95
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ESTRUTURA SOCIAL O leitor está diante « I1«IIIIIII1I1||1 obre as ções sociológicas da estrul 032315 nsável a quantos se interessem pela análist _ .„ ciai. Nove teóricos sociais de prestígio mundial, onde ;se destacam os nomes de TALCOTT PABSONS, ROBEUT K. MERTQN, SEYMOUR LIPSET, G. HOMANS e THOMAS BOTTOMORE, aplicaram seus respec- tivos esquemas estruturais à investigação de vários tópicos e re- volucionam desse modo os diversas abordagens da pesquisa estru- tural que hoje predominam na Sociologia. Três outros teóricos, WlLLIAM GOODE, WALTER WALLACE e ROBERT BlERSTEDT, apresen tam críticas penetrantes a algumas dessas abordagens. Na intro-j dução pelo organizador da coletânea, PETER M. BLAU, estabelece-se! a distinção entre essas perspectivas estruturais de quatro ma neiras fundamentais: a gama de fenômenos sociais ab-angidos, a antítese justaposta à estrutura social, a imagem mental dessi estrutura e as condições em que se pressupõe estar implantada a vida social. Os autores oferecem teorias diferentes — por vezes oposta de estrutura social. Por exemplo, o esquema teórico do para digma múltiplo de MERTON contrasta com a ênfase de outros au tores sobre uma teoria única. PARSONS analisa os veículos sim bólicos através dos quais a matriz cultural controla a estrutür social, ao passo que BOTTOMORE acha que as estruturas sociai são controladas por forças dinâmicas decorrentes de contradiçõe nas condições materialistas objetivas. O enfoque macrossociológie de LENSKI é sobre os padrões evolucionários de desenvolvimento! históricos observados ao longo de séculos, enquanto que as p-eo- cupações microssociológicas de HOMANS incidem sobre o compor' tamento social dos indivíduos, os processos psicológicos que regem e as estruturas grupais a que dão origem. São examinados muitos outros problemas teóricos: COLEMA deriva os níveis complexos de estrutura da análise de suas partes componentes; LIPSET interpreta os conflitos perenes entre gerações em termos de orientações distintas no tocante à racionalidade e| à ética; COSER sublinha que a análise estrutural deve ser com-l plementada pela análise dos processos sociais; e, finalmente, BLAUJ analisa as relações entre a divisão do trabalho e a desigualdade. A grande diversidade de influências que convergiram na organização deste livro expõe, de forma particularmente brilhante, que distintas correntes de pensamento sobre a natureza e as car terísticas da estrutura social podem oferecer um panorama tário da vida social, isto é, das relações entre grupos e indiv em sociedade. Z A H A R A cyltura a serviço do progresso soeit EDITORES Um Ensaio sobre Senso Comum e Emancipação ZYGMUNT BAUMAN da Universidade de Leeds 032315 blioteca de ciências sociais Z A H A R ÇTj EDITORES

Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DAESTRUTURA SOCIAL

O leitor está diante « I1«IIIIIII1I1||1 obre as

ções sociológicas da estrul 032315 nsável a quantosse interessem pela análist _ .„ ciai.

Nove teóricos sociais de prestígio mundial, onde ;se destacamos nomes de TALCOTT PABSONS, ROBEUT K. MERTQN, SEYMOURLIPSET, G. HOMANS e THOMAS BOTTOMORE, aplicaram seus respec-tivos esquemas estruturais à investigação de vários tópicos e re-volucionam desse modo os diversas abordagens da pesquisa estru-tural que hoje predominam na Sociologia. Três outros teóricos,WlLLIAM GOODE, WALTER WALLACE e ROBERT BlERSTEDT, apresentam críticas penetrantes a algumas dessas abordagens. Na intro-jdução pelo organizador da coletânea, PETER M. BLAU, estabelece-se!a distinção entre essas perspectivas estruturais de quatro maneiras fundamentais: a gama de fenômenos sociais ab-angidos,a antítese justaposta à estrutura social, a imagem mental dessiestrutura e as condições em que se pressupõe estar implantadaa vida social.

Os autores oferecem teorias diferentes — por vezes oposta— de estrutura social. Por exemplo, o esquema teórico do paradigma múltiplo de MERTON contrasta com a ênfase de outros autores sobre uma teoria única. PARSONS analisa os veículos simbólicos através dos quais a matriz cultural controla a estrutürsocial, ao passo que BOTTOMORE acha que as estruturas sociaisão controladas por forças dinâmicas decorrentes de contradiçõenas condições materialistas objetivas. O enfoque macrossociológiede LENSKI é sobre os padrões evolucionários de desenvolvimento!históricos observados ao longo de séculos, enquanto que as p-eo-cupações microssociológicas de HOMANS incidem sobre o compor'tamento social dos indivíduos, os processos psicológicos queregem e as estruturas grupais a que dão origem.

São examinados muitos outros problemas teóricos: COLEMAderiva os níveis complexos de estrutura da análise de suas partescomponentes; LIPSET interpreta os conflitos perenes entre geraçõesem termos de orientações distintas no tocante à racionalidade e|à ética; COSER sublinha que a análise estrutural deve ser com-lplementada pela análise dos processos sociais; e, finalmente, BLAUJanalisa as relações entre a divisão do trabalho e a desigualdade.

A grande diversidade de influências que convergiram naorganização deste livro expõe, de forma particularmente brilhante,que distintas correntes de pensamento sobre a natureza e as carterísticas da estrutura social podem oferecer um panoramatário da vida social, isto é, das relações entre grupos e indivem sociedade.

Z A H A R

A cyltura a serviço do progresso soeit

EDITORES

Um Ensaiosobre Senso Comum

e Emancipação

ZYGMUNT BAUMANda Universidade de Leeds

032315

b l i o t e c a d e c i ê n c i a s s o c i a i sZ A H A R

ÇTjE D I T O R E S

Page 2: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

POR UMA SOCIOLOGIA CRÍTICA

Em grande parte de sua história,'a Sociologiacompartilhou com o senso comum de seu pressu-posto de que a sociedade possui um caráter "na-turalista" e, por conseguinte, desenvolveu-se comociência da não-liberdade —, à semelhança de qual-quer ciência fundada num credo determinista. Nestepoderoso e cativante volume, o Professor ZYGMUNTBAUMAN descreve as raízes históricas dessa ciênciae o modo como as novas tendências sociológicas queemergiram da Fenomenologia e do Existencialismonão contestam essa preocupação. Pelo contrário,afirma o. autor, elas aprofundaram e ampliaram aestrutura da ciência da não-liberdade, na medida emque destacaram o papel crucial do senso comum,alimentado pelos pressupostos e as rotinas da vidacotidiana.

ZYGMUNT BAUMAN expõe a forma de uma So-ciologia Crítica baseada ha razão emancipatória.Suas principais preocupações são a "validade" dosenso comum e a verdade de uma teoria que resol-vesse transcender as limitações das provas fornecidaspelo senso comum. Tendo em mira a libertaçãohumana, uma Sociologia Crítica contestará essespressupostos e essas rotinas da vida cotidiana.

Como se fará essa contestação? • Pela criaçãode condições em que toda a ação humana sejaguiada pela razão. Quanto mais livres forem ascondições de julgamento racional, maior a probabi-lidade de que se adotem verdadeiras interpretaçõesda responsabilidade social e se rejeitem as falsas.Assim, em cada fase do longo processo de verifi-cação do conhecimento crítico, é preciso eliminarquaisquer restrições intelectuais e físicas sobre acapacidade de julgamento.

Essa eliminação de restrições ou, nos termosdo autor, essa "emancipação da razão" estabelece-sede acordo com um princípio geral: a libertação dohomem só pode ser promovida em condições deliberdade. O conceito dê conhecimento crítico, aoserviço do interesse emancipatório do homem, sópode concordar com ó princípio básico de todo oIluminismo: a emancipação da razão é a,prévia de toda a emancipação material.

ZYGMUNT BAUMAN é ^Professor e Diretor doDepartamento de Sociologia . da Universidade UtLeeds, autor de Between Class and Elite, Socialism;The Ac tive Utopia e outras obras que lhe granjearairirenome internacional. • •

POR UMA SOCIOLOGIA CRÍTICA

Um Ensaio sobre Senso Comum e Emancipação

Page 3: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

ZYGMUNT BAUMANChefe do Departamento de Sociologiada Universidade de Leeds, Inglaterra

BIBLIOTECA DE CIÊNCIA SOCIAIS j

Sociologia e Antropologia

Volumes publicados nesta coleção: -...FUNDAMENTOS DA TEORIA SOCIOLÓGICA. T. AbelUMA INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, W. Anderson e F. Parker (3" ed.)IDÉIAS CENTRAIS EM SOCIOLOGIA, David BerryPLANIFICAÇAO E CRESCIMENTO ACELERADO, C. Bettelheim (2.= ed.)INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, T. B. Bottomore (6.= ed.)INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ESTRUTURA SOCIAL Peter M. BlauTRABALHO E CAPITAL MONOPOLISTA, Harry BravermanSOCIOLOGIA DA BUROCRACIA, Edmundo Campos (3.a ed.)DEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA, F. H. Ca

doso e E. FalettoA EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE URBANA AMERICANA, H. P. ChudacoffINTRODUÇÃO CRITICA À SOCIEDADE, M. Coulson (3.a ed.)A FABRICAÇÃO DOS MACHOS, G. Falconnet e N. LefaucherA REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL, Florestan Fernandes (2.« ed.)A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE REVOLUÇÃO SOCIAL, Florestan Fernand<

(2.a ed.)ACUMULAÇÃO MUNDIAL 1492-1789, A. Gunder FrankNOVAS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO, Anthony GiddensINTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, J. E. GoldthorpeSOCIOLOGIA DO TERCEIRO MUNDO, J. E. GoldthorpeEVOLUÇÃO SOCIAL E CATEGORIAS SOCIOLÓGICAS, Paul Q. HirstELEMENTOS DE SOCIOLOGIA, Samuel Koenig (4.» ed.)A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL, Rosa Luxemburg (2.= ed.) jUMA TEORIA CIENTIFICA DA CULTURA, B. Malinowski (3.= ed.)MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO SOCIOLó.GICA, P. Mann (3." ed.)PRINCÍPIOS DE SOCIOLOGIA, Henri Mendras (4.3 ed.)O SIGNIFICADO DE SIGNIFICADO, C. K. Ogden e 1. A. Richards (2.» ed.)INICIAÇÃO AO ESTUDO DA ANTROPOLOGIA, P. J. Peito (3.» ed.)AS CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE, N. PoulantzasMANUAL DE SOCIOLOGIA, J. Rumney e J. Maier (8.» ed.)PRÁTICA MÉDICA: DOMINAÇÃO E SUBMISSÃO, M. G. R. da SilvaA ESTRUTURA NORMATIVA DA SOCIOLOGIA, H. StrasserDA SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES AO CAPITALISMO FINANCEIRO

M. C. Tavares (5.= ed.) jTEORIA SOCIOLÓGICA, T. Timasheff (4.<> ed.)EM DEFESA DA SOCIODOGIA, Alain TouraineENSAIOS DE SOCIOLOGIA, Max Weber (3." ed.)A IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA, C. Wright Mills (4.a ed.)A ELITE DO PODER, C. Wright Mills (2." ed.)OS VIVOS E A MORTE, Jean Ziegler

Um Ensaiosobre Senso Comum

e Emancipação

Tradução de . .

ANTÔNIO AMARO CIRURGIÃO

Revisão Técnica de

FANNY WROBEL

ZAHAR EDITORES

RIO DE JANEIRO

Page 4: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

IVj. i II ' "Towaras a

Título original:Criticai Socioloffy — An Essay on Commonsense

and Emancipation

Traduzido da primeira edição, publicada em 1976por BOUTLEDGE & KEGAN PAUL, de Londres, Inglaterra

Copyright © 1976 by Zygmunt Bauman

BIBLIOTECA CENTRAL

UFES

Si3t/Bibliotecas/U FE S

capa deÉ R I C O

1977

Direitos para a língua portuguesa adquiridos porZ A H A R E D I T O R E S

i Caixa Postal 207, ZC-00, Rio

que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil

Se a existência de uma sociedade decentetem sido, de há muito, uma possibilidade,o problema que se impõe é explicar por que ahumanidade não quis — ou talvez não tenhapodido querer — essa sociedade.

BARÇINGTON MOORE, JR.

Page 5: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

ÍNDICE

1 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE 9

Definição da "Segunda Natureza" 9A "Segunda Natureza" Deificada 30A "Segunda Natureza" e o Senso Comum 52

2 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA 78

A Revolução Husserliana 78A Restauração Existencialista 93A "Segunda Natureza" Reabilitada 110

3 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE 121

Razão Técnica e Emancipadora 121A "Segunda Natureza" Vista Historicamente 137Pode a Sociologia Crítica Ser uma Ciência? 152Verdade e Autenticação' 171

4..

Page 6: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

CAPÍTULO l

A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA"

Diga-se o que se disser sobre a forma como se deve-ria tomar a sociologia, esta, tal como a conhecemos(e tal como tem sido conhecida desde o momento emque recebeu este nome), é fruto da descoberta da "segun-da natureza".

"Natureza" é um conceito cultural. Abrange o com-ponente irrémovível da experiência humana que desafiaa vontade do homem e estabelece limites não transgre-didos pela ação humana. A natureza é, portanto, umsubproduto da sede de liberdade. Só quando o homemconscientemente se propõe substituir a sua condiçãopor uma diferente da vivida até então é que ele neces-sita de um nome para conotar a resistência que encontra.Neste sentido, a natureza, como conceito, é um produtoda prática humana que transcende a rotina e o hábito,navega por mares desconhecidos, guiada por uma imagemdo que-ainda-não-é-mas-que-devia-ser.

O reino da não-liberdade é o único significado imu-tável de "natureza" que está enraizado na experiênciahumana. Todas as outras características inerentes aoconceito se encontram pelo menos uma vez — ou maisde uma vez — afastadas "do que é dado diretamente",que é, por sua vez, o resultado do processamento teóricoda experiência elementar. Por exemplo, a natureza é ooposto da cultura, na medida em que a cultura é a esferada criatividade humana e o seu desígnio; a natureza

Page 7: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

10 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

é "inumana", na medida em que "ser humano" implicaestabelecer objetivos e padrões ideais; a natureza é des-provida de sentido, na medida em que dar sentido a umacoisa é um ato de vontade e a verdadeira essência daliberdade; a natureza é determinada, na medida em quea liberdade consiste em pôr a determinação de lado.

Nem as imagens, nem os modelos de natureza preva-lecentes num dado momento podem ser considerados atri-butos necessários do conceito. O "conteúdo temático" doconceito (como diria Gerald Holtpn) 1 tem tido, no últi-mo século, mudanças que vão além do nosso reconheci-mento. A ordem intrínseca e a harmonia de um cosmosobediente a unia lei foram substituídas por um labirintoimpenetrável que só se torna transponível graças às indi-cações fornecidas pelo cientista: a descoberta da "ordemobjetiva" foi substituída pela imposição de uma ordeminteligível sobre uma diversidade sem sentido. O únicoelemento que sobreviveu, e que, na verdade, emergiuincólume de todas estas revoluções ontológicas, é a expe-riência de um limite imposto à ação humana e à suaimaginação. E esta é, talvez, a única "essência" da natu-reza, reduzida ao esqueleto da pristina experiência nãoprocessada teoricamente.

Existe, porém, ainda um outro sentido mediante oqual a natureza pode ser concebida como um subprodutoda prática humana. A natureza é dada à experiênciahumana como o único meio à volta do qual gira a açãohumana. Encontra-se presente na ação humana desdeo seu início, desde o momento da sua concepção como odesígnio de uma forma à espera de ser objetivada pelaação; a natureza é o que medeia entre o desígnio ideale a sua réplica objetivada. A ação humana não seriapossível sem a presença da natureza. A natureza é expe-rimentada da mesma maneira que o locus o é também,na medida em que é apreendida como o limite supre-mo da ação humana. O homem experimenta a naturezada mesma maneira dual, equívoca, que o escultor encon-tra -a, massa informe da pedra: ela está diante dele, com-placente e convidativa, esperando pelo momento de absor-ver e encarnar suas idéias criadoras — mas sua dispo-sição para se entregar é altamente seletiva; de fato,

l Cf. Gerald Holton, The Thematic Origins o f Scientific Thought,Harvard University Press, 1973, pp. 35-6.

DEFINIÇÃO DA '^SEGUNDA NATUREZA" 11

a pedra fez a sua própria escolha, muito antes quer; o es-cultor pegasse no cinzel. Dir-se-ia que a pedra classificouas idéias do escultor em atingíveis e inatingíveis, razoá-veis e não razoáveis. Para ser livre para agir, o es-cultor deve tomar conhecimento dos limites da sua liber-dade: deve aprender a ler o mapa da sua liberdadetraçado sobre os veios da pedra.

Os dois elementos da experiência que se combinamna idéia de natureza estão, de fato, em unidade dialética,Não haveria descoberta de limitações, se não houvesseuma ação guiada por imagens que transcendem estaslimitações; mas não .haveria tal ação, se a condiçãohumana não se sentisse enclausurada dentro de moldestão apertados. Os dois elementos condicionam-se mutua-mente; mais ainda, esses elementos podem apresentar-seao homem juntos ou não se apresentarem. A limitaçãoe a liberdade estão casadas uma com a outra para o bemou para o mal, e o seu conúbio só seria dissolvido, se fosseconcebível um retorno à primeva e inocente unidade entreo homem e a sua condição (tornando a natureza nova-mente "não problemática"). Por outro lado, os dois ele-mentos poderão ser, e na realidade assim acontece, apreen-didos separadamente e, portanto, articulados independen-temente, quando não se opõem uni ao outro. De umaforma não-dialética, cada vitória empresta apoio episte-mológico à noção de liberdade sem limitações. De umaforma igualmente não-dialética, cada derrota emprestaplausibilidade à idéia da limitação que existe sem queseja preciso testá-la e traze-la para o campo experimentalpela obstinada ação humana. Quando processado teorica-mente, este erro original tem sido transformado, vezessem conta, num falso dilema, que permanece constantecomo a própria experiência existencial, embora seus nomesvariem como.varia o código cultural e tenha sido cha-mado de indivíduo e sociedade, voluntarismo e determi-nismo, controle e sistema, e muitos outros nomes. Sejamquais forem os seus nomes, porém, a verdade é que inva-riavelmente conduz ao terreno árido da não-dialética,onde a única coisa que resta à árvore viva da experiênciahumana é perecer. *

Faz quase quatro séculos que Francis Bacon apreen-deu perspicazmente a dialética ilusória da natureza,tal como aparece aos seres humanos em ação: a natu-reza só pode ser dominada pela submissão. Na época em

Page 8: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

12 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

que Bacon escreveu estas palavras, o pressuposto de quea natureza era algo que precisava ser conquistado talveznão exigisse mais argumentos do que os fornecidos pelosenso comum. Nesse tempo, os leitores de Bacon tinhamdespertado da não-problemática "unidade da humanidadeviva e ativa com as condições naturais, inorgânicas doseu intercâmbio metabólico com a natureza, e, portanto,com a sua apropriação da natureza", que "não exigiaexplicação", uma vez que não era o resultado de um"processo histórico"2, e se encontravam agora, comoresultado da história feita por eles próprios (embora nãocom o seu conhecimento), face a face com as condiçõesdo seu metabolismo, confrontando-os como "algo alheioe objetivo"3. Eles já tinham estabelecido seus objetivosindividuais, os quais transcendiam suas condições sociaise, portanto, tinham sujeitado a exame a flexibilidadedessas condições. No decurso do processo, descobriramesta teimosa e implacável resistência, o que os levou acunhar a imagem da Natureza como um parceiro da suaprópria condição, ativo, autogovernado e auto-sustentado.Assim a natureza passou a ser "dada diretamente" nasua experiência. Pertence a Bacon a admissão resignadade que a natureza estava aí para ficar, e que a sua pre-sença não devia ser posta em questão. As condiçõesrequeridas para esta presença — a situação na qual oindivíduo abre o seu caminho sozinho através do mundosocial, abandonado a si mesmo e forçado à autonomia —não foram nem penetradas nem consideradas problemá-ticas. Bacon combinou um apelo à rendição com um con-selho sobre a maneira de tirar o melhor partido da situa-ção que a seguia. Ele mostrou que o escravo poderia sertransformado em senhor e deu ao conhecimento o papelda varinha mágica que levaria a bom termo essa trans-formação. A estrutura da pedra não depende do escultor;ele pode fazer com que a pedra aceite as suas intenções,mas só depois de ter tomado conhecimento do que apedra não poderá aceitar. A única coisa que nos restafazer é tornar esta metáfora extensiva à totalidade dacondição humana.4 A vida torna-se, então, a arte do pos-sível e o conhecimento^ existe para nos ensinar como dis-tinguir os sonhos possíveis dos sonhos inúteis.2 Karl Marx, Grundrisse', Penguin (Pelican), 1973, p. 489. Trad.por Martin Nicolaus.s Ibid., p. 157.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 13

Pelo menos depois de Bacon, o conhecimento, tempresidido ao processo de mediação entre a liberdade' e aslimitações da ação humana. A espécie de conhecimentomais prestigioso (na realidade, por vezes, apresentadocomo o único conhecimento válido), a ciência, estabele-ceu-se na nossa cultura como o estudo dos limites daliberdade humana, executado com vistas ao alargamentoda exploração do campo de ação ainda existente. De fato,a ciência foi criada mais pela eliminação do impossí-vel, a supressão da não-realidade, a exclusão de pergun-tas ociosas, do que pelo conteúdo variegado e mutável dassuas preocupações positivas. A ciência, tal como a conhe-cemos, pode ser definida como o conhecimento da não--liberdade.

A famosa definição de liberdade de Hegel, comonecessidade compreendida, resumiu apropriadamente asutil evolução da idéia de Bacon no processo de sua absor-ção pela memória do senso comum. Ser livre significaconhecer sua própria potencialidade; conhecer sua poten-cialidade é um conhecimento negativo, isto é, um conhe-cimento do que se está impedido de fazer. O conhecimentopropriamente dito significa que o homem jamais vivencia-rá seus limites como opressão; é o desconhecido, a neces-sidade insuspeitada que é confrontada como uma derrotapenosa, frustradora e humilhante. Mas é unicamente aação cega que apresenta a necessidade como uma forçaestranha, hostil, e totalmente negativa. Uma ação escla-recida, pelo contrário, precisa da necessidade como seufundamento positivo. Uma ação genuinamente livre nãoseria possível sem a existência da necessidade: ação livresignifica atingir os seus próprios fins através de umacadeia de atos apropriados; mas são as leis necessárias,ao estabelecer a conexão dos atos com os seus efeitos,que os tornam "adequados" para atingir os fins que setêm em mente. E assim, a dependência mútua entreliberdade e necessidade tern dois aspectos complementa-res. O aspecto negativo é revelado por uma ação "igno-rante": a melhor maneira de traduzir essa ação é com-pará-la com a mariposa cega que se esmaga contra avidraça da janela. Mas, para uma ação esclarecida o ne-cessário não é mais uma força negativa; pelo contrário,ela própria entra na ação como condição indispensávelpara o seu êxito. No momento em que se tornou calcula-

Page 9: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

14 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

vel — isto é, conhecido — o necessário transforma-senuma condição positiva de liberdade.

Para Weber, o necessário era a condição da racio-nalidade. Na verdade, a ação racional exigia a não-liber-dade para poder ser possível. São as regras com que cadaum dos dentes de engrenagem da máquina burocráticase vê a braços, com todo o poder da natureza, cruel eindomável, que tornam as paredes exteriores da açãoseguras e estáveis a toda a prova — que tornam a buro-cracia racional, que permitem aos burocratas escolhercuidadosamente os meios para atingir os fins, que estejamseguros, através do conhecimento, de que os meios produ-zirão de fato os fins que eles desejam ou que se lhespede que atinjam. A ação racional começa quando asregras "já estão presentes"; não é responsável pela origemdas regras, pela explicação de como as regras são fortes,ou pelo fato das regras terem uma determinada formae não outra. A questão da origem das regras, das origensda necessidade ambiental da ação burocrática, não podeser posta na linguagem da racionalidade. Porém, se essapergunta for feita, tratar-se-á de um convite para umaresposta semelhante a que" é dada à pergunta paralela:"por que é que a natureza está presente aí?" Apontaráirremediavelmente para o irracional, da mesma maneiraque a pergunta última aponta para Deus. "Se a raciona-lidade está encarnada na administração... a força legis-lativa deve ser irracional"4. Da mesma maneira quea ciência elimina as perguntas que conduzem a Deus,assim também a ação cientificamente informada eliminaos atos que conduzem à irracionalidade. Ambas se servemda natureza, ou da necessidade baseada na natureza, comouma alavanca. O preço que pagam voluntariamente peloganho em eficiência é o acordo de nunca questionar sualegitimidade. Naturalmente, esta legitimidade não podeser questionada pela ciência, assim como não pode serdesafiada por uma ação racional. Ambas são o que sãona medida em que a natureza continua a ser o reino danecessidade onipotente e inquestionável.

Assim, a liberdade resume-se, para todos os efeitos,na possibilidade de agir racionalmente. É ação racionai

4 Herbert Marcuse, "Industrialization and Capitalism," in MaxWeber and Sociology Today, org. por Otto Stammer, Basil BlackwellOxford, 1971, p. 145.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 15

que encarna tanto os aspectos negativos como oVaspectospositivos da liberdade. Só agindo racionalmente podem-semanter as limitações penosas a uma distância segura,onde não possam infligir sofrimento nem atrair castigos;o homem fundamenta, simultaneamente, suas esperan-ças e seus cálculos nas bases sólidas de leis imutáveise, portanto, confortavelmente predizíveis. O conheci-mento é o fator crucial em ambos os aspectos destaliberdade-racionalidade. Conhecimento significa emancipa-ção. Transforma grilhões em instrumentos de ação, pa-redes de prisão em horizontes de liberdade, medo emcuriosidade, ódio em amor. Conhecer os seus próprioslimites significa reconciliação. Não há necessidade de termedo agora, e a natureza, antes temida ou fonte desofrimento, quando ignorada, poderá ser abraçada entu-siasticamente como a cidadela da liberdade. Assim, é aNatureza a hospedeira, que estabelece as regras do jogoe que define esta liberdade.

"Tudo o que pode ser é" — proclamou Buffon nasua Histoire Naturelle. "Oposto à natureza, contrário àrazão" — foi a conclusão lógica de Diderot na sua Voyagede Bougainvüle. O natural, para ele, não é simplesmenteo inevitável: é o apropriado, o aposto, o bom, o sagra-do, o indesafiável. A natureza não fornece somente asfronteiras da ação razoável e do pensamento: fornecetambém a própria razão. Todo conhecimento válido é umareflexão sobre a natureza. O poder do homem consistena sua capacidade de "saber" o que não pode fazer.A ciência está presente para lhe ensinar precisamenteisso. Esta é a única via na qual a ciência "é" poder.

Foi necessário apenas um pequeno passo para plas-mar este conhecimento reflexivo, já estabelecido no papelde esteio da liberdade, como o paradigma para soluçãodas atividades humanas. A natureza é "um imenso podervivo que abrange tudo e a tudo anima" — como disseBuffon em tom de panegírico; incluindo o próprio homem— acrescentou Hume, dando-lhe o último retoque. E assimverificamos, através da leitura do Treatise of HumanNaturê, que a única ciência do homem é a Natureza Hu-mana. Em An Inquiry Concerning Human Understandingchegou-se a conclusões que vão ao ponto de proclamaruma declaração unilateral de independência a favor dasociologia, a nova ciência que está para nascer e paracoroar o edifício do conhecimento humano que cresce

Page 10: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

16 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

a olhos vistos: "Há uma grande uniformidade entre asações dos homens, em todas as nações e em todos ostempos"; "a natureza humana continua a ser a mesma,nos seus princípios e operações"; "a espécie humana é tãoigual a si mesma, em todos os tempos e em todos oslugares, que a história nos informa que nada há de novoou de estranho neste ponto". Com uma uniformidade tãocompleta e tão consistente, estendendo-se através de todoo tempo e todo o espaço, o uso do nome da natureza paradescrever as propriedades humanas é digno de todo o res-peito. E uma vez que a ciência é o conhecimento do quea natureza não é, uma ciência do homem e das suasações é viável e, na verdade, necessária, se o homem ;desejar alcançar a liberdade — tanto negativa como posi- !

tiva — de determinar a sua própria condição. É desne-cessário dizer que a natureza humana, agora revelada cien-tificamente e posta a nu, determinará as fronteiras e oconteúdo desta liberdade.O estudo da natureza humana, porém, levantou umproblema que nunca tinha sido abordado quando a natu-reza não-humana era o único objeto de pesquisa. Estaúltima natureza está continuamente em paz consigo mes-ma; nunca se rebela contra suas próprias leis — sua har-monia e uniformidade foram preestabelecidas e inseridasdentro do seu próprio mecanismo. Como dizia Hegel, a Na-tureza (referindo-se à natureza não-humana) não temhistória; isto é, não conhece acontecimentos individuais,únicos, caprichosos, fora do ordinário. Esta visão da na-tureza encontrou sua expressão máxima, como afirmouPeter Gay recentemente, na paixão veemente com que osadvogados da Era Científica combateram o conceito domilagre. Para explicar uma ocorrência inexplicável, Dide-rot "procuraria razões naturalistas — uma travessura,uma conspiração ou talvez a sua própria loucura". ParaHume, um milagre teria sido "uma violação das leis danatureza e tal violação, por definição, é impossível. Napossibilidade de que tenha ocorrido um milagre, estedeve ser tratado como um relato mentiroso ou como umacontecimento natural para o qual, no momento presente,não há explicação disponível"5. Naturalmente, não haviarazão particular para que esta atitude tão categórica não

5 Peter Gay, The Enlightenment, An Interpretation, vol. l, TheRise of Modern Paflrtwtism, Wildwood House, Londres, 1970, p. 148.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 17

oudesse tornar-se extensiva à totalidade das ações hu-manas. De fato, veio a dar-se-lhe essa extensão, masmuito mais tarde, na linguagem "beháviorista" da ciênciado homem, que conduziu a sóbria incredulidade da ciên-cia em geral, depois de "testada" em objetos não-huma-nos, aos seus limites lógicos. Porém, o programa "behá-viorista", audaz e iconoclasta como pareceu ser, tanto aos

• que o elaboraram como aos que se lhe opuseram, não erade forma alguma um estrangeiro na cidadela da ciência.Nenhum "beháviorista" nega que a ação humana podeser irracional; a única coisa que todo "beháviorista" rejei-ta enfaticamente é a possibilidade de uma conduta, racio-nal ou irracional, que não tenha uma causa, isto é, quepossa ser diferente daquilo que é, dadas as condições emque ocorreu.

A única diferença entre ocorrências humanas e não--humanas consiste, portanto, no seguinte: nos aconteci-mentos humanos tende a aparecer um abismo perigoso eportentoso, desconhecido para a natureza não-humana,entre a conduta humana e os mandamentos da natureza.No caso de fenômenos não-humanos, a própria natureza,sem a intervenção humana, cuida da harmonia entreo necessário e o real, da identidade do real e do bom.No caso humano, porém, a lacuna entre um e outro deveser preenchida artificialmente e necessita de um esforçoconstante e consciente (Adão, todos sabemos, foi a únicacriação de Deus, a quem Ele não defendeu a fortiori:e foi bom...). Como afirmou Louis de Bonald em Théoríe€e 1'éducation sociale et de 1'administration publique,"a Natureza cria a sociedade, os homens dirigem o go-verno. Uma vez que a Natureza é essencialmente perfeita,cria^ ou tem a intenção de criar, uma sociedade perfeita;uma vez que o homem é essencialmente depravado, des-trói a administração ou procura remendá-la constante-mente". O conhecimento dos veredictos naturais, seguidose apoiados pelo respeito do que é conhecido, é o materialcom que se pode ou se deve construir a ponte que liga•o verdadeiro ao necessário, o real ao bom.

No seu egoísmo, avareza, irracionalidade, loucura,o homem está tão "determinado" pela sua própria natu-reza como o está nos momentos mais gloriosos da euforiados cidadãos obedientes à lei. O segundo, contudo, não éautomaticamente assegurado. Não virá a ser a regra,a não ser que se faça um esforço para inclinar a balança

Page 11: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

18 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

em direção às leis que a Natureza estabeleceu para asociedade.E assim, pela primeira vez, a natureza do indivíduoé contraposta à natureza da sociedade. Emergindo da"unidade natural" pré-moderna do homem, com a suasociedade corporativa, e atirados para o meio de umasituação fluida, mal determinada, que postulava escolhae decisão, os homens articularam a sua nova experiência(ou alguém a articulou para eles) como o choque entreo indivíduo e a sociedade. E assim a sociedade partiupara a sua longa, e ainda não terminada jornada da"segunda natureza", na qual a sabedoria do senso comumvê um poder estranho, não-comprometido, exigente, alta-neiro — exatamente como a natureza não-humana. Paraobedecer às regras da razão, para se comportar racional-mente, para conseguir êxito, para ser livre, o homemagora teve que se apoiar na "segunda natureza", da mes-ma maneira que antes tentou apoiar-se na primeira. Aindapode mostrar-se relutante em fazer isso: as pessoas de vezem quando recusam-se a ser razoáveis. Se a lei da natu-reza não-humana fosse desafiada pelos defeitos do homem,a própria natureza se encarregaria rapidamente de colo-car o delinqüente na linha. Se, porém, fosse desafiadaa lei estabelecida pela natureza para os homens, a tarefateria que ser realizada pelos homens. "Quem se recusara obedecer à vontade geral" — disse Jean-Jacques Rous-seau no seu Contrato Social — "deve ser obrigado a fazê-lopor todo o corpo dos seus concidadãos: o que é o mesmoque dizer que poderá ser necessário compelir o homema ser livre."

Quem vai, porém, compelir? E que poder emprestarálegitimidade ao seu ato? A resposta de Rousseau é simul-taneamente pré-científica (certamente pré-sociológica) eantecipadora das descobertas a que a sociologia chegarápenosamente, depois de um século ou mais de namorosuperficial, ainda que dedicado, com a idéia de umasociedade não-problematicamente baseada na natureza.Rousseau foi na verdade surpreendentemente moderno, deacordo con\ os nossos padrões, ao pintar a autoridadeexecutiva dá sociedade como composta pela multiplicida-de das vontades individuais dos "Tiomini socii", e ao defi-nir a autoridade, por conseguinte, como a vontade geral;é unicamente o fraseado, não a substância, que nosparecerá arcaico, quando submetido1 a exame rigorosa

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 19

Rousseau foi, porém, pré-científico ao depositar sua espe-rança na reconciliação última entre a natureza individualingovernável e as exigências de uma entidade supra-indi-vidual no campo da ação política, não deixando margempara o estudioso, o pândita, o educador, ou, em outraspalavras, para a cognição especificamente científica.A única coisa que conta verdadeiramente é a determi-nação do Soberano, do Governante, do Legislador paraesmagar toda e qualquer resistência que possa encontrarna sua marcha para "modificar o próprio material danatureza humana; para transformar cada indivíduo...Para tirar ao homem os seus próprios poderes, e paralhe dai1 em troca poderes que lhe são alheios como pessoa,poderes que ele só pode usar se for ajudado pelo restoda comunidade". Trata-se ainda' de uma exortação à socie-dade para se tornar um poder soberano e inexorável(ainda que benévolo) e não do reconhecimento de que,na verdade, se tornou uma entidade única, e assim temsido, desde longa data. E é uma expressão de esperançaque o choque entre as intenções humanas e a força mis-teriosa e hostil chamada sociedade que o povo continuaexperimentando, não é — não devia ser — uma condiçãoa-temporal; poderia explicar-se como um choque entreintenções "erradas" e uma sociedade "mal" organizada,e tal choque, ao mesmo tempo que acarreta consigo osofrimento, poderá vir a desaparecer, se os erros foremexorcizados. A "sociologia científica" rejeitará ambos estespressupostos. Pressuporá, ao invés, que a sociedade, sendouma realidade suprema para o homem, não é matériade escolha humana, ou mesmo sobre-humana, e aceitaráo fato de que a tensão entre o egoísmo humano desen-freado e as necessidades de sobrevivência da totalidade'social (que Blaise Pascal procurou reconciliar por meio.da^fé religiosa) está aí para ficar. Por último, tendo atri-buído à "segunda natureza" a dignidade da única fonteda razão, privar-se-á a si mesmo do método que lhe per-mitiria distinguir entre o bem e o real, harmonizandolentamente, mas com segurança, o bem e o real num todoúnico, até que a idéia de Verdade como o Docus da auto-ridade suprema (e, para a ciência, a única) declare o bemfora de limites.

E assim o terreno estará limpo e pronto para a ascen-são triunfante da ciência positiva do social — essa ciência<lue vê a "sociedade" como uma natureza por direito)

Page 12: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

20 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

próprio, tão ordenada e tão regular como a "primeira na-tureza" se apresenta ao cientista natural, e legislandotanto para a ação humana quanto a "primeira natureza",graças ao cientista natural. A geração de filósofos pós--reyolucionária mergulhou na nova fé com o afã e a into-lerância impetuosa de neo-convertidos. Coube a Claudejie Saint-Simon articular o catecismo do novo credo:

A lei suprema do progresso do espírito humano arrastatudo com ela e a tudo domina; os homens não são senãoos seus instrumentos. Emhora esta força derive de nós,já não está em nosso poder lihertarmo-nos da sua in-fluência, ou dominar a sua ação, da mesma maneira quejá não está em nosso poder modificar, por um ato danossa vontade, o impulso primeiro que faz com que onosso planeta gire à volta do sol. Tudo o que podemosfazer é obedecer .a esta lei ficando responsáveis pelocurso que lhe foi imposto, em vez de ser cegamentelevados por esse impulso; e, a propósito, é precisamentenisto que consistirá o grande desenvolvimento filosóficoreservado para esta era (L'Organisateur).

A era presente será mais uma era de descobri-mentos que de invenções espúrias: "A natureza sugeriuaos homens, em cada época, a forma mais apropriada degoverno... O curso natural das coisas criou as instituiçõesnecessárias para cada era do corpo social" (Psychologiesociale). E, portanto, a conclusão mais importante de todas:"Não se cria um sistema de organização social. Tem-sea percepção da nova cadeia de idéias e interesses que têmsido formados, e chama-se a atenção para ela — isso étudo"( UOrganisateur). Quase um século mais tarde,ciente da tremenda explosão da ciência social desenca-deada por estas idéias, Emile Durkheim perguntará emtom retórico:

Pensar cientificamente não é pensar objetivamente, querdizer, despojar as nossas noções daquilo que existe deexclusivamente humano nelas, a fim de fazer delas umareflexão — tão exata quanto possível — das coisas taiscomo elas são? Não é, numa palavra, obrigar a inteli-gência humana a curvar-se diante dos fatos?8

* Emile Durkheim, Socialism and Saint-Simon, Routledge & KeganPaul, Londres, 1959, p. 113. Trad. por Charlotte Sattler.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 21

Neste ponto, duas observações tornam-se apropriadas.Desde o início, a "segunda natureza" havia sido intro-duzida no discurso intelectual, não como um fenômenohistórico, um enigma à espera de ser decifrado, mas simcomo um pressuposto apriorístico. Para expressar a supre-macia não-qualificada das revoluções da sociedade sobrea vontade humana, Saint-Simon serviu-se, nada menosnada mais, que da metáfora grandiosa da revolução doscorpos celestes que, nesse tempo, pareciam totalmentefora do alcance da práxis humana. Aceitava-se, sem maisargumentos, que o mundo social confrontava os homensda mesma maneira que a natureza — como algo comque poderia viver, e que algumas vezes poderiam usarem proveito próprio, mas unicamente se se rendessemincondicionalmente ao seu comando. A curiosidade inte-lectual dos sociólogos foi subseqüentemente levada adescobrir o mecanismo desta supremacia e a registrarassiduamente as regras que postula. Quando se lhes cha-mou a atenção para a prática humana, os sociólogosmantiveram-na constantemente dentro do campo analí-tico, já confinado pelas premissas aceitas anteriormente.Esta decisão metodológica continha, como se veria maistarde, inúmeras vantagens. Fornecia ao estudioso crité-rios claros e inequívocos sobre o normal, distintos doque é estranho e irregular; o não-problemático comodistinto do problemático; o realista como distinto doutópico; o funcional como distinto do disruptivo ou des-viante; o racional como distinto do irracional. Numapalavra, depositou nas mãos dos sociólogos a totalidadedos conceitos e modelos analíticos que constituíam a suadisciplina como um discurso intelectual autônomo. Dentrodesta disciplina, atribuía-se irrevogavelmente à atividadehumana prática o papel de variável dependente. Poroutro lado, o pressuposto referido acima oferecia aospraticantes do discurso por ele gerado um campo relati-vamente vasto de exploração teórica e de desacordo,o que sustentou a versatilidade intelectual da disciplina,sem traze-la, porém, para próximo de uma falha decomunicação, o que poderia levar ao questionamentoretroativo do postulado inicial. Os argumentos mais vee-mentes raramente ultrapassavam a barreira de uma dis-cussão legítima, tal como a provocada pelo pressupostoda "segunda natureza". Os sociólogos discutiam feroz-mente acerca da verdadeira resposta à pergunta de cuja

Page 13: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

A CIÊNCIA DA NÃO-LffiERDADE22

pertinência raramente duvidavam: o que vem a ser estasegunda natureza que abarca a atividade da vida huma-na e íornece uma estrutura para essa atividade?

Segundo — de passagem e talvez sem sequer dar-seconta dele — o programa esboçado por Saint-Simon,e mais tarde subscrito na prática, ainda que não porpalavras, por várias gerações sucessivas de sociólogos,fundava-se logicamente em dois atos de fusão de proble-mas, cuja identidade não é, de forma alguma, auto--evidente e, portanto, deve ser demonstrada para ser aceita.Primeiro, pressupôs-se que o status do "nós" ou "homens"não é nada mais que o status do "eu" ou "homem".O produto da multiplicação poderá ser maior que os seusfatores, mas pertence ao mesmo conjunto de númerosque os seus fatores; o ato de multiplicação não dotao produto de atributos que não possam ser identificadosanteriormente e atribuídos aos próprios fatores. No de-senvolvimento recente da sociologia, a poderosa correntede pluralismo "behaviorista" (assim chamada muito apro-priadamente por Don Martindale) aceitou este sistemaliteralmente. A maioria dos "holistas", Durkheim comoo seu porta-voz mais eminente e chefe de fila, tendo anco-rado a "segunda natureza" no "grupo", apressaram-sea afirmar enfaticamente que o grupo "não é reduzível" aosseus membros, por mais numeross que sejam. Na prática,estavam dispostos a aceder à redutibilidade do grupo emtodos os seus aspectos, menos num: não há número deindivíduos, por maior que seja, que possa opor-se ao poderdo grupo e desafiar a sua supremacia. Numa palavra,o "grupo" é a própria natureza, e as suas leis, mesmoque — de uma maneira muito intrincada — feitas pelohomem, não estão sujeitas à deliberada manipulação hu-mana. Ambas as correntes, portanto, concordaram emfundir o "nós" com o "eu" e, conseqüentemente, senti-ram-se livres para transferir o raciocínio de uma paraa outra. Assim, Saint-Simon, numa versão um tanto toscade exercícios posteriores mais sutis, toma o problema daexperiência do indivíduo acerca de sua impotência contraa sociedade, tcomo se essa impotência fosse idêntica esimultaneamente explicativa à pressuposta impotência dasociedade ("homens") contra as suas próprias "leis supre-mas do progresso" ("o grupo"). Este algo que nos faz,e a mim também, experimentar a nossa e a minha im-potência situa-se, em certo sentido, acima da esfera da

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 23

ação humana — individual ou coletiva. As leis são o quesão e atribuir o seu conteúdo à atividade intencional dealguém seria o mesmo que sub-repticiamente reanimaro discurso mágico disfarçado em pesquisa científica."A consciência positiva", contrariamente às esperanças deComte, não removeu Deus do universo humano e das suascondições de inteligibilidade. Limitou-se a dar a Deus umnovo nome.

Por outro lado, há uma fusão da tarefa exigida dosestudiosos das ações humanas com o assim designadostatus existencial do homem em sociedade. Resumindoo programa de Saint-Simon, Durkheim propôs aos estu-diosos do mundo social que "se curvassem diante dosfatos". Estes fatos, no vocabulário de Durkheim, sãofundamentos morais, constitutivos da "consciência cole-tiva" do "grupo". Mas isto é precisamente o que qual-quer homem, na opinião de Durkheim (e na opiniãoda maioria dos sociólogos) está condenado a fazer todaa sua vida. A "segunda natureza" transcende a inteli-gência humana, representada no seu ponto mais alto pelaatividade dos estudiosos, de forma tão sem compromissoe implacável como o faz o potencial prático do indivíduo.Por mais fiéis que os sociólogos permaneçam ao conselhode Kant — que não extraiam normas dos fatos — istoé precisamente o que fazem no caso que estamos a dis-cutir: "o fato" é que a sociedade é para os homens uma"segunda natureza", isto é, tão inquestionável e tão paraalém do seu controle como o é a natureza não-humana.Portanto, a "norma" para o estudioso é tratar a sociedadecomo tal, quer dizer, não tentar outra coisa que nãoseja uma "reflexão — tão exata quanto possível — dascoisas tais como elas são". Os critérios de realismo e deracionalidade são idênticos em ambos os casos; os estu-diosos devem sujeitar-se às mesmas limitações a que estãosujeitos todos os homens, quer exerçam ou não as suasfunções intelectuais refletindo sobre a sua condição hu-mana. O ato de pensar não gera uma situação qualita-tivamente distinta. Quando muito, ajuda a "segundanatureza" a atualizar as suas tendências intrínsecas deuma maneira mais serena e com menos sofrimento do queaconteceria se o caso fosse outro. Torna os homens(nós? eu?) mais livres, reconciliando-os com as necessida-des inerentes à sua condição social.

Page 14: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

24 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

Talvez ninguém tenha feito tanto para defender a"segunda natureza", assim entendida, como AugustoComte. O discípulo de Saint-Simon entregou-se à tarefade desenvolver as idéias implícitas do seu mestre e assuas conseqüências com um entusiasmo pristino e semqualquer temor, o que só pode ser compreendido contra opano de fundo dos furacões desconhecidos e bancos de areiasubmarinos que constituíam seu embasamento, e semea-vam de obstáculos o caminho que se propunha a abrir.Pertence a Comte, sobretudo, o mérito de ter chamadoa atenção para "o social" como uma dimensão separada,autônoma, e, em certo sentido, crucial, da situação hu~mana. A idéia da regularidade a toda prova, inerente atodas as ações humanas, que transcende o destino indi-vidual e é suficientemente potente para confundir osesquemas mais engenhosos, não era nova quando Comteentrou na liça. Pelo menos um século antes, em L'Espritdês Lois, Montesquieu repetiu muitas vezes a perguntacrucial, sobre a qual se assentam as bases da sociologiacomo ciência positiva: "Quem poderá estar protegidocontra os acontecimentos que incessantemente brotam danatureza das coisas?" Para ele era claro, como o erapara o resto de "lês philosophes", que "no meio de umainfinita diversidade de leis e de costumes". os homens"não eram unicamente conduzidos pelo capricho da fan-tasia". Certamente, os vários elementos do conceito deregularidade, que mais tarde viriam a ser separados dotodo e analisados individualmente, encontravam-se aindamisturados de uma maneira que desafiava o que viriaa ser, à luz de uma perspectiva moderna, uma discussãosignificativa. Mesmo que a tenha distinguido entre osproblemas, Montesquieu não pôde decidir claramentese a regularidade que ele pressentiu consistia na elimi-nação virtual de atos anômalos e inexplicáveis de umafantasia desenfreada — na determinação essencial de todaa conduta humana, por mais bizarra que pareça a umolho não informado; ou consistia antes na presençade uma força inexorável de lógica sobre-humana que osindivíduos e as nações só desafiam uma ou outra vezpara lamber as suas feridas, se forem suficientementefelizardos para não perecerem no processo. Mas, seja qualfor o significado implícito, a regularidade pressentidaintuitivamente estava situada, nítida e claramente, a umnível que descreveríamos hoje como ação política. Isto

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 25

levou a duas conseqüências importantes. Primeiro, o sis-tema de ação política era o sistema de uma ação humanamotivada e dirigida para um fim, claramente orientadapara a consecução de estados específicos. Quer descreva-mos os motivos em termos de características de persona-lidade, tais como a avareza, o orgulho ou a inveja, querem termos de interesses objetivos, tais como a pretensaunidade da nação ou o engrandecimento da sua glória,,os motivos como tais permanecem no centro da nossaatenção — simultaneamente como objeto de investiga-ção e como instrumento de explicação. É, portanto, extre-mamente difícil despojar a discussão dos fenômenos polí-ticos do conceito de vontade, intenções, objetivos — que,para serem concebidos como regulares de um modoque transcenda a idiossincrasia individual, têm queser relacionados com fenômenos localizados nalguma partepara além da esfera política propriamente dita. Segundo»segue-se do que fica dito que, enquanto a percepção da$atividades humanas permanece comprimida entre os fenô^menos da ação política, a menção de regularidades apre-senta obstáculos muito difíceis de superar. A analogia his-tórica, os exemplos de onde se podem extrair lições eramrna verdade, os fenômenos que mais se aproximavam dáidéia de regularidade que a discussão pré-sociológica sobreas atividades humanas jamais chegou a alcançar. Atingiiiseu ápice intransponível na obra de Machiavelli, corria visão da história como um jogo cujo resultado não êessencialmente determinado de antemão; um jogo, porém,,no qual alguns estratagemas são "mais fiéis à lógica dásituação" do que outros e que, portanto, podem e devemser escrupulosamente aprendidos e aplicados por todos osque desejam dominar a necessidade. A repetibilidade dosacontecimentos históricos foi, dessa maneira, traduzidacomo a eficácia perpétua de movimentos específicos que;contudo, ainda podiam ser usados à vontade. Dentro dò>campo político, considerado isolado de ulteriores conquis-tas da situação humana, o modelo do jogo é talvez a con-r»cepção mais próxima da idéia da regularidade implan-tada, "objetivada". Qualquer desenvolvimento ulterior daidéia requer a introdução de dimensões analíticas adi-cionais.

Coube a Comte a missão de abrir o longo e ainda,não concluído "processo de "descascar a cebola" da situar-cão humana em busca do situs da "segunda natureza".

Page 15: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

26 ,A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

Como RonaM Metcher observou recentemente, muito apro-priadamente,

Comte não se opunha à elaboração de uma constituiçãoou à clarificação dos ideais morais, mas acreditava quemuitas outras dimensões atuavam na sociedade — ativi-dades econômicas práticas, formação da propriedade, con-flitos de interesses de classe, investigação científica, mu-

' danças na crença religiosa e no comportamento etc. — eque somente com um conhecimento profundo de todosestes processos sociais poderia haver uma verdadeira li-derança política. Para ele, portanto, um estudo suficienteda "ordem política" tinha que ser um estudo exaustivodos sistemas sociais.7

'"Comte postulou a "segunda camada" sob a super-fície dos acontecimentos políticos: a "segunda natureza"estende-se sob o nível da história política, no qual os-olhos dos seus predecessores se tinham fixado. A ela per-tence o nível "social", o conceito de regularidade e per-manência escondidas por trás da série de acontecimentospolíticos aparentemente dispostos ao acaso. A escolha,evitada ainda ou não pressentida pela geração de Mon-tesquieu, foi feita finalmente: esta "natureza social"oculta vem à superfície, entra no reino da conduta hu-mana, não necessariamente como um fator determinantedo comportamento (os atos individuais poderão muitoTaem ser, a despeito do interesse do estudioso, "indeter-minados", no sentido de serem causados por fatoresinapropriados para tratamento científico e sempre em"busca de leis), mas a máxima limitação da liberdadehumana no campo da ação e o supremo juiz do "realis-mo", isto é, da viabilidade de todas as intenções huma-nas. A "natureza social" é simplesmente essa força supre-ma que sempre conseguirá ficar por cima, por maisèncarniçadamente que os seres humanos, individual oucoletivamente, tentem tirar o melhor partido disso.

O trabalho de Comte, no seu todo, pode ser interpre-tado como uma tentativa consistente para reivindicar a•existência de uma "natureza social" que abre o seu cami-nho aos poucos, através da história política, e para fazer•dos cientistas sociais os únicos intérpretes desta natureza7 The Crisis of Industrial Civilization, the early essa-ys of Auguste•Comte, Introdução de Ronald Fletcher, Heinemann, Londres, 1974,p. 28.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 27

-e, portanto, os mensageiros indispensáveis dos seus man-damentos. Comte concebeu as ações humanas como elosjia "grande cadeia do ser", que começa com o desenrolarautomático e cego das forças naturais. Somente algumasações humanas podem, na verdade, fazer parte desta•cadeia, e a condição para que isso aconteça é a sua con-formidade com as "tendências naturais"; atos caprichosos,fora do alvo, refratários, acabarão inevitavelmente no-cemitério das aventuras malogradas, mal concebidas oubaseadas na ignorância, aventuras que pertencem ao reinodo impossível. Comte instou para que considerássemos•"a ordem artificial e voluntária como um prolongamento<ia ordem natural e involuntária em direção da qual todasas sociedades humanas naturalmente tendem, em todos osseus aspectos, de maneira que toda e qualquer institui-ção verdadeiramente racional e política, se pretender teruma eficiência real e social duradoura, deverá apoiar-senuma análise preliminar e exata das tendências naturais,que são as únicas que podem fornecer uma base firmeà sua autoridade; numa palavra, a ordem deve ser consi-derada como algo que deve ser projetado, não criado, poisisto seria impossível". Os homens só poderão criar a suaordem artificial se compreenderem a ordem natural.(a alternativa seria, presumivelmente, o método custosoe doloroso da tentativa e do erro) — os homens sãolivres, de uma maneira verdadeiramente hegeliana, quan-do conhecem e aceitam o necessário. De outra forma, sóuma amarga frustração os espera:

O princípio de limitação da ação política estabelece oúnico ponto verdadeiro e exato de contato entre a teoriasocial e a prática social... A intervenção política nadapode fazer pela ordem ou pelo progresso, exceto se sebasear nas tendências da vida política do organismo,de forma a ajudar seu espontâneo desenvolvimento,através de meios muito bem escolhidos. 8

Esta opinião era realmente parte integrante, se nãoa característica mais proeminente e distinta, da genuína"Zeitgeist", partilhada largamente por pensadores detodos os matizes de denominação política. No seu estilonormalmente cáustico e conciso, Joseph de Maistre decla-8 Tirado de Essential Comte, org. por S. Andreski, Croom Helm,Londres, 1974, pp. 159, 176. Trad. por Margaret Clarke.

Page 16: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

28 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

rou nos seus Quatre Chapitres sur Ia Russie que "o quese chama Natureza é aquilo a que ninguém se pode oporsem arriscar a sua própria perdição". Por outro lado,.Louis de Bonald também se associou ao coro com estaspalavras: "Mais cedo ou mais tarde a Natureza exigirá.o seu quinhão" (Théorie du pouvair politique et religieuxdans Ia soctété civile). O que Comte contribuiu pessoal-mente, além das suas variações obsessivas e repetitivas-sobre o tema com que todos naquele tempo se preocupa-ram, foi apresentar esta "Natureza", cujo desafio eqüi-vale à perdição, como um "Poder Espiritual" supra-indivi-dual, com um desenvolvimento lógico próprio. "O podertemporal não pode ser substituído por um poder de natu-reza diferente, sem uma transformação análoga no poderespiritual, e vice-versa."9

Comte estava demasiado preocupado com a tarefa dedemonstrar que a "segunda natureza" deve ser tomadaem consideração quando se pretendem esquemas fáceispara a transformação da vida humana, através da pro-mulgação de novas leis ou através da elevação ao poderde outros homens, para ter tempo ou a intenção deaventurar-se para além desse vago "poder espiritual".Para Comte, isto era uma noção muito simples, que difij

cilmente requeria uma elaboração ulterior ou um aper-feiçoamento. Os sucessos espetaculares das descobertascientíficas, por esse tempo, pareceram aos membros damicrocomunidade intelectual uma força compulsiva esuficientemente poderosa para estimular novas aventuraspara o gênero humano no seu conjunto (e daí o "poderespiritual" parecer capaz de atingir diretamente as con-dições da vida social. O processo em si de "atingir" nãopreocupou Comte como um-problema difícil em si mesmo.Talvez Comte fosse ainda um discípulo fiel do iluminis-mo, contra o qual ele sempre reagia furiosamente e cujozelo reformador sem sentido ele castigava sem dó nempiedade: ele continuava a ver o drama do progressohumano como uma luta do conhecimento contra a igno-rância, da verdade contra o preconceito. A verdade, umavez promulgada, haveria de estabelecer facilmente o seudomínio, da mesma maneira que, na sua ausência, asimagens falsas e viciadas do mundo, pregadas pelas igrejasinstitucionalizadas, tinham dominado a estrutura social.

» Tirado de The Crisis..., op. cit., p. 80.

DEFINIÇÃO DA "SEGUNDA NATUREZA" 29

Esta opinião, tal como se apresenta, condizia muito bemcom o outro motivo dos escritos de Comte — estabele-cendo "sábios" no papel de novos líderes espirituais dasociologia, para apoderar-se do poder social (distintodo poder político secundário) que se encontrava nas mãostrêmulas do clero, cuja idade teológica já estava ultra-passada. Sobre a era "positiva" da história humana quese aproximava escreveu Comte:

Somente os homens de ciência podem construir este sis-tema, uma vez que deve brotar do seu conhecimento po-sitivo das relações que existem entre o mundo exteriore o homem. Esta grande operação é indispensável, afim de constituir a classe dos engenheiros numa corpo-ração distinta, servindo como um elo de comunicação per-manente e regular entre os Sábios e os Industriais emrelação a todos os trabalhos especiais.

Um conhecimento melhor, mais verdadeiro, maiseficiente, derrotará e porá em fuga suas versões menosperfeitas, com a mesma facilidade com que uma pedramais dura fere e quebra uma pedra mais mole. "Quandoa experiência tiver finalmente convencido a sociedade deque o único caminho para a riqueza reside numa ativi-dade pacífica, ou nos trabalhos da indústria, a direção dosassuntos passará, muito apropriadamente, para as mãosda capacidade industrial." O epíteto de "sábios" seráuma simples conseqüência natural das novas alturas atin-gidas pelo "espírito social":

Quando a política ocupar o lugar de uma ciência positiva,o público deverá depositar nos publicistas a mesma con-fiança que agora, deposita nos astrônomos dedicados àastronomia, nos médicos dedicados à medicina, etc.; coma diferença, porém, que o público terá apenas poderpara apontar o objetivo e a finalidade do trabalho.10

Também neste ponto era Comte um herdeiro fiel doIluminismo. O "homo duplex" de Pascal — a besta egoístaamansada e dominada por um poder sobre-humano — foimuito claramente um axioma para "lês phüosophes", quenunca perdiam uma oportunidade para demonstrar o seudesdém pelas massas ignorantes e mentalmente ineptas.Por mais que uma verdade seja autopromotora ,no mo-

10 Ibid., pp. 211, 80, 78.

Page 17: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

30 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

mérito em que é proclamada, a sua descoberta é umaquestão elitista. As massas dominadas por paixões, mío-pes, egoístas não podem aproximar-se da verdade semajuda. A fim de pôr a descoberto as delimitadas paixõeshumanas, uma pessoa deve primeiro despojar-se das suas-próprias paixões (lembremo-nos de Durkheim quando diz;que "nos despojemos das nossas noções do que existe deexclusivamente humano nelas") e purificar-se de lealda-des duvidosas. É necessário poder sobre-humano parapoder ter um vislumbre da Verdade. Rousseau esboçouas suas características essenciais:

A fim de descobrir quais os regulamentos sociais mais,apropriados para as nações, é necessário uma inteligênciasuperior que possa examinar todas as paixões do gênero*humano, e que ela própria não esteja exposta a nenhumadelas: uma inteligência que não tenha qualquer contatocom a nossa natureza, mas que a conheça em toda asua extensão e profundidade: uma inteligência cujo bem--estar seja independente do nosso, mas que mesmo assinrse preocupe com ele. n

Com estas palavras quis Rousseau fazer uma descri-ção de Deus. Imperceptivelmente, os "sábios" resvalaram,para o molde destinado ao Ente Supremo. A purificaçãadas paixões tem sido sempre um componente de qual-quer rito de consagração. Para abeirar-se do Absoluto, osseres humanos deveriam purificar-se da poeira terrestreque cobria os seus corpos e as suas almas. "Renunciar,ao contato com a sua própria natureza" tinha um signi-ficado sagrado e um potencial santificado. Colocando-osna posição de juizes supremos, levantando-os muito aci-ma do vale de paixões mórbidas, Comte consagrou os"sábios".

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA

Coube a Durkheim deificar a sociedade. Durkheimretomou a tarefa no ponto em que Comte a deixou. Em-bora aceitasse totalmente, como foi provado, que o "poderespiritual" é, na verdade, a "segunda natureza" que aspessoas experimentam como os limites da sua liberdade,,Durkheim decidiu pôr a questão — e possivelmente res-11 Social Contract, Locke, Hwne, and Rousseau, Oxford UniversityPress, 1966, p. 290.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 3f

ponder — que Comte não havia considerado enigmáticaou digna de ser levada em conta: qual é a "substân-cia" da "segunda natureza" e por que o seu impacto sobre?a natureza humana é tão eficiente?

As idéias de Durkheim sobre a realidade social foram»concebidas sob as condições de rápida e total seculariza-^cão da vida social e política francesa, através do abatoda religião institucionalizada e do fracasso e perda dacontrole da poderosa legitimação "imperial" do poder dosestado. A pergunta sobre a maneira como a sociedade?pode sobreviver, como uma unidade integrada e solidária,,sem os seus esteios tradicionais, tornou-se não só perplexamas também tópica. Restaurar a autoconfiança desfeita,,através da descoberta de uma nova resposta convincente-ao princípio do quod júris da sociedade nacional, tor-nou-se, por assim dizer, a patriótica ordem do dia. FoiDurkheim quem mais pressa teve em aceitar o desafio.,

Nesse sentido, Durkheim desnudou e expôs a "natu-reza social de Deus", tendo mostrado que, em todos o&tempos, mesmo nas eras de maior devoção religiosa, Deus;nada mais era que a sociedade disfarçada, os mandamen-tos da sociedade revestidos de caráter sagrado e, portanto,,inspirando medo e terror. Por conseguinte, o desapareci-^mento de Deus e suas ameaças de raios fulminantes:poderia ser considerado como um fato sem importância,,A sociedade surgirá, eventualmente, incólume da suposta»catástrofe — provavelmente até rejuvenescida e mais»vigorosa, enfrentando os seus membros sem máscarae ditando as sentenças em seu próprio nome. Mas, quandoiconsiderada sob outra perspectiva — a do campo em queos mandamentos naturais seculares da sociedade humanapodem ser obedecidos com o mesmo espírito de submissão"e auto-abandono como se costumava obedecer a ordenssagradas — o mesmo raciocínio aparece a uma luz dife-rente. Em vez de secularizar Deus, Durkheim deificou»a sociedade. Vezes sem conta, Durkheim admite a ver^dade: "Kant postula Deus, uma vez que sem esta hipó^tese a moralidade é incompreensível. Nós postulamos umasociedade especificamente distinta dos indivíduos, uma vezque, de outra maneira, a moralidade não tem objetivoe o dever não tem raízes."12 Para Durkheim, "a escolha

12 Emile Durkheim, Sociology and Philosophy, Cohen & West, Lon-dres, 1965, pp. 51-2. Trad. por D. F. Pocock.

Page 18: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

32 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

reside entre Deus e a sociedade". Dado que a escolhatem. de ser feita se se quiser salvaguardar da ruina daregra religiosa a ordem social orientada para a morali-dade: "Eu vejo na Divindade unicamente a sociedadetransfigurada e simbolicamente expressa". Na outra extre-midade do canal de comunicação, porém, a mensagemmodifica um pouco seu conteúdo: não é necessário darè. sociedade nomes artificiais; ela pode e deve ser divini-^ada por direito próprio. A vontade da sociedade é "razão"suficiente para estabelecer mandamentos morais e mesmodespida deve ser objeto do respeito e da obediência quesempre recebeu, embora sob uma máscara ritual.

De fato, embora a descrição de Durkheim da "segun-da natureza" seja incomparavelmente mais rica e maisdensa que a de Comte, não vai marcadamente além daspredições teológicas que os cristãos e os judeus dão a Deus.A sociedade é o que "se impõe, por direito próprio, aoindivíduo"; é o que se impõe com "força irresistível";é o que "ultrapassa o individual"; é o que é "bom e dese-jável para o indivíduo que não pode existir sem isso ounegá-lo sem se negar a si mesmo"; é "uma personalidadequalitativamente diferente das personalidades individuaisde que ela é composta"; é "a autoridade que exige res-peito, mesmo da razão. Sentimos que a sociedade dominatião só a nossa sensibilidade, mas a nossa natureza na•sua totalidade, mesmo a nossa natureza racional". A socie-dade de Durkheim partilha com o Deus dos teólogos assuas qualidades negativas (mais poderosa que os homens;infalível, ao contrário dos homens; boa, ao contrário dosindivíduos, maus por natureza, etc.) e a sua "indetermi-nação" específica: resistência característica à atribuição•de traços que poderiam emprestar-lhe a Ele, ou a ela,uma medida de tangibilidade sensual. Ocasionalmente,Durkheim permite-se usar um estilo que poderia ser•considerado genuinamente teológico, confirmando assim,embora de uma forma paradoxal, que Deus e a sua socie-dade diferem apenas no nome:

A sociedade exerce poder sobre nós porque é externae superior a nós; a distância moral entre a sociedade enós faz tiela uma autoridade diante da qual a nossa von-tade se curva. Mas como, por outro lado, está dentrode nós e "é" nós, nós amamo-la e desejamo-la, emboracom um desejo sui generis, uma vez que, o que querque façamos, a sociedade nunca pode ser nossa em mais

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA '33

de uma parte, e domina-nos indefinidamente... Se seexaminar a constituição do homem, verificar-se-á que nãohá vestígio deste caráter sagrado de que é investido...Este caráter lhe foi dado pela sociedade.

E, finalmente, assim se expressou Durkheim, com umauto-abandono verdadeiramente místico:

O indivíduo submete-se à sociedade e esta submissão éa condição da sua libertação... Ao colocar-se sob a asada sociedade, ele torna também a si mesmo, até certoponto, dependente dela. Mas esta é uma experiência li-bertadora. 13

Existe a maior diferença que se possa conceber entrea sobriedade de Durkheim e o fervor religioso de Pascal,se não levarmos em conta os arroubos ocasionais deDurkheim de feição santimonial. Mas, no seu conjunto,p trabalho de Durkheim pode ser considerado como umatentativa de reformular o velho dilema de Pascal do"hòmo duplex", numa época em que o poder exercidopela Igreja sobre as mentes humanas estava em rápidadecadência. Ou então esse trabalho de Durkheim podeser considerado como uma tentativa de despojar perantea sociedade "secular" a linguagem apaixonada até entãousurpada pela teologia. O dilema de Pascal, de fato, inspi-ra e informa a totalidade das explorações de Durkheim.Na verdade, algumas das sugestões de Durkheim notoria-mente alusivas (incluindo as mais irritantes de todas,"a alma", "mentalidade", ou "consciência coletiva") sóparecem bizarras se consideradas fora do contexto da con-tínua tradição pascaliana na vida intelectual francesa.Como nos diz Pascal, há duas verdades constantes e invio-láveis:

Uma é que o homem, no estado da sua criação, ou noestado de graça, é elevado acima de toda a natureza,feita à semelhança de Deus e partilhando da Sua divin-dade. A outra é que, em estado de corrupção e de pecado,ele caiu do seu primeiro estado e tornou-se como osanimais... Vamos então conceber a condição do homemcomo dual. Vamos conceber que o homem transcende infi-nitamente o homem e que, sem a ajuda da fé, ele perma-neceria inconcebível para si mesmo, pois quem não podever que, a não ser que compreendamos a dualidade da

Ibid., pp. 57, 72.

Page 19: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

34 A CIÊNCIA DA NÃO-LDBERDADE

natureza humana, permanecemos invencivelmente ignoran-tes da verdade acerca de nós mesmos,

Pará escapar deste dualismo da existência, fonte desofrimento permanente e de choques dolorosos entre ins-tintos animais e consciência moral, o homem tem queabraçar a Deus — tem que, de fato, submeter-se, vqlunrtária e fervorosamente, à Sua graça divina.

A verdadeira conversão consiste na auto-aniquilação diantedo ente universal a quem tantas vezes ofendemos e quetem todo o direito de nos destruir a qualquer momento,ao reconhecer que não podemos fazer nada sem Ele eque não merecemos senão o Seu desprezo... Aquele queestá junto do Senhor é um espírito, que nós própriosnos amamos porque somos membros de Cristo. Nósamamos Cristo porque Ele é o corpo de que nós somosos membros. Todos somos um só. Um está no outro... *•*

Durkheim "secularizará" Pascal: "Amar a sociedadeé amar não só algo que está para além de nós, mas queestá também dentro de nós mesmos. Não poderíamosdesejar ser livres da sociedade sem desejar acabar coma nossa existência como homens."15 Em Pascal, a socie-dade foi personificada. Em Durkheim, foi reificada. Emambos os casos ficou deificada.

O conceito de sociedade foi introduzido por Durkheiniquase que por força da definição. Com a sua essênciadesfeita em bocados, que ele não pode recompor sozinho*o homem só se humaniza quando se submete à SOCÍCTdade. Não há, de fato, maneira de definir "ser humano"a não ser que nos reportemos à definição geralmenteimposta por uma dada sociedade. Palavras como "estaé uma sociedade má" não fazem sentido dentro da lógicade Durkheim; a sociedade pode ser ineficiente, mal orga-nizada, como acontece no caso de "anomia" — o fracassoda sociedade em transmitir sua mensagem ou fornecer osbens desejáveis por meio das suas- normas. Mas a socie-dade não pode ser má; como poderia sê-lo, se ela é oúnico fundamento, a única medida, a única autoridadepor trás da moralidade, o conhecimento do bem e do

A* TPaJCa1-', f ™sêeS' PenSuin' 1966, pp. 66, 65, 137, 136. Trad. porA.,, J, Krailsheimer.»• Durkheim, Socíology and Philosophy, p. 55.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 35

mal? "É impossível desejar outra moralidade que não sejaa sancionada pela condição da sociedade num determina-do momento. Desejar outra moralidade que não seja aendossada pela natureza da sociedade é negar esta últi-ma e, por conseguinte, negar-se a si mesmo." Não háuma escala separada, independente, de valores com quea moralidade sancionada por uma dada sociedade possaser aferida e avaliada e, assim, não há qualquer lógica'para que a frase "esta sociedade é má" faça sentido.O homem, portanto, só pode ser um ser moral comoresultado da sua obediência à sua sociedade. A confor-midade social e a humanidade se fundem.

A alternativa não é uma "sociedade melhor" (istonão teria sentido), mas o regresso à vida animal.

•iImagine-se um ser libertado de todas as limitações ex-teriores, um déspota ainda mais absoluto do que aquelesde que fala a história, um déspota que nenhum poder,externo pode restringir ou influenciar. Por definição osdesejos de tal ser são irresistíveis. Deveríamos então dizerque ele é todo-poderoso? Certamente que não, uma vezque não tem poder para resistir aos seus próprios desejos.Eles são seus senhores, como de tudo mais. Ele submete-sea esses desejos; não tem domínio sobre eles.

E assim a escolha é entre duas espécies de não-liber-dade: a não-liberdade animal ou a humana. Ê este o sig-nificado da "submissão libertadora" ao domínio da socie-dade. Submetendo-se, os homens sacrificam somente a'sua liberdade inferior, animal, a parte corrupta — comodiria Pascal — da sua personalidade. Em compensação,é-lhes dada a oportunidade de manifestar o seu lado hu-mano na única forma disponível de humanidade, tal comofoi forjada pelo grupo particular da qual é adquirida.

Entretanto, tornar-se humano não é um desejo ne-cessariamente inerente aos homens. De qualquer modo,é um assunto muito sério para ser deixado ao livre arbí-trio dos indivíduos. Como diria Rousseau, os homens"devem ser forçados a ser humanos". Nas palavras deDurkheim, "a sociedade não pode criar-se a si mesma nempode recriar-se sem que, ao mesmo tempo, crie um ideal",E o homem, por seu lado, "não poderia ser um ser social,o que é o mesmo que dizer que ele não poderia ser um

Page 20: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

36 A CIÊNCIA DA NÃOrLlBERDADE.

homem, se não tivesse adquirido essa condição".19 A socie-dade que — sendo contérmina da moralida~de — é o bemencarnado e, ao mesmo tempo, o supremo juiz dessebem, tem o direito (dir-se-ia o direito moral) de coagiros: seus membros a viverem uma existência moral ergo,humana, obrigando-os a viver de acordo com os seuspadrões morais, quer os indivíduos específicos queiramou não. Em Odysseus una die Scheveine, oder dasUnbenhangen an der Kultur, Lion Feuchtwanger consi-derou a terrível possibilidade de os marinheiros de Ulisses,uma vez transformados em porcos pela Circe traiçoeira,gostassem do que estavam experimentando e recusassemvoltar à forma humana. Apesar de tudo o que Durkheimpôde articular, isto poderia ter ocorrido, sem de fôrmaalguma minar a "necessidade" da sociedade ou dê pôrem questão a sua legitimidade moral. A religião, longede ser o esteio do preconceito humano e o carcereiro damente humana, fornece o melhor paradigma desta legiti-midade moral inquestionável, sendo exercida como deve-ria ser, harmonizando os meios humanos com os finshumanos. Sempre que uma "intervenção do grupo", queresulta na imposição "uniforme sobre as vontades e asinteligências particulares", um "tipo de pensamento e deação" toma a forma de um ritual religioso, "não é o casode se exercer uma pressão física sobre forças cegas e, porsinal, imaginárias, mas de atingir as consciências indivi-duais, dando-lhes uma direção e disciplinando-as".17

Numa sociedade funcionando idealmente e tecnicamentesadia no seu conjunto, os homens teriam, de acordo comas palavras de Irving Hallowell, "desejado atuar comodevem ^atuar e, ao mesmo tempo, teriam encontradosatisfação ao agir de acordo com as exigências da cultu-ra" 18 — ou, como disse -Erich Fromm, as necessidadessociais seriam transmitidas em traços de caráter.19

Por uma curiosa distorção de perspectiva, tornou-seuniversalmente aceito, nas versões folclóricas de Durkheim,que o seu principal postulado metodológico foi que as

16 Durkheim, The Elementary Forms of the Religious Life, Allen& Unwin, Londres, 1968, pp. 422-3. Trad. por J. W. Swain." Ibia., pp. 436, A419.i» "Culture, Persoriality, and Society", in Anthropology Today, org.por Sol Tax, University of Chicago Press, 1962, p. 365.l» "Psychoanalytic Characterology", in Culture and Personality, org.por S. S. Sargeant e W. M. Smith, Nova York, 1949, p. 10.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 3.7

idéias são coisas e devem ser exploradas como tais. Formu-lado desta forma, literalmente isolado mas fora de con-texto, a partir dos escritos de Durkheim, este postuladoparece simplesmente uma outra profissão de fé positi-vista — um apelo ao estudo dos fenômenos sociais damesma maneira que os cientistas naturais estudam anatureza. Não é este, porém, o significado dado à famosaafirmativa pela lógica da preocupação teórica de Durk-heim. Antes de Durkheim ter levantado a questão de comodeveriam ser estudados os fenômenos humanos, ele primei--ro investigou a natureza das coisas humanas. A inspiraçãooriginal, á mola de todo o sistema teórico durkheimiano,foi buscada no problema posto de lado por Comte, por estepresumir que sé tratava de um fenômeno auto-evidente esem qualquer dificuldade: o que vem a ser esse algo quenão está presente na natureza não-humana, mas que naverdade confronta os seres humanos com o poder avassa"ladòr típico das coisas naturais? Que vem a ser 'essealgo, que é experimentado com a perfeição e elasticidadedas coisas, mas que não apresenta nenhuma das caracte-rísticas que costumamos atribuir às "coisas comuns"?A resposta — a única realmente importante — foi esta:as idéias. São as idéias aquilo que nos confronta como séfossem coisas. Este postulado supostamente revolucionário— dê que as idéias deveriam ser tratadas como coisas nódecurso, da investigação científica, prosseguiu com umautomatismo virtualmente tautológico: naturalmente, ascoisas devem ser estudadas como coisas; uma vez que foirevelado que uma subclasse de coisas consiste em idéiassocialmente apoiadas, é uma questão do silogismo maissimples extrair a conclusão: as idéias deverão ser estu-dadas como coisas. Durkheim não se incomodou em aprorvar a premissa maior (a esta foi outorgado o status deaxioma pelo senso comum), nem com a conclusão (estanão requeria nenhuma prova, pois resultava, no caso, dassuas premissas, apoiada pela consistência das regras dalógica). A sua atenção voltou-se, ao invés, para a pre-missa menor: algumas coisas são idéias — e esforçou-separa provar isto. A característica distinta da sociologiade Durkheim — característica que foi adotada e absor-vida pela maior parte da sociologia do século XX — foia decifração da experiência da "segunda natureza" comoum corpo de idéias comumente aceitas, que se impõem

Page 21: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

"38 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

•com uma força irresistível graças ao fato de que definemo significado do ser humano, moral e bom,

! Esta idéia central da sociologia de Durkheim veioa ser subseqüentemente apresentada (no que talvez sejauma versão modernizada, mas certamente uma versão

.obscura) como a teoria de que o que integra a sociedadenum sistema que confronta o indivíduo como uma forçaautônoma e superior é a fidelidade universal ao chama-

«do "grupo central de valores" — um modelo desidrati-.szado, higiênico, de "consciência coletiva". Se reduzida àfsua essência básica e purificada da terminologia obscure-/cedora da essência, a idéia se torna surpreendentemente«simples (revelando simultaneamente a sua autolimitação,:por sinal oculta): a sociedade, sendo o único cenário para:a existência humana do homo sapiens, consiste portanto,na conformidade dos seus membros com os ideais cen-trais ancorados à sociedade. Portanto, se a sociedade nãosucumbe é porque existe a conformação de seus membrosa esses ideais. E isto é bom e desejável. (Note-se, em an-tecipação a uma discussão ulterior, duas das limitações•auto-impostas deste raciocínio: primeiro, a existência dasociedade serve para satisfazer as necessidades antropológi-,cas, necessidades dos homens como membros da espéciejhumana; daí que, por definição, seja extra-histórica e ex-trapartidária. Segundo, a necessidade justificada de "uma"sociedade tem sido tacitamente identificada com a neces-sidade de "a" sociedade, sociedade que, por sinal, define,no momento, o significado de ser humano. Esta socie-dade específica é, naturalmente, um fenômeno histórico.Mas, tendo-a relacionado a uma necessidade antropo-lógica, extra-histórica, esta perspectiva teórica apresentao histórico como o natural. Não tanto por um depoimen-to explícito neste sentido, mas simplesmente por negara possibilidade de definir o significado de "ser humano"'em termos não fornecidos e não legitimados pela socie-dade hoje existente.)

A história de grande parte da sociologia pós-durk-hèimiana tem-se reduzido a uma crítica imanente destaresposta simples, talvez mesmo simplista, à questão sobrea natureza da sociedade como um poder coercivo. Ossucessores de Durkheim não puderam satisfazer-se pormuito tempo com a generalidade da resposta de Durkheim,>'da mesma maneira que o próprio Durkheim não pôde^engolir a generalidade da de Comte; daí tentarem disse-

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 39

fear, cortar e dividir o "grupo central" nas suas partesconstitutivas, inexploradas por Durkheim, e revelar amorfologia da ascendência dos ideais centrais sobre osseres humanos individuais. Esta crítica foi imanente,dado que nunca se pôs em questão o pilar central da•sociologia durkheimiana: que o que tem a "forma de umacoisa" na experiência chamada "sociedade" são as idéiase que, por conseguinte, a sociedade, ao mesmo tempo quepermanece tal qual é, é acima de tudo um fenômenoque tem lugar no espaço que se estende entre as mentes.Nem tampouco foi jamais colocada a questão do preçode "ser humano" na forma assim definida.

Para dar apenas os exemplos mais originais e sofis-ticados da crítica imanente, consideremos as modifica-ções do tema central que foram introduzidas por Shils,Parsons e Goffman.

No trabalho de Shils, o papel dos ideais centrais•(valores) no sustento e manutenção do todo social nãofoi negado; mas postula-se que, para que o seu impactolimitativo no comportamento dos indivíduos seja efetivo,outros fatores devem mediar também, fatores a que Durk-heim prestou pouca ou nenhuma atenção. Sugere-se,portanto, que a influência mental da sociedade sobre osindivíduos tem, de fato, uma estrutura de camada dupla,adequadamente expressa no conceito de centro e peri-feria. O sistema da crença central de uma sociedade— como nos ensina Shils — é uma abstração de altonível que pode ser apreendida somente por meio de umaanálise filosófica intelectualmente exigente. Mas, as pes-soas comuns não são filósofos; assim, entram em contatoimediato com os valores centrais somente em relativa-mente poucas ocasiões cerimoniais. Enquanto estes acon-tecimentos permanecerem, o apego maciço e emocionalaos valores centrais é levado a um ponto muito alto,á lealdade é revivificada, amadurecida e fortalecida, masnão traduzida, necessariamente, em preceitos "munda-nos" relevantes para a rotina diária e aptos, portanto,para salvaguardar a conformidade do dia-a-dia. São oslaços pessoais, os primeiros laços (como, por exemplo,as lealdades de parentesco ou de quase-parentesco) asresponsabilidades parciais existentes em diversos gruposde corporação — mais que as crenças evocadas em ceri-moniais — que servem de sustentáculo para os valores«entrais, através da rotina, da atividade institucional!-

Page 22: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

40 A CIÊNCIA DA NÃO-LEBERDADE >>

zada de toda a massa dos homens. Assim, de fato, é Qdenso tecido de relações estreitas (face a face ou forma-lizadas e relacionadas às funções), e as tarefas imediatasde todo o momento que canalizam o comportamentohumano rotineiro para a conformidade com os valorescentrais, enquanto esses valores permanecem inconspícuos,pbscurecidos, até invisíveis, segundo a perspectiva dohomem comum. E assim, a imagem da integração social,que Durkheim propôs estender sobre toda a sociedade,foi reduzida por Shils ao núcleo central do sistema social.]É esta esfera central sozinha que consciente e articulada-mente sustenta e é sustentada pelos ideais cruciais dasociedade. A esfera periférica não está presa ao mecanis-mo central pela lealdade ideológica, mas ligada a elapelos inúmeros fios de laços pessoais, e às vezes não tãopessoais.

Os fips que conservam a sociedade unida em váriascamadas são, portanto, diferentes; mas todos são fiadospelo mesmo fuso de idéias. Shils chama a atenção paraà insuficiência do conceito dos "ideais centrais" comoexplicação da persistência da "realidade social". Masoutros conceitos, que ele introduz para apoiar e comple?mentar o legado durkheimiano, são feitos da mesma ma-?téria-prima, e o postulado "algumas coisas são idéias"permanece em vigor. Para que uma sociedade possa sobre^viver,. à única coisa necessária é que sejam absorvidaspor todos, partículas dos ideais centrais; mas têm que sercimentadas por uma pletora de outros ideais, tais comoo parentesco ou a lealdade organizada (sendo todos, na^turalmente, idéias que atuam como coisas), para quepossam exercer a sua função.

A imagem de uma estrutura, feita de múltiplas cama-das, da superioridade da sociedade baseada em valores(que Shils veio a descobrir no seu estudo durante a guer-ra, quando era prisioneiro dos alemães, e tornado públicoem BJS em 1957) foi analisada mais minuciosamente porTalcott Parsons — na sua teoria dos níveis da organi-zação da estrutura social.20 Como se sabe, toda a teoriade Parsons sobre a sociedade está organizada em torno doconceito de paradigmas normativos entrelaçados, cuja in-fluência compulsiva sobre o comportamento individual é

?o Cf. "General Theory in Sociology», in Sociology Today, org. porKobert K. Merton e outros, Basic Books, Nova York, 1959.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFIÇADA 4Í

alcançada e continuamente sustentada pelo esforço gemi-nado da "manutenção do paradigma e da direção dastensão" (ação preventiva e penal contra desvios, assinscomo estímulos positivos de uma conduta conformativa),.e a "integração" (sobretudo processos comumente descri*tos sob o título de socialização). Os paradigmas norma-tivos, da mesma maneira que em Durkheim, refletenuexigências do todo social; especificam os aspectos do com-portamento individual que são relevantes para o bem--estar comum e que devem ser observados, se a sociedade-quiser sobreviver. Somente se se conseguir subordinar a»ações individuais a tais paradigmas normativos é quê-a sociedade criará um ambiente viável em que a ação>pessoal é possível. Os paradigmas normativos especificam,,dir-se-ia, as condições mais gerais e necessárias para a.existência social.

Nesta teoria da organização hierárquica da estruturasocial, Parsons assinala a diferença fundamental entre a:sua noção de paradigmas normativos e os "ideais" durfc»heimianos personificados na "alma coletiva". Os paradig-mas normativos não se referem, necessariamente, de umaimaneira direta, aos objetivos coletivos, societários, à ne-cessidade de conservar a união, a cooperação comunitá^ria, etc. Através da sua própria estrutura hierárquica,,eles apontam, em última análise, precisamente para esta.direção; mas, principalmente nas suas ramificações mais-baixas, mais específicas e particularizadas, poderão muito»bem ocultar o seu objetivo final, visível somente quando-visto de cima — nos resultados de instruções meticulosas,,aparentemente não preocupadas com o bem-estar da tota--lidade.

Os valores mais gerais dos níveis mais altos são arti^culados a níveis sucessivamente mais baixos, de formasque as normas que governam as ações específicas ao nívelmais baixo possam ser assinaladas... Nos níveis mais*baixos, as normas e os valores aplicam-se somente a ca-tegorias especiais de unidades da estrutura social, a não-ser que sejam as normas mais gerais para todos os "bons,cidadãos" e, portanto, estejam ocultas sobretudo em termosde uma referência de personalidade.

Desta forma, as normas gerais e mais cruciais, dire-tamente responsáveis pela sobrevivência da sociedade, são*traduzidas em instruções seculares, mundanas. A estru^tura majestosa do sistema social poderá ser sustentada.

Page 23: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

42 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

«em um apelo explícito às sanções sagradas. É fortaleci*da pela rotina, pela observância habitual de costumescomuns e não pela internalização da lealdade, pelas ar-ticulações mais sublimadas e mais abstratas do grupo devalores centrais. Com efeito, o indivíduo poderá estar cientedas conseqüências mais remotas da sua conduta diáriarelacionadas com o sistema. Da sua situação limitada,só um ramo ou dois e uma dúzia de galhos são visíveis,enquanto o resto da árvore poderá escapar à sua atenção,sem prejudicar a tarefa tranqüila da sua rotina diária.Cabe ao analista social reproduzir teoricamente o finotecido de paradigmas normativos entrelaçados, tornarexplícita a sua função implícita, mostrar como são indis-pensáveis para a ação social, e, na realidade, para a exis-tência social dos seres humanos. Reconhecemos o papeltradicional do sacerdote — o intérprete da sabedoria in-trínseca, ainda que escondida, da Criação, o pregador dotoem que consiste na submissão e na alegria que pode•advir de uma necessidade abraçada com entusiasmo.0 princípio escolástico ens et bonum convertuntur for-Jiece o adesivo para as juntas fracas da teoria: não sepode imaginar a existência sem a sociedade, portanto ébom que a sociedade sobreviva; mas ela só pode sobre-viver, se se conseguir o consenso geral; este consensoé laboriosamente construído a partir de trivialidadesaparentemente insignificantes; aprendamos, pois, a veratravés dela; aprendamos a perceber razões mais altasem rotinas mais baixas, funções vitais em críticas irri-tantes, o nobre no insignificante. O efeito total da "hie-rarquização do consenso" de Parsons — a sua ligaçãodos preceitos mais estreitos à sobrevivência da sociedade,a sua firme suposição de que qualquer ordem vinda de"'fora" dos fins e dos motivos do ator, por mais difícile incrível que pareça, pode ser apresentada, em princí-pio, como emanada dos comandos mais cruciais da sobre-vivência da sociedade — tudo isto, no seu conjunto,concorre para santificar e enobrecer, de uma maneirayerdadeiramente leibniziana, tudo o que se experimentana vida social como real, incluindo os seus aspectos menosvisíveis. V

1 A suposição comum, tanto de Durkheim como deParsons, é a de que, se a ação significativa (humana, nocaso de Durkheim; eficiente, no caso de Parsons) de umindivíduo vier a ser absolutamente possível, os mesmos

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 43

paradigmas normativos ou ideais deverão motivar e -limi-tar o comportamento de todos os indivíduos que parti-lham dessa ação. O que é necessário é — nas palavrasde W. I. Thomas, a quem Parsons repetidamente mani-íestou a sua dívida intelectual — "uma organização-grupo personificada num esquema social sistematizado de.comportamento imposto como regras aos indivíduos" (ThePólish Peasant in Europe and America). Ordenada, plane-jada, organizada, eficiente — livre, na verdade —, a ação•humana depende do esforço bem sucedido de paradigmasinstitucionalizados (mesmo se eles se materializarem, "su-perfície ao nível fenomenal", através da psique dos agentesindividuais, eles constituem ainda uma realidade externa,uma "segunda natureza", segundo o ponto de vista dosagentes) sendo, como são, imperativos e inevitáveis, dentrodos limites da ação que se tem em mente realizar. É estaindômita "segunda natureza" que salvaguarda a comple-jmentaridade das expectativas — esta condição suprema daação humana.

Existe uma dupla contingência inerente à interação. Porum lado, as gratificações do ego são contingentes ao poderde escolha do ego entre alternativas disponíveis. Mas, poroutro lado, a reação do alter será contingente à seleçãodo ego e resultará de uma seleção complementar por partedo alter. Por causa desta dupla contingência, a comuni-cação, que é a precondição de paradigmas culturais, nãopoderia existir sem a generalização a partir da particula-ridade das situações específicas (que nunca são idênticaspara o ego e para o alter) nem sem a estabilidade designificado que só pode ser garantida por "convenções"

, observadas pelas duas partes.21

No decorrer do seu trabalho, Parsons apela parao medo pan-humano da incerteza, da imprevisão, do bizar-ro, do extraordinário e do surpreendente. Tal medo, certa-mente um fenômeno antropológico (no sentido de estarassociado inexoravelmente a toda e qualquer ação huma-na), é um pau de dois bicos: o terror de que as "coisas"•fujam ao controle e respondam à rotina e a um manuseiointeligente de uma maneira não-habitual imprevisível, e ohorror das "pessoas" que confundem todas as expectativas•por meio do uso de um código simbólico ilegível ou daatribuição de sentidos inescrutáveis a sinais conhecidos.

i21 Toward a General Theory o f Action, org. por Talcott Parsonse Edward A. Shils, Harper & Row, Nova York, 1962, p. 16.

Page 24: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

44 A CíÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

É este medo que uma sociedade serena e coerentemente-articulada promete exorcizar. Promete a liberdade semimedo em troca da conformidade às "convenções".

Uma destas convenções, por sinal de natureza supe-rior, é a divisão de papéis e o seu tratamento diferen-cial. Os requisitos dos papéis a desempenhar são, no senconjunto, bem definidos. Manifestam claramente as res-postas esperadas a estímulos comuns. Quando conhecidas-,por ambos os protagonistas de uma interação, elas for-necerão, durante a troca, a "estabilidade de significação"'procurada. As partes entram na sua interação "pré-fabri-cadas", processada pela sociedade, com os significados dosseus atos firmemente ligados às suas possíveis ações, commuita antecedência, como acessórios do papel assumido.Os significados não são negociáveis; são dados logo noinício ou algum tempo antes do início, e o único resul-tado de um afastamento será uma distorção na comu-nicação. Mas, então, todos os espectros aterradores de ummundo em desordem e imprevisível voltarão prontamente.São mantidos a uma distância segura, na medida em quecada um se agarra ao papel que lhe foi atribuído;e a aceitação incondicional do quinhão de cada um nadistribuição essencialmente desigual de prêmios que asociedade pode oferecer é a conditio sine qua non de ummundo ordenado.

Tal atração, como a que possuía a versão parsonianada teoria de Durkheim, pode ser atribuída à solução irre-sistivelmente fácil que lhe oferece o terrível sentimentode incerteza que brota da opacidade da condição humana.A docilidade é o único preço que se pede a cada um pelasua segurança: e os bens (só no caso de cada um respei-tar as suas dívidas) serão certamente entregues no mo*mento do pagamento. Ao mesmo tempo, os custos dainsolvencia foram elevados a alturas astronômicas; a esco?lha consiste agora entre a ordem e o caos, a segurançae o pandemônio, o paraíso tranqüilo e o inferno em fúria.Face a face com tal escolha, é fácil comportar-se comdocilidade e aceitar o seu quinhão, por mais pobre e in-justo que pareça: pelo que parece, não há alternativa:O modelo parsoráano de "natureza social" suprime aalternativa, que é a função mais distinta e importantede todas as ideologias conservadoras dominantes. Ao apre-sentar esta supressão como, na sua essência, uma questãode valores que os indivíduos respeitam e a que obedecem,

A "SEGUNDA NATUREZA" DEEFICADA 45

(ele empresta força às atrações ideológicas: a idéia está.sintonizada com a fórmula estabelecida de sabedoria elegitimidade.

A coerção é necessária — esta é a mensagem centralda teoria parsoniana. Diga-se de passagem que a teoriatem uma qualidade convincente, como deveria ter toda.a afirmação apoiada pela ciência e que reafirmasse prin-•eípios intuitivos do senso comum. A linha Durkheim-parsons em sociologia é uma elaboração dos principaistemas da experiência do senso comum e, dentro dosTiorizontes desta experiência, a única elaboração inteligí-vel. Quando a situação da vida humana é constituída portroca de mercado, considerado como o único mecanismoatravés do qual as condições de sobrevivência individualpoderão ser satisfeitas, o indivíduo não pode senão tratar•de reorganizar o seu ambiente social em sintonia com os.seus interesses e os desejos que inspiram; mas da mesmamaneira agirão também todos os outros. O mundo quedaí resulta seria, na melhor das hipóteses, tecnicamenteinsustentável, e, na pior das hipóteses, seria um infernopintado por um surrealista, se de fato não houvesse umaou outra forma de coerção. Poder-se-ia dizer que estaliberdade tipo mercado exige a coerção como suplementonecessário; sem ela, nunca poderia proporcionar condi-ções suficientes para a sobrevivência da sociedade ou, naverdade, para a sobrevivência do indivíduo. A mensagemde Parsons não é, portanto, uma mentira. Pelo contrá-rio, vem a dar no que parece ser uma descrição justae consciente da sociedade, tal como ela é e como nós aconhecemos. Enquanto vivermos e desejarmos permanecervivos numa sociedade organizada como "uma estruturada oportunidade para satisfação de um individualismoegoísta",22 não podemos deixar de considerar como umpesadelo (e chamemos-lhe "lei da selva") a ausência deum poder coercivo suficientemente forte para reprimir opróprio individualismo egoísta que ansiámos por satis-fazer. Se há uma contradição entre estes desejos, nãoé de forma alguma causada pela fraqueza da razão hu-mana, e não pode ser corrigida com o melhoramentoda lógica humana: de fato, é uma reflexão da incompati-

22 Manfred Stanley, "The Structures of Doubt", in Toward theSocwlogy of Knowledge, org. por Gunther W. Remmling, Routledge& Kegan Paul, Londres, 1973, p. 430.

Page 25: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

46 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

bilidade genuína entre comandos igualmente poderososda situação existencial — uma situação de que não hásaída, nem boa nem sem ambigüidades. E assim, a coer-ção é inevitável. A única escolha possível, no âmbito do.mercado institucionalizado, é entre uma coerção "dura"e uma coerção "suave"; pelo menos, desde Kant, temossido escrupulosos em distinguir entre compulsão vinda"de fora" e compulsão vinda "de dentro", e em avaliá-lasdiferentemente. Preferimos uma coerção internalizada àcoerção brutalmente imposta do exterior, usando a forçafísica quando falha a doutrinação. Neste sentido, Parsonsdeu-nos a descrição da boa sociedade; uma descrição quepodemos considerar realista, porque não transcende ohorizonte do presente, mas que pinta a sociedade comoela poderia ser, e não como ela é na realidade. A socie-dade de Durkheim-Parsons está inteiramente fundadanuma coerção "suave"; é uma sociedade bem sucedida;que, graças ao triunfo do seu poder moral, pode muitobem renunciar ao uso da força física. Esta sociedade podeser vista como uma projeção utópica do princípio domercado liberal. Por esta razão — ao mesmo tempo queelimina alternativas a este princípio a partir de uma gamade opções consideradas viáveis e dignas de uma argumen-tação bem informada — poderá desempenhar um papelcrítico, concorrendo para conduzir a "humanização" deuma condição essencialmente inumana aos seus limitesacessíveis. É, portanto, um "reformatório dentro de umaatitude conservadora", imbuída e codificada de acordocom uma visão da realidade social que postula a coerçãocomo inevitável, mas considerando supérfluas as formas-mais cruéis da coerção. O seu pendor utópico pode serposto em relevo quando os homens estão face à face cotíia alternativa mais feia que luta para se realizar; daí acelebração do "durksonianismo" inspirado pela descober-ta dos horrores nazis e stalinistas; e a adoção do "durkso-nianismo" no Leste Comunista, por parte do movimentointelectual suavemente crítico, suavemente conservador oumoderado.

Uma versão do sistema durkheimiano porém atraia crítica imanente da "consciência coletiva" até aos seusúltimos limites, trazendo à luz o caráter opressivo con-tido na forma "suave" da própria coerção. Foi unicamenteGoffman que atacou abertamente e rejeitou categorica-mente o "modelo de menino de escola" que sublinha a

A "SEGUNDA NATUREZA" DEOTCADA 47

imagem da sociedade como se se tratasse sobretudo d&uma instituição educacional, com os seus modestos salpi-cos de medidas correcionais — modelo que Goffmanridiculariza em sua própria descrição:

Se uma pessoa deseja preservar uma certa imagem desi mesma e depositar nela os seus sentimentos., terá quêse esforçar para adquirir os méritos que lhe permitirãocomprar esse auto-engrandecimento; se tentar atingir osfins através de meios ilícitos, enganando ou roubando,essa pessoa será punida, desqualificada da corrida, ou.pelo menos obrigada a recomeçar do princípio.

Pode-se distinguir facilmente, por trás desta descri-ção, a visão nobre da sociedade como força moral essenrcialmente humanizadora, que tanto a poesia de Durkheimcomo a prosa de Parsons inteligentemente promoveram:No "durksonianismo", a confiança mútua baseada naintegridade e na honestidade é o "santuário" em direçãodo qual a sociedade caminha esforçadamente e que todasas suas instituições lutam com denodo para conquistar;Se algo é suprimido no caminho, esse algo são os instin-tos animais e o egoísmo a-social de indivíduos que pei>manecem traiçoeiros e indignos, até serem submetidos aum tratamento de redenção social. Sem a sociedade, oshomens são rudes, cruéis e desonestos; graças ao podercoercivo da "consciência coletiva" (ou do núcleo de valo-res centrais), eles são transformados em seres morais.

De forma alguma — diz Erving Goffman. Recém-saído do tumulto originado pelo macarthismo, Goffmanapressou-se em articular a descoberta titubeante da ge-ração: a fúria que assola uma sociedade quando empol-gada pelo zelo da sua missão moralizadora. Esta desco-berta proporcionou a Goffman o seu motivo mais impor-tante, e talvez único, que repete obsessivamente em todaa sua obra. A nova experiência estava ali, pronta paraser traduzida em palavras. Mas Goffman, em sintonia como hábito estabelecido de longa data — de fazer sociologiasem história —, fez mais do que isso: ele aplicou osachados intuitivos de uma geração a um outro modelogeral de sociedade. O que havia sido feito por seres hu-manos que remendam sua história foi polido e apresen*tado como uma outra face da "segunda natureza".

E assim vimos a saber, através de Goffman, que_aliberdade que um ser humano pode possuir é obtida, não-

Page 26: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

48 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

sgraças à sociedade, mas apesar da sua vigilância intrusa.A questão central na relação indivíduo-sociedade não é,«como o durksonianismo nos levaria a crer, a imersãoalegre e gratificante, ainda que controlada pela sociedade,da pessoa nas águas refrescantes, purificadoras, humani-•zadoras de ideais e receitas de posse da sociedade. Emvez disso, esse ponto central é a arte precária e aleatória•cia rendição, ou de uma pretensa rendição, a uma série demandamentos tão mesquinhos quanto é humanamentepossível, a fim de se ser autorizado a gozar da sua exis-tência virtual, e sempre solitária. A socialização, maisuma vez em marcada oposição ao durksonianismo, é opreço pago em troca de uma emancipação precária detuna insuportável vigilância social, ao invés do caminhoreal que conduza a uma existência verdadeira, total ehumana. A sociedade e o indivíduo, longe de imitaremo professor benevolente e o aluno diligente, têm umasemelhança surpreendente com regateadores desconfiadosum do outro, manhosos e malévolos. Contudo, não iriamtão longe a ponto de aniquilar a outra parte ou privá-la«tá sua propriedade; precisam dela tanto quanto pro-curam enganá-la e tirar o melhor partido à sua custa.Para sempre entrelaçados num jogo de ódio-amor, seumaior prazer será manter a outra parte a uma distânciaSegura, e estará sempre pronta a receber a promessa de•que o outro comportar-se-á "como lhe compete compor-tar-se", como condição do armistício.

1 Se a pessoa estiver disposta a sujeitar-se a um controlesocial informal — se estiver disposta a descobrir, por"dicas", olhares e outros sinais, qual é o seu lugar e amantê-lo — então não haverá objeção a que mobílie esselugar à sua discrição, com todo o conforto, a elegância,e o bom gosto que a sua esperteza lhe puder propor-cionar ... A vida social é uma coisa bem arrumada,ordenada, porque a pessoa voluntariamente se mantém

; a distância de lugares, assuntos e momentos em quenão é desejada e onde poderia ser maltratada, se se atre-vesse a ir. 23

E assim, a sociedade é ainda a "dura realidade" queconfronta o indivíduo com a teimosia e a impermeabili-dade das coisas, mas é a realidade de um monte de con-

3 Erving Goffman, "On Face Work", in Interation Ritual, Penguin,1967, pp. 42-3.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 49

venções e desculpas, de pretensões falsas e "mentirasbrancas", em vez de ser um conjunto de princípios éticose majestosos. A sociedade emerge da pena de Goffmancomo um logro gigantesco, remendada por uma quanti-dade de decepções e de jogos de confiança. É um sistemapseudomoral, dentro do qual legiões de indivíduos estãoligados uns aos outros por meio de cordéis feitos dedevoções hipócritas e de atos fingidos. Todos fingem fazeralgo que nem fazem nem desejam fazer. A sociedade,portanto, é novamente colocada no banco dos réus deonde o durksonianismo tanto se esforçou por tirá-la. Estánovamente reduzida às limitações puras e simples, aonegativismo eo ipso, a um conjunto de marcos frontei-riços ao invés de postos-guia, objetivando impor uma von-tade, que abandona a ação, e não a impor uma vontadeque conduza a ela. A regra da sociedade é sustentadapelo conformismo maciço dos indivíduos — não se trataaqui de afastamento do axioma do durksonianismo. Maso que leva a sociedade a subsistir é, na opinião deGoffman, a multidão de seres humanos, que se conser-vam meramente obedientes nos lugares a que lhes foidito pertencerem, pondo ansiosamente a máscara que lhesé oferecida pela sociedade, e de vez em quando emitindoruídos apropriados que indicam que eles gostam da más-cara e que não a trocariam por nada deste mundo. "Talvezo princípio fundamental da ordem ritual não seja a jus-tiça mas a face." Na verdade, pouco restou do romancelírico da besta enobrecida ou da epopéia do monstro cari-nhoso em animal racional. O que resta da realidade social,o que o indivíduo deve ainda aprender e escrupulosamenteobservar, o que o indivíduo está ainda proibido de desa-fiar, o que é apresentado ao indivíduo como uma reali-dade não infringível, dura e "objetiva" — é um conjuntoparticular de regras que regulam o processo de regateara face e as fronteiras do domínio privado. Estas regrasreferem-se à comunicação entre os homens, à maneiracomo essa comunicação se torna significativa e eficiente,mas não ao conteúdo da mensagem. Não são as crenças,mas as regras do jogo que mantêm unidas as peças daordem social goffmanesca.

O que se troca nos encontros entre os homens, quese combinam num todo chamado "sociedade", são im-pressões 'e não bens. As partes dão umas às outras "dicas"que ajudam o alter a localizar o seu protagonista no

Page 27: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

50 A CIÊNCIA DA NÃO<-LlBERDADE

mapa cognitivo. A localização, pelo menos assim parece,é o importante, e não a obtenção de outros benefíciosmais tangíveis, que podem derivar da interação. Poder-se-iasupor (ainda que Goffman nunca o diga em tantas pala-vras) que o que os homens procuram é, antes de maisnada, uma certeza cognitiva e a segurança emocional queacompanha essa certeza. O inferno é o Outro — dir-se-iacom Sartre; a simples presença do Outro torna o meu"quê" problemático, põe em questão a evidência confor-tante, o "dado" da minha existência, e compromete-me,desfaz-me de coisas que eu de boa vontade guardariapara mim mesmo. O sentimento de ser constantementevigiado pelo Outro, de ser observado, espiado, avaliado,é uma fonte de medo constante. A sociedade ajuda-nos:abre uma imensa loja com mascaras protetoras, com dis-farces, como roupagens fingidas, por detrás das quaispodemos nos esconder, tornando assim o nosso próprio"quê" opaco, impermeável ao olho indesejável. Da livreexpansão da verdade e da autenticidade, fugimos parao refúgio seguro da tenda de circo, onde cada um pre-tende ser uma pessoa diferente, onde todos estão cientesde que os outros não são aquilo que purecem ser, mas jáninguém se importa de saber o que eles "realmente" são.Uma vez posta a máscara do palhaço, as pessoas estãodispostas a usufruir tanto prazer quanto possível damímica. Uma vez que temos que fazer o jogo, vamosjogar à larga.

E assim, o que o indivíduo oferece na interaçãosão apenas expressões. Das duas espécies de expressões— "a expressão que ele 'dá' e a expressão que 'deixaescapar'" — a segunda, que "abrange um grande raio deação que os outros podem tratar como sintomáticodo agente, na expectativa de que a ação foi realizadapor outras razões que não a informação transmitida destamaneira"24, veio a desempenhar um papel cada vez maiscentral nos escritos de Goffman — da mesma maneiraque desempenha, em sua opinião, na vida social como tal.Não é suficiente ser X e comportar-se da maneira queos outros esperam que X se comporte; uma pessoa temainda que convencer os outros de que na verdade ele secomporta como X, que ele "é" X. A segunda necessidade

2* Erwing Goffman, The Presewtation of Selif in Everydwy: LDoubleday, 1959, p. 3.

A "SEGUNDA NATUREZA" DEIFICADA 51

chega a fazer sombra à primeira; parece que de fatoelimina a primeira ou, pelo menos, torna-se independentedela. A opinião de que a segunda foi construída sobreos alicerces da primeira (transmitir e disseminar esteponto de vista é a verdadeira intenção por detrás dasegunda categoria de expressões) reflete, mais uma vez,falsas pretensões e não uma conexão necessária. De fato,o sair-se primorosamente da primeira expressão não éuma condição suficiente para um êxito total; o queé mais, não é sequer a condição necessária de tal êxito.A exibição é uma arte separada nos encontros sociaise talvez a única arte que mantém o delicado tecido socialem equilíbrio. Como resultado, o que é chamado "reali-dade social" apresenta-se ao indivíduo como sendo nãosomente ingovernável, mas também impenetrável. Eleprocura certamente penetrar através das máscaras quecobrem as faces dos seus interlocutores no drama da vida.— mas as simulações empilharam-se umas sobre asoutras e, tal como a fascinante descoberta de Peer Gyntde Ibsen, não há "medula" na cebola, há simplesmentecamada sobre camada, por mais conscientemente que seprocure penetrar na "profundidade última". A imagemde Goffman pretende explicar não só por que experimen-tamos a "sociedade" como uma realidade, mas tambémpor que esta realidade é opaca e, afinal de contas, im-permeável ao nosso olhar. Ficamos com a impressão deque a sociedade deve permanecer assim para sobreviver.O jogo de simulações é a essência de toda e cada umadas nossas relações sociais. O esforço despendido pararomper o nevoeiro resultará, quando muito, numa cadeiasem fim de aproximações, sempre dificilmente conclusivas,

Para Durkheim, para ser humano, o indivíduo temde abraçar a moralidade que a sociedade propõe e apoia.Para Goffman, para uma pessoa ser ela mesma, tem dedefender-se contra a sociedade, usando os instrumentosos disfarce produzidos por essa mesma sociedade. A idéiada "segunda natureza" percorreu assim o círculo com-pleto. Começou, no início dos tempos modernos, como umtecido de relações de poder > legislado pelo homem, quepode ter, em princípio, violado as "leis da natureza".Através de uma "negação da negação", verdadeiramentedialética, emergiu, com Goffman, como uma "obrigação"em que cada um toma parte, ao gerá-la e mantê-la viva,mas dificilmente por deliberação própria, e sem nunca

Page 28: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

•\

52 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

poder observar a estrutura no seu conjunto total. Cabeagora ao indivíduo estabelecer os padrões da naturezahumana. In interiare homine habitai veritas. A sociedadeé mais uma vez vista como um colarinho muito aper-tado. Quando muito, tende a obscurecer e a confundira verdade humana: coloca-se entre o indivíduo e a sua•verdade; gera a imoralidade e alimenta-se da imorali-dade. A sociedade passa-a ser apreendida como puro nega-tivismo; é algo que o indivíduo tem que combater durantetoda a sua vida. Ele pode, como de fato acontece, adap-tar-se a estas condições de luta perpétua, mas o resul-tado da adaptação não é certamente a "humanização"durksoniana. A sociedade é degradada; tendo sido outrorao locus natural e logicamente indispensável da vida hu-mana, encontra-se reduzida agora a um ambiente inóspitoe exigente.

A reviravolta na percepção da "segunda natureza",exemplificada por Goffman, pode ser apresentada alter-nativamente como um ulterior "descascar da cebola" darealidade social. A experiência da limitação havia sidoatribuída, a princípio, a instituições políticas deficientes.A descoberta de que espécie de sociologia, como "ciênciada sociedade", foi trazida à luz consistiu em revelar umaoutra realidade, mais profunda e menos atraente, pordetrás do reino da política; isto foi concebido, sobretudo,como se se tratasse de material idealizado mas, de qual-quer maneira, sedimentado e endurecido a ponto de con-frontar qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos coma força de "coisas" genuínas. A análise intensiva da tessi-tura desses sedimentos, assim como do processo de sedi-mentação, levou, no final, para além da camada dasinstituições sociais, em direção dos próprios indivíduos,que constituem a fonte última de toda e qualquer insti-tuição e "realidade social". É a tentativa de continuar adescascar a cebola da realidade social que levou à procla-mação, um tanto pretensiosa, da crise atual da sociologia.

A "SEGUNDA NATUREZA" E O SENSO COMUM

A sociologia, ^tal como a conhecemos, nasceu da in-vestieação do regular, do invariável, do ingovernável nacondição humana. Nos seus momentos de maior zelo efervor religioso, tende a conceber a sua própria atividade

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 53

em termos de uma cruzada da ciência contra "a noçãomística do livre arbítrio"25. Em termos mais sóbrios,mais seculares, a sociologia aceita de boa vontade asidiossincrasias do indivíduo, mas declara-as cientifica-mente não interessantes: o campo da investigação socio-lógica começa onde o único, o irrepetível e o insubstituívelterminam. Não nega a liberdade humana; simplesmentea expulsa para além das fronteiras da investigação cien-tífica. Esta última só faz sentido quando se preocupa coma não-liberdade da uniformidade.

A sociologia, tal como a conhecemos, investiga as"condições" do normal mas, ao mesmo tempo, as "causas"do anormal. O "normal" é, no seu significado pré-predi-cativo, intencional, tudo aquilo que é recorrente, repetí-vel, rotineiro, tudo aquilo que se espera que aconteçavezes após vezes dentro do território demarcado pelo olhohumano interessado. O anormal é, eo ipso, tudo aquiloque não deveria acontecer sob dadas condições, mas queaconteceu.

Nada é bizarro em si mesmo. A extravagância de umfenômeno nunca é um atributo seu — embora seja istoque a figura comum de linguagem nos levaria a crer.Percebemos um acontecimento ou um objeto como extra-vagante quando "sobressai" no meio do ambiente insípidoe incolor da monotonia. Mas o ambiente, por sua vez, é oproduto de uma percepção seletiva: é o ato de semearsemente-padrão que transforma outras flores em ervasdaninhas. Faz pouco sentido, portanto, culpar os soció-logos por ignorarem ou minimizarem o papel dos fatoresindividuais (irregulares, por definição). Esta "negligên-cia" é tão "orgânica" para a atividade da sociologia comoo seu interesse constitutivo na natureza da realidadesocial; uma, em certo sentido, deriva da outra.

A notória dificuldade experimentada pelos sociólogosbona fide sempre que se esforçam por levar em conside-ração o subjetivo, o espontâneo, o único (nos seus pró-prios termos e não nos termos da sua marginalidade oucaráter obsoleto, da perspectiva de um todo supra-subje-tivo) — é uma característica imanente da sociologia, pro-vavelmente jamais superada dentro deste projeto inte-lectual. Todo conhecimento sistematizado do processo da28 Como, recentemente, Barry Hindess demonstrou em sua críticado livro Homo Soeiologicus, de Dahrendorf. THES N. 143, 12 July1974.

Page 29: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

54 A CIÊNCIA DA NÃO-LffiERDADE

yida humana, incluindo a sociologia, é uma tentativa paraemprestar inteligibilidade e coesão à experiência desor-ganizada, desordenada do senso comum; é uma elabora-ção sofisticada sobre o senso comum no seu estado bruto,um refinamento teórico da matéria-prima do "diretamen-te dado". Este conhecimento pode ser cético e crítico dascrenças ingênuas do senso comum — uma atitude deque a sociologia estabelecida se sente justamente orgu-lhosa. Mas a experiência do senso comum continuarásempre a ser o locus onde as pesquisas e os conceitossociológicos são gerados — e o cordão umbilical que ligao conhecimento dos fenômenos humanos ao senso comumjamais será cortado. O senso comum é o objeto último daexploração sociológica, no mesmo processo inescapável emque a natureza é o objeto último da ciência natural. Mes-mo, a sua ingênua confiança na "realidade objetiva" dosocial deve-a a sociologia à experiência pré-predicativada não^liberdade confirmada pelo senso comum. É estaexperiência que proporciona o fundamento último, e único,da,realidade social e, portanto, da sociologia, como umaatividade intelectual legítima, com um objeto legítimo e".objetivo".

Porém, o problema com a evidência dada pelo sensocomum é o seu caráter equívoco. Não contém informaçãosobre a determinação externa do destino e da condutahumanos. Pelo contrário, essa evidência de uma resistên-cia teimosa e quase natural à vontade humana só podeser vista como um corolário da manifestação dessa mes-ma vontade. A experiência da liberdade só é possível quan-do se tem a sensação de dominar uma força exterior,força que é apreendida como "real", por causa da suaresistência. Analogamente, a sensação da não-liberdade,apresentada como percepção da realidade, só se mani-festa sob a forma de derrota de um projeto impulsionadopela vontade humana. Os aspectos da experiência quepodem ser articulados, respectivamente, como liberdadee não-liberdade ou aparecem em conjunção ou então nãoaparecem de forma alguma. O conhecimento da não-liberdade (limitações, natureza, realidade — toda estafamília de conceitos, sem qualquer sentido, a menos quesejam atribuídos à mesma fonte pré-predicativa) sem in-tuição da liberdade é tão absurdo e, na verdade inconce-bível, como a experiência da liberdade não acompanhadapelo conhecimento das suas limitações potenciais ou reais.

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 55

Daí, qualquer sistema de conhecimento (incluindo asociologia) que descreva a estrutura da não-liberdadeisoladamente é uma visão parcial da experiência humana,e precisa de construtos adicionais para excluir os compo-nentes pelos quais não se responsabiliza.

Continua à espera de ser provado, desta vez emdesacordo com o senso comum, que o que parece à expe-riência pristina, pré-predicativa como um ato livre, nas-cido do raciocínio e da escolha, é uma inevitabilidadeoculta e invisível a olho nu. Muito do desdém manifes-tado para com o senso comum, inscrito no projeto daciência, tem como sua fonte a pressuposta inabilidadeda experiência não-refinada para descobrir o necessárioe o aparato legal por detrás da fachada do livre arbítrio.Esta inépcia do senso comum, sem auxílio externo, paradescobrir a ordem rigidamente determinista do mundo epara responder pelas suas próprias causas ocultas pro-porciona também á matéria com que, por fim, se forjoua distinção entre "essência" e "existência". A impressãoque normalmente se dá, e que muitas vezes é deliberada-mente ampliada, de que o conhecimento científico é umimplacável inimigo do senso comum (quando, na reali-dade, permanece como o seu adjunto simbiótico) é devidaprincipalmente a esta circunstância. À ciência só se pedeque "explique" como nasce a necessidade do mundo exte-rior — já experimentado, como se fosse natureza — mastem que "provar", desafiando a experiência pré-científica,que o reino da necessidade abrange a totalidade dos pro-cessos da vida humana. A segunda tarefa, naturalmente,exige muito mais esforço e, conseqüentemente, gera umzelo muito maior. É, portanto, a segunda Unha de com-bate onde a artilharia mais pesada da ciência está con-centrada e onde se lançam os mais ferozes ataques.A guerra é feita entre a "ordem real das coisas" e asaparências enganadoras — a "noção mística do livre ar-bítrio".

Ambas as tarefas, diga-se de passagem, nascem dapremente necessidade gerada incessantemente pela expe-riência humana vivida. Os homens se deparam com umaresistência vinda de um reino nebuloso que não é comoaquelas coisas impenetráveis, duras, tangíveis que eleslivremente concebem como objetos. Como òeria de espe-rar, os homens continuamente se perguntam como esse-*<alg«", desprovido de todos os atributos dos objetos mate-

Page 30: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

56 A CIÊNCIA DA NÃO-LffiERDADE

riais, se comporta, contudo, como eles, ao estabelecerlimites aos movimentos humanos. A metáfora intuitivarequer uma substanciação inteligível e o enigma libertatodo o poder imaginativo de que a teorização e os esque-mas mentais se nutrem. Esta é a curiosidade cognitivadespertada pelo desconhecido e pelo incompreensível. Osconceitos produzidos como resposta têm por finalidadedar sentido, ordem, à experiência ininteligível. A mensa-gem contida nesta experiência é clara; porém a sua estru-tura não o é.

Mas a outra tarefa não é sustentada com menoransiedade pelo processo da vida. A experiência do livrearbítrio não é, de forma alguma, um sentimento agra-dável. Com muito maior freqüência, é psicologicamenteinsuportável num mundo construído como um naipe desortes que poderiam ser tiradas, mas que podem ser per-didas. Num mundo assim, o livre arbítrio é experimen-tado como um "fardo insuportável"26, como "vertigem"que "ocorre quando a liberdade põe os olhos na sua possi-bilidade"27. Um homem não pode tolerar facilmente pconhecimento de que a sua situação é o produto da suaescolha, de que o seu fracasso é da sua responsabilidade.Liberdade significa escolha, e a escolha é — se for reale se sinceramente se preocupar com as encruzilhadas ecom as opções que contam — uma verdadeira agonia queos homens temem mais que qualquer outra coisa nomundo. Cada opção de escolha tem uma aparência deirrevogabilidade; cada caminho escolhido significa o aban-dono total de outros. A escolha é, portanto, o portãoatravés do qual o sentido de finalidade entra na existên-cia humana, em disponibilidade e esperançosa; a escolhaé o ponto em que o passado não negociável se encontracom o futuro acessível. A experiência da liberdade é, por-tanto, uma fonte inexaurível de temor. Se a experiênciada natureza desperta curiosidade e energia criativa ("so-mente em nome de alguma coisa não gerada por mimposso eu usurpar a carência da criação") 28, esta outraexperiência gera uma ânsia angustiante de evasão. Não

a« Rollo May. in Existential P&ychology, org. Rollo May, RandomHouse, Nova York, H969, p. 90.2? Soeren Kierkegaard, The Conce.pt of Dread, Pinceton UniversityPress, 1944, p. 55. Trad. por Walter Lowrie.28 Leszek Kolakowski, Obecnosc Mitu, Instytut Literacki, Paris, 1972',p. 29

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 57

é o conhecimento, desbravando o caminho para a açãolivre, que é procurado mas, pelo contrário, o que é pro-curado é uma autoridade poderosa, que contradiga aevidência da experiência, expondo a sua fragilidade e a suainsegurança. O que se deseja acima de tudo é a remoçãodo fardo da responsabilidade. O livre arbítrio em si mes-mo é um poço insondável de ansiedade. O livre arbítrio,concebido como a única causa de limitação, irrevogabili-dade e finalidade no destino humano, é um autênticopesadelo.

Deus é por isso gerado em ambos os pólos da expe-riência humana. No "pólo da realidade", como Aquele quepôs o relógio do mundo a trabalhar. No "pólo do livrearbítrio", como Aquele que predeterminou o destino e aconduta humanos, ao mesmo tempo que recusa às criatu-ras humanas a capacidade de discernir o inevitável, pordetrás do espectro das suas decisões livres. No primeiropólo, Ele não passa de um nome para o obviamenteconhecido; pouco acrescenta ao conteúdo da experiênciahumana. Porém, no segundo pólo, Ele é um estranho,uma força poderosa, que suprime e remodela os dadosda experiência. É aqui que Ele é particularmente dese-jado e mais intensamente temido. Aqui a Sua presençanão contém a sua própria comprovação e exige toda áemoção e poder da crença para lançar raízes. Ingênuae intuitivamente, os homens conhecem a sua responsa-bilidade, mas temem o conhecimento e desejam supri-mi-lo. Se experimentam a sua relação com o mundo comoum antagonismo, sentem-se muito mais confortáveis, sea peça em que participam como atores for posta emcena e dirigida por um diretor autoritário e poderoso.Talvez não seja a frustração em si mesma, mas a cons-ciência da sua própria falta é que origina a maior partedo sofrimento e que é mais difícil de suportar.

A religião sempre construiu o seu poder espiritualsobre esta necessidade essencial que nasce da confronta-ção dos homens com o mundo em que habitam. Os sacer-dotes, revestidos de todos os seus' paramentos, sejam elesos dos "formuladores religiosos" de Radin, sejam os dos"xamãs" de Eliade, sempre atuaram como intermediáriosentre o Diretor e o ator que ele movimenta no palco, sem.dar a conhecer as suas intenções ou o desfecho do enredo.Cada ator sabia apenas a sua parte, e só podia conjectu-rar que ela se encaixaria, de qualquer maneira, algures,.

Page 31: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

58 A CIÊNCIA DÁ NÃO-LIBERDADE

«as partes dos outros membros do elenco, combinando-se•num todo significativo. Mas não havia uma prova con-clusiva a partir do que sabia. Bem fundo no seu coração,sentiu-se atormentado por uma suspeita terrível sobre aisua própria capacidade de tomar parte no espetáculo:a vida nada mais era que uma sombra em movimento;«era uma lenda narrada por um louco, cheia de som e defúria, e sem significado algum... Mas admitir isto para;si mesmo, articular este pavor intolerável, era recusar-se aatuar, era rejeitar a vida e escolher a morte. A função•dos sacerdotes consistiu em fazer o máximo para que«, suspeita nunca subisse à superfície; nesse sentido,•cooperaram com a estrutura do processo da vida, fabri-cada pelo homem, planeada de tal maneira a nunca dar•oportunidade para as perguntas últimas e para as esco-lhas finais. Os sacerdotes tiveram que montar uma estra-tégia convincente para a existência do Diretor. E então'tiveram que interpretar o Seu projeto, nunca reveladopelo próprio Autor na presença dos não-iniciados. Tive-ram que demonstrar o significado escondido por detrás«do absurdo, o plano por detrás da cadeia fortuita dos•acontecimentos desconexos, a suprema lógica espreitandoatravés da cadeia sem fim de derrotas pessoais. A crença•de que não se é mais que um peão nas mãos de umjogador superior remove a infelicidade da má sorte. É umacrença benigna, caritativa.

Seu antagonista é a doutrina do livre arbítrio.~& a idéia do livre arbítrio, incessantemente sugerida pela•experiência diária, que tem que ser suprimida em pri-meiro lugar, para que Deus alivie os homens da consciên-cia atormentadora da imensa tarefa que têm a realizar.A função terapêutica de Deus na reconciliação dos ho-mens com o seu destino não pode estar completa enquantoos últimos restos da doutrina do livre arbítrio permane-cerem pendentes da consciência humana. O Pelagianis-mo foi, portanto, a mais traiçoeira e subversiva de todas•as heresias com que a religião teve que se haver. A opinião*de Pelágio era que a graça de Deus é um prêmio pararecompensar o mérito do homem e não a sua condição.Esta opinião podfria facilmente arruinar o desígnio tera-pêutico da Igreja: se fosse aceita, os homens teriam quelutar para conseguir a graça de Deus e culpar-se a simesmos se essa graça não viesse — isto é, teriam que>experimentar todas as angústias que procuravam evitar

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 59

ao abraçar a fé em Deus. Foi, portanto, contra Pelágioque Sto. Agostinho disparou as suas setas mais vene-nosas. Ao assim proceder, ele formulou a teoria originaldo desvio, que mais tarde seria retomada e reformuladapelo durksonianismo: a graça de Deus precede todoo mérito e é a condição preliminar, necessária da virtudehumana. Esta última é inconcebível sem a ativa inter-venção de Deus. Se o homem se desencaminhar, sedesafiar os mandamentos de Deus, se tentar sustentar-senos seus próprios pés — o pecado é o único resultadopossível. Nenhum mérito está à espera do homem na suajornada para a independência. A distância que adota emrelação a Deus é a medida do seu desvio. No meio dosrestos desmoronados e decompostos da civilização maisgrandiosa que o gênero humano havia conhecido atéentão, com o terror do grande Bárbaro Desconhecido àbeira dos portões. Agostinho evocou Deus como o últimorefúgio de terreno sólido no meio do terremoto: "Comum aguilhão escondido, Vós fizeste-me ver que eu vivereiintranqüilo até que chegue o momento em que os olhosda minha mente Vos vejam com segurança."29 O bemestá na crença em Deus. Desde a sua queda, o livre arbí-trio do homem, se não for auxiliado por Deus, só podelevar ao pecado mórbido. Só a graça de Deus pode enchero recipiente vazio da vontade com o desejo de fazer o bem.Poder-se-ia dizer, em antecipação das futuras divagaçõesdo antipelagianismo agostiniano: há "mais além" umaforça poderosa que faz do homem um ser moral. Paraescapar das perversões que o esperam no meio do desertoda vontade que se considera livre, o homem tem que"abraçar Aquele que o criou", tem que adaptar-se à suacondição, aceitando-a voluntariamente e com espírito degratidão.

A sociedade durksoniana deificada herdará mais tardeesses potenciais redentores de Deus. A visão durksonianaretomará o desprezo agostiniano pela carne pecadora ebestificada e a localização moralmente enobrecedora dareunião com Deus nas altas regiões do espírito — o situsda crença, da confiança, e da autolimitação. A sociologiadurksoniana retomará a função tradicional do sacerdote:a interpretação da ordem supra-individual, modelando o

29 Cf. An Augustine Synthesis, org. por G.E. Przywara, Nova York;.p. 75.

Page 32: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

60 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

inescrutável em inteligibilidade, impondo uma lógica,férrea a acontecimentos aparentemente irracionais e for-tuitos, emprestando significado ao destino humano, apa-rentemente desprovido de sentido. Ao contrário do quedisse Nietzsche, Deus não está morto. A desmistificação-da comunidade humana tomou a forma de deificação das-fontes comunitárias da não-liberdade individual. O esfor-ço perpétuo para satisfazer as necessidades cognitivas eemocionais, fomentadas por uma experiência diária, ainda,não parou. Não é provável que isso jamais venha a acon-tecer.

Seja qual for a veracidade dos modelos sociológicos,e a confiança que merece a sua verificação, eles devemmuito da sua credibilidade ao grau de inteligibilidade queemprestam à experiência humana multiforme, e à sua.preocupação em estabelecer os critérios de aceitabilidade,,tais como são fixados pelos anseios determinados pelaexperiência. Em outras palavras, quanto mais probabili-dade tem um modelo sociológico de ser absorvido pelasabedoria do senso comum e, com o tempo, de ser perce-bido como óbvio, tanto mais forte é o seu argumento afavor da inevitabilidade que reside no cenário da vidahumana e tanto maior é o alívio oferecido para a "ver-tigem da liberdade". As principais conceptualizações socio-lógicas da experiência pré-predicativa sempre se distin-*>guiram pela sua capacidade de demonstrar o determinis-mo da ação humana e de revelar o sentido oculto dosfenômenos cuja sabedoria e utilidade não eram imediata-mente aparentes.

Esta era, na verdade, a tendência ubíqua no tipoprevalecente de sociologia, exemplificada pelo durksonia-nismo. Queixas injustificadas como as que foram feitascontra o pretenso conceito "super-socializado" do homemproclamado por esta sociologia foram descabidas, uma vezque ^ o conceito de socialização não era uma descriçãoempírica do comportamento humano, mas um postuladoanalítico relacionado com a graça de Deus, e destinadoà mesma função: tornar o destino humano inteligível esuportável. Longe de ser um erro que deveria ser facil-mente corrigido-em benefício do paradigma dominante,tem sido o seu atributo sine qua non e a fonte supremada sua fortaleza. Nenhuma outra forma secular parecedisponível para promover a idéia do caráter essencial-mente determinado da conduta humana. Se a sociedade

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 61

substituísse Deus no papel de fonte da necessidade,;a socialização seria um substituto natural para as fontesdas necessidades humanas operadas por Deus.

A socialização é, na verdade, um substituto quaseBenéfico. De um só lance, vai de encontro aos apelos•cognitivos e emocionais feitos por ambos os pólos daexperiência humana: ata um pólo ao outro, criando umasituação na qual as fórmulas explicativas anexas a cadaum se confirmam e se fortalecem mutuamente. Para.a questão cognitiva: — "Que é parecido com a naturezano cenário humano?" — a resposta é: — "As idéiasmorais apoiadas socialmente que confrontam o homemcom a teimosa realidade das coisas." Para a ansiedadeemocional que brota da experiência da liberdade e daescolha há uma resposta que deriva da primeira e é seucomplemento: — o livre arbítrio é uma ilusão, pois o quequer que façamos foi instilado no espírito do homem pelasidéias absorvidas do ambiente social em que se encontra;as mesmas idéias morais (culturais e normativas) quea sociedade vem inculcando no homem desde o seu nasci-mento. É a sociedade, portanto, que simultaneamente fazdo homem aquilo que é e assume essa responsabilidade.A sociologia combateu a "ilusão do livre arbítrio" coma fúria e o ardor com que anteriormente se manifestou adoutrina religiosa da providência. O fato de a religiãoter combatido o livre-arbítrio como heresia, ao passo quea sociologia o combateu como uma noção "mística", isto é,não científica, não pode ocultar a impressionante afini-dade de atitudes e propósitos intelectuais.

Na sociologia fundamentalista, como na religiãofundamentalista, o principal, "nobre" determinismo naconduta humana tem tido, porém, constantemente, umcompetidor: uma espécie diferente de determinismo;normalmente avaliado como um pouco inferior, menosdigno, mais fácil de se alijar, ainda que nunca inteira-mente eliminável. Esta característica de um determinis-mo dual ou de fontes duais de inevitabilidade no com-portamento humano talvez deva a sua persistência,também, à experiência do senso comum, cuja evidênciaarticula. Trata-se, porém, de um aspecto diferente da expe-riência que ele reflete. Desta vez, não é a ruptura essen-cial da experiência em limitações de caráter natural e aintuição do livre-arbítrio, mas a percepção de atos valori-zados diferencialmente, divididos em recomendáveis e con-

Page 33: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

<Í2 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

denáveis, permitidos e proibidos por um poder superior— algumas vezes sentidos como se estivessem situados"dentro", e outras vezes vindos de fora do indivíduoatuante. Todo o sistema é uma limitação, uma exclusãode algumas ocorrências em favor de outras — e os siste^mas sociais, que traçam a estrutura exterior da vidahumana, não são exceção a esta regra. Daí ser o elemento1

maniqueísta na experiência intuitiva bastante universal,,apresentando, em todos os tempos, um problema compli-cado para a visão fundamentalista do mundo. Para sercompleta e coesa, tal visão do mundo tinha que respon-der pelo fato de que, apesar da presença de um poder(Deus, sociedade) superior e, em essência, benévolo (bom,humano), há atos que ocorrem numa base mais ou menospermanente, que não podem ser tolerados e que devemser avaliados como negativos (pecado, desvio). As res-postas a este desafio ocuparam todo um "continuum",desde a solução inteiramente maniqueísta até a que tudofez para se ver livre de qualquer vestígio maniqueísta,e que, no final, pôs em questão a onipotência do podercentral. Como sabemos, a doutrina oficial da IgrejaCristã assumiu uma atitude claramente antimaniqueísta:Aceitou-se, novamente, desde o tempo de Sto. Agostinho,que o mal é um fenômeno puramente negativo e nãooutra "substância": o mal é a não-posse da graça e nasceda inabilidade da criatura humana, fraca e imperfeita,É

em alcançar o "algo" a ela prescrito na mente de Deus;a possibilidade de que Deus possa ser menos que onipo-tente, ou — pior ainda — de que possa ser uma fontedo mal, da mesma maneira que uma fonte do bem, foiconsiderada inaceitável. Não na sociologia. As suas solu-ções foram, no seu conjunto, afins da tradição cristã, namedida em que nunca sé permitiu a ninguém duvidarde que os atos desviantes são uma realidade, apesar datendência dominante da sociedade, e não como um resul-tado dessa sociedade. Em todos os outros aspectos, porém,a tradição sociológica foi muito mais tolerante para comas idéias maniqueístas. Por um lado, a ocorrência de atosdesviantes e, por definição, disruptivos, foram atribuídosà imperfeição técnica de muitos meios aplicados pelasociedade para conservar os seus membros sob controle— à sociedade que não estava completamente à alturadas suas responsabilidades.. Por outro lado, particular-mente na tradição Adam Smith-Max Weber, os desvios

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM

do paradigma "normal" patrocinado pela sociedade eramatribuídos à irracionalidade intrínseca, ou residual, daação humana — e, em particular, às camadas emocio-nais, não-intelectuais da personalidade humana. A incom-patibilidade essencial do afetuoso e do racional, da emo-ção e da razão tem sido uma verdade inquestionávelvirtualmente para todos os sociólogos; a superioridade da*segunda sobre a primeira tem sido considerada como um,axioma, embora variem os termos em que tem sido ar-ticulada. Tanto por Comte como por Weber, esta supe-rioridade foi organizada através de Unhas históricas.— sendo o sistema racional superior ao sistema fundado»sobre a afeição — e foi assim projetada como o eixo doprogresso social. Os sociólogos, no seu conjunto, põem-se:-ao lado da prática social que tende a denegrir, condenare suprimir inclinações definidas como "biológicas", deri-vadas da infra-estrutura do animal humano e em opo-?-sição às socialmente inspiradas e legitimadas. Eles, por--tanto, colocam a sua própria fórmula de objetividade-e de busca da verdade como a tendência histórica do-mundo humano como tal. Este tema está subjacente na&aclamação entusiástica de Comte no advento da eraiindustrial, esta era positiva que só encontrará o seu equi-valente numa ciência analogamente positiva das realida-des humanas. Pode-se encontrar o mesmo tema, emborasapresentado de uma maneira muito mais refinada, no»diagnóstico de Weber sobre a tendência para a sociedadelegal-racional. É esta sociedade, na qual os homens estão*cada dia mais dispostos a atuar de acordo com as regrasda racionalidade instrumental, que empresta a sançãoúltima à plausibilidade de uma ciência social objetiva:tipos ideais, colocando o comportamento de um agenteracional em dadas circunstâncias, aproximar-se-ão cadavez mais da conduta real em condições onde outras bases;da ação social e, acima de tudo, as bases tradicionais?;e afetivas, se afastam para as margens da vida social:O triunfo final do conhecimento objetivo sobre o emocio-nal, o subjetivo, o pré-social, encontra o seu paralelo na.tendência histórica para a institucionalização das objeti-ficações racionais de paradigmas de comportamento social-mente seletivos. A negligência, por parte dos sociólogos,,de aspectos não-racionais da experiência humana vai?sendo cada vez mais justificada pela eliminação consis-tente de tais aspectos, ou pela diminuição da sua impor-

Page 34: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

(54 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

tância social, como resultado do próprio desenvolvimentoígocial.

O raciocínio acima condiz muito bem com outra ten-dência da sociologia — isto é, a procura do significadoque as ocorrências extraem da sua relação com o con-junto do corpo social, e não das intenções dos seusagentes.- Kingsley Davis, em certo sentido, tinha razãoao declarar que um "método funcional" separado é ummito, e ao proclamar o conceito da função como sendoo elemento constitutivo da sociologia no seu todo. É ver-dade que o pensar em termos de "função" tem sidoseguramente muito mais difundido que qualquer escolaparticular que se tenha identificado com tal uso. Tendopressuposto, de uma vez para sempre, que é a sociedadeque define as condições da vida humana, que dá formaà "natureza" humana, os sociólogos puderam, sem argu-mento ulterior, descrever como o significado de um acon-tecimento social recorrente ou único, o seu papel namanutenção e perpetuação desta autêntica atividadeda sociedade. É o cálculo da função, portanto, e não•o cálculo lógico comum, que define o significado dos•costumes e ritos, instituições e usos. Já não é a razãoindividual de "lês phüosophes", mas a razão invisível, im-pessoal da sociedade que decide se um fenômeno socialtem, ou não, "sentido. O que parece absurdo e desprezívelpara a razão individual poderá ser claramente "lógico"quando visto segundo uma perspectiva mais ampla, obje-tiva e vantajosa da sociedade, de onde ressalta clara-mente a evidência da sua função. Se a razão de "lêsphüosophes" era protestante em espírito — todos os indi-víduos lêem a Bíblia e cada um tem o direito de interpre-tar o seu sentido — os sociólogos adotaram a corrente se-guida pela estratégia católica de comunicação com Deuspor meio de sacerdotes profissionais, que são os únicosque têm a capacidade e o direito de desvendar o sentido* o significado oculto dos supostamente inescrutáveisdesígnios de Deus.

A grande conquista de uma sociologia que se desen-volveu como a ciência da não-liberdade tem sido a uni-dade da sua ontologia, metodologia e função cognitiva.O domínio que a sociologia tem exercido com êxito sobrea imaginação humana é fortalecido pelo fato de que está"baseado nestas objetificações da realidade com que lida-mos todos os dias", que "meramente amplia o procedi-

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 65

mento diário e objetificar a realidade", como Habermasobservou de forma pertinente.30 É alimentado pela expe-riência pré-predicativa do processo vital, como essencial-mente não-livre, e da liberdade como um estado geradorde medo, e adequadamente fornece apostos cognitivos eválvulas de descarga emocionais a ambas as intuições.Simplesmente fortalece a intuição da não-liberdade, e asupremacia da condição exterior sobre os anseios indi-viduais. Torna esta não-liberdade menos intolerável, apli-cando a sua sabedoria inerente e a sua coerência. Ajudao indivíduo no seu esforço espontâneo de dispor de umaliberdade de escolha excessiva, e, portanto, repassada deansiedade, quer apresentando esta liberdade como ilusão,quer aconselhando-o de que tal liberdade é apoiada pelarazão que foi, de antemão, delimitada e definida pela so-ciedade, cujo poder de julgamento ele não pode desafiar;não só por causa da sua força superior, mas tambémporque a distinção entre razão e não-razão é sinônimode divisão entre sociedade e não-social, isto é, vida animal.

A sociologia, portanto, como a ciência da não-liber-dade, responde ao chamado do indivíduo perplexo, queprocura na sua própria experiência um significado quea torne aceitável. A sociologia aplaca essa experiênciaatormentada e confusa pela incompatibilidade da liber-dade individual com a realidade do processo vital, nãoda escolha do indivíduo. Salva o indivíduo dos tormen-tos da indecisão e da responsabilidade que ele não podesuportar em virtude da sua fraqueza, reduzindo drastica-mente o alcance de opções aceitáveis à medida do seupotencial "real". O preço que paga, porém, para desem-penhar um papel tão benigno e caritativo é o seu impactoessencialmente conservador sobre a sociedade a quemauxilia as pessoas a explicar e a compreender.

Tem-se tornado cada vez mais popular, principal-mente nos meios politicamente motivados, acusar a socio-logia estabelecida de uma vulgar "distorção da verdade",de se unir com os poderosos no louvor à sua ordem e noseu esforço para convencer os oprimidos e os ludibriadosda sua virtude intrínseca. Os críticos que desejam denun-ciar o papel genuíno da sociologia na luta de grupos e dassuas idéias tendem a olhar, ao que parece, na direção

80 Jurgen Habermas, Theory and Practice, Heinemann. Londres,1974, p. 8. Trad. por John Viertel.

Page 35: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

66 A CIÊNCIA DA NÃO-LffiERDADE

errada. Dão a impressão de que identificam a funçãopartidária com a propaganda em favor das qualidadessuperiores de um tipo específico do sistema social; daljulgarem que o seu caso (deles) será provado se pude-rem mostrar que os sociólogos, ao mesmo tempo quepretendem ser imparciais e objetivos, de fato levamsub-repticiamente para as suas descrições pretensamentenão-partidárias atitudes prenhes de valores partidários.Daí a análise do papel cultural da sociologia tomar muitasvezes a forma de uma "caça ao valor" peculiar. O "alvo"que os caçadores perseguem é a prova de que a socio-logia é uma "ideologia burguesa" e esta prova tomama forma de uma demonstração de que, explícita ou impli-citamente, a sociologia exalta as virtudes da sociedadeburguesa e inspira, ou procura inspirar, simpatia popularpelos seus atributos.

Os caçadores estão numa pista falsa. Repetidas vezesse tem pugnado a favor do "valor da liberdade" que asociologia tem atingido, ou tenta atingir, com êxito visível.Os sociólogos concordam com Comte, quando ele protes-tou contra o "pensamento metafísico", que exagerava"ridiculamente a influência da mente individual no curse»dos fenômenos humanos", e apelou para que se desse ànatureza do homem um "caráter solene de autoridade quesempre deve ser respeitado por uma legislação racional"— numa palavra, para que "assumisse o campo das rea-lidades observadas".31 Enquanto esta realidade observável'estiver desfraldada bem alto, acima do nível das magrascapacidades individuais, a verdade dos sociólogos esvoa-çará bem alto acima das verdades truncadas, parciais dosindivíduos ou grupos de indivíduos. A sociologia nãoicontém mais valores partidários do que a realidade queela descreve tem incorporado e cristalizado. Mas os soció-logos tomam uma decisão fatal: a de permaneceremtotalmente no campo dessa realidade, a de não transcen-dê-la, a de reconhecer como válida e digna de conheci-mento unicamente a informação que puder ser confron-tada com esta realidade, aqui e agora. As alternativasque esta realidade torna irrealistas, improváveis, fantás-ticas, a sociologia prontamente as declara utópicas e sem»interesse para à ciência. Nisto, e talvez só nisto, reside-

31 Da Filosofia Positiva. Tirado de Classical Statements, org. porMarcello Truzzi, Random House, Nova York, 1971, pp. 40-41.

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 61

o papel intrinsecamente conservador da sociologia como1

ciência da não-liberdade. A sociologia atua como o pressu-posto de que a realidade social é regular e está sujeitaa uniformidades recorrentes, monótonas; ao fazer talsuposição, a sociologia torna a realidade social tão con-forme quanto possível com essa descrição. Colocandoo problema dessa forma, os sociólogos perpetuam a crençano caráter "natural" dos arranjos sociais e não no seucaráter histórico. Em outras palavras, não é verdade queos sociólogos tomam atitudes conservadoras, a fim deemprestar apoio e exaltar as virtudes burguesas; elespoderão, inadvertidamente, emprestar tal apoio, se porcasualidade a realidade que eles "naturalizam" insti-tucionalizar tais virtudes; mas também prestariam serviço:

análogo se fossem outros princípios o objeto dessa insti-tucionalização.

A posição da "tecne" (em oposição a jogo, atos aoacaso, etc.) só poderá ser aplicada a objetos que sãoessencialmente constantes no seu comportamento e, por-tanto, predizíveis. Daí que considerar o mundo socialcomo natureza, sujeito a uma ciclacidade repetível des-crita como leis, é uma necessidade para todo o conheci-mento que se propõe servir os interesses técnicos dohomem. E a sociologia, tal como a conhecemos, desejana verdade servir tais interesses. Se se quiser que as insti-tuições humanas sejam tratadas como objetos de umamanipulação informada tecnologicamente, elas devem servistas como unidades da realidade natural, sujeitas à lei.Em todo caso, elas só interessam à sociologia na medidaem que se conformam com esse modelo. Como disse umavez Bernard Berelson com muita candura: "O fim últi-mo é compreender, explicar e predizer o comportamentohumano, da mesma maneira que os cientistas compreen-dem, explicam e predizem o comportamento das forçasfísicas ou das entidades biológicas ou, um pouco maispróximo de nós, o comportamento dos bens e dos preçosno mercado econômico."82 Nada mais natural que talfinalidade seja vista e retratada de uma forma tão im-parcial e tão livre quanto possível de compromissos ter-,renos, além do desejo universal do homem de conhecerpara agir. Dentro dos limites de uma dada sociedade,

32 Bernard Berelson, Introdiictíon to the Beha,vioural Sciences,Voice of America Fórum Lectures, Behavioural Sciences Series, p. 2>

Page 36: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

68 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

todo o conhecimento que tal finalidade possa vir a geraré, em certo sentido, imparcial. Na verdade, não há nadano próprio conhecimento (embora haja nas condiçõessociais circundantes) que predetermine a sua utilizaçãoexclusiva por uma parte da sociedade de preferência aoutra. O preconceito implícito de tal conhecimento residenoutra parte — na sua recusa teimosa (embora prudente,tendo em conta os seus fins) em transcender o horizontefixado unicamente pelos pré-requisitos do interesse técnico.Mas isto dificilmente pode ser sustentado contra o conhe-cimento que francamente dá a sua adesão ao serviçotécnico-instrumental. Para estar em paz consigo mesmo,permanecer fiel ao seu juramento e prestar os serviçosa que se comprometeu, a sociologia deve resistir resolu-tamente à tentação de ir além das fronteiras da realida-de, aqui e agora — o único objeto de uma ação efetivae tecnicamente sã.

George Lundberg, um dos mais corajosos intérpretesdo programa da sociologia positiva, podia estar justa-mente indignado quando posto face à face com as exigên-cias (ou acusações) de que a sociologia deve ser (ou é)um esforço politicamente empenhado:

Oponho-me a fazer da ciência a cauda de qualquer pa-pagaio político. .. Tenho acentuado bem que os cientistaspolíticos são indispensáveis a qualquer regime político.Os cientistas sociais fariam melhor se trabalhassem paraatingir um status correspondente... As ciências sociaisdo futuro não deverão ter a pretensão de ditar aos homenso fim da existência ou os ideais da luta. Limitar-se-ãoa traçar as alternativas possíveis, as conseqüências decada uma e a técnica mais eficiente para atingir quaisquerfins que o homem, de tempos a tempos, considerar dignosde serem perseguidos. .. Nenhum regime pode viver semisso. 33

Para ser justo, deve-se dizer que uma sociologiawertfrei esquivar-se-ia da inquietante questão da respon-sabilidade social dos cientistas de uma maneira tão na-tural como o têm feito os cientistas naturais, sendowertfrei como são, para satisfação de todos. Mas a questãoé que o fato de flue os seres humanos são objetos que asociologia ajuda ra manipular não coloca a questão da

33 George Lundberg, "The Future of the Social Sciences", SdentíficMonthly, outubro de 1941.

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 69

responsabilidade e do compromisso a uma luz qualitati-vamente diferente.

Na verdade, o ponto frisado por Lundberg é quasetrivialmente verdadeiro. Os golfos ideológicos entre osregimes não parecem ter muita relevância (salvo varia-ções históricas aberrantes) no seu interesse uniformementevivo — algumas vezes não reconhecido, mas sempre "obje-tivamente" presente — pela espécie de serviço técnicotão convincentemente exposto por Lundberg no seu pro-grama. Restam poucas dúvidas de que este programa érealmente "neutro", em termos de divisões ideológicas,o que quer dizer que, em termos daqueles modelos espe-cíficos da organização social, que os virtuais ou futurosgerentes dos processos sociais gostariam que a genteamasse ou, pelo menos, que materializasse e perpetuasseatravés do seu comportamento exemplar. Tal compromis-so partidário, como pode ser com razão imputado a esteprograma, é de natureza inteiramente diferente e atra-vessa campos políticos existentes (assim como possíveis,concebíveis).

Logicamente, a ciência social pode influenciar o com-portamento humano — realizar a função de "manobra" —de duas maneiras diferentes. Se a "manobra" consistir,por definição, em formular ou reformular um objeto pormeio de fatores externos a ele e elaborados sem a suaparticipação, então a distinção entre os dois é determi-nada pela própria estrutura da ação humana, como foiesquematicamente exposta:

Cultura

Motivos LimitaçõesEstruturais

Ação

Admitindo que os motivos do indivíduo permanecem(a não ser que sejam processados culturalmente) alémdo alcance dos fatores com os quais a ciência socialpropriamente dita lida (estes motivos podem ser afetadosdiretamente por meio de drogas, de cirurgia cerebral,etc.), restam ainda duas aberturas, através das quais umainfluência exterior pode penetrar no curso da ação e mo-

Page 37: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

< 70 A CIÊNCIA DA NÃO-LIBERDADE

difieá-la. A primeira é, de maneira geral, a abertura"cultural". Transporta aquelas asserções cognitivas e pre-ceitos normativos que o indivíduo emprega para avaliara situação que tem de enfrentar e para selecionar o cursode ação mais apropriado (mais apropriado, quer dizer,o mais recomendável num dos seus muitos sentidos,como, por exemplo, afetivo ou moralmente elevado). Osmotivos do indivíduo, processados por tais fatores cultu-xais e aplicados a fim de avaliar o valor relativo de dife-rentes cursos de ação, são, de fato, o significado do con-ceito mais geralmente usado da "definição da situação".«Os fatores que entram na ação, através da abertura•cultural, destinam-se precisamente à definição da situa-ção. Ao fornecer ao agente nova informação acerca doambiente, dele mesmo, e acerca das suas relações especí-ficas, com o conhecimento de novas maneiras de agir,ou com a imagem de possíveis fins da ação, estes fatoreslevam o agente a mudar a sua opinião sobre a situação

, e suas conseqüências eventuais, ou, pelo contrário, a for-talecer a sua adesão à definição anterior. Por exemplo,ao expor os laços íntimos entre os limites da gratificaçãoindividual e a liberdade de ação, por um lado, e asredes sociais do poder e da riqueza (normalmente invi-síveis ao olho individual não auxiliado), a experiênciaparticular do sofrimento e da frustração individual podeser transplantada de um esquema intelectual de "priva-ção do consumidor" para um esquema de "exploração declasse". De acordo com isso, uma ação subseqüente poderáser re-dirigida do contexto industrial, orientada para ocomércio, para um contexto total, de dedicação à socie-dade. Ou, estabelecendo a conexão entre os diversoscomponentes dos esforços e sucessos individuais numaunidade comunal, organizada como nação, poderá serfortalecida a tendência para considerar a nação comoo objeto de lealdade por excelência, juntamente com apropensão para um comportamento etnocêntrico.

Os fatores "culturais" apelam, portanto, para a cons-ciência individual. Tendem a alargar a visão individual,a apontar novos e insuspeitos horizontes, concorrendoassim para que 6 indivíduo possa rever e avaliar a expe-riência "bruta". A fim de ser aceito e, portanto, dê daruma nova forma à conduta do indivíduo, estes fatores•devem, em certo sentido, ir ao encontro dos anseios indi-viduais: devem ser apreendidos como sendo adequados à

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 71

experiência pessoal até então acumulada e sedimentadana memória privada e grupai do indivíduo. Esta aceitação(ou, por outro lado, a rejeição) está sujeita às regras dalógica (embora não necessariamente à verdade da mensa-gem, uma vez que são regras de lógica formal). Esses fato-res têm a probabilidade de ser adotados se "fizerem senti-do", isto é, se tornarem significativo e inteligível o conhe-cimento disponível da situação individual, e emprestaremcoerência aparente às miscelâneas desconexas da expe-riência individual anterior. A probabilidade da sua acei-tação aumentará ainda mais se, além disso, esses fatores

. (conseguirem indicar um processo presumivelmente segurode resolver uma tarefa considerada desagradável, ou esta-ibilizar uma situação considerada satisfatória. A suarejeição, por outro lado, não será, de forma alguma,inevitável, a não ser que pareçam contradizer claramentemm conhecimento armazenado anteriormente, apoiadopela experiência. Para concluir, os fatores culturais podem

•dirigir e re-dirigir a ação humana, ao oferecerem novas(perspectivas (fornecendo novo conhecimento fatual), ou

. ao "despertarem a consciência" (fornecendo novos valo-res). Em ambos os casos, eles alargam o raio de escolhascognitiva e moralmente acessíveis ao indivíduo. Por con-seguinte, os fatores culturais dão novas dimensões à liber-dade de ação do indivíduo.

Ora, todo e qualquer volume de experiência indivi-dual e/ou grupai é suscetível de mais de uma interpre-tação significativa. A "adequação" é, antes de mais nada,'uma questão de grau; em segundo lugar, ela dificilmentepode ser conclusivamente avaliada, a não ser que se sujeite;a um teste prático. Portanto, pode haver mais de umtesquema intelectual, que torne a experiência inteligível•e que adquira assim uma grande probabilidade de ser.aceita. E a aceitação ou rejeição é, no contexto geral,uma questão de competição e juízo prático. No processo,«estes aspectos da interação entre a experiência, fórmulasculturais e ação são revelados, depois de terem sido apre-sentados, de várias formas, sob o nome de ideologia. Sejaiqual for a definição que se dê ao termo "ideologia",.a verdade é que se refere a um fenômeno cuia essência.não é uma relação distorcida entre uma mensagem e a"realidade" que se propõe descrever, nem é uma atitudepartidária, não científica, supostamente impondo uma.certa ação por parte do seu autor. A atribuição do termo

Page 38: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

72 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

"ideológico" refere-se, de fato, à maneira específica pelaqual as idéias em questão — as que afetam as definiçõesindividuais da situação — são adotadas ou rejeitadascomo interpretações da realidade e guias da ação. O seuaparente partidarismo e inabilidade endêmica para seconformar com as estipulações severas do consensus; omnwresulta não tanto dos seus vícios intrínsecos e defeitosformais, como da diversidade persistente da situação eexperiência do indivíduo e do grupo que, em última aná-lise, utiliza a chave da práxis social.

A presença simultânea de várias fórmuias culturaiscompetitivas, juntamente com a impossibilidade áe avaliar,de antemão, a sua adequação em termos de experiênciasmultiformes de indivíduos e de grupos — para determinara sua possível aplicação — resulta numa "maquinaçãocultural" que adquire a forma de um discurso contínuo;em que as trocas verbais alternam com os testes práticos.A assimilação de uma fórmula cultural requer a atitudeativa da pessoa ou grupo cuja definição da situação deveser reformulada. No processo de esclarecimento, a inicia-tiva é talvez distribuída de uma forma desigual mas>à medida que o processo se desenvolve, a distinção entresujeitos e objetos da ação tende a se obscurecer. A in-fluência cultural possibilita a atividade do agente, tantoteórica como praticamente; coloca o agente numa situa-ção de escolha ativa e obriga-o a re-analisar a sua própriaconduta e a relação desta com o cenário social em quetem lugar. Fórmulas culturais novas e alternativas per-mitem ao agente assumir uma postura independente emrelação à sua própria atividade, abordá-la como um objetoque pode ser objetivamente escrutinado e avaliado comsegurança. Colocar o agente fora da sua rotina de vidapode ser um meio de libertá-lo das algemas do hábito,irremovíveis enquanto não se reflete a respeito delas»

-Numa palavra, influenciar a ação humana através doprocesso de esclarecimento, por meio do discurso culturais,é tornar-se um agente da liberdade.

Ao contrário do componente cultural da ação huma-na, a estrutura "objetiva" da situação do agente, normal-mente apresentada como "limitações estruturais", tempouco a ver no que se refere aos fins e aos significadosda práxis do indivíduo ou do grupo: seu único papel, noesquema geral da ação, consiste em estabelecer os limites,extremos à "sensibilidade" do agente — classificando-

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 73

as possíveis ações em realísticas e abortivas. Ela deci-dirá quais os cursos de ação, dentre os que o indivíduo»ou o grupo podem tomar, têm mais probabilidades de-êxito, e quais os que estão fora de questão, desde o inicio.Em outras palavras, as limitações estruturais estabele-cem as fronteiras da liberdade individual ou grupai.O campo de liberdade poderá ser grande ou pequeno,,dependendo da maneira como a situação está estrutu-rada. Teoricamente, é possível reduzi-lo o suficiente paratornar a procura de um fim específico tão improvávelquanto um caso específico requer; ou porque um indi-víduo racional poria obstáculos a um esforço admitido-como irrealista, ou porque tal esforço, mesmo se, porfalta de informação relevante ou de compreensão, viesse-a ser feito, não o levaria a parte alguma. Esta qualidade-importante das limitações estruturais pode ser, em prin-cípio, explorada por quem quer que deseje que um indi-víduo ou um grupo tome ou abandone um curso especí-fico de ação. Desta vez, porém, a influência será exercidadiretamente sobre a estrutura da situação e não sobrea sua definição (isto é, no cenário exterior no qual a ação-tem lugar e não na consciência dos seus agentes). A efi-ciência de tal influência não dependerá da vontade de-aceitar o fim como verdadeiro ou moralmente justificado;certamente não inclui um discurso, e elimina a possibili-dade de intercâmbio de papel entre os participantes do>processo. Pelo contrário, assume a desigualdade perma-nente do status e a ruptura entre o sujeito e o objeto*de influência. Daí ser o conhecimento utilizado peloagente influente eficiente ou ineficiente, independente-mente da experiência dos objetos humanos cuja condutaele pretende modelar. Esta experiência é, portanto, irrele-vante e pode ser descartada no processo de verificação'(ou falsificação) do conhecimento em questão; e — na-medida em que tais condições permanecem constantes —aqueles objetos humanos podem, na verdade, ser encara-dos como "coisas", não diferentes dos objetos manipulados,com a ajuda das ciências naturais. Neste sentido, a insis-tência de Lundberg no caráter não-ideológico do conhe-cimento que ele se propõe perseguir está muito bem justi-ficada. O manuseio técnico-instrumental dos objetos hu-manos é, na verdade, um fundamento sobre o qual pode-ser erigida com segurança uma ciência empírico-analítica.bona ftáe dos fenômenos humanos.

Page 39: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

74 A CIÊNCIA DA NÃO-LffiERDAPE

A aplicação prática da ciência advogada por Lund--íberg pode ser descrita como uma situação-do-tipo-mani-pulável, distinta da previamente discutida manipulável-,pela-definição-da-situação. Para exemplificar o tipo-de-manipulação de Lundberg, consideremos uma situaçãotípica reduzida à forma diádica mais simples. Neste caso,o esquema de influência terá a seguinte forma:

i A vê-se confrontado com uma ação alternativa X ou Y;ii B deseja que A se lance à ação X;

ãii B pode então usar os meios disponíveis, quer paraaumentar as recompensas anexas a X, quer para au-mentar os castigos anexos a Y;

:iv De acordo com iii, A tem agora maior probabilidadede se lançar à ação X.

Se todos estes acontecimentos ocorrerem, podemos•dizer que B na verdade manipulou a ação de A, com•a ressalva importante, porém, de que, na situação des-crita acima, o que está sendo manipulado é a probabili-dade de uma ação específica e não a própria ação. Por"imensos que sejam os meios de B, ele nunca conseguiráter domínio total sobre a conduta de A, no sentido de•excluir todas as alternativas possíveis. A definição da si-tuação por parte de A é um anel fixo na cadeia de acon-tecimentos conducentes à decisão final. Mesmo assim,podemos ria verdade chegar bem perto de uma situaçãopraticamente indistinguível da "inevitabilidade", se B con-seguir elevar suficientemente o preço das alternativas.B faz isso manipulando diretamente as limitações estrutu-rais que delimitam a liberdade da escolha e a ação de A.

A, portanto, foi um objeto indireto da ação de B,••e a situação de A foi o objeto direto desta ação. O conheci-jnento que B tem exigiu que pusesse A na espécie demovimento que ele (B) quis, ao mesmo tempo que a sua-informação sobre a probabilidade estatística de uma açãoespecífica foi sendo aumentada ou diminuída, de acordocom os re-arranjos dos elementos da situação do agente.Se as imagens e definições fornecidas pela sociologia detipo durksoniarfo — destinada, acima de tudo, a satisfa-.ser a necessidade de inteligibilidade — só poderem exercer•o seu papel técnico-instrumental através da conscienti-zação dos agentes, a espécie de conhecimento que serveto segundo tipo de manipulação foi desenvolvido nas

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 75

•assim ehamadas "ciências de comportamento". Para obtertal conhecimento, temos que arranjar, nas palavras de

,B. F. Skinner, um "pedacinho repetível de comporta-mento" numa "cadeia causai consistindo em três anéis:l — uma operação realizada sobre o organismo, de fora— por exemplo, privação de água; 2 — uma condiçãointerna — por exemplo, uma sede psíquica ou psicológica;3 — uma espécie de comportamento — por exemplo,"beber". O segundo anel é, porém, "inútil no controle docomportamento, a não ser que possamos manipulá-lo". 34

Podemos, por conseguinte, ignorar este anel, como igno-ramos a "noção misteriosa do livre-arbítrio", como um•elemento que em nada contribuirá para os nossos resul-tados. Analiticamente, argumenta-se, o comportamento•humano não apresenta problemas essencialmente diferen-tes dos que se encontram, por exemplo, na investigação daconduta das moscas; e, quanto à última, só resta acres-centar que "se ninguém calculou a órbita de uma mosca,é simplesmente porque ninguém teve interesse suficiente

•«m fazê-lo". Bem, há ainda uma diferença: todo o conhe-cimento, se ao alcance de todos, pode, no caso dos homens(ainda que não no caso das moscas), converter-se numaprofecia autodestruidora. A esta objeção responde Skinner:"Poderá ter havido razões práticas para que os resultadosda sondagem em questão não pudessem ter sido retidos atédepois da eleição, mas este não poderia ter sido o caso numesforço puramente científico."35 O tipo de interesses técni-co-instrumentais que as ciências do comportamento aspiramservir não tem utilidade para a conscientização dos agentescontrolados. Se aparece em argumentos relacionados, éunicamente no papel de um obstáculo de que seria melhor

. desfazer-se inteiramente.Portanto, o conhecimento procurado no caso acima,

quando aplicado eficazmente, pode ser conservado fora doalcance dos indivíduos ou 'grupos cujo comportamentose propõe influenciar. Longe de ser um mero expedientetécnico, esta é uma característica integrante do conheci-mento em questão. Não pode senão polarizar os homensentre, os que pensam e atuam e aqueles sobre quem se vai34 B. F. Skinner, "The Scheme of Behaviour Explanation", in Phi-losophical Problems of the Social Sciences, org. por. David Bray-brooke, Macnrillan, 1965, p. 44.35- B. P. Skinner, "Is a Science of Human Behaviour Possible?", inibid., pp. 24-5.

Page 40: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

76 A CIÊNCIA DA NÃO-LlBERDADE

atuar, em sujeitos e objetos da ação. Não é verdade que talconhecimento ignora toda a consciência, todos os valores,,todos os fins — isto é, tudo o que é "subjetivo". O que talconhecimento expulsa para o campo das coisas irrelevan-tes são as motivações, as preferências, as normas e crenças,dos objetos do fortalecimento por meio de controle. Natu-ralmente, não há a intenção de se comunicar com eles ou,na verdade, reformá-los; nem sequer a questão do conheci-mento como diálogo pode ser colocada dentro do universo»do discurso definido pelo programa das ciências do com-portamento. Neste sentido; o produto das ciências do com-portamento é, na verdade, ideologicamente neutro, damesma maneira que a burocracia, cuja situação privile-giada emprega para perceber o mundo como manipulá-vel, sem se comprometer, a si mesmo, com qualquer fimespecífico de manipulação e colocando assim a manipula-ção como um problema técnico.

Mas, estará o intrumento técnico do conhecimento1

do comportamento à disposição de todos os que desejemempregá-lo para a consecução dos fins que advogam?Skinner tem certamente consciência do problema: "É ver-dade que só podemos controlar o comportamento na me-dida em que podemos controlar os fatores responsáveispor esse comportamento. O que um estudo científico sepropõe é dar-nos a possibilidade de fazer o melhor usapossível do controle que possuímos." Obviamente "nós"significa, aqui, as pessoas que já estão no controle dosrecursos necessários para a aplicação das descobertassobre comportamento. O tipo de conhecimento que asciências do comportamento procuram fornecer não inter-fere com a distribuição de meios existente; se outro usanão tiver, terá pelo menos o de um efeito de afunila-mento, acentuando e polarizando ainda mais as desigual-dades presentes. Portanto, "nós", em vez de universalizaro status humano em relação aos benefícios que a ciênciapode oferecer, divide os homens ainda mais em doisgrupos nitidamente desiguais. As maravilhas da "tecnolo-gia neutra" terão provavelmente mais utilidade para odiretor de uni| prisão do que para o prisioneiro; parao comandante militar do que para o soldado, para o ge-rente geral do que para um simples empregado, parao líder de um partido do que para o membro comum.A espécie de manipulação que é fornecida pelas ciênciasdo comportamento é, portanto, comprometida e parti-

"SEGUNDA NATUREZA" E SENSO COMUM 77

daria desde o início (embora não no modo ideológico nor-mal), no sentido de que fortalece a ruptura já existenteentre sujeitos e objetos da ação, os controladores e oscontrolados, os superiores e os subordinados — e tornaa sua eliminação ainda mais difícil do que sucederia deoutra maneira.

Não se deveria, contudo, descartar simplesmente oimpacto do esclarecimento ainda exercido, embora inad-vertidamente, pelas ciências do comportamento. A imagemdos homens e o mecanismo das suas ações propagado porestas ciências podem induzir à tendência de percebero mundo como um conjunto de objetos manipuláveis, e oprocesso vital como um conjunto de problemas técnicos,e não de problemas que, para serem resolvidos, exigemcomunicação e discurso. A ânsia de sabedoria e de signi-ficado degenera então numa demanda pela instruçãotécnica do tipo de "faça-o você mesmo", e o problemade uma vida significativa será reduzido ao princípio de"como conquistar amigos e influenciar pessoas", ou comoludibriar os seus próprios irmãos.

Dos dois tipos da sociologia, que atua programatica-mente como a ciência da não-liberdade, um deles, por-tanto, tende a fortalecer as duras realidades da vida paracom as quais o segundo tipo tende a levar os homensa se reconciliarem. Cada tipo, à sua maneira, desempenhana cultura um papel essencialmente conservador. Cadaum tende a suprimir, à sua maneira, as formas alterna-tivas de existência social e a identificar a situação criadahistoricamente, tanto conceitualmente como na prática,com a realidade de caráter natural.

Por melhor que uma tal sociologia sirva para a per-petuação da vida diária, informando a rotina mundanadiária (no seu papel-de-manipulação-pela-definição) e am-pliando a eficiência da rede de poder (no seu papel-de-manipulação-pela-situação), a sua inabilidade em respon-der pela incessante experiência da liberdade humana e emajudar a promover essa liberdade gera, repetidas vezes, a,discórdia e a rebelião.

Page 41: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

CAPÍTULO 2

CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA

Como vimos, é a experiência do sentido comum,vulgar, que empresta plausibilidade à explicação socioló-gica da existência humana. É graças a este apoio pode-roso e ubíquo que a sociologia pode negligenciar a tarefade "testar" e provar a legitimidade da sua própria ativi-dade. Sua legitimidade é aceita como certa, presumindo-seque brotou da experiência do cotidiano: é apenas o pro-cesso de mantê-la assim — isto é, o problema técnico daexatidão e precisão no desempenho da tarefa cuja validezestá fora de questão — que permanece problemática.

E assim, os sociólogos raramente se debruçam sobre-os alicerces do suntuoso edifício que erguem e adornamapenas a partir do andar térreo. Na verdade, a atitude,tomada pela sociologia para com a sua última razão de;

ser é surpreendentemente reminiscente dessa mistura pe-culiar de reticências embaraçosas e de desdém neurotica-mente ostensivo com os quais o "novo-rico", de origemhumilde, trata muitas vezes os seus antepassados. Oficial-mente, a sociologia é a crítica do senso comum. Na reali-dade, esta crítica nunca chega aos fundamentos e nuncatraz à luz os pressupostos partilhados que dão sentidotanto ao senso comum como à sociologia. É, talvez, pre-cisamente por causa deste parentesco íntimo que a socio-logia nunca se colocou a uma distância suficientementegrande do senso comum para que estas premissas tácitas

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 75»

se tornassem visíveis. Pragmaticamente, essa longa via-gem para fora dos centros de segurança indicaria clara-mente falta de esperteza. Questionar a confiança na evi^dência ontológica fornecida pelo senso comum eqüivale-1

ria, certamente, a um terremoto, que poderia facilmente-fazer desmoronar todo o edifício da ciência da não-liber-dade. Mesmo uma reflexão ingênua, filosoficamente pobre,;sobre a validez da experiência do senso comum revelacomo é grande a dose de segurança emocional e autocon-fiança depositada numa instituição tão frágil. Como diz*Robert Heilbroner: 1

Para a pessoa comum, criada na tradição do empirismo*ocidental, os objetos físicos parecem normalmente existir"por si mesmos", no tempo e no espaço, apresentando-se-como grupos dispersos de dados dos sentidos. Assim,também, os objetos sociais apresentam-se à maioria de-nós como coisas... Todas essas categorias da realidade-muitas vezes se apresentam à nossa consciência como sfrexistissem por si mesmos, com fronteiras definidas que>as separam de outros aspectos do universo social. Pormais abstratas que sejam, elas tendem a ser concebidas,tão distintamente como se fossem objetos que se pudessemagarrar e revolver nas mãos.

Como no parágrafo citado, o próprio início do es-crutínio revela duas coisas que a sociologia normalmente-reluta em discutir. Primeiro, o nosso conhecimento onto-lógico da "objetividade" das categorias da realidade está.fundamentalmente baseado no fato de que elas assim se;apresentam à pessoa comum; e esta aparência nunca.é simples e pura, mas o resultado de um complexo pro-cesso de treinamento. Segundo, a evidência de objetivi-dade supostamente inquebrantável é, de fato, constante-mente produzida e reproduzida por um processo intrinse-camente tautológico. As premissas ontológicas do empi-rismo baseiam a sua prova nas percepções do senso co-mum, as quais só fornecem tal prova porque elas mesmas;foram treinadas para esse fim, pelos pressupostos que se-propõem validar.

É deste processo circular de validação simulada queHusserl, e a fenomenologia, se propuseram libertar o nosso-conhecimento. Eles viram a maneira de realizar esta»1 Robert Heilbroner, "Through the Marxian Maze", Th& New YorfeReview o f Booka, vol. 18, N.° 4.

Page 42: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

80 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

-emancipação na crítica aos pressupostos do senso comum,tolerados em vez de conscientemente aceitos. Tendo con-cebido o processo do conhecimento como um campo fe-chado, hermeticamente selado, que é posto em movimen-to (e, por conseguinte, capaz de ser reformado) por simesmo, Husserl identificou a tarefa de assentar o conhe-cimento humano em alicerces sólidos e altamente resis-tentes, com a missão de purificar a experiência nuclear'dos detritos estranhos e inadmissíveis. O primeiro ele-mento a ser separado e banido foi precisamente o pres-suposto tácito da existência, sobre o qual foi construída«, crença da validez do exercício sociológico (assim como*de muitos outros exercícios semelhantes).

O projeto de Husserl foi mais a ressurreição de umavelha preocupação dos filósofos do que o levantamento de-uma questão ainda não colocada anteriormente. O seuimpacto devastador deveu-se ao fato de que Husserlformulou, publica e corajosamente, idéias não presentes«diariamente numa época em que o empirismo estavamuito bem estabelecido para se preocupar com a justi-ficação da autenticidade das suas pretensões. Potencial-mente, porém, elas permaneciam como parte integrante<la tradição filosófica ocidental, muito antes que Husserl

' as tivesse retirado do seu canto no depósito intelectual,para colocá-las novamente sob o foco "da análise filosó-fica. Na verdade, tais idéias eram correntes desde os pri-mórdios da tradição filosófica ocidental nos trabalhos dePlatão e Aristóteles. Foi Platão quem pôs em questão,mais de dois mil anos antes de Husserl, a solidez doconhecimento que decorre da "mera" existência de umfenômeno; a verdade real reside em idéias a-temporais«e pode ser procurada por meio da introspecção, por meio•de uma intimação não mediada pelo necessário. Pelamesma razão, eíe atribuiu à existência dos objetos umstatus um pouco inferior e, acima de tudo, instável, pro-"téico, acidental: daí esse genuíno conhecimento nãopoder assentar possivelmente sobre alicerces tão frágeisc tão movediços. Quanto a Aristóteles, este claramente«eparou a essência da existência, como uma categoria por•direito próprio e, — o mais importante — autônoma emrelação à existência. A informação de que "algo" é der-rama pouca luz sobre a questão: o "que" é isso? A exis-tência é acidental para a essência e, portanto, não aIlumina; por outro lado, a existência não está incluída

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 81

é, portanto, não pode brotar da essência das coisas. Esteultimo motivo, em particular, foi mais tarde largamentediscutido por Avicenna, e foi através dos seus trabalhosque chamou a atenção da moderna filosofia européia einteligentemente absorvido por ela. Com o advento deuma ciência casada com os interesses técnico-instrumen-tais, caminhou-se para o abandono gradual da "essência"como terra daninha na qual não podia florescer infor-mação útil com importância técnica.

O dilema essência-existência sempre chamou a aten-ção dos filósofos no contexto epistemológico. Sua impor-tância adveio-lhe da centralidade da questão: "Comosabemos aquilo que julgamos saber?" — ou, mais espe-cificamente: "Como podemos estar seguros da verdade donosso conhecimento?". A grande conquista da ciênciamoderna consiste, precisamente, no fato de que conse-guiu tornar as suas atividades diárias, e a utilidade dosseus resultados, independentes de qualquer resposta quese pudesse dar a estas perguntas, expulsando assim aspróprias perguntas para além das fronteiras do seu siste-ma auto-sustentado. Só no momento em que a ciênciaSe vê frente a frente com uma crise ontológica é quetais perguntas se tornam novamente um elo integral nasua lógica justificadora. Porém, uma vez que estas per-guntas não têm pontos de comunicação com as práticascotidianas comuns da ciência, é muito improvável que'elas alguma vez venham a ser impostas aos cientistaspela lógica das suas próprias pesquisas. Quando muito,elas virão de regiões normalmente consideradas exterio-res à ciência — mais uma vez uma ocorrência que éímuito improvável, dada a autonomia institucionalizadada comunidade científica. As assim chamadas ciênciassociais formam certamente uma exceção a esta regra:(devido à sua vasta audiência leiga e à sua decisão de•selecionar como seu sujeito a experiência acessível atravésdo senso comum, elas nunca conseguirão submeter o seu•objeto à sua direção exclusiva, ou fortificar a sua auto-nomia por intermédio dos meios comuns do elitismo pro-fissional mantido por auto-seleção. Seja qual for a razão,"as ciências sociais são as únicas organicamente incapa-zes de se purgar da questão epistemológica de uma vezpara sempre. Ao contrário das ciências naturais, os seusachados positivos e o seu significado puro dependem dire-tamente da posição tomada a respeito deste problema

Page 43: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

82 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

central. Por mais que se esforcem, as ciências sociais não»podem separar as questões epistemológicas do objeto queescolheram para investigar. Quer dizer, é destas questõesque depende, em última análise, a solidez da existênciados objetos sociais, "obviamente dados".

A esta questão deu Sto. Agostinho uma respostavirtualmente platônica, resposta que Husserl transforma-ria, mais tarde, em pedra angular da sua filosofia: "Tu,que desejas saber, sabes tu que existes? — Sei. — De ondesabes isso? — Não sei... — Sabes tu que pensas? — Sei.— Portanto, é verdade que pensas. — É verdade."2 Ne-nhuma certeza de existência é concedida ao pensamentohumano com tal força de evidência que torne redun-dante qualquer pergunta ulterior — fora da certeza do>próprio pensamento. O fato de pensar é a única reali-dade indubitável que é dada com tanta clareza que não!requer qualquer prova. Mais de doze séculos mais tardeDescartes dará o passo audacioso que Sto. Agostinho»prudentemente evitou: no famoso "cogito ergo sum", elesugerirá que a existência real do sujeito pensante, forado ato de pensar, é diretamente dada por meio da expe-riência não mediada: portanto, a questão de saber se ao>menos um objeto — o substratum do meu pensamento —existe, encontra uma resposta conclusiva no simples atode pensar. Dessa maneira, o sujeito pensante validasimultaneamente a essência e a existência. Pode-se obterinformação digna de confiança acerca de ambas da mes-ma fonte e através do mesmo ato. Esta foi, de fato, umapartida audaciosa e fatal da tradição filosófica anteriororiginada no velho sábio. O que Descartes realmentesugeriu é que a existência é tão necessária e tão consisrtente como a verdade da essência. Isto poderia ter desem-penhado um papel importante como ponto de partida naocasião em que as ciências que engatinhavam tinham quese precaver, cuidadosamente, de seus guardiães clericais— mas o remendo da reconciliação alegada foi algo quenão pôde se ocultar, por muito tempo, do olho do filósofo.Depois de Descartes, assim como antes dele, os filóso-fos continuaram a se dividir entre aqueles que denegriamas introspecções intelectuais, a favor das impressões sen-suais, e aqueles que — fiéis a Platão — não podiam senão»deplorar a falta de solidez do "empiriismo rastejante":

Tirado de Gordon Leff, Medieval Thought, Penguin, 1070, p. 39i.

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 83

Moses Hess foi, talvez, o primeiro que declarou aber-tamente como fraude a lógica majestosa do "cogito",Acentuou que Descartes não tinha qualquer direito, ba-seado unicamente no caráter óbvio da evidência, de pularda consciência do pensamento para o pressuposto da"substantia cogitans" e, daí, para a realidade das relaçõescausais, presumivelmente autorizadas pela mesma ime-diação. A" metáfora de Hess foi a de uma criança quese olhava no espelho e acreditava haver um outro objetoatrás da sua imagem; a criança espreita ansiosamentepor detrás do espelho e encontra apenas, para seu es-panto, uma superfície escura, impermeável a seus olhos.A conclusão é aterradora: ou conseguimos substanciaro nosso conhecimento por meio do próprio ato de pensar,ou ele repousará para sempre em areias movediças.Husserl, em certo sentido, retomou o empreendimentoonde Hess, que apenas o esboçara, o tinha abandonado.

Husserl não se contentaria senão em estabelecer, semsombra de dúvida, as condições sob as quais podemosobter e possuir um conhecimento que seja necessário,isto é, independente da existência contingente, essencial,no sentido de mostrar o que as coisas são na realidade,em vez de mostrar de que forma aparecem acidental-mente, e objetivo, no sentido de ser independente dequalquer significado arbitrário que um sujeito psico-lógico, objetivável, porventura deseje atribuir-lhe. Paraalcançar tal objetivo, Husserl propôs acabar com os milê-nios de separação da ontologia da epistemologia: às duasquestões, que constituíam duas disciplinas filosóficas, ouse pode responder juntamente ou então não se pode res-ponder. "Como sei eu?" e "O que são as coisas?" são,de fato, uma pergunta injusta e fraudulentamente sepa-rada em duas. O único conhecimento que eu posso possuiré precisamente o conhecimento sobre o que são as coisas.Conhecer é o conhecimento da essência, dos atributosinseparáveis das coisas. E conhecer é a única maneira emque a essência "existe". "Ser" é Bewusstsein — serconhecido; cogito e cogitatum, noesis e noema são, defato, conceitos que procuram apreender o mesmo atode conscientização, embora de ângulos diferentes. Noemarefere-se ao ato de noesis, visto de um ponto de vistade seus resultados; mas noesis refere-se a noema, vistocomo o seu modo de ser, de Bewusstsein. A única exis-tência das coisas que conhecemos bem, com clareza e sem

Page 44: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

84 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

dúvida, é precisamente a sua "dádiva"1 como essêneiaT- a espécie de conhecimento da existência implacavel-mente negado ou negligenciado por um emplrismo que1

se ^concentrou em aparências contingentes. Significado1,,essência, Bewusstsein são criados e mantidos juntos no1

único ato que é dado diretamente, obviamente, e semimediação: o ato da consciência intencional. Os conceitos'de sujeito e de objeto, que a filosofia dominante nos«ensinou a empregar para descrever o nosso mundo1

«e o nosso modo de ser nesse mundo, são puras abs-trações que ossificam aspectos arbitrariamente isolados<do Bewusstsein virtual.

Mas a verdade necessária, essencial e objetiva é es-condida da nossa introspecção pela "atitude nateal"— a maneira descuidada, ingênua de contemplar o inun-do, no qual os objetos nos aparecem como estando sim-plesmente presentes "aí", independentemente de noesis*A atitude natural é, certamente, pouco "natural"; é umproduto complexo de uma legião de pressupostos descontro-lados e de informações que são recebidas gratuitamente enunca examinadas. Não se pode seguir pelo caminho espi-nhoso que leva à verdade sem primeiro "perder" este mumtoque está inflamado de aparências vãs e crenças enganosas.A primeira coisa que se deve pôr de lado ê toda a infor-mação que possuímos ou julgamos possuir acerca da "exis-tência" das coisas. Não que as coisas não existam "além",mas a sua existência ou não-existência é simplesmente irre-levante para ir em busca da verdade, e a sua existênciaobjetivada "além", num modo diferente do Bewusstsein,nada pode acrescentar à sua essência.

Daí toda a série de "reduções transcendentais" quedevem ser realizadas, a fini de tornar pura a noesis, nãocontaminada por resíduos exteriores, acessível à nossaintrospecção. A série começa por "isolar" ou "suspender"a questão da existência. Simplesmente impedimos quetodas as considerações sobre a existência das coisas en-trem em nosso raciocínio. Mas há, ainda, outras reduções,e uma delas é a "redução monádica" — redução desti-nada a purificaj a consciência de todas as influências daCultura, que partilha com a existência a sua aparênciacontingente, não essencial. No final do longo processo deredução emerge uma subjetividade pura, totalmente puri-ficada de todos os pressupostos enganadores que se refe-rem à existência pressupostamente "lógica". Um dos mui-

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 85

tos pressupostos que foi reduzido e posto de parte no pro-cesso é a noção que os psicólogos têm da consciência indi-vidual, considerada como um "objeto" no espaço, que podeser objetivamente explorada "de fora" e devidamente des-crita numa linguagem objetivada. Assim, o sedimento dei-xado no fundo da solução, de onde todos os corpos estra-nhos foram escrupulosamente destilados, não é a psiqueindividual, mas a "subjetividade transcendental", que tempouco em comum com a substantia cogitans cartesiana.É posta em movimento pela intencionalidade, ao invésde pela causalidade. Tornou-se, por um ato de reduçãomúltipla, impermeável a laços causais com o mundo, des-critível em termos de relações entre os objetos.

Há várias maneiras pelas quais a crítica da socio-logia pode pedir inspiração à revolução filosófica hus-serliana. Todas, certamente, estão relacionadas com are-avaliação husserliana das realidades e não com os seusachados específicos e soluções propostas. Primeiro é arestauração husserliana da subjetividade ao status de umobjeto válido de conhecimento — de fato o único válido.Pode-se invocar, agora, a autoridade de Husserl ao ques-tionar os extremismos "behavioristas". O segundo, e maisimportante, é o significado peculiarmente ativo queHusserl, seguindo Brentano, deu à sua noção de subjeti-vidade: é uma entidade caracterizada, acima de tudo, pelasua intencionalidade, o único elemento ativo capaz degerar significados e, na verdade, criar as próprias coisasna sua sólida modalidade de Bewusstsein. Estes críticos,cansados do hábito irritante dos sociólogos de objetivarsignificados, de atribuí-los a entidades supra-individuais,tais como a sociedade ou a cultura, e de focalizar a aten-ção nos meios pelos quais estes significados são trazidosde "fora" para "dentro" da mente individual, poderãosaudar, com alívio, uma filosofia respeitável que oferecea sua autoridade no apoio à revogação da exploração.Pode-se começar agora pelo indivíduo como a origem pris-tina do seu mundo, ao mesmo tempo que se saboreia osentimento intelectualmente reconfortante de que estadecisão traz a emancipação de pressupostos apriorísticosindesejáveis, isto é, a genuína libertação das peias do sensocomum — esse critério perpétuo do sucesso do empreen-dimento científico declarado. Terceiro, o tratamento queHusserl dá ao significado fornece os meios para empres-tar consistência e coesão aos princípios metodológicos da

Page 45: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

86 CRÍTICA DA SOC/OLOGIA

hermenêutica. O significado (Meinung) não é apenas umderivado de "intenção" (meinen) ao invés de um atributodos objetos, mas também prove toda a informação sólidaacerca das coisas que se pode desejar. O significado nãoé algo que em princípio se possa e deva comparar comas coisas "tais como são", e que seja, portanto, imanente-mente limitado por essa espécie mórbida de subjetivida-de, cuja presença no pensamento científico exige cons-tante desculpa. Pelo contrário, o significado é simultanea-mente a única fonte e o único sentido de Bewusstsein— a única existência que pode ser legítima e sensivel-mente discutida por quem" quer que deseje apreendero verdadeiro conhecimento das coisas. Quarto, pode-sesentir, na emancipação da validade (Geltung) do signi-ficado em relação ao processo real de pensamento, a ma-neira de evitar as muitas ciladas metodológicas com asquais a exploração tradicional dos significados pareciaestar associada inseparavelmente. Segundo Husserl, sóa existência depende do pensar real, com o qual os psicó-logos lidam; não o sentido em si mesmo, situado na subje-tividade transcendental,;, Poder-se-ia, portanto, explorarvalidamente os significados, sem incorrer na maldição dosmetodólogos puristas que condenaram justamente os exer-cícios introspectivos pela sua considerável dependência àsidiossincrasias pessoais do pesquisador individual. O signi-ficado não é uma entidade localizada unicamente namente de um indivíduo empírico, mas algo transcenden-tal a cada consciência individual e, portanto, acessívela todos. A exploração do significado pode ser feita agorasem mediação: o domínio empírico, sujeito às técnicasintersubjetivas das observações científicas, não precisa serinvadido em nenhuma das,suas etapas. Os problemas in-trigantes da verificação intersubjetiva, que emerge sem-pre que (mas só quando) tal transgressão tem lugar,podem, portanto, ser evitados tranqüilamente. Através dosimples expediente de declarar o "referente objetivo" irre-levante para a questão da validez do significado, põe-sede lado a própria possibilidade de questionar a legitimi-dade de suas explorações. As definições essenciais dafenomenologia rodeiam o seu território com uma espessalinha de torreões e fossos que tornam a sua fortalezametodológica invulnerável. Pode-se concordar, na verda-de, com Fink ou Sheler, que a fenomenologia não podeser compreendida por quem não seja um fenomenolo-

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 87

gista, e que, uma vez que se é um fenomenologista,pode-se ver com equanimidade os ataques vindos de fora:estão condenados a fracassar no momento em que esbar-ram contra a fortaleza. Mesmo a objeção óbvia de quevários fenomenologistas, empregando fielmente o mesmométodo de redução, poderão chegar (como de fato che-gam) a intuições de significado sensivelmente diferentes,só faz sentido dentro da atividade organizada por noçõesde "verdade objetiva" ou "ser como realmente é em siinesmo": uma atividade a que Husserl explicitamentenega algo que se pareça com a autoridade última, conce-dendo-lhe, quando muito, um status parcial, derivado.A diversidade de intuições significa, talvez, que a práticade reduções se encontra um pouco longe da perfeição— mas dificilmente põe em dúvida a validez do métodocomo tal. Diga-se, de passagem, que Husserl nunca atri-tiuiu a atividade produtora do significado a "um" sujeitoconhecedor; os sujeitos conhecedores só podem tentar— às vezes sem êxito — penetrar, refletir sobre os signi-ficados que já foram "dados" pela subjetividade transcen-dental, um pouco à maneira como costumavam ser dadospelo Deus escolástico.

Praticamente, todos esses aspectos do projeto husser-liano podem inspirar uma espécie de pesquisa na qual astécnicas tradicionalmente identificadas com a atividadeempírica são relegadas a um status mais ou menos subal-terno. Em vez de fornecer, sem mais; a informação bus-cada acerca da "realidade", esses aspectos serão tratadosagora apenas como o minério bruto de onde se vai extrairc» verdadeiro metal. Na atividade empírica, a cadeia doraciocínio foi invertida. Husserl propôs a aplicação da re-dução múltipla para descobrir a "subjetividade transcen-dental", enterrada sob as numerosas camadas de abstra-ções objetivadas. Na pesquisa empírica, que o apelo deHusserl pode vir a gerar, a presença oculta da subjetivi-dade transcendental é assumida e a pergunta que se faz•é como, no fato real, esta presença torna o discurso hu-mano possível. Que esta subjetividade transcendental (sejaqual for o nome que denote este conceito) já se encontra,presente e em operação não é algo que precise de de-monstração. É tomada como já provada por Husserl<e, portanto, empregada como um elemento organizadorde dados, analítico, mesmo que não seja articuladoê seja, na realidade, inefável.

Page 46: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

88 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

Venho falando, até aqui, da inspiração que se podecolher no programa de Husserl, e não na sua filosofiacomo alicerce sobre o qual se poderia edificar um sistema,de conhecimento sociológico. A decisão foi deliberada.Embora haja poucos limites imanentes para interpretações*inspiradas, ainda que livres, erguer um sistema sociológi-co sobre os alicerces da fenomenologia de Husserl apre-senta problemas para os*quais, até hoje, ninguém ofere-ceu uma solução impecável. É verdade que a sociologiatem sido um nome familiar para um variegado conjuntode imagens e atividades que, às vezes, dificilmente secomunicam umas com as outras. Contudo, mesmo àsturras umas com as outras, estas imagens e atividadestêm sido reconhecidas como "sociológicas", por causa dasua referência comum ao espaço que se estende "entre"indivíduos humanos. Para ser classificada como socioló-gica, uma imagem ou uma atividade tem que se relacio-nar com o fenômeno da interação humana. Este ato.autodefinido transcende os desacordos mais veementesentre escolas, normalmente girando à volta do métodopor meio do qual este fenômeno deveria ser abordado,e a maneira como deveria ser conceituado. Quanto maisfiel se deseja permanecer aos princípios da fenomenologiahusserliana, porém, mais difícil se acha a tarefa de entrarneste campo, central como é para os interesses especifi-camente sociológicos.

Na verdade, como pode uma pessoa se responsabilizarpelo espaço "entre" os indivíduos, sem ter primeiro "liber-tado" a questão existencial em suspenso anteriormente?E será que tal "libertação" não cancelará as vantagensque a redução transcendental poderia oferecer? Estas per-guntas são, possivelmente, o obstáculo que a pesquisa,fenomenológica tem procurado contornar, até agora semêxito e, possivelmente, sem a esperança de jamais ser bemsucedida. A subjetividade transcendental, o objeto centralda exploração fenomenológica é, na verdade, uma enti-dade extra-individual, mas tem tanto em comum com,o espaço de interação entre os indivíduos como a cons-ciência de caráter husserliano tem com a consciência dospsicólogos ou da filosofia empírica inglesa — o que querdizer, absolutamente nada. A subjetividade transcendentalnão é uma entidade que possa ser objeto de uma ação?gerada pela ação humana, orientada para uma finalidade,ou modificada de acordo com essa finalidade; numa

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 8§»

lavra, não é um objeto-realidade. Quando muito, precede*majestosamente imperturbável e imutável, toda a açãoobjetivável. Para alcançá-la (e alcançar é precisamente o<fulcro da fenomenologia) é preciso comprometer-se commuitas coisas, sendo uma das mais cruciais o rompimento'com os fundamentos sobre os quais se erigiu o conheci-mento sociológico.

É verdade que Husserl, pelo menos na última fase.do seu trabalho, estava perfeitamente consciente destagrande debilidade do seu sistema — a que o tornou "in-comunicado" com os problemas mais vitais nascidos dasociologia e dos estudos culturais. É verdade que ele fez;tudo o que pôde para corrigir isso. Pode-se argüir, porém,,que ele não compreendeu a natureza da queixa inevitáveldos sociólogos. Ele não fez quase nada para demonstrara relevância da redução transcendental para a espécie deproblemas que a sociologia, a ciência cujo objeto é ainteração humana, tem de procurar solucionar. Em vezdisso, tentou mostrar (sacrificando uma boa parte da'sua pureza inicial, austera, incomprometida) que, com aredução transcendental sucessivamente alcançada, pode-seainda legitimar a idéia de um outro ser humano e, numpasso mais longo, de um grupo humano.

E assim, Husserl concebeu o problema como a neces-sidade de demonstrar a passagem legítima da subjetivi-dade transcendental para uma "inter"-subjetividade. Em,termos husserlianos, uma tal demonstração só seria váli-da se fosse possível mostrar que esta intersubjetividade.é. dada diretamente, ingenuamente, pré-predicativamente»dentro do Lebenswelt — a única fonte de conhecimento,,a nossa vida tal como a vivemos diariamente e como a.experimentamos antes de qualquer experiência teórica.Seja qual for a parte do Lebenswelt, a verdade é queela é dada como um modo de Empfindnis — "estandonas pontas dos meus dedos"; estando em disponibilidade*aqui e agora; acessível, sem a mediação de construtosteóricos produzidos por uma ciência que luta para selibertar do Lebenswelt e que, portanto, oculta com ver-gonha a sua origem, correndo as cortinas dos conceitosabstratos entre o homem e o mundo em que ele já vive.Podem outras subjetividades brotar diretamente desteLebenswelt, sem invocar os dados "existenciais" oferecidospela ciência? Pode-se mostrar que outras subjetividades

Page 47: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

90 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

são, na verdade, dadas sob esta forma única, pré-predica-itiva da Empfindnis?

O que se segue é tão engenhoso quão convincente.3

Um .certo número de experiências relevantes é dado inge-nuamente : a experiência do meu corpo (Kõrper); a expe-iriência da minha alma; a experiência da sua unidade(isto é, a experiência de que o meu Kõrper é uma Leib,

(ou seja, um corpo vivo, animado, uma entidade ativa);,a experiência da presença do outro Kõrper, que combina«om a descrição do meu corpo, conhecido por mim comoLeíb — eu vejo que estão vivos, que se movem, que fazemígestos, etc. E mais, eles estão, agora, exatamente no mes-mo lugar em que eu estava um momento antes. É umasituação, diz-nos Husserl, semelhante à da memória:<eu me lembro de um momento atrás, e experimento aminha memória de mim mesmo, simultaneamente coma minha experiência de mim mesmo agora — mas estasimultaneidade, sendo o fundamento da minha experiên-cia ingênua de* comunidade comigo mesmo, que transcendeo tempo, ainda não consegue ofuscar a distinção entre opassado e o presente. O mesmo se aplica à comunidadecom o outro: Ichliche Gemeinschaft mit mir selbst aisParallele zur Gemeinschaft mit Anderen.

A experiência de comunhão com outros só é possívelporque eu concebo o Outro como uma modificação inten-cional de mim mesmo. Esta é a característica única doOutro; não há outras coisas que sejam constituídas damesma maneira. É somente o Outro, em contraste com ascoisas comuns, que — ao mesmo tempo que é represen-tado como uma pessoa empírica — é, pela mesma razão,representado como uma subjetividade transcendental. Daíeu estender ao Outro um laço intencional de caráter comu-nitário; e o laço — e aqui surge a grande surpresa — é re-cíproco.

Este, na verdade, é o mais frágil de todos os pilaresque sustentam a ponte laboriosamente construída e quese destina a estabelecer uma conexão entre a fenomenolo-gia e a sociologia. O raciocínio elegante desenvolvido atéaqui foi inspirado na fenomenologia e não na .sociologia.Foi construído pára mostrar que uma pessoa pode perma-3 Para o esforço desesperado de Husserl em demonstrar a compa-tibilidade da fenomenologia com o problema sociológico, veja o exce-lente ensaio de René Toulemont, L'Essence de Ia société selon Husserl,Presses Universitaires de Prance, 1962.

A REVOLUÇÃO HUSSERLIANA 91

jiecer um fenomenólogo bona fide e ainda eximir os"outros" da "época". Até aqui tudo bem: a alegoriamnemônica é um instrumento válido num argumento filo-.sófico desta natureza. Porém, de repente, a reciprocidade.surge não se sabe de onde, mas certamente não da mesma•ordem de argumentação. Até então, havia sido apenas a"minha" atividade intelectual que levou à Bewusstseindo outro; mas agora, o outro começa, por sua vez, a atuar.Ele pode (ou possivelmente não pode) reciprocar a minhaoferta de comunidade. A subjetividade transcendental temestado inevitavelmente presente desde o início, teimosa-mente presente, mesmo se oculta. A intersubjetividade,porém, é constituída de uma maneira inteiramente dife-rente, sujeita a negociação e talvez a controvérsia entremais de um sujeito autônomo. Como assinalou convincen-temente Ervin Laszlo, o próprio conceito da "inter-subje-tividade" é "ou insolúvel ou espúrio" e, portanto, "ilegí-timo"; Laszlo argumenta que há dois tipos de discursovisivelmente diferentes — o realista, ao qual o conceito de"inter" pertence, e o céptico, do qual a "subjetividade"faz parte.

O tipo de significado aplicado a "inter" pressupõe váriasentidades e, portanto, o realismo até certo ponto e decerta forma. Por outro lado, a "subjetividade", se to-mada ao pé da letra, significa que, no que se refere aqualquer sujeito dado, existem conteúdos objetivos de ex-periência, e não necessariamente "outros", tais como elemesmo. Assim, "inter" pressupõe os muitos, e "subjeti-vidade" conota um só. 4

O cepticismo radical, de que a fenomenologia seorgulha e que justamente considera como o seu princi-pal título de distinção e de glória, dificilmente pode gerar"outros" como algo mais que conteúdos da experiência.Como agentes autônomos, "como eu mesmo", os outros sópodem ser substanciados se um argumento "a partirdo ato de ser" — que a fenomenologia enfaticamentedesautorizou — for restaurado aos seus direitos próprios.

Mas não é a fineza filosófica do argumento que nospreocupa aqui. Seguimos Husserl na esperança de encon-trar um fundamento no qual possamos basear uma crítica

4 Erwin Laszlo, Beyond Scepticism and Realism, Martinus Nijhoff,The Hague, 1966, p. 222.

Page 48: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

92 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

convincente da sociologia. Não encontramos nenhum.Husserl tem pouco a oferecer no capítulo da denúnciados erros originais da "ciência da não-liberdade", pre-ocupado, como está, em mpstrar que se pode purificar asua consciência sociológica, sem renunciar à sua fé feno-menológica. Este desejo de uma respeitabilidade sociológicaé tão avassalador gue o arrasta para áreas que poucossociólogos ousariam penetrar sem grande embaraço. Comovimos, Husserl legitimou a intersubjetividade ao postularum laço intencional reciprocado entre a subjetividade e osseus conteúdos. Apesar de duvidoso, é somente o primeiropasso para sociologizar — o que não é claramente umadas habilidades mais notáveis de Husserl. E assim verifi-camos que o Kulturwelt criado pela inter subjetividade (umhomólogo de Umwelt, gerado pela subjetividade), tem,,uma vez mais, por analogia, todas as faculdades constitu-tivas da subjetividade e, assim, gera a "natureza espaço--temporal da humanidade". Seu produto máximo é aGemeingeist, uma fotocópia fiel da mentalité cóllectivee dos grupos de valores centrais, nitidamente copiada,esta vez, numa máquina presumivelmente fenomenológica.A Gemeingeist está sedimentada em forma de cultura,que se manifesta, por sua vez, na "unidade de fins eação" — a característica mais proeminente e distinta dacomunidade ética, a contra-parte, também por analogia,da personalidade ética. E finalmente — este é o fracassamáximo da fenomenologia como uma tentativa abortadade uma crítica à sociologia — a sociedade pode ser con-cebida, sem violar os princípios fenornenológicos, comouma personalidade sintética. Para provar isso, Husserlinvoca os manes de Spencer, Novikovs, Lilienfields: assimcomo um corpo é feito de células, assim a sociedade éfeita de personalidades (sic!).

Die Gemeinschaftsperson, die gemeinschaftliche Geistig-keit... ist wiriclich und wahrhaft personel, es ist ein•wesenoberer Begriff da, der die individuelle Einzelpersonund die Gemeinschaftperson verbindet, es ist Analogie da±genau só wie Analogie da ist zwischen einer Zelle undeinem OMS Zellen gebauten Organismus, kein blosses BildSondem Gattungsgemeinschaft,

E estamos assim em face de um dilema sem soluçãoviável. Se aceitamos a lógica da legitimação da sociologiade Husserl, acabamos por vindicar a menos saborosa das

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 93

crenças que a "ciência da não-liberdade" quis que ado-tássemos — apresentada, ainda por cima, na mais primi-tiva das formas possíveis. Se, seguindo Laszlo, assi-nalamos as inconsistências imanentes da lógica de Husserl,vemo-nos absolutamente desprovidos de qualquer propostaque possamos considerar relevante para o problema quetemos em mãos: nossa opinião original — de que o progra-ma da fenomenologia, se escrupulosamente observado, nãopode gerar qualquer sociologia — vê-se reforçada. Quandomuito, torna-se uma declaração da ilegitimidade.da aven-tura sociológica. Se tomarmos a subjetividade a sério,a concepção dos interlocutores como sujeitos autônomostorna-se impossível. O conceito de espaço inter-individual,e a comunicação entre sujeitos autônomos só se tornamnão-problemáticos (e oferecem um objeto legítimo de es-tudo) , se a existência das "outras mentes" for axiomatica-mente afirmada. Mas então, todas as notórias dificuldadescom a subjetividade, por demais conhecidas na história dasociologia, voltam a levantar-se, e encontramo-nos maisuma vez no ponto zero. Como veremos mais tarde, o pro-blema não é de forma alguma uma coisa sem importância.A crítica da sociologia, correntemente feita, de maneiraostensiva, sob os auspícios da fenomenologia, emana, narealidade, de uma fonte diferente — a da filosofia exis-tencialista.

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA

Em oposição a Husserl, os existencialistas nunca sesentiram desnorteados pela existência dos outros; istonunca lhes ocorreu como um problema com o qual se temque lutar elaborando um fino tecido de sutis categoriasfilosóficas. A presença dos outros apresentou-se-lhes, pelocontrário, como o fato primordial da existência. A pre-sença dos outros, a comunicação com os outros, estandoimpregnadas de interação, eram todas partes integrantesdo self, e não atributos que poderiam ser adicionados,numa fase ulterior, ao self, já estabelecido e completo.Talvez a diferença possa ser atribuída ao fato de queHusserl, por um lado, e os existencialistas, por outro,perseguiam fins diferentes. A preocupação de Husserlfoi, sobretudo, de natureza "noética": as questões onto-lógicas, o problema do "que", caíram sob o seu escrutínio

Page 49: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

94 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

à medida em que Husserl julgava que os principais pro-blemas ontológicos e epistemológicos só teriam uma solu-ção satisfatória se fossem tratados conjuntamente, como?aspectos de uma questão central: "Como eu conheço?".No existencialismo, a questão do conhecimento, emboraconsiderada com seriedade, desempenha papel secundário.O motivo principal da filosofia existencialista é a buscada autêntica, não distorcida natureza do homem, e nãoo conhecimento não-distorcido que o homem pode adqui-rir. E o ponto de partida para esta demanda consiste,por assim dizer, precisamente em "libertar" aquelas essên-cias que Husserl desejou colocar no ponto fulcral da suaempresa filosófica. É a existência que constitui a reali-dade mais ruidosa, a mais inoportunamente presente,a mais inamovível e "pré-predicativa" da maneira-de-o--homem-estar-no-mundo. E este estar-no-mundo vinculaobjetos — coisas e outros seres humanos — desde o prin-cípio, como uma pré-condição para todo o filosofar, paraa própria existência. Como na famosa frase de Sartre— "a existência precede a essência" — é a essência quepode ser vista como um adendo artificial à experiênciaprimeva, submersa no vivo fluir da existência. O que nós,na nossa vida cotidiana, como resultado de um longo edoloroso treino, consideramos essência, são os subprodutosde uma existência não-autêntica, falsificada: um testemu-nho para os homens que fracassaram ou a quem não foipermitido ser eles mesmos.

No campo estruturado pela demanda do verdadeiroconhecimento, a presença dos outros não podia ser consi-derada como certa. Sem assumir a presença dos outroscomo certa, não se poderia embarcar na aventura da buscada verdadeira existência.

E assim todo o ser, desde o princípio, é ser-no-mundo,o que inclui estar-com-os-outros. Ora "estar-em" e "estar--com" são ambos definidos como consciência de que tal"não-eu" está presente, irremovível, e que isto apresentaum problema, estabelece uma relação, uma atitude, ummodus vivendi inevitável. O que se segue é que o únicoser que pode ser discutido — o único ser verdadeiro —é ,a condição Èumana de ser, a condição fundada nareflexão, e que contém a consciência do estado de sepa-ração do "conhecer-se a si mesmo". O "homem" é umconceito multifacetado que, tendo vinculado o corpohumano e as relações que ele condiciona, pode abarcar

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 95

mais do que a espécie de ser que os existencialistas consi-derariam especificamente humano. Daí a tendência paraintroduzir outras palavras que traduzem o modo especí-fico de o homem existir (Dasein em Heidegger, pour-soiem Sartre), palavras que põem em foco o modo refletivode ser e simultaneamente alijam aqueles significados daexistência que os homens podem partilhar com outrosseres animados ou inanimados. É só para os homens queestar-no-mundo significa a necessidade de definir-se a simesmo em relação a este mundo, traçando linhas divi-sórias entre eles e este mundo, defendendo o seu "eu"*contra influências do exterior, distinguindo entre os seusverdadeiros selves e as formas que o mundo exteriorprocura imprimir-lhes.

As tensões entre o "eu" e o mundo no qual o "eu'"está imerso estão, portanto, contidas na experiência pré--predicativa mais elementar e universal. Não são causa-das por um tipo específico de relações sociais; nem sãocriadas por um tipo especial de exigência levantada contrao mundo por uma personalidade determinada histórica^mente. Essas tensões são, pelo contrário, uma caracterís-tica definidora da existência humana como tal — umfator dja definição antropológica da existência humana.Se deixarem de ser experimentadas e sentidas como "o"'problema do estar o homem no mundo, isso poderá sim-plesmente significar uma emancipação espúria do sofri-mento inerente à condição humana. Poderá simplesmente-significar a perda de tudo o que é genuinamente humanana existência do homem, um regresso do pour-soi ao>pré-humano en-soi; uma retirada no estar-no-mundo para,.um estado em que o "eu" anteriormente separado e autô-nomo é atraído e dissolvido pelo mundo fora dele, aaponto de perder a sua distinção, quer dizer, abandonarseu poder para se ver a si mesmo como um objeto e asua relação com o mundo como um problema.

A demarcação entre o "eu" e o seu mundo é, por-tanto, inescapável, dentro dos limites da experiência hu-.mana. A ruptura não pode ser transcendida ou, naverdade, superada, sem destruir o próprio pour-soi. Dado>o fato de que o mundo fora do "eu" "existe"; que estápresente como um objeto de reflexão, como um objeto,para um sujeito que só reflete na medida em que o "eu"o põe em oposição a si mesmo (neste sentido "criando" o-seu próprio mundo), então pode-se ver de fato o sistema

Page 50: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

:96 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

existencialista como uma variação do motivo hegelianodo Entãusserung: o mundo sobre o que se reflete, o mundodotado de significado, o mundo dado é uma exterioriza-ção do "eu". Mas aqui termina a afinidade. A visãohegeliana da reabsorção última do mundo exteriorizadopelo Espírito que se reconhece, a si mesmo, nos produtosda auto-alienação (a visão que "historiou" o fenômenoda alienação e o dotou de uma dinâmica direta) é enfa-ticamente rejeitada pela filosofia existencialista. A rupturanão é uma etapa transitória no caminho para a restau-ração da unidade: é, pelo contrário, um sinônimo de serliumano; um episódio na história da Natureza, um estado«terno para os seres humanos: um estado contérminocom o estar-no-mundo especificamente humano.

Como a ruptura é inevitável, também o é a relaçãocom os outros. Como a ruptura é, no fundo, um aconte-(cimento inevitável (pela definição da existência especifi-camente humana), embora, ao mesmo tempo, um ato de\vontade, assim o é também a relação com os outros.O homem está condenado a existir fisicamente com osoutros, a partilhar com eles o mundo natural. Mas, a fimde coexistir com eles de uma maneira especificamentehumana, ele usou da sua própria vontade: tem que seiescolher ativamente a justa relação com os outros e ativa-mente rejeitar a relação corrupta, desumanizada. Asrelações justas só podem ser encontradas na decisãoftomada pelo interlocutor de permanecer pour-soi. Comose expressou o proeminente psicólogo existencialista)L. Biswanger, os homens só podem compreender-se uns;aos outros numa relação Eu-Tu, na intimidade dos "eus",16 não através de um choque de objetos, ou da tentativa>de um "eu" em comandar e manipular o outro ser hu-mano objetivado. O virtual "estar-com-os-outros" exige,um esforço difícil e constante para estabelecer contato aonível do pour-soi, um contato em que, em nenhuma fase,•o outro ser foi reifiçado e tratado como um objeto.

Ao outro, portanto, foi atribuído papel duplo e in-trinsecamente controverso, como uma alavanca necessáriapara elevar o en-soi ao nível do pour-soi autenticamentehumano, enquanto, simultaneamente, se transforma noperigo e obstáculo mais grave para tal elevação. O pri-meiro papel é uma questão de esforço consciente, de umadivisão ativa. O segundo é uma questão de rotina intrusa* aditiva da vida diária, da evasão da "vertigem da liber-

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 97

dadé", do temor covarde da decisão de ser autenticamentehumano. O segundo papel é o que todos nós conhecemosmuito bem na vida diária. Os outros parecem-nos, à pri-meira vista, como "eles", uma multidão anônima que derepente nos priva do nosso caráter distinto e nos libertada necessidade penosa de escolher e decidir. A multidão— esse monstro odiado de Kierkegaard, Nietzsche, Hei-degger (das Man) — usurpa o direito, noutros temposatribuído a Deus, de sentenciar sobre a essência humana,papel com o qual cada um tem de se conformar, e osprincípios morais a que cada um tem que obedecer. Emtroca, oferece o sentimento confortante da irresponsabi-lidade, da liberdade de arcar com as conseqüências daescolha de cada um, de se culpar, a si mesmo, pelasagruras da vida. Como se pode ver, esta multidão doexistencialista está ávida pôr satisfazer ambas as necessi-dades oriundas da experiência do senso comum: a vonta-de de compreender a natureza da necessidade exterior,e o desejo de entregar o fardo da responsabilidade aagentes dos quais o homem pode dizer, com uma cons-ciência tranqüila, que não estão em seu poder. Supre,portanto, aqueles mesmos anseios aos quais a sociedadedurksoniana atende. O que, para o durksonianismo, éuma sociedade benévola, embora impressionantementepoderosa, é a multidão para Kierkegaard, rebanho atroz,grotesco de Nietzsche, o cias Man entorpecedor de Heideg-ger, o Inferno humano de Sartre. Com uma diferençaessencial, porém. Para os existencialistas, em oposição aodurksonianismo, a sociedade-rebanho não consegue ga-Sihar controle sobre o "eu", a não ser que seja convidadaa fazê-lo, mais vezes por defeito do que por rendição deli-berada. Para exercer seu poder ditatorial, para diluir o"eu" potencialmente único numa multidão homogeneizadade números comutativos, esta sociedade deve primeirosubmeter-se ao processo de reificação (o Verdinglichungde Hegel), ser cognitivamente redistribuída numa inevita-bilidade toda-poderosa e, por fim, articulada como o oni-potente "eles". De fato, a sociedade só se torna uma se-gunda natureza, uma realidade objetiva, quando articuladadessa maneira. Só se for cognitivamente possuída como"eles", que nos levam para onde querem, nos tiranizam,nos arrastam, e nos forçam a ser aquilo que não queremosser; somente se for autorizada, em troca da liberdade deresponsabilidade, a destruir nossa existência autêntica.

Page 51: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

98 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

Assim, ser escravizado pela sociedade é uma questão dedecisão ou, antes, uma questão de se abster da decisão-.Não é, de forma alguma, um fato inevitável dos sereshumanos. Muito menos, ainda, é ela a condição de tor-nar-se um ser humano.

A filosofia existencialista parece oferecer, portanto,uma crítica da sociologia mais direta e mais radical, aomesmo tempo que se encontra com a sociologia no seupróprio terreno, apropriando-se da sua linguagem e dasua problemática, e sugerindo assim um argumento signi-ficativo — eventualmente conclusivo. Aceita a sociedadecomo uma "realidade". Mas, primeiro, insisto em colocara questão pertinente de saber como a sociedade se tornou(ou, melhor, como está se tornando a todo o momento)uma realidade, antes de mais nada. Segundo, chama,a atenção para o fato de que o "eu" é um fator alta-mente instrumental e ativo (mesmo que seja só pordesistir da ação) no seu devir. Terceiro, abre a possibili-dade de questionar e desafiar a realidade social, definin-do-a como uma existência não-autêntica: ao assim pro-ceder, oferece um horizonte cognitivo mais vasto, no quala realidade social corrente do "aqui e agora" já não podereivindicar o status privilegiado de ser o único fulcro deconhecimento válido — o único fornecedor de "fatos".,Como veremos mais tarde, estas três propostas foramsuficientes para atrair muitos pensadores aborrecidos coraas notórias falhas da ciência da não-liberdade.

Entretanto, o caminho traçado pelo existencialisnuxdeu provas de ser tão áspero como o caminho que sepropôs substituir. Tendo resistido com êxito à redução,da existência humana ao pólo oposto, objetivado, acabouao invés, por reduzi-lo ao primeiro, subjetivo. Os anseios.e motivos humanos já não são os produtos últimos daobstinada "realidade social"; ao contrário, a realidade,social torna-se a conseqüência reificada da decisão (ou.,indecisão) do "eu". A direção da redução sofreu um desvio*de 180 graus, certamente, mas continua a ser uma re-dução. Com a mesma veemência com que os durksonianoscombateram a "noção misteriosa do livre-arbítrio", os.sociólogos existencialistas estão empenhados em comba-,ter a "misteriosa noção da necessidade social". A mudan-ça de direção não diminui a intensidade dos ataques.

Mais importante ainda: se a sociologia durksoniana..jmo podia responsabilizar-se pelas realizaçõesjla teimosia,

T Q M B . / 9 3

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 99

humana e não podia deixar de conceber a liberdade senãocomo um desvio resultante do fracasso técnico da socie-dade, a sociologia existencialista vê-se face à face coma mesma dificuldade, quando procura responsabilizar-sepela persistente experiência da sociedade como uma reali-dade importuna e irremovível, e não pode deixar de per-ceber tal sentimento senão como um desvio resultante dofracasso técnico, no impulso para a autenticidade. Ambasas visões, em razão da sua unilateralidade autoprogra-mada, deixam atrás de si um resíduo de experiênciahumana desconfortavelmente grande, pelo qual se recusama responsabilizar-se a não ser como anomalias bizarras einfelizes, que se poderia mitigar ou até eliminar comconhecimento adequado e com igual esforço. Sendo or-ganicamente incapaz de responsabilizar-se coerentemen-te pela liberdade humana, a sociologia durksoniana sópode declará-la uma ilusão. Sendo igualmente incapazde oferecer uma explicação plausível da aparência decaráter natural da realidade social, a sociologia existen-cialista está condenada a empregar o mesmo artifício edeclará-la um fantasma.

Uma outra conseqüência do reducionismo é, natural-mente, uma negligência da história e a conseqüente neces-sidade de projetar o sistema analítico escolhido no planoontológico, como a dimensão antropológica dos seus refe-rentes postulados. O durksonianismo pode conseguir talefeito colocando a fórmula do seu reducionismo como os"pré-requisitos lógicos" de toda e qualquer comunidadehumana organizada. Graças a este expediente, a categoriacrucial foi solidamente colocada num plano extratempo-ral e o incômodo problema da "origem" da sociedade decaráter natural foi posto de lado de uma vez para sempre.É conservado a uma distância segura pelo freio hipoté-tico sob o qual são mantidas todas as declarações substan-ciais da sociologia durksoniana: dada uma sociedadehumana, deve haver a, b, c...n. O mesmo efeito é atin-gido pda sociologia existencialista, ao apresentar a fórmu-la do modelo deles de reducionismo como a característicadefinidora da existência autenticamente humana. Umavez mais, o problema da história foi cuidadosamente re-movido da agenda. Uma vez mais, um freio hipotéticoimpede-a de intervir: dada uma maneira autenticamentej

humana de estar-no-mundo, deve haver a, b,,BIBLIOTECA CENTRA

UFES.„ U 3- te Li &-^

Page 52: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

400 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

Assim, ao que parece, temos uma forma de reducio-nismo confrontando-se com outra e o problema, em últi-ma análise, é de escolha arbitrária, guiado unicamentepela própria preferência ou pela tarefa de pesquisa postaà mão. Porém, num ponto importante, a versão da socio-logia centrada na sociedade leva uma vantagem sobrea sociologia centrada no indivíduo: a primeira pretendeoferecer orientação genuína ao indivíduo, ao passo quea segunda, de orientação existencialista, deixa muito àsua própria discrição. Tendo escolhido a sociedade comoo agente humanizador, a sociologia durksoniana é capazde discutir o problema da moralidade como algo que,em princípio, pode ser estudado e aprendido como umacerteza. Tendo escolhido a posição de uma ciência obje-tiva, ela observa, naturalmente, uma neutralidade rigo-rosa quanto à decisão pessoal de ser ou não ser moral.Mas se a decisão de ser moral for tomada, a sociologiadurksoniana não tem dificuldade em indicar "como" sepode ser um ser moral, e em que consiste ser moral sobcircunstâncias específicas. Acontece precisamente o con-trário na sociologia existencialista. Na ausência de agenteshumanizadores supra-individuais, ser moral é um impe-rativo que o indivíduo enfrenta diretamente, como a ta-refa que ele deve realizar por si mesmo. Porém, quandose chega à questão de saber como é que uma pessoa podeestar segura de que a sua maneira de estar-no-mundoé na verdade moral, o existencialismo, assim como a socio-logia por ele inspirada, não oferece um guia de confiança."Levar uma vida autêntica" é a única receita. Mas esteé um conselho puramente formal. Autenticidade é, pordefinição, um conceito totalmente individualizado, e, tam-bém por definição, só o próprio indivíduo pode enchê-lode substância, depois que a orientação, que pode ter sidoobtida de fontes extra-individuais, foi considerada comonão-aatêntica e, como tal, rejeitada. Portanto, nenhumadecisão tomada pelo indivíduo pode jamais atingir aquelecaráter conclusivo que só pode ser fornecido por umagente que é visto como não-impregnável e fora do con-trole do indivíduo. Tendo declarado tal agente como umailusão, e tendo-se desfeito, dele como um produto de reifi-cação mórbida, o existencialismo faz mais do que sim-plesmente suspender o seu juízo sobre o que é direitoe o que é errado; nega a possibilidade mesma de discutirproblemas morais em termos válidos para mais de um só.

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 101

parece que o existencialismo efetivamente despiu a mor-talha das aparências que passavam por conteúdo moralda existência humana — mas somente para revelar o vaziomoral último que uma vida autêntica, genuinamentehumana, não pode evitar.

Vimos anteriormente que o tipo durksoniano de socio-logia, ao mesmo tempo que se dirige à imaginação de ummembro comum, leigo, da sociedade, se propõe satisfazeras necessidades mesmas que costumavam ser satisfeitaspela religião dos sacerdotes. Analogamente, pode-se com-parar a sociologia existencialista à religião dos profetas.Não contém promessas fáceis para libertar o indivíduoatormentado do fardo de sua responsabilidade. Em vezde interpretar, .desmistifíca o mistério da existência hu*-1

mana. Porém, a existência desmistificada não é umaexistência que se encare de ânimo leve. O mundo misti-ficado, com todos os sofrimentos que pode causar, emanaum sentimento reconfortante de falsa segurança; quandoo sofrimento começa a transbordar do recipiente seguroda rotina diária, o mundo mistificado ainda pode sercriticado, rejeitado e desafiado, sem pôr em questão aintegridade e a não culpabilidade moral do sujeito desa-fiado. "Eles" não são unicamente senhores de escravose guardas de prisão. Trazem, num embrulho peculiar, aredenção juntamente com a escravidão, a libertação daresponsabilidade, juntamente com a não-liberdade de ação.Os profetas, portanto, ao contrário dos sacerdotes, ofere-cem pouco conforto. Tendo dispersado o espectro dos"eles", os profetas apontam seu dedo acusador para o"eu", agora abandonado num palco absolutamente vazio.Agora, é o "eu" que permanece o único e objeto últimode um auto-escrutínio e de auto-crítica.

É esta filosofia existencialista, com o seu imensopotencial desmistificador e limitações auto-impostas à crí-tica prática do mundo, que tem servido como uma autên-tica inspiração para aquelas diversas correntes de críticada sociologia que assentam as suas raízes comuns naobra de Alfred Schultz. A rubrica "fenomenológica", soba qual essas correntes decidiram descrever as suas carac-terísticas distintas, é um erro de nome. Vimos que osprincípios da fenomenologia, se observados escrupulosa-mente, são incapazes de gerar qualquer conhecimentodescritivo que compartilhe o seu tema qom o que veioa ser conhecido como sociologia. É o existencialismo,

Page 53: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

102 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

tomando aquele estar-no-mundo que impõe estar-com-os--mitros como o seu ponto de partida, que aspira a cobrirum campo de estudo comensurável com o da sociologia.Na verdade, Schutz parte de um mundo vivo imríto maisdensamente povoado do que a austera subjetividade trans-cendental de Husserl autorizaria. A presença dos outros,ique Husserl considerou o mais intrincado e misterioso dosproblemas, é para Schutz axiomaticamente não-proble-anátíco. É a existência desse mundo tão complexo (cuja«existência mesma Husserl quis frear e, mais tarde, cuida-dosamente reedificar, servindo-se somente de elementosmão-existenciais) que, segundo Schutz, (e Kierkegaard,^Heidegger e Sartre) é simplesmente dado, direta e ime-diatamente. Np conjunto, Schutz está disposto a incluirna "esfera pré-predicativa" muito mais das "relevânciasinterpretativas" do que Husserl originalmente incluiu— embora ele invoque constantemente a autoridade deHusserl para legitimar o caráter não-referencial de taisrelevâncias.B O membro, em vez da subjetividade trans-cendental, é a categoria central de Schutz; o que signi-fica que a essa qualidade de membro numa comunidade,que compartilha relevâncias interpretativas, é atribuídauma modalidade pré-predicativa, é colocada entre as con-dições preliminares do processo da vida do sujeito. Estaqualidade de membro, assim como o inventário do conhe-cimento "disponível" que ele poderá significar, é, pelamesma razão, declarado não-inferencial. É assim este"fato bruto", ou o "imediatamente dado", que deverá sercuidadosamente pesquisado e fielmente descrito, mas quenão tem significado "para além", que permita o forneci-mento de sua explicação causai. É verdade que o conhe-cimento disponível deriva da sociedade; mas este é umpressuposto sem grandes conseqüências, uma vez que anossa vida começa a ser experimentada, e portanto setorna um objeto acessível para a exploração e para a re-flexão, apenas quando o dado socialmente desse conheci-mento disponível já teve lugar. O vernáculo — este con-junto pré-fabricado de tipos pré-constituídos — já foiadquirido. "Desde o início" é o termo favorito de Schutz.É "desde o início" que o nosso mundo é um mundo inter--subjetivo de cultura, e não, como pretendia Husserl, algo

5 Cf. Alfred Schutz in Reflections on the, Problem of Relevance, org.Bichará M. Zaner, Yale University Press, New Haven, 1970, p. 43.

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 103

para ser laboriosamente construído, a fim de poder serconhecido. Métodologicamente, a declaração acima signi-Jica que "sociologizar" como Schutz autorizaria, deveriapartir do mundo da cultura já possuído e incorporado pelo"membro" — da mesma maneira que deve partir de uma.sociedade que já tenha adquirido ascendência sobre o in-divíduo, no caso do tipo durksoniano de sociologia.

Este "mundo intersubjetivo da cultura", que "desdeo início" é nosso, é um mundo de significação que, emultima análise, é feito pelo homem. Não, certamente, noaseu todo. Há numerosos pressupostos e regras geradorasque Schutz discute como características estruturais an-iropologicamente universais da experiência da vida comotal. Sugerindo-se que eles constituem limites não usurpa-dos, ou condições universais, de qualquer mundo inter-subjetivo da cultura, esta tendência, para subir aos«cumes extratemporais da antropologia, compartilha-aSchutz com a sociologia durksoniana. A ambos faltaminstrumentos apropriados para lidar com o historicamente(específico, talvez por causa do seu esforço em considerarto historicamente específico como universal. Schutz é bri-lhante quando se mantém ao nível da "gramática gera-dora" da experiência como tal. Mesmo quando admitetomar uma ação específica, geográfica e historicamentelocalizável, como ponto de partida, ele tende a tratar estaespecificidade histórico-geográfica como um véu que es-éonde as estruturas universais de interesse genuíno."Home-Coming" ou "The Stranger" assumem o nível dettipos a-históricos. Significativamente, "o mundo inter-subjetivo da cultura", na forma como Schultz o colocaicomo objeto de pesquisa, fica desprovido "desde o início"de qualquer dimensão histórica.

• O papel mais importante do mundo intersubjetivoda cultura parece consistir no fornecimento de princípiosgenerativos que diferenciem e individualizem os mundosdos membros, concebidos subjetivamente. A maioria dospadrões culturais discutidos por Schultz toma a formade regras de estruturação cognitiva que, inevitavelmente,levam a resultados diferentes em cada caso individual.A classificação dos outros como membros do Umwelt,Mitwelt, Vorwelt e Volgewelt é uma regra universal, pos-tulada pela graduação natural da familiaridade e daacessibilidade. Dependendo destes dois fatores, o membrotüoma quatro atitudes diferentes para com tais indivíduos,

Page 54: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

104 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

classificando-os de acordo com uma das categorias refèvridas acima. Os princípios formais de tal estrutura cogni-tiva, portanto, permanecem os mesmos: em cada caso1;mas as estruturas cognitivas emergentes serão, como erade se esperar, sensivelmente distintas, dependendo dasituação biográfica do membro estruturador. Como o pró-prio Schutz diz, com a substituição de outro "pontonulo" (isto é, outra situação biográfica), muda a refe-rência de sentido. O mesmo se aplica a uma das catego-rias centrais da sociologia schutziana — "o mundo aoalcance". Para cada membro, o mundo ao alcance, a únicaárea em que as relações do "nós" (Eu — Tu) são conce-bíveis e a única área a que os motivos "a fim de" podemser razoavelmente aplicados constituem o fulcro da rea-dade de cada membro. Mas, ainda mais uma vez, as fron-teiras serão certamente traçadas de uma maneira dife-rente para cada membro e por cada membro, e os terri-tórios de tais mundos, como os que foram circunscritospor diferentes situações biográficas, o mais certo é quenão se sobreponham. O útil conceito de "províncias fint-tas do significado" fornece outro exemplo. Cada membrovive dentro de realidades múltiplas. Cada realidade éconstituída cognitivamente segundo a sua maneira pé*culiar, que é caracterizada por um estilo cognitivo par-ticular, por uma consistência que se obtém colocando de-terminados elementos específicos num ambiente tomadocomo certo, pela aplicação de epoche a um setor distintoda vida do mundo, e por uma perspectiva do tempopeculiar. Mais uma vez, todas estas características distin-tas combinam-se num número de tipos que são univer-sais, no sentido de serem reconhecidamente semelhantesem cada grupo de "províncias finitas do significado" decada membro. Pode-se descrever, validamente, para todosos membros reais e potenciais, qual a espécie de estileicognitivo, epoche, etc., que constituí o âmbito do argu-mento, ou da arte ou do passatempo. Mas, como nos.casos anteriores, o modo como um membro divide o mun-do compartilhado em províncias,, quando volta a suaatenção de uma província para outra,, não é, de formaalguma, coordenado. Pelo contrário1, estas atividades dosmembros, embora operadas pelos mesmos princípios estru-turais, conduzirão inevitavelmente a resultados muito dis-tintos. O conceito de "referência apresentacional", con-siderado por Schutz como um instrumento importante

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 105

na atribuição de significados, vai fornecer-nos o últimaexemplo. Qualquer membro, confrontado com uma série-de experiências, atribuir-lhes-á um significado, combinan-do-as em pares que se apresentam mutuamente uns aos.outros. O contexto em que este emoarelhamento teráilugar e, conseqüentemente, a seleção dos pares e a divi-são das funções dentro dos pares, variará de acordo comia situação biográfica de um dado membro; os mesmos,instrumentos produzirão, inevitavelmente, uma grande»variedade de significados, mesmo se aplicados a objetos»da experiência "exteriormente" semelhantes.

Para resumir, o mundo intersubjetivo da cultura de-Schutz tende a produzir, a perpetuar e a fortalecer a,autonomia e a singularidade de cada membro de uma;entidade cognitiva. Schutz mostrou admiravelmente como»a singularidade dos membros é criada e continuamenterecriada com a mesma inevitabilidade que o durksonia-nismo atribuiu ao impacto uniformizante da cultura. Os,dois testemunhos incompatíveis da experiência foram*,portanto, reconciliados no plano cognitivo: lançado num>mundo cultural compartilhado, incapaz de escolhê-lo como?um ato de vontade, confrontando o seu mundo culturaUcomo uma realidade inescapável, o membro está ainda,(devido mais a este fato do que apesar dele) condenado»a tornar-se e a permanecer um indivíduo único. É preci-samente a partilha das mesmas regras estruturais dapercepção do mundo que assegura a singularidade de cadaexperiência e de cada mundo individual de significado.

Se, porém, tal como foi demonstrado, os mundos designificados dos membros individuais forem singulares,,a comunicação entre os membros constitui um problema.Na verdade, é preciso indagar se tal comunicação émesmo possível. Até aqui, tudo o que vimos sobre o mundo-,inter subjetivo da cultura tem apontado, de uma maneiranão ambígua, para o isolamento monádico dos mundos?cognitivos individuais. Torna-se necessário, agora, mostrarcomo, dado esse status monádico, os membros poderão*,ainda constituir e manter uma comunidade de signifi-cados.

Schutz considera antropologicamente universais algu-mas condições de tal comunidade. Trata-se de pressupostos,comuns, mais ou menos partilhados por todos os membros-de todas as comunidades em todos os tempos — talvez,espontaneamente mas, de qualquer forma, sem recurso»

Page 55: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

CKÍTICA DA SOCIOLOGIA

•visível a processos de ensino-aprendizagem. Ao que parece,trata-se de simples elaborações sobre características cons-tantes e primárias da experiência individual, mas univer-sal- __ embora esta conjectura não seja confirmada porâSchutz em tantas palavras em qualquer lugar. Na ausên-fcia de qualquer resposta explícita à questão da origem da""bagagem de conhecimento a mão", é-se livre, na verdade,para postular uma variedade de interpretações, indo a•ponto de supor uma propensão inata, em toda a espécie,para perceber o mundo e organizar essa percepção deacordo com um conjunto de regras invariáveis. Não que,-a questão da origem tenha qualquer importância no casosde Schutz. As regras e os pressupostos combinados na""bagagem de conhecimento a mão" foram introduzidosm.o sistema da sociologia schutziana como um presumível«elemento kantiano. Não são, de fato, outra coisa senãocondições apriorísticas de toda a experiência significativa,•e de toda a comunicação significativa entre sujeitos cogni-ttivos singulares.

O que se segue são exemplos típicos. Primeiro —«p pressuposto de que o mundo consiste em objetos defi-aáidos. Este pressuposto é extraído, e continuamente ga-rantido, da experiência da resistência. A sua forma mais^elementar é a resistência do nosso próprio corpo, quepode adoecer, ficar incapacitado, ou ter relutância emObedecer às nossas decisões. Toda a percepção do mundotèomo exterior e "real" pode ser vista como uma modifi-cação desta experiência fundamental. Em segundo lugar-vem a expectativa de que as experiências sejam típicas;sque se prestem, em princípio, a generalizações, em vez«de serem singulares e irrepetíveis; que uma experiênciasingular é sempre um membro de uma classe mais vasta«de experiências semelhantes e que, portanto, pode-seaprender com a experiência anterior, tendo razão para

i esperar que as ocorrências futuras se conformem com'O padrão já conhecido. A seguir, a mesma expectativa deregularidade torna-se extensiva à esfera diretamente re-levante ao problema da comunicação inter-humana: espe-ra-se que as perspectivas cognitivas sejam reciprocadas-por outros membr-os, e pressupõe-se que os pontos de vistado interlocutor sejam, pelo menos em princípio, permu-'táveis. Por outras palavras, a compreensão reciprocada'dos significados de cada um é uma condição de estar--com-os-outros, dada a príari. Em vez de ser o produto

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 107

:final da aplicação de uma tecnologia intrincada que o in-.divíduo deve aprender diligentemente a dominar, a com-preensão está implícita em cada ato de comunicação"desde o início". A possibilidade idealizada de tal com-preensão manifesta-se continuamente da seguinte manei-ra: no processo de comunicação, um dos interlocutoresassume as atitudes do outro e espera que este se comportede maneira igual. Finalmente, espera-se, a priori, uma«congruência de pontos de vista. Eles não só são permu-táveis, no sentido de que cada membro pode adotar oponto de vista do seu interlocutor, mas podem também,;ser harmonizados, complementando-se um ao outro, etendo como resultado o fato de poderem ser simultanea-mente sustentados por diferentes interlocutores na con-versação, sem tornar o discurso incompreensível ou-condená-lo ao fracasso. Vamos repetir: todas estas e•outras pressuposições semelhantes não são aceitas pela suaforça de generalizações empíricas, mas deduzidas da aná-lise de condições que devem ser cumpridas, se é que "éstar--eom-os-outros", no sentido de intercomunicacão significa-tiva, merece qualquer respeito. São estes, portanto, os"pré-requisitos teóricos" da existência do indivíduo, damesma maneira que, por exemplo, a "permanência doparadigma" é, para a sociologia durksoniana, um pré--requisito teórico para a sobrevivência do sistema.

Sendo estas as condições gerais de estar-com-os-outros,são necessários ainda outros fatores para atingir as re-lações genuínas de sujeito-a-sujeito. Schutz não concordatíom a muito sombria opinião de Sartre — a possibilidadede transcender ou evitar a reificação nas relações inter-humanas. Para Sartre, a simples presença dos outroscompromete inevitavelmente a autêntica singularidadeúo "eu". O simples fato de saber que se está sendo obser-vado pelos outros cria inquietação e desconforto e limitaa liberdade do "eu"; o "eu" experimenta-se a si própriocomo objetivado pelo outro e é incapaz de evitar fazera mesma coisa em troca. Daí só serem possíveis as re-lações sujeito-objeto. Schutz é mais sangüíneo. Dosmuitos tipos de relações entre os membros ele seleciona,como particularmente privilegiadas com respeito à desreí-ficação, as relações Wir-Einstellung (equivalente ao Eu-Tude Buber) entre associados, nas quais os membrospodem, na verdade, conceber cada um deles como sujeitossingulares. Eles devem esta possibilidade ao envolvimento

Page 56: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

108 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

biográfico mútuo. Parece que o Wir-Einstellung se desen-volve no processo de um discurso prolongado e continuouentre os membros, no qual todos os aspectos da subjeti-vidade de cada interlocutor têm possibilidades de ser tra-zidos à luz, de maneira a permitir que cada interlocutorvenha a apreender, no devido tempo, o seu caráter sin-gular. Cada interlocutor toma, gradualmente, conhecimen-to da subjetividade singular do outro, à medida que ex-plora, no processo de troca ativa, tanto a flexibilidade comoos seus limites últimos. Quando se desenvolvem relaçõesgenuínas Eu-Tu, os vários véus do anonimato, que normal-mente cobrem a subjetividade do outro, podem ser comple-tamente removidos.

Esta possibilidade, mesmo se não for realizada, revelauma grande diferença entre associados e meros contempo-râneos. Os últimos, embora em princípio acessíveis a umaconversação potencial, não estão suficientemente envolvi-dos na biografia de um dado membro para se exporem,a si mesmos, na singularidade das suas subjetividades.Manterão sempre um maior ou menor grau de anonimato;quanto maior for o anonimato, mais pobre será o grupode sintomas por meio dos quais podem ser apreendidas.Em vez de serem apreendidos como sujeitos, os contempo-râneos são concebidos como espécimes de um tipo. Tal tiporefere-se a eles, coloca-os dentro de um mapa cognitivosubjetivo de um membro, e liberta o conjunto relevantedo repertório de comportamento de um membro, masnunca é idêntico a um. outro concreto.

Existe, portanto, uma diferença em gênero entre asrelações sujeito-a-sujeito e as relações meramente tipifi-cadas. As primeiras são um elemento integrante do estar--no-mundo de um membro; são de fato contérminas dasua própria existência. As segundas, porém, têm apenasum caráter hipotético. Quando falamos de relações sociaisentre meros contemporâneos, queremos falar apenas deuma possibilidade subjetiva de que os esquemas tipifi-cados e reciprocamente atribuídos e as expectativas pos-sam vir a ser reciprocadas, isto é, usados congruente-mente pelos interlocutores. Esta possibilidade subjetivapermanece continuamente, e, na medida em que eles con-tinuam a fundamentar-se somente numa relação Ihr-Einstellung, não podem ascender do nível da mera hipó-tese. Somente o setor do mundo que foi iluminado pelasituação biográfica é constantemente posta em questão

A RESTAURAÇÃO EXISTENCIALISTA 109'

pelos membros e está sujeito a exploração intensa.- Os.contemporâneos, ao contrário dos associados, são coloca-dos fora desse setor. Intocados pelos interesses cognitivos,do membro, objeto de pouca ou nenhuma relevânciatópica, eles — mesmo se," em princípio, questionáveis —não são questionados. Ó simples fenômeno do "tipo"consiste em estabelecer uma linha de demarcação entre•os horizontes explorados do tópico à mão e o resto, que.o membro deixa por explorar.

Os "tipos ideais pessoais", que se referem a agrega-dos de contemporâneos (ou, por outro lado, a predeces-sôres ou sucessores — os quais, porém, diferem dos con-temporâneos na medida em que não podem ser inter-locutores do discurso), são tipificações do primeiro nível,•o mais baixo. Existem, certamente, tipificações que sãomais complexas, mas estas derivam sempre das do pri-meiro nível, através da analogia ou da fusão. Estado,povo, economia, classe — são todos exemplos caracterís-ticos de tais tipos complexos, que se tende a tratar comose fossem tipos pessoais sui generis. De fato, são descri-ções abreviadas de sistemas altamente complexos de tipospessoais entrelaçados do grau mais baixo. Por causa dasua natureza derivativa, eles magnificam todos os pontosfracos da tipificação original e ampliam as áreas deixadasria sombra e sub-repticiamente tomadas como certas no(processo de tipificar. Em particular, a natureza hipotéti-ca de tais tipos de segunda ordem é consideravelmenteintensificada. Tanta coisa é tomada como certa no pro-cesso de tipificação que a questão da sua verificação difi-cilmente pode ser posta na agenda. Para sair, por ummomento, do universo do discurso designado pelo voca-bulário schutziano, poder-se-ia dizer que, para todos osfins práticos, conceitos como sociedade ou classe entramno mundo da vida do indivíduo humano como mitos,sedimentados através de um longo e tortuoso processo deabstração, do qual o próprio membro perdeu o controlenuma data relativamente longínqua (de fato, com o seuprimeiro passo para além do reino confortável das re-lações Eu-Tu com o círculo estreito dos associados).

Ao que parece, estes são os limites últimos da críticada sociologia que podem emanar da inspiração existen-cialista. Tal crítica só pode responsabilizar-se por fenô-menos supra-individuais como conceitos mentais. Toda equalquer crítica de tais conceitos consistirá em demons-

Page 57: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

110 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

trar que se chegou a eles por meio de uma série de ope-rações mentais, sujeitas a regras puramente cognitivas;ao demonstrar isso, dadas essas regras inerradicavelmente-presentes na bagagem do conhecimento à mão, é inesca-pável a geração de tipos. Estes tipos voltam mais tarde-ao mundo vital do indivíduo, aí admitidos em virtude dasua força de analogia com relações pessoais — as únicas-que são direta e completamente experimentadas. O mes-no mecanismo mental, por assim dizer, desreifica os-associados e reifica todo o resto do mundo do indivíduo,sendo a própria reificação um processo mental que con-siste em assumir a "existência subjetiva" do que é, defato, um produto conceptual complexo de peneiramentd1

da experiência pessoal limitada. Schutz — e os seus discí-pulos ainda com mais fervor — atribuem a tal condutao" status de hipóstase: um erro lógico comum de imputarinferentes reais a palavras abstratas.

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA

Se, portanto, a sociologia durksoniana se esforça por"desmistificar" a liberdade individual, a sua crítica schut-ziana procura, aparentemente, "desmistificar" a sociedade.Pouco faz, porém, para auxiliar o indivíduo, supostamente-emancipado como resultado de tal desmistificação, a adqui-rir uma liberdade prática, através do resultado da suaprópria capacidade reificadora. Pelo contrário, a análise1

schutziana demonstra, convincentemente, que a reificação,e os tipos hipotéticos que substituem a íntima experiênciaEu-Tu dos outros, estão construídos no próprio tecido daexistência do membro. Poderão, talvez, ser renegociados erefeitos mas, de uma forma ou de outra, encontram-se aípara ficar para sempre. Num certo sentido, a reificação-da experiência limitada em conceitos todo-poderosos, aindaque hipotéticos, os quais, por sua vez, estruturam a expe-riência do indivíduo, é tão antropologicamente universale inevitável como a "consciência coletiva" de Durkheimou de Parsons, pré-requisitos do sistema. Não se deixoulugar para a suposição de que, sob certas condições, a reifi-cação poderia ser evitada, de que em algumas situaçõesàs pessoas poderiam ser capazes de "ver através" da totali-dade dos seus envolvimentos sociais e que, conseqüente-'mente, a sutil análise schutziana sobre a vida do mundocomo tal é simplesmente uma descrição indevidamente

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA llf

generalizada de um mundo específico, historicamente ge-rado. Com todo o seu poderoso potencial crítico dirigido»contra a sociologia, concebida como a ciência da não-liber-dade, a alternativa schutziana abstém-se de oferecer uiaponto de vista conceptual a partir do qual poderia ser>lançada uma crítica à realidade social (em oposição àcrítica da sua imagem). Neste sentido, pertence à mesmaclasse da sociologia durksoniana, que tão habilmente;critica.

O sistema schutziano existencialisticamente inspira-do é, portanto, especificamente, uma crítica à sociologiae não a seu objeto. Como tal, essa crítica oferece umprograma completo, harmoniosamente coerente, com uma;soma considerável de introspecções inteligentes. O siste-?ma schutziano pode ser concebido mais como uma antro-pologia (do que como uma sociologia) do conhecimento,,assestando as suas lentes precisamente naqueles setoresdo conhecimento que formam o domínio escolhido dasociologia. Schutz mostrou, convincentemente, que a sor?ciologia, longe de apreender a assim chamada "realidade?social objetiva", na realidade é uma modificação depu-=rada do senso comum; que toma como seu objeto não-"fenômenos objetivos" mas produtos de tipificação e, porconseguinte, perpetua e reafirma as tendências reifica-doras do senso comum, em vez de expô-las tais como são.Sendo meros produtos da objetivação, os "fenômenos obje-tivos" são incorporações do conhecimento subjetivo de-"acontecimentos mundiviventes".6 Atribuir-lhes qualqueroutra modalidade existencial significa perpetuar essa ilusão*cuja revelação é a preocupação primordial da investigação!científica da vida no mundo. Estado, classe, etc. — se con-frontam o indivíduo como componentes irremovíveis da suavida no mundo — só atingem esse estado porque "o levan-tamento de objetivações feito por uma "pessoa e a suainterpretação feita pelo Outro ocorreu 'ao mesmo tempo'".A função da sociologia consiste, portanto, em desvendaro mecanismo oculto do processo da objetivação coletiva,que só se abre aos olhos de um membro comum, sol>a forma do seu produto final.

Mas neste ponto termina a crítica schutziana dstsociologia. Se tudo o que fazemos é seguir fielmente o seu;6 Cf. Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The Strwttures of theLife World, Heinemann, Londres, 1974, p. 271f. Trad. por RicharáiM. Zaner e M. Tristram Engelhardt, Jr.

Page 58: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

112 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

processo de explorar a lógica da objetivação, a sociologiaBestaria novamente erguida sobre os seus próprios pés. Emvez de tentar, em vão, apreender a realidade social, deve-mos voltar a nossa atenção para a estrutura do processo-que gera a nossa crença em tal "realidade" — partindo4o único conhecimento certo que nos é dado não proble-maticamente, isto é, um conhecimento derivado direta-mente do mundo da vida de todos os dias. Isso seráo mesmo que voltar às "raízes" e então será cumprid» dpostulado husserliano zu den Sachen sélbst. Schutz nãopede à sociologia que seja crítica do seu objeto. Ele con-vida-a unicamente a ser crítica do seu próprio conheci-mento desse objeto e da maneira como chegou a esseconhecimento. Na verdade, exatamente como os seusoponentes durksonianos, Schutz impede ü priori, por umaabrupta decisão metodológica, a possibilidade mesma deuma crítica dirigida para o objeto. Se, parafraseandoAnselm L. Strauss,7 a sociologia durksoniana supôs que«o observador (sociólogo) "tem conhecimento do fimcontra o qual as pessoas competem", Schutz pretende•conhecer "as regras básicas em que as variações (de umapersonalidade) são compostas": isto é, conhecer, no sen-tido de excluir, a possibilidade de tais regras jamais mu-darem, e não simplesmente as suas aplicações.

Com uma realidade social dura, de caráter natural,reduzida analiticamente a tipificações, e unicamente atipificações, a questão de saber se os homens poderãojamais evitar tal atividade tipificadora continua de pé.Dentro do sistema schutziano não há lugar para tal possi-bilidade. Ao explicar a totalidade da "realidade social"por meio do mais elementar e universal dos processos dereificação dos significados, Schutz apresenta primeiro a•experiência da não-liberdade como uma característicaeterna, antropológica do ser-humano-no-mundo; segundo,retrata toda a não-liberdade como essencialmente seme-lhante, provinda da mesma dotação humana essencial.A suposição de que alguns elementos da "realidade"experimentada são redundantes e podem ser postos delado, de que esses elementos derivam mais de causas res-tritas (e menos, inevitáveis) do que de propensões uni-versais de todo o gênero humano — não pode ser coliocada

1 Cf. Anselm L. Strauss, Mirrors and Masks, The Search for Ideri-tity, Free Press, Nova York, 1959, p. 91f.

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA 113

seriamente dentro da perspectiva schutziana. Mas é so-mente com tal suposição que a crítica da sociologia podetransformar-se numa crítica da própria realidade socialDa .devastadora vivissecção da sociologia realizada porSchutz, a realidade social emerge intacta e invencível-~ reduzida a uma substância benigna, intelectual, masnão menos inevitável e esmagadora do que o sistemametodologicamente postulado por Parsons.

Ambas as tentativas para justificar monisticamentea experiência humana parecem, portanto, igualmentedesencorajadoras. Curiosamente, enquanto tratam deprovar que o outro pólo da experiência aparentementedual é apenas imaginário, ambas são incapazes de ques-tionar a necessidade contida no primeiro pólo. Ambas astentativas são, portanto, organicamente não-críticas da.sociedade ou da condição humana que descrevem. A únicavantagem da sociologia existencialista sobre a sua contra-parte durksoniana consiste na sua capacidade de criticaro conhecimento em geral, e o conhecimento originado dosenso comum em particular — uma habilidade conspicua-mente ausente da sociologia durksoniana. Mas trata-sesimplesmente de uma crítica nua do conhecimento, nosentido que não dá, nem pode dar, um passo decisivoà frente, para a crítica da sociedade ou da própria con-(dição humana. Temos toda a razão para suspeitar de quenenhuma redução fundamentalista, qualquer que seja sua(direção, possa gerar tal crítica.

. Por esta razão, as poucas teorias que tentaram evitaras armadilhas do reducionismo unilateral merecem umaatenção particular. Uma delas é a teoria de George HerbertMead, que se baseou muito na visão do mundo de JohnDewey. O ponto de partida dessa teoria, na formulaçãode Horace M. Kallen, foi "o reconhecimento de que aprimeira e última realidade é um fluxo, um processo,lima duração, uma ocorrência, uma função, e de que asIdéias de uma substância imovível e de formas eternassão elas próprias ideais mutáveis, baseadas em impedi-mentos passageiros e movimentos de aversão e negação." 8

A visão sociológica de Mead é, talvez, aquela em quea dialética existencialista alcançou os seus últimos limites.Mead recusou-se a atribuir prioridade unilateral a qual-quer dos dois pólos, do mais constante dos dilemas socio-

'* Maurice Natanson, The Social Dynamics of George H. Mead, Introd.•de Horace M. Kallen, Martinus Nijhoff, The Hague, 1973, p. vn.

Page 59: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

114 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

lógicos. Ao invés, pôs em foco o processo dialético daluta contínua e da reconciliação entre eles, como o verda-deiro ponto de partida da análise sociológica. O que legi-tima, em nossa opinião, a classificação desta solução comoexistencialista é a localização dessa dialética dentro dohorizonte subjetivo do eu, e a consideração da condiçãoexistencial do indivíduo como a única fonte de dadose objeto da análise.

Para Mead, nenhum dos pólos — o eu e a socie-dade — pode ser reduzido ao outro. Ao invés, ambos estãopresentes, como fatores parcialmente autônomos e par-ncialmente cooperativos em todas as unidades da expe-riência. Mesmo que nos conformemos com a regra meto-dológica de que a informação dada subjetivamente é oúnico campo legítimo para a análise sociológica, podemosainda, sem postular entidades alheias à experiência pri-mária, justificar os elementos sólidos, objetivos da exis-tência, e posicioná-los como suas projeções. A realidadesocial está presente na experiência mais individual desdeo início — não como uma limitação auto-imposta, arti-ficial, ou um "outro lado" inacessível, como acontece emalgumas obras existencialistas. Ela é visível a partir deuma perspectiva subjetiva como o ingrediente orgânicoda atuação do eu como tal. Ambos os aspectos do eu— o notório "mim" e "eu" de Mead — já contêm a reali-dade social objetiva, por mais singulares e subjetivos quepossam parecer; embora, certamente, a realidade socialentre em cada um de uma maneira diferente e de umaforma específica. "Mim" e "eu" são dois aspectos do indi-víduo; mas são também os dois aspectos da realidadesocial nos quais cada indivíduo nasce e que confronta emcada um dos seus atos. Q seu "eu" não é nada mais queo sedimento restante de todos os atos anteriores ao mo-mento em que o indivíduo enfrenta a realidade como umlimite imediatamente presente, situacional, à sua liber-dade; assim ele contém a sociedade, embora de uma ma-neira processada, individualizada, diferente do "mim" queé a realidade com a sua face descoberta, uma realidadeno seu próprio momento, ainda "ressaltando" como umfator externo, tmassimilado, da ação. O confronto entreo "mim" e o "eu", que o indivíduo experimenta em cadaum dos seus atos, não é outra coisa senão a reflexãosubjetiva da dialética da "situação" e a sua "definição"individual. Seja qual for a maneira como olhamos para

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA 115

isto, é sempre a mesma coisa: a-realidade-já-assimiladacontra a-realidade-ainda-não-assimilada, ou o eu-já-reali-zado contra o eu-ainda-não-realizado. O que conceituamoscomo "sociedade", ou o "eu subjetivo" são, portanto, duastelas gigantescas nas quais projetamos, com igual direitomas igualmente enganados, a única realidade existencialque é diretamente dada à experiência do indivíduo:a tensão dialética do ato social Tanto 10 "eu" como asociedade estão implícitos neste ato, e só podem serestudados adequadamente sob esta perspectiva.

Só quando observados do ponto de vista de um atoúnico é que o "eu" e o "mim" se encaram um ao outro»como entidades independentes; como, respectivamente,,sedes da liberdade e da não-liberdade do impulso e dassuas limitações, o esforço do "eu" e as suas limitações,externas, a singularidade individual e as pressões unifor-mizadoras de um "papel" socialmente fundado e guar-dado. Quando vistos em processo, como aspectos entrela-çados de uma biografia, eles perdem a sua identidade,fundem-se um no outro, revelam a sua relatividade e,por fim, dissolvem-se numa série sem fim da contínuaação-no-mundo do indivíduo. É verdade que experimenta-mos um impulso intrínseco como um componente inaca-bado, em aberto, programático da situação, em que ooutro como componente, que chamamos "realidade social","limitações estruturais", ou "mim", se parece muito comuma gaiola inflexível, fechada, que arbitrariamente cortaa trajetória do nosso vôo. Mas esta verdade só permaneceenquanto não se transcende o horizonte de um simplesato. De uma perspectiva mais ampla, tal como a da bio-grafia como um processo contínuo, ambos parecem admi-ravelmente semelhantes. Na verdade, eles são, em igualmedida, ambos abertos e fechados, ambos inacabados ecompletos, temporários e conclusivos. Seja qual for a dife-rença por nós pressentida na sua " modalidade-para-conosco ela foi outorgada pela capacidade estruturadorado ato à mão. São as situações passadas que projetam asdefinições presentes. Quanto à verdade, porém, da inver-são da declaração acima, Mead foi muito menos explí-cito. Não sabemos — de fato, estamos impossibilitados,de saber — se, e de que maneira, as definições de hoje sesedimentam nas situações de amanhã. Está parte da dia-lética mal tem sido tocada. Mais do que resolvido, estefenômeno foi deixado de lado pelo simples adágio de

Page 60: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

116 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

W._I. Thomas, ao dizer que a verdade emana da supo-sição da verdade. Se, porém, Mead é específico e convin-cente ao elucidar o mecanismo real das situações-conver-tidas-em-definições, não foi tão feliz na apresentação do.outro lado da dialética do eu e da sociedade.

Esta distribuição desigual da ênfase não deveria sur-preender-nos. Numa atmosfera verdadeiramente existen-cialista, Mead procura desenredar os mistérios da exis-tência do indivíduo que é sempre dada, pronta, e estabe-lecida no momento em que o indivíduo começa a refletir«sobre ela e, dessa maneira, "se encontra a si mesmo" nela.O processo que levou ao estabelecimento da "moldura«exterior" da existência não é, portanto, uma parte daexperiência do indivíduo da sua existência; não pode serexaminada "de dentro", não é susceptível de escrutí-nio com tanta clareza e tão imediatamente como a exis-tência mesma. Pode ser reconstruída, ou melhor, postula-da, por meio de teorização e abstração, mas nunca expe-rimentada com a mesma evidência qom a qual o outrolado — a subjetivação do objetivo — o é. A finalidade detal teoria é satisfazer a curiosidade humana acercada "origem" do seu mundo, mais do que emprestar inteli-gibilidade à mensagem já contida na experiência. Nãose pode preservar a pureza do método e, ao mesmo tempo,itribuir ao problema da origem da realidade objetiva omesmo status epistemológico que se atribui à questão daapropriação subjetiva da objetividade. Partindo de pres-supostos existencialistas, Mead foi tão longe quantohumanamente possível no esforço de transcender a oposi-ção entre o eu e a sociedade e atingir uma explicação-unificada de uma experiência aparentemente polarizada.Mas os mesmos pressupostos põem um limite intranspo-nível à sua realização. A dialética desenredada na socio-logia de Mead encalhou na relação entre o eu em devircontínuo e a sociedade já feita. Para expor a dinâmicado eu, Mead teve que deixar na penumbra a dinâmica dasociedade.

Embora admitindo inspirar-se na obra de Mead,Berger e Luckmann9 deram um longo passo à frente nocaminho para transcender essa limitação. Ao assim pro-cederem, porém, eles sacrificaram boa parte da purezametodológica e da coesão do original. Como Mead, Berger

•» Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social Construction o fJieality, Penguin, 1967.

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA 117

e Luckmann tentaram desenredar a dialética da liber-dade e da não-liberdade, do eu atuante e dos limites dasua ação. Mas sua atenção concentrou-se em primeirolugar no problema lançado por Mead para |O fundo doseu objeto central. Berger e Luckmann (o título do seulivro torna bem claro) estão mais interessados em desco-brir o mecanismo da construção da realidade do queno "eu".

Eles aceitam, como o fizeram outros críticos existen-cialistas da sociologia, que tudo quanto acontece ao ho-mem pu no homem — na verdade, o processo mesmo detomar-se homem — tem lugar na presença do mundo,no decurso da interação do homem com o seu ambiente,apreendido como a situação da ação. Porém, introduzem-sevárias pressuposições adicionais no processo, pressuposi-ções que se propõem facilitar a explicação de tal pre-sença — que outras sociologias existencialistas raramentese importaram em levantar do status de "aceitas comocertas". Assim, temos o pressuposto tácito de certa re-gularidade da constância do ambiente que, num estiloà Homans, leva à "habituação" de padrões de comporta-mento. A ação repetida freqüentemente deixa de ser pro-blemática, já não é objeto de exame ativo e reflexão,e caminha serenamente para o campo dos fenômenos"aceitos como certos", onde se torna indistinguível deoutras realidades objetivas. Se a "habituação" das açõesde A é agora reciprocada pela "habituação" do compor-tamento de B, uma npva qualidade emerge: as açõeshabituais tornam-se tipificadas, isto é, nominalmenteanexas a situações típicas. Uma outra suposição: taisações tendem a ser escolhidas para a tipificação — istoé, tornam-se institucionalizadas — e são "relevantes paratodos" os agentes que participam de uma dada situa-ção. Uma vez institucionalizadas, as ações tipificadaspassam para a consciência dos indivíduos como objetivas,inevitáveis etc. O conhecimento da "sociedade" que emergedesta maneira é, portanto, uma "realização" num duplosentido: é uma apreensão da realidade social como "reali-dade" e, ao mesmo tempo, a produção desta realidade,à medida em que os indivíduos, assumindo a sua natu-reza objetiva como certa, agem continuamente para per-petuar e continuamente recriar a sua objetividade. É esteconhecimento que empresta às instituições a aparênciade coesão e harmonia de que desfrutam; a ordem do

Page 61: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

118 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

universo está no olho de quem o observa, e na ação habi-tual do agente.

Esta é, claramente, uma introspecção reveladora.A idéia de que só há tanta ordem social quanto há deação humana repetitiva, rotinizada, e de que não há mais"necessidade" nessa ordem do que a que é gerada conti-nuamente por uma ação rotinizada e o conhecimento quea acompanha, tem um efeito genuinamente emancipador.Significa um passo decisivo no caminho que leva da crí-tica à sociologia para a crítica à sociedade. Revela a na-tureza partidária, comprometida, do conhecimento social,que reveste á* rotina atual (que nada mais pode invocarpara a sua legitimação além de uma coincidência his-tórica) de validade cognitiva e dignidade normativa.Expõe a natureza seletiva de tal conhecimento: deve serseletivo no sentido de suprimir informação e valores quelevem à explosão da segurança de um universo fechado.Um necessário complemento do conhecimento é, portanto,a "aniquilação" — uma máquina destinada a liquidarconceptualmente o que fica "fora" do universo: se o co-nhecimento socialmente distribuído valida a realidadeatual, o mecanismo de aniquilação tende a negar a vali-dade das realidades alternativas e todas as interpretaçõesque poderiam relativizar e pôr em questão a existente.Uma vez estabelecida, a mistura conhecimento-realidadetende a perpetuar-se. Adquire o poder de produzir a rea-lidade. E assim não há "realidade social", a não ser queseja produzida pela conduta rotinizada do homem; masnão haverá rotinização de conduta a não ser que sejaapoiada pelo misto conhecimento-realidade:

Ter uma experiência de conversão não é nada demais.O importante é continuar a tomá-la seriamente, a con-servar um sentido de plausibilidade. É aqui que a comu-nidade religiosa entra. Fornece a estrutura de plausibi-lidade indispensável para a nova realidade. 1°

Mas, na maneira como foi introduzida e defendida,a idéia exposta acima deixa a porta apenas semi-abertapara uma crítica à sociedade. Para começar, todos osmembros da sociedade têm uma parte igual de "respon-sabilidade" na perpetuação da ordem social. A estabili-dade da ordem assenta, em última análise, no seu tácitoacordo em se comportar da maneira habitual. A ordem,

'o IbvL, pp. 177-8.

A "SEGUNDA NATUREZA" REABILITADA 119

em princípio, pode ser reduzida — sem resíduos — à roti-na institucionalizada de uma multidão de indivíduos.Não há outros fundamentos além desta rotina: nenhumaestrutura se eleva acima da planura chã de um conheci-mento igualmente distribuído como um fulcro sólido deestabilidade social. O drama da construção social da reali-dade é, do princípio ao fim, representado no palco inte-lectual. Os membros da sociedade só aparecem nestepalco como entidades epistemológicas, sendo o resto dosseus atributos irrelevantes e, por conseguinte, não invo-cados como fatores explicativos. Tendo sido inteiramenteconstruídas pelo pensamento, as instituições não parecempossuir mais dureza e solidez do que o pensamento nor-malmente possui; ou antes, o pensamento, na sua quali-dade de material de construção, empresta maleabilidadea todo o edifício. Será difícil provar, dentro desta lingua-gem, que no processo de construção poderá haver pontos deonde se não pode voltar atrás, estruturas que adquiremuma nova qualidade, sedimentos que não podem ser dis-solvidos simplesmente pela reforma de significados.

Um segundo ponto está estreitamente associado aoprimeiro: enquanto a observação de que a existênciada sociedade consiste, não numa estrutura estabelecidade-uma-vez-para-sempre, mas num contínuo estruturar,é uma introspecção admirável de onde se pode partir parauma crítica devastadora à sociologia, ela sugere, de umamaneira verdadeiramente iluminista, a identidade da crí-tica à sociologia e da crítica à sociedade.

Reduz a função de criticar a realidade social à críticado conhecimento social. Haja a "realidade social" quehouver na condição humana, a verdade é que essa reali-dade depende a todo momento, "continuamente", da per-sistência dos significados que os membros da sociedade lheatribuem. Sentimo-nos inclinados a concluir que, se aconsciência refletiva dos indivíduos, que empresta visibili-dade de lógica e de congruência às instituições sociais, pa-rasse abruptamente ou se voltasse para outro lado, a pró-pria realidade .social dissipar-se-ia ou mudaria de conteúdo.A situação que um indivíduo confronta como a limitaçãoda sua ação nada mais é que a definição de uma outrapessoa com um universo simbólico partilhado como umachaveta ligando os dois. Não são necessários outros meiospara perpetuar um dado conjunto de instituições alémda mitologia, da teologia, da füosofia, da ciência —

Page 62: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

120 CRÍTICA DA SOCIOLOGIA

e não há necessidade de refazer outros elementos ao,mundo social para substituir a realidade social por umanova realidade.

Terceiro e mais importante — a opinião de Bergere Luckmann sobre a construção social da realidade le-vanta a questão da relevância das instituições para osinteresses dos indivíduos, por uma simples suposição deque esta relevância é precisamente o fator operativo natipificação das ações habituais. Certamente, não se vêcom clareza o significado que os autores atribuem à úl-tima afirmação. A "tipificação da hipótese relevante" podeser vista como um "mito da origem", caso em que me-rece precisamente essa dose de respeito e atenção queesses mitos normalmente merecem. Pode ser vista, poroutro lado, domo uma definição oculta da relevância.Nesse caso, não se deveria ser iludido pela sua formapseudo-empírica, mas tomá-la pelo que ela é — uma tau-tologia metodologicamente conveniente. Mas então aquestão de por que algumas ações habituais e não ou-tras se tornam eventualmente institucionalizadas ficasem resposta. Se, porém, Berger e Luckmann querem darsignificado literal ao que aparentemente dizem, imedia-tamente surge a dúvida se os indivíduos, para quem foraminstitucionalizadas ações específicas, e os outros indiví-duos para quem tais ações são "relevantes", são as mes-mas pessoas. Parece que, precisamente no espaço esten-dido entre essas duas categorias distintas de indivíduos,se acomoda o problema da realidade social tal como era,a experiência mesma da realidade social brota do senti-mento de discrepância, ou incongruência, entre as ins-tituições e a relevância. Mas este espaço está ausente davisão de Berger e Luckmann; foi eliminado, desde o prin-cípio, por uma suposição que se desfaz da possibilidadede uma crítica à realidade social como um problema se-parado e diferente da crítica ao conhecimento.

Tendo dito tudo isto, a crítica de Berger e Luckmann:continua a ser um passo audacioso e dramático em di-reção ao conhecimento social, o qual, ao contrário daciência da não-liberdade durksoniana, é capaz de con-verter-se numa crítica à sociedade. Tal crítica terá deabranger, como sua condição e ponto de partida, umaanálise completa da origem social do conhecimento àmaneira de Berger e Luckmann. Mas, frise-se bem, sóincorporará tal crítica como o seu ponto de partida.;

CAPÍTULO 3

CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

RAZÃO TÉCNICA E EMANCIPADORA

Tanto a sociologia como a sua crítica, tais como fo-ram descritas no último capítulo, só admitem um compro-misso: um compromisso para com a verdade, compreen-dida, aproximadamente, como a função de descreveras coisas "tais quais como elas são" e, portanto, de for-necer um fundamento sólido para a ação. Sejam quaisforem os outros compromissos que a sociologia e a suacrítica vierem a tomar (e já nos referimos a alguns de-les), não fazem parte do projeto e certamente não lhesé permitido, conscientemente, interferir na estratégia dacognição. Tais compromissos são assumidos inconsciente-mente, por meio da iluminação seletiva de um ou outroaspecto da multifacetada natureza humana. Não sãoprocurados conscientemente; quando descobertos (e elessó são descobertos quando se tomou uma posição crítica),são expostos como evidência da imaturidade ou fracassodo conhecimento X3U como um sinal do seu mau uso.Mesmo então, eles são apresentados como simples desviosda verdade; na maioria dos casos, evitam-se cuidadosa-mente compromissos extracientíficos, mesmo quandoesses compromissos, já descobertos, são criticados. Há umacordo tácito entre a crítica da sociologia e o objeto dessacrítica — acordo que ambas as partes estão ansiosas emnão transgredir — em atribuir à "verdadeira descrição dosfatos" o papel não somente de juiz supremo mas de único*

Page 63: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

122 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

juiz do seu debate. Em vez de expor os muitos compro-missos virtuais do conhecimento social, o debate, por maisveemente que seja, robustece os cientistas sociais na sua'dedicação à conquista dessa verdade não comprometida;«, na sua crença, que tal verdade seria acessível, se oanétodo de obtê-la fosse suficientemente purificado depoluentes terrenos.

Deu-se o nome de positivismo, num dos seus muitossignificados (a "estática purificação das paixões" — Ha-Tjermas) a este programa de conhecimento não compro-metido. Se o programa da ciência positiva não tiver outrafunção senão a de apelar para a investigação dos fatos«de uma maneira imparcial — tais como eles realmentesão, e não como deveriam ou poderiam ser, se não hou-vesse impedimentos — o programa do positivismo man-tém que, primeiro, a espécie de conhecimento que podeser obtido por meio da ciência positiva organizada comotal é o único válido e, mais importante ainda, tal conhe-cimento será, inevitável e não problematicamente, tão'imparcial e apartidário como a atitude dos cientistas queo produzem. Como Habermas indicou,1 a possibilidade detal programa estava contida, embora só em embrião, noelogio que o iluminismo fez à razão como o valor supremoe o guia da prática humana no mundo. A razão foi lan-çada por "lês philosophes" como o conquistador do pre-conceito dogmático, a cuja porta se colocou a culpa pelaescravidão opressiva física e" espiritual que os homens so-íreram na maior parte da sua história. Na mente de "lês•phüosophes", havia uma razão claramente empenhada,Taatalhadora, totalmente imersa nos anseios mais tópicos,urgentes e angustiantes do homem. A causa da emanci-pação humana foi a base da luta para o avanço da Razão.*O triunfo da Razão sobre o preconceito foi visto, na ver-dade, como a própria emancipação: a aquisição do co-nhecimento, esperavam "lês philosophes", dará aos ho-mens controle sobre as suas vidas e os seus destinos: nãohaverá mediação entre o conhecimento adquirido parti-cularmente e o controle privado, não haverá subprodutos,não haverá cognitives pouvoirs intermédiaires, não ha-verá ossificações institucionalizadas que se levantarão,icomo barreiras intransponíveis e opacas, entre o homem

l Jurgen Habermas, Theory and Practiee, Heinemann, Londres, 1974,Í>. 256 ss. Trad. por John Viertel.

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 123

e o seu destino. "Lês philosophes" não sabiam, e não po-diam saber, que o avanço de um conhecimento tecnica-mente perito, instrumentalmente eficiente, poderia, maiscedo ou mais tarde, atar os homens a um imenso mundoartificial do qual eles dependerão materialmente, masque não dependerá da capacidade deles de penetrá-lo eabrangê-lo espiritualmente. "Lês philosophes" não suspei-tavam de que a Razão que eles emanciparam viria a cris-talizar-se em novas algemas que a ciência, tecnicamenteorientada, só teria possibilidade de fortalecer, e que poriana agenda um repensar fundamental do tipo de conhe-cimento que o homem necessitará para controlar o seudestino. Dificilmente se pode culpar "lês philosophes"pelo fracasso da previsão. Eles articularam o programada emancipação nos únicos termos que a experiência dasua época lhes proporcionou. A ciência positiva, empe-nhada num combate de vida ou morte contra o precon-ceito dogmático, era ó único nome disponível, no seutempo, para que a Razão se empenhasse na função daemancipação humana.

O positivismo alimentou-se do que tinha sido a formahistoricamente limitada, temporária, provisória da cha-mada às armas feita pelo iluminismo. Separou cuidado-samente a forma do conteúdo que se propunha servir.Os meios foram fervorosamente promovidos ao posto defins "autotélicos". "O compromisso pela emancipação, oenvolvimento prático que forneceu o combustível com quefoi lançada a Razão na sua órbita espetacular, teve per-missão para retroceder lentamente para os fundos, ondesó seria examinado em ocasiões cerimoniosas, mas rara-mente observado durante a rotina diária. Imperceptívelmas inevitavelmente, o compromisso como tal veio a seridentificado como um desvio mórbido do caminho esco-lhido, que se julgava conduzir à única verdade digna dessenome; como um renascimento do mesmo preconceito dog-mático, que a demanda da verdade positiva se tinhaproposto destruir. Entre os compromissos extracientíficosamontoados no campo condenado, cedo se encontroulugar para qualquer compromisso em realizar a eman-cipação humana, que olhasse para além da ciência po-sitiva instrumentalmente orientada, procurando uma ala-vanca mais poderosa para a liberdade humana.

A diferença essencial entre o Iluminismo e a Razãopositivista era a mesma que existe entre espírito aberto

Page 64: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

124 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

e espírito fechado, entre um postulado esperançoso e umadescrição conservadora. Para "lês philosophes", a Razãoera — para parafrasear Santayana — uma navalha com.o fio voltado para o futuro: um programa da luta queestava para vir, destinada a combater o preconceito, aignorância, o dogmatismo encarnado na obediência ab-jeta ao presente e, através do presente, ao passado do:qual descendia. Eles viram a Razão como um cavaleiro-andante virtuoso que audaciosamente, talvez mesmo, te-merariamente, desafiasse os poder es esmagadores da não--razão cristalizada na escravidão humana e no terror. Fora-a não-razão que havia sido fortificada nas trincheiras darealidade humana "aqui e agora". Para expulsá-la daí,,a Razão teve que ser crítica da realidade humana, teveque considerá-la a partir de uma perspectiva autônoma,,teve que assumir o ponto de vista de uma realidade me-lhor ainda por vir; teve que, em outras palavras, dedi-car-se voluntária e conscientemente a um ideal utópico,,iconoclástico. Todas estas autodesignações altivas conver-teu-as a Razão positivista em invectivas. Da sua posiçãaprivilegiada — tornaram-se atributos da não-razão quea Razão tinha por missão destruir. Se a modalidade do<futuro é caracterizada pela liberdade casada com a in-certeza, enquanto a modalidade é caracterizada por umamistura de certeza com não-liberdade — pode-se dizerque a Razão, lançada pelo Iluminismo no molde "futuro",,foi lançada de novo pelos herdeiros positivistas do ilumi-nismo no molde do passado.

A chocante transformação da Razão na sua jor-nada do iluminismo para seus herdeiros positivistasencerra, de fato, pouco mistério. Foi simplesmente mais-um caso da regra muito conhecida, cuja manifestação*pode facilmente ser observada onde quer que uma utopia"se transforma em" realidade: o que perde irreparavel-mente no processo é o seu gume crítico. Holbach podia,sem grandes escrúpulos, subintitular a sua obra funda-mental Leis do mundo físico e dp mundo moral — não-porque não tivesse consciência da distinção entre os fatose as normas, mas porque (uma circunstância que algunsdesejam esquecer) o denominador comum, que ele invocoupara legitimar a conjunção, não era a "realidade obje-tiva", mas a razão. Era a Razão que permitia que fizessesentido falar simultaneamente de leis físicas e de leismorais. Em parte — no mundo físico — a razão já se

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 125

tinha identificado com a realidade, graças ao fato de quea Natureza não necessitava de nenhuma mediação hu-mana informada para "se sentir uma só consigo mesma",para fundir a sua potencialidade com a sua atualidade!Tendo-se dissolvido nas obras da Natureza, a Razão podiasimplesmente ser encontrada aí. O avanço da Razão e oconhecimento dos fatos da Natureza eram, supostamente,uma única atividade. No mundo moral, porém, a Razãoresidia só como uma potencialidade, como um postulado,um mandamento, como um programa utópico para o fu-turo, esperando ainda que chegasse o dia de ser abraçadapor homens esclarecidos e convertida em realidade. Aprática comprometida, informadora de valores no reinodá ética era, portanto, a companheira natural e equiva-lente do estudo sem preconceito, imparcial, da Razãoincarnada na Natureza não-humana. Se um positivistafosse dar a um livro seu o subtítulo de Holbach, teriacertamente atribuído outro significado à mesma conjun-ção. Os mundos físico e moral pertenceriam, para ele, àmesma classe, não porque ambos estão ou deveriam estarsubjugados à Razão, mas porque ambos são realidade,esperando ser estudados da mesma maneira imparcial,desinteressada e isenta. Mas então, na sua reencarnaçãopositivista, a Razão declara a sua falta de interesse pelaspotencialidades humanas ainda não realizadas e a suainabilidade para discuti-las: é somente aí que os fatose os valores separam os seus caminhos de uma vez parasempre. Com a Razão forçada a abdicar dos direitos decriticar e relativizar a realidade humana, os homens estãocondenados, queiram ou não, a procurar noutra partealavancas para se libertarem. Mas esta "outra parte" foicondenada, desde o princípio, como o domínio do erro edo preconceito, variavelmente chamado partidarismo,ideologia, utopia. Tendo sido uma vez a arma da eman-cipação, a Razão converteu-se no seu adversário. Porém,quanto mais êxito tem em repudiar e desaprovar os esfor-ços da emancipação, menos desafiada é a regra dos char-latães e curandeiros na obstinada demanda humana porum mundo melhor. A questão consiste, portanto, em saberse a Razão do Iluminismo ainda contém uma mensagemque possa ser usada para informar a tarefa da emanci-pação humana numa era moldada — material e espiri-tualmente — por uma civilização científica; se, em outraspalavras, a Razão e a Emancipação, há muito divorcia-

Page 65: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

126 CRÍTICA,DA NÃO-LIBERDADE

das, poderão ser reconciliadas novamente; se a Razão,enriquecida mas mudada por dois séculos de explosãocientífica, poderá agora reivindicar o seu poder críticoe a sua potência para realizar a emancipação do homem.

O próprio êxito das ciências positivas, o aumento tre-mendo na capacidade técnico-instrumental da humani-dade, manifestou-se no surgimento de uma civilizaçãotecnológica a qual, construída por unidades altamenteespecializadas e autônomas, se separou da sua fonte: aatividade humana informada e objetivada; e que não pre-cisa, para a sua sobrevivência e crescimento, de ser pene-trada no seu todo pela consciência humana e refletidanum conhecimento universalmente distribuído. Tornou-se,portanto, "como" a natureza, no sentido de ser indepen-dente do conhecimento humano e da consciência — aomenos um conhecimento e uma consciência que se refle-tem diretamente sobre ela como uma totalidade, a fimde orientar a sua atividade. A ciência positiva, contri-buindo para a habilidade técnico-instrumental especiali-zada, só pode colocar novos tijolos no muro cognitivo quesepara o sistema autônomo da civilização dos homens quedependem cada dia mais dela para a sua existência. Opositivismo, lutando por assegurar para tal ciência a po-sição de conhecimento monopolístico, concorre aindamais para a dependência humana, combatendo feroz-mente todas as tentativas para tornar esse muro pene-trável ao olho humano. Parece, portanto, que o interesseda emancipação humana, o desejo de controlar conscien-temente o curso da história humana, pode não ser ade^quadamente servido se a atitude, cognitiva, positivista-mente informada, retiver o seu monopólio. Nas palavrasde Habermas:

isto só pode ser alterado por meio de uma mudança noestado da própria consciência, por meio do efeito práticode uma teoria que não promova a manipulação das coisase das reificações, mas que, ao invés, promova o interesseda razão no estado adulto do homem, na autonomia daação e na libertação de todo dogmatismo. Isto só podeser atingido por meio das idéias penetrantes de uma crí-tica persistente.

A questão consiste, porém, em saber como tal críticapode legitimar-se a si mesma, dentro da civilização infor-mada pela linguagem positivista em ascensão.

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 127

Mais uma vez, como nos tempos do iluminismo, arazão que se propõe ser crítica e, portanto, apoiar e promo-ver o processo da emancipação, tem que enfrentar o sens®comum como o seu adversário mais poderoso. Com o senso»comum, refletindo a falta de autonomia que define aiexistência diária, é a razão, aspirando a uma responsa-bilidade adulta e à libertação da ação humana, que estássujeita ao ridículo e à refutação no campo da evidência.Há pouco na experiência do senso comum que possa ga-rantir esperança. Pelo contrário, a totalidade da rotinadiária parece expor a sua ingenuidade e desacreditar assuas promessas. À razão emancipadora, desde o princípio;,é negado o benefício de uma evidência não organizada,,espontânea, comparável à que desfruta o senso comum.Parece, portanto, infundada, desenraizada, achacada portodas as fragilidades que o senso comum, articulado na?positivismo, põe como o mais odioso dos pecados que DÍconhecimento pode cometer — a fantasia, o utopismo, o»irrealismo. Na verdade, para legitimar as suas pretensões,,esta razão tem que avançar para além do senso comume desafiar a própria existência diária que torna o sensoicomum tão placidamente, senão tão nesciamente, segurada sua legitimidade. A razão emancipadora não compete;simplesmente com outras teorias, as quais, como a ciência,da não-liberdade, ou a sua crítica, tentam somente arti-cuíar o que a experiência do senso comum já de si dá,aos homens. Nega temerariamente a validade da própriainformação, apresentando-a como inconclusiva, parcial»historicamente limitada, como o reflexo de uma existên-cia mutilada, truncada. Sua luta não é com o senso-comum mas com a prática, chamada realidade social, quelhe está subjacente. A razão proclama a realidade mesma»como não verdadeira. Sua luta contra o senso comum é,,portanto, não que o senso comum erra Co senso comunisnada tem contra ser corrigido; também ele procura sercoerente e gosta da sensação de ser um só com a lógica),,mas que na verdade transmite uma experiência que, emisi mesma, é falsa, uma vez que nasceu, tal como é, da.supressão do potencial humano. A consciência do senso»comum, considerada como tal, não é falsa; mas reflete-fielmente a existência que desfigura o potencial humanogenuíno. Daí que a razão emancipadora vá além de uma,crítica meramente epistemológica do senso comum.

Page 66: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

128 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

A razão emancipadpra viaja por regiões que o seuoposto positivista declarou estritamente fora de limites.Está determinada a desvendar os fatores responsáveis pelaunilateralidade, pela seletividade da experiência humanae os "fatos" que ela fornece. Pressupõe que o "precon-ceito" que "lês philosophes" combateram não está enrai-zado nas deficiências das faculdades cognitivas do ho-anem; Suas raízes penetram muito mais fundo, na própriaestrutura das condições humanas. Se a razão positivista.só se encontrar criticamente com o senso comum na ba-talha cognitiva, se castigar o senso comum por não sersuficientemente metodológico, por extrair falsas conclu-sões da evidência verdadeira — a razão emancipadoranão culpa o senso comum pelos seus erros de julgamento.Ao invés, e muito mais penosamente, a razão emaneipa-dora põe em questão a admissibilidade da evidênciamesma sobre a qual os juizes do senso comum são feitos.É a própria realidade social que torna a consciência do;senso comum falsa — mesmo quando resultante de umaxeflexão fiel, correta.

Tal atitude iconoclasta não pode senão encontrar aresistência mais feroz. Se aceita, certamente porá emdúvida a virtude do senso comum, freqüentemente iden-tificado com a sabedoria, e diminuirá a força e o poderde atração das crenças do senso comum. "Desnaturali-zará" o que o senso comum faz passar por natureza, farádo inevitável uma questão de escolha, transformará anecessidade supra-humana num objeto de responsabilida-de moral e forçará os homens a questionar o que tem.-sido irrefletidamente, muitas vezes por conveniência,aceito como fatos brutos, imutáveis. Fará em pedaços o(escudo protetor, confortavelmente apertado, que deixa tãorpouco à decisão humana e à sua responsabilidade. Po-derá muito bem tornar insuportável a mesma condiçãoliumana que o senso comum se esforça tanto — e comtêxito — por tornar tolerável.

É graças ao senso comum que o homem

sabe quem é. Sente-se conformado. Pode conduzir-se asi meskio "espontaneamente, porque a estrutura firme-mente internalizada, cognitiva e emotiva lhe torna desne-cessário, ou mesmo impossível, refletir sobre possibilida-des alternativas de conduta... As definições socialmentedisponíveis desse mundo são assim tomadas como se fossem"conhecimento" sobre ele e são continuamente comprova-

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 129

das para o indivíduo pelas situações sociais em que esti"conhecimento" é considerado garantido. O mundo social-mente construído torna-se o mundo tout court o únicomundo real, tipicamente o único mundo que se pode se-riamente conceber. O indivíduo é, assim, libertado da ne-cessidade de refletir de novo sobre o significado de cadapasso na sua experiência que se desdobra. Pode referir-sesimplesmente ao "senso comum" para tais interpreta'ções... 2

O que o homem perde ao respirar os seus horizontescognitivos e na possível apreensão das suas potencialida-des interiores ganha-o certamente em segurança emocio-nal. Ele atinge uma impressão enganadora, mas com-pensadora, do significado do seu mundo, ao limitarseveramente a parte desse mundo de que ele esperapossuir o sentido. Adquire a habilidade de fazer face àsduras realidades do mundo público porque ele crê, comolhe foi dito, que só é responsável pelo seu pequeninomundo privado. Assim crendo, ele não erra; a sua cons-ciência só é falsa por "delegação", na medida em quea sua condição real falsifica as suas verdadeiras poten-cialidades. Existe, de fato, uma correspondência de sen-tido duplo entre a situação humana e a reflexão do sensocomum. É graças a esta correspondência que o sensocomum é cognitivamente satisfatório e pragmaticamenteeficiente. Nesta dupla utilidade é confirmado o fortale-cido por esse tipo de ciência social que codifica e articulaa rendição conveniente. Como diz Henry S. Kariel:

assim como o sonho de um ieeberg flutuando nos deixaadormecidos quando o cobertor cai da cama, o relatórioda ciência política de que a apatia é uma função do sis-tema político saudável nos reconcilia com a exploraçãocomo parte do corpo político. Os cientistas políticos re-velam, consolodoramente, que tudo o que acontece não é"realmente" acidental. Eles revelam a existência de pa-radigmas subjacentes — paradigmas presumivelmentebaseados na natureza, impostos pelo Destino, pela Histó-ria, pela Racionalidade ou pela Lógica dos Acontecimen-tos. Baseados nos sentimentos metafísicos de Einstein,eles presumem que Deus não joga dados. Tal como asgrandes obras da teologia e da arte, as suas racionaliza-ções satisfazem a necessidade humana: tornam a nossa

2 .Peter L. Berge.r, "Identity as a Problem in the Sociology ofKnowledge", in Towards the Sociology of Knowledge, org. por GunterW. Remmling, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1973, pp. 275-6.

Page 67: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

130 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

existência tolerável. E, como as grandes conquistas dateologia, eles ajudam a implementar o que os poderososdizem ser o consenso. 3

Na luta contra a realidade protegida pelo sensocomum, a razão emancipadora parte de uma posição deinferioridade, estando condenada a ressuscitar as ansie-dades e a incerteza aterradora do destino humano, queo senso comum põe tão tranqüilamente em repouso ousela hermeticamente.

Ao contrário do conhecimento motivado instrumen-ttalmente, a razão emancipadora não promete facilitar astarefas que p senso comum se esforça por cumprir: astarefas de tirar o melhor partido possível do mundo"dado", em toda a sua deslumbrante evidência, na maiselementar experiência. Não se oferece para auxiliar osenso comum no seu esforço para processar adequada-mente e sistematizar a informação aparentemente exataque a experiência fornece. Ao invés, vem com um con-selho que, se tomado com seriedade, poderá pulverizaros muros sólidos do confortável mundo diário: propõe-se,sem mais, a tomar uma atitude irônica para com a expe-riência mesma, completa com os "fatos" presumivelmentesólidos que ela fornece. Se o senso comum pede aos ho-mens que acreditem nas "leis da natureza", que a razãoemancipadora acha difícil aceitar, a reação não se con-fina a reexaminar o método de recolhimento dos /atoae a lógica do raciocínio do senso comum. Inevitavelmen-te, ataca a "experiência" que fornece tais fatos e estimulatal raciocínio. Questiona o caráter "natural" da "natu-reza" putativa. O irônico isolamento do senso comum quea razão emancipadora encoraja e cultiva tem o seu gumedirigido contra a realidade social e não contra as facul-dades humanas, cognitivas e morais.

É por esta razão que a crítica destinada a emanciparo homem está condenada a considerar o senso comumcomo um obstáculo. O senso comum só pode cumprir assuas funções cognitivas e emocionais na medida em queconsegue fechar os olhos às "realidades alternativas".Todo o poder de convicção que o senso comum possaapresentar assenta, em última análise, na pressuposição

3 Henry S. Kariel, Open Systems, F. E. Peacock. Itasca, 111., 1971,p. 86.

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 131

de que a realidade transmitida pelo senso comum é aúnica realidade, enquanto o senso comum é o único canalatravés do qual a informação acerca dele pode ser obti-da: a realidade é só uma, e o senso comum é o seu porta--voz. O senso comum, auxiliado pela ciência tecnicamenteorientada que fortalece os seus achados em conhecimentoutilitário, não se poupa, portanto, a esforços para expore desmascarar os "falsos profetas" das realidades alterna-tivas. Como vimos, a linguagem técnico-científica ofereceum número razoável de categorias que têm sido cunhadascom este propósito. Uma "possível realidade", que estáimpossibilitada de produzir um certificado de viabilidadepassado pela experiência, é apodada de irrealista, irra-cional, ou utópica — dependendo do contexto. Pelo con-trário, a razão emancipadora só pode reivindicar a sualegitimidade, sob a condição de que a única realidade deque a experiência do senso comum nos informa não temoutro fundamento senão o que a coincidência históricapode dar, e de forma alguma pode ser considerado comoo único possível e concebível. Em particular, percebe aslimitações do raio de possibilidade, propostas pelo sensocomum, como uma mera reflexão das limitações impostasà ação humana pela mudança da prática histórica. Nemuma nem outra é final e irreparável. A fim de descobriras espécies alternativas da prática, que têm sido supri-midas e temporariamente eliminadas pelo curso único dahistória feito pelo homem, é preciso primeiro aceitá-lascomo uma possibilidade; e isto requer uma refutação hi-potética da finalidade da evidência do senso comum.

A razão emancipadora está em conflito com o sensocomum (e com o conhecimento técnico-instrumental quecompartilha do seu ponto de vista filosófico) num outroponto vital. Tendo aceitado a realidade historicamenterealizada como a única fonte de conhecimento legítimo,o senso comum, juntamente com a ciência derivativa, li-mita o seu reconhecimento de escolha ao que lhe é colo-cado como "comandos decisórios", num processo clara-mente determinístico. O positivismo nega à ciência _odireito de discutir os "fins"; na verdade, esta abstençãovoluntária de ir além do reino dos significados, de veras discussões dos valores como seus objetivos, de apre-sentar questões sobre os "fins da história" ou o "signi-ficado da existência humana" — todos estes aspectos dasua auto-imposta modéstia definem a ciência que o posi-

Page 68: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

132 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

tivismo reconhece como a única forma de conhecimentoVálido. Mas a distinção entre fins e meios, que delineiaos limites da pesquisa científica, nada mais é que a re-flexão da linha divisória entre as coisas controladas e ascoisas fora de controle, outra vez, tais como propostaspela realidade social que foi historicamente realizada. Navida social, os "meios" referem-se às atividades ou aosseus aspectos que foram mantidos flexíveis e que podeme devem ser dirigidos pela escolha humana. Os "fins",por outro lado, são estados em larga escala ou mudançasque não são, pelo menos diretamente, objeto de decisãodeliberada feita por elementos específicos. Estão situadosao nível desta totalidade social que se tornou indepen-dente da atividade humana consciente e com uma fina-lidade. Se por casualidade os homens se tornam objetosde tal decisão, a ciência, tal como no caso dos supra--senhores carismáticos weberianos da burocracia orientadapara os meios, não pode nem interferir nem auxiliar.Quanto ao processo histórico como um todo, seus finspodem ser teoricamente apresentados como conseqüênciasremotas de decisões minuciosas, seccionais. Mas eles nãofiguram nestas decisões como motivos "a fim de". Elesseguem tais decisões de maneira inescrutável a fortiari,cuja lógica só pode ser penetrada retrospectivamente.

O conhecimento orientado para interesses técnico--instrumentais não tem instrumentos para analisar e se-lecionar os "melhores fins". Ao invés, coloca os fins dentroda realidade que aceita como certa, como o ponto departida de toda a pesquisa. De acordo com o mesmo prin-cípio, tal conhecimento segue o senso comum, ao atribuirimplicitamente aos fins um status próximo da inevita-bilidade. Não são considerados matéria de escolha; são,quando muito, o critério supremo de todas as outras es-colhas menores, mais limitadas. A realidade social éhistoricamente construída de maneira a impedir que al-gumas questões fundamentais jamais se tornem objetode consideração deliberada e de decisão por parte doshomens. O senso comum reflete esta estrutura da reali-dade social, impedindo os homens de fazer face a taisquestões como objetos da sua responsabilidade e decisão.Ao invés, o processo vital e suas reflexões intelectuaissão separados numa multidão de decisões minúsculas erelativamente inconseqüentes, nenhuma das quais estáprática ou intelectualmente relacionada diretamente com

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 133

os dilemas fundamentais da condição humana. Assim osenso comum apresenta como uma necessidade supra--humana o que a realidade social já colocara para alémdo campo do controle humano. Neste sentido, como emmuitos outros, a realidade social e o senso comum apóiam--se e fortalecem-se um ao outro. O homem abstém-se dese rebelar, e a realidade social, por seu lado, impede-o defazer face a situações que poderão ocasionar esse senti-mento desagradável e doloroso da incerteza. Como diriao Martin de Voltaire, "TravaMons sans raisonner...C'est lê seul moyen de rendre Ia vie supportabte".

E assim, o conhecimento técnico-instrumental nãotem nenhum dos instrumentos exigidos por alguém quedesejasse avaliar os fins com o mesmo grau de certezae precisão com o qual este conhecimento avalia as açõesdefinidas como meios. O conhecimento técnico-instrumen-tal admite voluntariamente a sua incompetência. Mas,ao mesmo tempo, nega a possibilidade de que qualqueroutro tipo de conhecimento dê veredictos autorizadossobre questões que se esquiva a discutir. Sendo-lhe umametodologia mais sofisticada, e ameaçada contra idéiasque possam alargar a sua imaginação além dos limitesda realidade à mão, o senso comum obviamente optarápelos únicos fins que podem produzir evidência da sua"realidade" — isto é, aqueles fins que estão entrelaçadoscom a própria realidade social e, portanto, se apresentamao indivíduo como uma necessidade exterior. A ciênciaconcordará, então, com o senso comum, afirmando quea "satisfação das necessidades humanas" fornece o limiteúltimo, e não-partidário, ao campo daquelas atividadeshumanas que podem ser instrumentalizadas e julgadascomo tais, auxiliadas e aperfeiçoadas pela ciência. Masnão as próprias necessidades humanas"— que são sim-plesmente dadas, e que se esperaria que, monotonamente,nos fizessem sentir a sua obstinada presença, aconteçao que acontecer na esfera instrumental. O que ficou pordizer é que essas próprias necessidades são, em últimaanálise, um produto cultural, isto é, não-natural (excetopara as poucas necessidades "fisiológicas", orgânicas, cujadiscussão faz, porém, pouco sentido prático, uma vez queem cada cultura conhecida são concebidas teoricamente,em vez de aparecerem na sua forma pura, sem adornos).

É verdade que até muito recentemente as necessida-des humanas entravam nas relações humanas como pon-

Page 69: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

134 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

tos de partida indiscutíveis, e não como objetos dêmanipulação intencional. Eram, contudo, o resultadode uma ação humana, embora uma ação não controladapela compreensão e por um conhecimento antecipatóriojião-esclarecido. Uma vez estabelecidas, essas necessidadesliumanas entram, sob a forma de expectativas e de soli-citações, numa relação de feedback (realimentação) com.a realidade social a qual, por sua vez, empresta-lhes algo•da sua aparência de inevitabilidade. A atitude do senso.comum resultante, tomando-as como certas, contribuiainda mais para o seu entrincheiramento e obscurece'ainda mais o fato da sua origem humana, historicamentecontingente. Isto significa, na prática, que a possibilidadede submetê-las a um controle humano consciente, escla-recido, se torna cada vez mais remota, e o sistema posi-tivista alimentado pelo senso comum, que nega à razãocrítica o direito de avaliar as necessidades humanas, éparcialmente culpado pela perpetuação desta situação. Aoendossir o expediente de separar as questões existenciaismimai pletora de decisões diárias de curto alcance, estrei-tamente circunscritas, a ciência, orientada para o interessetécnico e sob a alegação de que se apoia na racionalizaçãoda' ação humana, propaga sem querer' a irracionalidadedo processo histórico — embora somente pôr defeito. Paracitai- novamente Habernias:

A raiz da irracionalidade da história é que nós a "fa-zemos", sem, contudo, termos podido até hoje fazê-la cons-cientemente. Uma racionalização da história não pode,portanto, ser promovida por um vasto poder de controlepor parte de seres humanos manipuladores mas somentepor meio de um alto-nível de reflexão, uma consciência

: de seres humanos atuantes, a caminho da emancipação. *

Para resumir — a razão emancipadora entra em con-flito com o senso comum em três frentes cruciais: comoestá determinada a "desnaturalizar" o que o senso comumdeclara ser a natureza humana — ou social; expõe ècondena a ignorância deliberada de realidades alternativaspor parte do senso comum; e tenta restaurar a legitimi-dade daquelas questões existenciais que o senso comum,seguindo a condição humana histórica, pulveriza numamultidão de miniproblemas, com o fim de articulá-los em4 Habernias, op. cit., pp. 275-6.

RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 135

termos puramente instrumentais. Em vista desses desa-cordos, a razão emancipadora não pode propor-se ver-dadeira ou falsamente — a corrigir o senso comum epromover a sua sofisticação teórica como faz a sociologiadurksoniana; nem pode propor-se voltar os seus instru-mentos de pesquisa para o senso comum em si mesmo,a fim de explorar a gramática geradora de crenças quêo senso comum apresenta como acriticamente óbvia, comofizeram os críticos da sociologia inspirados no existencia-lismo. Não pode deixar de questionar a realidade mesmaque o senso comum fielmente se esforça por refletir — e,portanto, não pode deixar de minar a própria base daautoridade do senso comum como fonte fidedigna do ver-dadeiro conhecimento.

Pode-se apontar um denominador comum aos trêsprincipais pontos de controvérsia entre a razão emanci-padora e o senso comum: isto é, o conflito entre a pers-pectiva histórica e a natural. A razão em4ncipadora sópode provar à sua tese, se conseguir reorganizar o conhe-cimento em, s termos da sua estrutura verdadeiramentehistórica. E é precisamente uma inata tendência parapropor o histórico como natural (isto é, fora do tempo),que fornece ao senso comum o seu princípio cognitivo,mais crucial. Na verdade, este não é só o primeiro pontode desacordo que só faz sentido, se for visto contra o panode fundo deste conflito supremo; o mesmo se aplica às'outras duas questões da controvérsia. Uma realidade so-cial específica não poderia ser seriamente sustentada comoindesafiável e imutável em um ou outro de seus aspectos,se esta realidade fosse avaliada como historicamente con-tingente. E a multidão de miniquestões tendem a crista-lizar-se imediatamente em grandes problemas existenciais(e só então) quando as questões de sua origem históricasão colocadas seriamente, e, por conseguinte, a suspeitada sua transcendência histórica é solidamente fundada.

É esta perspectiva histórica que nos permite trans-cender a oposição entre os dois pólos da experiência hu-mana pré-predicativa (definição e situação, motivos elimitações, controle e sistema), sobre os quais está fun-damentada a controvérsia supostamente fundamentalentre a sociologia durksoniana e os seus críticos existen-cialistas. Na verdade, os pólos da ação do agente e dasituação só são contrapostos como agentes mutuamenteindependentes e forças discordantes apenas se forem exa-

Page 70: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

136 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 13?

minados dentro da estrutura de um só ato, ou de urnconjunto de atos idênticos. A autonomia dos pólos desa-parece, porém, se os estreitos horizontes cognitivos foremdesfeitos, e o ato começar a ser visto como um elo nacadeia histórica. O que transpira, então, é o fato de queos pólos estão inseparavelmente ligados um ao outro evna verdade, se constituem um no outro.

O que pretendemos dizer com isto é a constitui-ção como processo histórico — não a constituição "cogni-tiva", facilmente reconhecida pela sociologia, que nãotem .uso para a historicidade: esta última é verdadetrivial de que a situação e a sua definição são inconce1-bíveis quando isoladas uma da outra. O reconhecimentodesta verdade trivial não está de forma alguma relacio-nado com a determinação ou não-determihação de se olharalém da fronteira de um simples acontecimento, em di-reção aos homens como agentes históricos. Requer apenasa aceitação muito simples do ator como um agente epis-temológico, o qual se posiciona ou se apropria do seg-mento da realidade trazido à luz por meio das suasintenções, dos seus motivos ou dos seus labores intelectuais.Como vimos, a única forma em que o tempo e o processosão admitidos neste cenário é o passado biográfico do ator,Mas urna história tão individualizada é uma alavancademasiado fraca para levantar a barreira que separa osdois pólos da ação-estrutura; o outro pólo, centrado —situacionalmente, é tão autônomo para com a biografiado ator como o é em relação às momentâneas intençõesdo ator.

Não é assim no caso de uma constituição verdadei-ramente histórica. Aqui, a justaposição do ator e da suaisituação é reduzida a seu próprio status — um instan-tâneo momentâneo de um processo em que os homensdesempenham ambos os papéis tão claramente distingui-dos num único ato — o de sujeito e objeto da história,Esta unidade dialética de ambas as faces da experiênciahumana foi admiravelmente expressa por John R. Seelejr:

O que jge perde de vista nesta maneira de falar é, maisuma vez, que o princípio de inclusão não é "dado" (comoa relação da célula do fígado para com esse fígado e essecorpo em que o fígado se encontra), mas "atuado"; que oque está em jogo é uma lealdade, não um locvs; queenquanto há conseqüências de direção dupla, de maneira

que nenhum dos soldados nem o exército são conceptuajjou praticamente independentes, as relações não são as da.implicação lógica (como nas partes dos triângulos) nem,a necessidade (como na célula do corpo), nem mesmo uma:conveniência não-moribunda.s

Se, por casualidade, forem relações históricas, então*a oposição do ator e da sua situação, em vez de passarpela realidade última, pré-teórica, de onde toda a inves-tigação deve partir, torna-se ela própria uma ocorrênciasa ser explicada e, acima de tudo, questionada. Sejam'quais forem as limitações que a situação aqui-e-agorapossa impor, a verdade é que ela revelará então a sua?verdadeira natureza: a de sedimentos de ações e escolhas;;passadas.

!

A "SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE;

Nenhuma teoria até hoje foi tão longe como a so^ciologia marxista para elucidar a contingência histórica;das condições supostamente naturais da existência hu-mana. A sociologia marxista situa a ciência da não-liber-dade e os seus críticos existencialistas como partes dasmesmas condições historicamente limitadas e, portanto;abre a possibilidade da sua transcendência criativa.

O argumento de Marx contra Adam Smith6 podeser considerado como um exemplo típico do método da"crítica. Smith, assim como a sociologia durksoniana e os;seus críticos, "naturaliza" as condições históricas da exis*tência humana. Capital, preços, troca, interesse privado,,etc. tudo isso ele vê como pré-condições do processo vital,,como "fatos objetivos" a partir dos quais deve partirqualquer processo vital, assim como o seu estudo. Marxquestiona esse pressuposto:

A dissolução de todos os, produtos e atividades em valores-de troca pressupõe a dissolução de todas as relações pes-soais fixas (históricas) de dependência na produção,assim como a total dependência dos produtores uns dos':outros. A produção de cada indivíduo é dependente d*

5 John R. Seeley, "Thirty Nine Articles: Toward Theory of Social»Theory", in The Criticai Spirit, Essays in Honour of Herbert Marcuse,org. por Kurt H. Wolff e Barrington Moore, Jr., Beacon Press,Boston, 1967, pp. 168-9.6 Karl Marx, Grundrisse, Penguin, 1973, p. 156 ff. Trad. por Martin»Nicolaus. i

Page 71: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

a 38 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

produção de todos os outros; e a transformação do seuproduto no que é necessário à sua própria vida é (igual-mente) dependente do consumo dos outros. Os preços sãoantigos, a troca também; mas a crescente determinaçãodos primeiros, pelos custos da produção, só se desenvol-ve totalmente, e continua a desenvolver-se cada vezmais completamente, numa sociedade burguesa, a socie-dade de livre competição. O que Adam Smith, muito àmaneira do século XVIII, atribui ao período pré-histórico,o período que precedeu a história, é também um produtoda história.

É a dependência individual à multidão anônima deoutros membros da sociedade que se lhe apresenta como"necessidade social", como "situação objetiva", contra aqual ele é forçado a medir os seus próprios motivose intenções, e que lhe fornece os únicos critérios "obje-tivos" de racionalidade desses motivos. Mas esta aparên-cia é, em si mesma, uma criação histórica. Emergiu emcerto ponto da história, quando a sociabilidade humana,"estar-com-os-outros", deixou de manifestar-se como re-lações que — tais como as relações pessoais — podiamser, na sua totalidade, cognitivamente adquiridas pelosindivíduos envolvidos. Com a expansão das relações detroca, a rede de dependência transcendeu o campo estrei-to que o indivíduo podia conscientemente controlar comoindivíduo, em encontros faee-a-face, pessoa-a-pessoa. Taisencontros tornaram-se agora pequenos setores de grandestotalidades, cujas ramificações ulteriores se dissolveramna obscuridade de dependências desconhecidas e invisí-veis. Para serem devidamente compreendidas, elas tive-ram que encaixar-se cognitivamente numa vasta rede derelações: um feito intelectual que não podia ser realizadosem se construir teoricamente um modelo, que tornariainteligível o que não era acessível empiricamente. Paraserem controlados, foi preciso que os indivíduos transcen-dessem a sua situação como indivíduos — a situação emque permanecem na sua rotina diária — e conscientemen-te reivindicassem a sua vida grupai, comensurada como campo das suas dependências. E assim se criou umalacuna entre as atividades criativas e adquiridas do indi-víduo, entre ser-para-os-outros e ser-para-si-mesmo, entre>o desejo que o indivíduo tem de realizar-se e as condiçõesda sua própria sobrevivência. A lacuna é vista como umchoque permanente entre o interesse privado e a reali-

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 139

dade social. Deve ser preenchida cognitivamente por umaideologia que — tal como a rede de dependências queprocura tornar compreensível — deverá transcender osdados imediatamente dados pela experiência diária do in-divíduo.

Daí que, em oposição aos seus primitivos discípulos,assim corno, em relação aos seus críticos superficiais eigualmente primitivos, Marx não tenha reduzido a vidasocial ao econômico, oferecendo, portanto, -uma outrayersão da "ciência da não-liberdade". Pelo contrário, elereduziu o econômico ao seu conteúdo social; reescreveua economia política como sociologia, e a sociologia comohistória. Foi somente como resultado de um desenvolvi-mento histórico específico, e talvez único, que as depen-dências econômicas ganharam ascendência sobre todas asoutras relações humanas — que elas apareceram comocondições inflexíveis, objetivas da existência humana ecomo os limites últimos da liberdade humana; que elasse cristalizaram, por outras palavras, numa "realidadesocial objetiva", uma "segunda natureza". É só porque,a fim de existir, ele tem que entrar numa rede de depen-dências, que não pode examinar de perto nem controlar,que ó indivíduo tem que tornar-se "privatizado" ("priva-do" é antônimo de "público"), que tem que olhar parao seu próprio interesse na sobrevivência, ameaçado e con-dicionado por outros indivíduos sem face, a quem eleencontra só como uma "realidade objetiva" oblíqua, ines-crutável.

O interesse privado é, por si mesmo, um interesse já so-cialmente determinado, que só pode realizar-se dentro decondições impostas pela sociedade e com os meios forne-cidos pela sociedade; daí que se veja obrigado à reprodu-ção dessas condições e desses meios.

E, o mais importante:

o caráter social da atividade, assim como a forma socialdo produto, e a participação dos indivíduos na produçãoaparecem aqui como algo estranho e objetivo, confrontan-do os indivíduos, não como nas suas relações mútuas, mascomo na sua subordinação a relações que subsistem inde-pendentemente ieles. e que nascem de colisões entre indiví-duos mutuamente indiferentes.

Page 72: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

140 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

A opacidade das instituições sociais, a ilusão óptica,da sua autonomia, está em paralelo com o seu afastamen-to para além do alcance da experiência do senso comum.As modalidades do indivíduo como produtor e consumidorainda são visíveis, de uma perspectiva do senso comum,,,mas não o elo que as une. Todo o vasto espaço socialque se estende e medeia entre o esforço produtivo e asatisfação do consumidor só entra no domínio da expe-riência do senso comum sob a forma de "valor de troca""e "dinheiro" — o primeiro representando e ocultando aintrincada teia da dependência do indivíduo às atividades;dos outros, e o segundo resumindo o poder que o indiví-duo possa ter sobre estas atividades. A única informaçãoque o senso comum fornece em tais circunstâncias é que,dando mais dinheiro, o indivíduo pode apropriar-se demais valores de troca. O único conselho que o senso co-mum pode dar é que o indivíduo deve fazer todo o possí-vel para obter mais poder (— dinheiro), a fim de ganharmais liberdade (— valores de troca que estão ao seualcance e, portanto, subjugados e domesticados). As re-lações de produção, troca e apropriação obtiveram o papelcrucial, determinante, natural, que possuem na sociedadebaseada no mercado, não em virtude de nenhum "pri-mado" mítico da economia sobre o resto das relaçõessociais, mas porque, em primeiro lugar, foram retiradasdo controle humano imediato, consciente e, portanto, tor-naram-se independentes daquelas pessoas cujas atividadesconstituem a sua única substância. Elas nada mais sãoainda que a soma total de uma multidão de interaçõeshumanas. Mas para cada indivíduo que partilha destasinterações elas aparecem como "algo estranho e objetivo"— de uma maneira não muito diferente daquela em queo rabo do gato se lhe apresenta como algo que não lhepertence. Outras relações sociais não-econômicas cristali-zam-se em poder, isto é, em "realidade" dura, limitadora,opressora — apenas como derivativos de estruturas jápetrificadas por dependências econômicas (a idéia expres-sa na metáfora do caráter "superestrutural" dos poderespolíticos, sociais^ e culturais). E vice-versa — um tipo ouum setor das relações humanas só pode ser emancipadodas "leis de ferro da realidade social" e ser adquiridopelos indivíduos humanos como agentes controladoresconscientes, na medida em que são independentes daeconomia e na medida em que estão situados para além

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 141

«do alcance das cadeias dos valores do dinheiro-troca Daí& descoberta, pelos críticos da sociologia durksonianados encontros-face-a-face, os estreitos enclaves das re^lações interpessoais, como o fulcro em que se baseia aliberdade humana negociadora do significado. Daí a suatendência para fechar o seu universo cognitivo dentro•das paredes da ante-sala de um psiquiatra, do quarto dedormir de um casal ou do seminário universitário. Se,& liberdade para negociar significados e para atualizar asua própria autodefinição puder, na verdade, encontrar-se.nestes lugares reclusos, é somente porque, e na medidaem que estes lugares, e as atividades que aí têm lugar,.foram expelidos e rejeitados, e depois seguramente isola-dos, pela esfera "pública" governada por necessidades anô-nimas que representam a rede de dependências eco-jiômicas.

A esfera "pública" entra na experiência do senso co-mum do indivíduo como uma realidade superior, em for-ma de natureza, na medida em que foi removida da relaçãoImediata com o indivíduo. Estendeu-se um novo reino entreó esforço criativo do indivíduo (a produção de objetos úteispela transformação dos objetos naturais) e as atividadessustentadoras da vida humana (que ainda podem ser vistascomo diretamente relacionadas com a vontade humana,como o reino, pelo menos parcialmente, da liberdade indi-vidual). Este reino, de fato, une as duas metades sepa-radas do ciclo existencial, embora, na perspectiva da•experiência individual, estas metades pareçam ser víti-mas dos curto-circuitos do dinheiro e do valor da troca.Quanto à sabedoria individual proveniente do senso co-mum, o dinheiro e os valores de troca eqüivalem ao reinomisterioso, impenetrável em que os produtos do indivíduodesaparecem e de onde emergem artigos para o consumodo indivíduo. Mas o dinheiro e os valores de troca con-correm mais para obscurecer do que para determinar(e muito menos iluminar) o caráter social virtual destereino: eles apresentam as relações sociais como econômi-cas. O papel da sociologia crítica é reivindicar esta subs-tância social do mundo social.

Neste ponto, a sociologia crítica difere tanto da socio-logia durksoniana como um dos seus críticos existencialis-tas. A sociologia durksoniana toma, por assim dizer, as apa-rências do senso comum pelo que elas são; uma vez que elasse apresentam como inevitáveis e irremovíveis, a sociologia

Page 73: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

142 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

durksoniana declara-as como tais e apressa-se a forne-cer-nos a sua descrição precisa e compreensiva. Os seus,críticos existencialistas recusam-se a reconhecer a reali-dade das aparências, mas, primeiro, lançam-se ao estudodo processo mental que as posiciona como "realidade", e— segundo — refreiam-se de investigar outras realidades,,que essas aparências talvez ocultem. Ao invés, eles reti-ram-se para a exploração da liberdade do indivíduo naperiferia do mundo social — exatamente onde essa liber-dade foi expulsa pelas realidades que as aparências rejei-tadas distorcem e escondem. Eles tentam apresentar tal.periferia como um mundo auto-sustentado (tanto cogni-tiva como moralmente) e, além disso, como o própriocentro da mundividência de onde todos os outros com-ponentes deste mundo emanam. Assim, eles procuramignorar as metades separadas da existência humana, damesma maneira em que o dinheiro e as mercadorias ofazem, usando apenas, nesse processo, a linguagem tra-zida pelo dinheiro para o mundo social (ao que Marxobjetaria assim: "Comparar o dinheiro com a linguagemé... errôneo. A linguagem não transforma idéias, demaneira a que a peculiaridade das idéias seja dissolvidae o seu caráter social caminhe lado a lado com elas comoentidades separadas..."7). A sociologia crítica vê ambasas estratégias fundadas igualmente no senso comum dasociedade de mercado, desenvolvida historicamente numsenso comum que tacitamente aceitou as suas limitaçõeshistóricas e, portanto, apreende-as como não usurpadas.Ambas as estratégias procuram iluminar o senso comumsem questionar a sua autodeterminação. Procedendoassim, ambas fazem uma réplica das limitações do sensocomum que acabam por servir.

O conflito entre a sociologia crítica e as duas estra-tégias alternativas não é simplesmente uma questão depreferência, em última análise, arbitrária, que, tal comoo gosto, não vale a pena discutir. A sociologia críticamostra que as estratégias alternativas falham, e estãocondenadas a fracassar, na sua tentativa de informar aexistência humana de uma forma que torne a emanci-pação possível, uma vez que aceitam, como irremovíveis,precisamente aqueles aspectos da realidade historicamentecontingente que torna tal emancipação inacessível. A idéia7 Ihid., pp. 162-3.

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 143

de que uma pessoa pode juntar aspectos pour lês autrese pour sói da experiência pessoal, unicamente por meio,de um esforço intelectual e moral, nada mais é que a,falsa esperança de uma emancipação ilusória. Essa idéiatornará a ruptura — e a não-liberdade resultante aindamais imune aos esforços de emancipação.

Tal idéia é uma ilusão, uma vez que na sociedadede mercado o processo vital do indivíduo não pode serencerrado no campo estreito do Umwelt: esse setor dos"outros" com quem o indivíduo tem. ocasião de entrarem comunicação lingüística — a fim de se encontrarface-a-face, de estimular a ação e responder a ela, a fimde regatear sobre definições da situação e atribuição dostatus, de negociar significados, etc. Numa sociedade tecno-logicamente primitiva, pré-moderna, com a circulação datotalidade dos bens limitada a um pequeno círculode pessoas que pertencem a um parentesco cognitivamen-te acessível ou a um grupo local, o itinerário de todos ositens enumerados no inventário do processo vital perma-neceu, do princípio até o fim, ao alcance da visão doindivíduo. A rede de dependências entrelaçou-se, portanto,com a rede das relações pessoais; as dependências foramvistas como obrigações e foram definidas por um paren-tesco ou uma categoria de estado à qual p indivíduo per-tencia. Foi aí que as dependências econômicas foram, numsentido direto e literal, culturalmente fundadas; elas eramcotejadas com as definições de status e os significadosa eles atribuídos. Por menos livre ou mais dependenteque um indivíduo fosse em tais condições, as fontesda sua não-liberdade não tinham nada de misterioso:eram facilmente atribuídas a indivíduos específicos queseguravam as rédeas da dependência. Uma igreja pode-rosa e a terrível vontade de Deus tornaram-se, portanto,necessárias para suprir as deficiências de laços sociaisdemasiado frágeis para assegurar a sua perpetuação econservar os grupos subordinados sob o seu domínio.A dependência e não-autonomia da vida individual eravisível, dentro da experiência do senso comum, na suaverdadeira natureza — a da escravidão pessoal — e re-queria, portanto, sanções culturais supra-humanas, soba forma de uma escatologia institucionalizada, para podermanter-se. A reprodução do sistema econômico dependeu,,com efeito, da reprodução da teia, crua, mas facilmente,assimilável, de definições culturais.

Page 74: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

144 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

A desintegração do parentesco e dos laços locais,<ò desmoronamento de definições de status imutáveis edas suas sanções supra-humanas, coincidiram com o apa-recimento desta conjunção única de independência pessoal•com a escravidão impessoal, que é típica de uma socie-dade de mercado. É aqui que o herói de Steinbeck, ex-pulso da terra de seus pais, se sente agoniado ao verificar•que não há "ninguém para ser baleado" pela sua desven-tura. A culpa não pode ser atribuída a nenhum indivíduoem particular; o intrincado tecido de causas estende-semuito além do horizonte cognitivo do indivíduo, e clara-mente não pode ser desligado das responsabilidades e•culpas pessoais. No momento em que a teia de depen-dências perdeu a sua natureza humana, as sanções.supra-humanas já não são necessárias para a conservarintacta. O sistema de dependência pode existir por siTriesmo, como resultado da sua opacidade, impessoalidade,da sua natureza recôndita e inescrutável. Apresenta-seagora, e só agora, como uma misteriosa "realidade social",•Como uma objetividade em forma de natureza, que deve•ser obedecida. Naturalmente, a obediência não é agoraum ato moral, mas uma questão de razão e racionali-dade. O indivíduo deve ter todo o cuidado em não se•exceder a si mesmo, em não embarcar numa luta fútil,•em não desafiar a natureza social — não porque issoáeria um ato moralmente condenável, uma rebelião contrao supremo poder moral, mas porque tal ato de desobe-diência seria contra os seus próprios interesses. Daí que,€m retrospectiva, a sociedade de mercado apareça comoum equivalente para a libertação pessoal. A escravidão, emtempos suportada pelo medo e por uma mentira ideo-lógica, é agora voluntária e "livremente" escolhida poramor de um interesse pessoal bem compreendido e racio-nalmente avaliado. Na idade da razão e da escolha escla-recida, o conhecimento dos pré-requisitos funcionais da"segunda natureza" é um substituto para o terror da vin-gança de Deus. Pressupõe que o indivíduo é um agentelivre; apela para a sua razão e inteligência, em vez deapelar para o preconceito e para o medo.

Numa sociedade de mercado, "a dependência recí-proca e total dos indivíduos que são indiferentes uns aos<5utros constitui o seu laço de conexão social". Eles sãoindiferentes uns aos outros, no sentido de não se encon-trarem como pessoas, de não interagirem conscientemen-

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 145

te, é podem não ter consciência da existência do outro:mas eles dependem um do outro, pela simples razão deque a forma precisa do produto da atividade de umindivíduo, que volta para ele transformado num artigoterminado para seu consumo, dependerá das atividadesde inumeráveis outros indivíduos, de quem o indivíduo emquestão nunca teve conhecimento intelectual nem controleprático. A falta de laços pessoais atua, naturalmente, emambas as direções. Daí que a experiência da liberdadepessoal, que nasce do fato de que nenhuma outra pessoa(um indivíduo física, cognitiva e emocionalmente pertoo suficiente para poder ser apreendido como uma pessoa)guia o indivíduo em questão no caminho da sua escolha,sem que seja necessário impingir-lhe tais escolhas. Taislimitações, como as que os indivíduos experimentam nomomento em que têm de escolher e de sujeitar-se a umteste, são demasiado inflexíveis e estão claramente muitofora do alcance da persuasão para poderem ser explicadascomo obras de pessoas específicas. "Os indivíduos sãoclassificados sob a produção social; a produção social exis-te fora deles e do seu destino; mas a produção social nãoestá sob o controle dos indivíduos, não é manejável poreles, como a sua riqueza comum." As dependências eco-nômicas de fato, agora, precedem e enquadram todas asoutras espécies de relações inter-humanas; elas aparecem,desde o princípio, como condições inexoráveis de toda aação humana e como os limites intransponíveis da liber-dade de escolha. Mas é, como insiste Marx:

Uma noção insípida conceber este "laço meramente obje-tivo" como um .atributo espontâneo, natural, inerente aosindivíduos e inseparável da sua natureza (em antítese ao.seu conhecimento e à sua vontade conscientes). É umproduto histórico. Pertence a uma fase específica do seudesenvolvimento. 8

A ruptura da experiência humana elementar em umsujeito voluntário e o seu ambiente delimitador (a rup-tura sobre a qual toda ã sociologia está baseada) é, por-tanto, o resultado de um desenvolvimento histórico e, deforma alguma, pode ser tomada como uma condição

8 Ibid., p. 162.

Page 75: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

146 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

humana perpétua, atribuída à espécie. Isto, em si mes-mo, exige" explicação, e a explicação deve ser histórica.

Para ser justo, tem-se que admitir que, nos seus mo-mentos mais inspirados, os sociólogos jogam com a idéiada mutabilidade histórica da condição humana. Mas, commais freqüência ainda, a história, no seu raciocínio,reduz-se a uma tipologia, ou antes, a uma divisão dico-tômica de tipos da organização social conhecidos e, emconseqüência, da ação humana. A idéia aparece sob diver-sos nomes, embora, dadas todas as suas diferençasem ênfase, tais pares variavelmente descritos traem umraio de semelhanças impressionantemente vasto. A Ge-meinschaft e Gesellschaft, a sociedade militar e a socie-dade industrial, as eras teológicas e as positivas, associedades putativas e as sociedades completas, as soli-dariedades mecânica e orgânica, as sociedades não-indus-triais e as industriais — todos estes conceitos, por maisrico que seja o seu conteúdo, eqüivalem, de fato, à mes-ma realização persistente da antítese entre a liberdadepessoal, colhida nas malhas das dependências impessoais-(típicas da sociedade de mercado), e a falta de escolhapessoal, combinada com a natureza evidentemente pes-soal das dependências (típicas de uma sociedafis^de^ mer-cado não desenvolvida). A única alternativa para a reali-dade em questão, que a atitude positiva pode tolerar,é esse estado de coisas que foi eliminado, como uma alter-nativa viável, com o advento das condições atuais. Daíque a história só entre em consideração sob a formade escolha entre dois tipos. A insatisfação com o tipo»atualmente em ascendência — se vier a encontrar o seucaminho no mundo das análises sociológicas — automa-ticamente resulta na idealização do outro tipo. Os remé-dios para a parcialidade ressentida e a inautentici-dade da existência pessoal são buscados na alegada per-sonalidade "totalmente desenvolvida" de uma sociedadepré-moderna. A isto retorquiriaf Marx que "é tão ridí-culo suspirar pelo retorno a essa plenitude original como»acreditar que com este vazio completo a história chegou-a um ponto de^parada".

Alternativamente, a mesma tendência se manifestanas tentativas persistentes de considerar as dependênciasrecíprocas como pessoais e, portanto, manejáveis, emcondições onde não são definitivamente susceptíveis, de

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 147

manipulação humana consciente. Paradoxalmente esta"humanização" idealizada da escravidão impessoal per-tence à mesma categoria das tentativas opostas paraatribuir status super-humano ao que era pura e trans-parente servidão pessoal. Nos seus efeitos práticos, ambasas tentativas impedem ou levam por caminho errado osesforços reais ou potenciais de emancipação, solicitandoação inadequada, ou uma ação dirigida a alvos inapro-priados. Uma maneira de apreender as dependênciasrecíprocas como pessoais é apresentá-las como brotando*de significados inadequados, impostos pelos "outros" edistorcendo a verdadeira, autêntica existência do indi-víduo. Esta é a visão existencialista das raízes da escra-vidão humana — de acordo com a qual a presença dosoutros compromete, limita e confunde a demanda doindivíduo pelo pour-soi, pela existência autêntica. Reben-tos sociológicos da filosofia existencialista, de que a etno-metodologia de estilo Garfinkel é o exemplo mais cons-pícuo, apresentam as dependências e limitações comosedimentos de uma negociação de significado, como umarealização de "trabalho" contínuo, que consiste em "falar".A aparência de realidade social, de limitações externassobre a liberdade humana, é colocada, portanto, como umfenômeno cultural, em condições históricas distinguidasprecisamente pela libertação da estrutura social da suaprévia dependência a fatores culturais. Estranho comopoderá parecer, em vista da sua animosidade extracientí-fica, não há grande diferença entre estas tentativas e atendência do marxismo "folclórico" para personalizar asraízes da não-liberdade humana, atrelando-a a capitalis-tas, partidos, governos etc. Aqui o desvio consiste em apre-sentar a teia impessoal das dependências como um pro-blema político, que pode ser controlado por meios defi-nidos normalmente como políticos. Com a sua intros-pecção habitual, Marx antecipou ambas as desilusõescomo epistemologicamente enraizadas na estrutura opacae recôndita da dependência humana. As relações da de>-pendência objetiva:

Apresentam-se, em antítese às dependências pessoais...de maneira tal que os indivíduos são agora governados-por abstrações, ao passo que antes dependiam uns dos-outros... As relações só podem ser expressas, natural-

Page 76: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

148 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

mente, em idéias e, assim, os filósofos concluíram que oreino das idéias é a peculiaridade da nova era, e identifi-caram a criação da individualidade livre com a destruiçãodesse reino. 9

Nenhum dos dois tipos de relações sociais — tantorp fundado na dependência pessoal como o fundado na'dependência impessoal — pode funcionar sem afastar a-imaginação humana das genuínas avenidas da emanci-;,pação. O sistema baseado na dependência pessoal teve•que apoiar-se na ilusão de uma âncora supra-humana,«éxtrapessoal, da definição pessoal do statits. O contrário"é verdadeiro quanto ao sistema de dependência impes-soal: este é sustentado e perpetuado pela ilusão da liber-dade pessoal, da possibilidade de dominar, por meio deum esforço individual, as relações externas que o limi-tam. É precisamente porque a multidão se deixa engodarpelo fascínio desta ilusão e se comporta de acordo comela que a teia das dependências impessoais é continua-mente ressuscitada e mantida viva. As condições da eman-cipação individual coincidem com as condições que perpe-tuam a não-liberdade dos indivíduos "en masse". Umúnico indivíduo, enquanto indivíduo, pode, na verdade,"subir ao topo" das relações sociais e sujeitá-las à suavontade; o mesmo pode acontecer com um número deindivíduos atuando como um agregado num "tipo mecâ-nico" de solidariedade. Mas, ao assim procederem, osindivíduos outra coisa não fazem senão fortalecer as con-dições universais da dependência e da não-liberdade. Estaísituação objetiva lança os indivíduos uns contra os outros;ietsta é uma situação em que a competição, a busca doSnteresse individual, em detrimento do interesse dosoutros, é a única conduta racional e eficiente. Mais doque isto, o tratamento dos outros seres humanos, porparte do indivíduo, como "ambiente objetivo" que deveser dominado, é, em si mesmo, uma expressão do fatode que o controle sobre o próprio destino do indivíduolhe foi negado. Como apropriadamente se expressa Ha-toermas, "os interesses que ligam a consciência ao jugoimposto por uma ^dominação de coisas e relações reif iça-das estão, como os interesses materiais, ancorados em

•» Ibid., p. 164.

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 140

configurações historicamente específicas de trabalho alie-;nado, satisfações negadas e liberdade suprimida".10

E assim, qualquer sistema de interação social queapresente os fins e os motivos de tal interação como fixose imutáveis (dentro do contexto dos mandamentos deDeus ou dos requisitos da Razão) deve apoiar-se, paraa sua perpetuação, na autoridade da experiência diária.É porque o lado prático da experiência humana é tomadocomo certo e não questionado, e não visto numa perspeo.tiva histórica relativizadora, que os problemas fundamen-tais da liberdade humana, da autenticidade da vida, darealização pessoal, etc., só podem ser colocados como.questões epistemológicas, splucionáveis por homens perce-bidos como entidades epistemológicas; eles podem servistos, na verdade, como parte de um drama represen-,tado do princípio ao fim no palco do intelecto e do signi-ficado. Não é que tal teoria ignore o laço íntimo entreo intelecto do homem e a sua vida prática, entre ateoria e a prática social. Pelo contrário, a evidência daprática social, acumulada e intelectualmente processada,é vista como o fundamento apropriado da infalibilidadedas soluções que tal perspectiva oferece à demandahumana de uma "vida plena". A diferença essencial entretal perspectiva e a sociologia crítica consiste no fato deque a primeira considera a evidência de uma práticahistoricamente limitada como conclusiva e, na realidade,final, ao passo que a segunda se recusa a fazê-lo. Comodeclarou Horkheimer enfaticamente em 1933, "a antro-pologia não pode oferecer uma objeção válida para supe-rar as más relações sociais"." A única antropologia (quepretenda ser o conhecimento das qualidades humanasuniversais) aceitável à sociologia critica deveria ser, naspalavras de Leo Kofler, uma ciência "das premissas imu-táveis da mutabilidade humana". Poder-se-ia tomar, comoa pedra angular da sociologia crítica, uma rejeição a priarida possibilidade de dotes invariáveis — quer transcenden-tais quer naturais — que caracterizam a espécie humana'de uma vez para sempre. O único atributo invariável da/espécie humana que a sociologia crítica está disposta a!

10 Habermas, op. cit., p. 261.11 Max Horkheimer, "Materialismus und Moral", in Kritische Theo-trie, Ãlfred Schmidt, vol. I, Frankfurt-am-Main, p. 85.

Page 77: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

150 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

aceitar é o mecanismo através do qual a espécie humanase torna, sempre de novo e sempre de uma nova forma,a espécie humana. Na Ideologia Alemã, Marx definiua produção de novas necessidades como o primeiro atohistórico. A produção de novas necessidades, que remo-delam e reclassificam o ambiente humano, levando parauma nova posição a fronteira estabelecida entre o obje-tivo e o subjetivo, sempre tem sido, e continuará sendo,a substância da história humana. A linha divisóriaentre o que o homem pode e não pode ser só pode serclaramente traçada em referência à prática passada; masa sua extrapolação para o futuro exigirá um pressupostoadicional, que a sociologia crítica considera insustentável—• que o passado contém evidência que domina defini-tivamente o futuro.

Este pressuposto baseia-se, contudo, na rotina diária.É graças a esta pressuposição que a experiência do sensocomum poderá fornecer orientação sólida para b compor-tamento humano. Os organismos humanos são dotadospela natureza de memória e da capacidade de aprender,e tais organismos só podem florescer num ambientecaracterizado pela regularidade e pelos paradigmas recor-rentes dos acontecimentos. Uma incerteza nascida de umainterrupção repentina da monotonia é uma fonte deterror:

É isto que é tão aterrador a respeito de um fenômenocomo a "inflação incontrolável". Numa economia de di-nheiro experimentamos a instabilidade da moeda no mun-do social da mesma maneira que experimentaríamos umterremoto no mundo físico. Quando os alicerces tremem,tudo pode acontecer. 12

E assim, a atividade humana histórica, ao mesmotempo que gera sempre novas necessidades e, por conse-guinte, sempre novas formas de relações humanas, ma-nifesta uma tendência para a fixidez e a ordem. É verdadeque esta atividade revela potencialidades humanas ante-riormente insuspeitas; mas a mesma atividade leva à eli-minação e supressão de outras potencialidades. A essên-cia de qualquer ordem está no aumento da probabilidade

"' Manfred Stanley, "The Structures of Doubt", in Toward í/ieSociology of Knowledge, org. por Remmling, 033. cit., p. 419.

"SEGUNDA NATUREZA" VISTA HISTORICAMENTE 151

de algumas ocorrências — pela mesma razão — em tornarclaramente improváveis outras ocorrências. A sociologiacrítica, tendo tomado a potencialidade humana ilimitadacomo sua hipótese organizadora, tem que considerar,como a sua principal preocupação empírica, a ma-neira como estas potencialidades vêm a ser limitadas nossistemas sociais reais.

O senso comum e a rotina diária ajudam-se e forta^lecem-se um ao outro na manutenção e perpetuaçãotanto da ordem fixa da interação humana como dacrença universal de que tal fixidez é inelutável. A rotina•diária está estruturada de uma tal maneira que os ho-mens se vêem raramente, se alguma vez, confrontadoscom a escolha fundamental entre formas reais e formaspotenciais de interação, sendo o seu processo de vida divi-dido numa multidão de decisões parciais e aparentementeinconseqüentes. De fato, cada elo sucessivo na cadeia dassuas ações é, até certo ponto, limitado por ações ante-riores — e a limitação cresce progressivamente no de-curso da biografia individual, tornando a questão da esco-lha cada vez menos realista. O senso comum, por* outrolado, sendo a reflexão de uma experiência histórica etoiograficamente truncada, confirma a validade universaldesta lição individual e acrescenta dignidade à necessi-dade de traçar uma linha bem nítida entre o "racional"e o "razoável" de um lado, e o "irracional" e o "irrea-lista" de outro. Pára a rotina diária, o senso comum é aprincipal força motriz. Para o senso comum, a rotinadiária é a fonte última da certeza cognitiva. É contraa rotina diária que a verdade das crenças do senso comum,assim como a verdade das crenças sociológicas, é medida.Estando o senso comum e a rotina diária inextrincavel-mente entrelaçados, pouco importa que a sociologia tome,como seu objeto, a rotina diária (como faz a sociologiadurksoniana), ou o senso comum (como faz a crítica•existencialista da sociologia durksoniana); em ambos oscasos, a sociologia acerta a verdade que busca pela me-dida da realidade historicamente restrita. Pela mesmarazão, consciente ou involuntariamente, a sociologia ape-ga-se a essa realidade na sua apresentação unilateral dopotencial humano.

Page 78: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

152 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA?

Como vimos anteriormente, a sociologia crítica pro-cura separar-se tanto do senso comum como da rotinadiária, como, respectivamente, as suas fontes de informaçãoe a medida última da verdade. Esta intenção, indispensável,se se pretende oferecer ao potencial humano não-reali-zado o status de um objeto legítimo de estudo, põe emquestão, porém, a natureza científica do projeto. Em quesentido pode a sociologia crítica reivindicar um stattiscientífico? Se a sociologia crítica concordar que o únicoconhecimento válido é o conhecimento verdadeiro, quaissão seus critérios da verdade, uma vez que se negou estepapel à experiência passada e à rotina diária?

O conceito do "processo da verdade" é a resposta dasociologia crítica a esta objeção crucial. A idéia essencialda verdade como processo histórico está contida na se-guinte declaração de Marx:

A questão de saber se o pensamento pode alcançar a ver-dade objetiva não é uma questão teórica mas uma questãoprática. Na prática o homem deve provar a verdade,

9 isto é, a realidade e o poder, esta uniteralidade do seupensar. A disputa sobre a realidade ou não-realidade dopensamento —. o pensar isolado da prática — é umaquestão puramente escolástica. is

Em si mesma, porém, esta declaração não necessitade uma ruptura decisiva da idéia positivista da verdade,.Tanto a sociologia durksoniana como os seus críticos exis-tencialistas concordariam prontamente que a pressupo-sição de que os homens são, na verdade, capazes deapreender a verdade objetiva talvez nunca possa ser veri-ficada conclusivamente, mas que constitui uma conve-niente hipótese de trabalho que se é constantementeconvidado a refutar, submetendo-a a um exame práticosem fim. O que é, afinal de contas, a pesquisa científicano sentido positivista mais ortodoxo, senão uma série deexames práticos desta hipótese? E contudo, existe umagrande, e talvez insuperável, lacuna entre a idéia da ver-dade contida na declaração citada e a espécie de verdade13 Tirado de David McLellan, The Thought of Karl Marx, Macmillan»Londres, 1971, p. 33.

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 153

que a sociologia positiva procura para a sua declaração.Esta lacuna não é criada, porém, pela mera ligação daverdade com o processo do exame prático. Ela é geradapor uma compreensão da prática nitidamente diferente.

A prática a que a sociologia positiva referia as suasdeclarações para exame e, possivelmente, para refutação,é a prática dos cientistas — ou a prática de um indi-víduo comum, mas dotado, para a finalidade em questão,apenas dos atributos que fazem dele um "aparente" cien-tista. Tal prática é distinguida por uma divisão clara eimutável do status entre a pessoa que realiza o examee o objeto em relação ao qual o exame está sendo rea-lizado. É um aspecto sine qua non dessa divisão o fato-,do agente experimentador só conhecer o que está sendaexperimentado. Esta situação é normal no caso das ciên-cias naturais. Porém, nas ciências sociais deve ser, emmuitos casos, artificialmente criada — quer coligindadados sobre o comportamento dos objetos sem o seuconhecimento (como em muitos estudos estatísticos), quercomunicando aos objetos informação deliberadamente in-correta acerca da hipótese que está para ser "testada"(como na maioria das experiências no campo da psico-logia social). Assim, faz-se um esforço para assegurai queo conteúdo da hipótese não influenciará o processo e a,resultado do teste — isto é, a conduta dos objetos deestudo. Ainda que, no caso das ciências sociais, os objetosde -estudo sejam seres humanos conscientes, dotados dopotencial de conhecer, compreender e apreender os signi-ficados, eles são deliberadamente colocados, para resguar-dar a pureza do processo, na posição de objetos que, talcomo os objetos das ciências naturais, não possuem tais;faculdades. Só então podem os critérios do exame, taiscomo são formulados nas ciências naturais, ser aplicadosa declarações acerca do comportamento de seres huma-nos. Enuncia-se uma tese; seíeciona-se ou constrói-se umconjunto apropriado de variáveis independentes, e a con-duta subseqüente é comparada com as proposições ini-ciais. Significativamente, "todo o conjunto do processo deexame consiste em atos e acontecimentos que permane-cem inteiramente sob o controle de um cientista: atravésdo processo, ele é o único agente "que sabe"; a única,pessoa ciente do significado específico dos acontecimentos;atribuídos pela hipótese em exame. O conceito do exame,o significado de verificação ou falsificação — são todos

Page 79: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

«54 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

forjados de maneira a preservar p processo como o do*-smínio exclusivo de cientistas profissionais ou de pessoas•que realmente copiam a sua conduta. Poder-se-ia quasedefinir a verdade como declarações apoiadas por cien-tistas profissionais. Pragmaticamente, as atividades dos(Cientistas profissionais são definidas como atividades embusca da verdade e "encontradoras" da verdade; institu-«cionalmente, os cientistas, como grupo, gozam da credibi-lidade de assegurar que as pessoas que obtiverem a sua.aprovação dedicar-se-ão a essas atividades. O conceito de«examinar a verdade, que a ciência apoia, fornece os fun-damentos para o status da ciência positiva como um«conhecimento privilegiado, genuíno.

Se as regras do exame forem aplicadas ao estudo dosrfenômenos humanos, os cientistas são obrigados a evitarrum diálogo significativo com os objetos do seu estudo./A boa pesquisa deve estar completamente isenta de "per-!

íguntas orientadoras" — e certamente de qualquer ten-tativa de persuasão, ou de mudar a maneira de ver dos'«objetos (a não ser que o assunto do estudo seja a pro-pensão para se render à própria persuasão) etc. O cien-tista social gostaria de manter-se na sombra tanto quan-.to fosse humanamente possível (sendo o famoso espelho<de uma só direção dos psicólogos sociais uma encarnaçãoadmirável desta tendência), e deveria ter a certeza deque a sua presença física — muito mais a sua presençafcomo um agente "estabelecedòr" do significado — deforma alguma "distorce" o curso "natural" dos eventossob observação. O que ele pode encontrar, portanto, eprovar com o grau de certeza que o processo lhe permite,é a maneira como os seus objetos se comportariam em•condições de rotina, pressupondo que as suas definiçõesde senso comum conservarão a sua força. Artificialmente,•e com grande cuidado e engenhosidade, os objetos hu-manos da pesquisa sociológica são mantidos ou colocadosem condições em que não podem exercer, ou não exer-«ceriam, as suas faculdades de compreensão e decisórias,do contrário a "validez" da pesquisa seria posta emperigo. Manter homens dentro das fronteiras da sua exis-tência diária nãt>-livre constitui, portanto, a autênticadefinição da pesquisa científica legítima e do exame da-verdade.

Como vimos, o bloco do senso comum-rotina tem umatendência inata para a autoperpetuação e assume a apa-

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 155

Tência da sua própria a-temporalidade. O bloco do senso•comum-rotina da sociedade de mercado é estruturadopela separação fundamental, dentro do processo vital doshomens, da capacidade subjetiva para trabalhar, criar eAutenticar a existência de cada um e as condições obje-tivas de tal trabalho, criatividade e autenticidade. Umavez dividido assim, o próprio processo vital, "em si mesmoe por si mesmo", posiciona as "condições objetivas reaisdo trabalho vivo" (material, instrumentos etc.) "como.existências alheias, independentes".

As condições objetivas do trabalho vivo aparecem comovalores separados, independentes, opondo-se à capacidadede trabalho vivo como um ser subjetivo... Uma vezque se dá esta separação, o processo de produção só pode.produzi-la de novo, reproduzi-la, e voltar a reproduzi-lanuma escala expandida.

•O material em que o trabalho vivo, subjetivo, opera

é um material "estranho"; o instrumento é igualmenteum instrumento "estranho"; o seu trabalho apresenta-secomo mero acessório da sua substância e, daí, objetifica-sea si mesmo em coisas que não "lhe pertencem".

Nesta descrição sucinta da estrutura essencial doprocesso vital numa sociedade de mercado que separa osobjetos do trabalho vivo da fonte subjetiva, viva, do pró-prio trabalho, encontramos não só o cenário para a ati-vidade de rotina como as raízes epistemológicas do modo•como é experimentado pelo senso comum. A rotina e osenso comum associado formam um círculo vicioso que,a não ser que seja cortado nalgum ponto, tende a repro-duzir-se a si mesmo "numa escala expandida". Um cortecapaz de quebrar o processo sem fim da auto-reproduçãodeve ser um ato destinado a transcender a mera reflexãodo senso comum, um ato que vai além do senso comum,embora no começo só idealmente:

O reconhecimento dos produtos como seus, e a suposiçãode que a sua separação das condições da sua realizaçãoé imprópria — imposta pela força — é um avançoenorme na consciência, ela mesma produto do modo deprodução baseado no capital, e, como tal, o seu toquede finados, com a consciência do escravo de que ele»

Page 80: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

156 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

"não pode ser a propriedade de outrem", com aciência de si mesmo como pessoa, a existência da escravidão-'torna-se uma existência meramente artificial, vegetativa,,e cessa de poder prevalecer como a base da produção.14<

O toque de finados para o bloco rotina-senso comum,,supostamente invulnerável, soa quando a ruptura habi-tual é vista, de repente, à luz de uma nova possibilidade.Então, e só então, começa o natural a ser percebido como-artificial, o habitual como imposto pela força, o normaiscomo insuportável. Uma vez que a harmonia entre acondição rotineira e o conhecimento do senso comum foidistorcida, toda a rede de relações sociais é posta enumovimento, e as leis de ferro do comportamento "normal"ficam em suspenso. Os atributos supostamente invariá-veis dos homens e a sua vida social revelam a sua his-toricidade.

Os interesses na emancipação e os interesses no do-mínio técnico servidos pela ciência positiva parecer»encontrar-se, portanto, numa encruzilhada. A ciência,como vimos, está desprovida dos meios necessários paraquebrar o bloco senso comum-rotina e, além disso, re-cusa-se a adquiri-los, apontando para as suas regras;impecáveis de exame da verdade como uma objeção insu-perável. Tais regras exigem que a ciência investigue-somente aqueles objetos que se encontram totalmente sob-o controle cognitivo dos cientistas; a ciência continua afornecer conhecimento digno de confiança, isto é, infor-mação conclusiva pelas quais se pode responsabilizar namedida em que os homens, cuja conduta descreve, per-manecem como objetos, isto é, como coisas, devido àinfluência inquebrantávél das condições de vida de rotinaque fortalecem o hábito, sobre o qual eles não têm con-trole. A emancipação começa, porém, quando essas con-dições cessam de ser "como realmente são", quando são»postuladas numa forma que, por ainda-não-serem-reais,,escapam à metodologia científica e ao exame da verdade;Levanta-se, portanto, a questão que nos permite suporque talvez a lacuna aparente entre a ciência positiva eo conhecimento emancipador não seja, na verdade, insupe-rável, como parece à primeira vista, e como insistem osextremistas e puristas de ambos os lados. A questão é

14 Marx, op. cit., pp. 461-3.

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 157

.crucial tanto para a ciência social como para as perspec-tivas da emancipação humana. Se a lacuna é realmenteinsuperável, as ciências sociais poderão muito bem estar•condenadas ao papel de um dos agentes que registram-ou mesmo fortalecem a ruptura dos homens, já realizadaem sujeitos e objetos de ação, enquanto os interesses pela.emancipação poderão estar condenados a boiar à derivajio meio do mar desconhecido de uma fantasia incontro-lada. A resposta depende, ao que parece, da possibilidade•de um reajustamento do conceito da ciência sobre o pro-cesso do exame da verdade.

Não é surpresa que nos últimos anos tenha sido feitoum número de tentativas para abrir caminhos que levemo veículo da ciência além do círculo limitado da rotinae do senso comum. O motivo comum de todas estas ten-tativas tem sido a busca de um conhecimento digno deconfiança, examinável, conclusivo, de fenômenos diferen-tes daqueles confiadamente explorados pela ciência socialpositiva: a saber, os fenômenos não-rotinizados, aindaIrregulares, fora do comum, observáveis ou simplesmenteconcebíveis, os quais, em certo sentido, podem ser consi-derados como um vislumbre do futuro ou de uma reali-dade alternativa. Vamos discutir agora, brevemente,algumas destas tentativas.

Estupefacto pela bancarrota espetacular da sociologiaacadêmica francesa, que falhou na predição da irrupçãoda rebelião estudantil e do conflito de classes dentro dessepaís supostamente pacificado e unido pelo consenso,Edgar Morin propôs, em 1968, a idéia de uma "sociologiado presente",15 como uma alternativa para a sociologiatradicionalmente centrada na regularidade a-temporal(isto é, regularidade descrita sem referência a variáveis

<jue representem qualitativamente a mudança do tempo).Ctomo era de esperar, a unidade central da sociologiaalternativa seria representar (em oposição à "ação" ou"papel", as unidades básicas da análise sociológica tra-dicional) a intenção de apreender o irregular e o único.E esta unidade central, na opinião de Morin, era o acon-tecimento — "l'événement qui signifie Virruption à Iafois du vécu, de 1'accident, de 1'irréversibilité, du singu-lier concret dans lê tissu de Ia vie sociale", e que, pela

15 Edgar Morin, "Pour une sociologie de Ia crise", Communications,, Paris, 1968, 12, pp. 2-16.

Page 81: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

158 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

mesma razão, "est lê monstre de Ia, sociólogie". Ridicula-rizado e ignorado pela sociologia acadêmica, o aconteci-mento revela, porém, um número de atributos que podem*torná-lo idealmente apropriado para o papel de uma po-sição privilegiada de onde o reino do possível possa serexaminado.

O acontecimento, do ponto de vista sociológico, é tudo*aquilo que não pode ser comprimido em regularidade»estatísticas. Daí que um crime ou um suicídio não sejamtacontecimentos, na medida em que podem ser inseridosnuma regularidade estatística, enquanto uma "onda" decriminalidade ou uma epidemia de suicídios podem serconsiderados como acontecimentos, como a morte do presi-dente Kennedy ou o suicídio de Marilyn Monroe.

O acontecimento é "notícia"; contém informação, namedida em que a informação é a parte da mensagem quecomunica a novidade. O acontecimento é, portanto, pordefinição, um fator desestruturador. Pela sua própria pre-sença — ou, antes, pelo simples fato de ser apreendida•como acontecimento — ele perturba os sistemas de ra-cionalização, que fortalecem a inteligibilidade da relaçãoentre o espírito e o seu mundo do diaja-dia. O aconteci-mento põe em questão a inteligibilidade, e, ao assimproceder, inspira um cepticismo crítico para com as ilu-sões racionalizadoras. Ao invés, coloca na agenda a neces-sidade de uma teoria que tenha como base situaçõesextremas, paroxismos de história, fenômenos "patológi-cos", em vez de regularidades estatísticas.

A crise é precisamente um acontecimento dessa na-tureza. Graças à concentração não comum de caracterís-ticas extraordinárias, a inerente instabilidade que desafiaa descrição ordenada determinista e a sua flexibilidadeevolutiva, extrema, a crise atua como uma revelaçãosúbita de "realidades latentes, subterrâneas" que perma-necem invisíveis em épocas definidas como "normais".Seguindo a estratégia marxista-freudiana, pode-se ver acrise como a ocasião única de ver, diretamente, atravésdo véu da rotina, a realidade "genuína", ou pelo menosgenuinamente importante — essa realidade que está sub-mersa, que é inconsciente ou infra-estrutural. Uma talperspectiva da crise estará, naturalmente, em aberta disso-nância com o tratamento oferecido pela sociologia acadê-mica, com o seu apreensivo abandono da crise como um

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 159»

acontecimento não só marginal mas também epifenome-nal: um caso de falha técnica momentânea do edifício»social, que não pode vestir a roupagem do vocabulário»empregado para expressar o objeto principal da ciênciassocial. "Finalement Ia crise unit en elle, de façon troubl&et troublante, répulsive et attractive, lê caractère acci-dentel (contingent, événementiel), lê caractère de neces-site (par Ia mise en oeuvre dês réalités lês plus profondesf.lês moins conscientes, lês plus determinantes) et lê*caractère conflictuel." O argumento decisivo a favor dascrise como o verdadeiro objeto da análise sociológica é,,portanto, a visão da crise como uma fonte mais rica deinformação do que a vida comum, na qual os sociólogos;têm concentrado sua atenção. Admitindo que a ciênciapositiva assenta sobre a descrição verdadeira e precisa das"realidade além", eis aqui uma abertura que permite o*cumprimento desta missão melhor do que outras oca-siões, uma vez que, através dela, podem ser observadas»partes da realidade até então hermeticamente seladas. Oque Morin sugere, na realidade, é uma extensão da estra-tégia e do método sociológicos para aqueles vastos campos;ainda inexplorados, mas que prometem uma colheitaconsideravelmente rica. Morin está apelando em nome-de um novo objeto de exploração, até agora negligenciado1

ou indevidamente subestimado.Morin espera que este novo objeto de pesquisa, graças-,

às suas características peculiares, venha a ter um efeito*salutar no status do sociólogo, no decurso da sua pes-quisa. Neste ponto importante, Morin passa além da>modesta reforma já proposta por Coser e outros simme-rlianos americanos que, tendo sugerido que deveria ser oconflito e não o consenso o objeto apropriado da pesquisassociológica, se lançaram à análise deste novo objeto em*termos tradicionais, funcionalistas. Morin pensa que acrise, concebida mais como um processo espontâneo, au-todesenvolvido, do que como um "pré-requisito funcional""de um sistema rígido, obrigará o estudioso a uma auto-crítica permanente. Este será um melhoramento consi-derável na sociologia acadêmica no seu conjunto, onde-"Ia prétention ridicule du "marxiste-léniniste" althussé-rien à monopoliser Ia science et à rejeter comme idéologie*cê qui est hors de Ia doctrine n'a d'égale que cette dugrand manager en sondages, qui rejeite comme idéologie-tattt cê qui introduit lê doute et Ia critique dans Ia sócio-

Page 82: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

160 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

logie officielle". A autocrítica, a revisão permanente dasopiniões dos estudiosos, a consciência de que nenhumcorpo de técnicas de pesquisa pode ser responsabilizadopela missão de separar a pepita da verdade da escóriadas aparências, garantirá a relação dialética apropriadaentre o observador e o fenômeno observado. Morin estátão impressionado com as brilhantes perspectivas daanálise da crise, que não hesita em descrever o papeldesempenhado pelo sociólogo como de um ator nos acon-tecimentos sob escrutínio. Ele exemplifica a sua previsãoinvocando a experiência de Nanterre, onde sociólogos empotencial, -apenas meio cozidos, varreram para fora oprato supercozido dos bolorentos "truísmos" acadêmicos.

Trata-se, porém, de um conceito muito limitado o doator que defende as esperanças demasiado ambiciosas deMorin. Tendo sido transformado em ator, de uma maneiraum pouco simplista, pelo simples fato de ser céptico, osociólogo permanece ainda um ser puramente epistemo-lógico, essencialmente como os seus predecessores tradi-cionais. Sua única conquista é a sua autocrítica (certa-mente um melhoramento digno de consideração); elecontinua fechado no universo dos significados puros; osentimento inebriador de mudar o mundo, se devidamenteescrutinizado, só pode justificar-se na mudança do mundodas suas próprias idéias. A sua práxis é talhada pelosmoldes da teoria acadêmica; seu diálogo é um diálogoentre iguais, um debate entre estudiosos da realidade enão com a própria realidade. A receita de Morin é paraa emancipação dos sociólogos dos sinais luminosos dosenso comum: algo que deve ser ardentemente desejado'— mas como um passo preliminar, e não como uma alter-nativa emancipadora definitiva para a sociologia. Não há,porém, possibilidade de mais passos em frente no itine-rário de Morin. Ele deixa-nos a esperança de uma liber-tação feliz da imaginação dos sociólogos. Contudo, nãosabemos como a liberdade preciosa dos estudiosos poderáestabelecer — se puder — um elo de união com a pers-pectiva da emancipação do homem. Numa palavra, aoferta de Morin é um convite para realizar um poucomelhor, com maior introspecção e percepção, o que éessencialmente o papel tradicional da sociologia positiva,confrontando o mundo humano como um objeto "quetesta lá", que pode ser descrito, mas com o qual não hácomunicação.

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 161

Como veremos agora, ainda mais uma tentativa paraquebrar os grilhões do retrato da realidade feito pelosenso comum — realizada por Henry Kariel em 196916

— está quase à beira de um desafio aberto à estratégiada sociologia positiva. Privado da experiência rejuvenes-cedora da primavera de Paris, e talvez dissuadido e, aomesmo tempo, estimulado pela intranqüilidade social dadécada de 60, Kariel ainda é mais cuidadoso que Morinao circunscrever o seu programa unicamente para "usoprofissional". Como Morin, ele situa o remédio no campoda seleção do objeto e na escolha da estrutura analítica.As diferenças de caráter lingüístico ocultam a identidadeestrutural dos programas. Se Morin propõe o seu idealde uma ciência social como uma sociologia do presente,Kariel, por outro lado, acentua a preocupação com o pre-sente como o desmoronamento da sociologia acadêmica."A constituição do presente, pensam eles, é válida, oupelo menos dada. Para eles, 'o presente' não é tanto umconceito quanto um estado benigno do ser." O pecadooriginal da ciência social positiva consiste, precisamente,na sua inabilidade, ou na sua recusa, em erguer-se acimado horizonte do presente. Mesmo os futurólogos, que rei-vindicam o manto de utopistas — feito unicamente dafibra moderna mais sólida e digna de confiança —

começam pelo presente, pelo que "é". Eles percebem oque as várias formas de análise do sistema já demons-traram existir: o homem como um maximizador de utili-dades egoístas e de poder, a política pública como umproduto para grupos de interesses, o setor econômicocomo principal gerador de bens para a comunidade, asestruturas governamentais como organizações hierárquicas,a política como um sacrifício de valores pessoais, os re-cursos psicológicos e econômicos como escassos, e o desen-volvimento como tudo o que leva à realização desta visãoempiricamente confirmada.

O que acontece porém é que o próprio presente é umproduto complexo de batalhas passadas e, portanto, partirdó presente como uma linha de base digna de confiança— objetiva e tão razoável como fomos levados a crer —significa de fato "aceitar a política daqueles que têm na

1.6 flenry S. Kariel, "Expanding the Political Present", American-Political Science Review, September 1969.

Page 83: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

162 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

sociedade o poder de criar a realidade, que são suficien-temente livres para estruturar a consciência de tempo*e espaço professada pelo homem". Uma tal "aquiescência'"resulta da apresentação do irreal como impossível; e apre-sentá-lo como tal é uma conseqüência necessária dadecisão de servir os interesses técnico-instrumentais e, porconseguinte, promover a ciência positiva, que não pode-ser realizada de outra maneira.

E o que se dirá da alternativa? Tal como Morin^KarieJ concebe-a como uma operação intelectual. Se aocasião se apresentasse, ele provavelmente citaria com'aprovação a declaração de Lyman e de Scott sobre os-,princípios da sua "sociologia do absurdo".

Pode-se estudar o mundo social do ponto de vista do*superior ou do subordinado; do amante ou da amada;da burguesia ou do proletariado; do patronato ou dóitrabalhador; do marginal ou da pessoa que o qualificade marginal; e assim por diante. O que é importante'é que se deve ter uma perspectiva, mas a perspectiva,particular empregada é irrelevante para a retidão dateorização. Podem-se fazer afirmações verdadeiras a partirde qualquer perspectiva, incluindo as que não estão em-consonância com qualquer ideologia disponível.17

O problema da verdade é fácil porque .há muitas ver-dades, nenhuma melhor do que a outra, e cada umapermanecendo fiel somente dentro da estrutura de uma.ideologia. A desigualdade das ideologias na sua práticade fixar a realidade social, no seu acesso à mudança parasedimentar estruturas objetivas, deve refutar-se da ma-neira mais simples — proclamando a sua igualdade inte-lectual. E então o sociólogo poderá laboriosamente con-formar-se com os critérios positivos do exame da verdade("retidão da teorização"), ao mesmo tempo que ignoraas limitações impostas à seleção da verdade pelo blocosenso comum-rotina, em cuja formulação várias" ideologias;(existentes e concebíveis) desempenham um papel alta-mente desigual.

^Analogamente, Kariel convida-nos a considerar apolítica, ou na verdade a vida social, como um jogo emque participam jogadores, cada um com a sua situaçãoprivilegiada característica; nenhum pode ser legitima-17 Stanford M. Lyman e Marvin B. Scott, A Socwlogy of the Absurd,,Appleton-Century-Crofts, Nova York, 1970, p. 16.

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 163

mente selecionado unicamente em bases intelectuais,como privilegiado, mais "fiel" que o resto.

Para compreender este aspecto expressivo da experiência,precisamos apenas seguir as pistas de Hannah Arendte conceptualizar a ação política como uma forma dejogo, um desempenho característico... Se desejarmoscompreender a maneira como a ação significa a presençade estruturas do ser não comumente apreendidas, nãopodemos considerá-la como conclusivamente significanteem nenhum outro sentido, por exemplo, de ser "realmente"significante de alguma intenção predefinida ou de ser"realmente" funcional para alguma estrutura predefinida.Devemos vê-la como uma forma de jogo: completo emsi mesmo.

Kariel parece desembaraçar-se da intrigante questãodo exame da verdade de afirmações que desafiam os"duros fatos" do senso comum, limitando-se simplesmentea negar, unicamente pelo poder das palavras, a presençade tais fatos. Não há "estruturas predefinidas" que cana-lizem o curso do jogo, independentemente das necessida-des realizadas ou não-realizadas dos jogadores; não há"intenções predefinidas" ligadas à força às posições apartir das quais os jogadores individuais começam o seujogo. O jogo está "completo em si mesmo", de maneiraque devemos deixar de nos preocupar acerca da formacomo separá-lo dos fios da rotina inerte: para começar,o jogo não está ligado a esses fios. A ciência social quenos encoraja a crer em tal coisa sã pode estar errada elevar-nos a errar. Do que precisamos, a fim de revestirnossos produtos do poder emancipador, é simplesmenteencaminhar a nossa attention à Ia vie para outras regiões,e olhar com espírito de compreensão através das pers-pectivas cognitivas de todos os companheiros. "Valorizaras necessidades da criança acima das da escola existente,ou... as necessidades do trabalhador acima das da orga:nização, eles (os sociólogos que seguem o seu conselho —Z. B.) introduzem opções. Posicionando os valores con-trabalançadores, eles expandem a compreensão." Maisuma vez, como Morin, o resto é silêncio: não sabemos comoessa "compreensão expandida", conseguida pelos sociólogosou pelos cientistas políticos, poderá resultar possivelmentenum aumento da liberdade dos homens. De fato, é apenaso sociólogo que provavelmente ganhará na sua própria

Page 84: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

T164 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

emancipação intelectual, ao visitar vários pontos de obser-vação, uma vez que os jogadores já se encontram entrin-cheirados, talvez demasiado bem, nos seus próprios pontosde observação. Kariel, como Morin, parece estar mais preo-cupado, talvez involuntariamente, com o desenrolar daimaginação dos sociólogos do que com os homens que elesimaginam. Todas as verdades são relativas, parciais e uni-laterais; todos conhecem, afinal, a sua verdade parcial.Deixemos que os sociólogos, portanto, desfrutem da intros-pecção em todas as verdades, em vez de caírem na ratoeiraconservadora de perseguirem futilmente a verdade única,real, genuína. O que separa os sociólogos e aqui define oseu singular papel profissional não é o exame da verdade,mas a distância irônica em relação às verdades: só os soció-logos sabem, o que os outros não vêem por demasiadamiopia, que as verdades são muitas e todas defeituosas.Nisto reside a diferença crucial entre Kariel e Morin. O pri-raeiro nega a existência desta "profundidade" da realidadeque o, segundo gostaria que penetrássemos. Explicitamente,Kariel propõe-se analisar a vida social como um jogo. Narealidade, seu programa reduz-se a um convite para umjpgo intelectual, extensivo unicamente aos sociólogos.

Manfred Stanley18 considera, igualmente, a questão damaneira como a ciência social poderá transcender o sensoçpmum, mas posiciona-a de maneira um pouco diferente,recusando-se a mover-se da posição de que a verdade — unaé .indivisível — pode em princípio ser estabelecida, de queestabelecê-la é uma ocupação digna, e que esta ocupaçãoé o domínio da ciência. Ele está consciente, porém, de quea ;realidade "óbvia", segundo o senso comum, e muito cla-ramente dada empiricamente, não é a única estruturadentro da qual a verdade pode ser medida. Se existemoutras estruturas, elas devem ser, contudo, empiricamenteacessíveis, mesmo se de uma maneira muito mais can-sativa e intrincada. Stanley deseja mostrar que se pode,ao mesmo tempo que se procede segundo as regras daciência positiva fundada empiricamente, ainda dar ca-ráter de legitimidade e de validade à discussão escolásticada.s realidades potenciais.. A esperança que Morin depositou no fenômeno daçnse deposita-a Stanley, mais especificamente, no processoge "deslegitimação". Stanley concorda com o paradigma*8 Stanley, op. cit.

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 165

durksoniano prevalecente de que a "normalidade" de umaordem social está fundada numa legitimação bem suce-dida, isto é, numa ampla aceitação das normas, valores esignificados que sustentam a espécie de comportamentoque, em última análise, põe em movimento a rede derelações apreendidas como a ordem em questão. Daí quea "deslegitimação" aceite qualquer quebra da ordem —todos os casos em que os grupos significativos da popu-lação, ou secções de comportamento publicamente rele-vante, são desviados do padrão de conduta rotineiro.Apoiado neste paradigma tacitamente aceito, o compor-tamento anormal deve ser relacionado, para fins de;explicação, com algum conjunto de processos mentais..Stanley chama a tais processos uma "privação experimen-tada". Contrariamente à opinião habitual da maioria dos;sociólogos, a deslegitimação não é um acontecimento epi-sódico, um desvio do "estado natural", causado por inin-teligibilidade moral, ignorância, ou desvio psicologicamen-te motivado. É, pelo contrário, um fenômeno constantee regular, por direito próprio, que fornece ao sociólogoque queira uma oportunidade permanente de apreenderuma partícula da realidade purificada das interpretaçõesunilaterais do senso comum. É constante porque a expe-riência da privação resulta da escassez que, por sua vez,é uma característica permanente da ordem social. Sabe-mos, pelo menos desde os tempos de Durkheim, quequalquer sociedade vai tão longe na inspiração de res-peito e desejo pelo seus valores que, mais tarde ou maiscedo, tem dificuldade em cumprir as suas promessas:normalmente, há mais gente atraída pelos valores emque se apoia a sociedade do que valores a serem ofere-cidos, distribuídos e adquiridos. Poder-se-ia quase dizerque a desejabilidade e a escassez dos valores estão inse-paravelmente ligadas uma à outra. Daí que a escassezseja um fenômeno "normal" — e, dada a normalidadeda escassez, é de se esperar que a experiência da "pri-vação" seja relativamente comum. Finalmente, as pes-soas que experimentam a sua situação como privaçãoserão, mais cedo ou mais tarde, levadas a atuar de ma-neira a minimizar essa experiência desagradável, e oresultado será uma mudança da ordem social.

Até aqui ainda estamos muito dentro do universohabitual do discurso da corrente principal da sociologiaacadêmica. Stanley, portanto, faz uma tentativa interes-

Page 85: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

166 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

sante para desenvolver a estratégia de examinar o conhe-cimento sobre as realidades alternativas, não-rotineiras,através de meios considerados legítimos pelo conhecimentosocial durksoniano, e que pode acomodar-se ao paradigmadominante. Essencialmente, a estratégia de Stanley con-siste no que se poderia chamar a "experimentação men-tal", a qual, porém, em nenhum ponto se separa dascaracterísticas empiricamente acessíveis da realidade pre-sente ou passada. É explorando cuidadosamente a reali-dade presente e examinando a lógica das ocorrênciaspassadas que se podem colher respostas plausíveis paraas seguintes perguntas:

Primeiro, em que maneiras específicas pode uma dadasociedade (vista como uma estrutura de significados) serconsiderada como um campo de ''escassez em potencial?"Segundo, sob que condições são tais potencialidades sele-tivamente concretizadas em "paradigmas experimentadosde privação" entre setores particulares da população?Terceiro, sob que condições estão essas privações experi-mentais ligadas a uma ação social terapêutica?

Stanley, como vemos, pressupõe a regularidade docomportamento -"irregular"; "partindo desta pressuposição,pode-se predizer 'com tanta segurança a quebra da ordempresente como se pode predizer, encorajado ou absolvidopelo paradigma durksoniano (e, em boa medida, pelosseus críticos) a sua continuidade e perpetuação. Daí que,em princípio, se possa investigar empiricamente e pre-dizer em termos empíricos as condições sob as quais urnatal quebra da ordem presente poderá ocorrer, o que levaráeventualmente à emancipação do homem — ao estabe-lecimento da liberdade humana.

A emancipação, como era de se esperar, é tambémdefinida em termos de significados. A liberdade

significa que cada pessoa é o intérprete dos significadosque compreendem o mundo social, isto é, um agente her-menêutico. Na verdade, o controle social é, essencialmente,o processo particular sócio-cultural através do qual ofato da agência moral de cada pessoa fica devidamenteoculto das categorias particulares da população e diferen-

delegado a outros setores.

A falta de liberdade, em outras palavras, resulta deuma parte da sociedade ser privada do seu significado,renunciando a ele ou não o apreendendo, do seu propó-

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 167

sito-e da sua faculdade de estabelecer normas e ter quedepender, quanto a estes pontos vitais, da discrição dos«outros. Analogamente, o poder na sociedade consiste nomonopólio ou privilégio no campo da interpretação dos.significados e dura tanto quanto aquele. Stanley vê no'fenômeno do poder assim definido a fonte permanente>de todas as experiências de privação acontecidas. O poder,por assim dizer, gera resistência contra si mesmo, o que]-por sua vez, conduz à sua limitação progressiva. Esteprogresso está inteiramente situado na esfera dos signi-ficados; a libertação é uma questão de iluminação e, daí,•quase por definição, co-extensiva com a atividade daciência social. A relação íntima entre a emancipação eas ciências sociais é assegurada pela natureza da pri-meira. Agora que verificamos que a ciência social podeüidar com realidades alternativas sem violar as suas pró-prias, regras de "exame" da verdade, podemos ver comouma revolução na sociedade pode ser manejada através»de meios sociológicos sem revolucionar a própria socio-logia.

O sociólogo de Stanley é — diga-se outra vez — um'Observador e um analista desprendido. É verdade que seuinteresse está mais voltado para as realidades alterna-tivas do que para a realidade "realizada". Mas, sejam«quais forem os seus -objetivos cognitivos, o presente — oúnico campo acessível à investigação empírica — continuaa ser o único objeto das suas pesquisas. De fato, Stanleypropõe-se a aplicar os princípios, que os sociólogos sempreAguardaram ciosamente, a problemas que eles não se atre-veram a atacar: se os sociólogos, tradicionalmente, serestringem a extrair o real e o realista de entre as inter-pretações da realidade corrente, Stanley deseja ampliar«o campo dessa extração, de maneira a abranger realidadespossíveis, ainda localizadas no futuro. Se Stanley tivesserazão, então o sociólogo poderia, com antecedência, ba-leado em evidência disponível e examinável, extrair as'extrapolações "verdadeiras", realistas, do presente de umconjunto de possibilidade, com certeza muito maior doque qualquer sociólogo comum estaria, neste momento,preparado para considerar. As extrapolações que Stanley•explora incluem aquelas que — longe de pressuporem uma-continuação suave das tendências presentes — pressagiam'uma reviravolta drástica das interpretações de significa-do realizadas pela rotina e pelo s"enso comum. Com os

Page 86: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

168 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

olhos devidamente orientados e focados no universo dosfatos habitualmente alcançados pela pesquisa, podemse descortinar sinais de uma escassez emergente (umafalta de comunidade que encontra a sua expressão nanostalgia cada dia mais em moda — a "percepção dopassado em termos da fenomenologia das escassezes pre-sentes" — o que constitui um exemplo característico);conhecendo, além disso, mais uma vez por meio da evi-

.dência examinável, a condição sob a qual essa escassez. tem probabilidade de gerar a experiência da privação, ea ocasião em que tal experiência poderá levar a uma açãoterapêutica, pode-se extrair, de uma maneira legitimadapela ciência positiva, a verdade de uma predição aparen-temente em conflito com as realidades do dia-a-dia. Oque Stanley deixa por dizer é o obstáculo principal de

. todos os que buscam o verdadeiro conhecimento sobre ofuturo: o efeito feedback da predição. Sua presença dará,inevitavelmente, origem a alguma espécie de ação quetornará o conteúdo da predição mais ou menos provável— mais ou menos "verdadeiro"; a predição "alimentará"a realidade e, por conseguinte, a realidade será diferentedo que era antes. Stanley, em consonância com a ten-dência geral da sociologia positiva, faz tudo quanto estáao seu alcance para englobar a totalidade do processode exame ! completo com os seus achados conclusivos eirreversíveis, dentro da área diretamente controlada —e, na verdade, estruturada —• pelo próprio examinador;preservando assim os direitos exclusivos da profissãosociológica para validar o conhecimento que o homemtem dos seus fenômenos, só que agora incluindo tambémo futuro dos homens.

Consideramos, até aqui, ̂ três propostas, consideravel-mente típicas, para a solução do inquietante dilema detranscender o senso comum, ao mesmo tempo que seretém a possibilidade de examinar a verdade das inter-pretações alternativas. Nenhuma das três parece intei-ramente satisfatória. Indeperidentemente das suas seme-lhanças essenciais, cada uma aponta para uma direçãoum pouco diferente, estando todas elas dispostas a sacri-ficar uma parcela dos hábitos institucionalizados daciência social positiva. O sacrifício de Kariel parece ser omais radical dos três; mas vai, de fato, além de limitesaceitáveis, na verdade caindo numa petição de princípios,ao repudiar o próprio conceito do exame da verdade e,

PODE A SOCIOLOGIA CRÍTICA SER UMA CIÊNCIA? 169

na realidade, da própria verdade como tal. Procedendo*assim, pouco nos pode auxiliar na nossa pesquisa. Poruma razão semelhante, pouca inspiração podemos colhernuma outra solução radical, proposta há meio século porErnst Bloch na Geist der Utopie, que se vem tornando*dia a dia mais popular. Bloch pressupõe, desde o início,a natureza a-histórica, verdadeiramente antropológica doPrinzip Hoffung — o verdadeiro trampolim para a de-manda perpétua da emancipação humana. O impulsopara a emancipação, assim como o progresso que na rea-lidade se efetuou na história, é atribuído a uma faculdadeilusória da jornada em direção ao regnum humanum, nadireção de uma perfeição ainda não realizada — umautêntico telos encaixado no gênero humano, mais dura-douro do que a história humana e mais poderoso do quequaisquer barreiras historicamente erigidas para impedira autoperfeição humana. Se assim fosse, então as inves-tigações concretas das condições históricas específicas;pouco poderiam fazer para iluminar o potencial humano*no seu esforço para gerar realidades alternativas. A jor-nada em direção ao Reino da Razão é em si mesma irra-cional e não pode ser apresentada como um processo*ordenado, determinístico ou até mesmo regular. De umamaneira muito semelhante à de Munchhausen, o homempode erguer-se acima da sua condição histórica por meto',de um reconhecimento súbito do que um autêntico serhumano poderia' ser. A essência do homem está sempreem frente dele, perseguida mas nunca alcançada, somentesusceptível de ser encontrada nas profundas esperanças,do homem, mas em nada já cristalizada na sua existência.

A verdadeira natureza da essência não é algo já encon-trado numa forma completa, como a terra, o ar ou o,fogo, ou mesmo uma idéia universal invisível, ou emqualquer número que possa ser utilizado para absolutizar-ou hipostatizar estes quanta reais. O real ou a essência (é o que ainda não existe, o que anda em demanda dósi mesmo no âmago das coisas, e que está esperando>pelo seu gênesis na tendência latente do processo. .. Na-turalmente, o Ainda Não não pode ser considerado-como se já existisse, digamos, no átomo ou nos "diferen<ciais" subatômicos da matéria, tudo o que mais tarda,emergiria, já presente e encapsulado numa forma minús-cula como uma disposição inerente.19

*» Ernst Bloch, On Marx, Herder and Herder, Nova York, 1971,p. 41. Trad. por John Maxwell.

Page 87: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

170 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

íu Não há nada, portanto, na realidade sensualmente"acessível, completa, que possa derramar luz sobre a vasta«expansão do potencial humano irrealizado. Ao escolher•a situação de privilégio para a crítica da realidade, nãopodemos contar com outro guia mais sólido e digno de•confiança do que a nossa capacidade para postular asituação de privilégio que escolhemos. É a consciência,na qual a "totalidade ainda distante se reflete", e a filo-

sofia que "se abre, em última análise, no horizonte dofuturo", que constituem os verdadeiros "pontos de Ar-quimedes", emprestando à ação humana apoio sufi-ciente para virar de pernas para o ar o curso da histó-ria.20 O apelo de Bloch é verdadeiramente um apelo emforma de iluminismo à coragem e à autoconfiança: co-nhecer é ousar, a busca do conhecimento e a busca da-certeza vão por caminhos diferentes, pois, a fim de avan-çar na jornada para o conhecimento verdadeiramente•emancipador, o homem fecha os olhos para as coisas'apresentadas pela realidade à mão como certezas. A espe-- rança do homem ainda não atingiu a vitória conclusivaem parte alguma, mas também ainda não foi definiti-

• vãmente frustrada. Os homens continuarão a cultivar aesperança, aconteça o que acontecer, uma vez que esperarpela essência ainda-não-alcançada é a verdadeira exis-tência humana.

Potencialidade, alternativa, futuro, esperança — to-das estas coisas são para Bloch categorias descritivas da-realidade humana, e não preceitos metodológicos para a.sociologia. Seu interesse pela emancipação nasce damesma preocupação que deu origem ao interesse deHeidegger pela hermenêutica. É uma elucidação da exis-tência humana e não a construção de uma ciência ob-jetiva desta existência de que Bloch, da mesma maneiraque Gadamer, anda à procura. E um sociólogo à procura•de ^ regras metodológicas sólidas-e-rápidas para uma"ciência emancipatória" está tão condenado a sentir-sefrustrado com a leitura de Bloch, como um historiadorà procura de regras nítidas-e-secas para "compreender aHistória" o estará com a leitura de Heidegger.

Todas as ouíras idéias consideradas até aqui preten-dem oferecer uni conselho prático aos sociólogos. Paraisto, todas concordam que a verificação do conhecimento

•20 Ibid., pp. 98-100.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 171

-•emancipador, se de fato concebível, deve ser a preocupa-ção fundamental dos cientistas sociais; para ser admi-.tido como atingível, deve ser construído de maneira a;poder ser realizado, em todas as suas fases, por e dentroda comunidade dos estudiosos dos fenômenos humanos(sociólogos ou filósofos). Para todos os autores discutidosatrás, assim como para os seus colegas mais ortodoxos,o significado genuíno da questão "como pode ser exami-mado o conhecimento de realidades alternativas?" reduz-se,-embora muitas vezes implicitamente, à questão "comopode o conhecimento das realidades alternativas ser con-•clusivamente examinado por cientistas e através de meios•que só eles empregam?" É a esta pressuposição comum,embora tácita, que se pode atribuir o fracasso no encon--tro de uma solução satisfatória. Há um sacrifício quenenhum dos autores que visitamos até aqui está dispostoa aceitar: o sacrifício da situação de privilégio única dos-cientistas sociais e da sua auto-suficiência como juizesdo verdadeiro e do não-verdadeiro.

Este passo último, mas decisivo, foi dado por Jurgen.Habermas — talvez somente por Habermas — na suare-interpretação recente da opinião marxista sobre a re-lação entre o conhecimento social e a realidade social.Articulando a tradição gramsciana do marxismo no ver-náculo da ciência social moderna, Habermas tem proba-bilidade de fazer chegar a mensagem a essa audiênciaque viu com equanimidade as ofertas enroupadas numvocabulário não familiar. Em discurso direto com a socio-logia moderna e com os seus problemas mais tópicos,Habermas reformula o argumento marxista para o pro-cesso da verdade — para que o curso da verificação daverdade seja estendido além do campo dos laboratóriosadministrados por cientistas profissionais, e para que•assim seja transformado no processo de autenticação.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO

Há três interesses que, de acordo com Habermas,geram a preocupação humana com o conhecimento e secristalizam em afirmações teóricas acerca dos fatos, e emestratégias cognitivas. Estes interesses são técnicos, prá-ticos e emancipatórios. Os dois primeiros, embora dirigi-dos para diferentes aspectos da prática, participam de um

Page 88: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

172 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

status comum. Da "comunicação" — a articulação pré--reflexiva da prática rotineira, o reconhecimento dos"fatos" pelo senso comum — eles extraem o "discurso",livre das compulsões imediatas da ação, que está sujeita,às suas próprias regras racionais e tem possibilidade defornecer justificação razoável ao que tem sido reconhe-cido unicamente como f atual. É graças a esta autonomia,relativa do discurso que as afirmações teóricas acerca dadomínio fenomenal das coisas e dos acontecimentos (no»caso do interesse técnico), ou das pessoas e dos juízos(no caso do interesse prático) podem ser feitas e justi-ficadas. A autonomia do discurso nunca está completa.É continuamente posta em movimento pelas necessidadesou dúvidas que brotam da prática da comunicação;e conta-se com que os seus resultados, se forem de apli-cação prática, sejam reconduzidos à corrente principal daação racionalmente orientada e das orientações da comu-nicação diária. Mas o processo da justificação das afir-mações teóricas, da transformação do "meramente reco-nhecido" no "realmente conhecido", está totalmente in-cluído no domínio do discurso, onde pode ser conscientee propositadamente controlado e regulado por regras. Namedida em que a comunicação pode ser vista como umacondição antropológica, genérica do homem, os interessestécnicos e práticos nascem imediatamente de toda a comu-nicação, como tentativas inevitáveis "para esclarecer a'constituição' dos fatos acerca dos quais as afirmaçõesteóricas são possíveis".21 Sendo governada pelo seu pró-,prio corpo de regras, que — ao contrário do materialque lhes é fornecido e dos produtos da sua própria apli-cação — de nenhuma maneira estão inseridas em oudependentes dessa comunicação que constitui a tessitura'da vida social, o discurso pôde legitimamente exigir umstatus transcendental, que é, subseqüentemente, susten-tado e incorporado na autonomia dos seus proprietários(os cientistas), como os agentes conhecedores e "testado-res" da teoria válida.

O status de interesse emancipatório, e a espécie deconhecimento que pode resultar da sua aplicação é,porém, diferente. àAcima de tudo, o interesse emancipa-tório — contrariamente a Bloch — não é uma facetaextratemporal, genérica da condição do homem como um

21 Habermas, op. cit., p. 21 ff.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 173

ser comunicador. "Este interesse só pode desenvolver-sena medida em que uma força repressiva, sob a forma de-exercício normativo do poder, se apresenta permanente-mente em estruturas de comunicação distorcida — istoé, na medida em que a dominação é institucionalizada."A comunicação distorcida constitui uma situação de desi-gualdade entre os participantes de um diálogo; uma situa-ção em que um dos interlocutores é incapaz, ou estáincapacitado, até ao ponto de não poder assumir umapostura simétrica para com o seu interlocutor, de nãocompreender e de não assumir os outros papéis opera-tivos no diálogo. Tal situação é afetada, numa base per-manente (se medida pela duração de vida dos homensenvolvidos), por uma dominação institucionalizada, quepriva alguns interlocutores daqueles meios e elementos,sem os quais se lhes torna impossível desempenhar umpapel igual no diálogo. Só então pode emergir o interesseemancipatório: é, desde o princípio, um produto da his-tória social e/ou individual.

O interesse emancipatório é, portanto, o interesse emelucidar esta hiatória. Leva o ator a produzir, ao nívelda consciência (onde podem ser criticamente domina-das) as ocorrências e ações não vistas que deram formaà situação atual e a sustentam como uma comunicaçãodistorcida. Ao assim proceder, o ator é auxiliado pela"reconstrução racional" de sistemas de regras que o dis-curso científico» tornam explícito e que determinam amaneira como a experiência pode ser processada e justi-ficada. Mas o diálogo que serve o interesse emancípató-rio não é, em si mesmo, tal discurso. Nem se destinaa ser a justificação da validez do reconhecimento expe-rimental dos "fatos". Ao contrário do discurso que nascedo interesse técnico e prático, o diálogo realizado pelointeresse emancipatório não pode ser, em nenhuma fase,separado do seu empenho prático na comunicação, noprocesso vital. Não se confina ao objetivo da justificaçãorazoável; quer, além disso, examinar-se a si mesmo naaceitação real da sua solução hipotética na práxis dosinterlocutores. Procura não só validar-se a si mesmo, mas"autenticar". Envolve, portanto, uma noção diferente,mais ampla, do exame da verdade. As hipóteses que trazà luz são reclamadas quando o interlocutor no diálogoaceita e assume o papel de que foi privado no decursoda comunicação distorcida. Na opinião de Habermas, a

Page 89: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

174 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

terapia psicanalítica fornece um padrão típico para o diá-logo ativado pelo interesse emancipatório.

Na aceitação, por parte do paciente, das interpretações,"pré-fabricadas" que o doutor lhe sugere e na sua con-firmação de que estas são aplicáveis, ele vê, ao mesmo,tempo, através de uma autodecepção. A verdadeira inter-pretação torna possível, ao mesmo tempo, a intenção au-têntica do sujeito com respeito a estas expressões vocais,com as quais ele tem até então enganado a si mesmo»(e possivelmente também a outros). As reivindicações,de autenticidade, como regra, só podem ser examinadas,dentro do contexto da ação. Essa comunicação distinta,,na qual as próprias distorções da estrutura comunicativa.podem ser superadas, é a única na qual as reivindicações;da verdade podem ser examinadas "discursivamente",,junta e simultaneamente com a reivindicação da autenti-cidade, ou ser rejeitadas como injustificadas.

Pela sua própria constituição, o conhecimento crítico»que serve o interesse emancipatório difere dos restantestipos de conhecimento na maneira como é examinado:não pode ser reclamado dentro do contexto do discurso-institucionalizado, domínio dos peritos. No processo dasua reclamação, os peritos — os proprietários institucio-nalizados do conhecimento examinado que fazem a "re-construção racional" de fatos plausíveis — desempenham/um papel ativo, talvez crucial; mas eles não controlamo processo monopolisticamente. Nem pode o seu veredicto,,argüído somente em termos do discurso propriamente dito;,ser considerado como final e conclusivo, a não ser queseja "autenticado", isto é, confirmado no ato de retifi-cação das distorções comunicativas. Esta verificação colo-ca Habermas à parte de todos os sociólogos anteriormenteconsiderados, que propuseram soluções para o problemado conhecimento crítico examinado. Todos eles, comavimos, tentaram inserir o problema do exame dentro dacontexto inadequado do "discurso" institucionalizado, diri-gido por cientistas. Negligenciaram a característica dis-tinta do "diálogo" no qual as hipóteses emancipadorasnecessitam de ser reclamadas. Negligenciaram, igualmen-te, a diferença suprema entre a "justificação razoável",que é o fim ideal do discurso, e a "autenticação", queé o requisito do diálogo.

O discurso — o modo de existência da ciência posi-tiva, que ilumina a constituição da realidade em resposta

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 175

a interesses técnicos e práticos, somente fornece a faseprimeira, preliminar do processo emancipador que entraem domínios que a ciência positiva, resoluta e justifica-velmente, se recusa a trespassar. É pela análise positivada realidade que procura sua legitimação na diligenteaplicação dos meios comuns de descobrir os fatos da ciên-,cia social positiva, que as hipóteses do conhecimento crí-tico, dirigidas para a reconstituição da comunicaçãodistorcida, encontram a sua primeira razão de ser. Nesteponto, a sua verdade ou não-verdade é examinável deuma maneira que, de forma alguma, difere de outras,afirmações que entram no discurso. Porém, uma vez queo que elas propõem é precisamente o caráter inapropriadada condição atual para tornar as hipóteses viáveis, a im-possibilidade de revelar a sua verdade na situação atualde comunicação distorcida, então as condições da comu-nicação "normal" (isto é, fundada na igualdade dos inter-locutores) devem ser primeiro estabelecidas para empres-tar a autoridade requerida aos resultados do exame.O conhecimento crítico afirma que a realidade correntetem o caráter de comunicação distorcida. Esta asserção»só pode ser reclamada se a comunicação vier a ser corri-gida. Porém isto requer, por sua vez^ o afastamento do-domínio institucionalizado responsável pelas distorções.Em outras palavras, requer uma ação organizada. A au-tenticação — tornando-se verdadeira-no-processo — sópode ocorrer no reino da práxis, de que o discurso insti-tucionalizado, parcial, dos cientistas profissionais consti-tui somente a fase inicial. E assim, a questão crucial daautenticação (em oposição à verificação) é esta: "Como»pode ser apropriadamente organizada a tradução da teoriapara a prática"?22

No caso do diálogo psicanalítico, esta tradução»torna-se relativamente simples, devido à submissão volun-tária do paciente. Embora o processo não esteja, de for-ma alguma, isento de fricção, e uma vez ou outra hajaconflitos violentos, a vontade, por parte de um dos inter-locutores, de conformar-se com o papel de paciente ajudao diálogo a desbastar as arestas mais salientes. Esta pres-suposição de forma alguma é válida para a vida social.Tanto os proponentes do conhecimento crítico, como os.seus possíveis recipientes, podem concordar (embora não?

22 Ibid., p. 25 ss.

Page 90: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

176 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

inevitavelmente) com a distribuição dos papéis de doutorc paciente. Os advogados da crítica podem recusar-se atentar entrar num diálogo significativo com alguns dosseus interlocutores potenciais e pressupor a sua inabili-dade em manter um tal diálogo. Os possíveis recipientesdo conhecimento crítico podem recusar-se a se conside-rarem como pacientes, e chegar ao ponto de considerartodas as tentativas para redefinir a realidade como amea-ças dirigidas contra a própria base da sua existência roti-neira que eles não experimentam como não-liberdade. Nocaso de a hipótese crítica não conseguir, de propósito oupor defeito, guiar a reflexão do interlocutor e, portanto,"'dissolver as barreiras que impedem a comunicação", éforçada a permanecer ao nível do discurso e a abster-seda possibilidade de transformar-se em diálogo. Torna-se,então, indistinguível de outras afirmações teóricas e, talcomo elas, só poderá ser examinada como as outras afir-mações: como uma expectativa, cujo conteúdo é compa-rado com o desenvolvimento real dos processos nos quaisa afirmação em questão não é um fator atuante. Hipóte-ses como a predição de Marx das tendências futuras daacumulação capitalista tornam-se afirmações examiná-veis através dos meios comuns da ciência positiva, namedida em que permanecem ao nível do discurso insti-tucionalizado; colocam os grupos, cuja situação é mode-lada pelas tendências referidas acima, como objetos forado discurso; e recusam-se a, ou são impedidas de, entrar'num diálogo significativo com tais grupos, com a inten-ção de influenciar os seus processos de auto-reflexão.Não são os valores escolhidos, ou um cepticismo críticopeculiar, que dão origem ao conhecimento emancipadorcomo um corpo de afirmações qualitativamente distintasdo conhecimento técnico ou prático. A distinção genuína,e única, está situada no eixo verificação-auténticação;em outras palavras, na relação prática entre o conheci-mento em questão com a rotina diária e a sua reflexãodo senso comum. Enquanto esta rotina, completa com osenso comum, permanece na posição de um objeto emforma de natureza "fora" do reino do discurso (de talmaneira que os .seus atributos não são tocados pelo fatode, dentro desse discurso, terem sido formuladas certashipóteses) não há razão para classificar tais hipótesesseparadamente, como pertencendo a um tipo especial deconhecimento, servindo outros interesses .que não sejam.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 177

os técnicos e/ou práticos. Este é um ponto muito impor-tante, demasiadas vezes mal interpretado pelos estudio-sos aprisionados dentro das paredes do árido dilema"fato-valor". O conhecimento não se torna crítico ouemancipador por manifestar a sua antipatia pela reali-dade ou por atar uma corda de invectivas às afirmaçõesdo fato. Nem pode uma afirmação reivindicar potencialemancipador, se não observa diligentemente os fatos, re-tendo a sua impecabilidade como afirmação factual.Dentro do contexto do discurso científico institucionali-zado, não há diferença evidente no conteúdo, ou na sin-taxe, entre afirmações que eventualmente permanecerãodentro do ciclo dos interesses técnicos e práticos e a suarealização, e aquelas afirmações que podem potencialmen-te dirigir-se a um interesse emancipador. Tal diferença sópode ser posta em relevo além do contexto do discursoinstitucionalizado propriamente dito, quando algumas afir-mações, ao contrário de outras, começam a interatuarcom os atores que descrevem, transplantando a vidarotineira e a sua reflexão do senso comum de "fora" para"dentro" da comunicação, e passando do discurso profis-sional para o diálogo aberto.

O potencial emancipador do conhecimento só é sub-metido a um exame e, na verdade, pode ser atualizadocom o início do diálogo, quando os "objetos" das afir-mações teóricas se transformam em interlocutores ativosno processo incipiente da autenticação. Este tipo de re-lação foi exemplificado por Marx como a interação entrea ciência social — a teoria científica do capitalismo —e a classe operária. Marx adivinhou que não havia nadana condição objetiva dos trabalhadores que pudesse pro-teger as barreiras de comunicação contra o impactoerosivo da verdadeira teoria social. Ao contrário da bur-guesia, eles não considerariam uma realidade alternati-va, purificada da forma corrente de dominação, comosendo uma ameaça direta às condições que constituema única identidade social aceitável, concebível. É por istoque a exposição das raízes históricas da dominação e osdeterminantes objetivos da comunicação distorcida tive-ram a possibilidade de ser voluntariamente recebidospelos trabalhadores, destinados ao lado perdedor da dis-torção. Baseado nisto, Marx esperava que os trabalhado-res assumissem, voluntária e entusiasticamente, o papelde "pacientes", a fim de trazer à luz as causas da sua

Page 91: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

178 CRÍTICA DA NÃO-LDBERDADE

condição, para redefini-las e depois refazê-las no discursode uma ação prática racionalmente concebida.

Em termos gerais, a confirmação genuína da crítica"como conhecimento emancipador" permanece inatingí-vel, a não ser que tal diálogo comece a processar-se.A confirmação genuína "só pode ser ganha na comuni-cação do tipo de discurso terapêutico, isto é, precisamenteem processos bem sucedidos de educação com que ospróprios recipientes concordassem voluntariamente". Esta"negociação de significados", que os etnometodólogos ele-gantemente tomam pelo feijão com arroz da rotina diária,é de fato um fenômeno raro e precioso num plano socialmais alto do que os contatos íntimos de grupo pequeno,face a face. A fim de ser alcançada, tem que se lutarpor ela. Quando é alcançada, o processo de autenticação— o corolário epistemológico da emancipação — é postoem movimento. Com isso, a crítica da realidade entra nafase do "iluminismo".

Nesta fase, a teoria crítica levanta ferros da escriva-ninha do teórico e começa a navegar nas águas livres dareflexão popular — procurando ativamente reformular aavaliação da experiência histórica dada pelo senso comume auxiliar a imaginação a fugir do caráter "conclusivo"da evidência passada. Algumas vezes o porto de destinoestá claramente localizado no mapa da teoria, enquantooutras, partes são explicitamente declaradas fora de limite.Noutros casos, porém, nenhum grupo fica excluído,a priori, como um "paciente" potencial, sob o pretextode que os seus problemas peculiares de comunicação nãotêm remédio. Então (como no caso dos principais mem-bros da Escola de Frankfurt, desiludidos com a afabili-dade terapêutica da classe- operária) o que de fato temlugar é "a disseminação difusa de introspecções in-dividualmente ganhas no estilo do iluminismo do sé-culo XVIII". No conjunto, há uma crescente tendência,hoje, entre os críticos teóricos no sentido de perceber que,nas palavras tensas de Habermas, "não pode haver umateoria significativa que, por si, e independentemente dascircunstâncias, obrigue alguém a uma atividade mili-tante^'.23 A resposta para o fato da distorção da comu-nicação num setor específico ser ou não tão grave queelimine a possibilidade" de ser reparada não pode ser esta-23 Ibid., p. 32 ff.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 179

belecida somente por meio da introspecção teórica: é, defato, uma dessas hipóteses cruciais que só podem ser veri-ficadas no decurso do esclarecimento. Em outras pala-vras, não há barreiras para a comunicação que não pos-sam ser derrubadas, pelo menos em princípio. A respon-sabilidade da prova de que este não é o caso é o daprática da educação.

Já sabemos como a estratégia da pesquisa científicadefine o êxito em termos do recolhimento de dados e daformulação da teoria. Certamente, o esclarecimento deveter os seus próprios critérios de êxito, que servem simul-taneamente o propósito de confirmar a verdade das hipó-teses críticas. Para descobrir tais critérios, pode-se usar,mais uma vez, a analogia do diálogo psicoanalítico. Naterapia, o "paciente" deve reconhecer a si mesmo nasinterpretações oferecidas pelo terapeuta. Se o fizer, entãotais interpretações são reconhecidas pelo terapeuta comoverdadeiras. A distinção importante entre este método doexame da verdade e o método aplicado na primeira faseanalítica é que a hipótese, em si mesma, é ativa e atuantena criação das condições em que possa tornar-se verda-deira. Há pouca probabilidade de que o paciente em po-tencial alguma vez chegue à nova interpretação unica-mente por si mesmo, sem um terapeuta, ou, em termosmais genéricos, sem um agente externo que exerça opapel do terapeuta, estando presente para oferecer umainterpretação distinta da situação do paciente, impostapelo senso comum. E assim, é a contemporização danegociação da interpretação alternativa que pode gerar,eventualmente, uma nova situação na qual esta inter-pretação "se torna" verdadeira por ter sido assimiladana consciência do paciente e, portanto, "autenticada".

Analogamente, no caso da re-interpretação da expe-riência histórica do corpo biográfico de um grupo, emvez de um indivíduo, a autenticação de uma interpre-tação alternativa requer a presença prévia, ativa, de umahipótese relevante e de um processo de sua negociaçãodevidamente organizado. A atividade do esclarecimento,ao contrário da atividade do exame da verdade da ciência,não se destina a descobrir que o interesse que atribui aum grupo é, na verdade, o "interesse real" do grupo emquestão, mas a atingir uma situação na qual esse grupoadotará realmente o interesse atribuído como seu próprioe "real". O processo de esclarecimento consiste, portanto,

Page 92: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

180 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

num diálogo no qual os teóricos críticos tentam nego-ciar os significados alternativos que oferecem e a recor-rer à persuasão para convencer os seus interlocutoresdo seu caráter adequado. Se terão êxito ou não de-pende, no conjunto, do grau de correspondência entrea fórmula interpretativa contida na teoria crítica e ovolume de experiência coletivamente acumulada e assimi-lada pelo grupo por meio do senso comum. A essa corres-pondência deve ser dada a oportunidade de ser cuidadosa-mente estudada e escrupulosamente avaliada por todosos participantes: "Num processo de esclarecimento sópode haver participantes" — e mesmo o êxito mais espe-tacular da teoria em empolgar a imaginação e a açãohumanas não deve ser tomado como uma prova da ver-dade contida na teoria, a não ser que o diálogo tenhasido conduzido em condições de liberdade intelectualilimitada. A autenticidade só é atingível, por definição,numa situação de igualdade dos interlocutores do diálogo.O sinal de autenticação é precisamennte o emergir doex-paciente da sua posição subordinada na extremidadereceptora do diálogo e o assumir o papel de agente cria-tivo, inteiramente desenvolvido da negociação do signi-ficado. Um diálogo conduzido em condições" de desigual-dade dos interlocutores, ou numa situação em que asinterpretações conflitivas são suprimidas ou tornadasinacessíveis, não prova nada, seja qual for o seu resul-tado tangível; tal diálogo não pode certamente levar àemancipação. Pelo contrário, só pode substituir um tipode não-liberdade por outro, ou uma fórmula filosófica denão-liberdade por outra.

É claro que o teste da autenticação, peculiar ao pro-cesso de esclarecimento, não tem a elegância e o ar definalidade que caracteriza o exame da verdade da ciênciapositiva. É verdade que o método científico do exame daverdade permite muito mais ambigüidade do que os cien-tistas estariam conscientemente dispostos a tolerar: seuma experiência falha, há sempre a possibilidade de, pelomenos, duas interpretações opostas" (uma das quais éinépcia na organização da experiência), e assim a refuta-ção buscada da tteoria, que a experiência se destinar,a examinar, pode ser reconhecida como inconclusiva eadiada. Existem, porém, limites para tal adiamento,e o método contém (pelo menos teoricamente) uma cláu-sula que, se for aplicada com rigor, afastará as mani-

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 181

festações de interesses investidos que se desprendem, diga-mos, de um apego subjetivo à teoria sob escrutínio. Tendocolocado o mundo que investiga na posição de um objeto"distante", e tendo excluído das suas preocupações asocorrências em que a conduta do objeto pode ser influen-ciada pelo conhecimento das intenções do cientista oudas suas interpretações, a ciência positiva pelo menosimpede os seus praticantes de defender as teorias que nãoconseguem confirmar, atribuindo o fracasso à "obtusi-dade" ou "conspiração" do objeto. As afirmações, cujaconfirmação/refutação pode ser impedida pela ação deli-berada dos objetos de pesquisa, simplesmente não sãoconsideradas como afirmações de ciência positiva. O co-nhecimento crítico, porém, no momento em que opta peloteste de autenticação, não aceita essa autolimitação e,portanto, fica aberto a esse volume de falta de caráterconclusivo e incerteza que é dificilmente tolerável aonível do discurso científico.

O preço que a teoria que se sujeita ao teste da auten-ticação paga por derrubar a barreira que divide o "expe-rimentador" dos seus "objetos", por dissolver a diferençade status entre eles, tem probabilidade de ser consideradoexorbitante pela ciência mais preocupada com a certeza doque com a relevância dos seus resultados. No processode esclarecimento, os destinatários da teoria devem estarrevestidos das mesmas faculdades com que estão os pró-prios teóricos — acima de tudo, das faculdades de racio-cinar, planejar, comportar-se, a fim de perseguir os finssubjetivos, etc. Portanto, o alcance das desculpas quepodem ser invocadas para espalhar a dúvida no caráterconclusivo da evidência refutadora é muito mais amploaqui do que no ato discursivo do exame da verdade. Umadesculpa, porém, é semelhante à autodefesa principal dateoria científica: os educadores que não conseguem comu-nicar a sua mensagem podem sempre atribuir (pelo menosdurante algum tempo) a sua falta de êxito à imperfeiçãotécnica do processo educacional, e podem tentar outravez, depois de terem retificado as falhas organizacionaisgenuínas ou supostas. Esta é uma desculpa isomórficacom o argumento da "impureza de experimentação", fre-qüentemente aplicada no discurso científico, e, por suavez, posta à prova antes que a teoria principal seja final-mente refutada. Mas há uma outra desculpa peculiar aoteste de autenticação, na medida em que, se refere à ré-

Page 93: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

182 CRÍTICA DA NÃO-LIBEKDADE

lação específica entre o teórico e os seus objetos, típicadó diálogo de esclarecimento. Em termos genéricos, estadesculpa é apresentada no seguinte teor: as pessoas cujasituação e expectativas a nossa teoria tenciona re-inter-pretar seriam certamente levadas a abraçar a teoria e aaprovar de bom grado os seus argumentos — se fossem(I) mais perceptivas e abertas ao raciocínio ou (II) menosinclinadas a trocar as suas expectativas por um prato delentilhas, ou (III) menos completamente imbecilizadaspelos seus opressores que têm o seu intelecto como refém.Todas as três situações do argumento reconhecem "aspessoas" como interlocutores potencialmente iguais nodiálogo; na verdade, só fazem sentido quando conside-radas à luz de tal reconhecimento. Dentro das pressupo-sições de autenticação, elas constituem hipóteses razoá-veis que dificilmente podem ser refutadas com êxito. Con-tudo, a mera possibilidade de serem invocadas prejudi-cam grandemente a resolução com a qual as regras derefutação, específicas do diálogo de esclarecimento, podemser fortalecidas. Daí o caráter inconclusivo intrínseco detoda a teoria crítica, que o torna imperfeito em relaçãoa padrões científicos muito mais severos. Daí, igualmen-te, a possibilidade abstrata da perpetuação do erro e oadiamento indefinido da admissão de fracasso — inau-dita no campo do discurso científico.

É fácil para Habermas acentuar que os processos deesclarecimento meramente apoiam a reivindicação da ver-dade pela teoria, sem validá-la, com a condição de quetodos os potencialmente envolvidos, para quem a inter-pretação teórica tem relevância, não tenham tido a opor-tunidade de aceitar ou rejeitar a interpretação oferecidasob circunstâncias apropriadas. 24

Mas pode-se ver facilmente que não é somente a ver-dade da teoria, mas também a sua não-verdade, que écolocada em suspenso pela estipulação acima. Particular-mente a esta luz, a natureza não-especificada das "cir-cunstâncias apropriadas", que, só quando fornecidas,podem emprestar finalidades ao produto do esclarecimen-to, priva o teste dp autenticação de quase toda a exatidãoe especificidade é; por conseguinte, de uma autoridade

Ibid., pp. 37-8.

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 183

comparável ao exame científico da verdade. Parece queeste grau de indeterminação não pode ser completamenteeliminado do conhecimento crítico que tem a intençãode desempenhar um papel emancipador e, por conse-guinte, embarca na aventura do esclarecimento, subme-tendo-se ao teste da autenticação. Em outras palavras,nenhum código disponível de regras pode libertar o agen-te do esclarecimento da responsabilidade privada, subje-tiva pela sua interpretação da história e a obstinaçãocom que ele tenta torná-la aceitável a todos. O projetodo esclarecimento requer, como seu constitutivo irremo-vível, o fator da coragem e do risco. O esclarecimentonão se destina à descrição e ao aperfeiçoamento instru-mental da "natureza humana", mas a modificá-la. Oslimites de tal "modificação" só podem ser examinadosnum julgamento prático. A margem utópica da cultura,"irrealista" há tanto tempo, pode, subitamente, começara moldar a práxis humana, quando encontrar necessi-dades práticas geradas pela própria realidade social. Masnão há maneira de saber com antecedência se tal encon-tro se realizará. A emancipação é um esforço orientadopara o futuro, e o futuro, ao contrário do passado, é naverdade, inseparavelmente, o reino da liberdade para ohomem atuante, na medida em que é o reino da incer-teza para o homem que conhece. A presença do projeto"utópico" é, contudo, pelo menos uma condição da suapossibilidade de existir.

Por mais cuidadosamente que sejam selecionadas noseu primeiro julgamento científico do exame da verdade,as teorias emergem do segundo exame — o da autenti-cação — nem confirmadas conclusivamente nem desapro-vadas conclusivamente. Não existe, portanto, um caminhoúnico, não-ambíguo, que conduza da segunda fase do es-clarecimento para a terceira — a da ação prática desti-nada ao ajustamento da realidade social ao corpo designificados que acabam de ser adotados. É nesta encruzi-lhada decisiva que a coragem e a decisão de correr riscosse tornam veículos indispensáveis; e, diga-se também,onde os erros mais graves e mais custosos podem sercometidos, confundindo muitas vezes a própria intençãoemancipadora da ação. Particularmente importante, nestecontexto, é a escolha entre a continuação do diálogo(apoiado pela esperança de que a melhoria na organiza-ção da educação possa aumentar a sua probabilidade de

Page 94: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

184 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

êxito final), ou a sua ruptura, na suposição de que acomunicação se quebrou definitivamente e sem qualquerprobabilidade de ser reparada. A decisão crucial, emoutras palavras, refere-se à classificação da outra partecomo um interlocutor no diálogo ou como um inimigoimplacável. Isto é, a escolha entre a pragmática da per-suasão e a pragmática da luta.

Mais uma vez, a analogia terapêutica pode ajudar naelucidação de algumas dimensões do problema. Tendofalhado, repetidamente, em levar o paciente a um diálogosignificativo, o analista sente-se tenfado a atribuir a culpatoda ao seu interlocutor. Em vez de rever a fórmula queprocurou negociar, ele definirá, então, a habilidade dopaciente para entrar no diálogo como irreparavelmentedanificada, e classificará o próprio paciente como incurá-vel. Sob um escrutínio mais cuidadoso, esta conclusãoparece traduzir mais a impossibilidade do analista obtercomunicação do que quaisquer atributos objetivos do pró-prio paciente. A conclusão só faz sentido como a enume-ração de uma série de tentativas repetidas, mas aborta-das, para estabelecer um diálogo e levar o interlocutor àaceitação da fórmula considerada pelo analista como ver-dadeira. Uma vez que, porém, qualquer diálogo só podeconfirmar ou desaprovar a fórmula discutida tentativa-mente — nenhum diálogo, seja qual for o seu curso, con-tém prova conclusiva de que a decisão do analista paraterminar a comunicação era "verdadeira"; de que, emoutras palavras, ela refletia, na verdade, corretamente,certas qualidades "objetivas" do paciente.

Na prática, a decisão de um grupo ideologicamentecomprometido de declarar outro grupo como organica-mente fechado à comunicação e a classificá-lo como umcaso em que a limitação da liberdade pela força é justi-ficada, é ainda menos controlada pelos requisitos formaisda verificação do que a decisão d~o analista de confinaro seu interlocutor em potencial num hospital para doen-tes mentais. Os grupos empenhados no processo de escla-recimento não desfrutam das condições especiais do diá-logo puro, nem podem invocar a autoridade especial quelhes é concedida pelas instituições. estabelecidas ou pelosenso comum. Mesmo que tenham possibilidade de con-trolar a racionalidade da sua própria conduta e julga-mento, achariam praticamente "impossível aceitar a evi-dência do seu fracasso como final. Uma vez tomada,

VERDADE E AUTENTICAÇÃO 185

a sua decisão de responsabilizar o interlocutor obstina-do pela quebra do diálogo e de declará-lo "incuravel-mente doente" atuará como uma profecia auto-realiza-dora, emprestando, portanto, um ar espúrio de veracidadeao veredicto do método prático. Na verdade, uma vezposto fora do diálogo, numa posição de não-liberdade esubordinada, o grupo condenado nunca mais poderáentrar num diálogo. Em vista da seriedade do perigo,deve-se acentuar bem, tão bem quanto possível que, sejaqual for o curso do diálogo, ele nunca fornecerá umaevidência conclusiva para uma hipótese da qual um dosseus interlocutores está inerentemente impossibilitado deabraçar a verdade e que, portanto, a luta é a única ati-tude racional e viável. Sabemos muito bem com quantafreqüência este fato vital tende a ser esquecido em polí-tica e quão desastrosos podem ser os resultados desseesquecimento.

Na ausência de regras que possam orientar as deci-sões tomadas nesta encruzilhada com qualquer exatidãoalgorítmica aproximada, devem-se aceitar linhas de con-duta heurísticas mais benévolas e mais equívocas. Estassó podem ir na direção da responsabilidade compartilhadae da criação de condições nas quais — assim se es-pera — a condução da ação humana pela razão nãovenha a ser enfraquecida. Esta direção geral foi selecio-nada na pressuposição de que, dada a liberdade real paraexercer o seu julgamento e refletir sobre todos os aspectosda sua situação, os homens farão, eventualmente, a esco-lha apropriada entre interpretações alternativas; ou, parapôr o problema numa forma um pouco mais cautelosa— quanto mais livres forem as condições de julgamento,maior é a probabilidade de que as verdadeiras interpre-tações sejam adotadas e as falsas rejeitadas. Daí que,em cada fase do longo processo de verificação do conhe-cimento crítico, deve-se ter cuidado especial para eliminaras limitações intelectuais e físicas ao julgamento. Ao níveldo discurso teórico toda a informação e o processo deexaminá-la devem estar abertos ao escrutínio geral e todaa crítica cuidadosamente considerada antes da pressu-posição da sua validade. Na fase do diálogo de esclare-cimento, todo o esforço necessário deve ser feito paraelevar todos os participantes ao status de interlocutoresintelectuais plenos na comunicação, e para evitar a inter-ferência dos meios não-intelectuais no choque entre in-

Page 95: Zygmunt Bauman - por uma sociologia crítica

186 CRÍTICA DA NÃO-LIBERDADE

terpretações competitivas. Finalmente, se se tomar umadecisão para entrar numa terceira fase — a, da luta —presumindo que a comunicação com um certo gjripo estáirreparavelmente quebrada, mais uma vez todas as deci-sões devem ser tomadas com o consentimento de todosos participantes, precedidas de uma análise completa, eindômita dos meios alternativos de ação. Estas normasheurísticas de conduta são, com efeito, exemplificações do,princípio geral: a libertação do homem só pode ser pro-movida em condições de liberdade. O conceito do conhe-cimento crítico, a serviço do interesse emancipador dohomem, não pode deixar de concordar com p princípioseminal e com o spirítus movens intelectual do ilumi-nismo: que a emancipação da razão é uma condição detoda emancipação material.

Aqueles que procuram a espécie de conhecimento decuja veracidade só podem estar completamente segurosno momento em que é formulado encontrarão poucoconforto em princípios heurísticos tão vagos para a au-tenticação como a que a auto-reflexão do conhecimentocrítico pode oferecer. Mas, então, a única coisa de que oshomens podem estar certos, mais do que de nenhumaoutra, é que nunca, até hoje, alcançaram a espécie de,liberdade que buscam. E a liberdade significa tanto in-certeza como a certeza significa resignação. Mas antes deser um pensador, um criador de símbolos, um homo faber— o homem tem que ser aquele-que-espera.

A SOCIOLOGIACOMO CRITICA SOCIAL

T. B. BOTTOMORE

A presença marcante de idéias conservadora»e radicais no pensamento sociológico e as relaçõeshistoricamente mutáveis entre elas são, segundo oautor deste livro, ao mesmo tempo óbvias e difíceis*de serem interpretadas. Alauns autores ainda Res-tariam dê opor uma "sociologia burguesa" (queseria conservadora) a uma "teoria marxista" (queseria radical), mas este ponto de vista ia não émais tão amplamente-difundido. Atualmente, o mar-xismo pode servir, em algumas sociedades, paramanter um determinado estado de coisas e inibira crítica. Em outros lugares, pelo menos em suasformas mais ortodoxas, pode ser visto como tendo

' perdido algo de seu impulso radical, não mais seaooiando sobre, os principais conflitos e problemasdá época — conseqüentemente, perdendo seu ca-ráter liberadòr.

Esta coletânea de ensaios, na maior parte pu-blicados nos últimos dez anos, engloba uma con-cepção do pensamento sociológico como análisecrítica 'daí teorias e doutrinas sociais, das institui-ções e dos regimes políticos, e dos recentes mo-vimentos sociais. Seu objeto particular são algumasversões conservadoras da Socioloeia, a par de al-gumas tentativas no sentido de desenvolver teoriasmais radicais, constituindo, na verdade, uma ex-tensão dos trabalhos anteriores do autor sobreclasses, elites & política. O capítulo introdutóriodiscute as relações entre Sociologia, ideologia e açãopolítica, valendo-se da experiência pessoal do autor,e posteriores reflexões, sobre os movimentos radicaisda última década, e sua interrupção. O livro en-contra unidade temática em sua tentativa crítica deformular novis bases intelectuais para uma futurapolítica igualitária.

T. B. BOÍTOMORE, um dos mais significativosrepresentantes da "nova Sociologia", é particular-mente conhecido nos meios acadêmicos brasileiroscomo o autor de. Introdução à Sociologia, talvez omais difundido livro-texto para o ensino da Socio-logia em nível introdutório, cujas sucessivas ediçõesdão o melhor testemunho de sua qualidade e efi-ciência. Durante doze anos, de 1952 a 1964, TOMBOTTOMORE ensinou sua especialidade na LondoriSchool of Econoinics, da Universidade de Londres,tendo passado os três anos seguintes como Professore Chefe do Departamento de Ciência Política, So-ciologia é Antropologia da Simon Fráser University,em Vancóuver, Canadá, voltando à Inglaterra em

. 1968 como Professor de Sociologia da Universidadede Sussex, onde ainda se encontra. Da sua obra,já foram publicados por esta editora, além do men-cionado livro-texto, mais os seguintes livros: AiClasses na Sociedade Moderna* Críticos da 'Sociedadee Às Elites é a Sociedade.