conceito de uma palavra ter vários sentidos indicando de vários modos um sentido central é uma grande conquista filosófica; mas seu poder e escopo devem ser entendidos pelo uso, náo pela definição,

Para concluir. De acordo com a evidência, Aristóteles parece ter sido infeliz em suas primeiras pinceladas com o sentido focal. Se os contextos em que o vimos devem ser atribuídos aos seus anos na Academia, ele iria considerá-lo um expediente mal definido, sobre o qual tinham sido feitas afirmações falsas em alguns argumentos acadêmicos, seus e de outros, que ele viera a rejeitar por outras razões. Sua total desconsideração em sua crítica ao platonismo não era artimanha forense e sua negligência em parte de sua filosofia inicial não era o preço da artimanha. Talvez o ataque às Idéias e a qualquer metafísica geral do ser o tenha encorajado a tratar a ambigüidade como uma questão de branco ou preto. Por outro lado, parece ter sido este mesmo debate que lhe deu o método de análise que finalmente o liberou de suas próprias objeções. Foi por sugestão, portanto, como também por oposição, que a Academia ajudou a formar a lógica das diferentes investigações que, em diferentes momentos, receberam o nome de Filosofia Primeira.

Sobre u Metqflsim de Aristóteles

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NOTAS

1 W .Jaeger, Aristotle2, tr. R . Robinson (O xford 1948; prim eira ed. alemã, Berlim 1923), cap.

viii e xiii: “renovador da filosofia suprasensível de Platão" 339.

2 Boeto apud Simplício, Caí. 38.19-39.9, 36.28-31 (cf. E . H am bruch, Logische Regeln â er plat.

Schule (Berlim 1904; reimpressão, N ova Iorque 1976), 27-9).

3 M eta. 1042b25-8, cf. D e A n . 415bl2-15 . Isto não implica negar a distinção entre einai ti e

einai haplôs. Para a conexão essencial, ver, por exemplo, M eta. 1028a29-31, A n . Post. 73b5-8

e n. 16. Se r haplôs é ser um a substância, pois substância é o que uma coisa é k a th ’ hauto.

4 N ão fico persuadido por argumentos aduzidos contra a autenticidade substancial da Ética

Eudêm ia (recentemente, por exemplo, por Schaecher, Stu dkn zu den E thiken des Corpus Aristo-

telicum II, Paderborn 1940). A s passagens da E E em que críticos mais antigos discerniram a

costura e a suplementação da mão de um editor dizem o contrário. O hom em que queria a

garganta de um grou recebe nome e sobrenome em E E , mas não em E N : nenhum editor es­

clareceu esta informação - ela foi abandonada entre as duas obras. Algo semelhante, embora

isso seja menos óbvio, ocorreu com a citação de Heráclito (E E 1223b22-4, E N 1105a7-8). E

o tratam ento mais esquemático de prohairesis e orexis em E E ( l223a-26-7 ,1225b 22-4) não é

o aperfeiçoamento, feito por um editor, da explicação mais solta de E N ( l l l lb l0 - 1 2 ) , mas

o plano pressuposto por esta explicação. Com o ficará aparente, as inferências que retiro

da polêmica em EE poderiam ser igualmente tiradas de textos do corpus cuja autenticidade

está além de disputas. M as isto tam bém confirm a a bon a fid es da Ética Eu dêm ia.

5 1217b25-35. Aqui, Aristóteles não usa a palavra “homonímia", como o faz para “ser” e “um”

na passagem dos Tópicos citada acima e como o faz quando reconsidera o argumento pre­

sente na Ética N icom aquéia e na M etafísica (ver abaixo). E le diz que “ser” e “bom” são pollachòs

legom ena (ditos de muitos modos), uma expressão que tam bém é usada na passagem dos

Tópicos, e que, em sua lógica inicial, significa a mesma coisa. Se uma palavra épollachòs lego-

m enon, então isto é um caso de homonímia, requerendo diferentes definições em diferentes

usos (T óp . 106a l-8 ): as únicas pollachòs legom ena que não são casos de hom onímia não são

palavras, mas frases ambíguas (1 1 0 b l6 -lla 7 ). Gradualmente, Aristóteles passou a explorar

um modo em que uma palavra poderia ser pollachòs legom enon sem ser homônima, mas ve­

remos que, no presente argumento, não considera esta possibilidade. Traduzi hom ônum ia

convencionalmente e, quando quero ser breve, por “ambigüidade”: em outra ocasião, pode

ser mostrado por que ela é menos apta que a desajeitada “pluralidade de sentidos” e como

esta distinção lança luz na metafísica de Aristóteles. M as o ponto não é relevante aqui.

6 E N 1096a23-9 = EE 1217b25-35, E N 1096a29-34 = E E 1217b35-1218al.

7 1096b26-9. “Relativo a um" (pros hen) e “derivado de um” (aph' henos) geralmente não são

distinguidos (cf. GC 322b31-2, EE 1236b20-l & 25 -6 ); eles não devem ser confundidos

com o “adicionando e subtraindo” de M eta. 1030a27-b4. N em devem ser confundidos com

o “por analogia”, que Aristóteles, mas não seus comentadores, contrasta com eles: ver pp.

13-14 abaixo. Deve ser notado que a nova concessão na Ética N icom aquéia de fato não afeta

a form a da ética de Aristóteles. Ele concede um parágrafo extra à reconsideração da possi­

bilidade de que há um sentido “universal” de bom ou um bom que seja capaz de existência

G. E. L. Owen | jqq

Page 210: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

separada e independente, mas conclui que eles são irrelevantes para seu propósito, já que ele

está ocupado com o que é humanamente alcançável. E m EE e EN, os bens humanamente

alcançáveis são ordenados em um a hierarquia que te r m in a c o m euâaim onia, felicidade, e

esta é definida, firmemente em EE, com qualificações em EN, por um relação com um bem

que não é prakton, algo que pode ser alcançado, a saber Deus.

8 1217bl6-19. Para a identificação de logikon e dialetikon , ver T . W aítz , Aristotelis Organon

vol. 2 (Leipzig 1846), 353-5. T óp. 105b30 -1 parece dividi-los, s e a passagem implica (como

talvez não o faça) que problemas “lógicos”, assim como "físicos” e "éticos”, podem ser re­

solvidos dialeticamente, pros doxan , ou cientificam ente, k a t ’ alêtheian. Aqui, (a) Aristóteles

pode querer dizer que, na medida em que os princípios comuns (que são, em virtude

de sua generalidade, "premissas lógicas") são empregados nesta ou naquela ciência e

adquirem seu uso a partir da ciência (A n . Post. 76*37-40), sua função só é entendida k a t ’

a lê tb á a n pelos cientistas. O u (b) podemos comparar com Tóp. 162b31-3, que diz que a

definição dep etitio principii dada ali é apenas ka ta doxan, mas a definição kat' a lê tb á a n pode

ser encontrada nos A nalíticos - isto é, em A n . Pr. I I 16, onde o tratam ento é distinguido

daquele dos Tópicos apenas por usar a teoria form al do silogismo. Assim, a distinção

corresponde àquela em A n. Post. 84a7-9, b l-2 , entre logikôs e analutikôs. E m qualquer um a

das interpretações, problem as "lógicos” e técnicas “lógicas” são com pletam ente gerais.

Problem as “lógicos" podem ser - mas não precisam ser - tratados com técnicas “lógicas".

E técnicas “lógicas” são a dialética.9 D aí a menção de Alexandre a bom e ser dentre os pros hen legomena, em seu comentário à

M eta. I V (242.5-6).

10 N ada em meu argumento requer a autenticidade de M eta . X I . V er A . Mansion, Rev. Phil.

de Louvain 56 (1958), esp. 209ss.

11 1003a21-b l9 ,1026a29-32 ; cf. 1 0 2 8 a 34-6 ,1045b 29-31 ,1060b 31-1061a l0 ,1061b ll-12 .

12 Jaeger d e f e n d e a sugestão, m as ignora esta seção da E E , que conflita com sua explica­

ção dephron êsis nesta obra; lá, de acordo com ele (Aristotle, 239), ela ainda é considerada,

platonicamente, "como governando acima de todas as ciências (ku ria pasôn epistêmôn, EE

1246b9) e como o conhecimento mais valioso (timiôtatê epistêmê [sem referência])", e “isto

é claramente oposto à Ética Nicom aquéia". M as o sentido em que ela é kuria pasôn é dado

em EE 1218bl0-25 (esp. 12-13), com a qual cf. EN 1094a26-7; e o sentido em que ela é

tim iâtaton é dado em 1216b20-25; c f. E N 1103b26-9. M argueritte e Léonard sugeriram que,

em EE, phronêsis é usado tanto num sentido "aristotélico” quanto num sentido "platônico"

e geralmente com este sentido quando reportando a visão d e o u t r o s : é digno de nota que

aquele sentido parece ocorrer pela primeira vez na polêmica (I218bl3-14, onde está ligado

n politikê e o ikon om ikê), e que, depois disso, ele predomina.

15 N otas 4 e 17.

14 1003a23-4, 1026a30-l; c f 1064bl3-14. Obviamente, aqui eu só estou preocupado com o

expediente pelo qual Aristóteles converte um a ciência da substância em um a ciência de to

on hêi on, não com as razões bastante diferentes pelas quais ele escolhe a teologia como a

ciência preeminente da substância.

15 Eudmische E ê i k má Metaphysik, Akad. der W iss. in W ien (1928), 55-7.

Page 211: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

16 E m M eta . I V 2, mas a doutrina traz um pequeno problema. O nde esperamos que diga

que todos os sentidos subordinados de on, "ser”, sejam definidos em term p sd e um sentido

prim ário desta expressão, o que diz é que todos os sentidos de on devem ser definidos em

term os de ousia, “substância, assim como todos os sentidos de "saudável” devem ser defini­

dos em term os de "saúde”: um a formulação que não estipula a prior idade de um sentido de

on. M as depois fala como se tivesse estipulado aquela prioridade; e a explicação é simples

- on em seu sentido prim ário é ousia (cf. 1028a29-31. A formulação em V I I - I X é bem mais

clara: com V I I 1, cp. I X 1, 1045b27-32).

17 Talvez esta alternativa possa ser reforçada. Foi sugerido que a rejeição de uma ciência

universal era característica do Perípato na primeira geração após Aristóteles, porque T e­

ofrasto, em seu fragmento sobre m etafísica, observa que “ser” tem mais de um sentido e

que nosso conhecimento dos seres deve ser correspondentemente departamental (8b l0-20,

9 a l0 - l l , 2 3 -b l), Genericamente falando (schedon), d iz Teofrasto, todo conhecim ento é de

iâia, campos especiais (8b20-4 ). M as aqui o paralelo com E E se desencaminha. Teofrasto

é cuidadoso em corrigir sua ênfase exagerada na fragmentação do conhecimento (8b24-

7 ): tam bém é tarefa da ciência almejar a generalidade, e isto pode produzir um objeto de

estudo que é id ê n t ic o não em ripo, mas simplesmente por analogia.

181096al7-23; Simplício, C at. 63.21-4.

19 Posteriores definidos pelos anteriores, A n . Post, 73a34-7; M eta. 1077a36-b2; anteriores

pelos posteriores, T óp . 141bl9-22 (Platão? cf. M eta. 992a21-2; mas tam bém Aristóteles,

Tóp. 158a31-b 4 ,163b 20-l); nenhum dos dois: M eta, 9 9 2 a l0 -18 (Espeusipo? cf. o contraste

entre pros hen (relativo a um a coisa) e ephexês (em série sucessiva), M eta. 1 0 0 5 a l0 -l l ) . Em

M eta. 1077*36^11, A ristóteles insiste que a prioridade lógica não implica a natural (cf.

1018b34-7).

20 1217b l0-16 , um a paráfrase paradigm ática do critério para prioridade natural; cf. de

Strycker em A ristotle an d P lato in the M iâ-F ou rth Century, ed. I. D üring e G . E . L . Ow en

(G õteborg 196 0 ), 89.

21 E E 1218al0-15, E N 1096a35-b5, M eta. 1 0 40b 32-4 ,1079b 3-ll; c f. a seção final deste artigo.

2í Fís. 222a20-21, significantemente não em 260b l5ss.; GC 322b29-32.

231016b 6-9 ,1018a31-8 ,1019b35-1020a6,1020al4-32 (cf. C at. 5a38-b l0), 1022a l-3 ,1024b l7 -

1025al3 . Para um eco aparente da metafísica posterior, cf. 1017al3-22.

24 “Saudável”, 106b33-7, "bom ”, 107a5-12 (cf. von Arnim , op, cit., pp. 55-6), "ser" nas diferentes

categorias, 103b20-39. E interessante que "medicinal”, que deu a Aristóteles sua primeira

ilustração de sentido focal na EE, não apareça.

25 L . Robin, L a T héorieplatonicienne des idées et des nombres (Paris 1908), 153, n. 171; cf. Alexan­

dre, M eta . 241.21-4.

26 M aterial para tanto parece ser apresentado, mas não usado, em 106a4-8,106b33-7,114a29-

31, U 7 b l0 -1 2 ,1 2 4 a 3 1 -4 , 134a32-6 ,145a28-30 .

27139b32-140al7. (N ão consigo encontrar nenhum defensor desta reconstrução amplamente

aceita do Protréptico que tenha discutido esta passagem, que denuncia como "pior do que

metáfora” qualquer tentativa de descrever a lei como medida ou imagem das coisas natu­

ralmente justas.)

G. E. L. Owen | 201

Page 212: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

11In, Insec. 968a9-10, um texto aristotélico, mas não de Aristóteles.

( II j . Owens, T h e D octrine o f Being in A ristotles M etaphysics2 (Toronto 1963), 51 e 330, nn.

I9“2L M as aparentemente a idéia foi estendida, Fís. 207b8-10 (e cf. a conexão com para ti

kgesthai, “ser assim chamado em virtude da relação com algo”, W . D . Ross, A ristotles M e-

taphysics (O xford 1924), vol. 1, 161). N as Categorias, sua função é prover um elo simples

entre um adjetivo e um substantivo abstrato (correspondendo, respectivamente, àquilo

que é “predicado de” e àquilo que está "presente em” um dado sujeito) de modo que ambos

possam ser tratados como sendo da mesma categoria.

30 Tóp. 101a36-b4; cf. Rei. 1358a2-32, e os textos discutidos no próximo parágrafo. N ão en­

contrando nenhum outro espaço para uma m etafísica geral no Organon, E . Poste (Aristotle

on Fallacks; or, T h e Sophistici Elenchi (Londres 1866), 212) propôs que a considerássemos

como “mais ou menos completamente idêntica” à dialética. Seu problema estava correto:

não há espaço para a metafísica geral.

31 Com o em boa parte da Física, por exemplo. “Physicam àialecticae suae mancipavit" (Bacon).

32 Com o na defesa da lei da contradição em I V 4. C f. V I I 4, onde a dialética (to logikôs zétein)

é auxiliar ao argumento filosófico, a primeira mostrando “como devemos falar” e o segundo

mostrando como “as coisas são” (1030a27-8): m as “não im porta em qual dos dois modos

alguém o apresenta" (1030b3-4), isto é, que o princípio de que “ser" e, portanto, a questão

ti esti, “o que é isto?" têm seu uso primário na categoria da substância pode ser mostrado

pela dialética ( “adicionando” e "subtraindo”, 1030a21-7, exibindo os usos elípticos de “ser”

nas categorias subordinadas) ou pela análise filosófica de "ser” como n m p r o s hen legomenon

(1030a34-b3). (N ão consigo entender por que Cherniss traduz logikôs em 1030a25 por “a

m tre verhalism” [“um mero verbalismo"] (“T h e Relation o f the T im aeus to Platos Later D ia­

logues”, J H S 7 7 (1957), 21); se nada mais, 1029bl3 teria mostrado que a palavra descreve

o próprio m étodo de Aristóteles no capítulo.)

33 172a36-8; cf. Alexandre, M eta. 80.15-81.10; Tóp. 128b8-9, M eta. 1022b32-1023a7.

34 W aitz, Organon ii p. 551-2, A n. Post. 73b26-8 ; sobre a necessidade da univocidade para a

ciência universal, cf. 85b l5-22 .

35 Ross a â loc,: A ristotles Prior and Posterior A nalytics (O xford 1949), 543.

36 O que é comprovado pelo lugar assinalado a ele no princípio do argumento em I V (e cf.

V I I 4, onde é a análise focal de "ser" que distingue o tratam ento filosófico do tratamento

dialético do problema: n. 32). E este expediente que permite a Aristóteles fazer a últim a e

mais im portante qualificação ao antigo princípio de que uma ciência lida com um tipo de

objeto (Alexandre, M eta. 7 9 .5 -6 ) , um princípio primeiramente qualificado pela afirmação

de Sócrates de que a mesma ciência lida com contrários (Symp. 223d, Rep. 333e-4a), depois

estendida para todos os opostos, para meios e fins, e, finalmente, para todos sustoichia, co­

ordenados’ (Tóp. 1 0 9 b l7 -2 9 .1 0 6 a l-8 ,1 1 0 b l6 -2 5 ,1 6 4 a l-2 ; cf. Fís. 194a27-8). M as nenhuma

dessas extensões anteriores havia infringido a tese de Aristóteles de que os objetos de uma

ciência recaem em um gaios (A n. Post. 87a38-b4).

37 G . Rodier (Aristotle: Traité de l'âme (Paris 1900), vol. 2, 218) traça a distinção de modo

excelente, mas incorretam ente constrói a definição de alma de Aristóteles como funda­

mentada numa analogia, não no sentido focal.

Sobre a Metafísica de Aristóteles

Page 213: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

38 Ver, por exemplo, Meto. 1093bl8-21, E N 1096b28-9. A idéia de proporção é centrai para

a analogia (M eta . 1016b34-5), mesmo quando os term os não são completamente listados

por serem óbvios (seres são o mesmo por analogia porque, do mesmo modo que um usô

de “ser” é para substância, outro é para quantidade, etc.).

39 1069a36-b2, cf. Jaeger, Aristotle, 220-1. Estou preocupado apenas com casos em que A ris­

tóteles passou a considerar que o sentido focal fosse um a explicação de um a "ambigüidade

sistemática” melhor do que a analogia. Para mim, isto não implica (a) que ele tenha suposto

que o sentido focal explicaria todo caso de analogia ou (b) que, para os casos em que ado­

tou a análise focal, ele tenha conseqüentemente rejeitado a descrição m ais fraca em term os

de analogia como falsa ou imprópria. “Analogia” ainda seria o modo geral mais seguro de

caracterizar a lógica de um a palavra cujos sentidos eram interconectados, sem serem con­

finados a um gênero, como em M eta. 1016b31-1017a3, um capítulo de V que tam bém usa

o sentido focal para analisar "um" (1016b6-9).

40 Lendo com Shorey ho esti em 1079b6 para o hou esti dos M S S (tam bém Ross, Jaeger).

41 Lísis 218d-220b, Grote, Plato3 (Londres 1888), vol. 1, 525 nota a, seguido por Joachim ,

Jaeger et al,

42 Especialm ente 218d-219b. A palavra essencial 1oeneka, “em virtude d é ’, tom a outro sentido

em 2 2 0 e 4 ainda mais distante da noção de sentido focal.

43 N ão é necessário encontrar Idéias platônicas nos textos de Jâm blico que Jaeger recupera

(eu, por exemplo, não consigo) para sentirmos que a metade do quarto século seria uma

data natural para o Protréptico, A identidade do destinatário e a aparente conexão com o

Antidosis sugerem que a obra era um panfleto projetado para invadir o campo de poder de

Isócrates no Chipre e um a época particularmente promissora para isso seria aquela em

que Isócrates estava emaranhado com o medismo dos evagoridas pouco antes ou à época

da revolta antipersa da ilha no meio do século (depois da qual Pnitágoras, um evagorida

com um currículo melhor do que o de Evágoras II, parece ter ficado com trono de Sala-

m is). S e Tem iso representava um a reação pró-macedônica, isto explicaria a pretensão do

cipriota Tem iso à amizade de Antioco I I e ao título “macedônio” (Athen. 7. 35). Tam bém

explicaria,* obviamente, a conexão de Aristóteles com ele.

44 Jâmblico, Protréptico 38.10-14 Pistelli (= Aristóteles, fr. 5 W & R ).

45 op. cit. 56.15-57.6 (= Aristóteles, fr. 14 W & R ).

46 Fís. 249a3-8 (o sétimo livro, obra inicial), C at. I la l2 -1 3 , cf. Pol. 1259b36-8.

47 Cf. T óp. 162a26-32. O s exemplos familiares são a equivalência de ontôs onta, “realmente

real”, e m âllon ou m alista onta, "mais" ou “o mais real", e os argumentos, como os de República

IX , que provam que o homem filosoficamente justo tem um a vida que não só é 729 vezes

mais agradável do que a do homem injusto, mas tam bém contém o único prazer real, ou

o m ais real (587d l2-e4).

48 Especialmente no tratamento dos tópicos de "mais ou menos" em I I 10, V 8, e na com­

paração de bens em I I 1.

49 M as um a dificuldade merece nota. Poderia ser sugerido (embora, que eu saiba, não foi)

que a desconcertante referência que Stew art queria retirar do texto de E N V I I I 2 (“pois [a

amizade] admite mais ou menos, assim como as coisas diferentes em espécie. Já discutimos

G. E. L. Dwítn

Page 214: ZIGANO. Sobre a Metafísica de Aristóteles

estes assuntos anteriormente" 1155bl4-16) se relaciona e concorda com o argumento no

Protréptico, M as o “anteriormente" de Aristóteles, emprosthen, sempre parece referir-se a um

contexto anterior na mesma obra (cf, Bonitz, In dex 244a5-8). Parece ser impossível encontrar

um contexto completamente adequado em E N , embora Aristóteles possa ter em mente

o tratamento geral dos vícios e virtudes, constituídos por graus de algum sentimento ou

comportamento (como agora Dirlmeier).

50 Alexandre, M eta. 82.11-83.17. Para um a discussão mais completa deste argumento, refiro

a meu “A P roo f in the Peri Iâeôn", em G . E . L . Owen, Logic, Science an ã D ialectic (Londres

1986), cap. 9.

51 cf, "A Proof”, p. 176 n. 40 , .

52 PA 640b29-641a6, De A n, 412b20-2, M eteor. 390al0-13, GA 726b22-4, P o l 1253a20-5, e,

na interpretação convencional, Cat. la l -6 (mas para zôion gegram m enon, "animal pintado",

cf. Mem. 450b21 & 32, Pol. 1284b9).

53 E sta afirmação não é implicada por GC 322b29-32, nem mesmo se lido (como o é por J .

Owens) como se dissesse que qualquer palavra tem uma porção de sentidos e é usada ou

homonimicamente ou focalmente; mas a versão de Joachim é certamente a correta (A ristotle

on Coming-to-be and Passing A w ay (O xford 1922), 141).

54 D izer isso não significa confundir prioridade tôi logôi, na definição, com prioridade têi gnò-

sei, para o conhecimento. Com o Ross observa (M etaphysics 161), a primeira é uma forma

da segunda em M eta. 1018b30-2 e a implica em 1049bl6-17. Em M eta . IV , Aristóteles

claramente assume que sua análise focal de "ser" mostra que entender o sentido primário

da palavra é indispensável para entender o resto. Quando, em V I I 1, distingue os dois ti­

pos de prioridade, não está contradizendo isso, mas aduzindo outro ponto (1028a31-b2):

a substância é dita "anterior para o conhecimento" no sentido de que a pergunta ti esti (o

que é isto?), em qualquer categoria, é a mais informativa; quando deseja mostrar que esta

questão tem seu uso primário na primeira categoria, retorna mais um a vez à análise focal

de “ser" (1030a34-b7).

55 M eta, 1077b3-4: sobre este texto intricado, ver a nota de Ross.

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2 0 4 I S°bre a Metafísica de Aristóteles