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Zygmunt Bauman · Zygmunt Bauman MODERNIDADE LÍQUIDA Tradução: Plínio Dentzien 2. ... Vida líquida Vida para consumo Vidas desperdiçadas 3. SUMÁRIO Prefácio: Ser Leve e Líquido

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ZygmuntBauman

MODERNIDADELÍQUIDA

Tradução:PlínioDentzien

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Livrosdoautorpublicadosporestaeditora:

AmorlíquidoAprendendoapensarcomasociologiaAartedavidaCapitalismoparasitárioComunidadeConfiançaemedonacidadeEmbuscadapolíticaEuropaGlobalização:AsconseqüênciashumanasIdentidadeOmal-estardapós-modernidadeMedolíquidoModernidadeeambivalênciaModernidadeeHolocaustoModernidadelíquidaAsociedadeindividualizadaTemposlíquidosVidalíquidaVidaparaconsumoVidasdesperdiçadas

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SUMÁRIO

Prefácio:SerLeveeLíquido

Capítulo1.Emancipação

Asbênçãosmistasdaliberdade•Ascasualidadeseasortecambiantesdacrítica • O indivíduo em combate com o cidadão • O compromisso dateoriacríticanasociedadedosindivíduos•Ateoriacríticarevisitada•Acríticadapolítica-vida

Capítulo2.Individualidade

Capitalismo—pesado e leve • Tenho carro, posso viajar • Pare demedizer;mostre-me! • A compulsão transformada em vício • O corpo doconsumidor•Comprarcomoritualdeexorcismo•Livreparacomprar—ouassimparece•Separados,compramos

Capítulo3.Tempo/Espaço

Quandoestranhos se encontram •Lugares êmicos, lugares fágicos, não-lugares,espaçosvazios•Nãofalecomestranhos•Amodernidadecomohistória do tempo • Da modernidade pesada à modernidade leve • Asedutoralevezadoser•Vidainstantânea

Capítulo4.Trabalho

Progressoefénahistória•Ascensãoequedadotrabalho•Docasamentoà coabitação • Digressão: breve história da procrastinação • Os laçoshumanosnomundofluido•Aautoperpetuaçãodafaltadeconfiança

Capítulo5.Comunidade

Nacionalismo,marco2•Unidade—pelasemelhançaoupeladiferença?•Segurançaaumcertopreço•DepoisdoEstadonação•Preencherovazio•Cloakroomcommunities

Posfácio:Escrever;EscreverSociologia

NotasÍndiceremissivo

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PREFÁCIO

SERLEVEELÍQUIDO

Interrupção,incoerência,surpresasãoascondiçõescomunsdenossavida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para muitaspessoas,cujasmentesdeixaramdeseralimentadas…poroutracoisaquenãomudançasrepentinaseestímulosconstantementerenovados…Nãopodemosmais tolerar oquedura.Não sabemosmais fazercomqueotédiodêfrutos.

Assim,todaaquestãosereduzaisto:podeamentehumanadominaroqueamentehumanacriou?

PaulValéry

“Fluidez”éaqualidadedelíquidosegases.Oqueosdistinguedossólidos,comoaEnciclopédiabritânica,comaautoridadequetem,nosinforma,équeeles “não podem suportar uma força tangencial ou deformante quandoimóveis” e assim “sofrem uma constante mudança de forma quandosubmetidosataltensão”.

Essacontínuaeirrecuperávelmudançadeposiçãodeumapartedomaterialem relação a outra parte quando sob pressão deformante constitui o fluxo,propriedade característica dos fluidos. Em contraste, as forças deformantesnum sólido torcido ou flexionado semantêm, o sólido não sofre o fluxo epodevoltaràsuaformaoriginal.

Oslíquidos,umavariedadedosfluidos,devemessasnotáveisqualidadesaofatodequesuas“moléculassãomantidasnumarranjoordenadoqueatingeapenas poucos diâmetros moleculares”, enquanto “a variedade decomportamentos exibidapelos sólidos éum resultadodiretodo tipode ligaqueuneosseusátomosedosarranjosestruturaisdestes”.“Liga”,porsuavez,é um termo que indica a estabilidade dos sólidos— a resistência que eles“opõemàseparaçãodosátomos”.

IssoquantoàEnciclopédiabritânica—noquepareceuma tentativadeoferecer “fluidez”comoaprincipalmetáforaparao estágiopresenteda eramoderna.

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O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagemsimples,équeoslíquidos,diferentementedossólidos,nãomantêmsuaformacomfacilidade.Osfluidos,porassimdizer,nãofixamoespaçonemprendemo tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, masneutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo(resistemefetivamenteaseufluxoouotornamirrelevante),osfluidosnãoseatêmmuitoaqualquerformaeestãoconstantementeprontos(epropensos)amudá-la;assim,paraeles,oquecontaéotempo,maisdoqueoespaçoquelhes tocaocupar;espaçoque,afinal,preenchemapenas“porummomento”.Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, aocontrário,otempoéoqueimporta.Aodescreverossólidos,podemosignorarinteiramenteo tempo; aodescreveros fluidos, deixaro tempode fora seriaumgraveerro.Descriçõesdelíquidossãofotosinstantâneas,queprecisamserdatadas.

Osfluidossemovemfacilmente.Eles“fluem”,“escorrem”,“esvaem-se”,“respingam”,“transbordam”,“vazam”,“inundam”,“borrifam”,“pingam”são“filtrados”, “destilados” diferentemente dos sólidos, não são facilmentecontidos — contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ouinundamseucaminho.Doencontrocomsólidosemergemintactos,enquantoos sólidosque encontraram, sepermanecemsólidos, são alterados— ficammolhadosouencharcados.Aextraordináriamobilidadedosfluidoséoqueosassociaàidéiade“leveza”.Hálíquidosque,centímetrocúbicoporcentímetrocúbico,sãomaispesadosquemuitossólidos,masaindaassimtendemosavê-los como mais leves, menos “pesados” que qualquer sólido. Associamos“leveza”ou“ausênciadepeso”àmobilidadeeàinconstância:sabemospelapráticaquequantomais levesviajamos,commaior facilidadee rapideznosmovemos.

Essassãorazõesparaconsiderar“fluidez”ou“liquidez”comometáforasadequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova demuitasmaneiras,nahistóriadamodernidade.

Concordoprontamentequetalproposiçãodevefazervacilarquemtransitaà vontade no “discurso da modernidade” e está familiarizado com ovocabulário usado normalmente para narrar a história moderna. Mas amodernidadenãofoiumprocessode“liquefação”desdeocomeço?Nãofoio“derretimentodossólidos”seumaiorpassatempoeprincipalrealização?Emoutraspalavras,amodernidadenãofoi“fluida”desdesuaconcepção?

Essaseoutrasobjeçõessemelhantessãojustificadas,eoparecerãoaindamais se lembrarmosquea famosa frase sobre “derreteros sólidos”,quandocunhadaháumséculoemeiopelosautoresdoManifestocomunista, referia-se ao tratamento que o autoconfiante e exuberante espíritomoderno dava àsociedade, que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente

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demais paramudar e amoldar-se a suas ambições— porque congelada emseuscaminhoshabituais.Seo“espírito”era“moderno”,eleoeranamedidaemqueestavadeterminadoquearealidadedeveriaseremancipadada“mãomorta” de sua própria história— e isso só poderia ser feito derretendo ossólidos(istoé,pordefinição,dissolvendooquequerquepersistissenotempoefosseinfensoàsuapassagemouimuneaseufluxo).Essaintençãoclamava,porsuavez,pela“profanaçãodosagrado”:pelorepúdioedestronamentodopassado, e, antes e acima de tudo, da “tradição”— isto é, o sedimento ouresíduo do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armaduraprotetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidosresistissemà“liquefação”.

Lembremos,noentanto,quetudoissoseriafeitonãoparaacabardeumavez por todas com os sólidos e construir um admirável mundo novo livredelesparasempre,masparalimparaáreaparanovoseaperfeiçoadossólidos;para substituir o conjunto herdado de sólidos deficientes e defeituosos poroutroconjunto,aperfeiçoadoepreferivelmenteperfeito,epor issonãomaisalterável.AoleroAncienRégimedeTocqueville,podemosnosperguntaratéquepontoos“sólidosencontrados”nãoteriamsidodesprezados,condenadose destinados à liquefação por já estarem enferrujados, esfarelados, com ascosturas abrindo; por não se poder confiar neles. Os tempos modernosencontraramossólidospré-modernosemestadoavançadodedesintegração;eumdosmotivosmaisfortesportrásdaurgênciaemderretê-loseraodesejode,porumavez,descobrirouinventarsólidosdesolidezduradoura, solidezem que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto,administrável.

Osprimeirossólidosaderretereosprimeirossagradosaprofanareramaslealdadestradicionais,osdireitoscostumeiroseasobrigaçõesqueatavampése mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poderconstruir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) eranecessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordemsobrecarregava os construtores. “Derreter os sólidos” significava, antes eacimade tudo,eliminarasobrigações“irrelevantes”que impediamaviadocálculo racional dos efeitos; como diziaMaxWeber, libertar a empresa denegóciosdosgrilhõesdosdeveresparacomafamíliaeolaredadensatramadasobrigações éticas; ou, comoprefeririaThomasCarlyle, dentreosvárioslaçossubjacentesàsresponsabilidadeshumanasmútuas,deixarrestarsomenteo “nexo dinheiro”. Por isso mesmo, essa forma de “derreter os sólidos”deixavatodaacomplexaredederelaçõessociaisnoar—nua,desprotegida,desarmadaeexposta,impotentepararesistiràsregrasdeaçãoeaoscritériosde racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competirefetivamentecomeles.

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Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação(comodiziaWeber)daracionalidadeinstrumental,ou(naformulaçãodeKarlMarx)paraopapeldeterminantedaeconomia:agoraa“base”davidasocialoutorgavaatodososoutrosdomíniosoestatutode“superestrutura”—istoé,um artefato da “base”, cuja única função era auxiliar sua operação suave econtínua. O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação daeconomia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais.Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termoseconômicos. Essa nova ordem deveria sermais “sólida” que as ordens quesubstituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualqueraçãoquenão fosseeconômica.Amaioriadasalavancaspolíticasoumoraiscapazesdemudaroureformaranovaordemforamquebradasoufeitascurtasoufracasdemais,oudealgumaoutra forma inadequadasparaa tarefa.Nãoqueaordemeconômica,umavez instalada, tivessecolonizado, reeducadoeconvertidoaseusfinsorestantedavidasocial;essaordemveioadominaratotalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecidonessavidatornou-seirrelevanteeineficaznoquedizrespeitoàimplacávelecontínuareproduçãodessaordem.

EsseestágionacarreiradamodernidadefoibemdescritoporClausOffe(em“Autopiadaopçãozero”,publicadooriginalmenteem1987emPraxisinternational):associedades“complexassetornaramrígidasatalpontoqueaprópria tentativa de refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua‘ordem’,istoé,anaturezadacoordenaçãodosprocessosquenelastêmlugar,é virtualmente impedida por força de sua própria futilidade, donde suainadequaçãoessencial”.Pormaislivresevoláteisquesejamos“subsistemas”dessaordem,isoladamenteouemconjunto,omodocomosãoentretecidosé“rígido, fatal e desprovido de qualquer liberdade de escolha”.A ordemdascoisascomoumtodonãoestáabertaaopções;estálongedeserclaroquaispoderiam ser essas opções, e ainda menos claro como uma opçãoostensivamente viável poderia ser real no caso pouco provável de a vidasocialsercapazdeconcebê-laegestá-la.Entreaordemcomoumtodoecadauma das agências, veículos e estratagemas da ação proposital há umaclivagem—umabrechaqueseampliaperpetuamente,semponteàvista.

Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito não foialcançadoviaditadura,subordinação,opressãoouescravização;nematravésda “colonização”da esferaprivadapelo “sistema”.Aocontrário: a situaçãopresente emergiu do derretimento radical dos grilhões e das algemas que,certoouerrado,eramsuspeitosdelimitaraliberdadeindividualdeescolherede agir. A rigidez da ordem é o artefato e o sedimento da liberdade dosagentes humanos. Essa rigidez é o resultado de “soltar o freio”: dadesregulamentação, da liberalização, da “flexibilização”, da “fluidez”crescente,dodescontroledosmercadosfinanceiro,imobiliárioede trabalho,

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tornando mais leve o peso dos impostos etc. (como Offe observou em“Amarras, algemas, grades”, publicado originalmente em 1987); ou (paracitarRichardSenettemFleshandStone)das técnicasde“velocidade, fuga,passividade”—emoutraspalavras,técnicasquepermitemqueosistemaeosagentes livres se mantenham radicalmente desengajados e que sedesencontrememvezdeencontrar-se.Seotempodasrevoluçõessistêmicaspassou,éporquenãoháedifíciosquealojemasmesasdecontroledosistema,que poderiam ser atacados e capturados pelos revolucionários; e tambémporqueé terrivelmentedifícil,paranãodizer impossível, imaginaroqueosvencedores,umavezdentrodosedifícios(seostivessemachado),poderiamfazerparaviraramesaepôrfimàmisériaqueoslevouàrebelião.Ninguémficaria surpreso ou intrigado pela evidente escassez de pessoas que sedisporiamaserrevolucionários:dotipodepessoasquearticulamodesejodemudar seus planos individuais como projeto para mudar a ordem dasociedade.

A tarefa de construir uma ordem nova emelhor para substituir a velhaordem defeituosa não está hoje na agenda — pelo menos não na agendadaqueledomínioemquesesupõequeaaçãopolíticaresida.O“derretimentodossólidos”,traçopermanentedamodernidade,adquiriu,portanto,umnovosentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dosprincipais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças quepoderiamtermantidoaquestãodaordemedosistemanaagendapolítica.Ossólidosqueestãoparaserlançadosnocadinhoeosqueestãoderretendonestemomento,omomentodamodernidadefluida,sãooselosqueentrelaçamasescolhas individuais em projetos e ações coletivas — os padrões decomunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidasindividualmente,deumlado,easaçõespolíticasdecoletividadeshumanas,deoutro.

NumaentrevistaaJonathanRutherfordnodiatrêsdefevereirode1999,UlrichBeck(quealgunsanosantescunharaotermo“segundamodernidade”paraconotarafasemarcadapelamodernidade“voltando-sesobresimesma”,aeradaassimchamada“modernizaçãodamodernidade”)falade“categoriaszumbi” e “instituições zumbi”, que estão “mortas e ainda vivas”. Elemencionaa família, a classe e o bairro como principais exemplos do novofenômeno.Afamília,porexemplo:

Pergunte-seoqueérealmenteumafamíliahojeemdia?Oquesignifica?Éclaroquehácrianças,meusfilhos,nossosfilhos.Mas,mesmoapaternidadeeamaternidade,onúcleodavidafamiliar,estãocomeçandoasedesintegrarnodivórcio…Avóseavôssãoincluídoseexcluídossemmeiosdeparticiparnasdecisõesdeseusfilhosefilhas.Dopontodevistadeseusnetos,osignificadodas avós e dos avôs tem que ser determinado por decisões e escolhas

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individuais.

O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição erealocação dos “poderes de derretimento” da modernidade. Primeiro, elesafetaramasinstituiçõesexistentes,asmoldurasquecircunscreviamodomíniodas ações-escolhas possíveis, como os estamentos hereditários com suaalocação por atribuição, sem chance de apelação. Configurações,constelações, padrões de dependência e interação, tudo isso foi posto aderreternocadinho,paraserdepoisnovamentemoldadoerefeito;essafoiafase de “quebrar a forma” na história da modernidade inerentementetransgressiva, rompedora de fronteiras e capaz de tudo desmoronar.Quantoaosindivíduos,porém—elespodemserdesculpadosporterdeixadodenotá-lo; passaram a ser confrontados por padrões e figurações que, ainda que“novaseaperfeiçoadas”,eramtãoduraseindomáveiscomosempre.

Na verdade, nenhummolde foi quebrado semque fosse substituído poroutro; as pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para seradmoestadasecensuradascasonãoconseguissemserealocar,atravésdeseuspróprios esforços dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nosnichos pré-fabricados da nova ordem: nas classes, as molduras que (tãointransigentemente como os estamentos já dissolvidos) encapsulavam atotalidadedascondiçõeseperspectivasdevidaedeterminavamoâmbitodosprojetoseestratégiasrealistasdevida.Atarefadosindivíduoslivreserausarsua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar eadaptar:seguindofielmenteasregrasemodosdecondutaidentificadoscomocorretoseapropriadosparaaquelelugar.

Sãoessespadrões,códigose regrasaquepodíamosnosconformar,quepodíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quaispodíamosnosdeixardepoisguiar,queestãocadavezmaisemfalta.Issonãoquer dizer que nossos contemporâneos sejam guiados tão somente por suaprópriaimaginaçãoeresoluçãoesejamlivresparaconstruirseumododevidaapartirdozeroesegundosuavontade,ouquenãosejammaisdependentesdasociedadeparaobterasplantaseosmateriaisdeconstrução.Masquerdizerqueestamospassandodeumaerade“gruposdereferência”predeterminadosaumaoutra de “comparaçãouniversal”, emqueodestinodos trabalhosdeautoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado,nãoestádadodeantemão,etendeasofrernumerosaseprofundasmudançasantesqueessestrabalhosalcancemseuúnicofimgenuíno:ofimdavidadoindivíduo.

Hoje, os padrões e configurações não sãomais “dados”, emenos ainda“auto-evidentes”elessãomuitos,chocando-seentresiecontradizendo-seemseus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foramdesprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e

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restringir. E eles mudaram de natureza e foram reclassificados de acordo:como itens no inventário das tarefas individuais. Em vez de preceder apolítica-vidaeemoldurarseucursofuturo,elesdevemsegui-la(derivardela),paraseremformadosereformadosporsuasflexõesetorções.Ospoderesqueliquefazempassaramdo“sistema”paraa “sociedade”,da“política”paraas“políticasdavida”—oudesceramdonível“macro”paraonível“micro”doconvíviosocial.

Anossa é, como resultado, umaversão individualizada e privatizada damodernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelofracassocaemprincipalmentesobreosombrosdosindivíduos.Chegouavezda liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agoramaleáveisaumpontoqueasgeraçõespassadasnãoexperimentaramenempoderiamimaginar;mas,comotodososfluidos,elesnãomantêmaformapormuitotempo.Dar-lhesformaémaisfácilquemantê-losnela.Ossólidossãomoldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muitaatenção,vigilânciaconstanteeesforçoperpétuo—emesmoassimosucessodoesforçoétudomenosinevitável.

Seriaimprudentenegar,oumesmosubestimar,aprofundamudançaqueoadvento da “modernidade fluida” produziu na condição humana. O fato dequeaestruturasistêmicasejaremotaeinalcançável,aliadoaoestadofluidoenão-estruturadodocenário imediatodapolítica-vida,mudaaquela condiçãode um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos quecostumavam cercar suas narrativas.Como zumbis, esses conceitos são hojemortos-vivos.Aquestãopráticaconsisteemsabersesuaressurreição,aindaqueemnovaformaouencarnação,épossível;ou—senãofor—comofazercomqueelestenhamumenterrodecenteeeficaz.

Estelivrosededicaaessaquestão.Foramselecionadosparaexamecincodosconceitosbásicosemtornodosquaisasnarrativasortodoxasdacondiçãohumana tendem a se desenvolver: a emancipação, a individualidade, otempo/espaço,otrabalhoeacomunidade.Transformaçõessucessivasdeseussignificadoseaplicaçõespráticassãoexploradas(aindaquedemaneiramuitofragmentáriaepreliminar)comaesperançadesalvarosbebêsdobanhodestatorrentedeáguapoluída.

Amodernidadesignificamuitascoisas,esuachegadaeavançopodemseraferidos utilizando-se muitos marcadores diferentes. Uma característica davidamodernaedeseumodernoentornoseimpõe,noentanto,talvezcomoa“diferençaquefazadiferença”comooatributocrucialque todasasdemaiscaracterísticas seguem. Esse atributo é a relação cambiante entre espaço etempo.

A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados daprática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias

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distintasemutuamenteindependentesdaestratégiaedaação;quandodeixamdeser,comoeramaolongodosséculospré-modernos,aspectosentrelaçadose dificilmente distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável eaparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, otempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”,perpetuamente em expansão— o alongamento dos trechos do espaço queunidades de tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” — ouconquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade domovimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentementeinflexível,quenãopodeseresticadoequenãoencolhe)setornaumaquestãodoengenho,daimaginaçãoedacapacidadehumanas.

Aprópria idéiadevelocidade (emaisaindaadeaceleração),quandoserefereàrelaçãoentretempoeespaço,supõesuavariabilidade,edificilmenteteria qualquer significado se não fosse aquela uma relaçãoverdadeiramentevariável,sefosseumatributodarealidadeinumanaepré-humanaenãoumaquestão de inventividade e resolução humanas, e se não se lançasse paramuito além da estreita gama de variações a que as ferramentas naturais damobilidade— as pernas humanas ou eqüinas — costumavam confinar osmovimentos dos corpos pré-modernos.Quando a distância percorrida numaunidade de tempo passou a depender da tecnologia, demeios artificiais detransporte, todos os limites à velocidade do movimento, existentes ouherdados,poderiam,emprincípio,sertransgredidos.Apenasocéu(ou,comoacabousendodepois,avelocidadedaluz)eraagoraolimite,eamodernidadeeraumesforçocontínuo,rápidoeirrefreávelparaalcançá-lo.

Graças a sua flexibilidade e expansividade recentemente adquiridas, otempomoderno se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista doespaço.Namodernalutaentretempoeespaço,oespaçoeraoladosólidoeimpassível, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, detrincheiras — um obstáculo aos avanços do tempo. O tempo era o ladodinâmico e ativo na batalha, o lado sempre na ofensiva: a força invasora,conquistadoraecolonizadora.Avelocidadedomovimentoeoacessoameiosmais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição deprincipalferramentadopoderedadominação.

Michel Foucault utilizou o projeto do Panóptico de Jeremy Benthamcomo arquimetáfora do podermoderno.No Panóptico, os internos estavampresosaolugareimpedidosdequalquermovimento,confinadosentremurosgrossos,densosebem-guardados,efixadosasuascamas,celasoubancadas.Elesnãopodiamsemoverporqueestavamsobvigilância;tinhamqueseateraoslugaresindicadossempreporquenãosabiam,enemtinhamcomosaber,onde estavam nomomento seus vigias, livres paramover-se à vontade.Asinstalações e a facilidade demovimento dos vigias eram a garantia de sua

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dominação;dosmúltiploslaçosdesuasubordinação,a“fixação”dosinternosao lugar era omais seguro e difícil de romper.O domínio do tempo era osegredo do poder dos administradores— e imobilizar os subordinados noespaço, negando-lhes o direito ao movimento e rotinizando o ritmo a quedeviam obedecer era a principal estratégia em seu exercício do poder. Apirâmidedopodererafeitadevelocidade,deacessoaosmeiosdetransporteedaresultanteliberdadedemovimento.

OPanópticoeraummodelodeengajamentoeconfrontaçãomútuosentreos dois lados da relação de poder. As estratégias dos administradores,mantendo sua própria volatilidade e rotinizando o fluxo do tempo de seussubordinados,setornavamumasó.Mashaviatensãoentreasduastarefas.Asegundatarefapunhalimitesàprimeira—prendiaos“rotinizadores”aolugardentro do qual os objetos da rotinização do tempo estavam confinados.Osrotinizadores não eram verdadeira e inteiramente livres para se mover: aopção“ausente”estavaforadequestãoemtermospráticos.

O Panóptico apresenta também outras desvantagens. É uma estratégiacara:aconquistadoespaçoesuamanutenção,assimcomoamanutençãodosinternosnoespaçovigiado,abarcavaamplagamade tarefasadministrativascustosasecomplicadas.Haviaosedifíciosaerigiremanterembomestado,osvigiasprofissionaisacontratareremunerar,asobrevivênciaecapacidadedetrabalhodosinternosaserpreservadaecultivada.Finalmente,administrarsignifica,aindaqueacontragosto,responsabilizar-sepelobem-estargeraldolugar, mesmo que em nome de um interesse pessoal consciente — e aresponsabilidade, outra vez, significa estar preso ao lugar. Ela requerpresença,eengajamento,pelomenoscomoumaconfrontaçãoeumcabo-de-guerrapermanentes.

O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da“segundamodernidade”eda“sobremodernidade”,ouaarticularaintuiçãodeumamudançaradicalnoarranjodoconvíviohumanoenascondiçõessociaissobasquaisapolítica-vidaéhojelevada,éofatodequeolongoesforçoparaaceleraravelocidadedomovimentochegoua seu“limitenatural”.Opoderpode se mover com a velocidade do sinal eletrônico — e assim o temporequerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu àinstantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramenteextraterritorial,nãomaislimitado,nemmesmodesacelerado,pelaresistênciado espaço (o advento do telefone celular serve bem como “golpe demisericórdia” simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprioacessoaumpontotelefôniconãoémaisnecessárioparaqueumaordemsejadadaecumprida.Nãoimportamaisondeestáquemdáaordem—adiferençaentre “próximo” e “distante”, ou entre o espaço selvagem e o civilizado eordenado,estáapontodedesaparecer).Issodáaosdetentoresdopoderuma

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oportunidade verdadeiramente sem precedentes: eles podem se livrar dosaspectosirritanteseatrasadosdatécnicadepoderdoPanóptico.Oquequerqueahistóriadamodernidadesejanoestágiopresente,elaétambém,etalvezacima de tudo, pós-Panóptica. O que importava no Panóptico era que osencarregados“estivessemlá”,próximos,natorredecontrole.Oqueimporta,nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que operam asalavancasdopoderdequedependeodestinodosparceirosmenosvoláteisnarelação podem fugir do alcance a qualquer momento — para a purainacessibilidade.

OfimdoPanópticoéoarautodofimdaeradoengajamentomútuo:entresupervisoresesupervisados,capitaletrabalho,lídereseseguidores,exércitosem guerra. As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, odesvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial,comoscomplicadoscoroláriosdeconstruçãoemanutençãodaordem,ecomaresponsabilidadepelasconseqüênciasdetudo,bemcomocomanecessidadedearcarcomoscustos.

Essa nova técnica do poder foi vividamente ilustrada pelas estratégiasdesenvolvidas pelos atacantes nas guerras do Golfo e da Iugoslávia. Arelutânciaemutilizarforçasterrestresnaguerrafoiimpressionante;quaisquerquetenhamsidoasexplicaçõesoficiais,essarelutânciafoiditadanãoapenaspela amplamente referida síndrome dos “cadáveres ensacados”. Oengajamento num combate terrestre foi evitado não só por seus possíveisefeitosadversosnapolíticainterna,mastambém(talvezprincipalmente)porsuatotal inutilidadeemesmocontra-produtividadeemrelaçãoaosobjetivosda guerra. Afinal, a conquista do território com todas suas conseqüênciasadministrativas e gerenciais não só estava ausente da lista de objetivos dasaçõesdeguerra,comoeraumaeventualidadeaserevitadaatodocusto,vistacomrepugnânciacomooutrotipode“prejuízocolateral”,destavezinfligidoàprópriaforçaatacante.

Golpes desferidos por bombardeiros furtivos e “espertos” mísseisautodirigidoscapazesdeseguirseusalvos—lançadosdesurpresa,vindosdonada e desaparecendo imediatamente de vista — substituíram os avançosterritoriaisdastropasdeinfantariaeoesforçoparaexpulsaroinimigodeseuterritório — o esforço de ocupar o território possuído, controlado eadministrado pelo inimigo. Os atacantes definitivamente não queriammaisser“osúltimosnocampodebatalha”depoisdafugaouretiradadoinimigo.Aforçamilitareseuplanodeguerrade“atingirecorrer”prefigura,incorporaepressagia o que de fato está em jogo no novo tipo de guerra na era damodernidadelíquida:nãoaconquistadenovoterritório,masadestruiçãodasmuralhasqueimpediamofluxodosnovosefluidospoderesglobais;expulsardacabeçadoinimigoodesejodeformularsuasprópriasregras,abrindoassim

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o até então inacessível, defendido e protegido espaço para a operação dosoutros ramos, não-militares, do poder. A guerra hoje, pode-se dizer(parafraseandoa famosafórmuladeClausewitz),parececadavezmaisuma“promoçãodolivrecomércioporoutrosmeios”.

JimMacLaughlinnoslembrourecentemente(emSociology1/99)dequeoadventodaeramodernasignificou,entreoutrascoisas,oataqueconsistentee sistemático dos “assentados”, convertidos ao modo sedentário de vida,contra os povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios àspreocupações territoriais e de fronteiras do emergenteEstadomoderno. IbnKhaldoun, no séculoXIV, podia elogiar o nomadismo, que faz comque osnômades “sejam melhores que os povos assentados porque … estão maisafastadosdetodososmaushábitosqueinfectaramocoraçãodosassentados”—masafebredeconstruçãodenaçõeseEstados-naçãoquelogoemseguidacomeçou a sério por toda a Europa colocou o “solo” firmemente acima do“sangue” ao lançar as fundações da nova ordem legislada e ao codificar osdireitos e deveres dos cidadãos. Os nômades, que faziam pouco daspreocupações territoriais dos legisladores e ostensivamente desrespeitavamseuszelososesforçosemtraçarfronteiras,foramcolocadosentreosprincipaisvilões na guerra santa travada em nome do progresso e da civilização. A“cronopolítica” moderna os situa não apenas como seres inferiores eprimitivos, “subdesenvolvidos” e necessitados de profunda reforma eesclarecimento,mastambémcomoatrasadose“aquémdostempos”,vítimasda “defasagem cultural”, arrastando-se nos degraus mais baixos da escalaevolutiva, e imperdoavelmente lentos oumorbidamente relutantes em subirnela,paraseguiro“padrãouniversaldedesenvolvimento”.

Ao longo do estágio sólido da eramoderna, os hábitos nômades forammalvistos.Acidadaniaandavademãosdadascomoassentamento,eafaltade “endereço fixo” e de “estado de origem” significava exclusão dacomunidade obediente e protegida pelas leis, freqüentemente tornando osnômades vítimas de discriminação legal, quando não de perseguição ativa.Emboraissoaindaseapliqueà“subclasse”andarilhae“sem-teto”,sujeitaàsantigas técnicas de controle panóptico (técnicas quase abandonadas comoveículoprincipalparaintegraçãoedisciplinadogrossodapopulação),aerada superioridade incondicional do sedentarismo sobre o nomadismo e dadominaçãodosassentadossobreosnômadesestáchegandoaofim.Estamostestemunhando a vingança do nomadismo contra o princípio daterritorialidade e do assentamento. No estágio fluido da modernidade, amaioriaassentadaédominadapelaelitenômadeeextraterritorial.Manterasestradas abertas para o tráfego nômade e tornarmais distantes as barreirasremanescentes tornou-se hoje o meta-propósito da política, e também dasguerras,que,comoClausewitzoriginalmentedeclarou,nãosãomaisque“aextensãodapolíticaporoutrosmeios”.

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A elite global contemporânea é formada no padrão do velho estilo dos“senhoresausentes”.Elapodedominarsemseocuparcomaadministração,gerenciamento,bem-estar,ou,ainda,comamissãode“levaraluz”,“reformaros modos”, elevar moralmente, “civilizar” e com cruzadas culturais. Oengajamentoativonavidadaspopulaçõessubordinadasnãoémaisnecessário(ao contrário, é fortemente evitado como desnecessariamente custoso eineficaz)—e,portanto,o“maior”nãosónãoémaiso“melhor”,mascarecede significado racional. Agora é o menor, mais leve e mais portátil quesignifica melhoria e “progresso”. Mover-se leve, e não mais aferrar-se acoisasvistascomoatraentesporsuaconfiabilidadeesolidez—istoé,porseupeso,substancialidadeecapacidadederesistência—éhojerecursodepoder.

Fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado eabandonadoàvontade, imediatamenteouempouquíssimotempo.Poroutrolado,fixar-semuitofortemente,sobrecarregandooslaçoscomcompromissosmutuamentevinculantes,pode serpositivamenteprejudicial,dadasasnovasoportunidadesque surgememoutros lugares.Rockefellerpode terdesejadoconstruirsuasfábricas,estradasdeferroetorresdepetróleoaltasevolumosaseserdonodelasporumlongotempo(pelaeternidade,semedirmosotempopeladuraçãodaprópriavidaoupeladafamília).BillGates,noentanto,nãosente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; é avelocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, doentulho e da substituição que traz lucro hoje — não a durabilidade econfiabilidadedoproduto.Numanotávelreversãodatradiçãomilenar,sãoosgrandesepoderososqueevitamoduráveledesejamo transitório,enquantoosdabasedapirâmide—contratodasaschances—lutamdesesperadamenteparafazersuasfrágeis,mesquinhasetransitóriaspossesduraremmaistempo.Os dois se encontram hoje em dia principalmente nos lados opostos dosbalcõesdasmega-liquidaçõesoudevendasdecarrosusados.

A desintegração da rede social, a derrocada das agências efetivas de açãocoletiva, é recebidamuitas vezes com grande ansiedade e lamentada como“efeito colateral” não previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vezmaismóvel, escorregadio, evasivo e fugitivo.Mas a desintegração social étantoumacondiçãoquantoumresultadodanova técnicadopoder,que temcomoferramentasprincipais o desengajamento e a arte da fuga.Para queopodertenhaliberdadedefluir,omundodeveestarlivredecercas,barreiras,fronteirasfortificadasebarricadas.Qualquerrededensadelaçossociais,eemparticular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a sereliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes emproveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força egarantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, oquebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitemque esses

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poderesoperem.Seessastendênciasentrelaçadassedesenvolvessemsemfreios,homense

mulheres seriam reformulados no padrão da toupeira eletrônica, essaorgulhosa invenção dos tempos pioneiros da cibernética imediatamenteaclamada como arauto do porvir: um plugue em castores atarantados nadesesperadabuscadetomadasaqueseligar.Masnofuturoanunciadopelostelefonescelulares,astomadasserãoprovavelmentedeclaradasobsoletasedemaugosto, e passarão a ser fornecidas emquantidades cadavezmenores ecomqualidadecadavezmaisduvidosa.Nomomento,muitosfornecedoresdeeletricidade exaltam as vantagens da conexão a suas respectivas redes edisputamosfavoresdosqueprocuramportomadas.Masalongoprazo(oquequerque“longoprazo”signifiquenaeradainstantaneidade)astomadasserãoprovavelmente banidas e suplantadas por baterias descartáveis compradasindividualmentenaslojaseemofertaemcadaquiosquedeaeroportoepostodegasolinaaolongodasestradas.

Essapareceseradistopiafeitasobmedidaparaamodernidadelíquida—ecapazdesubstituirosterroresdospesadelosdeOrwelleHuxley.

Junhode1999

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1•EMANCIPAÇÃO

Ao fim das “três décadas gloriosas” que se seguiram ao final da SegundaGuerra Mundial — as três décadas de crescimento sem precedentes e deestabelecimentoda riquezaedasegurançaeconômicanoprósperoOcidente—HerbertMarcusereclamava:

Em relação a hoje e à nossa própria condição, creio que estamos diante deuma situação nova na história, porque temos que ser libertados de umasociedade rica, poderosa e que funciona relativamente bem…O problemaque enfrentamos é a necessidade de nos libertarmos de uma sociedade quedesenvolveemgrandemedidaasnecessidadesmateriaisemesmoculturaisdohomem—umasociedadeque,parausarumslogan,cumpreoqueprometeua uma parte crescente da população. E isso implica que enfrentamos alibertação de uma sociedade na qual a libertação aparentemente não contacomumabasedemassas.1

Devermos nos emancipar, “libertar-nosda sociedade”,nãoeraproblemapara Marcuse. O que era um problema — o problema específico para asociedade que “cumpre o que prometeu” — era a falta de uma “base demassas” para a libertação. Para simplificar: poucas pessoas desejavam serlibertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmenteninguémtinhacertezadecomoa“libertaçãodasociedade”poderiadistinguir-sedoEstadoemqueseencontrava.

“Libertar-se” significa literalmente libertar-se de algum tipo de grilhãoque obstrui ou impede os movimentos; começar a sentir-se livre para semover ou agir. “Sentir-se livre” significa não experimentar dificuldade,obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentospretendidos ou concebíveis. Como observou Arthur Schopenhauer, a“realidade”écriadapeloatodequerer;éateimosaindiferençadomundoemrelação à minha intenção, a relutância do mundo em se submeter à minhavontade, que resulta na percepção do mundo como “real”, constrangedor,limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para agirconforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, aimaginação e a capacidadede agir: sentimo-nos livres namedida emque aimaginação não vaimais longe que nossos desejos e que nemumanemosoutrosultrapassamnossacapacidadedeagir.Oequilíbriopode,portanto,seralcançado e mantido de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos

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e/ou a imaginação, ou ampliando nossa capacidade de ação. Uma vezalcançadooequilíbrio,eenquantoelesemantiver,“libertação”éumslogansemsentido,poisfalta-lheforçamotivacional.

Talusonospermitedistinguirentreliberdade“subjetiva”e“objetiva”—e tambémentrea“necessidadede libertação” subjetivaeobjetiva.Pode serque o desejo de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tidooportunidadedesurgir(porexemplo,pelapressãodo“princípioderealidade”exercido, segundo Sigmund Freud, sobre a busca humana do prazer e dafelicidade); as intenções, fossem elas realmente experimentadas ou apenasimagináveis, foram adaptadas ao tamanho da capacidade de agir, eparticularmente à capacidade de agir razoavelmente — com chance desucesso.Poroutrolado,podeserque,pelamanipulaçãodiretadasintenções—umaformade“lavagemcerebral”—nuncasepudessechegaraverificaroslimitesdacapacidade“objetiva”deagir,emenosaindasaberquaiseram,em primeiro lugar, essas intenções, acabando-se, portanto, por colocá-lasabaixodoníveldaliberdade“objetiva”.

A distinção entre liberdade “subjetiva” e “objetiva” abriu uma genuínacaixadePandoradequestõesembaraçosascomo“fenômenoversusessência”— de significação filosófica variada, mas no todo considerável, e deimportância política potencialmente enorme. Uma dessas questões é apossibilidadedequeoquesesentecomoliberdadenãosejadefatoliberdade;queaspessoaspoderemestar satisfeitas comoque lhescabemesmoqueoque lhescabeesteja longede ser “objetivamente” satisfatório;que,vivendonaescravidão,sesintamlivrese,portanto,nãoexperimentemanecessidadedese libertar,eassimpercamachancedese tornargenuinamente livres.Ocorolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem serjuízes incompetentes de sua própria situação, e devem ser forçadas ouseduzidas,masemtodocasoguiadas,paraexperimentaranecessidadedeser“objetivamente” livres e para reunir a coragem e a determinação para lutarpor isso.Ameaçamaissombriaatormentavaocoraçãodosfilósofos:queaspessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e rejeitassem aperspectivadalibertaçãopelasdificuldadesqueoexercíciodaliberdadepodeacarretar.

Asbênçãosmistasdaliberdade

Numa versão apócrifa da Odisséia (“Odysseus und die Schweine: dasUnbehagen an derKultur”), Lion Feuchtwanger propôs que osmarinheirosenfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram de sua novacondiçãoeresistiramdesesperadamenteaosesforçosdeUlissesparaquebraro encanto e trazê-los de volta à forma humana. Quando informados por

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Ulissesdequeele tinhaencontradoas ervasmágicas capazesdedesfazer amaldição e de que logo seriam humanos novamente, fugiram numavelocidadequeseuzelososalvadornãopôdeacompanhar.Ulissesconseguiuafinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a peleeriçadadeulugaraElpenoros—ummarinheiro,comoinsisteFeuchtwanger,emtodosossentidosmedianoecomum,exatamente“comotodososoutros,semsedestacarporsuaforçaouporsuaesperteza”.O“libertado”Elpenorosnão ficou nada grato por sua liberdade, e furiosamente atacou seu“libertador”:

Entãovoltaste,ótratante,óintrometido?Queresnovamentenosaborrecereimportunar,queresnovamenteexpornossoscorposaoperigoeforçarnossoscoraçõessempreanovasdecisões?Euestavatãofeliz,eupodiachafurdarnalama e aquecer-me ao sol, eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, eestavalivredemeditaçõesedúvidas:“Oquedevofazer,istoouaquilo?”Porquevieste?Parajogar-meoutraveznavidaodiosaqueeulevavaantes?

Alibertaçãoéumabênçãoouumamaldição?Umamaldiçãodisfarçadadebênção,ouumabênção temidacomomaldição?Taisquestõesassombraramospensadoresduranteamaiorpartedaeramoderna,quepunhaa“libertação”no topo da agenda da reforma política e a “liberdade” no alto da lista devalores — quando ficou suficientemente claro que a liberdade custava achegar e os que deveriam dela gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas.Houvedois tiposde resposta.Aprimeira lançavadúvidas sobreaprontidãodo“povocomum”paraaliberdade.Comooescritornorte-americanoHerbertSebastianAgardizia(emATimeforGreatness,1942),“averdadequetornaoshomenslivresé,namaioriadoscasos,averdadequeoshomenspreferemnãoouvir”.Asegundainclinava-seaaceitarqueoshomenspodemnãoestarinteiramenteequivocadosquandoquestionamosbenefíciosqueasliberdadesoferecidaspodemlhestrazer.

Respostasdoprimeiro tipo inspiram, intermitentemente,compaixãopelo“povo”desorientado,enganadoelevadoadesistirdesuachancedeliberdade,ou desprezo e ultraje contra a “massa” que não quer assumir os riscos eresponsabilidadesqueacompanhamaautonomiaeaauto-afirmaçãogenuínas.OprotestodeMarcuseenvolveumamisturadasduas,alémdeumatentativadedeixarnasoleiradanovaprosperidadeaculpapelareconciliaçãoevidentedos não-livres com sua falta de liberdade.Outros discursos freqüentes paraprotestos semelhantes foram os do “aburguesamento” dos despossuídos (asubstituiçãode“ser”por“ter”,eade“agir”por“ser”comoosvaloresmaisaltos) e da “cultura de massas” (uma lesão cerebral coletiva causada pela“indústria cultural”, plantando uma sede de entretenimento e diversão nolugarque—comodiriaMathewArnold—deveriaserocupadopela“paixão

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peladoçuraepelaluzepelapaixãodefazercomqueestastriunfem”).Respostas da segunda espécie sugerem que o tipo de liberdade louvada

pelos libertários não é, ao contrário do que eles dizem, uma garantia defelicidade.Vaitrazermaistristezaquealegria.Segundoestepontodevista,oslibertáriosestãoerradosquandoafirmam—comoofaz,porexemplo,DavidConway,2seguindooprincípiodeHenrySidgwick—queafelicidadegeralépromovidamais eficazmente semantivermos nos adultos “a expectativa deque cada um será deixado com seus próprios recursos para prover suasprópriasnecessidades”ouCharlesMurray,3quebeiraolíricoaodescreverafelicidade intrínseca à busca solitária: “Oque faz umacontecimento causarsatisfaçãoéquevocêoproduziu…comresponsabilidadesubstancial sobreseus ombros, sendo uma parte substancial do bem alcançado umacontribuição sua.” “Ser abandonado a seus próprios recursos” anunciatormentos mentais e a agonia da indecisão, enquanto a “responsabilidadesobre os próprios ombros” prenuncia um medo paralisante do risco e dofracasso, sem direito a apelação ou desistência. Esse não pode ser osignificado real da “liberdade” e se a liberdade “realmente existente”, aliberdadeoferecida, significar tudo isso,elanãopodesernemagarantiadafelicidade,nemumobjetivodignodeluta.

Respostas do segundo tipo nascememúltima análise do horror visceralhobbesianoao“homemàsolta”.Derivamsuacredibilidadedasuposiçãodequeumserhumanodispensadodas limitaçõessociaiscoercitivas (oununcasubmetidoaelas) éumabestaenãoum indivíduo livre; eohorrorqueelegeravemdeoutra suposição:adequea faltade limiteseficazes fazavida“detestável,brutalecurta”—e,assim,qualquercoisa,menosfeliz.AmesmavisãohobbesianafoidesenvolvidaporÉmileDurkheimnumafilosofiasocialcompreensiva,deacordocomaqualéa“norma”,medidapelamédiaoupelomais comum, e apoiada em duras sanções punitivas, que verdadeiramentelibertaospseudo-humanosdamaishorrendaetemíveldasescravidões;otipodeescravidãoquenãoseescondeemnenhumapressãoexterna,masdentro,na natureza pré-social ou associal do homem. A coerção social é, nessafilosofia, a força emancipadora, e a única esperança de liberdade a que umhumanopoderazoavelmenteaspirar.

O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sualibertação.Paraohomemaliberdadeconsisteemnãoestarsujeitoàsforçasfísicas cegas; ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força dasociedade, sob cuja proteção se abriga. Ao colocar-se sob as asas dasociedade, ele se torna, até certo ponto, dependente dela. Mas é umadependêncialibertadora;nãohánissocontradição.4

Não sónãohá contradiçãoentredependência e libertação:nãoháoutro

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caminho para buscar a libertação senão “submeter-se à sociedade” e seguirsuasnormas.Aliberdadenãopodeserganhacontraasociedade.Oresultadodarebeliãocontraasnormas,mesmoqueosrebeladosnãotenhamsetornadobestasdeumavezportodas,e,portanto,perdidoacapacidadedejulgarsuaprópriacondição,éumaagoniaperpétuadeindecisãoligadaaumEstadodeincertezasobreasintençõesemovimentosdosoutrosaoredor—oquefazdavidauminferno.Padrõeserotinasimpostosporpressõessociaiscondensadaspoupam essa agonia aos homens; graças à monotonia e à regularidade demodos de conduta recomendados, para os quais foram treinados e a quepodem ser obrigados, os homens sabem como proceder na maior parte dotempo e raramente se encontram em situações sem sinalização, aquelassituações em que as decisões devem ser tomadas com a própriaresponsabilidadeesemoconhecimentotranqüilizantedesuasconseqüências,fazendo com que cada movimento seja impregnado de riscos difíceis decalcular.Aausência,ouamerafaltadeclareza,dasnormas—anomia—éopiorquepodeaconteceràspessoasemsualutaparadarcontadosafazeresdavida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a anomia anuncia apura e simples incapacitação. Uma vez que as tropas da regulamentaçãonormativaabandonamocampodebatalhadavida,sobramapenasadúvidaeo medo. Quando (como notavelmente formulado por Erich Fromm) “cadaindivíduodeveiremfrenteetentarsuasorte”,quando“eletemquenadarouafundar”—“abuscacompulsivadacerteza”seinstala,começaadesesperadabuscapor“soluções”capazesde“eliminaraconsciênciadadúvida”—oquequerqueprometa“assumiraresponsabilidadepela‘certeza’”ébem-vindo.5

“A rotina pode apequenar,mas ela também pode proteger” é o que dizRichardSennett,paraentãolembrarseusleitoresdavelhacontrovérsiaentreAdam Smith e Dennis Diderot. Enquanto Smith advertia contra os efeitosdegradanteseestupidificantesdarotinadetrabalho,“Diderotnãoacreditavaque o trabalho rotineiro é degradante … O maior herdeiro moderno deDiderot, o sociólogo Anthony Giddens, tentou manter viva a percepçãodiderotiana,apontandoparaovalorprimáriodohábitotantoparaaspráticassociaisquantoparaaautocompreensão”.AproposiçãodopróprioSennett édireta: “Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curtoprazo,destituídaderotinassustentáveis,umavidasemhábitos,éimaginar,defato,umaexistênciasemsentido.”6

Avidaaindanãoatingiuosextremosqueafariamsemsentido,masmuitodano foi causado, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive asnovíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para setornarem hábitos) não poderão sermais quemuletas, artifícios do engenhohumano que só parecem a coisa em si se nos abstivermos de examiná-lasmuito de perto. Toda certeza alcançada depois do “pecado original” dedesmantelaromundocotidianocheiode rotinaevaziode reflexão teráque

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ser uma certeza manufaturada, uma certeza escancarada edesavergonhadamente “fabricada”, sobrecarregada com toda avulnerabilidade inata das decisões tomadas por humanos. De fato, comoinsistemDeleuzeeGuattari,

nãoacreditamosmaisnomitodaexistênciadefragmentosque,comopeçasdeumaantigaestátua,estãomeramenteesperandoqueapareçaoúltimocacoparaquetodaspossamsercoladasnovamenteparacriarumaunidadequeéprecisamente amesmaque aunidadeoriginal.Nãomais acreditamosnumatotalidade primordial que existiu uma vez, nem numa totalidade final queesperapornósnumadatafutura.7

O que foi separado não pode ser colado novamente. Abandonai todaesperançadetotalidade,tantofuturacomopassada,vósqueentraisnomundoda modernidade fluida. Chegou o tempo de anunciar, como o fezrecentementeAlainTouraine, “o fimdadefiniçãodo ser humanocomoumser social, definido por seu lugar na sociedade, que determina seucomportamento e ações”. Em seu lugar, o princípio da combinação da“definiçãoestratégicadaaçãosocialquenãoéorientadapornormassociais”e “a defesa, por todos os atores sociais, de sua especificidade cultural epsicológica” “pode ser encontrado dentro do indivíduo, e não mais eminstituiçõessociaisouemprincípiosuniversais”.8

Asuposição tácitaqueapóiaumatomadadeposição tãoradicaléquealiberdadeconcebívelepossíveldealcançarjáfoiatingida;nadarestaafazersenãolimparospoucoscantosrestantesepreencherospoucoslugaresvazios—trabalhoqueserácompletadoempoucotempo.Oshomenseasmulheressão inteira e verdadeiramente livres, e assim a agenda da libertação estápraticamente esgotada.O protesto deMarcuse e a nostalgia comunitária dacomunidade perdida podem ser manifestações de valores mutuamenteopostos, mas são igualmente anacrônicos. Nem o reenraizar dosdesenraizados, nem o “despertar do povo” para a tarefa não-realizada dalibertaçãoestãonascartas.AperplexidadedeMarcuseestáultrapassada,pois“oindivíduo”jáganhoutodaaliberdadecomquepoderiasonharequeseriarazoável esperar; as instituições sociais estãomais que dispostas a deixar àiniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e osprincípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Quanto aosonhocomunitáriode“reacomodarosdesacomodados”,nadapodemudarofatodequeoqueestádisponívelparaareacomodaçãosãosomentecamasdemotel, sacos de dormir e divãs de analistas, e que de agora em diante ascomunidades — mais postuladas que “imaginadas” — podem ser apenasartefatosefêmerosdapeçadaindividualidadeemcurso,enãomaisasforçasdeterminantesedefinidorasdasidentidades.

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Ascasualidadeseasortecambiantesdacrítica

O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse CorneliusCastoriadis, é que ela deixoude se questionar.Éum tipode sociedadequenãomais reconhecequalqueralternativaparasimesmae,portanto,sente-seabsolvidadodeverdeexaminar,demonstrar, justificar (equediráprovar) avalidadedesuassuposiçõestácitasedeclaradas.

Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (ouvenha a suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seusmembrosreticentes(emenosaindatemerosos)emlhedarvoz.Aocontrário:nossasociedade—umasociedadede“indivíduoslivres”—fezdacríticadarealidade, da insatisfação com “o que aí está” e da expressão dessainsatisfaçãoumaparte inevitável eobrigatóriadosafazeresdavidadecadaum de seus membros. Como Anthony Giddens nos lembra, estamos hojeengajadosna“política-vida”somos“seres reflexivos”queolhamosdepertocada movimento que fazemos, que estamos raramente satisfeitos com seusresultados e sempre prontos a corrigi-los. De alguma maneira, no entanto,essa reflexão não vai longe o suficiente para alcançar os complexosmecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e osdeterminam,emenosaindaascondiçõesquemantêmessesmecanismosemoperação. Somos talvez mais “predispostos à crítica”, mais assertivos eintransigentesemnossascríticas,quenossosancestraisemsuavidacotidiana,masnossacríticaé,porassimdizer,“desdentada”,incapazdeafetaraagendaestabelecida para nossas escolhas na “política-vida”. A liberdade semprecedentes que nossa sociedade oferece a seusmembros chegou, comohátempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência semprecedentes.

Ouve-sealgumasvezesaopiniãodequeasociedadecontemporânea(queaparece sob o nome de última sociedade moderna ou pós-moderna, asociedade da “segunda modernidade” de Ulrich Beck ou, como prefirochamá-la,a“sociedadedamodernidadefluida”)éinóspitaparaacrítica.Essaopiniãopareceperderdevistaanaturezadamudançapresente,aosuporqueopróprio significado de “hospitalidade” permanece invariável em sucessivasfases históricas.A questão é, porém, que a sociedade contemporânea deu à“hospitalidadeàcrítica”umsentido inteiramentenovoe inventouummodode acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune àsconseqüênciasdessaacomodaçãoesaindo,assim,intactaesemcicatrizes—reforçada,enãoenfraquecida—dastentativasetestesda“políticadeportasabertas”.

Otipode“hospitalidadeàcrítica”característicodasociedademodernaemsuaformapresentepodeseraproximadadopadrãodoacampamento.Olugar

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estáabertoaquemquerquevenhacomseutraileredinheirosuficienteparaoaluguel;oshóspedesvêmevão;nenhumdelesprestamuitaatençãoacomoolugarégerido,desdequehajaespaço suficienteparaestacionaro trailer, astomadaselétricaseencanamentosestejamemordemeosdonosdos trailersvizinhos não façammuito barulho emantenham baixo o som de suas TVsportáteiseaparelhosdesomdepoisdeescurecer.Osmotoristastrazemparaoacampamentosuasprópriascasas,equipadascomtodososaparelhosdequeprecisamparaaestada,queemtodocasopretendemquesejacurta.Cadaumtem seu próprio itinerário e horário. O que os motoristas querem dosadministradoresdolugarnãoémuitomais(mastampoucomenos)doqueserdeixados à vontade. Em troca, não pretendem desafiar a autoridade dosadministradores e pagam o aluguel no prazo. Como pagam, tambémdemandam. Tendem a ser inflexíveis quando defendem seus direitos aosserviços prometidos, mas em geral querem seguir seu caminho e ficariamirritadosseissonãolhesfossepermitido.Ocasionalmentepodemreivindicarmelhores serviços; se forem bastante incisivos, vociferantes e resolutos,podematéobtê-los.Sesesentiremprejudicados,podemreclamarecobraroque lhes é devido — mas nunca lhes ocorreria questionar e negociar afilosofia administrativado lugar, emuitomenos assumir a responsabilidadepelogerenciamentodomesmo.Podem,nomáximo,anotarmentalmentequenãodevemnuncamais usar o lugar novamente e nem recomendá-lo a seusamigos.Quandovãoembora,seguindoseusprópriositinerários,olugarficacomoeraantesdesuachegada,semserafetadopelosocupantesanterioreseesperandopor outros no futuro; embora, se algumas queixas continuarem aser feitasporgrupossucessivosdehóspedes,osserviçosoferecidospossamvir a ser modificados para impedir que as queixas sejam novamentemanifestadasnofuturo.

Na era da modernidade líquida a hospitalidade à crítica da sociedadesegueopadrãodoacampamento.QuandoAdornoeHorkheimerformularama teoria crítica clássica, gerada pela experiência de outra modernidade,obcecada pela ordem, e assim informada e orientada pelo telos daemancipação, eramuito diferente omodelo em que se inscrevia, com bomfundamentoempírico,aidéiadecrítica:omodelodeumacasacompartilhada,comsuasnormasinstitucionalizadaseregrashabituais,atribuiçãodedeverese desempenho supervisionado. Embora lide bem com a crítica à forma dehospitalidade do acampamento em relação aos donos dos trailers, nossasociedadedefinitivamentenãoaceitabemacríticacomoaqueosfundadoresda escola crítica supunham e à qual endereçaram sua teoria. Em termosdiferentes,mascorrespondentes,poderíamosdizerqueuma“críticaaoestilodo consumidor” veio substituir sua predecessora, a “crítica ao estilo doprodutor”.

Contrariamente a uma moda difundida, essa mudança não pode ser

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explicadameramente por referência àmudança na disposição do público, àdiminuição do apetite pela reforma social, do interesse pelo bem comum epelas imagens da boa sociedade, à decadência da popularidade doengajamento político, ou à alta dos sentimentos hedonísticos e do “euprimeiro”— ainda que tais fenômenos sem dúvida se destaquem entre asmarcas do nosso tempo. As causas da mudança vão mais fundo; estãoenraizadas na profunda transformação do espaço público e, de modo maisgeral,nomodocomoasociedademodernaoperaeseperpetua.

Otipodemodernidadequeeraoalvo,mastambémoquadrocognitivo,da teoria crítica clássica, numaanálise retrospectiva, parecemuitodiferentedaquele que enquadra a vida das gerações de hoje. Ela parece “pesada”(contraa“leve”modernidadecontemporânea);melhorainda,“sólida”(enão“fluida”,“líquida”ou“liquefeita”);condensada(contradifusaou“capilar”);e,finalmente,“sistêmica”(poroposiçãoa“emformaderede”).

Essamodernidadepesada/sólida/condensada/sistêmicada “teoria crítica”era impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária dahomogeneidade compulsória, imposta e onipresente, estava constante eameaçadoramente no horizonte— como destino último, como uma bombanunca inteiramente desarmada ou um fantasma nunca inteiramenteexorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, davariedade, da ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendodeclarado uma guerra santa a todas essas “anomalias” e esperava-se que aliberdadeeaautonomiaindividuaisfossemasprimeirasvítimasdacruzada.Entreosprincipaisíconesdessamodernidadeestavamafábricafordista,quereduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros epredeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente seguidos,sem envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade einiciativa individual; a burocracia, afim, pelo menos em suas tendênciasinatas,aomodeloidealdeMaxWeber,emqueasidentidadeselaçossociaiserampenduradosnocabidedaportadaentradajuntocomoschapéus,guarda-chuvas e capotes, de tal forma que somente o comando e os estatutospoderiamdirigir, incontestados,asaçõesdosdedentroenquantoestivessemdentro;opanópticocomsuastorresdecontroleecomosinternosquenuncapodiam contar com os eventuais lapsos de vigilância dos supervisores; oGrande Irmão, que nunca cochila, sempre atento, rápido e expedito empremiarosfiéisepunirosinfiéis;e—finalmente—oKonzlager(maistardeacompanhadonocontra-panteãodosdemôniosmodernospeloGulag), lugarondeoslimitesdamaleabilidadehumanaeramtestadosemlaboratórioeondeaqueles que suposta ou realmente não eram maleáveis o suficiente eramcondenados a morrer de exaustão ou mandados às câmaras de gás ou aoscrematórios.

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Mais uma vez, em retrospecto, podemos dizer que a teoria críticapretendia desarmar e neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, atendência totalitária de uma sociedade que se supunha sobrecarregada deinclinaçõestotalitáriasintrínsecaepermanentemente.Oprincipalobjetivodateoria crítica era a defesa da autonomia, da liberdadede escolha e da auto-afirmação humanas, do direito de ser e permanecer diferente. Como nosantigosmelodramasdeHollywood,quesupunhamqueomomentoemqueosamantes seencontravamnovamenteepronunciavamosvotosdocasamentoassinalavao fimdodramaeocomeçodobem-aventurado“viveramfelizesparasempre”,ateoriacrítica,noinício,viaalibertaçãodoindivíduodagarradeferrodarotinaousuafugadacaixadeaçodasociedadeafligidaporuminsaciávelapetitetotalitário,homogeneizanteeuniformizantecomooúltimoponto da emancipação e o fim do sofrimento humano — o momento da“missão cumprida”. A crítica devia servir a esse propósito; não precisavaprocuraralémdisso,nemalémdomomentodealcançá-lo—nemtinhatempoparatanto.

Na época em que foi escrito, o 1984 de George Orwell era o maiscompleto — e canônico — inventário dos medos e apreensões queassombravam a modernidade em seu estágio sólido. Projetados sobre osdiagnósticos dos problemas e das causas dos sofrimentos contemporâneos,essesmedosdesenhamohorizontedosprogramasemancipatóriosdoperíodo.Chegado o 1984 real, a visão deOrwell foi prontamente lembrada, trazidanovamenteaodebatepúblico,comoeradeseesperar,e,umavezmais(talvezaúltima),amplamenteconsiderada.Amaioriadosescritores,como tambémerade seesperar, afiou suaspenaspara separar averdadeda inverdadedasprofecias de Orwell, testadas pelo lapso de tempo que o próprio Orwellpreviraparaquesuaspalavrasseconcretizassem.Nãosurpreende,noentanto,que em nossos tempos — quando mesmo a imortalidade dos marcos emonumentos da história cultural da humanidade está sujeita à reciclagemcontínua e precisa ser periodicamente trazida de volta à atenção emcomemorações ou pela excitação que precede e acompanha as exibiçõesretrospectivas(apenasparadesaparecerdavistaedopensamentotãologoasexibições terminemouapareçaoutroaniversárioparaconsumiroespaçodaimprensa e o tempo daTV)— a encenação do “eventoOrwell” não tenhasido muito diferente do tratamento dado intermitentemente a coisas comoTutancâmon,oouroinca,Vermeer,PicassoouMonet.

Mesmo assim, a brevidade da celebração de 1984, a tepidez e o rápidoesfriamentodo interessequeproduziueavelocidadecomqueaobra-primadeOrwellnovamenteafundounoesquecimentoumavezcessadaaexcitaçãocriada pela mídia nos fazem parar para pensar. Afinal, esse livro serviudurantemuitasdécadas(eatéalgumasdécadasatrás)comoocatálogomaiscompetentedosmedos,pressentimentosepesadelospúblicos;então,porque

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não mais que um interesse passageiro em sua breve ressurreição? A únicaexplicaçãorazoáveléqueaspessoasquediscutiramolivroem1984nãosesentiramestimuladaseficaramquaseindiferentesaoassuntoquetinhamsidoencarregadasdediscutireponderar,porquenãomaisreconheciamnadistopiade Orwell suas próprias aflições e agonias, ou os pesadelos de seussemelhantes.O livrovoltouàatençãopúblicaapenas fugazmente,eganhouumaposiçãomaisoumenosentreaHistorianaturalisdePlíniooVelhoeasprofeciasdeNostradamus.

Nãoémaudefinirépocashistóricaspelotipode“demôniosíntimos”queas assombram e atormentam. Durante muito tempo, a distopia de Orwell,juntamente com o sinistro potencial do projeto iluminista revelado porAdorno e Horkheimer, o panóptico de Bentham/Foucault ou sintomasrecorrentes de retomada damaré totalitária, foi identificada com a idéia de“modernidade”. Não é surpreendente, pois, que, quando os velhos medosforam afastados do palco e novosmedos,muito diferentes dos horrores daiminenteGleichschaltungedaperdadaliberdade,surgiramnoprimeiroplanoenodebatepúblico,diversosobservadorestenhamrapidamenteproclamadoo“fim da modernidade” (ou mesmo, mais ousadamente, o fim da própriahistória,argumentandoqueelatinhaatingidoseutelosaotornaraliberdade,pelo menos o tipo de liberdade exemplificado pelo mercado livre e pelaescolhadoconsumidor, imuneaquaisquerameaças).Enoentanto (créditospara Mark Twain) a notícia do falecimento da modernidade, mesmo osrumoressobreseucantodecisne,eragrosseiramenteexagerado:suaprofusãonão faz os obituários menos prematuros. Parece que o tipo de sociedadediagnosticada e levada a juízo pelos fundadores da teoria crítica (ou peladistopia de Orwell) era apenas uma das formas que a versátil e variávelsociedade moderna assumia. Seu desaparecimento não anuncia o fim damodernidade. Nem é o arauto do fim da miséria humana. Menos aindaassinala o fim da crítica como tarefa e vocação intelectual. E em nenhumahipótesetornaessacríticadispensável.

AsociedadequeentranoséculoXXInãoémenos“moderna”queaqueentrounoséculoXX;omáximoquesepodedizeréqueelaémodernadeummodo diferente.O que a faz tãomoderna como eramais oumenos há umséculoéoquedistingueamodernidadedetodasasoutrasformashistóricasdoconvíviohumano:acompulsivaeobsessiva,contínua,irrefreávelesempreincompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede dedestruiçãocriativa(oudecriatividadedestrutiva,seforocaso:de“limparolugar” em nome de um “novo e aperfeiçoado” projeto; de “desmantelar”,“cortar”, “defasar”, “reunir” ou “reduzir”, tudo isso em nome da maiorcapacidadedefazeromesmonofuturo—emnomedaprodutividadeoudacompetitividade).

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Como assinalava Lessing há muito tempo, no limiar da era modernafomos emancipados da crença no ato da criação, da revelação e dacondenação eterna.Comessas crenças fora do caminho, nós, humanos, nosencontramos“pornossaprópriaconta”—oquesignificaque,desdeentão,não conhecemos mais limites ao aperfeiçoamento além das limitações denossos próprios dons herdados ou adquiridos, de nossos recursos, coragem,vontadeedeterminação.Eoqueohomemfazohomempodedesfazer.Sermodernopassouasignificar,comosignificahojeemdia,serincapazdeparare aindamenos capaz de ficar parado.Movemo-nos e continuaremos a nosmovernão tantopelo“adiamentoda satisfação”, comosugeriuMaxWeber,mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte dasatisfação,alinhadechegadadoesforçoeomomentodaauto-congratulaçãotranqüilamovem-serápidodemais.Aconsumaçãoestásemprenofuturo,eosobjetivos perdem sua atração e potencial de satisfação nomomento de suarealização, se não antes. Sermoderno significa estar sempre à frente de simesmo,numEstadodeconstantetransgressão(nostermosdeNietzsche,nãopodemos serMensch sem ser, ou pelomenos lutar para ser,Übermensch);tambémsignifica ter uma identidadeque sópode existir comoprojetonão-realizado.A esse respeito, não hámuito que distinga nossa condição da denossosavós.

Duascaracterísticas,noentanto,fazemnossasituação—nossaformademodernidade—novaediferente.

A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusãomoderna:dacrençadequeháumfimdocaminhoemqueandamos,umtelosalcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingidoamanhã, no próximo ano ou no próximomilênio, algum tipo de sociedadeboa,desociedadejustaesemconflitosemtodosoualgunsdeseusaspectospostulados:dofirmeequilíbrioentreofertaeprocuraeasatisfaçãodetodasasnecessidades; daordemperfeita, emque tudoé colocadono lugar certo,nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; dascoisashumanasquesetornamtotalmentetransparentesporquesesabetudooquedevesersabido;docompletodomíniosobreofuturo—tãocompletoquepõe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüênciasimprevistasdasiniciativashumanas.

Asegundamudançaéadesregulamentaçãoeaprivatizaçãodastarefasedeveresmodernizantes.Oquecostumavaserconsideradouma tarefaparaarazãohumana,vistacomodotaçãoepropriedadecoletivadaespéciehumana,foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energiaindividuaisedeixadoàadministraçãodosindivíduoseseusrecursos.Aindaqueaidéiadeaperfeiçoamento(oudetodamodernizaçãoadicionaldostatusquo) pela ação legislativa da sociedade como um todo não tenha sido

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completamenteabandonada,aênfase(juntamente,oqueéimportante,comopesodaresponsabilidade)setransladoudecisivamenteparaaauto-afirmaçãodo indivíduo.Essa importantealteraçãose refletena realocaçãododiscursoético/políticodoquadroda“sociedadejusta”paraodos“direitoshumanos”,isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduospermaneceremdiferentesedeescolheremàvontadeseusprópriosmodelosdefelicidadeedemododevidaadequado.

As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandessomasnoscofresdogoverno,procuramotroconosbolsosdoscontribuintes.Seamodernidadeoriginalerapesadanoalto,amodernidadedehojeé levenoalto,tendoselivradodeseusdeveres“emancipatórios”,excetoodeverdeceder a questão da emancipação às camadas média e inferior, às quais foirelegada a maior parte do peso da modernização contínua. “Não mais asalvaçãopelasociedade”,proclamouoapóstolodonovoespíritodaempresa,Peter Drucker. “Não existe essa coisa de sociedade”, declarou MargaretThatcher,maisostensivamente.Nãoolhepara trás, oupara cima;olheparadentro de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentasnecessáriasaoaperfeiçoamentodavida—suaastúcia,vontadeepoder.

Enãohámais“oGrandeIrmãoàespreita”suatarefaagoraéobservarasfileirascrescentesdeGrandesIrmãoseGrandesIrmãseobservá-lasatentaeavidamente, na esperança de encontrar algo de útil para você mesmo: umexemplo a imitar ou uma palavra de conselho sobre como lidar com seusproblemas,que,comoosdeles,devemserenfrentados individualmenteesópodem ser enfrentados individualmente. Nãomais grandes líderes para lhedizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade pela conseqüência deseusatos;nomundodosindivíduosháapenasoutrosindivíduoscujoexemploseguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda aresponsabilidadepelasconseqüênciasdeterinvestidoaconfiançanesseenãoemqualqueroutroexemplo.

Oindivíduoemcombatecomocidadão

OtítulodadoporNorbertEliasaseuúltimolivro,publicadopostumamente,Asociedadedosindivíduos,captacomperfeiçãoaessênciadoproblemaqueassombra a teoria social desde seu começo. Rompendo com uma tradiçãoestabelecidadesdeHobbeseforjadanovamenteporJohnStuartMill,HerbertSpencer e a ortodoxia liberal na doxa (o quadro não examinado de todacogniçãoadicional)denossoséculo,Eliassubstituiuo“e”eo“versus”pelo“de” e, assim, deslocou o discurso do imaginário das duas forças, travadasnumabatalhamortalmas infindável entre liberdade edominação,parauma“concepção recíproca”: a sociedade dando forma à individualidade de seus

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membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações navida,enquantoseguemestratégiasplausíveise factíveisnaredesocialmentetecidadesuasdependências.

A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada dasociedademoderna.Essaapresentação,porém,nãofoiumapeçadeumato:éuma atividade reencenada diariamente.A sociedademoderna existe em suaatividade incessante de “individualização”, assim como as atividades dosindivíduos consistem na reformulação e renegociação diárias da rede deentrelaçamentos chamada “sociedade”. Nenhum dos dois parceiros ficaparadopormuito tempo.Eassimosignificadoda“individualização”muda,assumindosemprenovasformas—àmedidaqueos resultadosacumuladosde sua história passada solapam as regras herdadas, estabelecem novospreceitos comportamentais e fazem surgir novos prêmios no jogo. A“individualização” agora significa uma coisa muito diferente do quesignificava há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da eramoderna — os tempos da exaltada “emancipação” do homem da tramaestreitadadependência,davigilânciaedaimposiçãocomunitárias.

“JenseitsvonKlasseundStand?”,deUlrichBeck,epoucosanosdepoisseu“Risikogesellschaft:aufdemWegineineandereModerne”9 (juntamentecom “Ein Stück eigenes Leben: Frauen im Individualisierung Prozess”, deElisabethBeck-Gernsheim)abriramumnovocapítuloemnossacompreensãodo“processode individualização”.Esses trabalhos apresentaramoprocessocomoumahistóriaemcursoeinfindável,comseusdistintosestágios—aindaquecomumhorizontemóveleumalógicaerráticadegirosecurvasabruptosemlugardeumtelosouumdestinopredeterminado.Pode-sedizerque,assimcomoEliashistoricizouateoriadeSigmundFreuddo“indivíduocivilizado”explorando a civilização como um evento na história (moderna), BeckhistoricizouanarrativadeEliasdonascimentodoindivíduoaoreapresentaresse nascimento como um aspecto perpétuo da contínua, compulsiva eobsessiva modernização. Beck também estabeleceu o retrato daindividualização liberta de suas roupagens transitórias, hoje maisobscurecedoras que clarificadoras da compreensão (antes e acima de tudo,libertadesuasvisõesdodesenvolvimento linear,umaprogressãoassinaladaaolongodoseixosdaemancipação,dacrescenteautonomiaedaliberdadedeauto-afirmação), expondo assim para exame a variedade de tendências àindividualizaçãoeseusprodutos,epermitindoumamelhorcompreensãodascaracterísticasdistintivasdeseuestágiopresente.

Resumidamente, a “individualização” consiste em transformar a“identidade”humanadeum“dado”emuma“tarefa”eencarregarosatoresdaresponsabilidadederealizaressatarefaedasconseqüências(assimcomodosefeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no

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estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de aautonomiadefactotambémtersidoestabelecida).

Os sereshumanosnãomais “nascem”emsuas identidades.ComodisseJean-PaulSartreemfrasecélebre:nãobastaternascidoburguês—éprecisoviver a vida como burguês. (Note-se que o mesmo não precisaria ser nempoderia ser dito sobre príncipes, cavaleiros ou servos da era pré-moderna;nempoderiaserditodemodotãoresolutodosricosnemdospobresdeberçodos temposmodernos).Precisar tornar-seoque jáseééacaracterísticadavidamoderna—esódavidamoderna(nãoda“individualizaçãomoderna”,aexpressão sendo evidentemente pleonástica; falar da individualização e damodernidade é falar de uma e damesma condição social). Amodernidadesubstituiadeterminaçãoheterônomadaposiçãosocialpelaautodeterminaçãocompulsivaeobrigatória. Issovaleparaa“individualização”por todaaeramoderna — para todos os períodos e todos os setores da sociedade. Noentanto, dentro daquela condição compartilhada há variações significativas,quedistinguemgeraçõessucessivase tambémasváriascategoriasdeatoresquecompartilhamomesmocenáriohistórico.

Aantigamodernidade“desacomodava”afimde“reacomodar”.Enquantoadesacomodaçãoeraodestinosocialmentesancionado,areacomodaçãoeratarefapostadiantedosindivíduos.Umavezrompidasasrígidasmoldurasdosestamentos, a tarefa de “auto-identificação” posta diante de homens emulheres do princípio da era moderna se resumia ao desafio de viver “deacordo” (não ficar atrás dos outros), de conformar-se ativamente aosemergentes tipossociaisdeclasseemodelosdeconduta,deimitar,seguiropadrão, “aculturar-se”, não sair da linha nem se desviar da norma. Os“estamentos”enquantolugaresaquesepertenciaporhereditariedadevieramasersubstituídospelas“classes”comoobjetivodepertencimentofabricado.Enquantoosestamentoseramumaquestãodeatribuição,opertencimentoàsclasseseraemgrandemedidaumarealização;diferentementedosestamentos,o pertencimento às classes devia ser buscado, e continuamente renovado,reconfirmadoetestadonacondutadiária.

Retrospectivamente, pode-se dizer que a divisão em classes (ou emgêneros) foi um resultado secundário do acesso desigual aos recursosnecessáriosparatornaraauto-afirmaçãoeficaz.Asclassesdiferiamnagamadeidentidadesdisponíveisenafacilidadedeescolherentreelaseadotá-las.Aspessoascommenosrecursose,portanto,commenosescolha,tinhamquecompensar suas fraquezas individuais pela “força do número”— cerrandofileiras e partindo para a ação coletiva.Como assinalouClausOffe, a açãocoletiva, orientada pela classe, era tão natural e corriqueira para os queestavam nos níveis mais baixos da escala social quanto a perseguiçãoindividualdeseusobjetivosdevidaoeraparaseuspatrões.

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As privações se somavam, por assim dizer; e, uma vez somadas,congelavam-seem“interessescomuns”eeramvistascomo tratáveisapenascomumremédiocoletivo.O“coletivismo”foiaprimeiraopçãodeestratégiapara aqueles situados na ponta receptora da individualizaçãomas incapazesdeseauto-afirmarenquantoindivíduosselimitadosaseusprópriosrecursosindividuais, claramente inadequados.A orientação de classe dosmais bem-aquinhoados era, por outro lado, parcial e, em certo sentido, derivativa;assumiaoprimeiroplanoprincipalmentequandoadistribuiçãodesigualdosrecursos era desafiada e contestada. Qualquer que fosse o caso, porém, osindivíduos da modernidade “clássica”, deixados “desacomodados” peladecomposição da ordem estamental, dispunham de seus novos poderes eautonomianabuscafrenéticada“reacomodação”.

Enãofaltavam“camas”àesperaeprontasparaacomodá-los.Aclasse—embora formada enegociável, e nãoherdada, comoeramos estamentos—tendia a prender seusmembros tão firme e fortemente quanto o estamentohereditáriopré-moderno.Classeegêneroprojetavam-sepesadamentesobreagamade escolhas do indivíduo; escapar a esses limites não eramuitomaisfácildoquecontestarolugarocupadona“cadeiadivinadoser”pré-moderna.Paratodososefeitos,aclasseeogêneroeram“fatosdanatureza”,eatarefareservada à auto-afirmação da maioria dos indivíduos era “adaptar-se” aonichoalocado,comportando-secomoosdemaisocupantes.

Isso é precisamente o que distingue a “individualização” de outrora daforma que veio a tomar naRisikogesellschaft, em tempos de “modernidadereflexiva” ou “segunda modernidade” (nas diferentes formas como UlrichBeck se refere à era contemporânea). Não são fornecidos “lugares” para a“reacomodação”, e os lugares que podem ser postulados e perseguidosmostram-se frágeis e freqüentemente desaparecem antes que o trabalho de“reacomodação”sejacompletado.Oquehásão“cadeirasmusicais”deváriostamanhos e estilos, assim como em números e posições cambiantes, quefazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e nãoprometemnema“realização”,nemodescanso,nemasatisfaçãode“chegar”,dealcançarodestinofinal,quandosepodedesarmar-se,relaxaredeixardesepreocupar. Não há perspectiva de “reacomodação” no final do caminhotomadopelosindivíduos(agoracronicamente)desacomodados.

Não se engane: agora, como antes— tanto no estágio leve e fluido damodernidade quanto no sólido e pesado —, a individualização é umafatalidade, nãoumaescolha.Na terrada liberdade individual de escolher, aopçãode escapar à individualização ede se recusar a participar do jogodaindividualizaçãoestádecididamenteforadajogada.Aautocontençãoeaauto-suficiênciadoindivíduopodemseroutrailusão:quehomensemulheresnãotenhamnadaaqueculparporsuasfrustraçõeseproblemasnãoprecisaagora

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significar, não mais que no passado, que possam se proteger contra afrustração utilizando suas próprias estratégias, ou que escapem de seusproblemaspuxando-se,comooBarãodeMunchausen,pelasprópriasbotas.E, no entanto, se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foramsuficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; seficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por umaentrevista,ouporquenãoseesforçaramosuficienteparaencontrar trabalhoouporquesão,puraesimplesmente,avessosaotrabalho;senãoestãosegurossobreasperspectivasdecarreirae seagoniamsobreo futuro,éporquenãosãosuficientementebonsemfazeramigoseinfluenciarpessoasedeixaramdeaprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e daimpressãoquecausam.Istoé,emtodocaso,oquelheséditohoje,eaquiloemquepassaramaacreditar,demodoqueagorasecomportamcomoseessafosseaverdade.ComoBeckadequadaepungentementediz,“amaneiracomose vive torna-se uma solução biográfica das contradições sistêmicas”.10Riscosecontradiçõescontinuamasersocialmenteproduzidos;sãoapenasodevereanecessidadedeenfrentá-losqueestãosendoindividualizados.

Para resumir: o abismo entre a individualidade como fatalidade e aindividualidade como capacidade realista e prática de autoafirmação estáaumentando.(Melhorserafastadoda“individualidadeporatribuição”,como“individuação”:otermoescolhidoporBeckparadistinguiroindivíduoauto-sustentadoeauto-impulsionadodaquelequenãotemescolhasenãoadeagir,ainda que contrafactualmente, como se a individualização tivesse sidoalcançada). Saltar sobre esse abismonãoé— isso é crucial—parte dessacapacidade.

Acapacidadeauto-assertivadehomensemulheresindividualizadosdeixaa desejar, como regra, em relação ao que a genuína autoconstituiçãorequereria.ComoobservouLeoStrauss,ooutroladodaliberdadeilimitadaéainsignificânciadaescolha,cadaladocondicionandoooutro:porquecuidarde proibir o que será, de qualquer modo, de pouca conseqüência? Umobservadorcínicodiriaquealiberdadechegaquandonãofazmaisdiferença.Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdadepreparadonocaldeirãoda individualização;essa impotênciaé sentidacomoaindamais odiosa, frustrante e perturbadora emvista do aumento de poderqueseesperavaquealiberdadetrouxesse.

Quemsabenãoseriaumremédiomanter-se,comonopassado,ombroaombro e marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tãofrágeiseimpotentesisoladamente,fossemcondensadosemposiçõeseaçõescoletivas, poderíamos realizar em conjunto o que ninguém poderia realizarsozinho? Quem sabe… O problema é, porém, que essa convergência econdensaçãodasqueixas individuaiseminteressescompartilhados,edepois

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em ação conjunta, é uma tarefa assustadora, dado que as aflições maiscomunsdos“indivíduosporfatalidade”nosdiasdehojesãonão-aditivas,nãopodemser“somadas”numa“causacomum”.Podemserpostas ladoa lado,masnãosefundirão.Pode-sedizerquedesdeocomeçosãomoldadasdetalmaneira que lhes faltam interfaces para combinar-se comos problemas dasdemaispessoas.

Os problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais popularesprogramasde entrevistas insistememdemonstrar sua semelhança, enquantomartelam amensagemde que sua semelhançamais importante consiste emquesãoenfrentadosporcontaprópriapelosqueossofrem),masnãoformamuma “totalidade que é maior que a soma de suas partes” não adquiremqualquer qualidadenova, nem se tornammais fáceis demanejar por seremenfrentados,confrontadosetrabalhadosemconjunto.Aúnicavantagemqueacompanhiadeoutros sofredores pode trazer é garantir a cadaumdeles queenfrentarosproblemassolitariamenteéoque todosfazemdiariamente—eportantorenovareencorajarafatigadadecisãodecontinuarafazeromesmo.Talvez possa-se também aprender da experiência de outras pessoas a comosobreviverànovarodadade“reduçãodetamanho”(downsizing);comolidarcomcriançasquepensamquesãoadolescenteseadolescentesqueserecusama se tornar adultos; como pôr a gordura e outros “corpos estranhos”indesejáveis “para fora do sistema” como livrar-se de umvício que não dámais prazer ou de parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o queaprendemosantesdemaisnadadacompanhiadeoutroséqueoúnicoauxílioqueelapodeprestarécomosobreviveremnossasolidão irremível,equeavida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentadossolitariamente.

E assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muitosuspeitava, libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é opiorinimigodocidadão,sugeriuele.O“cidadão”éumapessoaquetendeabuscar seuprópriobem-estar atravésdobem-estardacidade—enquantooindivíduotendeasermorno,céticoouprudenteemrelaçãoà“causacomum”,ao“bemcomum”,à“boasociedade”ouà“sociedadejusta”.Qualéosentidode “interesses comuns” senão permitir que cada indivíduo satisfaça seusprópriosinteresses?Oquequerqueosindivíduosfaçamquandoseunem,epormaisbenefíciosqueseutrabalhoconjuntopossatrazer,elesoperceberãocomo limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareçaadequadoseparadamente,enãoajudarão.Asúnicasduascoisasúteisqueseespera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitoshumanos”,istoé,quepermitaquecadaumsigaseuprópriocaminho,equepermita que todos o façam “em paz” — protegendo a segurança de seuscorpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões emantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de

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estranhosconstrangedoresemaus.Com seu humor habitual e inimitável,WoodyAllen aponta asmodas e

manias dos “indivíduos por decreto” ao folhear os anúncios de imaginárioscursos de verão do tipo que os norte-americanos adorariam freqüentar. Ocursodeteoriaeconômicaincluioitem“Inflaçãoedepressão—comovestir-separacadaocasião”ocursodeéticaenvolve“Oimperativocategórico—eseis maneiras de fazê-lo funcionar a seu favor”, enquanto o prospecto deastronomiainformaque“oSol,queéfeitodegás,podeexplodiraqualquermomento, mandando nosso planeta inteiro pelos ares; os estudantes sãoinstruídossobreoqueocidadãomédiopodefazeremtalcaso”.

Emsuma:ooutroladodaindividualizaçãopareceseracorrosãoealentadesintegraçãodacidadania.JoëlRoman,co-editordeÉsprit,assinalaemseulivro recente (La démocratie des individus, 1998) que “a vigilância édegradadaàguardadosbens,enquantoo interessegeralnãoémaisqueumsindicatodeegoísmos,queenvolveemoçõescoletivaseomedodovizinho”.Romanconcitaos leitoresabuscaremuma“renovadacapacidadededecidiremconjunto”—hojenotávelporsuainexistência.

Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualizaçãoanunciaproblemasparaacidadaniaeparaapolíticafundadanacidadania,éporque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduosenchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicosocupanteslegítimoseexpulsandotudomaisdodiscursopúblico.O“público”é colonizado pelo “privado” o “interesse público” é reduzido à curiosidadesobreasvidasprivadasdefiguraspúblicaseaartedavidapúblicaéreduzidaà exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentosprivados(quantomaisíntimos,melhor).As“questõespúblicas”queresistemaessareduçãotornam-sequaseincompreensíveis.

Asperspectivasdequeosatoresindividualizadossejam“reacomodados”nocorporepublicanodoscidadãossãonebulosas.Oqueoslevaaaventurar-se no palco público não é tanto a busca de causas comuns e de meios denegociarosentidodobemcomumedosprincípiosdavidaemcomumquantoanecessidadedesesperadade“fazerpartedarede”.Compartilharintimidades,comoRichardSennettinsiste,tendeaserométodopreferido,etalvezoúnicoqueresta,de“construçãodacomunidade”.Essatécnicadeconstruçãosópodecriar “comunidades” tão frágeis e transitórias como emoções esparsas efugidias, saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempreinconclusiva de um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades eódioscompartilhados—masemcadacasocomunidades“cabide”, reuniõesmomentâneas em quemuitos indivíduos solitários penduram seus solitáriosmedosindividuais.ComodizUlrichBeck(noensaio“Sobreamortalidadedasociedadeindustrial”),

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O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu,atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de simesmoedeumasociabilidadeafetuosa,elefacilmenteseperdenaselvadoeu…Alguémque tateia na bruma de seu próprio eu não émais capaz deperceber que esse isolamento, esse “confinamento solitário do ego”, é umasentençademassa.11

Aindividualizaçãochegouparaficar; todaelaboraçãosobreosmeiosdeenfrentarseu impactosobreomodocomo levamosnossasvidasdevepartirdo reconhecimento desse fato. A individualização traz para um númerosemprecrescentedepessoasumaliberdadesemprecedentesdeexperimentar—mas (timeo danaos et dona ferentes…) traz junto a tarefa também semprecedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo que se abre entre odireitoàauto-afirmaçãoeacapacidadedecontrolarassituaçõessociaisquepodem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser aprincipalcontradiçãodamodernidadefluida—contradiçãoque,portentativae erro, reflexão crítica e experimentação corajosa, precisamos aprender amanejarcoletivamente.

Ocompromissodateoriacríticanasociedadedosindivíduos

O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a críticacompulsiva da realidade.A privatização do impulso significa a compulsivaauto-críticanascidadadesafeiçãoperpétua:serumindivíduodejuresignificanãoterninguémaquemculparpelaprópriamiséria,significanãoprocurarascausas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e nãoprocuraroutroremédiosenãotentarcommaisemaisdeterminação.

Viverdiariamentecomoriscodaauto-reprovaçãoedoautodesprezonãoé fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho — e portantodesviadosdoespaçosocialondeascontradiçõesdaexistênciaindividualsãocoletivamente produzidas —, os homens e mulheres são naturalmentetentadosareduziracomplexidadedesuasituaçãoafimdetornaremascausasdo sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não que considerem as“soluções biográficas” onerosas e embaraçosas; simplesmente não há“soluções biográficas para contradições sistêmicas” eficazes, e assim aescassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada porsoluções imaginárias. No entanto— imaginárias ou genuínas—, todas as“soluções”, para parecerem razoáveis e viáveis, devem ser acompanhadaspela “individualização”das tarefas e responsabilidades.Há, então,demandapor cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam pendurar

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coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo épropício aos bodes expiatórios — sejam eles políticos que fazem de suasvidas privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nosbairros perigosos ou “estrangeiros entre nós”. O nosso é um tempo decadeados,cercasdearamefarpado,rondadosbairrosevigilantes;etambémde jornalistas de tablóides “investigativos” que pescam conspirações parapovoar de fantasmas o espaço público funestamente vazio de atores,conspiraçõessuficientementeferozesparaliberarboapartedosmedoseódiosreprimidosemnomedenovascausasplausíveisparao“pânicomoral”.

Repito:háumgrandeecrescenteabismoentreacondiçãodeindivíduosde jure e suaschancesdese tornar indivíduosde facto— istoé,deganharcontrolesobreseusdestinosetomarasdecisõesqueemverdadedesejam.Édesse abismo que emanam os eflúviosmais venenosos que contaminam asvidas dos indivíduos contemporâneos.Esse abismonãopode ser transpostoapenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveisdentro da política-vida auto-administrada. Transpor o abismo é a tarefa daPolíticacomPmaiúsculo.Pode-sesuporqueoabismoemquestãoemergiuecresceu precisamente por causa do esvaziamento do espaço público, eparticularmentedaágora,aquelelugarintermediário,público/privado,ondeapolítica-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde os problemasprivados são traduzidos para a linguagem das questões públicas e soluçõespúblicasparaosproblemasprivadossãobuscadas,negociadaseacordadas.

Amesafoivirada,porassimdizer:atarefadateoriacríticafoiinvertida.Essa tarefa costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropasavançadas da “esfera pública”, soçobrando sob o domínio opressivo doEstado onipotente e impessoal e de seusmuitos tentáculos burocráticos ouréplicas em escalamenor. Hoje a tarefa é defender o evanescente domíniopúblico, ou, antes, reequipar e repovoar o espaço público que se esvaziarapidamente devido à deserção de ambos os lados: a retirada do “cidadãointeressado” e a fuga dopoder real para um território que, por tudoque asinstituições democráticas existentes são capazes de realizar, só pode serdescritocomoum“espaçocósmico”.

Nãoémaisverdadequeo“público”tentecolonizaro“privado”.Oquesedá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo eexpulsandooquequerquenãopossa serexpresso inteiramente, semdeixarresíduos, no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas.Repetidamente informado de que é o senhor de seu próprio destino, oindivíduonãotemrazãodeatribuir“relevânciatópica”(otermoédeAlfredSchütz) ao que quer que resista a ser engolfadono eu e trabalhado comosrecursos do eu;mas ter essa razão e agir sobre ela é precisamente amarcaregistradadocidadão.

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Paraoindivíduo,oespaçopúbliconãoémuitomaisqueumatelagiganteemqueasafliçõesprivadassãoprojetadassemcessar,semdeixaremdeserprivadasouadquiriremnovasqualidadescoletivasnoprocessodaampliação:o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidadesprivadas. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço“público”reforçadosemsuaindividualidadedejureetranqüilizadosdequeomodo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros“indivíduoscomoeles”,enquanto—tambémcomoeles—dãoseusprópriostropeçosesofremsuas(talveztransitórias)derrotasnoprocesso.

Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, dasassembléiasedosparlamentos,dosgovernoslocaisenacionais,paraalémdoalcance do controle dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redeseletrônicas.Os princípios estratégicos favoritos dos poderes existentes hojeem dia são fuga, evitação e descompromisso, e sua condição ideal é ainvisibilidade.Tentativasdepreverseusmovimentoseasconseqüênciasnão-previstasdeseusmovimentos(semfalardosesforçosparadeterou impediros mais indesejáveis entre eles) têm uma eficácia prática semelhante à da“LigaparaImpedirMudançasMeteorológicas”.

Eassimoespaçopúblicoestácadavezmaisvaziodequestõespúblicas.Eledeixadedesempenharsuaantiga funçãode lugardeencontroediálogosobreproblemasprivadosequestõespúblicas.Napontadacordaquesofreaspressões individualizantes, os indivíduos estão sendo, gradual masconsistentemente, despidos da armadura protetora da cidadania eexpropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos. Nessascircunstâncias, a perspectiva de que o indivíduo de jure venha a se tornaralgumdiaindivíduodefacto(aquelequecontrolaosrecursosindispensáveisàgenuínaautodeterminação)parececadavezmaisremota.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antestornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedadeautônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituiçãodeliberadaeperpétua,algoquesópodeserumarealizaçãocompartilhadadeseusmembros.

“Sociedade” sempre manteve uma relação ambígua com a autonomiaindividual:erasimultaneamentesuainimigaecondiçãosinequanon.Masasproporções de ameaças e oportunidades no que forçosamente continuarásendo uma relação ambivalentemudaram radicalmente no curso da históriamoderna. Embora as razões para examiná-la de perto possam não terdesaparecido, a sociedade é hoje antes de tudo a condição de que osindivíduosprecisammuito,equelhesfazfalta—emsualutavãefrustrantepara transformar seu statusde jure em genuína autonomia e capacidade deauto-afirmação.

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Estaé,nostermosmaisamplos,asituaçãoquehojesecolocaparaateoriacrítica—e,emtermosmaisgerais,paraacríticasocial.Elasereduzaunirnovamenteoqueacombinaçãodaindividualizaçãoformaleodivórcioentreopoder e apolíticapartiramempedaços.Emoutraspalavras, redesenhar erepovoar a hoje quase vazia ágora — o lugar de encontro, debate enegociaçãoentreoindivíduoeobemcomum,privadoepúblico.Seovelhoobjetivo da teoria crítica — a emancipação humana — tem qualquersignificadohoje,eleéodereconectarasduasfacesdoabismoqueseabriuentrearealidadedoindivíduodejureeasperspectivasdoindivíduodefacto.E indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaramferramentasperdidasdacidadaniasãoosúnicosconstrutoresàalturadatarefadeerigiressaponteemparticular.

Ateoriacríticarevisitada

Anecessidadedepensaréoquenosfazpensar,disseAdorno.12SuaDialéticanegativa, essa longa e tortuosa exploração dosmodos de ser humano nummundo inóspito à humanidade, acaba com essa frase contundente, mas emúltima análise vazia: ao fim de centenas de páginas, nada foi explicado,nenhummistério revelado, nenhuma segurança alcançada.O segredode serhumanopermanecetãoimpenetrávelcomonocomeçodajornada.Pensarnosfazhumanos,maséporsermoshumanosquepensamos.Opensarnãopodeser explicado; mas não precisa de explicação. O pensar não precisa serjustificado;masnãopoderiaserjustificado,aindaquetentássemos.

Essasituaçãonãoé,Adornonosdirámuitasemuitasvezes,nemumsinaldefraquezadopensamento,nemmarcadavergonhadequempensa.Talvezseja o contrário.NapenadeAdorno, a triste necessidade se transforma emprivilégio. Quanto menos um pensamento puder ser explicado em termosfamiliares, que façam sentido para os homens e mulheres imersos em suabusca diária da sobrevivência, tanto mais próximo fica dos padrões dahumanidade;quantomenospuderserjustificadoemtermosdeganhoseusostangíveis ou das etiquetas de preço afixadas a ele no supermercado ou nabolsa de valores, tantomaior seu valor humanizante. São a busca ativa dovalordemercadoeaurgênciadoconsumoimediatoqueameaçamogenuínovalordopensamento.“Nenhumpensamentoéimune”,escreveAdorno,

à comunicação, e fazê-la no lugar errado e num acordo equivocado é osuficienteparasolaparsuaverdade….Poisoisolamentointelectualinviolávelé agora a única maneira de mostrar algum grau de solidariedade…. Oobservador distante está tão envolvido quanto o participante ativo; a únicavantagem do primeiro é a visão desse envolvimento e a liberdade

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infinitesimalqueresidenoconhecimentoenquantotal.13

Ficaráclaroqueavisãoéocomeçodaliberdadeselembrarmosque“paraum sujeito que age ingenuamente … seu próprio condicionamento é não-transparente”14 e que a não-transparência do condicionamento é garantia deingenuidadeperpétua.Assimcomoopensamentonãoprecisadenadasenãode si mesmo para perpetuar-se, também a ingenuidade é auto-suficiente;enquanto não for perturbada pela visão, manterá intacto seu própriocondicionamento.

“Nãoperturbado”: emverdade, a chegadadavisãoquasenunca ébem-vinda para aqueles que se acostumaram a viver sem ela como doceperspectivadaliberdade.Ainocênciadaingenuidadefazcomqueatémesmoacondiçãomais turbulentae traiçoeirapareçafamiliare,portanto,segura,equalquer visão de seus precários andaimes é um prodígio de falta deconfiança, dúvida e insegurança que poucos receberiam esperançosamente.Pareceque,paraAdorno,essaamplarejeiçãodavisãoépositiva,emboranãoanuncieumcaminhofácil.Afaltade liberdadedo ingênuoéa liberdadedapessoaquepensa.Elatornao“isolamentoinviolável”maisfácil.“Aquelequepõe à venda algo que ninguémquer comprar representa,mesmo contra suavontade, a liberdade em relação à troca.”15 Há apenas um passo que levadessa idéia aoutra: a do exílio como condição arquetípica da liberdade emrelaçãoà troca.Osprodutosqueoexíliooferecesão taisqueninguémteriaqualquer inclinação de comprá-los. “Todo intelectual emigrado está, semexceção, mutilado”, escreveu Adorno em seu próprio exílio nos EstadosUnidos. “Ele vive num ambiente que permanecerá incompreensível”. Nãosurpreendequeeleestejaprotegidocontraoriscodeproduzirqualquercoisade valor no mercado local. Portanto, “se na Europa o gesto esotérico erafreqüentemente apenas um pretexto para o mais cego auto-interesse, oconceitodeausteridadeparece,noexílio,omaisaceitáveldossalva-vidas”16.O exílio é para o pensador o queo lar é para o ingênuo; é no exílio queodistanciamento,mododevidahabitualdapessoaquepensa,adquirevalordesobrevivência.

Ao lerem a edição dos Upanishads de Deussen, Adorno e Horkheimercomentam amargamente que os sistemas teóricos e práticos dessas pessoasquebuscamdauniãoentreaverdade,abelezaeajustiça,esses“estranhosàhistória”, “não sãomuito rigorosos e centrados; distinguem-se dos sistemasacabadosporumelementodeanarquia.Atribuemmaiorimportânciaàidéiaeaoindivíduoqueàadministraçãoeaocoletivo.Portanto,despertamódio”17.Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam a imaginação doshabitantes da caverna, o elegante ritual védico deverá superar as vagasmeditações dos Upanishads; os frios e bem-comportados estóicos deverãosubstituiros impetuososearrogantescínicos;eoabsolutamentepráticoSão

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Paulo deverá substituir o estranhamente pouco prático São João Batista. Agrande questão, porém, é se o poder emancipatório dessas idéias podesobreviver a seu sucesso mundano. A resposta de Adorno a tal questãorecendeamelancolia:“Ahistóriadasantigasreligiõeseescolas,comoadospartidoserevoluçõesmodernas,nosensinaqueopreçodasobrevivênciaéoenvolvimentoprático,atransformaçãodasidéiasemdominação”18.

Nesta última frase, o principal dilema estratégico que assombrava ofundadoremaisnotórioescritorda“escolacrítica”originalencontrasuamaisvívidaexpressão:quemquerquepenseeseaflijaestácondenadoanavegarentre o Sila do pensamento limpomas impotente e o Caribdis da tentativaeficaz mas poluída pela dominação. Tertium non datur. Nem a aposta naprática nem a recusa a ela constituem boa solução. A primeira tende,inevitavelmente,atransformar-seemdominação—comtodoseuséquitodehorrores: novas limitações à liberdade, a pragmática utilitária dos efeitostendo precedência sobre os princípios éticos das razões e a diluição esubseqüente distorção das ambições da liberdade. A segunda pode talvezsatisfazer o desejo narcisístico da pureza intocada, mas manteria opensamento ineficaz e, no limite, estéril: a filosofia, como LudwigWitgenstein observou com tristeza, deixaria tudo como era; o pensamentonascidodarevoltacontraainumanidadedacondiçãohumanafariapoucoounada para tornar mais humana essa condição. O dilema entre vitacontemplativaevitaactivaseresumeaumaescolhaentreduasperspectivasigualmente pouco atraentes. Quanto mais os valores preservados nopensamentoforemprotegidosdapoluição,menossignificativosserãoparaavidadaquelesaquemdevemservir.Quantomaioresseusefeitosnessavida,menos essa vida reformada fará lembrar os valores que induziram einspiraramareforma.

O tormento de Adorno tem uma longa história, chegando à questão dePlatão sobre a sabedoria e a possibilidade do “retorno à caverna”. Essaquestão surgiu a partir da invocação de Platão aos filósofos para queabandonassem a caverna escura do quotidiano e—emnomeda pureza dopensamento — recusassem qualquer intercâmbio com os habitantes dacavernaenquantodurassesuajornadanoiluminadomundoexteriordasidéiasclaras e lúcidas. O problema era se, na volta, os filósofos quereriamcompartilharostroféusdajornadacomosdedentrodacavernae—casooquisessem—seosoutrososouviriamelhesdariamcrédito.Fielàsidéiasdeseu tempo, Platão esperava que o provável desencontro na comunicaçãoresultassenamortedosportadoresdasnotícias…

AversãodeAdornodoproblemadePlatãotomouformanomundopós-iluminista,quandoqueimarheregesedarcicutaaosarautosdeumavidamaisnobre estavam definitivamente fora de moda. Nesse novo mundo, os

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habitantes da caverna, reencarnados como Bürger, não exibiam mais oentusiasmopela verdade e pelos valoresmais altos dos originais dePlatão;esperava-sequeopusessemfirmeeferozresistênciaaumamensagemfadadaaperturbaratranqüilidadedesuarotinadiária.Fielàsnovasidéias,porém,oresultado da ruptura na comunicação aparecia de forma diferente. A uniãoentre conhecimento e poder,mera fantasia nos tempos de Platão, tornou-seum postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmaçãocomum e diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderiamorrer, a verdade tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais sepoderia matar. (Foi um pouco das duas coisas todo o tempo, mas asproporções na mistura mudaram drasticamente). Era portanto natural erazoávelesperar,nostemposdeAdorno,queosrejeitadosapóstolosdasboasnotíciasrecorressemàforçasemprequepudessem;ebuscassemadominaçãoparaquebrara resistênciaecompelir, impelirou subornar seusopositoresaseguirarotaquerelutavamaencetar.Aovelhodilema—comoencontraraspalavrasadequadasaosouvidosnão-iniciadossemcomprometeraessênciadamensagem; como expressar a verdade numa forma fácil de compreender esuficientementeatraenteparaquesuacompreensãopudesseserdesejadasemdeturpar ou diluir seu conteúdo—, a esse dilema veio somar-se uma novadificuldade, particularmente dura e angustiante no caso de umamensagemcom ambições emancipadoras e libertadoras: como evitar, ou ao menoslimitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora comoprincipalveículoportadordamensagemaosrecalcitranteseindiferentes?Asduasangústiasseentrelaçam,àsvezesse fundem—comonaáspera,aindaqueinconclusiva,disputaentreLeoStrausseAlexandreKojève.

“A filosofia”, insisteStrauss, é a busca da “ordemeterna e imutável naqual a história acontece e que permanece inalterada pela história”.Oque éeterno e imutável é também universal; embora a aceitação universal dessaordem eterna e imutável possa ser atingida somente com base noconhecimentogenuínoounasabedoria—nãoatravésdareconciliaçãooudoacordoentreopiniões.

Oacordofundadonaopiniãonãopodenuncasetornarumacordouniversal.Toda fé que pretende a universalidade, isto é, a aceitação universal,necessariamente provoca uma contra-fé com amesma pretensão.A difusãoentreosnão-iniciadosdoconhecimentogenuínoadquiridopelos sábiosnãoserviria para nada, pois pela difusão ou diluição o conhecimentoinevitavelmentesetransformaemopinião,preconceitooumeracrença.

TantoparaStrauss quantoparaKojève, essa diferença entre o saber e a“meracrença”,bemcomoadificuldadedecomunicaçãoentreelas,apontavaimediata e automaticamente para a questão do poder e da política.Os dois

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polemistas viam a incompatibilidade entre os dois tipos de conhecimentocomo a questão da direção, da coerção e do engajamento político dos“portadores do saber”, como o problema da relação entre a filosofia e oEstado,consideradoolugarefocoporexcelênciadapolítica.Oproblemasereduzaumaescolhaentreoenvolvimentopolíticoeoradicaldistanciamentoda prática política, e ao cálculo cuidadoso dos ganhos, riscos e prejuízospotenciaisdecadaumadessasposições.

Dadoqueaordemeterna,aquestãocomqueosfilósofosverdadeiramenteseocupam,não é “afetadapela história”, dequemaneira o comérciopode,comosadministradoresdahistória,ospoderesdomomento,auxiliaracausada filosofia? Para Strauss, tratava-se de uma questão retórica, pois “não hácomo”seriaaúnicarespostarazoáveleauto-evidente.Averdadedafilosofiapode, de fato, não ser afetada pela história, respondiaKojève,mas daí nãodecorre que se possa evitar a história: o objetivo dessa verdade é entrar nahistória para reformá-la — e assim a tarefa prática do comércio com osdetentores do poder, os guardiões que vigiam essa entrada e controlam otráfego,permanececomoparteintegranteevitaldosafazeresdafilosofia.Ahistóriaéarealizaçãodafilosofia;averdadedafilosofiaencontraseutesteeconfirmação últimos em sua aceitação e reconhecimento, tornando-se, naspalavras dos filósofos, a carne da polis. O reconhecimento é o telos everificaçãoúltimadafilosofia;eassimoobjetodaaçãodosfilósofosnãosãoapenasosprópriosfilósofos,seupensamento,o“fazer interno”dofilosofar,masomundoenquantotal,e,porfim,aharmoniaentreosdois,ou,antes,orefazeromundoàimagemdaverdadecujosguardiõessãoosfilósofos.“Nãoterintercâmbio”comapolíticanãoé,portanto,umaresposta;cheiraatraiçãonãosóao“mundoqueaíestá”,mastambémàprópriafilosofia.

Nãohácomoevitaroproblemada“pontepolítica”paraomundo.Ecomoessa ponte não pode senão ser controlada pelos servidores do Estado, aquestãodecomousá-losparasuavizarapassagemdafilosofiaaomundonãodesapareceráeterádeserenfrentada.Etampoucohácomoevitarofatodurode que—pelomenos no começo, enquanto a distância entre a verdade dafilosofiaearealidadedomundonãoforpreenchida—oEstadosejatirânico.A tirania (Kojève é inflexível quanto à possibilidade de essa forma degovernoserdefinidaemtermosmoralmenteneutros)ocorrequando

uma fração dos cidadãos (pouco importa que sejam minoria ou maioria)impõe a todos os outros cidadãos suas idéias e ações, que são guiadas poruma autoridade que essa fração reconhece espontaneamente, mas que nãoconseguiufazerqueosoutrosreconheçam;equandoessafraçãoasimpõeaosoutros sem “chegar a acordo” com eles, sem tentar chegar a algum“compromisso” com eles e sem considerar suas idéias e desejos(determinados por outra autoridade, que esses outros reconhecem

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espontaneamente).

Comoéessadesconsideraçãodasidéiasedesejosdos“outros”quefazatirania tirânica,a tarefaconsisteemromperacorrentecismogenética (comodiriaGregoryBateson)danegligênciaarrogante,deum lado, edodissensomudo,deoutro,eencontraralgumterrenoemqueambospossamseencontrarpara uma conversação frutífera. Esse terreno (e aqui Kojève e Straussconcordam)sópodeseroferecidopelaverdadedafilosofia,queseocupa—necessariamente— das coisas eternas e válidas absoluta e universalmente.(Todososoutrosterrenos,oferecidospelas“merascrenças”,sópoderãoservircomo campos de batalha, e nunca como salas de conferência). Kojèveacreditava que isso é possível, mas Strauss não: “Não acredito napossibilidadedeumaconversaçãoentreSócrateseopovo”.Quemquerquese envolva em tal conversação não é um filósofo, mas “algum tipo deretórico”preocupadonão tantoemconstruirocaminhopeloqualaverdadepode chegar ao povo quanto em obter a obediência ao que quer que ospoderes precisem ou desejem estabelecer. Os filósofos pouco podem fazeralémdeaconselharosretóricos,eaprobabilidadedeseusucessoestáfadadaasermínima.Aschancesdeafilosofiaeasociedadeviremasereconciliareasetornarumasósãomínimas.19

StrausseKojèveconcordavamqueoeloentreosvaloresuniversaisearealidadedavidasocialhistoricamenteconstituídaéapolítica;escrevendodedentrodamodernidadepesada,tinhamcomopontopacíficoqueapolíticaseimbricanasaçõesdoEstado.Eassimseseguiasemmaioresdiscussõesqueoproblemadiantedosfilósofoseraodeumasimplesescolhaentre“pegaroulargar”: seja utilizando esse elo, a despeito de todos os riscos que umatentativa de utilizá-lo deve necessariamente envolver, seja (em nome dapureza de pensamento)mantendo-se longe dele e cuidandoda distância emrelação ao poder e seus detentores.A escolha se dava, em outras palavras,entreaverdadefadadaàimpotênciaeapotênciafadadaaserinfielàverdade.

Amodernidadepesadaera,afinal,aépocademoldararealidadecomonaarquitetura ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razãodeveriaser“construída”sobestritocontroledequalidadeeconformerígidasregrasdeprocedimento,emaisque tudoprojetadaantesdaconstrução.Erauma época de pranchetas e projetos— não tanto para mapear o territóriosocialcomoparaerguertalterritórioatéoníveldelucidezelógicadequesóosmapassãocapazes.Eraumaépocaquepretendiaimporarazãoàrealidadepor decreto, remanejar as estruturas demodo a estimular o comportamentoracionaleaelevaroscustosdetodocomportamentocontrárioàrazãotãoaltoque os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e asagências coercitivas não era, obviamente, umaopção.Aquestão da relaçãocomoEstado,fossecooperativaoucontestadora,eraseudilemadeformação;

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defato,umaquestãodevidaoumorte.

Acríticadapolítica-vida

Como o Estado nãomais promete ou deseja agir como plenipotenciário darazão e mestre-de-obras da sociedade racional; como as pranchetas nosescritóriosdaboasociedadeestãoemprocessodesereliminadas;ecomoavariadamultidão de conselheiros, intérpretes e assessores assume cada vezmaisastarefaspreviamentereservadasaoslegisladores,nãoédesurpreenderqueoscríticosquedesejavamserinstrumentaisnaatividadedeemancipaçãolamentemsuaprivação.Nãoapenasosupostoveículo—e,simultaneamente,o alvo da luta pela libertação — está se esfacelando; o dilema central,constitutivo, da teoria crítica, o próprio eixo em torno do qual girava odiscurso crítico, dificilmente sobreviverá ao desaparecimento do veículo.Odiscursocrítico,comomuitospodemsentir,estáapontodeficarsemobjeto.E muitos podem agarrar-se — e de fato o fazem — desesperadamente àestratégiaortodoxadacríticaapenasparaconfirmar,inadvertidamente,queodiscursocarece,defato,deumobjetotangível,àmedidaqueosdiagnósticossãocadavezmaisdesligadosdasrealidadescorrenteseaspropostassãocadavez mais nebulosas; muitos insistem em travar velhas batalhas em queganham competência e preferem isso a umamudança do campo de batalhafamiliareconfiávelparaumnovoterritórioaindanãointeiramenteexplorado,demuitasmaneirasumaterraincognita.

As perspectivas para uma teoria crítica (para não falar da demanda porela)nãoestão,porém,amarradasàsformasdevidahojeemrecuodamesmamaneira que a autoconsciência dos críticos está amarrada às formas,habilidadeseprogramasdesenvolvidosnocursodoenfrentamentocomelas.Foisóosentidoatribuídoàemancipaçãosobcondiçõespassadasenãomaispresentes que ficou obsoleto— não a tarefa da emancipação em si. Outracoisaestáagoraemjogo.Háumanovaagendapúblicadeemancipaçãoaindaàesperadeserocupadapelateoriacrítica.Essanovaagendapública,aindaàespera de sua política pública crítica, está emergindo junto com a versão“liquefeita” da condição humanamoderna— e em particular na esteira da“individualização”dastarefasdavidaquederivamdessacondição.

Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre aindividualidadedejureedefacto,ouentrea“liberdadenegativa”legalmenteimpostaeaausente—ou,pelomenos,longedeuniversalmentedisponível—“liberdade positiva”, isto é, a genuine potência da auto-afirmação. A novacondição não é muito diferente daquela que, segundo a Bíblia, levou àrebeliãodosisraelitaseaoêxododoEgito.“Ofaraóordenouaosinspetoreseseus capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada para

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fazer tijolos…‘Queelesvãoecolhamsuaprópriapalha,mascuidemparaque atinjam a mesma quota de tijolos de antes.’” Quando os capatazesargumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que apalhasejadevidamentefornecidaeacusaramofaraódeordenaroimpossível,eleinverteuaresponsabilidadepelofracasso:“Vocêssãopreguiçosos,vocêssão preguiçosos.”Hoje não há faraós dando ordens aos capatazes para queaçoitem os displicentes. (Até o açoite se tornou um trabalho “faça-você-mesmo”efoisubstituídopelaauto-flagelação).Masatarefadeprovidenciarapalha foi igualmenteabandonadapelasautoridadesdomomento,quedizemaosprodutoresde tijolosquesósuapreguiçaos impedede fazero trabalhoadequadamente—eacimadetudoqueofaçamparasuaprópriasatisfação.

Otrabalhodequeoshomensestãoencarregadoshojeémuitosemelhanteao que era desde o começo dos tempos modernos: a autoconstituir a vidaindividual e tecer e manter as redes de laços com outros indivíduos emprocessodeautoconstituição.Essetrabalhonuncafoiquestionadopelateoriacrítica.Oqueestesteóricoscriticavameraasinceridadeerapidezcomqueosindivíduos eram libertados para realizar o trabalho que lhes tinha sidoatribuído.Ateoriacríticaacusavadeduplicidadeouineficiênciaaquelesquedeveriam ter providenciado as condições adequadas para a auto-afirmação:havialimitaçõesdemaisàliberdadedeescolhaehaviaatendênciatotalitáriaintrínsecaaomodocomoasociedademodernaforaestruturadaeconduzida—tendênciaessaqueameaçavaaboliraliberdadedeumavez,substituindoaliberdade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub-repticiamenteintroduzida.

O destino do agente livre está cheio de antinomias difíceis de avaliar eaindamaisdifíceisderesolver.Consideremos,porexemplo,acontradiçãodasidentidades autoconstituídas que devem ser suficientemente sólidas paraseremreconhecidascomotaiseaomesmotempoflexíveisosuficienteparanão impedir a liberdade de movimentos futuros em circunstânciasconstantemente cambiantes e voláteis. Ou a precariedade das parceriashumanas,agorasobrecarregadasdeexpectativasmaioresquenunca,masmalinstitucionalizadas (se institucionalizadas), e portanto menos resistentes àcarga adicional. Ou o triste compromisso da responsabilidade repossuída,perigosamente à deriva entre as rochas da indiferença e da coerção. Ou afragilidadedetodaaçãocomum,quetemcomoapoioapenasoentusiasmoeadedicaçãodosatores,masqueprecisadealgomaisdurávelparamantersuaintegridade durante o tempo que leva para alcançar seus propósitos. Ou anotóriadificuldadedegeneralizarasexperiências,vividascomointeiramentepessoais e subjetivas, em problemas que possam ser inscritos na agendapública e tornar-se questões de política pública. Esses são apenas algunsexemplos,queoferecemumavisãojustadotipodedesafiodiantedoscríticosquedesejamreconectarsuadisciplinaàagendadapolíticapública.

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Comboasrazõesoscríticossuspeitavamdeque,naversãoiluministado“déspota esclarecido”, tal como incorporada nas práticas políticas damodernidade, o que conta é o resultado — a sociedade racionalmenteestruturadaedirigida; suspeitavamdequeasvontades,desejosepropósitosindividuais, a vis formandi e a libido formandi individuais, a propensãopoiética a criar novas significações independentes de funções, usos epropósitos, não erammais que recursos, oumesmoobstáculos no caminho.Contraessaprática,ousuasupostatendência,oscríticosformularamavisãodeumasociedadequeserebelacontraessaperspectiva,deumasociedadeemqueprecisamenteessasvontades,desejosepropósitos,esuasatisfação,sãooquecontaedeveserhonrado—visãodeumasociedadeque,porisso,militacontra todos os esquemas de perfeição impostos aos desejos (ou que osdesconsideram) dos homens e mulheres que são incluídos sob seu nomegenérico. A única “totalidade” reconhecida e aceitável pela maioria dosfilósofosdaescolacríticaeraaquepoderiaemergirdasaçõesdeindivíduoscriativoselivresparaescolher.

Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder erasuspeito,via-seo inimigoapenasno ladodopoder, eomesmo inimigoeraacusado de todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade(inclusivepelafaltadevalordastropasquedeveriamenfrentarvalentementesuasguerrasdelibertação,comonocasododebateda“culturademassas”).Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado“público”,sempreprontoa invadirecolonizaro“privado”,o“subjetivo”,o“individual”.Muitomenosatenção—quasenenhuma—foidadaaosperigosque se ocultavam no estreitamento e esvaziamento do espaço público e àpossibilidadedainvasãoinversa:acolonizaçãodaesferapúblicapelaprivada.Enoentantoessaeventualidadesubestimadaesubdiscutidasetornouhojeoprincipalobstáculoàemancipação,queemseuestágiopresentesópodeserdescrita como a tarefa de transformar a autonomia individualde jure numaautonomiadefacto.

O poder político implica uma liberdade individual incompleta,mas suaretirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdadelegalmente vitoriosa.A história da emancipaçãomoderna desloca-se de umconfronto com o primeiro perigo para um confronto com o segundo. ParautilizarostermosdeIsaiahBerlin,pode-sedizerque,depoisdalutavitoriosapela“liberdadenegativa”, asalavancasnecessáriaspara transformá-lanuma“liberdadepositiva”—istoé,aliberdadeparaestabeleceragamadeopçõesea agenda para a escolha entre elas— quebraram. O poder político perdeumuitodesuaterríveleameaçadorapotênciaopressiva—mastambémperdeuboa parte de sua potência capacitadora. A guerra pela emancipação nãoacabou.Mas,paraprogredir,deveagoraressuscitaroquenamaiorpartedesuahistórialutoupordestruireafastardocaminho.Averdadeiralibertação

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requerhojemais, enãomenos,da“esferapública”edo“poderpúblico”.Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra oinvasor privado— ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas paraviabilizaraliberdadeindividual.

Comosempre,o trabalhodopensamentocríticoé trazerà luzosmuitosobstáculos que se amontoamno caminhoda emancipação.Dada a naturezadas tarefas de hoje, os principais obstáculos que devem ser examinadosurgentemente estão ligados às crescentes dificuldades de traduzir osproblemas privados em questões públicas, de condensar problemasintrinsecamenteprivadoseminteressespúblicosquesãomaioresqueasomade seus ingredientes individuais, de recoletivizar as utopias privatizadas da“política-vida” de tal modo que possam assumir novamente a forma dasvisõesdasociedade“boa”e“justa”.Quandoapolíticapúblicaabandonasuasfunções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelosindivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de factopassam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esferapública de toda substância que não seja a do lugar em que as afliçõesindividuais são confessadas e expostas publicamente. Do mesmo modo, aindividualizaçãopareceserumaviademãoúnica,etambémparecedestruir,aoavançar, todasas ferramentasquepoderiamserusadaspara implementarseusobjetivosdeoutrora.

Essatarefacolocaateoriacríticacaraacaracomumnovodestinatário.Oespectro do Grande Irmão deixou de perambular pelos sótãos e porões domundo quando o déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar erecepção. Em suas novas versões, moderno-líquidas e drasticamenteencolhidas,ambosencontramabrigonodomíniodiminuto,emminiatura,dapolíticavida pessoal; é lá que as ameaças e oportunidades da autonomiaindividual— essa autonomia que não se pode realizar exceto na sociedadeautônoma—devem ser procuradas e localizadas.Abuscadeumavida emcomumalternativadevecomeçarpeloexamedasalternativasdepolítica-vida.

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2•INDIVIDUALIDADE

Agora,aqui, veja, é preciso correr omáximo que você puder parapermanecernomesmolugar.Sequiser iraalgumoutrolugar,devecorrerpelomenosduasvezesmaisdepressadoqueisso!

LewisCarroll

Édifícil lembrar, e aindamais difícil compreender, que há nãomais de 50anos a disputa sobre a essência dos prognósticos populares, sobre o que sedeveriatemeresobreostiposdehorroresqueofuturoestavafadadoatrazersenãofosseparadoatemposetravavaentreoBraveNewWorlddeAldousHuxleyeo1984deGeorgeOrwell.

A disputa certamente era legítima e honesta, pois os mundos tãovividamente retratados pelos dois visionários distópicos eram tão diferentesquantoáguaevinho.OdeOrwelleraummundodemisériaedestituição,deescassezenecessidade;odeHuxleyeraumaterradeopulênciaedevassidão,deabundânciaesaciedade.Comoeradeseesperar,oshabitantesdomundodeOrwelleramtristeseassustados;osdeHuxley,despreocupadosealegres.Havia muitas outras diferenças não menos notáveis: os dois mundos seopunhamemquasetodososdetalhes.

No entanto, havia alguma coisa que unia as duas visões. (Sem isso, asduas distopias não dialogariam, e muito menos se oporiam.) O que elascompartilhavameraopressentimentodeummundoestritamentecontrolado;da liberdade individual não apenas reduzida a nada ou quase nada, masagudamente rejeitada por pessoas treinadas a obedecer a ordens e seguirrotinasestabelecidas;deumapequenaelitequemanejavatodososcordões—de tal modo que o resto da humanidade poderia passar toda sua vidamovendo-secomomarionetes;deummundodivididoentreadministradoreseadministrados,projetistaseseguidoresdeprojetos—osprimeirosguardandoosprojetosgrudadosaopeitoeosoutrosnemquerendonemsendocapazesdeespiar os desenhos para captar seu sentido; de um mundo que fazia dequalqueralternativaalgoinimaginável.

O fato de o futuro trazer menos liberdade, mais controle, vigilância eopressãonãoestavaemdiscussão.OrwelleHuxleynãodiscordavamquantoaodestinodomundo;elesapenasviamdemododiferenteocaminhoquenoslevariaatélásecontinuássemossuficientementeignorantes,obtusos,plácidosouindolentesparapermitirqueascoisasseguissemsuarotanatural.

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Emcarta de 1769 a SirHoraceMann,HoraceWalpole escrevia que “omundo é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os quesentem”.Masossentidosde“cômico”e“trágico”mudamaolongodotempo,equandoOrwelleHuxleyesboçaramoscontornosdotrágicofuturo,ambossentiramqueatragédiadomundoeraseuostensivoeincontrolávelprogressorumoàseparaçãoentreoscadavezmaispoderososeremotoscontroladoreseoresto,cadavezmaisdestituídodepoderecontrolado.Avisãodepesadeloqueassombravaosdoisescritoreseraadehomensemulheresquenãomaiscontrolavamsuasprópriasvidas.Demodosemelhanteapensadoresdeoutrostempos, Platão e Aristóteles, que não eram capazes de imaginar umasociedade boa oumá sem escravos,Huxley eOrwell não podiam conceberuma sociedade, fosse ela feliz ou infeliz, sem administradores, projetistas esupervisoresqueemconjuntoescreviamoroteiroqueoutrosdeveriamseguir,ordenavamodesempenho,punhamasfalasnabocadosatoresedemitiamouencarceravamquemquerqueimprovisasseseusprópriostextos.Nãopodiamimaginarummundosemtorresemesasdecontrole.Osmedosdeseutempo,tantoquantosuasesperançasesonhos,giravamemtornodeRepartiçõesdeComandoSupremo.

Capitalismo—pesadoeleve

Nigel Thrift teria talvez classificado as histórias deOrwell eHuxley como“discurso de Joshua” e não como “discurso do Gênesis”.1(Discursos, dizThrift,são“metalinguagensqueensinamaspessoasavivercomopessoas”.)“Enquanto no discurso de Joshua a ordem é a regra e a desordem, umaexceção, no discurso do Gênesis a desordem é a regra e a ordem, umaexceção.”NodiscursodeJoshua,omundo(aquiThriftcitaKenethJowitt)é“centralmente organizado, rigidamente delimitado e histericamentepreocupadocomfronteirasimpenetráveis”.

“Ordem”, permitam-me explicar, significa monotonia, regularidade,repetiçãoeprevisibilidade;dizemosqueumasituaçãoestá“emordem”seesomentesealgunseventostêmmaiorprobabilidadedeacontecerdoquesuasalternativas, enquanto outros eventos são altamente improváveis ou estãointeiramenteforadequestão.Issosignificaqueemalgumlugaralguém(umSer Supremo pessoal ou impessoal) deve interferir nas probabilidades,manipulá-las e viciar os dados, garantindo que os eventos não ocorramaleatoriamente.

O mundo ordeiro do discurso de Joshua é um mundo rigidamentecontrolado.Tudonessemundoserveaalgumpropósito,mesmoquenãosejaclaro(porenquanto,paraalguns,masparasempre,paraamaioria)qualéessepropósito.Essemundonãotemespaçoparaoquenãotiverusooupropósito.

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O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse mundo como propósitolegítimo. Para ser reconhecido, deve servir àmanutenção e perpetuação dotodoordenado.Éaprópriaordem,esomenteela,quenãorequerlegitimação;ela é, por assim dizer, “seu próprio propósito”. Ela simplesmente é, e nãoadiantadesejarquenãofosse:issoétudooqueprecisamosoupodemossabersobre ela. Talvez exista porque Deus a fez existir em Seu ato de CriaçãoDivina; ou porque criaturas humanas, mas à imagem de Deus, a fizeramexistir em seu trabalho continuado de projetar, construir e administrar. Emnossostemposmodernos,comDeusemprolongadoafastamento,atarefadeprojetareserviràordemcabeaossereshumanos.

ComoKarlMarxdescobriu,asidéiasdasclassesdominantestendemaseras idéias dominantes (proposição que, com nossa nova compreensão dalinguagemedeseu funcionamento,poderíamosconsiderarpleonástica).Porpelomenos200anosforamosadministradoresdasempresascapitalistasquedominaramomundo—istoé,separaramofactíveldoimplausível,oracionaldo irracional,osensatodo insano,edeoutras formasaindadeterminaramecircunscreveram a gama de alternativas dentro das quais confinar astrajetóriasdavidahumana.Era,portanto,suavisãodomundo,emconjuntocom o próprio mundo, formado e reformado à imagem dessa visão, quealimentavaedavasubstânciaaodiscursodominante.

Até recentemente eraodiscursode Joshua; agora, e cadavezmais, é odiscursodoGênesis.MasaocontráriodoqueThriftdáaentender,oencontrodehoje,dentrodomesmodiscurso,deempresaseacademia,dosquefazemeosqueinterpretamomundo,nãoénovidade;nemumaqualidaderestritaaonovocapitalismo(“mole”,comoochamaThrift)ávidodeconhecimento.Poralguns séculos, a academia não teve outro mundo para envolver em suastramasconceituais,sobreoqualrefletir,paradescrevereinterpretar,quenãoaquele sedimentado pela visão e prática capitalistas. Durante esse período,empresaseacademiaestavamempermanentecontato,mesmoque—porsuaincapacidade de conversar entre si— tenham dado a impressão demanterdistância. E o lugar de encontro tem sido sempre, como hoje, indicado efornecidopelaprimeira.

OmundoquesustentavaodiscursodeJoshuaelhedavacredibilidadeerao mundo fordista. (O termo “fordismo” foi utilizado pela primeira vez hámuitotempoporAntonioGramscieHenrideMan,mas,fielaoshábitosdacorujadeMinervadeHegel,foiredescobertoetrazidoaoprimeiroplanoeaouso comum apenas quando o sol que brilhava sobre as práticas fordistascomeçou a se pôr.)Nadescrição retrospectiva deAlainLipietz, o fordismofoi, em seu apogeu, um modelo de industrialização, de acumulação e deregulação:

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[uma]combinaçãodeformasdeajustedasexpectativasedocomportamentocontraditóriodosagentes individuaisaosprincípioscoletivosdoregimedeacumulação…O paradigma industrial incluía o princípio tailorista da racionalização,

juntamentecomaconstantemecanização.Essa“racionalização”baseava-sena separação dos aspectos intelectual e manual do trabalho … oconhecimento social sistematizado a partir de cima e incorporado aomaquinário pelos projetistas. Quando Taylor e os engenheiros tailoristasintroduziram esses princípios no começo do século XX, seu objetivoexplícitoeraforçarocontroledaadministraçãosobreostrabalhadores.2

Mas o modelo fordista era mais que isso, um local epistemológico deconstruçãosobreoqualseerigiatodaumavisãodemundoeapartirdaqualele se sobrepunha majestaticamente à totalidade da experiência vivida. Omodo como os seres humanos entendem o mundo tende a ser semprepraxeomórfico: é sempre determinado pelo know-how do dia, pelo que aspessoas podem fazer e pelo modo como usualmente o fazem. A fábricafordista—comameticulosaseparaçãoentreprojetoeexecução,iniciativaeatendimento a comandos, liberdade e obediência, invenção e determinação,comoestreitoentrelaçamentodosopostosdentrodecadaumadasoposiçõesbináriaseasuavetransmissãodecomandodoprimeiroelementodecadaparaosegundo—foisemdúvidaamaiorrealizaçãoatéhojedaengenhariasocialorientada pela ordem. Não surpreende que tenha estabelecido o quadrometafóricodereferência(mesmoqueareferêncianãofossecitada)paratodososque tentavamcompreender comoa realidadehumanaopera em todososseus níveis — tanto o societal-global quanto o da vida individual. Suapresençadissimuladaou aberta é fácil dedetectar emvisões aparentementetão distantes como o “sistema social” parsoniano, que se auto-reproduz e édirigidopelo“conjuntocentraldevalores”, eo“projetodevida” sartreano,que serve comoprojeto-guiaparao esforçode construçãoda identidadedoeu.

De fato, parecia não existir alternativa à fábrica fordista, nem algumobstáculo sério a impedir a expansão do modelo fordista até os maisrecônditosrecessosefissurasdasociedade.OdebateentreOrwelleHuxley,assimcomooconfrontoentre socialismoecapitalismo, foi, a esse respeito,não mais que uma desavença em família. O comunismo, afinal, desejavaapenas livrar o modelo fordista de suas poluições presentes (nãoimperfeições)—domalignocaosgeradopelomercadoqueseinterpunhanocaminhodaúltimaetotalderrotadosacidentesedacontingênciaequeassimlimitava o planejamento racional. Nas palavras de Lênin, a visão dosocialismoseriaefetivadaseoscomunistasconseguissem“combinaropodersoviéticoeaorganizaçãosoviéticadaadministraçãocomoúltimoprogresso

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do capitalismo”,3 com a “organização soviética da administração”significando, para Lênin, permitir que o “último progresso do capitalismo”(isto é, como ele insistia em repetir, a “organização científica do trabalho”)transbordassededentrodosmurosda fábricaparapenetrar e saturar avidasocialcomoumtodo.

O fordismo era a autoconsciência da sociedade moderna em sua fase“pesada”,“volumosa”,ou“imóvel”e“enraizada”,“sólida”.Nesseestágiodesuahistóriaconjunta,capital,administraçãoetrabalhoestavam,paraobemeparaomal,condenadosaficarjuntospormuitotempo,talvezparasempre—amarradospelacombinaçãode fábricasenormes,maquinariapesadae forçade trabalho maciça. Para sobreviver, e principalmente para agir de modoeficiente,tinhamque“cavar”,desenharfronteirasemarcá-lascomtrincheirasearamefarpado,aomesmotempoemquefaziamafortalezasuficientementegrande para abrigar todo o necessário para resistir a um cerco prolongado,talvez sem perspectivas. O capitalismo pesado era obcecado por volume etamanho, e, por isso, também por fronteiras, fazendo-as firmes eimpenetráveis. O gênio de Henry Ford foi descobrir o modo demanter osdefensoresdesuafortalezaindustrialdentrodosmuros—paraguardá-losdatentaçãodedesertaroumudardelado.ComodisseoeconomistadaSorbonneDanielCohen:

Henry Ford decidiu um dia “dobrar” os salários de seus trabalhadores. Arazão (publicamente) declarada, a célebre frase “quero que meustrabalhadores sejam pagos suficientemente bempara comprarmeus carros”foi, obviamente, uma brincadeira.As compras dos trabalhadores eram umafração ínfimadesuasvendas,masossaláriospesavammuitomaisemseuscustos…A verdadeira razão para o aumento dos salários foi a formidávelrotatividade de força de trabalho que a Ford enfrentava. Ele decidiu dar oaumentoespetacularaostrabalhadoresparafixá-losàlinha…4

Acorrenteinvisívelqueprendiaostrabalhadoresaseuslugareseimpediasua mobilidade era, nas palavras de Cohen, “o coração do fordismo”. Orompimento dessa corrente foi também o divisor de águas decisivo naexperiência de vida, e se associa à decadência e extinção aceleradas domodelofordista.“QuemcomeçaumacarreiranaMicrosoft”,observaCohen,“nãosabeondeelavai terminar.ComeçarnaFordounaRenault implicava,aocontrário,aquasecertezadequeacarreiraseguiriaseucursonomesmolugar.”

Em seu estágio pesado, o capital estava tão fixado ao solo quanto ostrabalhadores que empregava. Hoje o capital viaja leve — apenas com abagagem de mão, que inclui nada mais que pasta, telefone celular ecomputadorportátil.Podesaltaremquasequalquerpontodocaminho,enão

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precisademorar-seemnenhumlugaralémdotempoquedurarsuasatisfação.O trabalho,porém,permanece tão imobilizadoquantonopassado—masolugar em que ele imaginava estar fixado de uma vez por todas perdeu suasolidezdeoutrora;buscandorochas,asâncorasencontramareiasmovediças.Algunsdoshabitantes domundo estão emmovimento; para os demais, é omundoqueserecusaaficarparado.OdiscursodeJoshuasoavazioquandoomundo,queumaveztevelegislador,árbitroecortedeapelaçãoreunidosemumasóentidade,parececadavezmaiscomumdosjogadores,escondendoascartas,preparandoarmadilhaseaguardandosuavezdeblefar.

Os passageiros do navio “Capitalismo Pesado” confiavam (nem sempresabiamente)emqueosseletosmembrosdatripulaçãocomdireitoachegaràpontedecomandoconduziriamonavioaseudestino.Ospassageirospodiamdevotar toda sua atenção a aprender e seguir as regras a eles destinadas eexibidasostensivamenteemtodasaspassagens.Sereclamavam(ouàsvezesseamotinavam),eracontraocapitão,quenãolevavaonavioaportocomasuficiente rapidez, ou por negligenciar excepcionalmente o conforto dospassageiros. Já os passageiros do avião “Capitalismo Leve” descobremhorrorizadosqueacabinedopilotoestávaziaequenãohámeiodeextrairda“caixa preta” chamada piloto automático qualquer informação sobre paraonde vai o avião, onde aterrizará, quem escolherá o aeroporto e sobre seexistemregrasquepermitamqueospassageiroscontribuamparaasegurançadachegada.

Tenhocarro,possoviajar

PodemosdizerqueorumodoseventosnomundodocapitalismoprovouseroexatoopostodoqueMaxWeberpreviaquandoescolheuaburocraciacomoprotótipoda sociedadeporvir e a retratoucomoa formapor excelênciadaação racional. Extrapolando sua visão do futuro a partir da experiênciacontemporânea do capitalismo pesado (o homem que cunhou a expressão“gaioladeferro”nãopodiaestarcientedequeo“peso”eraummeroatributotemporário do capitalismo e que outras modalidades da ordem capitalistaeramconcebíveiseestavamemgestação),Weberpreviuotriunfoiminenteda“racionalidade instrumental”: comodestinoda história humanadado comosabido, e a questão dos fins da ação humana acertada e nãomais aberta àcontestação,aspessoaspassariamaseocuparmais,talvezexclusivamente,daquestãodosmeios—ofuturoseria,porassimdizer,obcecadocomosmeios.Toda racionalização adicional, em si mesma uma conclusão antecipada,consistiriaemafiar,ajustareaperfeiçoarosmeios.Sabendoqueacapacidaderacional dos seres humanos tende a ser solapada constantemente porpropensões afetivas e outras inclinações igualmente irracionais, poder-se-ia

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suspeitardequeadisputasobreosfinsdificilmentechegariaaumfinal;masessadisputaserianofuturoexpulsadacorrenteprincipal,impulsionadapelainexorável racionalização — e deixada para os profetas e pregadores àmargemdossuperiores(edecisivos)afazeresdavida.

Webertambémsereferiuaoutrotipodeaçãoorientada,aquechamouderacional por referência a valores; mas aí se referia à procura de valores“enquantotais”e“independentedaperspectivadesucessoexterior”.Tambémdeixouclaroqueosvalores emquepensavaeramde tipoético, estéticooureligioso — isto é, pertencentes à categoria que o capitalismo modernodegradou e declarou praticamente dispensável e irrelevante, quando nãoprejudicial,paraacondutaracionalquepromovia.5PodemosapenasespecularqueanecessidadedeadicionararacionalidadeporreferênciaavaloresaseuinventáriodostiposdeaçãoocorreuaWebertardiamente,soboimpactodarevoluçãobolchevique,quepareciarefutaraconclusãodequeaquestãodosobjetivostinhasidoresolvidadeumavezportodas,eimplicava,aocontrário,queaindapoderiasurgirumasituaçãoemquealgumaspessoassemanteriamfiéisaseusideais,pormaisremotaeínfimaquefosseachancederealizá-losepormaisexorbitantequefosseocustodatentativa—eassimsedesviariamda única preocupação legítima, a saber, o cálculo dosmeios apropriados àobtençãodedeterminadosfins.

Quaisquerquesejamasaplicaçõesdoconceitodaracionalidadereferidaavaloresnoesquemaweberianodahistória,esseconceitoéinútilsequisermoscaptaraessênciadomomentohistóricopresente.Ocapitalismolevedehojenãoé“racionalpor referênciaavalores”nosentidodeWeber,aindaqueseafastedotipoidealdaordemracional-instrumental.Ocapitalismolevepareceestar a anos-luz de distância da racionalidade referida a valores no estiloweberiano;sealgumaveznahistóriaosvaloresforamabraçados“emtermosabsolutos”, isso certamente não é o que acontece hoje. O que realmenteaconteceu no curso da passagem do capitalismo pesado para o leve foi odesbaratamento dos invisíveis “politburos” capazes de “absolutizar” osvalores,dascortessupremasdestinadasapronunciarveredictossemapelaçãosobre os objetivos dignos de perseguição (as instituições indispensáveis ecentraisparaodiscursodeJoshua).

NafaltadeumaSupremaRepartição (oumelhor,napresençademuitasrepartiçõescompetindopelasupremacia,nenhumadelascomgrandeschancesdevencer),aquestãodosobjetivosestánovamentepostaedestinadaatornar-se causademuitahesitaçãoedeagonia sem fim, a solapar a confiançae agerar a sensação enervante de incerteza e, portanto, também umEstado deansiedadeperpétua.NaspalavrasdeGerhardSchulze,esteéumnovotipodeincerteza:“nãosaberosfins,emlugardaincertezatradicionaldenãosaberosmeios”.6 Não é mais o caso de tentar, sem ter o conhecimento completo,

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calcular os meios (os já disponíveis e os tidos como necessários ezelosamentebuscados)emrelaçãoadeterminadofim.Oqueestáempautaéaquestãodeconsideraredecidir,emfacede todosos riscosconhecidosoumeramente adivinhados, quais dos muitos flutuantes e sedutores fins “aoalcance” (isto é, que podem ser razoavelmente perseguidos) devem terprioridade — dada a quantidade de meios disponíveis e levando emconsideraçãoasínfimaschancesdesuautilidadeduradoura.

Nas novas circunstâncias, omais provável é que amaior parte da vidahumana e a maioria das vidas humanas consuma-se na agonia quanto àescolhadeobjetivos,enãonaprocuradosmeiosparaosfins,quenãoexigemtantareflexão.Aocontráriodeseuantecessor,ocapitalismolevetendeaserobcecadoporvalores.Opequenoanúncioapócrifonacolunade“empregosprocurados” — “tenho carro, posso viajar” — pode servir de epítome àsnovas problemáticas da vida, ao lado da questão atribuída aos chefes dosinstitutose laboratórios técnicose científicosdehoje: “Achamosa solução.Vamosagoraprocuraroproblema.”Apergunta“oquepossofazer?”passouadominaraação,minimizandoeexcluindoaquestão“comofazerdamelhormaneirapossívelaquiloquetenhoquenãopossodeixardefazer?”

ComoasSupremasRepartiçõesquecuidavamdaregularidadedomundoe guardavam os limites entre o certo e o errado não estão mais à vista, omundosetornaumacoleçãoinfinitadepossibilidades:umcontêinercheioatéabocacomumaquantidadeincontáveldeoportunidadesaseremexploradasoujáperdidas.Hámais—muitíssimomais—possibilidadesdoquequalquervidaindividual,pormaislonga,aventurosaeindustriosaqueseja,podetentarexplorar, e muito menos adotar. É a infinidade das oportunidades quepreenche o espaço deixado vazio pelo desaparecimento da SupremaRepartição.

Não surpreende que não mais se escrevam distopias nestes tempos: omundo pós-fordista, “moderno fluido”, dos indivíduos que escolhem emliberdade, nãomais se ocupado sinistroGrande Irmão, que puniria os quesaíssem da linha. Neste mundo, no entanto, tampouco há espaço para obenigno e cuidadoso IrmãoMaisVelho em quem se podia confiar e buscarapoioparadecidirque coisas eramdignasde ser feitasoupossuídas e comquemsepodiacontarparaprotegeroirmãomaisnovodosvalentõesquesepunham em seu caminho; e assim as utopias da boa sociedade tambémdeixaram de ser escritas. Tudo, por assim dizer, corre agora por conta doindivíduo.Cabe ao indivíduo descobrir o que é capaz de fazer, esticar essacapacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderiamelhor servir— isto é, com amáxima satisfação concebível. Compete aoindivíduo“amansaroinesperadoparaquesetorneumentretenimento”.7

Vivernummundocheiodeoportunidades—cadaumamaisapetitosae

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atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando oterreno para a mudança para a seguinte”8 — é uma experiência divertida.Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos aindairrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos,irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que aspossibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-seem realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas etenham“datadevalidade”,casocontráriopoderiamexcluirasoportunidadesremanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. Como dizemZbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu interessante estudo deproblemasda identidade,9 viver emmeio a chances aparentemente infinitas(oupelomenos emmeio amaiornúmerode chancesdoque seria razoávelexperimentar) tem o gosto doce da “liberdade de tornar-se qualquer um”.Porém essa doçura tem uma cica amarga porque, enquanto o “tornar-se”sugere que nada está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “seralguém”, que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro,indicandoofimdojogo:“Vocênãoestámaislivrequandochegaofinal;vocênão é você, mesmo que tenha se tornado alguém.” Estar inacabado,incompleto e subdeterminadoéumestadocheiode riscos e ansiedade,masseucontráriotambémnãotrazumprazerpleno,poisfechaantecipadamenteoquealiberdadeprecisamanteraberto.

Aconsciênciadequeojogocontinua,dequemuitovaiaindaacontecer,eoinventáriodasmaravilhasqueavidapodeoferecersãomuitoagradáveisesatisfatórios. A suspeita de que nada do que já foi testado e apropriado éduradouroegarantido contra adecadência é,porém, aproverbialmoscanasopa.Asperdasequivalemaosganhos.Avidaestáfadadaanavegarentreosdois,enenhummarinheiropodealardearterencontradoumitinerárioseguroesemriscos.

Omundocheiodepossibilidadesécomoumamesadebufêcom tantospratosdeliciososquenemomaisdedicadocomensalpoderiaesperarprovarde todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante dastarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade deestabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opçõesinexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva doexcesso e não da falta de escolha. “Será que utilizei os meios à minhadisposiçãodamelhormaneirapossível?” é aperguntaquemais assombra ecausa insônia ao consumidor. Como disse Marina Bianchi num trabalhocoletivo de economistas que tinham em mente os vendedores de bens deconsumo,

nocasodoconsumidor,afunçãoobjetiva…estávazia…

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Osfinscoerentementeseequivalemaosmeios,masosprópriosfinsnãosãoescolhidosracionalmente…Hipoteticamente,osconsumidores,masnãoasfirmas,nãopodemnunca

errar,ouserpegoserrando.10

Massenãosepodeerrar,tambémnãosepodesaberseseestácerto.Senão há movimentos errados, não há nada que permita distinguir ummovimentocomomelhor,eassimnadaquepermitareconheceromovimentocerto entre as várias alternativas — nem antes nem depois de fazer omovimento.Éumabênçãomistaqueoperigodoerronãoestejanascartas—umaalegriaduvidosa,certamente,dadoqueseupreçoéaincertezaperpétuaeum desejo que provavelmente nunca será saciado. É uma boa notícia, umapromessa de permanecer no ramo, para os vendedores, mas para oscompradoreséacertezadequecontinuarãoaflitos.

Paredemedizer;mostre-me!

Ocapitalismopesado,noestilofordista,eraomundodosqueditavamasleis,dosprojetistasderotinasedossupervisores;omundodehomensemulheresdirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, do mododeterminadoporoutros.Poressarazãoeratambémomundodasautoridades:de líderes que sabiam mais e de professores que ensinavam a procedermelhor.

O capitalismo leve, amigável com o consumidor, não aboliu asautoridadesqueditam leis,nemas tornoudispensáveis.Apenasdeu lugarepermitiu que coexistissem autoridades emnúmero tão grande que nenhumapoderia se manter por muito tempo e menos ainda atingir a posição deexclusividade. Ao contrário do erro, a verdade é só uma, e pode serreconhecidacomoverdade(istoé,comodireitodedeclararerradastodasasalternativas a ela mesma) justamente por ser única. Parando para pensar,“numerosas autoridades” é uma contradição em termos. Quando asautoridades são muitas, tendem a cancelar-se mutuamente, e a únicaautoridadeefetivanaáreaéaquepodeescolherentreelas.Éporcortesiadequemescolhequeaautoridadese tornaumaautoridade.Asautoridadesnãomaisordenam;elassetornamagradáveisaquemescolhe;tentameseduzem.

O“líder”foiumprodutonão-intencional,eumcomplementonecessário,domundoquetinhaporobjetivoa“boasociedade”,ouasociedade“certaeapropriada”, e procurava manter as alternativas impróprias à distância. Omundoda“modernidadelíquida”nãofaznemumacoisanemoutra.AinfamefrasedeefeitodeMargaretThatcher“nãoexisteessacoisadesociedade”éaomesmo tempo uma reflexão perspicaz sobre a mudança no caráter do

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capitalismo,umadeclaraçãode intençõeseumaprofecia autocumprida: emseus rastrosveioodesmantelamentodas redesnormativas eprotetoras, queajudavam o mundo em seu percurso de tornar-se carne. “Não-sociedade”significa não ter nem utopia nem distopia: como Peter Drucker, o guru docapitalismo leve, disse, “não mais salvação pela sociedade” — sugerindo(ainda que por omissão e não por afirmação) que, por implicação, aresponsabilidadepeladanaçãonãopodeficarcomasociedade;aredençãoeacondenaçãosãoproduzidaspelo indivíduoesomenteporele—o resultadodoqueoagentelivrefezlivrementedesuavida.

Nãofaltam,obviamente,pessoasqueafirmam“estarpordentro”,emuitasdelas têmlegiõesdeseguidoresprontosa lhesfazercoro.Taispessoas“pordentro”,mesmo aquelas cujo conhecimento não foi posto publicamente emdúvida,nãosão,noentanto,líderes;elassão,nomáximo,conselheiros—eumadiferençacrucialentre lídereseconselheiroséqueosprimeirosdevemserseguidoseossegundosprecisamsercontratadosepodemserdemitidos.Oslíderesdemandameesperamdisciplina;osconselheirospodem,namelhordashipóteses,contarcomaboavontadedooutrodeouvireprestaratenção.Edevem primeiro conquistar essa vontade bajulando os possíveis ouvintes.Outradiferençacrucialentre lídereseconselheiroséqueosprimeirosagemcomo intermediáriosentreobem individualeo“bemde todos”,ou, (comodiriaC.WrightMills)entreaspreocupaçõesprivadaseasquestõespúblicas.Osconselheiros,aocontrário,cuidamdenuncapisarforadaáreafechadadoprivado.Doençassãoindividuais,assimcomoaterapia;aspreocupaçõessãoprivadas,assimcomoosmeiosdelutarpararesolvê-las.Osconselhosqueosconselheiros oferecem se referem à política-vida, não à Política com Pmaiúsculo;elessereferemaoqueaspessoasaconselhadaspodemfazerelasmesmaseparasipróprias,cadaumaparasi—nãoaoquepodemrealizaremconjuntoparacadaumadelas,seuniremforças.

Emumdosmaioressucessosentreospopularíssimoslivrosdeauto-ajuda(vendeu mais de cinco milhões de cópias desde sua publicação em 1987),MelodyBeattieadverte/aconselhaseusleitores:“Amaneiramaisgarantidadeenlouquecer é envolver-se com os assuntos de outras pessoas, e a maneiramaisrápidadetornar-sesãoefelizécuidardospróprios.”Olivrodeveseusucesso instantâneoao título sugestivo (CodependentnoMore), que resumeseu conteúdo: tentar resolver os problemas de outras pessoas nos tornadependentes, e a dependência oferece reféns ao destino — ou, maisprecisamente,acoisasquenãodominamoseapessoasquenãocontrolamos;portanto,cuidemosdenossosproblemas,eapenasdenossosproblemas,comaconsciêncialimpa.Hápoucoaganharfazendootrabalhodeoutros,eissodesviaria nossa atenção do trabalho que ninguém pode fazer senão nósmesmos. Tal mensagem soa agradável — como uma confirmação, umaabsolviçãoeumaluzverdenecessária—atodososque,sós,sãoforçadosa

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seguir,a favoroucontraseupróprio juízo,enãosemdornaconsciência,aexortaçãodeSamuelButler:“Nofim,oprazerémelhorguiaqueodireitoouodever.”

“Nós”éopronomepessoalusadocommaisfreqüênciapeloslíderes.Jáosconselheirostêmpoucoquefazercomele:“nós”nãoémaisqueumagregadode“eus”, eoagregado, aocontráriodo“grupo”deÉmileDurkheim,nãoémaior que a soma de suas partes.Ao fim da sessão de aconselhamento, aspessoasaconselhadasestãotãosósquantoantes.Issoquandosuasolidãonãofoireforçada:quandosuaimpressãodequeseriamabandonadasàsuaprópriasortenãofoicorroboradaetransformadaemumaquasecerteza.Qualquerquefosse o conteúdo do aconselhamento, este se referia a coisas que a pessoaaconselhada deveria fazer por si mesma, aceitando inteira responsabilidadepor fazê-las de maneira apropriada, e não culpando a ninguém pelasconseqüências desagradáveis que só poderiam ser atribuídas a seu próprioerroounegligência.

O melhor conselheiro é o que está ciente do fato de que aqueles quereceberãoos conselhosqueremuma lição-objeto.Desdeque anaturezadosproblemassejatalqueelespossamserenfrentadospelosindivíduosporcontaprópria e por esforços individuais, o que as pessoas em busca de conselhoprecisam (ou acreditam precisar) é um exemplo de como outros homens emulheres, diante de problemas semelhantes, se desincumbem deles. E elasprecisamdoexemploporrazõesaindamaisessenciais:onúmerodosquesesentem“infelizes”émaiorqueodosqueconseguemindicareidentificarascausas de sua infelicidade. O sentimento de “estar infeliz” é muitas vezesdifusoesolto;seuscontornossãoapagados,suasraízes,espalhadas;precisatornar-se “tangível”—moldado e nomeado, a fim de tornar o igualmentevagodesejodefelicidadeuma tarefaespecífica.Olhandoparaaexperiênciade outras pessoas, tendo uma idéia de suas dificuldades e atribulações,esperamos descobrir e localizar os problemas que causaram nossa própriainfelicidade, dar-lhes um nome e, portanto, saber para onde olhar paraencontrarmeiosderesistiraelesouresolvê-los.

Explicando a fenomenal popularidade do Jane Fonda’s Workout Book(1981) e a técnica de auto-disciplina que esse livro pôs à disposição demilhõesdemulheresnorte-americanas,HilaryRadnerobservaque

a instrutora se oferece como um exemplo … mais do que como umaautoridade…Amulherqueseexercitapossuiseuprópriocorpopelaidentificaçãocom

uma imagem que não é a sua própria mas a dos corpos que lhe sãooferecidoscomoexemplo.

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JaneFondaébastanteexplícitasobreaessênciadoqueofereceebastantediretasobreotipodeexemploqueseusleitoresdevemseguir:“Gostomuitode pensar que meu corpo é produto de mim mesma, é meu sangue eentranhas. É minha responsabilidade.” 11 A mensagem de Fonda para todamulher é que trate seu corpo como sua propriedade (meu sangue, minhasentranhas), seu próprio produto e, acima de tudo, sua própriaresponsabilidade.Parasustentarereforçaroamourdesoipós-moderno,elainvoca (ao lado da tendência de consumidora de auto-identificar-se pelapropriedade)amemóriadomuitopré-pós-moderno—emverdademaispré-moderno do que moderno — instinto de artesanato: o produto de meutrabalhoétãobomquanto(enãomelhorque)ahabilidade,atençãoecuidadoqueponho em suaprodução.Quaisquerque sejamos resultados, não tenhoninguémmaisaquempossaelogiar(ouculpar,seforocaso).Oladoinversodamensagemtambémnãoéambíguo,aindaquenãosoletradocomamesmaclareza: vocêdeve a seu corpo cuidado, e se negligenciar esse dever, vocêdeve sentir-se culpada e envergonhada. Imperfeições de seu corpo são suaculpa e vergonha.Mas a redenção do pecado está ao alcance dasmãos dapecadora,esódesuasmãos.

RepitocomHilaryRadner:aodizertudoisso,JaneFondanãoagecomoautoridade(comoquemformulaa lei,estabeleceanorma,pregaouensina).Ela se “oferece como exemplo”. Sou famosa e amada; sou um objeto dedesejoeadmiração.Porquê?Qualquerquesejaarazão,existeporqueeuafizexistir.Olhemmeucorpo:éesguio,flexível,temboaforma—perenementejovem.Vocêcertamentegostariadeter—deser—umcorpocomoomeu.Meucorpoémeutrabalho;sevocêseexercitarcomoeu,vocêpoderátê-lo.Sevocêsonhaem“sercomoJaneFonda”,lembre-sequefuieu,JaneFonda,quefizdemimaJaneFondadessessonhos.

Serricaefamosaajuda,éclaro;conferepesoàmensagem.EmboraJaneFondaseesforceparasepôrcomoexemplo,enãoautoridade,seriatolonegarque, sendo quem é, seu exemplo traz “naturalmente” uma autoridade queoutrosexemplosteriamquetrabalharmuitoparaobter.JaneFondaédecertamaneira um caso excepcional: ela herdou a condição de “estar sob osrefletores”eatraiuaindamaisrefletoressobresuasatividadesmuitoantesdedecidirfazerdeseucorpoumexemplo.Emgeral,porém,nãopodemosestarcertos da direção em que funciona a relação causal entre a disposição deseguirumexemploeaautoridadedapessoaqueservecomoexemplo.ComoobservouDaniel J.Boorstin—comgraça,masnãodebrincadeira (emTheImage, 1961) —, uma celebridade é uma pessoa conhecida por ser muitoconhecida,eumbest-selleréumlivroquevendebemporqueestávendendobem.A autoridade amplia o número de seguidores,mas, nomundo de finsincertosecronicamentesubdeterminados,éonúmerodeseguidoresquefaz—queé—aautoridade.

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Qualquerquesejaocaso,noparexemplo-autoridadeapartedoexemploéa mais importante e mais solicitada. As celebridades com autoridadesuficienteparafazercomqueoquedizemsejadignodeatençãomesmoantesque o digam são muito poucas para estrelar os inumeráveis programas deentrevistasdaTV(eraramenteaparecemnosmaispopularesdeles,comoodeOpraheodeTrisha),mas issonão impedequeessesprogramassejamumacompulsão diária para milhões de homens e mulheres ávidos poraconselhamento.Aautoridadedapessoaquecompartilhasuahistóriadevidapode fazer com que os espectadores observem o exemplo com atenção eaumentaosíndicesdeaudiência.Masafaltadeautoridadedequemcontasuavida,ofatodeelanãoserumacelebridade,suaanonimidade,podefazercomque o exemplo sejamais fácil de seguir e assim ter umpotencial adicionalpróprio.Asnão-celebridades,oshomensemulheres“comuns”,“comovocêeeu”,queaparecemnatelinhaapenasporummomentopassageiro(nãomaisdoqueonecessárioparacontarahistóriaereceberoaplausomerecido,assimcomo alguma crítica por esconder partes picantes ou gastar tempo demaiscom as partes desinteressantes) são tão desvalidas e infelizes quanto osespectadores,sofrendoomesmotipodegolpesebuscandodesesperadamenteuma saída honrosa e um caminho promissor para uma vida mais feliz. Eassim, o que elas fizeram eu tambémposso fazer; talvez atémelhor. Possoaprenderalgumacoisaútiltantocomsuasvitóriasquantocomsuasderrotas.

Seriaarrogante,alémdeequivocado,condenarouridicularizarovíciodosprogramasdeentrevistascomoefeitodaeternaavidezhumanapelafofocaeda “curiosidade barata”. Num mundo repleto de meios, mas notoriamentepouco claro sobre os fins, as lições retiradas dos programas de entrevistasrespondemaumademandagenuínaetêmvalorpragmáticoinegável,poisjásabemos que depende de nósmesmos fazer (e continuar a fazer) omelhorpossível de nossas vidas; e como também sabemos que quaisquer recursosrequeridos por tal empreendimento só podem ser procurados e encontradosentrenossasprópriashabilidades,coragemedeterminação,évitalsabercomoagem outras pessoas diante de desafios semelhantes. Podem ter descobertoestratagemasadmiráveisquenãopercebemos;podemterexploradopartesdaquestão a que não demos atenção ou em que não nos aprofundamos osuficiente.

Essa não é, porém, a única vantagem. Como dito acima, nomear oproblemaéemsiumatarefaassustadora,esemessenomeparaosentimentodeinquietaçãoouinfelicidadenãoháesperançadecura.Noentanto,emborao sofrimento seja pessoal e privado, uma “linguagem privada” é umaincongruência.Oquequerquesejanomeado, inclusiveossentimentosmaissecretos, pessoais e íntimos, só o é propriamente se os nomes escolhidosforemdedomíniopúblico,sepertenceremaumalinguagemcompartilhadaepública e forem compreendidos pelas pessoas que se comunicam nessa

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linguagem. Os programas de entrevistas são lições públicas de umalinguagemainda-não-nascida-mas-prestes-a-nascer.Fornecemaspalavrasquepoderão ser utilizadas para “nomear o problema” — para expressar, emmodos publicamente legíveis, o que até agora era inefável e assimpermaneceriasemtaispalavras.

Esse é, em si, umganhodamaior importância—mashá aindaoutros.Nosprogramasdeentrevistas,palavrasefrasesquesereferemaexperiênciasconsideradas íntimas e, portanto, inadequadas como tema de conversa sãopronunciadas em público — para aprovação, divertimento e aplausouniversais. Pela mesma razão, os programas de entrevistas legitimam odiscurso público sobre questões privadas. Tornam o indizível dizível, overgonhoso, decente, e transformamo feio segredo emquestão de orgulho.Até certo ponto são rituais de exorcismo— e muito eficazes. Graças aosprogramasdeentrevistas,posso falardeagoraemdianteabertamente sobrecoisasqueeupensava(equivocadamente,agoravejo)infameseinfamantese,portanto, destinadas a permanecer secretas e a serem sofridas em silêncio.Como minha confissão não é mais secreta, ganho mais que o conforto daabsolvição: não preciso mais me sentir envergonhado ou temeroso de serdesprezado,condenadoporimpudênciaourelegadoaoostracismo.Essassão,afinal,ascoisasdequeaspessoasfalamcompungidasnapresençademilhõesde espectadores. Seus problemas privados, e assim também meus própriosproblemas, tão parecidos aos deles, sãoadequados para discussão pública.Nãoquesetornemquestõespúblicas;entramnadiscussãoprecisamenteemsuacondiçãodequestõesprivadase,pormaisquesejamdiscutidas,comoosleopardos, também não mudam suas pintas. Ao contrário, são reafirmadascomo privadas e emergirão da exposição pública reforçadas em seu caráterprivado.Afinal, todos os que falaram concordaramque, namedida emqueforam experimentadas e vividas privadamente, é assim que essas coisasdevemserconfrontadaseresolvidas.

Muitospensadoresinfluentes(sendoJürgenHabermasomaisimportantedeles)advertemsobreapossibilidadedequea“esferaprivada”sejainvadida,conquistadaecolonizadapela“pública”.Voltandoàmemóriarecentedaeraque inspirou as distopias como as de Huxley ou de Orwell, pode-secompreendertaltemor.Aspremoniçõesparecem,noentanto,surgirdaleiturado que acontece diante de nossos olhos com as lentes erradas. De fato, atendência oposta à advertência é a que parece estar se operando — acolonizaçãodaesferapúblicaporquestõesanteriormenteclassificadascomoprivadaseinadequadasàexposiçãopública.

Oqueestáocorrendonãoésimplesmenteoutrarenegociaçãodafronteiranotoriamentemóvelentreoprivadoeopúblico.Oquepareceestaremjogoéuma redefinição da esfera pública comoumpalco emque dramas privados

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sãoencenados,publicamenteexpostosepublicamenteassistidos.Adefiniçãocorrente de “interesse público”, promovida pelamídia e amplamente aceitaporquasetodosossetoresdasociedade,éodeverdeencenartaisdramasempúblicoeodireitodopúblicodeassistir àencenação.Ascondições sociaisque fazem com que tal desenvolvimento não seja surpreendente e pareçamesmo“natural”devemficarevidentesàluzdoargumentoprecedente;masas conseqüências desse desenvolvimento ainda não foram inteiramenteexploradas.Podemtermaioralcancedoqueemgeralseaceita.

A conseqüência que pode ser considerada mais interessante é odesaparecimento da “política como a conhecemos” — da Política com Pmaiúsculo, a atividade encarregada de traduzir problemas privados emquestõespúblicas(evice-versa).Éoesforçodessatraduçãoquehojeestásedetendo.Osproblemasprivadosnãosetornamquestõespúblicaspelofatodeseremventiladosempúblico;mesmosoboolharpúbliconãodeixamdeserprivados,eoquepareceresultardesuatransferênciaparaacenapúblicaéaexpulsãodetodososoutrosproblemas“não-privados”daagendapública.Oque cadavezmais é percebido como“questõespúblicas” sãoosproblemasprivadosdefiguraspúblicas.Atradicionalquestãodapolíticademocrática—quãoútilouprejudicialparaobem-estardeseussúditos/eleitoreséomodocomo as figuras públicas exercitam seus deveres públicos— foi pelo ralo,sinalizandoparaqueointeressepúbliconaboasociedade,najustiçapúblicaounaresponsabilidadecoletivapelobem-estarindividualasiganocaminhodoesquecimento.

Atingido por uma série de “escândalos” (isto é, exposição pública defrouxidão moral nas vidas privadas de figuras públicas), Tony Blair (noGuardian de 11.1.1999) se queixava de que “a política se reduziu a umacolunademexericos”econclamavaaaudiênciaaenfrentaraalternativa:“Outeremosapautadenotíciasdominadapelo escândalo, pelomexerico e pelatrivialidade, ou pelas coisas que realmente importam.”12 Tais palavras nãopodem senão surpreender, vindo, como vêm, de um político que consultadiariamente “grupos focais” na esperança de ser regularmente informadosobre os sentimentos da base e “as coisas que realmente importam” naopinião de seus eleitores, e cujomodo demanejar as coisas que realmenteimportam para as condições em que seus eleitores vivem é elamesma umfatorimportantenotipodevidaresponsávelpela“reduçãodapolíticaaumacolunademexericos”queelelamenta.

Ascondiçõesdevidaemquestão levamoshomensemulheresabuscarexemplos,enãolíderes.Levam-nosaesperarqueaspessoassobosrefletores—todasequalquerumadelas—mostremcomo“ascoisasque importam”(agora confinadas a suas próprias quatro paredes e aí trancadas) são feitas.Afinal,elesouvemdiariamentequeoqueestáerradoemsuasvidasprovêm

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deseuspróprioserros,foisuaprópriaculpaedeveserconsertadocomsuasprópriasferramentaseporseusprópriosesforços.Nãoé,portanto,poracasoque supõem que amaior utilidade (talvez a única) das pessoas que alegam“estar por dentro” é mostrar-lhes como manejar as ferramentas e fazer oesforço. Ouviram repetidamente dessas “pessoas por dentro” que ninguémmaisfariaoqueelesmesmosdeveriamfazer,cadaumporsi.Porque,então,alguém ficaria intrigado se o que atrai a atenção e provoca o interesse detantoshomensemulhereséoqueospolíticos(eoutrascelebridades)fazememprivado?Ninguémentreos“grandesepoderosos”,nemmesmoa“opiniãopública” ofendida, propôs o impeachment deBillClinton por ter abolido aprevidência enquanto “questão federal”— e, portanto, em termos práticos,anulado a promessa coletiva e o dever de proteger os indivíduos contra osmovimentosdodestino,notóriosporseuhábitodesagradáveldeadministrarindividualmenteseusgolpes.

No espetáculo colorido das celebridades da telinha e dasmanchetes, oshomens e mulheres de Estado não ocupam uma posição privilegiada. Nãoimportamuitoqualarazãoda“notoriedade”que,segundoBoorstin,fazcomqueumacelebridadesejaumacelebridade.Umlugarsobosrefletoreséummodo de ser por simesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol eministrosdegovernocompartilhamemigualmedida.Umdosrequisitosquese aplica a todos é que se espera — “eles têm o dever público” — queconfessem “para consumo público” e ponham suas vidas privadas àdisposição, e que não reclamem se outros o fizerem por eles. Uma vezexpostas, essas vidas privadas podem se mostrar pouco esclarecedoras oudecididamentepoucoatraentes:nemtodosossegredosprivadoscontêmliçõesqueoutraspessoaspoderiamconsiderarúteis.Osdesapontamentos,pormaisnumerosos que sejam, dificilmente mudarão os hábitos confessionais oudissiparão o apetite pelas confissões; afinal— repito— o modo como aspessoasindividuaisdefinemindividualmenteseusproblemasindividuaiseosenfrentamcomhabilidadeserecursosindividuaiséaúnica“questãopública”remanescente e o único objeto de “interesse público”. E enquanto isso forassim, espectadores e ouvintes treinados para confiar em seu própriojulgamentoeesforçonabuscadeesclarecimentoeorientaçãocontinuarãoaolhar para as vidas privadas de outros “como eles” com o mesmo zelo eesperançacomquepoderiamterolhadoparaaslições,homiliasesermõesdevisionários e pregadores quando acreditavam que as misérias privadas sópoderiamseraliviadasoucuradas“reunindoascabeças”,“cerrandofileiras”e“emordemunida”.

Acompulsãotransformadaemvício

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Procurarexemplos,conselhoeorientaçãoéumvício:quantomaisseprocura,mais se precisa e mais se sofre quando privado de novas doses da drogaprocurada.Comomeiodeaplacarasede,todososvíciossãoauto-destrutivos;destroemapossibilidadedesechegaràsatisfação.

Exemplosereceitassãoatraentesenquantonão-testados.Masdificilmentealgumdelescumpreoquepromete—virtualmente,cadaumficaaquémdarealizaçãoquedizia trazer.Mesmoquealgumdelesmostrasse funcionardomodo esperado, a satisfação não duraria muito, pois no mundo dosconsumidores as possibilidades são infinitas, e o volume de objetivossedutoresàdisposiçãonuncapoderáserexaurido.Asreceitasparaaboavidaeosutensíliosqueaelasservemtêm“datadevalidade”,masmuitoscairãoemdesusobemantes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídosde fascínio pela competição de ofertas “novas e aperfeiçoadas”.Na corridadosconsumidores,alinhadechegadasempresemovemaisvelozqueomaisveloz dos corredores;mas amaioria dos corredores na pista temmúsculosmuito flácidos e pulmõesmuito pequenos para correr velozmente.E assim,comonaMaratonadeLondres,pode-seadmirareelogiarosvencedores,masoqueverdadeiramentecontaépermanecernacorridaatéofim.PelomenosaMaratona de Londres tem um fim, mas a outra corrida— para alcançar apromessafugidiaesempredistantedeumavidasemproblemas—,umaveziniciada,nuncatermina:comecei,maspossonãoterminar.

Entãoéacontinuaçãodacorrida,asatisfatóriaconsciênciadepermanecernacorrida,quese tornaoverdadeirovício—enãoalgumprêmioàesperados poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios ésuficientementesatisfatórioparadestituirosoutrosprêmiosdeseupoderdeatração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (porenquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda nãoforamtentados.Odesejosetornaseuprópriopropósito,eoúnicopropósitonão-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos,seguidosapenasparaseremabandonadosnapróximarodadaeesquecidosnaseguinte, é o de manter os corredores correndo — como “marcadores depasso”, corredores contratados pelos empresários das corridas para correrpoucas rodadas apenas, mas na máxima velocidade que puderem, e entãoretirar-se tendo puxado os outros corredores para o nível de quebra derecordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo levado a espaçonave àvelocidade necessária, são ejetados para o espaço e se desintegram. Nummundoemqueagamadefinséamplademaisparaoconfortoesempremaisamplaqueadosmeiosdisponíveiséaovolumeeeficáciadosmeiosquesedeveatendercommaiscuidado.Permanecernacorridaéomais importantedosmeios,defatoometa-meio:omeiodemantervivaaconfiançaemoutrosmeioseademandaporoutrosmeios.

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O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de umasociedadedeconsumoestácorrendo(tudonumasociedadedeconsumoéumaquestãodeescolha,excetoacompulsãodaescolha—acompulsãoqueevoluiaté se tornar um vício e assim não émais percebida como compulsão) é aatividadedecomprar.Estamosnacorridaenquantoandamospelaslojas,enãosãosóaslojasousupermercadosoulojasdedepartamentosouaos“templosdo consumo” de George Ritzer que visitamos. Se “comprar” significaesquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens àmostra,comparandoseuscustoscomoconteúdodacarteiraoucomocréditorestante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros devolta às prateleiras— então vamos às compras tanto nas lojas quanto foradelas;vamosàscomprasnaruaeemcasa,notrabalhoenolazer,acordadoseem sonhos. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome queatribuamosànossaatividade,écomoiràscompras,umaatividadefeitanospadrões de ir às compras. O código em que nossa “política de vida” estáescritoderivadapragmáticadocomprar.

Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens demobiliário.Abuscaávidaesemfimpornovosexemplosaperfeiçoadoseporreceitas de vida é também uma variedade do comprar, e uma variedade damáxima importância, seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossafelicidade depende apenas de nossa competência pessoal mas que somos(como diz Michael Parenti13) pessoalmente incompetentes, ou não tãocompetentescomodeveríamos,epoderíamos,sersenosesforçássemosmais.Hámuitasáreasemqueprecisamossermaiscompetentes,ecadaumadelasrequer uma “compra”. “Vamos às compras” pelas habilidades necessárias anossosustentoepelosmeiosdeconvencernossospossíveisempregadoresdequeastemos;pelotipodeimagemquegostaríamosdevestirepormodosdefazercomqueosoutrosacreditemquesomosoquevestimos;pormaneirasde fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não maisqueremos;pelosmodosdeatrairatençãoedenosescondermosdoescrutínio;pelosmeiosdeextrairmaissatisfaçãodoamorepelosmeiosdeevitarnossa“dependência”doparceiroamadoouamante;pelosmodosdeobteroamordoamado e omodomenos custoso de acabar com uma união quando o amordesapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupardinheiroparaumfuturoincertoeomodomaisconvenientedegastardinheiroantes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos quefazereporcoisasparafazerafimdeencherotempoentãodisponível;pelascomidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar asconseqüências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e asmelhores pílulas contra a dor de cabeça. A lista de compras não tem fim.Porémpormaislongaquesejaalista,aopçãodenãoiràscomprasnãofiguranela. E a competência mais necessária em nosso mundo de fins

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ostensivamenteinfinitoséadequemvaiàscomprashábileinfatigavelmente.O consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das

necessidades—nemmesmoasmaissublimes,distantes(algunsdiriam,nãomuitocorretamente,“artificiais”,“inventadas”,“derivativas”)necessidadesdeidentificação ou a auto-segurança quanto à “adequação”. Já foi dito que ospiritusmovensdaatividadeconsumistanãoémaisoconjuntomensuráveldenecessidades articuladas, mas o desejo — entidade muito mais volátil eefêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não-referencial que as“necessidades”, ummotivo autogerado e autopropelido que não precisa deoutrajustificaçãoou“causa”.Adespeitodesuassucessivasesemprepoucoduráveis reificações,odesejo temasimesmocomoobjetoconstante,eporessa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a alturaatingidapelapilhadosoutrosobjetos(físicosoupsíquicos)quemarcamseupassado.

Enoentanto,poróbviasquesejamsuasvantagenssobreasnecessidades,muitomenosmaleáveisemais lentas,odesejopõemais limitesàprontidãodos consumidores para ir às compras do que os fornecedores de bens deconsumoconsiderampalatávelouatésuportável.Afinal,tomatempo,esforçoe considerável gasto despertar o desejo, levá-lo à temperatura requerida ecanalizá-lonadireçãocerta.Osconsumidoresguiadospelodesejodevemser“produzidos”, sempre novos e a alto custo.De fato, a própria produção deconsumidoresdevoraumafraçãointoleravelmentegrandedoscustostotaisdeprodução—fraçãoqueacompetiçãotendeaampliaraindamais.

Mas (felizmente para os produtores e comercializadores de bens deconsumo)o consumismo em sua forma atual não está, como sugereHarvieFerguson, “fundado sobre a regulação (estimulação)dodesejo,mas sobre aliberaçãodefantasiasdesejosas”.Anoçãodedesejo,observaFerguson,

liga o consumo à auto-expressão, e a noções de gosto e discriminação. Oindivíduoexpressaasimesmoatravésdesuasposses.Mas,paraasociedadecapitalistaavançada,comprometidacomaexpansãocontinuadadaprodução,esseéumquadropsicológicomuitolimitado,que,emúltimaanálise,dálugarauma“economia”psíquicamuitodiferente.Oquerersubstituiodesejocomoforçamotivadoradoconsumo.14

Ahistóriadoconsumismoéahistóriadaquebraedescartedesucessivosobstáculos “sólidos” que limitam o vôo livre da fantasia e reduzem o“princípio do prazer” ao tamanho ditado pelo “princípio da realidade”. A“necessidade”,consideradapeloseconomistasdoséculoXIXcomoaprópriaepítomeda“solidez”—inflexível,permanentementecircunscritaefinita—foidescartadaesubstituídadurantealgumtempopelodesejo,queeramuitomais“fluido”eexpansívelqueanecessidadeporcausadesuasrelaçõesmeio

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ilícitas com sonhos plásticos e volúveis sobre a autenticidade de um “euíntimo” à espera de expressão. Agora é a vez de descartar o desejo. Elesobreviveuàsuautilidade:tendotrazidoovíciodoconsumidoraseuEstadopresente, não pode mais ditar o ritmo. Um estimulante mais poderoso, e,acima de tudo, mais versátil é necessário para manter a demanda doconsumidornoníveldaoferta.O“querer”éosubstituto tãonecessário;elecompleta a libertação do princípio do prazer, limpando e dispondo dosúltimosresíduosdosimpedimentosdo“princípioderealidade”:asubstâncianaturalmente gasosa foi finalmente liberada do contêiner.CitandoFergusonumavezmais:

Enquantoafacilitaçãododesejosefundavanacomparação,vaidade,invejaea “necessidade” de auto-aprovação, nada está por baixo do imediatismo doquerer.Acompraécasual, inesperadaeespontânea.Ela temumaqualidadedesonhotantoaoexpressarquantoaorealizarumquerer,que,comotodososquereres,éinsinceroeinfantil.15

Ocorpodoconsumidor

Como afirmei emLife in Fragments (Polity Press, 1996), a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição deconsumidores,enãodeprodutores.Adiferençaéfundamental.

A vida organizada em torno do papel de produtor tende a sernormativamenteregulada.Háummínimodequeseprecisaafimdemanter-se vivo e ser capaz de fazer o que quer que o papel de produtor possarequerer, mas também um máximo com que se pode sonhar, desejar eperseguir,contandocomaaprovaçãosocialdasambições,semmedodeserdesprezado,rejeitadoepostonalinha.Oquepassaracimadesselimiteéluxo,e desejar o luxo é pecado. O principal cuidado, portanto, é com aconformidade:manter-seseguramenteentrealinhainferioreolimitesuperior—manter-senomesmonível(tãoaltooubaixo,conformeocaso)dovizinho.

Avidaorganizadaem tornodoconsumo,poroutro lado,deve sebastarsem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes equereresvoláteis—nãomaisporregulaçãonormativa.Nenhumvizinhoemparticular oferece um ponto de referência para uma vida de sucesso; umasociedadedeconsumidoressebaseianacomparaçãouniversal—eocéuéoúnicolimite.Aidéiade“luxo”nãofazmuitosentido,poisaidéiaéfazerdosluxosdehojeasnecessidadesdeamanhã,ereduziradistânciaentreo“hoje”eo“amanhã”aomínimo—tiraraesperadavontade.Comonãohánormaspara transformar certos desejos em necessidades e para deslegitimar outrosdesejoscomo“falsasnecessidades”,nãohá testeparaquesepossamediro

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padrão de “conformidade”. O principal cuidado diz respeito, então, àadequação — a estar “sempre pronto” a ter a capacidade de aproveitar aoportunidadequandoelaseapresentar;adesenvolvernovosdesejosfeitossobmedidaparaasnovas,nuncavistaseinesperadasseduções;eanãopermitirqueasnecessidadesestabelecidastornemasnovassensaçõesdispensáveisourestrinjamnossacapacidadedeabsorvê-laseexperimentá-las.

Se a sociedade dos produtores coloca a saúde como o padrão que seusmembrosdevematingir,asociedadedosconsumidoresacenaaosseuscomoideal da aptidão (fitness). Os dois termos — saúde e aptidão — sãofreqüentementetomadoscomocoextensivoseusadoscomosinônimos;afinal,ambossereferemacuidadoscomocorpo,aoEstadoquesequerqueocorpoalcanceeaoregimequesedeveseguirpararealizaressavontade.Trataressestermos como sinônimos é, porém,umerro—enãomeramentepelos fatosconhecidosdequenemtodososregimesdeaptidão“sãobonsparaasaúde”ede que o que ajuda a manter a saúde não necessariamente leva à aptidão.Saúde e aptidão pertencem a dois discursos muito diferentes e apelam apreocupaçõesmuitodiferentes.

A saúde, como todos os conceitos normativos da sociedade dosprodutores, demarca e protege os limites entre “norma” e “anormalidade”.“Saúde”éoestadopróprioedesejáveldocorpoedoespíritohumanos—umEstado que (pelomenos emprincípio) pode sermais oumenos exatamentedescritoetambémprecisamentemedido.Refere-seaumacondiçãocorporalepsíquica que permite a satisfação das demandas do papel socialmentedesignadoeatribuído—eessasdemandastendemaserconstantesefirmes.“Sersaudável”significanamaioriadoscasos“serempregável”:sercapazdeumbomdesempenho na fábrica, de “carregar o fardo” comque o trabalhopoderotineiramenteonerararesistênciafísicaepsíquicadoempregado.

Oestadode“aptidão”,aocontrário,étudomenos“sólido”nãopode,porsua natureza, ser fixado e circunscrito com qualquer precisão. Ainda quemuitasvezestomadocomorespostaàpergunta“comovocêestásesentindo?”(se estou “apto”, provavelmente responderei “ótimo”), seu verdadeiro testefica para sempre no futuro: “estar apto” significa ter um corpo flexível,absorvente e ajustável, pronto para viver sensações ainda não testadas eimpossíveisdedescreverdeantemão.Seasaúdeéumacondição“nemmaisnemmenos”,aaptidãoestásempreabertadoladodo“mais”:nãoserefereaqualquerpadrãoparticulardecapacidadecorporal,masaseu(preferivelmenteilimitado)potencialdeexpansão.“Aptidão”significaestarprontoaenfrentaronão-usual,onão-rotineiro,oextraordinário—eacimadetudoonovoeosurpreendente.Quasesepoderiadizerque,seasaúdedizrespeitoa“seguirasnormas”,aaptidãodizrespeitoaquebrartodasasnormasesuperartodosospadrões.

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Chegar a um padrão interpessoal seria de qualquer forma demais, poisumacomparaçãoobjetivadegrausdeaptidão individuaisnãoépossível.Aaptidão,porcontrastecomasaúde,dizrespeitoaumaexperiênciasubjetiva(no sentido de experiência “vivida”, “sentida” — e não a um Estado oueventoquepossaserobservadodefora,everbalizadoecomunicado).Comotodos os estados subjetivos, a experiência de “estar apto” é notoriamentedifícil de articular demodo adequado à comunicação interpessoal, emenosainda à comparação interpessoal.A satisfação eoprazer são sensaçõesquenão podem ser postas em termos abstratos: precisam ser “subjetivamenteexperimentadas” — vividas. Nunca saberemos com certeza se nossassensaçõessãotãoprofundaseexcitantes,tãoprazerosasemsuma,comoasdopróximo. A busca da “aptidão” é como garimpar em busca de uma pedrapreciosaquenãopodemosdescreveratéencontrar;nãotemos,porém,meiosdedecidirqueencontramosapedra,mastemostodasasrazõesparasuspeitardequenãoaencontramos.Avidaorganizadaemtornodabuscadaaptidãoprometeumasériedeescaramuçasvitoriosas,masnuncaotriunfodefinitivo.

Ao contrário do cuidado com a saúde, a busca da aptidão não tem,portanto,umfimnatural.Osobjetivospodemserestabelecidosapenasparaapresenteetapadoesforçosemfim—easatisfaçãodealcançarumobjetivoéapenas momentânea. Na longa busca pela aptidão não há tempo paradescanso, e toda celebração de sucessos momentâneos não passa de umintervalo antes de outra rodada de trabalho duro. Uma coisa que os quebuscama“aptidão”sabemcomcertezaéqueaindanãoestãosuficientementeaptos, e quedevemcontinuar tentando.Abuscada aptidão é umestado deauto-exameminucioso,auto-recriminaçãoeauto-depreciaçãopermanentes,eassimtambémdeansiedadecontínua.

Asaúde,circunscritaporseuspadrões(quantificávelemensurável,comoa temperatura do corpo ou a pressão sanguínea) e armada de uma claradistinção entre “norma” e “anormalidade”, deveria estar, a princípio, livredessaansiedadeinsaciável.Tambémaprincípio,deveriaserclarooquedeveserfeitoafimdealcançarumestadosaudáveleprotegê-lo,emquecondiçõespodemosdeclararqueumapessoagozade“boasaúde”,ouemquepontodotratamentopodemosdeclararqueoestadodesaúdefoirestauradoenadamaisprecisaserfeito.Aprincípiosim…

Na verdade, porém, o status de todas as normas, inclusive a norma dasaúde,foiseveramenteabaladoesetornoufrágil,numasociedadedeinfinitaseindefinidaspossibilidades.Oqueontemeraconsideradonormale,portanto,satisfatório, pode hoje ser considerado preocupante, ou mesmo patológico,requerendo um remédio. Primeiro, estados do corpo sempre renovadostornam-se razões legítimas para intervenção médica — e as terapiasdisponíveis também não ficam estáticas. Segundo, a idéia de “doença”,

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outrora claramente circunscrita, torna-se cada vezmais confusa e nebulosa.Emvezdeserpercebidacomoumeventoexcepcionalcomumcomeçoeumfim,tendeaservistacomopermanentecompanhiadasaúde,seu“outrolado”e ameaça sempre presente: clama por vigilância incessante e precisa sercombatidaerepelidadiaenoite,setediasporsemana.Ocuidadocomasaúdetorna-seumaguerrapermanentecontraadoença.E,finalmente,osignificadode um “regime saudável de vida” não fica parado. Os conceitos de “dietasaudável” mudam emmenos tempo do que duram as dietas recomendadassimultânea ou sucessivamente. O alimento que se pensava benéfico para asaúde ou inócuo é denunciado por seus efeitos prejudiciais a longo prazoantesquesuainfluênciabenignatenhasidodevidamentesaboreada.Terapiase regimes preventivos voltados para algum tipo de enfermidade aparecemcomopatogênicosemoutrosaspectos;aintervençãomédicaécadavezmaisrequeridapelasdoenças“iatrogênicas”—enfermidadescausadasporterapiaspassadas. Quase qualquer cura apresenta grandes riscos, e mais curas sãonecessáriasparaenfrentarasconseqüênciasderiscosassumidosnopassado.

Por tudo isso, o cuidado com a saúde, contrariamente à sua natureza,torna-se estranhamente semelhante à busca da aptidão: contínuo, fadado àinsatisfação permanente, incerto quanto à adequação de sua direção atual egerandomuitaansiedade.

Enquanto o cuidado com a saúde se torna cada vezmais semelhante àbuscadaaptidão,estatentaimitar,quasesempreemvão,oqueeraabasedaautoconfiança em relação aos cuidados com a saúde: amensurabilidade dopadrãodesaúde,econseqüentementetambémdoprogressoterapêutico.Essaambição explica, por exemplo, a notável popularidade do controle do pesoentre osmuitos “regimes de aptidão” disponíveis: os centímetros e gramasquedesaparecemsãodoisdospoucosganhosvisíveisquepodemrealmentesermedidoscomalgumgraudeprecisão—comoatemperaturadocorponodiagnósticodasaúde.Asemelhançaéumailusão:seriaprecisoimaginarumtermômetro sem base em sua escala ou uma temperatura que melhorariaquantomaisamarcabaixasse.

Naesteiradosajustesrecentesaomodeloda“aptidão”,ocuidadocomasaúde se expande a tal ponto que Ivan Illich recentemente sugeriu que “aprópria busca da saúde tornou-se o fator patogênico mais importante”. Odiagnósticonãotemmaiscomoobjetooindivíduo:seuverdadeiroobjeto,emcadavezmaiscasos,éadistribuiçãodasprobabilidades,umaestimativadoquepodederivardacondiçãoemqueopacientediagnosticadoseencontra.

Asaúdeécadavezmaisidentificadacomaotimizaçãodosriscos.Issoé,em todo caso, o que os habitantes da sociedade de consumo treinados atrabalharporsuaaptidãofísicaesperamedesejamqueseusmédicosfaçam—eoqueos irrita e os torna hostis aosmédicos quenão cumpremcomesse

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papel. Num caso que gerou jurisprudência, um médico de Tübingen foicondenadopordizeràgrávidaqueaprobabilidadedeacriançanascercomalguma má-formação não era “grande demais”, em vez de citar aprobabilidadeexata.16

Comprarcomoritualdeexorcismo

Pode-seconjecturarqueostemoresqueassolamo“donodocorpo”obcecadocom níveis inalcançáveis de aptidão e com uma saúde cada vez menosdefinida e cada vez mais à imagem da aptidão provocariam cautela ecircunspecção,moderaçãoeausteridade—atitudesquedestoamdalógicadasociedade de consumidores, para a qual podem ser desastrosas. Mas essaconclusãoseriaerrônea.Exercitarosdemôniosinterioresrequerumaatitudepositivaemuitaação—enãoaretiradaeosilêncio.Comoquasetodaaçãonuma sociedade de consumidores, esta custa caro; requer diversosmecanismos e ferramentas especiais que só o mercado de consumo podefornecer.Aatitude“meucorpoéumafortalezasitiada”nãolevaaoascetismo,à abstinência ou à renúncia; significa consumir mais — porém consumiralimentos especiais, “saudáveis”, comprados no comércio. Antes de serretiradadomercadoporseusefeitosprejudiciais,adrogamaispopularentreaspessoaspreocupadascomcontroledepesoeraoXenilin, anunciadapeloslogan “comamais e pesemenos”.Segundoos cálculosdeBarryGlassner,em um ano — 1987 — os norte-americanos preocupados com o corpogastaram 74 bilhões de dólares em alimentos dietéticos, cinco bilhões emacademias, 2,7 bilhões em vitaminas e 738 milhões em equipamentos deexercícios.17

Há,emsuma,razõesmaisquesuficientespara“iràscompras”.Qualquerexplicação da obsessão de comprar que se reduza a uma causa única estáarriscada a ser um erro. As interpretações comuns do comprar compulsivocomo manifestação da revolução pós-moderna dos valores, a tendência arepresentar o vício das compras como manifestação aberta de instintosmaterialistas e hedonistas adormecidos, ou como produto de uma“conspiração comercial” que é uma incitação artificial (e cheia de arte) àbusca do prazer como propósitomáximo da vida, capturam namelhor dashipótesesapenaspartedaverdade.Outraparte,enecessáriocomplementodetodasessasexplicações,équeacompulsão-transformadaem-víciodecompraré uma lutamorro acima contra a incerteza aguda e enervante e contra umsentimentodeinsegurançaincômodoeestupidificante.

ComoobservouT.H.Marshallemoutrocontexto,quandomuitaspessoascorremsimultaneamentenamesmadireção,éprecisoperguntarduascoisas:atrásdequêedoquêestãocorrendo?Osconsumidorespodemestarcorrendo

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atrás de sensações— táteis, visuais ou olfativas— agradáveis, ou atrás dedelíciasdopaladarprometidaspelosobjetos coloridosebrilhantes expostosnasprateleirasdos supermercados, ou atrásdas sensaçõesmaisprofundas ereconfortantes prometidas por um conselheiro especializado. Mas estãotambémtentandoescapardaagoniachamadainsegurança.Queremestar,pelomenosumavez,livresdomedodoerro,danegligênciaoudaincompetência.Queremestar,pelomenosumavez,seguros,confiantes;eaadmirávelvirtudedosobjetosqueencontramquandovãoàscompraséqueelestrazemconsigo(ouparecemporalgumtempo)apromessadesegurança.

Aindaquepossaseralgomais,ocomprarcompulsivoétambémumritualfeito à luz do dia para exorcizar as horrendas aparições da incerteza e dainsegurança que assombram as noites. É, de fato, um ritual diário: osexorcismosprecisamserrepetidosdiariamente,porquequasenadaépostonasprateleirasdossupermercadossemumcarimbocomo“melhorconsumirantesde”,eporqueotipodecertezaàvendanaslojaspoucoadiantaparacortarasraízesdainsegurança,queforamoquelevouocompradoravisitaraslojas.Oqueimporta,porém,epermitequeojogocontinue—nãoobstanteafaltadeperspectivas—,éamaravilhosaqualidadedosexorcismos:elessãoeficazese satisfatórios não tanto porque afugentam os fantasmas (o que raramentefazem), mas pelo próprio fato de serem realizados. Enquanto a arte deexorcizarestiverviva,osfantasmasnãopodemreivindicarainvencibilidade.E, na sociedade dos consumidores individualizados, tudo o que precisa serfeitoprecisaserfeitoàla“faça-você-mesmo”.Oquemais,alémdascompras,preenchetãobemospré-requisitosdessetipodeexorcismo?

Livreparacomprar—ouassimparece

Aspessoasdenosso tempo,observouAlbertCamus, sofrempornão seremcapazesdepossuiromundodemaneirasuficientementecompleta:

Exceto por vívidos momentos de realização, toda a realidade para eles éincompleta.Suasaçõeslhesescapamnaformadeoutrasações,retornamsobaparências inesperadas para julgá-los e desaparecem, como a água queTântalodesejavabeber,poralgumorifícioaindanãodescoberto.

Issoéoquecadaumdenóssabeporumolharintrospectivo:issoéoquenossasprópriasbiografias,quandoexaminadasem retrospecto,nosensinamsobreomundoemquevivemos.Masnãoquandoolhamosaoredor:quantoaos outros que conhecemos, e especialmente pessoas de que sabemos —“vistasàdistância, [sua]existênciaparece terumacoerênciaeumaunidadequenaverdadenãopodeter,masquepareceevidenteaoespectador”.Issoé

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uma ilusão de ótica. A distância (quer dizer, a pobreza de nossoconhecimento) borra os detalhes e apaga tudo o que não se encaixa naGestalt.Ilusãoounão,tendemosaverasvidasdosoutroscomoobrasdearte.E tendo-as visto assim, lutamos para fazer omesmo: “Todo omundo tentafazerdesuavidaumaobradearte.”18

Essaobradeartequequeremosmoldarapartirdoestofoquebradiçodavidachama-se“identidade”.Quando falamosde identidadehá,no fundodenossasmentes,umatênueimagemdeharmonia,lógica,consistência:todasascoisas que parecem — para nosso desespero eterno — faltar tanto e tãoabominavelmente ao fluxo de nossa experiência.A busca da identidade é abuscaincessantededeteroutornarmaislentoofluxo,desolidificarofluido,de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelomenos encobrir, aterrívelfluidezlogoabaixodofinoenvoltóriodaforma;tentamosdesviarosolhosdevistasqueelesnãopodempenetrarouabsorver.Masasidentidades,quenãotornamofluxomaislentoemuitomenosodetêm,sãomaisparecidascom crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que sefundemedissolvemnovamenteantesdetertempodeesfriarefixar-se.Entãohánecessidadedeoutratentativa,emaisoutra—eissosóépossívelsenosaferrarmos desesperadamente a coisas sólidas e tangíveis e, portanto, queprometamserduradouras,façamounãopartedeumconjunto,edêemounãorazõesparaqueesperemosquepermaneçam juntasdepoisqueas juntamos.Nas palavras deDeleuze e Guattari, “o desejo constantemente une o fluxocontínuo e objetos parciais que são por natureza fragmentários efragmentados”.19

As identidadesparecemfixase sólidasapenasquandovistasde relance,defora.Aeventualsolidezquepodemterquandocontempladasdedentrodaprópria experiência biográfica parece frágil, vulnerável e constantementedilacerada por forças que expõem sua fluidez e por contracorrentes queameaçam fazê-la em pedaços e desmanchar qualquer forma que possa teradquirido.

A identidade experimentada, vivida, só pode se manter unida com oadesivodafantasia,talvezosonharacordado.Mas,dadaateimosaevidênciadaexperiênciabiográfica,qualqueradesivomaisforte—umasubstânciacommaiorpoderdefixaçãoqueafantasiafácildedissolverelimpar—pareceriauma perspectiva tão repugnante quanto a ausência do sonhar acordado. Éprecisamente por isso que a moda, como observou Efrat Tseëlon, é tãoadequada: exatamente a coisa certa, nemmais fraca nemmais forte que asfantasias. Amoda oferece “meios de explorar os limites sem compromissocom a ação, e … sem sofrer as conseqüências”. “Nos contos de fadas”,lembraTseëlon,“asroupasdesonhosãoachavedaverdadeiraidentidadedaprincesa,comoafada-madrinhasabeperfeitamenteaovestirCinderelaparao

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baile.”20Em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase

todasasidentidades,éacapacidadede“iràscompras”nosupermercadodasidentidades, o grau de liberdade genuína ou supostamente genuína deselecionaraprópriaidentidadeedemantê-laenquantodesejado,quesetornaoverdadeirocaminhoparaarealizaçãodasfantasiasdeidentidade.Comessacapacidade, somos livres para fazer e desfazer identidades à vontade. Ouassimparece.

Numasociedadedeconsumo,compartilharadependênciadeconsumidor—adependênciauniversaldascompras—éacondiçãosinequanondetodaliberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de “teridentidade”. Num arroubo de sinceridade (ao mesmo tempo em que acenaparaosclientessofisticadosquesabemcomoéojogo),umcomercialdeTVmostraumamultidãodemulherescomumavariedadedepenteadosecoresde cabelos, enquanto o narrador comenta: “Todas únicas; todas individuais;todas escolhem X” (X sendo a marca anunciada de condicionador). Outensílio produzido em massa é a ferramenta da variedade individual. Aidentidade—“única”e“individual”—sópodesergravadanasubstânciaquetodo o mundo compra e que só pode ser encontrada quando se compra.Ganha-sea independência rendendo-se.Quandono filmeElizabetha rainhadaInglaterradecide“mudarsuapersonalidade”,tornar-sea“filhadeseupai”e forçar os cortesãos a obedecerem a suas ordens, ela o faz mudando openteado, cobrindo o rosto com grossa camada de pinturas artesanais eusandoumatiaratambémfeitaporartesãos.

A medida em que essa liberdade fundada na escolha de consumidor,especialmente a liberdade de auto-identificação pelo uso de objetosproduzidosecomercializadosemmassa,égenuínaouputativaéumaquestãoaberta. Essa liberdade não funciona sem dispositivos e substânciasdisponíveis no mercado. Dado isso, quão ampla é a gama de fantasias eexperimentaçãodosfelizescompradores?

Suadependêncianãoselimitaaoatodacompra.Lembre-se,porexemplo,oformidávelpoderqueosmeiosdecomunicaçãodemassaexercemsobreaimaginaçãopopular,coletivaeindividual.Imagenspoderosas,“maisreaisquearealidade”,emtelasubíquasestabelecemospadrõesdarealidadeedesuaavaliação, e também a necessidade de tornar mais palatável a realidade“vivida”.Avidadesejadatendeaseravida“vistanaTV”.Avidanatelinhadiminui e tira o charmedavidavivida: é a vidavividaqueparece irreal, econtinuaráaparecerirrealenquantonãoforremodeladanaformadeimagensque possam aparecer na tela. (Para completar a realidade de nossa própriavida, precisamos passá-la para videotape — essa coisa confortavelmenteapagável, sempre pronta para a substituição das velhas gravações pelas

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novas).ComodizChristopherLasch:“Avidamodernaétãocompletamentemediadapor imagens eletrônicas quenãopodemosdeixar de responder aosoutros como se suas ações— e as nossas— estivessem sendo gravadas etransmitidas simultaneamente para uma audiência escondida, ou guardadasparaseremassistidasmaistarde.”21

Emlivroposterior,22Laschlembraaseusleitoresque“ovelhosentidodaidentidade se refere tanto a pessoas como a coisas. Ambas perderam suasolideznasociedademoderna,suadefiniçãoecontinuidade”.Aimplicaçãoéque, nesse universal “desmanchar dos sólidos”, a iniciativa está com ascoisas;e,comoascoisassãoosornamentossimbólicosdasidentidadeseasferramentas dos esforços de identificação, as pessoas logo as seguem.Referindo-se ao famoso estudo de Emma Rothschild sobre a indústriaautomobilística,Laschsugereque

asinovaçõesdeAlfredSloannomarketing—amudançaanualdemodelos,oconstante aperfeiçoamento do produto, o esforço de associá-lo ao statussocial, a deliberada estimulação de um apetite ilimitado pela mudança—constituíram uma contrapartida necessária à inovação de Henry Ford naprodução … Ambas tendiam a desencorajar a iniciativa e o pensamentoindependenteeafazercomqueosindivíduosdesconfiassemdeseuprópriojulgamento, mesmo em questões de gosto. Parecia que suas própriaspreferênciasnão-tuteladaspoderiamseatrasaremrelaçãoàmodaetambémprecisavamserperiodicamenteaperfeiçoadas.

AlfredSloaneraumpioneirodoquemaistardesetornariaumatendênciauniversal.Aproduçãodemercadoriascomoumtodosubstituihoje“omundodos objetos duráveis” pelos “produtos perecíveis projetados para aobsolescência imediata”. As conseqüências dessa substituição foramsagazmentedescritasporJeremySeabrook:

O capitalismo não entregou os bens às pessoas; as pessoas foramcrescentementeentreguesaosbens;oquequerdizerqueoprópriocaráteresensibilidadedaspessoasfoireelaborado,reformulado,detalformaqueelasse agrupam aproximadamente … com as mercadorias, experiências esensações…cujavendaéoquedáformaesignificadoasuasvidas.23

Nummundoemquecoisasdeliberadamenteinstáveissãoamatéria-primadas identidades, que são necessariamente instáveis, é preciso estarconstantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter a própriaflexibilidadeeavelocidadedereajusteemrelaçãoaospadrõescambiantesdomundo “lá fora”. Como observou recentemente Thomas Mathiesen, apoderosametáforadoPanópticodeBenthamedeFoucaultnãodácontados

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modosemqueopoderopera.Mudamo-nosagora,sugereMathiesen,deumasociedade do estilo Panóptico para uma sociedade do estilo sinóptico: asmesas foram viradas e agora são muitos que observam poucos.24 Osespetáculostomamolugardasupervisãosemperderopoderdisciplinadordoantecessor. A obediência aos padrões (uma maleável e estranhamenteajustávelobediência apadrões eminentemente flexíveis, acrescento) tendeaser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pelacoerção— e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-secomoforçaexterna.

Essas verdades devem ser reafirmadas mais e mais, pois o cadáver do“conceito românticodoeu”,adivinhandoumaprofundaessência íntimaqueseescondeportrásdasaparênciasexternasesuperficiais,hojeemdiatendeaserartificialmentereanimadopelosesforçosconjuntosdoquePaulAtkinsone David Silverman apropriadamente denominaram de “sociedade daentrevista” (“apoiada,em todosos seusaspectos,ementrevistas facea facepararevelaroeupessoaleprivadodosujeito”)edegrandepartedapesquisasocialdehoje (quevisaa“chegaràverdadesubjetivadoeu”provocandoeentãodissecandoasnarrativaspessoaisnaesperançadenelasencontrarumarevelaçãodaverdadeíntima).AtkinsoneSilvermancontestamessaprática:

Nasciênciassociaisnãorevelamoseuscoletandonarrativas,mascriamosoeupelanarrativadotrabalhobiográfico…O desejo de revelação e revelações do desejo dão a aparência de

autenticidademesmo quando a própria possibilidade de autenticidade estáemquestão.25

Apossibilidadeemquestãoé,defato,bastantequestionável.Numerososestudosmostramqueasnarrativaspessoaissãomeramenteensaiosderetóricapública montados pelos meios públicos de comunicação para “representarverdadessubjetivas”.Masanão-autenticidadedoeusupostamenteautênticoestá inteiramente disfarçada pelos espetáculos de sinceridade— os rituaispúblicosdeperguntaspessoaiseconfissõespúblicasdequeosprogramasdeentrevistas são o exemplo mais preeminente, ainda que não o único.Ostensivamente, os espetáculos existempara dar vazão à agitação dos “eusíntimos” que lutam para se expor; de fato, são os veículos da versão dasociedadedoconsumodeuma“educaçãosentimental”:expõemecarimbamcomaaceitaçãopúblicaoanseioporEstadosemotivosesuasexpressõescomosquaisserãotecidasas“identidadesinteiramentepessoais”.

ComodisserecentementeHarvieFerguson,comsuamaneirainimitável,

nomundopós-moderno todas as distinções se tornam fluidas, os limites se

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dissolvem,e tudopodemuitobemparecerseucontrário;a ironiase tornaasensaçãoperpétuadequeas coisaspoderiamserum tantodiferentes, aindaquenuncafundamentalouradicalmentediferentes.

Em tal mundo, o cuidado com a identidade tende a adquirir um brilhointeiramentenovo:

A “idade da ironia” foi substituída pela “idade do glamour”, em que aaparênciaéconsagradacomoúnicarealidade…Amodernidade, assim,mudadeumperíododo eu “autêntico”para um

períododoeu“irônico”eparaumaculturacontemporâneadoquepoderiaserchamadodeeu“associativo”—um“afrouxamento”contínuodoslaçosentre a alma “interior” e a forma “exterior” da relação social … Asidentidadessãoassimoscilaçõescontínuas…26

Issoéoqueacondiçãopresenteparecequandopostasobomicroscópiodos analistas culturais.O retrato da inautenticidade publicamente produzidapodeserverdadeiro;osargumentosqueapóiamsuaverdadesãoirresistíveis.Masnãoéaverdadedesseretratoquedeterminaoimpactodos“espetáculosdesinceridade”.Oque importaécomose senteanecessidadeplanejadadaconstrução e reconstruçãoda identidade, comoela é percebida “dedentro”,comoelaé“vivida”.Sejagenuínoouputativoaosolhosdoanalista,ostatusfrouxo, “associativo”, da identidade, a oportunidade de “ir às compras”, deescolher e descartar o “verdadeiro eu”, de “estar em movimento”, veio asignificarliberdadenasociedadedoconsumoatual.Aescolhadoconsumidoréhoje umvalor em simesma; a ação de escolher émais importante que acoisaescolhida,eassituaçõessãoelogiadasoucensuradas,aproveitadasouressentidas,dependendodagamadeescolhasqueexibem.

Avidadequemescolheserásempreumabênçãomista,porém,mesmose(outalvezporque)agamadeescolhasforamplaeovolumedasexperiênciaspossíveis parecer infinito. Essa vida está assolada pelos riscos: a incertezaestá destinada a ser para sempre a desagradável mosca na sopa da livreescolha.Alémdisso(eaadiçãoéimportante)oequilíbrioentreaalegriaeatristezadoviciadodependedefatoresoutrosqueameragamadeescolhasàdisposição.Nemtodaselassãorealistas;eaproporçãodeescolhasrealistasnãoéfunçãodonúmerodeitensàdisposição,masdovolumederecursosàdisposiçãodequemescolhe.

Quando os recursos são abundantes pode-se sempre esperar, certo ouerrado, estar “por cima” ou “à frente” das coisas, ser capaz de alcançar osalvos que se movem com rapidez; pode-se mesmo estar inclinado asubestimar os riscos e a insegurança e supor que a profusão de escolhas

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compensadesobraodesconfortodevivernoescuro,denuncaestar segurosobrequandoeondeterminaaluta,seéquetermina.Éaprópriacorridaqueentusiasma,e,pormaiscansativaqueseja,apistaéumlugarmaisagradávelque a linha de chegada. É a essa situação que se aplica o velho provérbiosegundooqual“viajarcomesperançaémelhordoquechegar”.Achegada,ofimdefinitivodetodaescolha,parecemuitomaistediosaeconsideravelmentemaisassustadoradoqueaperspectivadequeasescolhasdeamanhãanulemasdehoje.Sóodesejarédesejável—quasenuncasuasatisfação.

Esperar-se-iaqueo entusiasmopela corridadiminuísse coma forçadosmúsculos—queoamorpeloriscoeaaventuraseapagariacomadiminuiçãodos recursos e com a chance de escolher uma opção verdadeiramentedesejávelcadavezmaisnebulosa.Essaexpectativaestáfadadaaserrefutada,porém,porqueoscorredoressãomuitosediferentes,masapistaéamesmaparatodos.ComodizJeremySeabrook,

ospobresnãovivemnumaculturaseparadadadosricos.Elesdevemvivernomesmomundoque foiplanejadoemproveitodaquelesque têmdinheiro.Esuapobrezaéagravadapelocrescimentoeconômico,damesmaformaqueéintensificadapelarecessãoepelonão-crescimento.27

Numasociedadesinópticadeviciadosemcomprar/assistir,ospobresnãopodem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior aliberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam dasvitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto maisirresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momentofugaz,oêxtasedaescolha.Quantomaisescolhaparecem teros ricos, tantomaisavidasemescolhapareceinsuportávelparatodos.

Separados,compramos

Paradoxalmente,aindaquenada inesperadamente,o tipode liberdadequeasociedade dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor —valortraduzidoacimadetudocomoaplenitudedaescolhadoconsumidorecomoacapacidadede tratarqualquerdecisãonavidacomoumaescolhadeconsumidor — tem um efeito muito mais devastador nos espectadoresrelutantesdoquenaquelesaqueostensivamentesedestina.Oestilodevidadaelitecomrecursos,dossenhoresdaartedeescolher,sofreumamudançafatal no curso de seu processamento eletrônico. Ela escorre pela hierarquiasocial, filtradapeloscanaisdosinópticoeletrônicoepor reduzidosvolumesde recursos, como a caricatura de ummutantemonstruoso.Oproduto finaldesse “escorrimento” está despido da maioria dos prazeres que o original

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prometia—emvezdissoexpondoseupotencialdestrutivo.A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras

adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado demercadorias.Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador deprazeresdequalquermercadoria tendeaseexaurir rapidamente.Felizmenteparaosconsumidorescomrecursos,estesosgarantemcontraconseqüênciasdesagradáveis como a mercantilização. Podem descartar as posses que nãomais querem com a mesma facilidade com que podem adquirir as quedesejam. Estão protegidos contra o rápido envelhecimento e contra aobsolescênciaplanejadadosdesejosesuasatisfaçãotransitória.

Terrecursosimplicaaliberdadedeescolher,mastambém—etalvezmaisimportante—a liberdadeem relaçãoàsconseqüênciasdaescolhaerrada, eportanto a liberdadedos atributosmenos atraentes da vida de escolhas.Porexemplo, “o sexo de plástico”, “amores múltiplos” e “relações puras”, osaspectos da mercantilização das parcerias humanas, foram retratados porAnthony Giddens como veículos de emancipação e garantia de uma novafelicidade que vem em sua esteira — a nova escala sem precedentes daautonomia individual e da liberdade de escolha. Se isso é verdade, e nadamaisqueaverdade,paraaelitemóveldosricosepoderososéumaquestãoaberta.Mesmonocasodeles,sóépossíveladerirdecoraçãoàafirmativadeGiddens pensando no mais forte dos membros da parceria, quenecessariamente inclui o mais fraco, não tão bem dotado dos recursosnecessários para seguir livremente seus desejos (para não mencionar ascrianças—essasinvoluntáriasmasduráveisconseqüênciasdasparcerias,queraramentevêemo rompimentodeumcasamentocomomanifestaçãodesuaprópria liberdade).Mudarde identidadepodeserumaquestãoprivada,massempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certasobrigações; os que estão do lado que sofre quase nunca são consultados, emenosaindatêmchancedeexercitarsualiberdadedeescolha.

E,noentanto,mesmolevandoemconsideraçãotais“efeitossecundários”de“relaçõespuras”,pode-seaindadizerquenocasodosricosepoderosososarranjos costumeiros de divórcio e as pensões para as crianças ajudam aaliviara insegurança intrínsecaàsparceriasaté-que-acabem,equequalquerque seja a insegurança remanescente ela não é umpreço excessivo a pagarpela “redução dos prejuízos” e por evitar a necessidade do arrependimentoeterno pelos pecados porventura cometidos. Mas não há dúvida de que,“escorrida”paraospobresedestituídos,aparcerianessenovoestilocomafragilidade do contratomatrimonial e a “purificação” da união de todas asfunções exceto a da “satisfação mútua” espalha muita tristeza, agonia esofrimento e um volume crescente de vidas partidas, sem amor e semperspectivas.

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Emsuma:amobilidadeeaflexibilidadedaidentificaçãoquecaracterizama vida do “ir às compras” não são tanto veículos de emancipação quantoinstrumentosderedistribuiçãodasliberdades.Sãoporissobênçãosmistas—tanto tentadoras e desejadas quanto repulsivas e temidas, e despertam ossentimentos mais contraditórios. São valores altamente ambivalentes quetendem a gerar reações incoerentes e quase neuróticas. Como diz YvesMichaud,filósofodaSorbonne,“comoexcessodeoportunidades,crescemasameaças de desestruturação, fragmentação e desarticulação”.28 A tarefa daauto-identificação temefeitoscolaterais altamentedestrutivos; torna-se focode conflitos e dispara energias mutuamente incompatíveis. Como a tarefacompartilhada por todos tem que ser realizada por cada um sob condiçõesinteiramente diferentes, divide as situações humanas e induz à competiçãomais ríspida, em vez de unificar uma condição humana inclinada a gerarcooperaçãoesolidariedade.

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3•TEMPO/ESPAÇO

George Hazeldon, arquiteto inglês estabelecido na África do Sul, tem umsonho: uma cidade diferente das cidades comuns, cheia de estrangeirossinistrosqueseesgueiramdeesquinasescuras, surgemde ruasesquálidasebrotamdedistritosnotoriamenteperigosos.AcidadedosonhodeHazeldonécomoumaversãoatualizada,hightech,daaldeiamedievalqueabrigadetrásdeseusgrossosmuros,torres,fossoseponteslevadiçasumaaldeiaprotegidadosriscoseperigosdomundo.Umacidadefeitasobmedidaparaindivíduosquequeremadministraremonitorarseuestarjuntos.Algumacoisa,comoelemesmo disse, parecida com o Monte Saint-Michel, simultaneamente umclaustroeumafortalezainacessívelebemguardada.

QuemolhaosprojetosdeHazeldonconcordaqueapartedo“claustro”foiimaginadapelodesenhistaàsemelhançadaThélèmedeRabelais,acidadedaalegria e do divertimento compulsórios, onde a felicidade é o únicomandamento, e não se parece nada como esconderijo dos ascetas voltadospara os céus, que se autoimolam, são piedosos, oram e jejuam.A parte da“fortaleza”,poroutrolado,éoriginal.HeritagePark,acidadequeHazeldonestáparaconstruirem500acresdeterranãomuitolongedaCidadedoCabo,deve diferenciar-se das outras cidades por seu autocercamento: cercaselétricasdealtavoltagem,vigilânciaeletrônicadasviasdeacesso,barreirasportodoocaminhoeguardasfortementearmados.

Se você puder se dar ao luxo de comprar uma casa emHeritage Park,podepassarboapartedesuavidaafastadodosriscoseperigosdaturbulenta,hostil e assustadora selva que começa logo que terminam os portões dacidade.Tudooqueumavidaagradávelrequerestálá:HeritageParkterásuaspróprias lojas, igrejas, restaurantes, teatros, áreas de lazer, florestas, umparquecentral,lagoscomsalmões,playgrounds,pistasdecorrida,camposdeesportesequadrasdetênis—eárealivresuficienteparaseacrescentaroquequerqueamodadeumavidadecentepossademandarnofuturo.Hazeldonébastante explícito quando esclarece as vantagens deHeritagePark sobre oslugaresondeamaioriadaspessoasvivehojeemdia:

Hoje a primeira questão é a segurança. Queiramos ou não, é o que faz adiferença…Quandoeucresci,emLondres,tínhamosumacomunidade.Vocênãofazianadaerradoporquetodosoconheciamecontariamparaseupaioumãe … Queremos recriar isso aqui, uma comunidade que não precisa sepreocupar.1

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Entãoéassim:aopreçodeumacasanoHeritageParkvocêganhaacessoaumacomunidade. “Comunidade” é, hoje, a última relíquia das utopias daboa sociedade de outrora; é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor,compartilhada com vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras deconvívio.Poisautopiadaharmoniareduziu-se, realisticamente,ao tamanhodavizinhançamaispróxima.Porisso,a“comunidade”éumbomargumentodevenda.Porissotambém,nosprospectosdistribuídosporGeorgeHazeldon,o incorporador, a comunidade foi colocada como o complementoindispensável, embora ausente em outros projetos, dos bons restaurantes epitorescaspistasdetreinamentoqueoutrascidadestambémoferecem.

Note-se, no entanto, qual é o sentido dessa reunião comunitária. AcomunidadequeHazeldonlembradeseusanosdeinfânciaemLondresequerrecriar nas terras virgens daÁfrica do Sul é, antes e acima de tudo, senãoapenas, um território vigiado de perto, onde aqueles que fazem algo quedesagradaaosoutrosprovocamseuressentimentoesãoporissoprontamentepunidosepostosnalinha—enquantoosdesocupados,vagabundoseoutrosintrusosque“nãofazemparte”sãoimpedidosdeentrarou,então,cercadoseexpulsos.Adiferençaentreopassadoafetuosamente lembradoesuaréplicaatualizadaéqueoqueacomunidadedasmemóriasdainfânciadeHazeldonobtinhausandoosolhos,línguasemãos,casualmenteesemmuitopensar,noHeritage Park é confiado a câmeras de TV ocultas e dúzias de segurançasarmadosverificandosenhasnosportõesediscretamente(ouostensivamente,senecessário)patrulhandoasruas.

UmgrupodepsiquiatrasdoVictorianInstituteofForensicMentalHealth,na Austrália, advertiu recentemente que “mais e mais pessoas estãodenunciando falsamente terem sido vítimas de assaltantes, gastandocredibilidadeedinheiropúblico”—dinheiroque,comodizemosautoresdorelato, “deveria ser canalizado para as verdadeiras vítimas”.2 Alguns dos“falsos denunciantes” investigados foram diagnosticados como vítimas de“severasdesordensmentais”,e“acreditavamestarsendoassaltadosemseusdelíriosdequetodosconspiravamcontraeles”.

Poderíamoscomentarasobservaçõesdospsiquiatrasdizendoqueacrençana conspiração dos outros contra nós não é novidade; seguramenteatormentou certos homens em todos os tempos e em todos os cantos domundo.Nuncaeemnenhumlugarfaltarampessoasprontasaencontrarumalógica para sua infelicidade, frustrações e derrotas humilhantes atribuindo aculpaaintençõesmalévolasemal-intencionadosplanosalheios.Oqueénovoé que são os assaltantes (juntamente com os vagabundos e outrosdesocupados,personagensestranhosao lugaremquesemovem)que levamagora a culpa, representando o diabo, os íncubos, maus espíritos, duendes,mau-olhado,gnomosmalvados,bruxasoucomunistasembaixodacama.Se

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as “falsas vítimas” podem “gastar a credibilidade pública” é porque“assaltante” já se tornouumnomecomumepopularparaomedoambientequeassolanossoscontemporâneos;eassimapresençaubíquadosassaltantestornou-secríveleotemordeserassaltado,amplamentecompartilhado.E,sepessoasfalsamenteobcecadaspelaameaçadeseremassaltadaspodem“gastarodinheiropúblico”,éporqueodinheiropúblicojáfoidestinadodeantemão,em quantidades que crescem a cada ano, para o propósito de identificar ecaçaros assaltantes, vagabundos eoutrasversões atualizadasdaquele terrormoderno,omobilevulgus—os tipos inferioresdepessoas emmovimento,surgindoeseespalhandoemlugaresondesódeveriamestaraspessoascertas—eporqueadefesadasruasperigosas,comooutroraoexorcismodascasasassombradas, é reconhecida como um objetivo digno de ser perseguido ecomoamaneiraapropriadadeprotegeraspessoasqueprecisamdeproteçãocontraosmedos eperigosque as fazem sobressaltadas, nervosas, tímidas eassustadas.

CitandoCityofQuartz (1990),deMikeDavis,SharonZukindescreveanova aparência dos espaços públicos de Los Angeles reformados pelaspreocupações com a segurança dos seus habitantes e de seus defensoreseleitos ou nomeados: “Os helicópteros zunem nos céus sobre os guetos, apolícia hostiliza os jovens como possíveis membros de gangues, osproprietários compram a defesa armada que podem… ou têm coragem deusar.” Os anos 1960 e 1970 foram, diz Zukin, “um divisor de águas nainstitucionalizaçãodosmedosurbanos”.

Os eleitores e as elites—uma ampla classemédia nosEstadosUnidos—poderiam ter enfrentado a escolha de apoiar a política governamental paraeliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos eminstituições públicas comuns. Escolheram, em vez disso, comprar proteção,estimulandoocrescimentodaindústriadasegurançaprivada.

Operigomais tangívelparaoquechamade“culturapública”está,paraZukin, na “política domedo cotidiano”.O espectro arrepiante e apavorantedas “ruas inseguras” mantém as pessoas longe dos espaços públicos e asafastadabuscadaarteedashabilidadesnecessáriasparacompartilharavidapública.

“Endurecer” contra o crime construindomais prisões e impondo a pena demortesãoasrespostasmaiscorriqueirasàpolíticadomedo.“Prendamtodaapopulação”, ouvi um homem dizer no ônibus, reduzindo a solução a seuridículo extremo.Outra resposta é a privatização emilitarização do espaçopúblico— fazendo das ruas, parques emesmo lojas lugaresmais seguros,masmenoslivres…3

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Acomunidadedefinidapor suas fronteirasvigiadasdepertoenãomaispor seu conteúdo; a “defesada comunidade” traduzida comooempregodeguardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundopromovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreaspúblicasemenclaves“defensáveis”comacessoseletivo;separaçãonolugardavidaemcomum—essassãoasprincipaisdimensõesdaevoluçãocorrentedavidaurbana.

Quandoestranhosseencontram

Na clássica definição de Richard Sennett, uma cidade é “um assentamentohumano em que estranhos têm chance de se encontrar”.4 Isso significa queestranhos têmchancede seencontrar emsuacondiçãodeestranhos, saindocomoestranhosdoencontrocasualqueterminademaneiratãoabruptaquantocomeçou.Osestranhosseencontramnumamaneiraadequadaaestranhos;umencontro de estranhos é diferente de encontros de parentes, amigos ouconhecidos— parece, por comparação, um “desencontro”. No encontro deestranhosnãoháumaretomadaapartirdopontoemqueoúltimoencontroacabou,nemtrocadeinformaçõessobreastentativas,atribulaçõesoualegriasdesse intervalo, nem lembranças compartilhadas: nada emque se apoiar ouque sirva de guia para o presente encontro. O encontro de estranhos é umevento sem passado. Freqüentemente é também um evento sem futuro (oesperado é não tenha futuro), uma história para “não ser continuada”, umaoportunidadeúnicaaserconsumadaenquantodureenoato,semadiamentoesem deixar questões inacabadas para outra ocasião. Como a aranha cujomundo inteiro está enfeixado na teia que ela tece a partir de seu próprioabdome, o único apoio com que estranhos que se encontram podem contardeveráser tecidodofiofinoesoltodesuaaparência,palavrasegestos.Nomomentodoencontronãoháespaçoparatentativaeerro,nemaprendizadoapartirdoserrosouexpectativadeoutraoportunidade.

O que se segue é que a vida urbana requer um tipo de atividademuitoespecialesofisticada,defatoumgrupodehabilidadesqueSenettlistousobarubrica“civilidade”,istoé

aatividadequeprotegeaspessoasumasdasoutras,permitindo,contudo,quepossam estar juntas. Usar uma máscara é a essência da civilidade. Asmáscaraspermitemasociabilidadepura,distantedascircunstânciasdopoder,do mal-estar e dos sentimentos privados das pessoas que as usam. Acivilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregadoscomnossopeso.5

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Segue-se esse objetivo, é claro, esperando reciprocidade. Proteger osoutroscontraaindevidasobrecargarefreando-sedeinteragircomelessófazsentidoseseesperagenerosidadesemelhantedosoutros.Acivilidade,comoalinguagem,nãopodeser“privada”.Antesdesetornaraarteindividualmenteaprendidaeprivadamentepraticada,acivilidadedeveserumacaracterísticadasituaçãosocial.Éoentornourbanoquedeveser“civil”,afimdequeseushabitantespossamaprenderasdifíceishabilidadesdacivilidade.

O que significa, então, dizer que o meio urbano é “civil” e, assim,propícioàpráticaindividualdacivilidade?Significa,anteseacimadetudo,adisponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar comopersonaepúblicas—semsereminstigadas,pressionadasouinduzidasatiraras máscaras e “deixar-se ir”, “expressar-se”, confessar seus sentimentosíntimoseexibirseuspensamentos,sonhoseangústias.Mastambémsignificaumacidadequeseapresentaaseusresidentescomoumbemcomumquenãopodeser reduzidoaoagregadodepropósitos individuaisecomouma tarefacompartilhadaquenãopodeserexauridaporumgrandenúmerodeiniciativasindividuais,comoumaformadevidacomumvocabulárioelógicaprópriosecomsuaprópriaagenda,queé(eestáfadadaacontinuarsendo)maioremaisrica que a mais completa lista de cuidados e desejos individuais— de talforma que “vestir uma máscara pública” é um ato de engajamento eparticipação, enãoumatodedescompromissoede retiradado“verdadeiroeu”,deixandodeladoointercursoeoenvolvimentopúblico,manifestandoodesejodeserdeixadosóecontinuarsó.

Há muitos lugares nas cidades contemporâneas a que cabe o nome de“espaçospúblicos”.Sãodemuitostiposetamanhos,masamaioriadelesfazpartedeumadeduasgrandescategorias.Cadacategoriaseafastadomodeloidealdoespaçocivilemduasdireçõesopostasmascomplementares.

ApraçaLaDéfense,emParis,umenormequadriláteronamargemdireitado Sena, concebida, comissionada e construída por François Mitterrand(como monumento duradouro de sua presidência, em que o esplendor egrandeza do cargo foram cuidadosamente separados das fraquezas e falhaspessoais de seu ocupante), incorpora todos os traços da primeira das duascategoriasdoespaçopúblicourbano,quenãoé,noentanto—enfaticamentenãoé—,“civil”.OquechamaaatençãodovisitantedeLaDéfenseéanteseacima de tudo falta de hospitalidade da praça: tudo o que se vê inspirarespeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanência. Os edifíciosfantásticosquecircundamapraçaenormeevaziasãoparaseremadmirados,enãovisitados;cobertosdecimaabaixodevidrorefletivo,parecemnãoterjanelasouportasqueseabramnadireçãodapraça;engenhosamentedãoascostas àpraçadiantedaqual se erguem.São imponentes e inacessíveis aosolhos — imponentes porque inacessíveis, estas duas qualidades que se

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complementam e reforçam mutuamente. Essas fortalezas/conventoshermeticamente fechadas estão na praça, mas não fazem parte dela — einduzem quem quer que esteja perdido na vastidão do espaço a seguir seuexemplo e sentimento. Nada alivia ou interrompe o uniforme e monótonovaziodapraça.Nãohábancosparadescansar,nemárvoressobcujasombraesconder-se do sol escaldante. (Há, é certo, um grupo de bancosgeometricamente dispostos no lado mais afastado da praça; eles se situamnumaplataformaummetroacimadochãodapraça—umaplataformacomoum palco, o que faria do ato de sentar-se e descansar um espetáculo paratodososoutrospassantesque,diferentementedossentados, têmoque fazerali).Detemposemtempos,comaregularidadedoshoráriosdometrô,essesoutros — filas de pedestres, como formigas apressadas — emergem dedebaixodaterra,estiram-sesobreopavimentodepedrasqueseparaasaídado metrô de um dos brilhantes monstros que cercam (sitiam) a praça edesaparecemrapidamentedavista.Eapraça ficanovamentevazia—atéachegadadopróximotrem.

Asegundacategoriadeespaçopúblicomasnãocivil sedestinaa serviraos consumidores, ou melhor, a transformar o habitante da cidade emconsumidor. Nas palavras de Liisa Uusitalo, “os consumidoresfreqüentemente compartilham espaços físicos de consumo, como salas deconcertosouexibições,pontosturísticos,áreasdeesportes,shoppingcenterse cafés, sem ter qualquer interação social real”.6 Esses lugares encorajam aaçãoenãoa interação.Compartilharoespaço físicocomoutrosatoresquerealizamatividadesimilardáimportânciaàação,carimba-acoma“aprovaçãodonúmero” e assim corrobora seu sentido e a justifica semnecessidade demais razões. Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em queestão individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem,paraeles.Nãoacrescentarianadaaosprazeresdecompraredesviariacorpoementedatarefa.

A tarefa é o consumo, e o consumo é um passatempo absoluta eexclusivamente individual, uma série de sensações que só podem serexperimentadas—vividas—subjetivamente.Asmultidõesque enchemosinterioresdos“templosdoconsumo”deGeorgeRitzersãoajuntamentos,nãocongregações; conjuntos, não esquadrões; agregados, não totalidades. Pormaischeiosquepossamestar,oslugaresdeconsumocoletivonãotêmnadade“coletivo”.ParautilizaramemorávelexpressãodeAlthusser,quemquerque entre em tais espaços é “interpelado” enquanto indivíduo, chamado asuspenderouromperoslaçosedescartaraslealdades.

Osencontros,inevitáveisnumespaçolotado,interferemcomopropósito.Precisamserbrevesesuperficiais:nãomais longosnemmaisprofundosdoque o ator os deseja. O lugar é protegido contra aqueles que costumam

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quebraressaregra—todotipodeintrometidos,chatoseoutrosquepoderiaminterferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador. Otemplodoconsumobemsupervisionado,apropriadamentevigiadoeguardadoéumailhadeordem,livredemendigos,desocupados,assaltantesetraficantes— pelo menos é o que se espera e supõe. As pessoas não vão para essestemplosparaconversarousocializar.Levamcomelasqualquercompanhiadequequeiramgozar(outolerem),comooscaracóislevamsuascasas.

Lugaresêmicos,lugaresfágicos,não-lugares,espaçosvazios

Oquequerquepossaacontecerdentrodotemplodoconsumotempoucaounenhumarelaçãocomoritmoeteordavidadiáriaqueflui“foradosportões”.Estar num shopping center se parece com “estar noutro lugar”.7 Idas aoslugaresdeconsumodiferemdoscarnavaisdeBakhtin,quetambémenvolvema experiência de “ser transportado”: idas às compras são principalmenteviagensnoespaço,eapenassecundariamenteviagensnotempo.

Ocarnavaléamesmacidadetransformada,maisexatamenteumintervalodetempoduranteoqualacidadesetransformaantesdecairdenovoemsuarotina. Por um lapso de tempo estritamente definido, mas um tempo queretornaciclicamente,ocarnavaldesvendao“outrolado”darealidadediária,um lado constantemente ao alcance, mas normalmente oculto à vista eimpossível de tocar. A lembrança da descoberta e a esperança de outrosrelances por vir não permitem que a consciência desse “outro lado” sejainteiramentesuprimida.

Uma ida ao templo do consumo é uma questão inteiramente diferente.Entrarnessaviagem,maisdoquetestemunharatransubstanciaçãodomundofamiliar,écomoser transportadoaumoutromundo.Otemplodoconsumo(claramentedistintoda“lojadaesquina”deoutrora)podeestarnacidade(senão construído, simbolicamente, fora dos limites da cidade, à beira de umaautoestrada),masnãofazpartedela;nãoéomundocomumtemporariamentetransformado,mas ummundo “completamente outro”.O que o faz “outro”nãoéareversão,negaçãooususpensãodasregrasquegovernamocotidiano,comono casodo carnaval,mas a exibiçãodomodode ser queo cotidianoimpede ou tenta em vão alcançar — e que poucas pessoas imaginamexperimentarnoslugaresquehabitamnormalmente.

A metáfora do “templo” de Ritzer é adequada; os espaços decompra/consumosãodefatotemplosparaosperegrinos—edefinitivamentenão se destinam à celebração das missas negras anuais das festascarnavalescasnasparóquias.Ocarnavalmostraquearealidadenãoétãoduraquantopareceequeacidadepodesertransformada;ostemplosdoconsumo

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nãorevelamnadadanaturezadarealidadecotidiana.Otemplodoconsumo,comoo“barco”deMichelFoucault,“éumpedaçoflutuantedoespaço,umlugarsemlugar,queexisteporsimesmo,queestáfechadoemsimesmoeaomesmo tempo se dá ao infinito do mar”8; pode realizar esse “dar-se aoinfinito”porqueseafastadoportodomésticoesemantémadistância.

Esse“lugarsemlugar”auto-cercado,diferentementede todosos lugaresocupadosoucruzadosdiariamente,étambémumespaçopurificado.Nãoquetenhasido limpodavariedadeedadiferença,queconstantementeameaçamoutroslugarescompoluiçãoeconfusãoedeixamalimpezaeatransparênciaforadoalcancedosqueosusam;aocontrário,oslugaresdecompra/consumodevemmuitodesuaatraçãomagnéticaàcoloridaecaleidoscópicavariedadedesensaçõesemoferta.Masasdiferençasdentro,aocontráriodasdiferençasfora, foram amansadas, higienizadas e garantidas contra ingredientesperigosos— e por isso não são ameaçadoras. Podem ser aproveitadas semmedo: excluído o risco da aventura, o que sobra é divertimento puro, semmistura ou contaminação. Os lugares de compra/consumo oferecem o quenenhuma“realidadereal”externapodedar:oequilíbrioquaseperfeitoentreliberdadeesegurança.

Dentrodeseus templos,oscompradores/consumidorespodemencontrar,alémdisso, oque zelosamente e emvãoprocuram foradeles: o sentimentoreconfortantedepertencer—aimpressãodefazerpartedeumacomunidade.ComosugereSennett, aausênciadediferença,o sentimentodeque“somostodos semelhantes”, o supostodeque “não é precisonegociar pois temos amesmaintenção”,éosignificadomaisprofundodaidéiade“comunidade”eacausa última de sua atração, que cresce proporcionalmente à pluralidade emultivocalidade da vida. Podemos dizer que “comunidade” é uma versãocompactadeestarjunto,edeumtipodeestarjuntoquequasenuncaocorrena“vida real”:umestar juntodepura semelhança,do tipo“nósque somostodosomesmo”umestarjuntoqueporessarazãoénão-problemáticoenãoexigeesforçoouvigilância,eestánaverdadepré-determinado;umestarjuntoquenãoéumatarefa,mas“odado”edadomuitoantesqueoesforçodefazê-lo.NaspalavrasdeSennett,

imagens de solidariedade comunitária são forjadas para que os homenspossam evitar lidar com outros homens … Por um ato de vontade, umamentirasequiserem,omitodasolidariedadecomunitáriadeuaessaspessoasmodernas a possibilidade de ser covardes e esconder-se dos outros … Aimagem da comunidade é purificada de tudo o que pode implicar umsentimentodediferença,ouconflito,arespeitodeoque“nós”somos.Dessemodo,omitodasolidariedadecomunitáriaéumritualdepurificação.9

Oobstáculo,porém,éque“osentimentodeumaidentidadecomum…é

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uma fabricação da experiência”. Se é assim, então quem projetou e quemsupervisionaedirigeostemplosdoconsumosãomestresdafalsificaçãoedavigarice. Em suas mãos a impressão é tudo: não é necessário fazer maisperguntas—que,dequalquerforma,nãoseriamrespondidas.

Dentrodotemplo,aimagemsetornarealidade.Asmultidõesqueenchemoscorredoresdosshoppingcentersseaproximamtantoquantoéconcebíveldo ideal imaginário de “comunidade” que não conhece a diferença (maisexatamente,diferençaqueconte,diferençaque requeiraconfrontodiantedaalteridade do outro, negociação, clarificação e acordo quanto ao modusvivendi). Por essa razão, essa comunidade não envolve negociações, nemesforço pela empatia, compreensão e concessões. Todo o mundo entre asparedesdosshoppingcenterspodesuporcomsegurançaqueaquelescomquetrombará ou pelos quais passará nos corredores vieram com o mesmopropósito, foram seduzidos pelas mesmas atrações (reconhecendo-as,portanto, como atrações) e são guiados e movidos pelos mesmos motivos.“Estar dentro” produz uma verdadeira comunidade de crentes, unificadostantopelosfinsquantopelosmeios, tantopelosvaloresqueestimamquantopela lógica de conduta que seguem. Assim, uma viagem aos “espaços doconsumo” é uma viagem à tão almejada comunidade que, como a própriaexperiênciadeiràscompras,estápermanentemente“alhures”.Pelospoucosminutosouhorasqueduranosso“passeio”,podemosencostarnosombrosde“outroscomonós”, fiéisdomesmo templo;outroscujaalteridadepode ser,pelomenosneste lugar,aquieagora,deixada longedavista,damenteedaconsideração. Para todos os propósitos, o lugar é puro, tão puro quanto oslugaresdocultoreligiosoeacomunidadeimaginada(oupostulada).

Claude Lévi-Strauss, o maior antropólogo cultural de nosso tempo,sugeriu emTristes trópicos que apenas duas estratégias foram utilizadas nahistória humana quando a necessidade de enfrentar a alteridade dos outrossurgiu:umaeraaantropoêmica,aoutra,aantropofágica.

Aprimeiraestratégiaconsisteem“vomitar”,cuspirosoutrosvistoscomoincuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o diálogo, ainteração social e todas as variedades de commercium, comensalidade econnubium. As variantes extremas da estratégia “êmica” são hoje, comosempre,oencarceramento,adeportaçãoeoassassinato.Asformaselevadas,“refinadas”(modernizadas)daestratégia“êmica”sãoaseparaçãoespacial,osguetosurbanos, o acesso seletivo a espaços eo impedimento seletivo a seuuso.

A segunda estratégia consiste numa soi-disant “desalienação” dassubstânciasalheias:“ingerir”,“devorar”corposeespíritosestranhosdemodoafazê-los,pelometabolismo,idênticosaoscorposqueosingerem,eportantonão distinguíveis deles. Essa estratégia também assumiu ampla gama de

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formas:docanibalismoàassimilação forçada—cruzadasculturais,guerrasdeclaradascontracostumeslocais,contracalendários,cultos,dialetoseoutros“preconceitos”e“superstições”.Seaprimeiraestratégiavisavaaoexílioouaniquilaçãodos“outros”,asegundavisavaàsuspensãoouaniquilaçãodesuaalteridade.

AressonânciaentreadicotomiadasestratégiasdeLévi-Strausseasduascategorias de espaços “públicos-mas-não-civis” é impressionante, mas nãosurpreendente.ApraçaLaDéfenseemParis (juntamentecommuitosoutros“espaçosinterditórios”que,segundoStevenFlusty,ocupamlugardedestaqueentreinovaçõesurbanascorrentes)10éumexemploarquitetônicodaestratégia“êmica”,enquantoos“espaçosdeconsumo”representama“fágica”.Ambas— cada uma à sua maneira— respondem ao mesmo desafio: a tarefa deenfrentarachancedeencontrarestranhos,característicaconstitutivadavidaurbana. Enfrentar essa possibilidade é uma tarefa que requer medidas“assistidas pelo poder” se os hábitos de civilidade estiverem ausentes ouforempoucodesenvolvidosenãoprofundamenteenraizados.Osdoistiposdeespaços urbanos “públicos-mas-não-civis” derivam da evidente falta dehabilidadesdacivilidade;amboslidamcomasconseqüênciaspotencialmenteprejudiciais dessa falta não pela promoção do estudo e aquisição dashabilidades que faltam,mas tornando sua posse irrelevante e desnecessáriaparaapráticadaartedoviverurbano.

Épreciso acrescentar às duas respostas descritas uma terceira, cada vezmais comum.Ela é o queGeorgesBenko, seguindoMarcAugé, chama de“não-lugares” (ou, alternativamente, segundo Garreau, “cidades-de-lugar-nenhum”).11 “Não-lugares” partilham certas características com nossaprimeira categoria de lugares ostensivamente públicos mas enfaticamentenão-civis: desencorajam a idéia de “estabelecer-se”, tornando a colonizaçãoou domesticação do espaço quase impossível. Ao contrário deLaDéfense,porém,espaçocujoúnicodestinoéseratravessadoedeixadoparatrásomaisrapidamente possível, ou dos espaços “interditórios” cuja principal funçãoconsisteemimpediroacessoequesãodesenhadosparaseremcircundados,enão atravessados, os não-lugares aceitam a inevitabilidade de uma adiadapassagem,àsvezesmuitolonga,deestranhos,efazemoquepodemparaquesua presença seja “meramente física” e socialmente pouco diferente, epreferivelmente indistinguível da ausência, para cancelar, nivelar ou zerar,esvaziarasidiossincráticassubjetividadesdeseus“passantes”.Osresidentestemporários dos não-lugares são possivelmente diferentes, cada variedadecomseuspróprioshábitoseexpectativas;eotruqueéfazercomqueissosejairrelevantedurante suaestadia.Quaisquerque sejamsuasoutrasdiferenças,deverão seguir osmesmos padrões de conduta: e as pistas que disparam opadrãouniformedecondutadevemserlegíveisportodoseles,independentedaslínguasqueprefiramouquecostumemutilizaremseusafazeresdiários.

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Oquequerqueaconteçanesses“não-lugares”,todosdevemsentir-secomoseestivessem em casa, mas ninguém deve se comportar como severdadeiramente em casa. Um não-lugar “é um espaço destituído dasexpressões simbólicas de identidade, relações e história: exemplos incluemaeroportos, auto-estradas, anônimos quartos de hotel, transporte público…Jamaisnahistóriadomundoosnão-lugaresocuparamtantoespaço”.

Os não-lugares não requerem domínio da sofisticada e difícil arte dacivilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitossimplesefáceisdeaprender.Porcausadessasimplificação,tambémnãosãoescolasdecivilidade.E,comohoje“ocupamtantoespaço”,comocolonizamfatiascadavezmaioresdoespaçopúblicoeasreformulamàsuasemelhança,asocasiõesdeaprendizadosãocadavezmaisescassaseocorremaintervaloscadavezmaiores.

As diferenças podem ser expelidas, engolidas, mantidas à parte, e hálugaresqueseespecializamemcadacaso.Masasdiferençastambémpodemser tornadas invisíveis,oumelhor, impedidasdeserempercebidas.Esseéocaso dos “espaços vazios”. Como propõem Jerzy Kociatkiewicz e MonikaKostera,quecunharamotermo,osespaçosvaziossão

lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitadosfisicamenteporcercasoubarreiras.Nãosãolugaresproibidos,masespaçosvazios,inacessíveisporqueinvisíveis.Se…ofazersentidoéumatodepadronização,compreensão,superação

da surpresae criaçãode significado,nossaexperiênciadosespaçosvaziosnãoincluiofazersentido.12

Osespaçosvaziossãoantesdemaisnadavaziosdesignificado.Nãoquesejamsemsignificadoporquesãovazios:éporquenãotêmsignificado,nemseacreditaquepossamtê-lo,quesãovistoscomovazios(melhorseriadizernão-vistos).Nesseslugaresqueresistemaosignificado,aquestãodenegociardiferenças nunca surge: não há com quem negociá-la. O modo como osespaçosvazioslidamcomadiferençaéradicalnumamedidaqueoutrostiposde lugares projetados para repelir ou atenuar o impacto de estranhos nãopodemacompanhar.

Os espaços vazios queKociatkiewicz eKostera listam são lugares não-colonizados e lugares que nem os projetistas nem os gerentes dos usuáriossuperficiaisreservamparacolonização.Elessão,podemosdizer,lugaresque“sobram”depoisdareestruturaçãodeespaçosrealmenteimportantes:devemsua presença fantasmagórica à falta de superposição entre a elegância daestrutura e a confusão do mundo (qualquer mundo, inclusive o mundodesenhadopropositalmente),notórioporfugiraclassificaçõescabais.Masa

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famíliadosespaçosvaziosnãoselimitaàssobrasdosprojetosarquitetônicoseàsmargensnegligenciadasdasvisõesdourbanista.Muitosespaçosvaziossão,defato,nãoapenasresíduosinevitáveis,masingredientesnecessáriosdeoutro processo: o de mapear o espaço partilhado por muitos usuáriosdiferentes.

Numademinhasviagensdeconferências(aumacidadepopulosa,grandeevivadosuldaEuropa),fuirecebidonoaeroportoporumajovemprofessora,filha de um casal de profissionais ricos e de alta escolaridade. Ela sedesculpouporquea idaparaohotelnão seria fácil, e tomariamuito tempo,pois não havia como evitar as movimentadas avenidas para o centro dacidade, constantemente engarrafadas pelo tráfego pesado. De fato, levamosquaseduashorasparachegaraolugar.Minhaguiaofereceu-separaconduzir-me ao aeroporto no dia da partida. Sabendo quão cansativo era dirigir nacidade,agradecisuagentilezaeboavontade,masdissequetomariaumtáxi.Oquefiz.Destavez,aidaaoaeroportotomoumenosdedezminutos.Masomotoristafoiporfileirasdebarracospobres,decadenteseesquecidos,cheiosde pessoas rudes e evidentemente desocupadas e crianças sujas vestindofarrapos.Aênfasedeminhaguiaemquenãohaviacomoevitarotráfegodocentrodacidadenãoeramentira.Erasinceraeadequadaaseumapamentalda cidade em que tinha nascido e onde sempre vivera. Esse mapa nãoregistravaasruasdosfeios“distritosperigosos”pelasquaisotáximelevou.Nomapamentaldeminhaguia,nolugaremqueessasruasdeveriamtersidoprojetadashavia,puraesimplesmente,umespaçovazio.

Acidade,comooutrascidades, temmuitoshabitantes,cadaumcomummapada cidade em sua cabeça.Cadamapa tem seus espaços vazios, aindaqueemmapasdiferenteseles se localizemem lugaresdiferentes.Osmapasque orientam os movimentos das várias categorias de habitantes não sesuperpõem,mas, para que qualquermapa “faça sentido”, algumas áreas dacidade devem permanecer sem sentido. Excluir tais lugares permite que orestobrilheeseenchadesignificado.

Ovaziodolugarestánoolhodequemvêenaspernasourodasdequemanda.Vaziossãooslugaresemquenãoseentraeondesesentiriaperdidoevulnerável,surpreendidoeumtantoatemorizadopelapresençadehumanos.

Nãofalecomestranhos

A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir comestranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los aabandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos. Aprincipal característica dos lugares “públicos mas não civis” — as quatrocategorias listadas acima — é a dispensabilidade dessa interação. Se a

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proximidadefísicanãopuderserevitada,elapodepelomenosserdespidadaameaça de “estar juntos” que contém, com seu convite ao encontrosignificativo,aodiálogoeàinteração.Senãosepuderevitaroencontrocomestranhos,pode-sepelomenostentarevitarmaiorcontato.Queosestranhos,comoascriançasdaeravitoriana,possamservistosmasnãoouvidos,ou,senão se puder evitar ouvi-los, que aomenos não se escute o que dizem. Aquestãoéfazeroquequerquedigamirrelevanteesemconseqüênciasparaoquepodeedeveserfeito.

Todos esses expedientes não passam de meias-medidas: as soluçõesmenos ruins ou os menos detestáveis e prejudiciais dos males. Lugares“públicos mas não civis” permitem que lavemos nossas mãos de qualquerintercâmbio com os estranhos à nossa volta e que evitemos o comércioarriscado, a comunicação difícil, a negociação enervante e as concessõesirritantes. Não impedem, porém, o encontro com estranhos; ao contrário,supõem-no—foramcriadosporcausadessasuposição.São,porassimdizer,curas para umadoença já contraída—e não umamedicina preventiva quetornariadesnecessárioo tratamento.E todosos tratamentos,comosabemos,podemounãodebelaradoença.Hápoucos—sehouver—métodoseficazesa toda prova. Como seria bom, portanto, tornar o tratamento desnecessárioimunizandooorganismocontraadoença.Donde livrar-sedacompanhiadeestranhos parece uma perspectivamais atraente e segura que as estratégiasmaissofisticadasparaneutralizarsuapresença.

Essa pode parecer uma solução melhor, mas não está livre de seuspróprios perigos. Mexer com o sistema imunológico é arriscado e podemostrar-se patogênico. Ademais, tornar o organismo resistente a certasameaças provavelmente o torna vulnerável a outras. Dificilmente qualquerinterferênciaestarálivredehorríveisefeitoscolaterais:diversasintervençõesmédicassãoconhecidaspelasdoençasiatrogênicasqueprovocam—doençasque resultam da própria intervenção, que não são menos (se não mais)perigosasqueadoençaquesepretendiacurar.

ComoindicaRichardSennett,

invocam-semaisaleieaordemquandoascomunidadesestãomaisisoladasdasoutraspessoasnacidade…Durante as últimas duas décadas as cidades nos EUA cresceram de

maneiraquehomogeneizouasáreasétnicas;nãoéporacaso,então,queomedodoestranhotambémcresceuàmedidaqueessascomunidadesétnicasforamisoladas.13

A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade degostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz

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sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo eexercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e aambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, seautoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência àhomogeneidadeeoesforçoparaeliminaradiferença,tantomaisdifícilsentir-seàvontadeempresençadeestranhos,tantomaisameaçadoraadiferençaetanto mais intensa a ansiedade que ela gera. O projeto de esconder-se doimpacto enervante damultivocalidade urbana nos abrigos da conformidade,monotonia e repetitividade comunitárias é umprojeto que se auto-alimenta,masqueestáfadadoàderrota.Essapoderiaserumaverdadetrivial,nãofosseo fato de que o ressentimento em relação à diferença também seautocorrobora: à medida que o impulso à uniformidade se intensifica, omesmo acontece com o horror ao perigo representado pelos “estranhos noportão”.Operigo representadopela companhiadeestranhoséumaclássicaprofecia autocumprida. Torna-se cada vez mais fácil misturar a visão dosestranhos comosmedosdifusosda insegurança;oqueno começoeraumamera suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algoevidente.

A perplexidade se torna um círculo vicioso. Como a arte de negociarinteresses comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso,raramente é praticada, está meio esquecida ou nunca foi propriamenteaprendida; como a idéia do “bem comum” é vista com suspeição, comoameaçadora,nebulosaouconfusa—abuscada segurançanuma identidadecomumenãoemfunçãodeinteressescompartilhadosemergecomoomodomais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as preocupações com aidentidade e a defesa contra manchas nela tornam a idéia de interessescomuns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais incrível efantasiosa,tornandoaomesmotempoimprovávelosurgimentodacapacidadee da vontade de sair em busca desses interesses comuns. Como resumeSharonZukin:“Ninguémmaissabefalarcomninguém”.

Zukinsugereque“aexaustãodoidealdeumdestinocomumreforçouoapelodacultura”mas“nousonorte-americanocomum,aculturaé,antesdetudo, a etnicidade”, que, por sua vez é “ummodo legítimo de escavar umnichona sociedade”.14 Escavar um nicho, não há dúvida, implica acima detudo separação territorial, o direito a um “espaço defensável” separado,espaço que precisa de defesa e é digno de defesa precisamente por serseparado—istoé,porquefoicercadodepostosdefronteiraquepermitemaentrada apenas de pessoas “da mesma” identidade e impedem o acesso aquaisquer outros. Como o propósito da separação territorial é ahomogeneidadedobairro,a“etnicidade”émaisadequadaquequalqueroutra“identidade”imaginada.

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Ao contrário de outras identidades postuladas, a idéia de etnicidade ésemanticamentecarregada.Elasupõeaxiomaticamenteumcasamentodivinoque nenhum esforço na terra pode desmanchar, uma espécie de laçopredeterminadodeunidadequeprecedetodanegociaçãoeeventuaisacordossobre direitos e obrigações. Em outras palavras, a homogeneidade quepresumivelmentemarcaas entidadesétnicas éheterônoma: não um artefatohumano, e certamente não o produto da geração atual de humanos. Nãosurpreende, pois, que a etnicidade, mais que qualquer outra espécie deidentidade postulada, seja a primeira escolha quando se trata de fugir doassustadorespaçopolifônicoonde“ninguémsabefalarcomninguém”parao“nicho seguro”onde“todos sãoparecidoscom todos”—eonde, assim,hápoucosobreoquefalareafalaéfácil.Tampoucosurpreendeque,semmuitaconsideração pela lógica, outras comunidades postuladas, enquantoreivindicamseuspróprios“nichosnasociedade”,queiramtirarsualasquinhada etnicidade e inventem cuidadosamente suas próprias raízes, tradições,história compartilhada e futuro comum—mas, antes e acima de tudo, suacultura separada e singular, que por causa de sua genuína ou putativasingularidademereceserconsiderada“umvaloremsimesma”.

Seria equivocado explicar o renascido comunitarismo de nossos temposcomo um soluço de instintos ou inclinações ainda não inteiramenteerradicados que o progresso damodernizaçãomais cedo oumais tarde vaineutralizaroudiluir;seriaigualmenteequivocadodescartá-locomoumafalhada razão momentânea — um lamentável mas inevitável caso deirracionalidade, em flagrante contradição com as implicações de uma“escolhapública”racionalmentefundada.Cadaformaçãosocialpromoveseuprópriotipoderacionalidade,investeseuprópriosignificadonaidéiadeumaestratégiaracionaldevida—epode-seargumentaremdefesadahipótesedequeacorrentemetamorfosedocomunitarismoéumarespostaracionalàcrisegenuínado“espaçopúblico”—eportantodapolítica,essaatividadehumanaparaaqualoespaçopúblicoéoterrenonatural.

Com o domínio da política se estreitando aos limites das confissõespúblicas, exibições públicas da intimidade e exame e censura públicas devirtudes e vícios privados; com a questão da credibilidade das pessoasexpostasàvistapúblicasubstituindoaconsideraçãosobrequaléedeveseroobjeto da política; com a visão de uma sociedade boa e justa praticamenteausentedodiscursopolítico—nãoédesurpreenderque(comojáobservavaSennett há 20 anos)15 as pessoas “se tornem espectadores passivos de umapersonagem política que lhes oferece para consumo suas intenções esentimentosemlugardeseusatos”.Aquestãoé,porém,queosespectadoresnãoesperam,dospolíticosedetodososoutrosnaribalta,maisqueumbomespetáculo. E assim o espetáculo da política, como outros espetáculospublicamente encenados, se torna amensagemmonótonae incessantemente

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marteladadaprioridadedaidentidadesobreosinteresses,oualiçãopúblicacontínua de que a identidade, e não os interesses, é o que verdadeiramenteimporta,assimcomooqueverdadeiramenteimportaéquemseéenãooqueseestáfazendo.Decimaabaixo,éarevelaçãodoverdadeiroeuquesetornaa essência das relações em público e da vida pública como tal; e é aidentidadequesetornaoestilhaçoaqueosnáufragosembuscadesocorroseagarram quando afundam os navios do interesse. E então, como sugereSennett,“manteracomunidadetorna-seumfimemsimesmo;oexpurgodosquenão fazemparte torna-se assuntoda comunidade”.Nãomais seprecisauma“justificaçãoparaarecusaànegociação,paraoexpurgocontínuodosdefora”.

Esforços paramanter à distância o “outro”, o diferente, o estranho e oestrangeiro,eadecisãodeevitaranecessidadedecomunicação,negociaçãoecompromisso mútuo, não são a única resposta concebível à incertezaexistencial enraizada na nova fragilidade ou fluidez dos laços sociais. Essadecisãocertamenteseadaptaànossapreocupaçãocontemporâneaobsessivacompoluiçãoepurificação,ànossa tendênciade identificaroperigoparaasegurança corporal com a invasão de “corpos estranhos” e de identificar asegurançanão-ameaçadacomapureza.Aatençãoagudamenteapreensivaàssubstâncias que entramno corpopela boca e pelas narinas, e aos estranhosqueseesgueiramsub-repticiamentepelasvizinhançasdocorpo,acomodam-se lado a lado no mesmo quadro cognitivo. Ambas ativam um desejo de“expeli-losdosistema”.

Esses desejos convergem, aliam-se e condensam-se na política daseparação étnica, e particularmente na defesa contra a vinda dos“estrangeiros”.ComodizGeorgesBenko,16

há Outros que são mais Outros que os Outros, os estrangeiros. Excluirpessoas como estrangeiras porque não somos mais capazes de conceber oOutroindicaumapatologiasocial.

Pode ser patologia,mas não uma patologia damente que tenta em vãoforçar um sentido para um mundo destituído de significado estável econfiável;éumapatologiadoespaçopúblicoqueresultanumapatologiadapolítica:oesvaziamentoeadecadênciadaartedodiálogoedanegociação,ea substituiçãodo engajamento emútuo comprometimento pelas técnicas dodesvioedaevasão.

“Não fale comestranhos”—outroraumaadvertênciadepais zelosos aseuspobresfilhos—tornou-seopreceitoestratégicodanormalidadeadulta.Essepreceitoreafirmacomoregradeprudênciaarealidadedeumavidaemqueosestranhossãopessoascomquemnosrecusamosafalar.Osgovernosimpotentespara atacar as raízesda insegurançae ansiedadede seus súditos

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estão bem-dispostos e felizes com a situação. Uma frente de “imigrantes”,essamaiscompletaetangívelencarnaçãodo“outro”,podemuitobemlevaraunir o difuso amontoado de indivíduos atemorizados e desorientados emalgumacoisavagamenteassemelhadaauma“comunidadenacional”eessaéumadaspoucastarefasqueosgovernosdenossotemposãocapazesdefazeretêmfeito.

OHeritageParkdeGeorgeHazeldonseriaumlugaronde,afinal,todosospassantes poderiam falar livremente uns com os outros. Eles seriam livresparafalarporquehaveriamuitopoucosobreoquefalar—àexceçãodatrocade frases rotineiras e familiaresquenãogeramcontrovérsia,mas tampoucoimplicam comprometimento.A sonhada pureza da comunidade deHeritagePark sópode ser conquistada aopreçododesengajamento eda rupturadoslaços.

Amodernidadecomohistóriadotempo

Quandoeueracriança(eissoaconteceuemoutrotempoeemoutroespaço)nãoera incomumouvirapergunta“Quão longeédaquiaté lá?”respondidapor um “Mais oumenos uma hora, ou um poucomenos se você caminharrápido”.Numtempoaindaanterioràminhainfância,suponhoquearespostamaiscomumteriasido“Sevocêsairagora,estaráláporvoltadomeio-dia”ou“Melhor sair agora, sevocêquiser chegar antesqueescureça”.Hoje emdia, pode-se ouvir ocasionalmente essas respostas.Mas serão normalmenteprecedidasporumasolicitaçãoparasermaisespecífico:“Vocêvaidecarroouapé?”

“Longe” e “tarde”, assim como “perto” e “cedo”, significavam quase amesma coisa: exatamente quanto esforço seria necessário para que um serhumanopercorresseumacertadistância—fossecaminhando,semeandoouarando. Se as pessoas fossem instadas a explicar o que entendiam por“espaço”e“tempo”,poderiamterditoque“espaço”éoquesepodepercorreremcerto tempo, eque “tempo”éoque seprecisaparapercorrê-lo.Senãofossemmuitopressionados,porém,nãoentrariamnojogodadefinição.Eporque deveriam?Amaioria das coisas que fazem parte da vida cotidiana sãocompreendidas razoavelmente até que se precise defini-las; e, amenos quesolicitados, não precisaríamos defini-las. O modo como compreendíamosessas coisas que hoje tendemos a chamar de “espaço” e “tempo” era nãoapenassatisfatório,mastãoprecisoquantonecessário,poiseraowetware—oshumanos,osboiseoscavalos—quefaziaoesforçoepunhaoslimites.Umpardepernashumanaspodeserdiferentedeoutros,masasubstituiçãodeum par por outro não faria uma diferença suficientemente grande pararequereroutrasmedidasalémdacapacidadedosmúsculoshumanos.

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No tempo das Olimpíadas gregas ninguém pensava em registrar osrecordes olímpicos, e menos ainda em quebrá-los. A invenção edisponibilidadedealgoalémdaforçadosmúsculoshumanosouanimaisfoinecessária para que essas idéias fossem concebidas e para a decisão deatribuir importância às diferenças entre as capacidades de movimento dosindivíduoshumanos—e,assim,paraqueapré-históriadotempo,essalongaera da prática limitada pelo wetware, terminasse, e a história do tempocomeçasse. A história do tempo começou com a modernidade. De fato, amodernidadeé, talvezmaisquequalqueroutracoisa,ahistóriadotempo:amodernidadeéotempoemqueotempotemumahistória.

Se pesquisarmos em livros de história a razão por que espaço e tempo,outroramescladosnosafazeresdavidahumana,sesepararameseafastaramnopensamentoepráticadoshomens,encontraremoscomfreqüênciahistóriasedificantes de descobertas realizadas pelos valentes cavaleiros da razão—filósofosintrépidosecientistascorajosos.Aprendemossobreastrônomosquemediam distâncias e a velocidade dos corpos celestes, sobre Newtoncalculandoasrelaçõesexatasentreaaceleraçãoeadistânciapercorridapelo“corpofísico”eseusenormesesforçosparaexpressartudoissoemnúmeros—asmais abstratas e objetivas de todas asmedidas imagináveis; ou sobreKant,impressionadoporsuasrealizaçõesapontodeconceberespaçoetempocomo duas categorias transcendentalmente separadas e mutuamenteindependentesdoconhecimentohumano.Enoentanto,pormaisjustificávelquesejaavocaçãodosfilósofosdepensarsubspecieaeternitatis,ésempreum pedaço do infinito e da eternidade, sua parte finita correntemente aoalcance da prática humana, que fornece o “campo epistemológico” para areflexãofilosóficaecientíficaeomaterialempíricoquepodesertrabalhadoparaconstruirverdadeseternas;essalimitação,naverdade,separaosgrandespensadores dos outros que desapareceram na história como fantasistas,fabricantes de mitos, poetas e outros sonhadores. E assim algo deve teracontecidoàamplitudeeàcapacidadedecargadapráticahumanaparaqueossoberanos espaço e tempo repentinamente se ponham a encarar, olhos nosolhos,osfilósofos.

Esse“algo”foi,podemosadivinhar,aconstruçãodeveículosquepodiamsemovermaisrápidoqueaspernasdoshumanosoudosanimais;eveículosque,emclaraoposiçãoaoshumanoseaoscavalos,podemsertornadosmaisemaisvelozes,detalmodoqueatravessardistânciascadavezmaiorestomarácadavezmenostempo.Quandotaismeiosdetransportenão-humanosenão-animais apareceram, o tempo necessário para viajar deixou de sercaracterísticadadistânciaedoinflexível“wetware”;tornou-se,emvezdisso,atributoda técnicadeviajar.O tempose tornouoproblemado“hardware”queoshumanospodeminventar,construir,apropriar,usarecontrolar,nãodo“wetware” impossível de esticar, nem dos poderes caprichosos e

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extravagantes do vento e da água, indiferentes àmanipulação humana; porissomesmo,otemposetornouumfatorindependentedasdimensõesinerteseimutáveis dasmassas de terra e dosmares.O tempo é diferente do espaçoporque,aocontráriodeste,podesermudadoemanipulado;tornou-seumfatordedisrupção:oparceirodinâmiconocasamentotempo-espaço.

Numadeclaraçãofamosa,BenjaminFranklindissequetempoédinheiro;pôdedizê-loporqueantesjáhaviadefinidoohomemcomoo“animalquefazferramentas”.Resumindoaexperiênciademaisdoisséculos,JohnFitzgeraldKennedy advertia seus concidadãos norte-americanos a usarem o “tempocomo uma ferramenta, e não como um sofá”. O tempo se tornou dinheirodepoisdesetertornadoumaferramenta(ouarma?)voltadaprincipalmenteavencer a resistência do espaço: encurtar as distâncias, tornar exeqüível asuperação de obstáculos e limites à ambição humana. Com essa arma, foipossível estabelecer a meta da conquista do espaço e, com toda seriedade,iniciarsuaimplementação.

Osreistalvezpudessemviajarmaisconfortavelmentequeseusprepostos,e os barões mais convenientemente que seus servos; mas, em princípio,nenhumdelespoderiaviajarmuitomaisdepressaquequalquerdosoutros.Owetwaretornavaoshumanossemelhantes;ohardwareostornavadiferentes.Essas diferenças (ao contrário das que derivavam da dissimilitude dosmúsculos humanos) eram resultados de ações humanas antes de setransformarem em condições de sua eficácia, e antes que pudessem serutilizadas para criar ainda mais diferenças, e diferenças mais profundas emenos contestáveis do que antes. Com o advento do vapor e do motor aexplosão,a igualdadefundadanowetwarechegouaofim.Algumaspessoaspodiam agora chegar onde queriam muito antes que as outras; podiamtambém fugir e evitar serem alcançadas ou detidas. Quem viajasse maisdepressa podia reivindicar mais território — e controlá-lo, mapeá-lo esupervisioná-lo —, mantendo distância em relação aos competidores edeixandoosintrusosdefora.

Pode-se associar o começoda eramoderna a várias facetas das práticashumanasemmudança,masaemancipaçãodo tempoemrelaçãoaoespaço,suasubordinaçãoàinventividadeeàcapacidadetécnicahumanase,portanto,a colocação do tempo contra o espaço como ferramenta da conquista doespaço e da apropriação de terras não são ummomento pior para começaruma avaliação que qualquer outro ponto de partida.Amodernidade nasceusobasestrelasdaaceleraçãoedaconquistadeterras,eessasestrelasformamumaconstelaçãoquecontémtodaa informaçãosobreseucaráter,condutaedestino.Para lê-la,bastaumsociólogo treinado;nãoéprecisoumastrólogoimaginativo.

Arelaçãoentretempoeespaçodeveriaserdeagoraemdianteprocessual,

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mutável e dinâmica, não predeterminada e estagnada. A “conquista doespaço” veio a significar máquinas mais velozes. O movimento aceleradosignificavamaiorespaço,eaceleraromovimentoeraoúnicomeiodeampliaroespaço.Nessacorrida,aexpansãoespacialeraonomedojogoeoespaço,seuobjetivo;oespaçoeraovalor,otempo,aferramenta.Paramaximizarovalor, era necessário afiar os instrumentos; muito da “racionalidadeinstrumental” que, comoMaxWeber sugeriu, era o princípio operativo dacivilização moderna, se centrava no desenho de modos de realizar maisrapidamente as tarefas, eliminando assim o tempo “improdutivo”, ocioso,vazioe,portanto,desperdiçado;ou,paracontaramesmahistóriaemtermosdosefeitosenãodosmeiosdaação,centrava-seempreencheroespaçomaisdensamente de objetos e em ampliar o espaço que poderia ser assimpreenchido num tempo determinado. No limiar da moderna conquista doespaço,Descartes, olhando à frente, identificava existência e espacialidade,definindo tudo o que existe materialmente como res extensa. (Como RobShields espirituosamente diz, poder-se-ia reformular o famoso cogitocartesiano, sem distorcer seu sentido, como “ocupo espaço, logo existo”).17Num momento em que essa conquista perde gás e se encerra, Michel deCerteau—olhandoparatrás—declaraqueopoderdizrespeitoaterritórioefronteiras.(ComoTimCresswellresumiuaposiçãodeCerteaurecentemente,“as armas dos fortes são… classificação, delineamento, divisão. Os fortesdependem da ‘correção do mapeamento’”18; note-se que todas as armasarroladas são operações realizadas sobre o espaço.) Poder-se-ia dizer que adiferençaentreosforteseosfracoséadiferençaentreumterritórioformadocomo no do mapa— vigiado de perto e estritamente controlado— e umterritórioabertoàinvasão,aoredesenhodasfronteiraseàprojeçãodenovosmapas.Pelomenosfoiissoquesetornouassimeassimpermaneceuporboapartedahistóriamoderna.

Damodernidadepesadaàmodernidadeleve

Essapartedahistória,queagorachegaaofim,poderiaserchamada,nafaltade nome melhor, de era do hardware, ou modernidade pesada — amodernidade obcecada pelo volume, uma modernidade do tipo “quantomaior, melhor”, “tamanho é poder, volume é sucesso”. Essa foi a era dohardware; a épocadasmáquinas pesadas e cadavezmais desajeitadas, dosmurosdefábricascadavezmaislongosguardandofábricascadavezmaioresque ingerem equipes cada vez maiores, das poderosas locomotivas e dosgigantescostransatlânticos.Aconquistadoespaçoeraoobjetivosupremo—agarrar tudo o que se pudesse manter, e manter-se nele, marcando-o comtodos os sinais tangíveis da posse e tabuletas de “proibida a entrada”. O

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território estava entre as mais agudas obsessõesmodernas e sua aquisição,entresuasurgênciasmaisprementes—enquantoamanutençãodasfronteirassetornavaumdeseusvíciosmaisubíquos,resistenteseinexoráveis.

A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e opoder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra —volumosos, fortes e inamovíveis como os leitos de minério de ferro e decarvão.Osimpériosseespalhavam,preenchendotodasasfissurasdoglobo:apenas outros impérios de força igual ou superior punham limites à suaexpansão. O que quer que ficasse entre os postos avançados dos domíniosimperiais em competição era visto como terra de ninguém, sem dono e,portanto,comoumespaçovazio—eoespaçovazioeraumdesafioàaçãoeumacensuraàpreguiça. (Aciênciapopulardaépocacaptouseuclimacomperfeiçãoaoinformaraosleigosque“anaturezanãotoleraovazio”.)Aindamenos suportável era a idéia dos “espaços em branco” do globo: ilhas earquipélagos desconhecidos, massas de terra à espera de descoberta ecolonização,osinterioresintocadosdoscontinentes,os“coraçõesdastrevas”clamandopor luz. Intrépidosexploradoreseramosheróisdasnovasversõesmodernasdas“históriasdemarinheiros”deWalterBenjamin,dossonhosdainfância e da nostalgia adulta; entusiasticamente aplaudidos na partida eaclamados com honrarias na chegada, eles andaram, de expedição emexpedição,porselvas,savanaseogeloeternoembuscadacordilheira,lagoou planalto ainda não-cartografado. Também o paraíso moderno, como oShangri-La de James Hilton, estava “lá fora”, num lugar ainda “nãodescoberto”,escondidoeinacessível,umpoucoalémdenão-passadasenão-passáveis massas de montanhas ou desertos mortais, ao fim de uma trilhaainda não marcada. A aventura e a felicidade, a riqueza e o poder eramconceitosgeográficosou“propriedadesterritoriais”—atadosaseuslugares,inamovíveis e intransferíveis. Isso exigia muros impenetráveis e postosavançados rigorosos, guardas de fronteiras em permanente vigília elocalização secreta. (Um dos segredos mais bem guardados da SegundaGrandeGuerra,abaseaéreanorte-americanaapartirdaqualseriadesferidoomortalataquesobreTóquioem1942,eraapelidada“Shangri-la”.)

Riqueza e poder que dependem do tamanho e qualidade do hardwaretendem a ser lentas, resistentes e complicadas de mover. Elas são“encorpadas” e fixas, feitas de aço e concreto emedidas por seu volume epeso. Crescem expandindo o lugar que ocupam e protegem-se protegendoesselugar:olugarésimultaneamenteseuviveiro,suafortalezaesuaprisão.DanielBelldescreveuumadasmaispoderosas,invejadaseemuladasdessasprisões/fortalezas/viveiros: a planta “Willow Run” da General Motors emMichigan.19Olugarocupadopelasinstalaçõeseradeumquilômetropor400metros.Todoomaterialnecessárioparaaproduçãodecarroserareunidosobumúnicoegigantescoteto,numaúnicaemonstruosajaula.Alógicadopoder

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ealógicadocontroleestavamfundadasnaestritaseparaçãoentreo“dentro”e o “fora” e numavigilante defesa da fronteira entre eles.As duas lógicas,reunidasemuma,estavamincorporadasnalógicadotamanho,organizadaemtorno de um preceito: maior significa mais eficiente. Na versão pesada damodernidade,oprogressosignificavatamanhocrescenteeexpansãoespacial.

Eraarotinizaçãodotempoquemantinhaolugarcomoumtodocompactoesujeitoauma lógicahomogênea. (Bell invocavaaprincipal ferramentaderotinizaçãoaochamaressetempode“métrico”.)

Na conquista do espaço, o tempo tinha que ser flexível e maleável, eacimadetudotinhaquepoderencolherpelacrescentecapacidadede“devorarespaço” de cada unidade: dar a volta aomundo em 80 dias era um sonhoatraente, mas ser capaz de fazê-lo em oito dias era infinitamente maisatraente.VoarsobreoCanaldaManchaedepoissobreoAtlânticoeramosmarcos pelos quais se media o progresso. Quando, porém, chegava omomento da fortificação do espaço conquistado, de sua colonização edomesticação, fazia-senecessárioum tempo rígido,uniformee inflexível:otipode tempoquepudesse ser cortadoem fatiasde espessura semelhante epassíveldeserarranjadoemseqüênciasmonótonase inalteráveis.Oespaçosóera“possuído”quandocontrolado—econtrolesignificavaanteseacimade tudo “amansar o tempo”, neutralizando seu dinamismo interno:simplificando, a uniformidade e coordenação do tempo. Eramaravilhoso eexcitante alcançar as nascentes do Nilo antes que outros exploradores asalcançassem,masumtremadiantadooupeçasdeautomóveisquechegassemàlinhademontagemantesdasoutraseramospesadelosmaisassustadoresdamodernidadepesada.

Otemporotinizadosejuntavaaosaltosmurosdetijolosarrematadosporarame farpado ou cacos de vidro e portões bem-guardados para proteger olugarcontraintrusos;tambémimpediaqueosdedentrosaíssemàvontade.A“fábrica fordista”, o modelo mais cobiçado e avidamente seguido daracionalidade planejada no tempo da modernidade pesada, era o lugar doencontro facea face,mas tambémdovotode“atéqueamortenos separe”entreocapitaleotrabalho.Essecasamentoeradeconveniênciaenecessidade—raramentedeamor—,maseraparadurar“parasempre”(oquequerqueissosignificasseemtermosdavidaindividual),ecomfreqüênciadurava.Eraessencialmente monogâmico— e para ambas as partes. O divórcio estavafora de questão. Para o bem ou para omal, as partes unidas no casamentodeveriampermanecerunidas;umanãopoderiasobreviversemaoutra.

O tempo rotinizado prendia o trabalho ao solo, enquanto a massa dosprédiosdafábrica,opesodomaquinárioeotrabalhopermanentementeatadoacorrentavamocapital.Nemocapitalnemotrabalhoestavamansiososparamudar,enemseriamcapazesdisso.Comoqualqueroutrocasamentoquenão

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contasse com a válvula de escape do divórcio sem dor, a história dessaconvivência era cheia de som e fúria, varrida por irrupções de inimizade emarcada por uma guerra de trincheiras ligeiramentemenos dramática, masmaisconstanteepersistente,diasim,dianão.Emnenhummomento,porém,os plebeus pensaram em abandonar a cidade; os patrícios tampouco eramlivresparafazê-lo.EnemeranecessáriaaoratóriadeMeneniusAgrippaparamanter a ambos em seus lugares. A própria intensidade e perpetuidade doconflitoeravivaevidênciadodestinocomum.Otempocongeladodarotinadefábrica,juntocomostijoloseargamassadasparedes,imobilizavaocapitaltãoeficientementequantoo trabalhoqueesteempregava.Tudoissomudou,no entanto, com o advento do capitalismo de software e da modernidade“leve”. O economista da Sorbonne Daniel Cohen resume: “Quem começauma carreira naMicrosoft não tem a mínima idéia de onde ela terminará.QuemcomeçavanaFordounaRenaultpodiaestarquasecertodeterminarnomesmolugar.”20

Não estou certo de que seja legítimoutilizar o termo “carreira” para osdoiscasos,comoCohenfaz.“Carreira”evocaumatrajetóriaestabelecida,nãomuito diferente do processo da “tenure” (estabilidade) das universidadesnorte-americanas,comumaseqüênciadeestágiosestabelecidadeantemãoemarcadaporcondiçõesdeentradaeregrasdeadmissãorazoavelmenteclaras.As “carreiras” tendem a ser feitas por pressões coordenadas de espaço etempo. O que quer que aconteça aos empregados da Microsoft ou seusincontáveisadmiradorese imitadores—onde tudooqueocupaosgerentessão“formasorganizacionaismaissoltaseporissomaisadequadasaofluxo”eonde a organização de negócios é cada vezmais vista como uma tentativapermanente,não-conclusiva,“deformarumailhadeadaptabilidadesuperior”nummundopercebidocomo“múltiplo,complexoerápidoe,portanto,como‘ambíguo’, ‘vago’ ou ‘plástico’”21 — milita contra estruturas duráveis, enotadamentecontraestruturasqueenvolvemumaexpectativaproporcionalàduraçãocostumeiradavidaútil.Emtaiscondiçõesaidéiadeuma“carreira”parecenebulosaeinteiramenteforadelugar.

Essa é, contudo, uma mera questão terminológica. Seja como for, aquestãoprincipaléqueacomparaçãodeCohencaptasemerroodivisordeáguas na históriamoderna do tempo e alude ao impacto que essamudançacomeçaa ternacondiçãodaexistênciahumana.Amudançaemquestãoéanovairrelevânciadoespaço,disfarçadadeaniquilaçãodotempo.Nouniversodesoftware da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado,literalmente, em “tempo nenhum” cancela-se a diferença entre “longe” e“aqui”.Oespaçonãoimpõemaislimitesàaçãoeseusefeitos,econtapouco,ou nem conta. Perdeu seu “valor estratégico”, diriam os especialistasmilitares.

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Todos os valores, observou Simmel, são “valiosos” na medida em quedevem ser conquistados “pela superação de outros valores” é o “desvio dabuscaporcertascoisas”quenosfaz“vê-lascomovaliosas”.Semusaressaspalavras, Simmel conta a história do “fetichismo do valor”: as coisas,escreveu, “valem exatamente o que custam” e essa circunstância pareceperversamente “significar que elas custamoquevalem”.Sãoos obstáculosqueprecisamsersuperadosnocaminhoquelevaàsuaapropriação,“atensãoda luta por elas”, que as fazem valiosas.22 Se tempo nenhum precisa serperdidoousuperado—“sacrificado”—parachegarmesmoaoslugaresmaisremotos, os lugares são destituídos de valor, no sentido posto por Simmel.Quando as distâncias podem ser percorridas (e assim as partes do espaçoatingidaseafetadas)àvelocidadedossinaiseletrônicos,todasasreferênciasao tempo parecem, como diria Jacques Derrida, “sous rature”. A“instantaneidade”aparentementeserefereaummovimentomuitorápidoeaumtempomuitocurto,masdefatodenotaaausênciadotempocomofatordoeventoe,porissomesmo,comoelementonocálculodovalor.Otemponãoémaiso“desvionabusca”,eassimnãomaisconferevaloraoespaço.Aquase-instantaneidadedotempodosoftwareanunciaadesvalorizaçãodoespaço.

Na era do hardware, da modernidade pesada, que nos termos de MaxWeberera tambémaerada racionalidade instrumental,o tempoeraomeioque precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor,que era o espaço, pudesse ser maximizado; na era do software, damodernidadeleve,aeficáciadotempocomomeiodealcançarvalortendeaaproximar-se do infinito, com o efeito paradoxal de nivelar por cima (ou,antes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivospotenciais.Opontodeinterrogaçãomoveu-sedoladodosmeiosparaoladodosfins.Seaplicadoàrelaçãotempo-espaço,issosignificaque,comotodasaspartesdoespaçopodemseratingidasnomesmoperíododetempo(istoé,em“temponenhum”),nenhumapartedoespaçoéprivilegiada,nenhumatemum “valor especial”. Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas aqualquermomento,nãohárazãoparaalcançarqualquerumadelasnumdadomomentoenem tampouco razãopara sepreocuparemgarantirodireitodeacessoaqualquerumadelas.Sesoubermosquepodemosvisitarumlugaremqualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo nem emgastardinheiroemumapassagemválidaparasempre.Háaindamenosrazãopara suportar o gasto da supervisão e administração permanentes, dolaboriosoearriscadocultivode terrasquepodemser facilmenteocupadaseabandonadasconformeinteressesdemomentoe“relevânciastópicas”.

Asedutoralevezadoser

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Otempo instantâneoesemsubstânciadomundodosoftwareé tambémumtempo sem conseqüências. “Instantaneidade” significa realização imediata,“noato”—mastambémexaustãoedesaparecimentodointeresse.Adistânciaem tempo que separa o começo do fim está diminuindo ou mesmodesaparecendo; as duas noções, que outrora eram usadas para marcar apassagemdo tempo, eportantopara calcular seu “valorperdido”, perderammuitodeseusignificado—que,comotodosossignificados,derivavadesuarígidaoposição.Háapenas“momentos”—pontossemdimensões.Mas,seráaindaumtaltempo—tempocomamorfologiadeumagregadodemomentos—otempo“comooconhecemos”?Aexpressão“momentodetempo”parece,pelomenosemcertosaspectosvitais,umoxímoro.Teriaotempo,depoisdematar o espaço enquanto valor, cometido suicídio?Não teria sido o espaçoapenasaprimeirabaixanacorridadotempoparaaauto-aniquilação?

O que foi aqui descrito é, claro, uma condição liminar na história dotempo—oquepareceser,emseuestágiopresente,atendênciaúltimadessahistória.Pormaispróximodezeroquesejaotemponecessárioparaalcançarum destino espacial, ele ainda não chegou lá. Mesmo a tecnologia maisavançada, armada de processadores cada vez mais poderosos, ainda temmuito caminho pela frente até atingir a genuína “instantaneidade”. E emverdadeaconseqüêncialógicadairrelevânciadoespaçoaindanãoserealizouplenamente,comotambémnãoserealizoualevezaeainfinitavolatilidadeeflexibilidade da agência humana. Mas a condição descrita é, de fato, ohorizonte do desenvolvimento damodernidade leve. E, o que é aindamaisimportante, é o ideal do buscar sempre, ainda que (ou será porque?) paranunca alcançar plenamente, de seus principais operadores, o ideal que, nosurgimentodeumanovanorma,penetraesaturacadaórgão,tecidoecéluladocorposocial.MilanKunderaretratou“ainsustentávellevezadoser”comoo centro da tragédia domundomoderno.A leveza e a velocidade (juntas!)foramoferecidasporÍtaloCalvino,inventordepersonagenstotalmentelivres(completamentelivresporquesãoinalcançáveis,escorregadioseimpossíveisdeprender)—obarãoquesaltavasobreasárvoreseocavaleirosemcorpo—comoasúltimasemaisplenasencarnaçõesdaeternafunçãoemancipatóriadaarteliterária.

Há mais de 30 anos (em seu clássico Fenômeno burocrático), MichelCrozier identificava a dominação (em todas suas variantes) com aproximidadedas fontesda incerteza.Seuveredictoaindavale:quemmandasão as pessoas que conseguem manter suas ações livres, sem normas eportanto imprevisíveis, ao mesmo tempo em que regulam normativamente(rotinizando e portanto tornando monótonas, repetitivas e previsíveis) asações dos protagonistas. Pessoas com as mãos livres mandam em pessoascomasmãosatadas;aliberdadedasprimeiraséacausaprincipaldafaltadeliberdade das últimas— aomesmo tempo em que a falta de liberdade das

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últimaséosignificadoúltimodaliberdadedasprimeiras.Nesse aspecto, nadamudou com a passagem damodernidade pesada à

leve. Mas a moldura foi preenchida com um novo conteúdo; maisprecisamente,abuscada“proximidadedasfontesdaincerteza”reduziu-seaumsóobjetivo—ainstantaneidade.Aspessoasquesemovemeagemcommaiorrapidez,quemaisseaproximamdomomentâneodomovimento,sãoaspessoasque agoramandam.E são aspessoasquenãopodemsemover tãorápido — e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que nãopodemdeixarseulugarquandoquiserem—asqueobedecem.Adominaçãoconsiste emnossaprópria capacidadede escapar, denosdesengajarmos,deestar“emoutrolugar”,enodireitodedecidirsobreavelocidadecomqueissoseráfeito—eaomesmotempodedestituirosqueestãodoladodominadodesua capacidade de parar, ou de limitar seusmovimentos ou ainda torná-losmais lentos.A batalha contemporânea da dominação é travada entre forçasqueempunham,respectivamente,asarmasdaaceleraçãoedaprocrastinação.

Oacessodiferencialàinstantaneidadeécrucialentreasversõescorrentesdo fundamentoduradouroe indestrutíveldadivisãosocialem todasas suasformashistoricamentecambiantes:oacessodiferencialàimprevisibilidadee,portanto,àliberdade.Nummundopovoadoporservosquesemeavamaterra,saltarsobreasárvoreseraareceitaperfeitadosbarõesparaaliberdade.Éafacilidadecomqueosbarõesdehojesecomportamdemodosemelhanteaosaltarsobreasárvoresquemantémossucessoresdosservosemseuslugares,eéaimobilidadeforçadadessessucessores,sualigaçãoàterra,quepermitequeosbarõescontinuemasaltar.Pormaisprofundaedeprimentequesejaamisériadosservos,nãoháninguémcontraquemserebelar,esetivessemserebelado não teriam alcançado os rápidos alvos de sua rebelião. Amodernidadepesadamantinhacapitaletrabalhonumagaioladeferrodequenãopodiamescapar.

Amodernidade leve permitiu que um dos parceiros saísse da gaiola. Amodernidade “sólida” era uma era de engajamento mútuo. A modernidade“fluida”éaépocadodesengajamento,dafugafáciledaperseguição inútil.Namodernidade “líquida”mandam osmais escapadiços, os que são livresparasemoverdemodoimperceptível.

KarlPolanyi(emAgrandetransformação:aorigempolíticaeeconômicade nosso tempo, publicado em 1944) proclamou a ficção do tratamento dotrabalhocomo“mercadoria”edesenvolveuasconseqüênciasdoarranjosocialfundado nessa ficção. O trabalho, observou Polanyi, não pode ser umamercadoria(pelomenosnãoumamercadoriacomoasoutras),dadoquenãopodeservendidooucompradoseparadodeseusportadores.Otrabalhosobreo qual Polanyi escrevia era de fato trabalho incorporado: trabalho que nãopodiasermovidosemmoveroscorposdostrabalhadores.Sósepodiaalugar

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eempregartrabalhohumanojuntocomorestodoscorposdostrabalhadores,eainérciadoscorposalugadospunhalimitesàliberdadedosempregadores.Para supervisionar o trabalho e canalizá-lo conforme o projeto era precisoadministrar e vigiar os trabalhadores; para controlar o processo de trabalhoera preciso controlar os trabalhadores. Esse requisito colocou o capital e otrabalho face a face e, para o bem ou para o mal, os manteve juntos. Oresultado foimuito conflito,mas tambémmuita acomodaçãomútua: ácidasacusações, lutas amargas e pouco amorperdido,mas tambémum tremendoengenhonaformulaçãoderegrasdeconvíviorazoavelmentesatisfatóriasouapenas suportáveis. Revoluções e o Estado de bem-estar foram o resultadonãoprevistomasinevitáveldacondiçãoqueimpediaaseparaçãocomoopçãofactíveleviável.

Vivemosagoraumaoutra“grandetransformação”,eumdeseusaspectosmaisvisíveiséumfenômenoqueéoexatoopostodacondiçãoquePolanyisupunha: a “descorporificação” daquele tipo de trabalho humano que servecomo principal fonte de nutrição, ou campo de pastagem, para o capitalcontemporâneo. Instalações de vigilância e treinamento à la Panóptico,volumosas,confusasedesajeitadas,nãosãomaisnecessárias.OtrabalhofoilibertadodoPanóptico,mas,oqueémais importante,ocapitalse livroudopesoedoscustosexorbitantesdemantê-lo;ocapitalficoulivredatarefaqueoprendiaeoforçavaaoenfrentamentodiretocomosagentesexploradosemnomedesuareproduçãoeengrandecimento.

O trabalho sem corpo da era do software não mais amarra o capital:permite ao capital ser extraterritorial, volátil e inconstante. Adescorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso do capital. Suadependência mútua foi unilateralmente rompida: enquanto a capacidade dotrabalhoé,comoantes,incompletaeirrealizávelisoladamente,oinversonãomaisseaplica.Ocapitalviajaesperançoso,contandocombreveselucrativasaventuraseconfianteemquenãohaveráescassezdelasoudeparceiroscomquem compartilhá-las. O capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza emobilidade se tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo oresto. Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator dasdivisõessociais.

Volumee tamanhodeixamdeser recursospara se tornar riscos.Paraoscapitalistasquepreferemtrocarmaciçosprédiosdeescritóriosporcabinesembalões,flutuaréomaislucrativoedesejadodosrecursos;eamelhormaneiradegarantiraflutuaçãoéjogarpelaamuradatodopesonão-vital,deixandoosmembros não-indispensáveis da tripulação em terra. Um dos itens maisembaraçosos do lastro de que é preciso livrar-se é a onerosa tarefa daadministração e supervisão de uma equipe grande — tarefa que tem atendência irritante de crescer incessantemente e aumentar de peso com a

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adição de camadas sempre novas de compromissos e obrigações. Se a“ciênciadaadministração”docapitalismopesadosecentravaemconservara“mão-de-obra”eforçá-laousuborná-laapermanecerdeprontidãoetrabalharsegundoosprazos,aartedaadministraçãonaeradocapitalismoleveconsisteemmanterafastadaa“mão-de-obrahumana”ou,melhorainda,forçá-laasair.Encontros breves substituem engajamentos duradouros. Não se faz umaplantaçãodelimoeirosparaespremerumlimão.

Oequivalentegerencialdalipoaspiraçãosetornouoprincipalestratagemadaartedeadministrar:emagrecer,reduzirdetamanho(downsizing), superar,fecharouvenderalgumasunidadesporquenãosãosuficientementeeficazes,e outras porque é mais barato deixar que lutem por sua conta pelasobrevivência do que assumir a tarefa cansativa e demorada da supervisãogerencial,sãoasprincipaisaplicaçõesdessanovaarte.

Alguns observadores se apressaram a concluir que “maior” não é maisconsiderado “mais eficiente”. Nessa apresentação muito geral, porém, aconclusão não é correta. A obsessão pela redução de tamanho é umcomplementoinseparáveldamaniadasfusões.Osmelhoresjogadoresnessecampo são conhecidos por negociar ou forçar fusões para adquirir maisespaço para operações de redução de tamanho, aomesmo tempo em que aredução “até o osso” dos ativos é amplamente aceita como precondiçãofundamental para o sucesso dos planos de fusão. Fusões e redução detamanho não se contrapõem; ao contrário, se condicionam e reforçammutuamente. É um paradoxo apenas aparente: a contradição aparente sedissolveseconsiderarmosuma“novaemelhorada”apresentaçãodoprincípiodeMichelCrozier.Éamisturadeestratégiasdefusãoereduçãodetamanhoque oferece ao capital e ao poder financeiro o espaço para se moverrapidamente, tornando a amplitudede suaviagemcadavezmaisglobal, aomesmotempoemqueprivaotrabalhodeseupoderdebarganhaederuído,imobilizando-oeatandosuasmãosaindamaisfirmemente.

Afusãoprenunciaumacordamaislongaparaocapitalesguio,flutuante,aoestiloHoudini,quetransformouaevasãoeafuganosmaioresveículosdesuadominação, substituiu compromissosduradourospor negócios de curto-prazoeencontrosfugazes,mantendosempreabertaapossibilidadedo“atodedesaparecimento”.Ocapitalganhamaiscampodemanobra—maisabrigospara esconder-se, maior matriz de permutações possíveis, mais amplosortimentodetransformaçõesdisponíveis,eportantomaisforçaparamanterotrabalhoqueempregasobcontrole,juntamentecomacapacidadedelavarasmãos das conseqüências devastadoras de sucessivas rodadas de redução detamanho;essaéacaracontemporâneadadominação—sobreaquelesquejáforamatingidosesobreosquetememestarnafilaparagolpesfuturos.ComoaAssociaçãoNorte-Americana deAdministração aprendeu com um estudo

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que comissionou, “o moral e a motivação dos trabalhadores caiuacentuadamente depois de vários arrochos de redução de tamanho. Ostrabalhadores sobreviventes esperavampelonovogolpede foice emvezdeexultaremcomavitóriasobreosdemitidos”.23

Acompetiçãopelasobrevivênciacertamentenãoéapenasodestinodostrabalhadores—ou,demaneiramaisgeral,detodososqueestãodoladoquesofreamudançadarelaçãoentretempoeespaço.Eladominadealtoabaixoa empresa obcecada com a “dieta de emagrecimento”. Os gerentes devemreduzir o tamanho de setores que empregam trabalhadores para continuarvivos;aaltagerênciadevereduzirotamanhodeseusescritóriosparamerecero reconhecimento das bolsas, ganhar os votos dos acionistas e garantir odireito aos cumprimentos quando completar a rodada de cortes. Depois decomeçada,atendência“aoemagrecimento”ganhaforçaprópria.Atendênciase torna autopropelida e autoacelerada, e (como os empresáriosperfeccionistas deMaxWeber, que nãomais precisavam das exortações deCalvinoaoarrependimento)omotivooriginal—maioreficiência—torna-secada vezmais irrelevante; omedo de perder o jogo da competição, de serultrapassado, deixado para trás ou excluído dos negócios é suficiente paramanterojogodafusão/reduçãodetamanho.Essejogosetornacadavezmaisseuprópriopropósitoesuaprópriarecompensa;melhorainda,ojogojánãoprecisadeumpropósito,secontinuarneleforsuaúnicarecompensa.

Vidainstantânea

RichardSennett foidurantemuitosanosumobservadorregulardoencontromundial dos poderosos, realizado anualmente em Davos. O tempo e odinheiro gastos nas viagens aDavos derambelo retorno; Sennett trouxe desuasescapadasumasériedepercepçõessobreosmotivosetraçosdecaráterquemovimentamosprincipaisatoresnojogoglobaldehoje.Ajulgarporseurelato,24Sennett ficou particularmente impressionado pela personalidade,desempenho e pelo credo publicamente articulado deBillGates.Gates, dizSennett, “parece livre da obsessão de agarrar-se às coisas. Seus produtossurgemfuriosamenteparadesaparecertãorápidocomoapareceram,enquantoRockefellerqueriapossuiroleodutos,prédios,máquinasouestradas-de-ferropor longo tempo”. Gates repetidamente declarou preferir “colocar-se numarede de possibilidades a paralizar-se num trabalho particular”. O que maischamouaatençãodeSennettparece ter sidoodesejoexplícitodeGatesde“destruir o que fizera diante das demandas do momento imediato”. Gatespareciaumjogadorque“floresceemmeioaodeslocamento”.Tinhacuidadoem não desenvolver apego (e especialmente apego sentimental) oucompromisso duradouro com nada, inclusive suas próprias criações. Não

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tinhamedodetomarocaminhoerrado,poisnenhumcaminhoomanterianamesmadireçãopormuito tempo e porquevoltar atrás oupara o outro ladoeram opções constante e instantaneamente disponíveis. Pode-se dizer que,com exceção da crescente gama de oportunidades acessíveis, nadamais seacumulavaouaumentavanatrilhadavidadeGates;ostrilhoscontinuavamaser desmontados à medida que a locomotiva avançava alguns metros; aspegadas eram apagadas, as coisas eram descartadas tão rapidamente comotinhamsidocolhidas—elogoesquecidas.

AnthonyFlewcitaumdospersonagensdeWoodyAllen:“Eunãoqueroaimortalidade por minha obra, eu quero alcançar a imortalidade nãomorrendo.”25Masosentidodaimortalidadederivadosentidoatribuídoàvidasabidamentemortal;apreferênciapor“nãomorrer”nãoétantoumaescolhadeoutraformadeimortalidade(umaalternativaà“imortalidadepelaobra”),mas uma declaração de despreocupação com a eterna duração em favor docarpediem.Aindiferençaemrelaçãoàduraçãotransformaaimortalidadedeumaidéianumaexperiênciaefazdelaumobjetodeconsumoimediato:éomodo como se vive o momento que faz desse momento uma “experiênciaimortal”.Sea“infinitude”sobreviveàtransmutação,éapenascomomedidada profundidade ou intensidade da Erlebnis. O ilimitado das sensaçõespossíveisocupaolugarqueeraocupadonossonhospeladuraçãoinfinita.Ainstantaneidade (anulação da resistência do espaço e liquefação damaterialidadedosobjetos)fazcomquecadamomentopareçatercapacidadeinfinita;eacapacidadeinfinitasignificaquenãohálimitesaoquepodeserextraídodequalquermomento—pormaisbrevee“fugaz”queseja.

O“longoprazo”,aindaquecontinueasermencionado,porhábito,éumaconchavaziasemsignificado;seoinfinito,comootempo,éinstantâneo,paraser usado no ato e descartado imediatamente, então “mais tempo” adicionapoucoaoqueomomentojáofereceu.Nãoseganhamuitocomconsideraçõesde “longo prazo”. Se a modernidade sólida punha a duração eterna comoprincipalmotivoeprincípiodaação,amodernidade“fluida”nãotemfunçãopara a duração eterna.O “curto prazo” substituiu o “longo prazo” e fez dainstantaneidadeseuidealúltimo.Aomesmotempoemquepromoveotempoaopostodecontêinerdecapacidadeinfinita,amodernidadefluidadissolve—obscureceedesvaloriza—suaduração.

Há20anosMichaelThompsonpublicouumestudopioneirodotortuosodestino histórico da distinção durável/transitório.26 Objetos “duráveis” sedestinam a ser preservados por muito e muito tempo; eles chegam aincorporar tantoquantopossível anoçãoabstrata e etéreade eternidade;defato, a imagem de eternidade é extrapolada da postulada ou projetadaantigüidadedos“duráveis”.Atribui-seaosobjetosduráveisumvalorespecial,e eles sãocobiçadose estimadospor suaassociaçãocoma imortalidade—

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valorúltimo,“naturalmente”desejadoequenãorequerargumentosparaserabraçado.Oopostodosobjetos“duráveis”sãoos“transitórios”,destinadosaseremusados—consumidos—eadesaparecernoprocessodeseuconsumo.Thompsonobservaque“aquelaspessoaspróximasdotopo…podemgarantirque seus próprios objetos sejam sempre duráveis e os dos outros sejamsempretransitórios…Elasnãopodemperder.”Thompsonsupõequeodesejode “tornar duráveis seus próprios objetos” é uma constante das “pessoaspróximasdotopo”talvezoqueascoloquelásejamesmoessacapacidadedetornar os objetos duráveis, de acumulá-los,mantê-los e assegurá-los contrarouboedeterioração;maisainda:demonopolizá-los.

Esses pensamentos tinham uma aura de verdade (ou pelo menos decredibilidade) entre as realidadesdamodernidade sólida.Sugiro, entretanto,que o advento da modernidade fluida subverteu radicalmente essacredibilidade.Éacapacidade,comoadeBillGates,deencurtaroespaçodetempo da durabilidade, de esquecer o “longo prazo”, de enfocar amanipulaçãodatransitoriedadeemvezdadurabilidade,dedisporlevementedascoisasparaabrirespaçoparaoutrasigualmentetransitóriasequedeverãoserutilizadasinstantaneamente,queéoprivilégiodosdecimaequefazcomqueestejamporcima.Manterascoisasporlongotempo,alémdeseuprazode “descarte” e além do momento em que seus “substitutos novos eaperfeiçoados”estiverememofertaé,aocontrário,sintomadeprivação.Umavezqueainfinidadedepossibilidadesesvaziouainfinitudedotempodeseupodersedutor,adurabilidadeperdesuaatraçãoepassadeumrecursoaumrisco.Talvezsejamaisadequadoobservarqueapróprialinhadedemarcaçãoentreo“durável”eo“transitório”,outrorafocodedisputaeengenharia,foisubstituídapelapolíciadefronteiraseporbatalhõesdeconstrutores.

Adesvalorizaçãoda imortalidadenãopodesenãoanunciarumarebeliãocultural,defensavelmenteomarcomaisdecisivonahistóriaculturalhumana.Apassagemdocapitalismopesadoao leve,damodernidadesólidaà fluida,podeviraserumpontodeinflexãomaisradicalericoqueoadventomesmodo capitalismo e da modernidade, vistos anteriormente como os marcoscruciaisdahistóriahumana,pelomenosdesdearevoluçãoneolítica.Defato,em toda a história humana o trabalho da cultura consistiu em peneirar esedimentar duras sementes de perpetuidade a partir de transitórias vidashumanas e de ações humanas fugazes, em invocar a duração a partir datransitoriedade, a continuidade a partir da descontinuidade, e em assimtranscenderoslimitesimpostospelamortalidadehumana,utilizandohomensemulheresmortaisaserviçodaespéciehumanaimortal.Ademandaporessetipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. As conseqüências dessademanda em queda estão para ser vistas e são difíceis de visualizar deantemão,poisnãoháprecedentesalembrarouemqueseapoiar.

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A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade doconvívio humano — e mais conspicuamente o modo como os humanoscuidam(ounãocuidam,seforocaso)deseusafazerescoletivos,ouantesomodocomotransformam(ounãotransformam,seforocaso)certasquestõesemquestõescoletivas.

A “teoria da escolha pública”, que hoje faz avanços impressionantes naciência política, captou corretamente a nova inflexão (ainda que — comofreqüentemente acontece quando novas práticas humanasmontamumnovocenário para a imaginação humana — tenha se apressado em generalizardesenvolvimentosrelativamenterecentescomoaverdadeeternadacondiçãohumana, supostamente desapercebida ou negligenciada pela “pesquisaanterior”).SegundoGordonTullock,umdosmaisimportantespromotoresdanovamodateórica,“anovaabordagemcomeçasupondoqueoseleitoressãomuito parecidos com consumidores e que os políticos sãomuito parecidoscomhomensdenegócios”.Céticoemrelaçãoaovalordateoriada“escolhapública”, Leif Lewin comentou, cáustico, que os pensadores da escola da“escolha pública” “retratam o homem político como … um homem dascavernasmíope”.Lewinpensaqueissoestáinteiramenteerrado.Podetersidoverdade na época dos trogloditas, “antes que o homem ‘descobrisse oamanhã’ e aprendesse a fazer cálculos de longoprazo”,mas não agora, emnossos temposmodernos, quando todos sabemos,oupelomenos amaioria,tantoeleitorescomopolíticos,que“amanhãnosencontraremosnovamente”e,portanto,acredibilidadeé“orecursomaisvaliosodopolítico”27(enquantoaatribuição da confiança, podemos acrescentar, é a arma mais zelosamenteutilizadapeloeleitor).Paraapoiarsuacríticadateoriada“escolhapública”,Lewin cita numerosos estudos empíricos quemostramque poucos eleitoresvotampensandoemseusbolsos,eamaioriadelesdeclaraqueoqueguiaseucomportamentoeleitoraléoestadodopaíscomoumtodo.Issoé,dizLewin,o que se poderia esperar; isso é, sugiro eu, o que os eleitores entrevistadosacharam que se esperava que eles dissessem e o que seria adequado. Seconsiderarmos a notória disparidade entre o que fazemos e como narramosnossas ações, não rejeitaríamos de uma vez as afirmações dos teóricos da“escolha pública” (o que é diferente de aceitar sua validade universal eatemporal).Nessecaso,suateoriapodeterganhadopercepçãoaoselivrardoquefoitomado,acriticamente,como“dadoempírico”.

É verdade que “uma vez” os homens das cavernas “descobriram oamanhã”.Masahistóriaétantoumprocessodeesquecercomodeaprender,ea memória é famosa por sua seletividade. Talvez nos “encontremosnovamente amanhã”. Mas talvez não, ou então o “nós” que nosencontraremosamanhãnão sejaomesmo“nós”dehápouco.Se for esseocaso,acredibilidadeeaatribuiçãodeconfiançaserãorecursosouriscos?

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LewinlembraaparáboladoscaçadoresdeveadosdeRousseau.Antesqueoshomens“descobrissemoamanhã”—correahistória—poderiaacontecerque um caçador, emvez de esperar pacientemente que o veado surgisse dafloresta, se distraísse, por causa da fome, com um coelho que passava, adespeito de que sua cota de carne do veado caçado em conjunto fosse sermuitomaiorqueocoelho.Éverdade.Mastambémacontecequehojepoucasequipesdecaçasemantêmunidaspelotempoqueoveadolevaparaaparecer,demodoquequemcolocasuafénosbenefíciosdoempreendimentoconjuntopode sofrer amarga decepção. E também acontece que, diferentemente dosveados que, para serem alcançados e capturados, requerem caçadores quecerrem fileiras, mantenham-se ombro a ombro e ajam solidariamente, oscoelhos, adequados ao consumo individual, são muitos e diferentes, edemandampouco tempo para serem caçados, escalpelados e cozidos.Essassão também descobertas — novas descobertas, talvez tão férteis emconseqüênciascomoumavezofoia“descobertadoamanhã”.

A “escolha racional” na era da instantaneidade significa buscar agratificação evitando as conseqüências, e particularmente asresponsabilidades que essas conseqüências podem implicar.Traços duráveisdagratificaçãodehojehipotecamaschancesdasgratificaçõesdeamanhã.Aduraçãodeixadeserumrecursoparatornar-seumrisco;omesmopodeserdito de tudo o que é volumoso, sólido e pesado— tudo o que impede ourestringe omovimento. Gigantescas plantas industriais e corpos volumosostiveramseudia:outroratestemunhavamopodereaforçadeseusdonos;hojeanunciam a derrota na próxima rodada de aceleração e assim sinalizam aimpotência. Corpo esguio e adequação ao movimento, roupa leve e tênis,telefones celulares (inventados para o uso dos nômades que têm que estar“constantementeemcontato”),pertencesportáteisoudescartáveis—sãoosprincipais objetos culturais da era da instantaneidade. Peso e tamanho, eacima de tudo a gordura (literal ou metafórica) acusada da expansão deambos,compartilhamodestinodadurabilidade.Sãoosperigosquedevemostemerecontraosquaisdevemoslutar;melhorainda,manterdistância.

É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade e que evita adurabilidade. Também é difícil conceber a moralidade indiferente àsconseqüênciasdasaçõeshumanasequeevitaaresponsabilidadepelosefeitosqueessasaçõespodemtersobreoutros.Oadventodainstantaneidadeconduzaculturaeaéticahumanasaumterritórionão-mapeadoeinexplorado,ondeamaioriadoshábitosaprendidosparalidarcomosafazeresdavidaperdeusuautilidadeesentido.NafamosafrasedeGuyDebord,“oshomensseparecemmais com seus tempos que com seus pais”. E os homens e mulheres dopresentesedistinguemdeseuspaisvivendonumpresente“quequeresquecero passado e não parece mais acreditar no futuro”28. Mas a memória dopassado e a confiança no futuro foram até aqui os dois pilares em que se

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apoiavamaspontesculturaisemoraisentreatransitoriedadeeadurabilidade,amortalidadehumana e a imortalidadedas realizaçõeshumanas, e tambémentreassumiraresponsabilidadeeviveromomento.

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4•TRABALHO

A Prefeitura de Leeds, cidade em que passei os últimos 30 anos, é ummonumentomajestosoàsenormesambiçõeseautoconfiançadoscapitãesdaRevoluçãoIndustrial.ConstruídaemmeadosdoséculoXIX,grandiosaerica,pesada e empedra, foi feita para durar para sempre, comooPartenon e ostemplos egípcios cuja arquitetura imita. Contém, como peça central, umaenorme sala de assembléias onde os cidadãos deviam se encontrarregularmenteparadebateredecidirospróximospassosnadireçãodamaiorglória da cidade e do Império Britânico. Sob o teto desse salão estãodetalhadasemletrasdouradasepúrpuraasregrasquedevemguiarquemquerque se junte a essa caminhada. Entre os princípios sacrossantos da éticaburguesa segura e assertiva, como “honestidade é a melhor política”,“auspiciummeliorisaevi”ou“leieordem”,umpreceitochamaatençãoporsua firme e segura brevidade: “Para frente”. Ao contrário do visitantecontemporâneodaPrefeitura,osantigoscidadãosquecompuseramocódigonão terão tido dúvidas sobre seu significado. Seguramente não sentiramnecessidadedeperguntarosentidodaidéiade“andarparafrente”,chamada“progresso”. Eles sabiam a diferença entre “para frente” e “para trás”. Epodiamdizerquesabiamporquepraticavamaaçãoquefaziaadiferença:aolado do “para frente” outro preceito foi pintado em dourado e púrpura—“laboromniavincit”.“Parafrente”eraodestino,otrabalhoeraoveículoqueosconduziria,eosantigoscidadãosqueseencarregaramdaPrefeituratinhamsentimentossuficientementefortesparapersistirnatrilhaotemponecessárioparaalcançarseudestino.

Em25demaiode1916,HenryForddiziaaocorrespondentedaChicagoTribune:

A história é mais ou menos uma bobagem. Nós não queremos tradição.Queremosvivernopresente,eaúnicahistóriadignadeinteresseéahistóriaquefazemoshoje.

Ford era famoso por dizer em alto e bom som o que outros pensariamduas vezes antes de admitir. Progresso? Não se pense nele como “obra dahistória”.Éobranossa,denós,quevivemosnopresente.Aúnicahistóriaquecontaéaqueaindanãoestá feita,masestásendofeitanestemomentoesedestinaaserfeita:éofuturo,doqualoutroamericanopragmáticoeobjetivo,AmbroseBierce,escreveradezanosantesemseuDevil’sDictionaryqueé“o

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tempoquandonossosnegóciosprosperam,nossosamigossãoverdadeirosenossafelicidadeestáassegurada”.

A autoconfiança moderna deu um brilho inteiramente novo à eternacuriosidadehumanasobreofuturo.Asutopiasmodernasnuncaforammerasprofecias,emenosaindasonhosinúteis:abertamenteoudemodoencoberto,eramtantodeclaraçõesdeintençõesquantoexpressõesdeféemqueoquesedesejava podia e devia ser realizado. O futuro era visto como os demaisprodutos nessa sociedade de produtores: alguma coisa a ser pensada,projetadaeacompanhadaemseuprocessodeprodução.Ofuturoeraacriaçãodotrabalho,eotrabalhoeraafontedetodacriação.Aindaem1967,DanielBellescreveuque

todasociedadehojeestáconscientementecomprometidacomocrescimentoeconômico, com a elevação do padrão de vida de seu povo, e portanto [ogrifo émeu] comoplanejamento,direçãoe controledamudança social.Oque fazosestudosatuais tãocompletamentediferentesdosanterioreséqueeles se orientampara propósitos específicos de política social; e junto comessa nova dimensão são formulados, autoconscientemente, por uma novametodologia que promete oferecer fundamentos mais confiáveis paraalternativaseescolhasrealistas…1

Ford teria proclamado triunfante o que Pierre Bourdieu notourecentementecomtristeza:paradominarofuturoéprecisoestarcomospésfirmementeplantadosnopresente.2Osquemantêmopresentenasmãostêmconfiança de que serão capazes de forçar o futuro a fazer com que seusnegóciosprosperem,eporessamesmarazãopodemignoraropassado;eles,esomenteeles,podemtratarahistóriapassadacomo“bobagem”,quesetraduz,em termosmais elegantes, como“semsentido”ou“mistificação”.Ou,pelomenos,daraopassadotantaatençãoquantoascoisasdessetipomerecem.Oprogressonãoelevaouenobreceahistória.O“progresso”éumadeclaraçãoda crença de que a história não conta e da resolução de deixá-la fora dascontas.

Progressoefénahistória

Estaéaquestão:o“progresso”nãorepresentaqualquerqualidadedahistória,masaautoconfiançadopresente.Osentidomaisprofundo,talvezúnico,doprogressoéfeitodeduascrençasinter-relacionadas—deque“otempoestádo nosso lado”, e de que “somos nós que fazemos acontecer”. As duascrenças vivem juntas emorrem juntas—e continuarão a viver enquanto opoderdefazercomqueascoisasaconteçamencontrarsuacorroboraçãodiária

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nosfeitosdaspessoasqueasprofessam.ComodizAlainPeyrefitte,“oúnicorecurso capaz de transformar um deserto na terra de Canaã é a confiançamútuadaspessoas,eacrençadetodosnofuturoquecompartilharão”.3Tudoomais que possamos querer dizer ou ouvir sobre a “essência” da idéia deprogresso é um esforço compreensível, ainda que fútil e equivocado, de“ontologizar”aquelesentimentodeféeautoconfiança.

A história é uma marcha em direção a uma vida melhor e de maisfelicidade?Se issofosseverdade,comoosaberíamos?Nós,queodizemos,nãovivemosnopassado;osqueviveramnopassadonãovivemhoje.Quem,então, fará a comparação? Quer fujamos para o futuro (como o Anjo daHistória de Benjamin/Klee), repelidos e empurrados pelos horrores dopassado,quernosapressemosemdireçãoaele(comoamaissanguíneaquedramática versãowhig da história gostaria que acreditássemos), atraídos epuxados pela esperança de que “nossos negócios prosperarão”, a única“evidência”quetemoséojogodamemóriaedaimaginação,eoqueasligaou as separa é nossa autoconfiança ou sua ausência. Para as pessoas queconfiamemseupoderdemudarascoisas,o“progresso”éumaxioma.Paraasquesentemqueascoisaslhesescapamdasmãos,aidéiadeprogressonãoocorre, e seria risível se ouvida.Entre as duas condições polares, há poucoespaçoparaumdebatesineiraetstudio,paranãofalardeconsenso.HenryFord talvezaplicasseaoprogressoumaopiniãosemelhanteàqueexpressousobreoexercício: “Exercícioébobagem.Sevocê for saudável,nãoprecisadele;sefordoente,nãoofará.”

Mas se a autoconfiança— o sentimento tranqüilizador de que se está“firme no presente”—é o único fundamento emque a fé no progresso seapóia,entãonãosurpreendequeemnossostemposafésejaoscilanteefraca.Easrazõesporqueissosedánãosãodifíceisdeencontrar.

Primeiro,anotávelausênciadeumaagência capazde“moveromundoparafrente”.Amaispungenteemenosrespondíveldasquestõesdosnossostempos demodernidade líquida não é “o que fazer?” (para tornar omundomelhoroumaisfeliz),mas“quemvaifazê-lo?”KennethJowitt4anunciouocolapsodo“discursodeJoshua”,queatérecentementecostumavadarformaanosso pensamento sobre omundo e suas perspectivas, e que considerava omundocomo“centralmenteorganizado,rigidamentecercadoehistericamentepreocupadocomfronteirasimpenetráveis”.Numtalmundo,asdúvidassobreaagênciadificilmentesurgiriam:afinal,omundodo“discursodeJoshua”erapouco mais que uma conjunção entre uma agência poderosa e osresíduos/efeitos de suas ações. Essa imagem tinha um fundamentoepistemológico sólido que compreendia entidades tão sólidas, inabaláveis eirredutíveiscomoafábricafordistaeosEstadossoberanos(soberanossenãonarealidade,pelomenosemsuaambiçãoedeterminação)capazesdeprojetar

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edeadministraraordem.Essefundamentodafénoprogressoéhojevisívelprincipalmenteporsuas

rachaduras e fissuras. Os mais sólidos e menos questionáveis de seuselementos estão perdendo seu caráter compacto junto com sua soberania,credibilidadeeconfiabilidade.A fadigadoEstadomodernoé talvez sentidademodomaisagudo,pois significaqueopoderdeestimularaspessoasaotrabalho— o poder de fazer coisas— é tirado da política, que costumavadecidir que tipos de coisas deveriam ser feitas e quem as deveria fazer.Emboratodasasagênciasdavidapolíticapermaneçamondea“modernidadelíquida” as encontrou, presas como antes a suas respectivas localidades, opoderfluibemalémdeseualcance.Anossaexperiênciaésemelhanteàdospassageiros que descobrem, bem alto no céu, que a cabine do piloto estávazia.ParacitarGuyDebord,“ocentrodecontrole tornou-seoculto:nuncamaisseráocupadoporumlíderconhecidoouporumaideologiaclara”.5

Segundo,ficacadavezmenosclarooqueaagência—qualqueragência—deveriafazerparaaperfeiçoaromundo,noimprovávelcasodequetenhaforçaparatanto.Asimagensdeumasociedadefelizpintadasemmuitascoresepormuitospincéisnocursodosdoisúltimos séculosprovaram-se sonhosinatingíveis ou (naqueles casos em que sua chegada foi anunciada)impossíveis de viver. Cada forma de projeto social mostrou-se capaz deproduzirtantotristezaquantofelicidade,senãomais.Issoseaplicaemigualmedidaaosdoisprincipaisantagonistas—ohoje falidomarxismoeohojeesperançosoliberalismoeconômico.(ComoPeterDrucker,reconhecidamentedefensor do Estado liberal, observou em 1989, “também o laissez faireprometiaa‘salvaçãopelasociedade’:removertodososobstáculosàbuscadoganhoindividualproduziriaaofinalumasociedadeperfeita,oupelomenosamelhorpossível”—eporessarazãosuabravatanãopodeserlevadaasério.)Quanto aos outros competidores, a questão colocada por François Lyotard,“que tipo de pensamento seria capaz de superar Auschwitz num processogeral emdireção à emancipação universal”, continua sem resposta, e assimpermanecerá. Já passou o auge do discurso de Joshua: todas as visões jápintadas de ummundo feito sob medida parecem não-palatáveis, e as queainda não foram pintadas são suspeitas a priori. Viajamos agora sem umaidéia de destino que nos guie, não procuramos uma boa sociedade nemestamos muito certos sobre o que, na sociedade em que vivemos, nos fazinquietos eprontospara correr.OveredictodePeterDrucker—“nãomaissalvação pela sociedade … Quem quer que hoje proclame a ‘GrandeSociedade’,comoLyndonBainesJohnsonfezapenas20anosatrás,deveriaserpostoparaforadasalasobgargalhadas”6—captousemerrooespíritodotempo.

Oencantamentomoderno comoprogresso—comavidaquepode ser

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“trabalhada” para ser mais satisfatória do que é, e destinada a ser assimaperfeiçoada—aindanãoterminou,enãoéprovávelqueterminetãocedo.Amodernidadenãoconheceoutravidasenãoavida“feita”:avidadoshomensemulheresmodernoséumatarefa,nãoalgodeterminado,eumatarefaaindaincompleta, que clama incessantemente por cuidados e novos esforços.Quandonada,acondiçãohumananoestágiodamodernidade“fluida”oudocapitalismo “leve” tornou essa modalidade de vida ainda mais visível: oprogresso não émais umamedida temporária, uma questão transitória, quelevaeventualmente(e logo)aumestadodeperfeição(istoé,umestadoemque o que quer que devesse ser feito terá sido feito e não será necessáriaqualquermudançaadicional),masumdesafioeumanecessidadeperpétuaetalvezsemfim,overdadeirosignificadode“permanecervivoebem”.

Se, no entanto, a idéia de progresso em sua encarnação presente parecetão pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda a mantemos, éporque o progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, estáagora “individualizado” mais precisamente — desregulado e privatizado.Estáagoradesregulado—porqueasofertasde“elevardenível”asrealidadespresentessãomuitasediversaseporqueaquestão“umanovidadeparticularsignificadefatoumaperfeiçoamento?”foideixadaàlivrecompetiçãoantesedepoisdesuaintrodução,epermaneceráemdisputamesmodepoisdefeitaaescolha.Eestáprivatizadaporqueaquestãodoaperfeiçoamentonãoémaisum empreendimento coletivo, mas individual; são os homens e mulheresindividuais que a suas próprias custas deverão usar, individualmente, seupróprio juízo, recursos e indústria para elevar-se a uma condição maissatisfatória e deixar para trás qualquer aspecto de sua condição presente deque se ressintam. Como disse Ulrich Beck em sua advertência sobre aRisikogesellschaft,

a tendência é o surgimento de formas e condições de existênciaindividualizadas,quecompelemaspessoas—parasuaprópriasobrevivênciamaterial—asetornaremocentrodeseupróprioplanejamentoeconduçãodavida…De fato, é preciso escolher e mudar a própria identidade social, eassumir os riscos de fazê-lo…Opróprio indivíduo se torna a unidade dereproduçãodosocialnomundodavida.7

Aquestãodaexeqüibilidadedoprogresso,sejaelavistacomodestinodaespécie ou tarefa do indivíduo, permanece como estava antes que seinstalassemadesregulaçãoeaprivatização—eexatamentecomoarticuladapor Pierre Bourdieu: para projetar o futuro, é preciso estar firmementeplantado no presente. A única novidade aqui é que o que importa é aancoragem do indivíduo em seu próprio presente. E para muitos doscontemporâneos, talvez amaioria, sua ancoragemno presente é, namelhor

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das hipóteses, instável, e muitas vezes prima pela ausência. Vivemos nummundodeflexibilidadeuniversal,sobcondiçõesdeUnsicherheitagudaesemperspectivas, que penetra todos os aspectos da vida individual— tanto asfontesdasobrevivênciaquantoasparceriasdoamoredointeressecomum,osparâmetrosdaidentidadeprofissionaledacultural,osmodosdeapresentaçãodo eu em público e os padrões de saúde e aptidão, valores a seremperseguidos e omododepersegui-los.Sãopoucosos portos segurosda fé,quesesituamagrandesintervalos,eamaiorpartedotempoaféflutuasemâncora, buscando em vão enseadas protegidas das tempestades. Todosaprendemosàsnossasprópriascustasquemesmoosplanosmaiscuidadososeelaborados têmadesagradável tendênciadefrustrar-seeproduzirresultadosmuitodistantesdoesperado;quenossosingentesesforçosde“pôrordemnascoisas” freqüentemente resultamemmaiscaos,desordemeconfusão;equenossotrabalhoparaeliminaroacidenteeacontingênciaépoucomaisqueumjogodeazar.

Fiel a seus hábitos, a ciência prontamente seguiu a sugestão da novaexperiênciahistóricaerefletiuoespíritoemergentenaproliferaçãodeteoriascientíficasdocaosedacatástrofe.Outroramovidapelacrençadeque“Deusnãojogadados”,dequeouniversoéessencialmentedeterminísticoedequeatarefahumanaé fazeruminventáriocompletodesuas leis,demodoqueseparedetatearnoescuroequeaaçãohumanasejaacertadaeprecisa,aciênciacontemporâneavoltou-separaoreconhecimentodanaturezaendemicamenteindeterminísticadomundo,doenormepapeldesempenhadopeloazar,eparaa excepcionalidade, não a normalidade, da ordem e do equilíbrio. Tambémfiéis a seus hábitos, os cientistas trazem as notícias cientificamenteprocessadasdevoltaaodomínioondepelaprimeiravezas intuíram:paraomundodasquestõeshumanasedaaçãohumana.Eassimlemos,porexemplo,na popular e influente apresentação que David Ruelle faz da filosofiainspiradapelaciênciacontemporânea,que“aordemdeterminísticacriaumadesordemdoazar”:

Tratadosdeeconomia…dãoaimpressãodequeopapeldoslegisladoresemembros responsáveisdogovernoéencontrare implementarumequilíbrioparticularmentefavorávelparaacomunidade.Exemplosdocaosnafísicanosensinam,contudo,que,emvezde levaremaumequilíbrio,certassituaçõesdinâmicas ativam desenvolvimentos temporariamente caóticos eimprevisíveis. Os legisladores e governantes responsáveis devem, portanto,considerar a possibilidade de que suas decisões, que buscam produzir umequilíbrio melhor, poderão produzir em vez disso oscilações violentas eimprevistas,comefeitospossivelmentedesastrosos.8

Quaisquerquetenhamsidoasvirtudesquefizeramotrabalhoserelevado

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ao posto de principal valor dos tempos modernos, sua maravilhosa, quasemágica, capacidade de dar forma ao informe e duração ao transitóriocertamenteestáentreelas.Graçasaessacapacidade,foiatribuídoaotrabalhoum papel principal, mesmo decisivo, na moderna ambição de submeter,encilhar e colonizar o futuro, a fim de substituir o caos pela ordem e acontingência pela previsível (e portanto controlável) seqüência dos eventos.Ao trabalho foramatribuídasmuitasvirtudeseefeitosbenéficos,como,porexemplo,oaumentodariquezaeaeliminaçãodamiséria;massubjacenteatodos os méritos atribuídos estava sua suposta contribuição para oestabelecimentodaordem,paraoatohistóricodecolocaraespéciehumananocomandodeseuprópriodestino.

O“trabalho”assimcompreendidoeraaatividadeemquesesupunhaqueahumanidadecomoumtodoestavaenvolvidaporseudestinoenatureza,enão por escolha, ao fazer história. E o “trabalho” assim definido era umesforçocoletivodequecadamembrodaespéciehumanatinhaqueparticipar.O resto não passava de conseqüência: colocar o trabalho como “condiçãonatural” dos seres humanos, e estar sem trabalho como anormalidade;denunciaroafastamentodessacondiçãonaturalcomocausadapobrezaedamiséria,daprivaçãoedadepravação;ordenarhomensemulheresdeacordocomosupostovalordacontribuiçãodeseu trabalhoaoempreendimentodaespécie como um todo; e atribuir ao trabalho o primeiro lugar entre asatividades humanas, por levar ao aperfeiçoamentomoral e à elevação geraldospadrõeséticosdasociedade.

QuandoaUnsicherheitsetornapermanenteeévistacomotal,oestar-no-mundoé sentidomenoscomoumacadeiadeações legal,obediente, lógica,consistenteecumulativa,emaiscomoumjogo,emqueo“mundoláfora”éumdosjogadoresesecomportacomotodososjogadores,mantendoascartasfechadas junto ao peito. Como em qualquer outro jogo, os planos para ofuturo tendem a se tornar transitórios e inconstantes, não passando de unspoucosmovimentosàfrente.

Comoumestadodeperfeiçãoúltimanãoestáparaaparecernohorizontedos esforços humanos, e como a fé na eficácia a toda prova de qualqueresforçonãoexiste,nãofazmuitosentidoaidéiadeumaordem“total”asererigida andar por andar num esforço controlado, consistente e proposital.Quanto menor é a firmeza no presente, tanto menos o “futuro” pode serintegrado no projeto. Lapsos de tempo rotulados de “futuro” encurtam, e aduraçãodavidacomoumtodoé fatiadaemepisódiosconsiderados“umdecadavez”.Acontinuidadenãoémaismarcadeaperfeiçoamento.Anaturezaoutrora cumulativa e de longo prazo do progresso está cedendo lugar ademandasdirigidasacadaepisódioemseparado:oméritodecadaepisódiodeveser reveladoeconsumido inteiramenteantesmesmoqueele terminee

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queopróximocomece.Numavidaguiadapelopreceitodaflexibilidade,asestratégiaseplanosdevidasópodemserdecurtoprazo.

JacquesAttalisugeriurecentementequeéaimagemdolabirintoquehojedomina, ainda que sub-repticiamente, nossas idéias sobre o futuro e nossaprópriaparticipaçãonele; essa imagemse tornaoprincipal espelhoemquenossacivilizaçãosecontempla,nopresenteestágio.Olabirintocomoalegoriada condição humana foi a mensagem transmitida pelos nômades aossedentários.Osmilêniospassaram,eossedentáriosganharamaautoconfiançae a coragem para enfrentar o desafio do destino labiríntico. “Em todas aslínguaseuropéias”,observaAttali,“apalavra labirintopassaasersinônimode complexidade artificial, escuridão inútil, sistema tortuoso, selvaimpenetrável.Clarezasetornasinônimodelógica.”

Ossedentáriossededicaramatornartransparentesasparedes,endireitaresinalizaraspassagenstortuosas,iluminaroscorredores.Tambémproduziramguias e instruções claras e não-ambíguas para uso dos futuros passantes,indicandoquerumotomareevitarnasencruzilhadas.Fizeramtudoissoparadescobrir no final que o labirinto está firme em seu lugar; talvez tenha setornado ainda mais traiçoeiro e confuso devido ao ilegível emaranhado depegadas que se cruzam, à cacofonia de comandos e à contínua adição denovaspassagenstortuosas,novasviassemsaída,àsqueforamdeixadasparatrás. Os sedentários se tornaram “nômades involuntários”, lembrando comatrasoamensagemrecebidanocomeçodesuasviagenshistóricasetentandodesesperadamente recuperar seus conteúdos esquecidos que — comosuspeitam— podem ser portadores da “sabedoria necessária a seu futuro”.Umavezmais,olabirintosetornaaimagem-mestradacondiçãohumana—esignifica “o lugar opaco onde o desenho dos caminhos não obedece aqualquerlei.Oazareasurpresamandamnolabirinto,oquesinalizaaderrotadaRazãoPura.”9

No mundo humano labiríntico, os trabalhos humanos se dividem emepisódiosisoladoscomoorestodavidahumana.E,comonocasodetodasasoutras ações que os humanos podem empreender, o objetivo demanter umcursopróximoaosprojetosdosatoreséevasivo,talvezinatingível.Otrabalhoescorregou do universo da construção da ordem e controle do futuro emdireçãodoreinodojogo;atosdetrabalhoseparecemmaiscomasestratégiasdeumjogadorquesepõemodestosobjetivosdecurtoprazo,nãoantecipandomaisqueumoudoismovimentos.Oqueconta sãoos efeitos imediatosdecadamovimento; os efeitos devem ser passíveis de ser consumidos no ato.Suspeita-se que omundo esteja repleto de pontes demasiado longínquas, otipodepontesqueémelhornãopensarematravessaratéencontrá-las,oquenãoacontecerá tãocedo.Cadaobstáculodevesernegociadoquandochegarsuavez;avidaéumaseqüênciadeepisódios—cadaumasercalculadoem

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separado, pois cada um tem seu próprio balanço de perdas e ganhos. Oscaminhosdavidanãosetornammaisretosporseremtrilhados,evirarumaesquinanãoégarantiadequeosrumoscorretosserãoseguidosnofuturo.

E assim o trabalho mudou de caráter. Muitas vezes é um ato único:armação de um bricoleur, um trapaceiro, que mira o que está à mão e éinspiradoelimitadopeloqueestáàmão,maisformadoqueformador,maisoresultadodeagarraraoportunidadequeoprodutodeplanejamentoeprojeto.Tem uma sinistra semelhança com a famosa toupeira cibernética que sabiacomosemoverembuscadeumatomadaelétricaaqueseligarparareporaenergiagastanomovimentoembuscadeumatomadaelétricaaqueseligarparareporaenergiagasta…

Talvez o termo “remendar” capte melhor a nova natureza do trabalhoseparado do grande projeto de missão universalmente partilhada dahumanidadeedonãomenosgrandiosoprojetodeumavocaçãopara todaavida. Despido de seus adereços escatológicos e arrancado de suas raízesmetafísicas,otrabalhoperdeuacentralidadequeselheatribuíanagaláxiadosvaloresdominantesnaeradamodernidadesólidaedocapitalismopesado.Otrabalhonãopodemaisofereceroeixoseguroemtornodoqualenvolverefixarautodefinições,identidadeseprojetosdevida.Nempodeserconcebidocomfacilidadecomofundamentoéticodasociedade,oucomoeixoéticodavidaindividual.

Emvezdisso,otrabalhoadquiriu—aoladodeoutrasatividadesdavida— uma significação principalmente estética. Espera-se que seja satisfatórioporsimesmoeemsimesmo,enãomaismedidopelosefeitosgenuínosoupossíveisquetrazanossossemelhantesnahumanidadeouaopoderdanaçãoe do país, e menos ainda à bem-aventurança das futuras gerações. Poucaspessoasapenas—emesmoassimraramente—podemreivindicarprivilégio,prestígioouhonrapelaimportânciaebenefíciocomumgeradospelotrabalhoquerealizam.Raramenteseesperaqueotrabalho“enobreça”osqueofazem,fazendodeles“sereshumanosmelhores”, e raramentealguéméadmiradoeelogiado por isso. A pessoa é medida e avaliada por sua capacidade deentreterealegrar,satisfazendonãotantoavocaçãoéticadoprodutorecriadorquanto as necessidades e desejos estéticos do consumidor, que procurasensaçõesecolecionaexperiências.

Ascensãoequedadotrabalho

De acordo com oDicionário Oxford de inglês o primeiro uso da palavra“trabalho” (labour) no sentido de “esforço físico dirigido a atender àsnecessidadesmateriais da comunidade” foi registrado em 1776.Um séculodepois, veio a significar, além disso, “o corpo geral dos trabalhadores e

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operários” que tomam parte na produção, e pouco mais tarde também ossindicatoseoutroscorposqueligavamosdoissignificados,mantinhamessaligação e a reformulavam como questão política e instrumento de poderpolítico.Ouso inglês é notável por tornar clara a estruturada “trindadedotrabalho”: a proximidade (de fato, a convergência semântica ligada àidentidadededestino)entreasignificaçãoatribuídaao trabalho(essa labuta“física e mental”), a autoconstituição dos que trabalham numa classe e apolíticafundadanessaautoconstituição—emoutraspalavras,aligaçãoentredefinir a labuta física como principal fonte da riqueza e bem-estar dasociedade,eaautoafirmaçãodomovimentotrabalhista.Ascenderamjuntosejuntoscaíram.

Amaioria dos historiadores econômicos concorda (ver, por exemplo, oresumorecentedesuasdescobertasporPaulBairoch10)que, em termosdosníveisde riquezae renda,hápoucoquedistingaas civilizaçõesnoaugedeseuspoderes:asriquezasdeRomanoséculoI,daChinanoXI,daÍndianoXVII, não eram muito diferentes das da Europa no limiar da RevoluçãoIndustrial.Poralgumasestimativas,a rendapercapitanaEuropaOcidentalno séculoXVIIInãoeramaisque30%mais altaqueada Índia,ÁfricaouChinadaquelas épocas.Porémpoucomaisdeumséculo foi suficiente paratransformardrasticamenteaproporção.Porvoltade1870arendapercapitanaEuropaindustrializadaera11vezesmaiorquenospaísesmaispobresdomundo.Nocursodoséculoseguinteesse fatorquintuplicou,chegandoa50em 1995. Como indica o economista da Sorbonne Daniel Cohen, “arriscoafirmarqueofenômenodadesigualdadeentreasnaçõesédeorigemrecente;é produto dos últimos dois séculos”.11 E assim também a idéia do trabalhocomofontedariqueza,eapolíticasurgidadessasuposiçãoeguiadaporela.

A nova desigualdade global e a nova autoconfiança e sentimento desuperioridadequeseseguiramforamespetacularesesemprecedentes:novasnoções,novosquadroscognitivoseramnecessáriosparacaptá-laseassimilá-las intelectualmente. Essas noções e quadros foram fornecidos pela recém-nascidaciênciadaeconomiapolítica,queveioasubstituirasidéiasfisiocratase mercantilistas que acompanharam a Europa em seu caminho para a fasemodernadesuahistória,atéolimiardaRevoluçãoIndustrial.

Não“poracaso”essasnoçõesforamcunhadasnaEscócia,paísaomesmotempoenvolvidoeseparadodocursoprincipaldaconvulsãoindustrial,físicaepsicologicamentepróximodopaísquesetornariaoepicentrodaemergenteordemindustrial,masquepermaneceriaporcertotemporelativamenteimuneaseu impactoeconômicoecultural.As tendênciasemplenomovimentono“centro” são, em regra, mais prontamente detectadas e mais claramentearticuladas em lugares temporariamente relegados às “margens”. Viver naperiferiadocentrocivilizacionalsignificaestarsuficientementepróximopara

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ver as coisas com clareza,mas suficientemente longe para “objetivá-las” eassim moldar e condensar as percepções em conceitos. Não foi, portanto,“meracoincidência”queoevangelhotenhavindodaEscócia:ariquezavemdotrabalho,suafonteprincipal,talvezúnica.

ComoKarlPolanyiviria a sugerirmuitos anosdepois, atualizandoKarlMarx,queopontodepartidada“grandetransformação”quetrouxeàvidaanova ordem industrial foi a separação dos trabalhadores de suas fontes deexistência.Esseeventomomentosoerapartedeumprocessomaisamplo:aproduçãoea trocadeixaramde se inscrevernummododevida indivisível,maisgerale inclusivo, e assimsecriaramascondiçõesparaqueo trabalho(juntocoma terraeodinheiro) fosseconsideradocomomeramercadoriaetratado como tal.12 Podemos dizer que foi a mesma nova desconexão queliberou os movimentos da força de trabalho e de seus portadores que ostornou passíveis de serem movidos, e assim serem sujeitos a outros usos(“melhores”—maisúteisou lucrativos), recombinados e tornadospartedeoutros arranjos (“melhores”— mais úteis ou lucrativos). A separação dasatividadesprodutivasdorestodosobjetivosdavidapermitiuqueo“esforçofísicoemental”secondensassenumfenômenoemsimesmo—uma“coisa”asertratadacomotodasascoisas,istoé,aser“manipulada”,movida,reunidaaoutras“coisas”oufeitaempedaços.

Seessadesconexãonãoacontecesse,haveriapoucaspossibilidadesparaaidéia de separarmentalmente o trabalhoda “totalidade” a que ele pertencia“naturalmente”econdensá-lonumobjetoautocontido.Navisãopré-industrialdariqueza,“aterra”eraumatotalidadedessetipo—porinteiro,juntocomosqueacultivavamearavam.Anovaordemindustrialearedeconceitualquepermitiuaproclamaçãodoadventodeumasociedadediferente—industrial— nasceram na Grã-Bretanha; e esta se destacava entre seus vizinhoseuropeus por ter destruído seu campesinato, e com ele a ligação “natural”entre terra, trabalho humano e riqueza. Os cultivadores da terra tinhamprimeiroqueficarociosos,vagandoe“semsenhores”,paraquepudessemservistoscomoportadoresde“forçade trabalho”prontaparaserusada;eparaqueessaforçapudesseserconsideradacomopotencial“fontederiqueza”porsimesma.

Essa nova ociosidade e o desenraizamento dos trabalhadores parecia àstestemunhas contemporâneasmais inclinadas à reflexão como emancipaçãodo trabalho — parte da alegre sensação da libertação das capacidadeshumanasemgeraldasvexatóriaseestultificanteslimitaçõesparoquiais,edainércia da força do hábito e da hereditariedade. Mas a emancipação dotrabalho de suas “limitações naturais” não manteve o trabalho flutuando,desvinculado e “sem senhores” pormuito tempo; nem o tornou autônomo,autodeterminado e livre para fixar e seguir seus próprios desígnios. O

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desmantelado“modotradicionaldevida”dequeotrabalhoeraparteantesdesuaemancipaçãoestavaparasersubstituídoporumanovaordem;destavez,porém, uma ordem pré-projetada, uma ordem “construída”, não mais osedimento do vagar sem objetivo do destino e dos azares da história, masproduto de pensamento e ação racionais.Aodescobrir que o trabalho era afonte da riqueza, a razão tinha que buscar, utilizar e explorar essa fonte demodomaiseficientequenunca.

Alguns comentadores imbuídos do espírito impetuoso da era moderna(KarlMarxomaisimportanteentreeles)viramopassamentodavelhaordemprincipalmente como resultado de um ataque deliberado: uma explosãocausadaporumabombaplantadapelocapitaldedicadoa“derreterossólidose profanar o sagrado”. Outros, como de Tocqueville, mais cético econsideravelmentemenos entusiástico, viram aquele desaparecimento comoumcaso de implosão, e não de explosão: olhando para trás, perceberam assementesdadestruiçãonocoraçãodoAncienRégime(sempremaisfáceisderevelarouadivinharretrospectivamente)eviramaagitaçãoearrogânciadosnovos senhores como, basicamente, os últimos estremecimentos de ummoribundoounãomuitomais que a buscavigorosa e resoluta dasmesmascuras milagrosas que a velha ordem testara muito antes em esforçosdesesperados e vãos para impedir ou pelo menos adiar seu própriodesaparecimento.Havia,porém,poucodebatesobreasperspectivasdonovoregimeeasintençõesdosnovossenhores:avelhaejádefuntaordemdeveriasersubstituídaporumanovaordem,menosvulnerávelemaisviávelquesuaantecessora. Novos sólidos deveriam ser concebidos e construídos paraencher o vazio deixado pelos derretidos. As coisas postas para flutuardeveriam ser novamente ancoradas, de modo mais seguro que antes. Paraexpressar a mesma intenção no idioma hoje em moda: o que tinha sido“desacomodado”precisariaser,maiscedooumaistarde,“reacomodado”.

Romper os velhos vínculos local/comunal, declarar guerra aos modoshabituais e às leis costumeiras, quebrar e pulverizar les pouvoirsintermédiaires— o resultado disso tudo foi o delírio intoxicante do “novocomeço”. “Derreter os sólidos” era sentido como derreter minério de ferropara moldar barras de aço. Realidades derretidas e agora fluidas pareciamprontas para serem recanalizadas e derramadas em novos moldes, ondeganhariamumaformaquenuncateriamadquiridosetivessemsidodeixadascorrendonospróprioscursosquetinhamcavado.Nenhumpropósito,pormaisambicioso que fosse, parecia exceder a capacidade humana de pensar,descobrir, inventar, planejar e agir. Se a sociedade feliz— a sociedade depessoasfelizes—aindanãoestavanapróximaesquina,suachegadaiminentejáestavaprevistanaspranchetasdoshomensdepensamento,eseuscontornosesboçados pelos homens de pensamento eram encarnados nos escritórios epostosdecomandodoshomensdeação.Opropósitoemquetantooshomens

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depensamentoquantoosdeaçãoempregavamseutrabalhoeraaconstruçãodanovaordem.Aliberdaderecém-descobertadeveriaserutilizadanoesforçode gerar a ordenada rotina futura. Nada deveria ser deixado em seu cursocaprichoso e imprevisível, ao acidente e à contingência; nada deveria sermantido em sua forma presente, se essa forma pudesse ser aperfeiçoada etornadamaisútileeficaz.

Essa nova ordem em que todos os fins presentemente soltos serãonovamenteamarrados,enquantoascargasedestroçosdefatalidadespassadas,náufragos abandonados ou à deriva, serão recolocados e fixados em seuslugarescorretos,deveriasermassiva,sólida,feitadepedraouarmadaemaço:destinadaadurar.Grandeerabelo,grandeeraracional;“grande”queriadizerpoder, ambição e coragem.O local de construçãoda novaordem industrialerarepletodemonumentosaopodereàambição,monumentosque, fossemou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo: fábricas gigantescas lotadas demaquinaria volumosa e multidões de operadores de máquinas, ou densasredesdecanais,pontesetrilhos,pontuadosdemajestosasestaçõesdedicadasaemularosantigos temploserigidosparaaadoraçãodaeternidadeeparaaeternaglóriadosadoradores.

OmesmoHenryFordquedeclararaque“ahistóriaébobagem”,que“nãoqueremostradição”eque“queremosvivernopresenteeaúnicahistóriaqueimporta é a história que fazemos hoje”, um dia dobrou os salários de seustrabalhadores, explicando que queria que eles comprassem os carros queproduzia.Essaexplicaçãoerafalsa:oscarroscompradospelostrabalhadoresdaForderamumafraçãomínimadasvendastotais,enquantooaumentodossaláriospesavamuitonoscustosdeproduçãodaempresa.Averdadeirarazãopara o passo heterodoxo era o desejo de Ford de deter a mobilidadeirritantementealtadotrabalho.ElequeriaatarseusempregadosàsempresasFord de uma vez por todas, fazendo com que o dinheiro gasto em suapreparaçãoetreinamentosepagassemuitasvezes,portodaaduraçãodavidaútil dos trabalhadores. E para alcançar tal efeito tinha que imobilizar suaequipe, para mantê-los onde estavam, de preferência até que sua força detrabalhofosseinteiramenteutilizada.Tinhaquetorná-lostãodependentesdoempregoemsuafábricaevendendoseutrabalhoaseudonocomoelemesmodependiadeempregá-loseusarseutrabalhoparasuaprópriariquezaepoder.

Fordexpressavaemvozaltaospensamentosqueoutrosacalentavammassó se permitiam murmurar; ou, melhor, pensou o que outros na mesmasituação sentiam, mas eram incapazes de expressar em palavras. OempréstimodonomedeFordparaomodelouniversaldasintençõesepráticastípicas da modernidade sólida ou do capitalismo pesado é apropriado. OmodelodeHenryForddeumaordemnovaeracionalcriouopadrãoparaatendênciauniversaldeseutempo:eeraumidealquetodosoupelomenosa

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maioriadosoutrosempresárioslutavam,comgrausvariadosdesucesso,paraalcançar.Oidealeraodeatarcapitaletrabalhonumauniãoque—comoumcasamentodivino—nenhumpoderhumanopoderia,outentaria,desatar.

Amodernidadesólidaera,defato,tambémotempodocapitalismopesado— do engajamento entre capital e trabalho fortificado pelamutualidade desua dependência. Os trabalhadores dependiam do emprego para suasobrevivência; o capital dependia de empregá-los para sua reprodução ecrescimento. Seu lugar de encontro tinha endereço fixo; nenhum dos doispoderia mudar-se com facilidade para outra parte — os muros da grandefábrica abrigavam e mantinham os parceiros numa prisão compartilhada.Capital e trabalhadores estavam unidos, pode-se dizer, na riqueza e napobreza,nasaúdeenadoença,atéqueamorteosseparasse.Afábricaeraseuhabitat comum — simultaneamente o campo de batalha para a guerra detrincheiraselarnaturalparaesperançasesonhos.

O que pôs capital e trabalho face a face e os atou foi a transação decompraevenda;eassim,afimdepermaneceremvivos,cadaumtinhaquesemanter em forma para essa transação: os donos do capital tinham que sercapazesdecontinuarcomprandotrabalho,eosdonosdotrabalhotinhamquepermanecer alertas, saudáveis, fortes e suficientemente atraentes para nãoafastar os compradores e não sobrecarregá-los com os custos totais de suacondição.Cadaladotinha“interessesinvestidos”emmanterooutroladoemforma. Não surpreende que a “remercantilização” do capital e do trabalhotenhaseconvertidonaprincipalfunçãoeocupaçãodapolíticaedasupremaagênciapolítica,oEstado.OEstadoeraoencarregadodequeoscapitalistassemantivessem aptos a comprar trabalho e a poder arcar com seus preçoscorrentes. Os desempregados eram inteira e verdadeiramente o “exércitoreservadetrabalho”,etinhamquesermantidosemEstadodeprontidão,casofossem chamados de volta à ativa. O Estado de bem-estar, um Estadodedicadoafazerjustamenteisso,estava,poressarazão,genuinamente“alémda esquerda e da direita”, esteio sem o qual nem capital nem trabalhopoderiammanter-sevivosesaudáveis,quantomaiscrescer.

Algumas pessoas viam o Estado de bem-estar como uma medidatemporária,quesairiadecenaquandoasegurançacoletivacontraoinfortúniotivesse dado aos segurados audácia e recursos suficientes para desenvolverplenamenteseupotencialereuniracoragemparaassumirriscos—eassimpermitir-lhes“firmar-sesobreseusprópriospés”.Observadoresmaiscéticosviam o Estado de bem-estar como um dispositivo sanitário coletivamentefinanciadoeadministrado—umaoperaçãodelimpezaesaúdequeteriaquefuncionarenquantoaempresacapitalistacontinuasseagerardetritossociaisquenãotinhanemintençãonemrecursosdereciclar(istoé,pormuitotempoainda).Haviaumconsensogeral,contudo,dequeoEstadodebem-estarera

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um dispositivo destinado a atacar as anomalias, impedir afastamentos danorma e diluir as conseqüências das rupturas desta, se estas ainda assimacontecessem.Apróprianorma,quasenuncapostaemquestão,eraomútuoengajamentodireto,faceaface,decapitaletrabalho,earesoluçãodetodasas questões sociais importantes e constrangedoras no marco desseengajamento.

Quem, como jovem aprendiz, tivesse seu primeiro emprego na Ford,poderia ter certeza de terminar sua vida profissional no mesmo lugar. Oshorizontes temporais do capitalismo pesado eram de longo prazo. Para ostrabalhadores, os horizontes eram desenhados pela perspectiva de empregoportodaavidadentrodeumaempresaquepoderiaounãoser imortal,mascujavidaseria,dequalquermaneira,muitomaislongaqueadelesmesmos.Paraos capitalistas, a “fortuna familiar”, destinada adurar alémdavidadequalquer dosmembros da família, era sinônimodas fábricas que herdaram,construíramoupretendiamacrescentaraopatrimôniofamiliar.

Pararesumir:amentalidadede“longoprazo”constituíaumaexpectativanascidadaexperiência,edarepetidacorroboraçãodessaexperiência,dequeosdestinosdaspessoasquecompram trabalhoedaspessoasqueovendemestão inseparavelmente entrelaçados por muito tempo ainda— em termospráticos, para sempre — e que, portanto, a construção de um modo deconvivênciasuportávelcorrespondetantoaos“interessesdetodos”quantoànegociação das regras de convívio de vizinhança entre os proprietários decasasnummesmoloteamento.Essaexperiêncialevoumuitasdécadas,talvezmais de um século, para se firmar. Surgiu ao final do longo e tortuosoprocesso de “solidificação”. Como sugeriu Richard Sennett em seu estudorecente, foi só depois da Segunda Guerra que a desordem original da eracapitalistaveioasersubstituída,pelomenosnaseconomiasmaisavançadas,por“sindicatosfortes,garantidoresdoEstadodebem-estar,ecorporaçõesdelarga escala”, que se combinaram para produzir uma era de “estabilidaderelativa”.13

A “estabilidade relativa” em questão recobre com certeza o conflitoperpétuo. De fato, tornou esse conflito possível e, num sentido paradoxal,bemobservadoemseu tempoporLewisCoser,“funcional”:paraobemoupara o mal, os antagonistas estavam unidos por dependência mútua. Oconfronto,testesdeforçaeabarganhaqueseseguiamreforçavamaunidadedas partes em conflito precisamente porque nenhuma delas podia continuarsozinhaeambososladossabiamquesuasobrevivênciadependiadeencontrarsoluções que todos considerassem aceitáveis. Enquanto se supôs que acompanhia mútua duraria, as regras dessa união foram objeto de intensasnegociações,àsvezescomacrimôniaeconfrontações,outrascom tréguaseconcessões. Os sindicatos recriaram a impotência dos trabalhadores

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individuais na formado poder de barganha coletivo e lutaram com sucessointermitenteparatransformarosregulamentosincapacitadoresemdireitosdostrabalhadores e reformulá-los como limitações impostas à liberdade demanobra dos empregadores. Enquanto se manteve a mútua dependência,mesmo as jornadas impessoais odiadas com todas as forças pelos artesãosreunidosnasantigas fábricascapitalistas (equecausavamresistência,oqueE.P.Thompsondocumentouvividamente),eaindamaissuasúltimasversões“novaseaperfeiçoadas”naformadasinfamesmediçõesdetempodeFredericTaylor, esses atos, nas palavras de Sennett, “de repressão e dominaçãopraticados pela gerência em benefício do crescimento da gigantescaorganização industrial” “tinham se tornado uma arena em que ostrabalhadores podiam afirmar suas próprias demandas, uma arena que davapoder”.Sennettconclui:“Arotinapodediminuir,maspodetambémproteger;arotinapodedecomporotrabalho,maspodetambémcomporumavida.”14

Essa situação mudou, e o ingrediente crucial da mudança múltipla é anova mentalidade de “curto prazo”, que substituiu a de “longo prazo”.Casamentos“atéqueamortenossepare”estãodecididamenteforademodaesetornaramumararidade:osparceirosnãoesperammaisvivermuitotempojuntos. De acordo com o último cálculo, um jovem americano com nívelmédiode educação esperamudarde emprego11vezesdurante suavidadetrabalho—eoritmoefreqüênciadamudançadeverãocontinuarcrescendoantesqueavidadetrabalhodessageraçãoacabe.“Flexibilidade”éoslogando dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho augura um fim do“emprego como o conhecemos”, anunciando em seu lugar o advento dotrabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições semcobertura previdenciária, mas com cláusulas “até nova ordem”. A vida detrabalhoestásaturadadeincertezas.

Docasamentoàcoabitação

Pode-se sempre responder que não há nada particularmente novo nessasituação: a vida de trabalho sempre foi cheia de incertezas, desde temposimemoriais.Aincertezadehoje,porém,édeumtipointeiramentenovo.Ostemíveis desastres que podem devastar nossa sobrevivência e suasperspectivas não são do tipo que possa ser repelido ou contra que se possalutar unindo forças, permanecendo unidos e com medidas debatidas,acordadas e postas em prática em conjunto. Os desastres mais terríveisacontecem hoje aleatoriamente, escolhendo suas vítimas com a lógicamaisbizarraousemqualquerlógica,distribuindoseusgolpescaprichosamente,detalformaquenãohácomopreverquemserácondenadoequemserásalvo.Aincertezadopresenteéumapoderosaforçaindividualizadora.Eladivideem

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vezdeunir,ecomonãohámaneiradedizerquemacordaránopróximodiaemqualdivisão,aidéiade“interessecomum”ficacadavezmaisnebulosaeperdetodovalorprático.

Osmedos,ansiedadeseangústiascontemporâneossãofeitosparaseremsofridosemsolidão.Nãosesomam,nãoseacumulamnuma“causacomum”,nãotêmendereçoespecífico,emuitomenosóbvio.Issoprivaasposiçõesdesolidariedadedeseustatusantigodetáticasracionaisesugereumaestratégiade vida muito diferente da que levou ao estabelecimento das organizaçõesmilitantesemdefesadaclassetrabalhadora.Aofalarcompessoasjáatingidasouquetemiamviraseratingidaspelasmudançascorrentesnascondiçõesdeemprego, Pierre Bourdieu ouviu vezes sem conta que “em face das novasformas de exploração, notavelmente favorecidas pela desregulação dotrabalho e pelo desenvolvimento do emprego temporário, as formastradicionaisdeaçãosindicalsãoconsideradasinadequadas”.Bourdieuconcluiquefatosrecentes“quebraramosfundamentosdassolidariedadespassadas”equeoresultante“desencantamentovaidemãosdadascomodesaparecimentodoespíritodemilitânciaeparticipaçãopolítica”.15

Quandoautilizaçãodotrabalhosetornadecurtoprazoeprecária,tendosidoeledespidodeperspectivasfirmes(emuitomenosgarantidas)eportantotornadoepisódico,quandovirtualmentetodasasregrasrelativasaojogodaspromoçõesedemissõesforamesgotadasoutendemaseralteradasantesqueojogo termine, há pouca chance de que a lealdade e o compromissomútuosbrotem e se enraízem. Ao contrário dos tempos de dependência mútua delongoprazo,nãoháquaseestímuloparaum interesseagudo, sérioecríticoporconhecerosempreendimentoscomunseosarranjosaelesrelacionados,que de qualquer forma seriam transitórios. O emprego parece umacampamento que se visita por alguns dias e que se pode abandonar aqualquermomentoseasvantagensoferecidasnãoseverificaremouseforemconsideradas insatisfatórias—enãocomumdomicíliocompartilhadoondenos inclinamosa ter trabalhoe construir pacientemente regras aceitáveisdeconvivência.MarkGranovetter sugeriu que o nosso é um tempo de “laçosfracos”,enquantoSennettpropõeque“formasfugazesdeassociaçãosãomaisúteisparaaspessoasqueconexõesdelongoprazo”.16

Apresenteversão“liquefeita”,“fluida”,dispersa,espalhadaedesreguladadamodernidadepodenãoimplicarodivórcioerupturafinaldacomunicação,mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelodesengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital aotrabalho.Pode-sedizerqueessemovimentoecoaapassagemdocasamentoparao“viverjunto”,comtodasasatitudesdissodecorrenteseconseqüênciasestratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coabitação e dapossibilidade de que a associação seja rompida a qualquermomento e por

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qualquerrazão,umavezdesaparecidaanecessidadeouodesejo.Semanter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e demútua dependência, odesengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu umaautonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nuncahavia manifestado seriamente antes. Numa medida nunca alcançada narealidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital rompeu suadependênciaemrelaçãoaotrabalhocomumanovaliberdadedemovimentos,impensávelnopassado.Areproduçãoeocrescimentodocapital,doslucrosedos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes daduraçãodequalquercomprometimentolocalcomotrabalho.

Éclaroquea independêncianãoécompleta,eocapitalnãoéainda tãovolátil como gostaria de e tenta ser. Fatores territoriais— locais— aindadevemserconsideradosnamaioriadoscálculos,eo“poderdeconfusão”dosgovernoslocaisaindapodecolocarlimitesconstrangedoresàsualiberdadedemovimento.Masocapitalsetornouexterritorial,leve,desembaraçadoesoltonuma medida sem precedentes, e seu nível de mobilidade espacial é namaioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticasdependentes de território e fazê-las se submeterem a suas demandas. Aameaça(mesmoquandonãoexpressaemeramenteadivinhada)decortaroslaços locais emudar-se para outro lugar é uma coisa quequalquer governoresponsável,embenefíciopróprioenodeseusconcidadãos,devetratarcomamaiorseriedade, tentandosubordinarsuaspolíticasaopropósitosupremodeevitaraameaçadodesinvestimento.

Apolíticahojesetornouumcabo-de-guerraentreavelocidadecomqueocapital pode se mover e as capacidades cada vez mais lentas dos podereslocais,esãoasinstituiçõeslocaisquecommaisfreqüênciaselançamnumabatalhaquenãopodemvencer.Umgovernodedicadoaobem-estarde seuscidadãos tempoucaescolhaalémde implorar e adular, enãopode forçarocapitalavire,umavezdentro,aconstruirarranha-céusparaseusescritóriosemvezdeficaremquartosdehotelalugadospordia.Eissopodeserfeitooutentado (para usar o jargão comum à política da era do livre comércio)“criandomelhorescondiçõesparaalivreempresa”,oquesignificaajustarojogo político às regras da “livre empresa”— isto é, usando todo o poderregulador à disposição do governo a serviço da desregulação, dodesmantelamentoedestruiçãodasleiseestatutos“restritivosàsempresas”,demodoadarcredibilidadeepoderdepersuasãoàpromessadogovernodequeseuspoderesreguladoresnãoserãoutilizadospararestringirasliberdadesdocapital; evitando qualquermovimento que possa dar a impressão de que oterritóriopoliticamenteadministradopelogovernoépoucohospitaleirocomosusos,expectativasetodasasrealizaçõesfuturasdocapitalquepensaeageglobalmente,oumenoshospitaleiroqueasterrasadministradaspelosvizinhosmais próximos. Na prática, isso significa baixos impostos,menos regras e,

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acimade tudo, um “mercado de trabalho flexível”.Em termosmais gerais,significa uma população dócil, incapaz ou não-desejosa de oferecerresistência organizada a qualquer decisão que o capital venha a tomar.Paradoxalmente,osgovernospodemteraesperançademanterocapitalemseu lugar apenas se o convenceremde que ele está livre para ir embora—comousemavisoprévio.

Tendo se livrado do entulho do maquinário volumoso e das enormesequipes de fábrica, o capital viaja leve, apenas com a bagagem demão—pasta,computadorportátiletelefonecelular.Onovoatributodavolatilidadefez de todo compromisso, especialmente do compromisso estável, algo aomesmotemporedundanteepoucointeligente:seuestabelecimentoparalisariao movimento e fugiria da desejada competitividade, reduzindo a priori asopçõesquepoderiamlevaraoaumentodaprodutividade.Asbolsasdevaloresediretoriasadministrativasemtodoomundoestãoprontasparapremiartodosospassosdadosna“direçãocerta”,como“emagrecer”e“reduzirotamanho”,e a punir comamesmapresteza quaisquer notícias de expansãode equipe,aumento do emprego e envolvimento da empresa em projetos custosos delongoprazo.AhabilidadededesaparecercomoHoudini,“artistadafuga”,aestratégia do desvio e da evitação e a prontidão e capacidade de fugir senecessário, esse núcleo da nova política de desengajamento edescomprometimento, são hoje sinais de saber e sucesso gerenciais. ComoMichel Crozier indicou há muito tempo, estar livre de laços complicados,compromissos embaraçosos e dependências limitadoras da liberdade demanobra foramsempreasarmaspreferidaseeficazesdadominação;masaoferta dessas armas e a capacidade de usá-las parecem hoje distribuídas demaneiramaisdesigualdoquenuncaantesnahistóriamoderna.Avelocidadede movimento se tornou um fator importante, talvez o principal, daestratificaçãosocialedahierarquiadadominação.

As principais fontes de lucro — dos grandes lucros em especial, eportanto do capital de amanhã — tendem a ser, numa escala sempre emexpansão, idéiasenãoobjetosmateriais.As idéias sãoproduzidasumavezapenas,eficamtrazendoriquezadependendodonúmerodepessoasatraídascomo compradores/clientes/consumidores — e não do número de pessoasempregadas e envolvidas na replicação do protótipo. Quando se trata detornar as idéias lucrativas, osobjetosda competição sãoos consumidores enãoosprodutores.Não surpreende,pois,quehojeoprincipal compromissodo capital seja com os consumidores. Só nessa esfera se pode falar de“dependênciamútua”.Ocapitaldepende,parasuacompetitividade,eficáciaelucratividade, dos consumidores — e seus itinerários são guiados pelapresença ou ausência de consumidores ou pela chance da produção deconsumidores,degeraredepoisfortalecerademandapelasidéiasemoferta.Noplanejamentodasviagensenapreparaçãodedeslocamentosdocapital,a

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presença de força de trabalho é apenas uma consideração secundária.Conseqüentemente,o“poderdepressão”deumaforçadetrabalholocalsobreo capital (sobre as condições de emprego e disponibilidade de postos detrabalho)encolheuconsideravelmente.

Robert Reich17 sugere que as pessoas presentemente envolvidas ematividades econômicas podem ser divididas em quatro grandes categorias.“Manipuladoresdesímbolos”,pessoasqueinventamasidéiasemaneirasdetorná-lasdesejáveisevendáveis,formamaprimeiracategoria.Osenvolvidosnareproduçãodotrabalho(educadoresoudiversosfuncionáriosdoEstadodebem-estar) pertencem à segunda. A terceira categoria compreende pessoasempregadas em “serviços pessoais” (o tipo de ocupações que JohnO’Neillclassificavacomo“mercadoresdepeles”),querequeremencontrosfaceafacecomosquerecebemoserviço;osvendedoresdeprodutoseosprodutoresdodesejopelosprodutosformamogrossodestacategoria.

Finalmente,aquartacategoriaincluiaspessoasquepeloúltimoséculoemeioformaramo“substratosocial”domovimentooperário.São,nostermosde Reich, “trabalhadores de rotina”, presos à linha de montagem ou (emfábricas mais atualizadas) às redes de computadores e equipamentoseletrônicosautomatizadoscomopontosdecontrole.Hojeemdiatendemaseras partesmais dispensáveis, disponíveis e trocáveis do sistema econômico.Em seus requisitos de emprego não constam nem habilidades particulares,nemaartedainteraçãosocialcomclientes—eassimsãoosmaisfáceisdesubstituir; têm poucas qualidades especiais que poderiam inspirar seusempregadores a desejarmantê-los a todo custo; controlam, se tanto, apenasparte residual e negligenciável do poder de barganha. Sabem que sãodispensáveis,eporissonãovêemrazõesparaaderirousecomprometercomseutrabalhoouentrarnumaassociaçãomaisdurávelcomseuscompanheirosdetrabalho.Paraevitarfrustraçãoiminente,tendemadesconfiardequalquerlealdadeemrelaçãoaolocaldetrabalhoerelutameminscreverseusprópriosplanosdevidaemumfuturoprojetadoparaaempresa.Éumareaçãonaturalà “flexibilidade” do mercado de trabalho, que, quando traduzida naexperiência individualdevida,significaqueasegurançadelongoprazoéaúltimacoisaqueseaprendeaassociaraotrabalhoqueserealiza.

Como Sennett descobriu ao visitar uma confeitaria de Nova York duasdécadas depois de sua visita anterior, “o moral e a motivação dostrabalhadores diminuiu marcadamente depois de sucessivas rodadas deredução de tamanho. Os trabalhadores sobreviventes esperavam pelo novogolpe da foice em vez de exultar com a vitória competitiva sobre osdemitidos”.Maseleacrescentaoutrarazãoparaadiminuiçãodointeressedostrabalhadores por seu trabalho e pelo local de trabalho e para odesaparecimento de seu desejo de investir raciocínio e energia moral no

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futurodeambos:

Emtodasasformasdetrabalho,daesculturaaservirrefeições,aspessoasseidentificamcomtarefasqueasdesafiam,tarefasdifíceis.Masnesselugardetrabalho flexível, com seus trabalhadores poliglotas que entram e saemirregularmente,comordensradicalmentediferentesacadadia,omaquinárioé o único padrão de ordem, e portanto tem que ser fácil de operar porqualquerum.Adificuldadeécontraproducentenumregimeflexível.Porumterrívelparadoxo,quandodiminuímosadificuldadeea resistência,criamosasprópriascondiçõesparaaatividadeacríticaeindiferentedosusuários.18

Emtornodooutropólodadivisãosocial,notopodapirâmidedepoderdocapitalismo leve, circulam aqueles para os quais o espaço tem pouca ounenhumaimportância—osqueestãoforadelugaremqualquerlugaremquepossam estar fisicamente presentes. São tão leves e voláteis quanto a novaeconomiacapitalistaqueosgerouedotoudepoder.NadescriçãodeJacquesAttali:“Nãopossuemfábricas,terras,nemocupamposiçõesadministrativas.Sua riqueza vem de um recurso portátil: seu conhecimento das leis dolabirinto.” Eles “adoram criar, jogar e estar em movimento”. Vivem numasociedade “de valores voláteis, despreocupada com o futuro, egoísta ehedonista”.“Tomamanovidadecomoboasnovas,aprecariedadecomovalor,ainstabilidadecomoimperativo,eahibridezcomoriqueza.”19Aindaqueemgraus variados, todos dominam a arte de “viver no labirinto”: aceitação dadesorientação,disposiçãoaviverforadoespaçoedotempo,comvertigensetonturas, sem indicação da direção ou duração da viagem em queembarcaram.

Há alguns meses, sentei com minha mulher num bar de aeroportoesperando por um vôo de conexão. Dois homens por volta dos 30 anossentaram-se à mesa ao lado, cada um armado de um telefone celular. Emaproximadamenteumahoraemeiadeespera,nãotrocaramumasópalavra,embora ambos tenham falado sem interrupção — com interlocutoresinvisíveisdooutroladodaligação.Oquenãoquerdizerqueseignorassemmutuamente. De fato, era a percepção dessa presença que parecia motivarsuasações.Osdoishomensestavamenvolvidosnumacompetição—intensa,frenéticaefuriosa.Aquelequeterminasseaconversaenquantoooutroaindafalavabuscavafebrilmenteoutronúmeroparaligar;claramente,onúmerodeconexões,ograude“conectividade”,adensidadedasrespectivasredes,quefaziamdeles intersecções,aquantidadedeoutras intersecçõesaquepodiamse ligaràvontade,eramquestõesdegrande importância, talvez importânciamáxima, para ambos: eram índices de nível social, de posição, poder eprestígio.Ambosgastaramumahoraemeianoqueera,emrelaçãoaobardoaeroporto,umespaçoexterior.Quandoovôoqueambosdeveriamtomarfoi

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anunciado, trancaram simultaneamente as pastas com idênticos gestossincronizadose saíram,mantendoos telefonespróximosaosouvidos.Estoucertodequedificilmente terãonotadoaminhamulher e amim, sentadosadoismetroseobservandocadamovimentoquefaziam.NoquedizrespeitoàsuaLebenswelt, estavam(numpadrãodeantropólogosortodoxoscensuradoporClaudeLévi-Strauss)fisicamentepróximosdenós,mas,espiritualmente,infinitamentedistantes.

Em seu brilhante ensaio sobre o que escolheu chamar de capitalismo“mole”,NigelThrift20observaanotávelmudançadevocabulárioedoquadrocognitivoquemarcamanovaeliteglobaleexterritorial.Parareferir-seasuasprópriasações,usammetáforascomo“dançar”e“surfar”nãofalammaisde“engenharia”,masdeculturaseredes,equipesecoalizões,nemdecontrole,liderançaegerência,masdeinfluências.Ocupam-secomformasmaissoltasde organização que possam ser formadas, desmanteladas e repostas a curtoprazooumesmosemavisoprévio;éessaformafluidademontagemqueseadaptaàsuavisãodomundocircundantecomo“múltiplo,complexoerápido,e portanto ‘ambíguo’, ‘difuso’, e ‘plástico’, incerto, paradoxal, caóticomesmo”. A organização de negócios de hoje tem um elemento dedesorganização deliberadamente embutido: quanto menos sólida e maisfluida,melhor.Comotudoomaisnomundo,oconhecimentonãopodedeixarde envelhecer rapidamente e assim é a “recusa a aceitar o conhecimentoestabelecido”,aseguirosprecedenteseareconhecerasabedoriadasliçõesdaexperiênciaacumuladaqueéagoravistacomopreceitobásicodaeficáciaedaprodutividade.

Osdoisjovenscomtelefonescelularesqueobserveinobardoaeroportopodemtersidoespécimes(reaisouaspirantes)dessanovaenumericamentereduzidaelitedosresidentesdociberespaçoqueprosperamnaincertezaenainstabilidadedetodasascoisasmundanas,masoestilodosdominantestendeasetornaroestilodominante—senãopelaofertadeumaescolhaatraente,pelo menos pela imposição de uma vida cuja imitação se tornasimultaneamentedesejáveleimperativa,chegandoaserumaquestãodeauto-satisfaçãoesobrevivência.Poucaspessoasgastamseutempoemsaguõesdeaeroportos, emenos ainda são as que aí se sentem à vontade, ou são pelomenos suficientemente exterritoriais para não se sentir oprimidas ouembaraçadaspelo tédiodo lugar epelamultidãodesconhecida ebarulhentaqueoocupa.Masmuitos,talvezamaioria,sãonômadessemabandonarsuascavernas.Podemaindabuscarrefúgioemseuslares,masdificilmenteacharãolá o isolamento, e pormais que tentem nunca estarão verdadeiramente emcasa:osrefúgiostêmparedesporosas,ondeseespalhamfiossemcontaequesãofacilmentepenetradasporondasaéreas.

Essas pessoas são, como a maioria antes delas, dominadas e

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“remotamentecontroladas”massãodominadasecontroladasdeumamaneiranova.Aliderançafoisubstituídapeloespetáculo:aidaquelesqueousemlhesnegarentrada.Acessoà“informação”(emsuamaioriaeletrônica)setornouodireito humano mais zelosamente defendido e o aumento do bem-estar dapopulaçãocomoumtodoéhojemedido,entreoutrascoisas,pelonúmerodedomicílios equipadoscom (invadidospor?) aparelhosde televisão.Eaquilosobre o que a informaçãomais informa é a fluidez domundo habitado e aflexibilidade dos habitantes. “O noticiário” — essa parte da informaçãoeletrônica que tem maior chance de ser confundida com a verdadeirarepresentação do “mundo lá fora”, e a mais forte pretensão ao papel de“espelho da realidade” (e a que comumente se dá o crédito de refletir essarealidadefielmenteesemdistorção)—estánaestimativadePierreBourdieuentreosmaisperecíveisdosbensemoferta;defato,avidaútildosnoticiáriosérisivelmentecurtaseoscompararmosàsnovelas,programasdeentrevistaseprogramas cômicos. Mas a perecibilidade dos noticiários enquantoinformaçãosobreo“mundoreal”éemsimesmaumaimportanteinformação:atransmissãodasnotíciaséacelebraçãoconstanteediariamenterepetidadaenorme velocidade da mudança, do acelerado envelhecimento e daperpetuidadedosnovoscomeços.21

Digressão:brevehistóriadaprocrastinação

Cras, em latim, quer dizer “amanhã”. A palavra também costumava sersemanticamenteelástica,nãomuitodiferentedofamosamentevagomañana,paraincluiro“maistarde”—ofuturocomotal.Crastinuséoquepertenceaoamanhã.Pro-crastinarépôralgumacoisaentreascoisasquepertencemaoamanhã. Pôr algo lá implica imediatamente que o amanhã não é o lugarnatural dessa coisa, que a coisa em questão não faz parte por direito doamanhã. Por implicação, ela faz parte de outro lugar. Qual? Obviamente opresente.Paraserdestinadaaoamanhã,essacoisaprimeirotevequesertiradado presente ou teve barrado seu acesso a ele. “Procrastinar” significa nãotomar as coisas como elas vêm,não agir segundo uma sucessão natural decoisas. Contra uma impressão que se tornou comum na era moderna, aprocrastinaçãonão é umaquestãodedisplicência, indolência ou lassidão; éuma posição ativa, uma tentativa de assumir o controle da seqüência deeventos e fazê-la diferente do que seria caso se ficasse dócil e não seresistisse. Procrastinar é manipular as possibilidades da presença de umacoisa, deixando, atrasando e adiando seu estar presente, mantendo-a àdistânciaetransferindosuaimediatez.

A procrastinação como prática cultural surgiu com amodernidade. Seunovosentidoeseusignificadoéticoderivamdonovosignificadodo tempo,

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do tempoque temhistória, do tempoqueéhistória.Esse sentidoderivadotempo concebido como uma passagem entre “momentos presentes” dequalidadediferenteedevalorvariado;dotempoconsideradocomoviajandoem direção a outro presente distinto (e mais desejável) do presente vividoagora.

Resumindo:aprocrastinaçãoderivaseusentidomodernodotempovividocomo uma peregrinação, como um movimento que se aproxima de umobjetivo.Emtal tempo,cadapresenteéavaliadoporalgumacoisaquevemdepois.Qualquervalorqueestepresenteaquieagorapossaternãopassarádeum sinal premonitório de um valormaior por vir.O uso— a tarefa—dopresenteé levar-nosmaisparapertodessevalormaisalto.Emsimesmo,otempopresente carecede sentidoedevalor.É,por isso, falho,deficiente eincompleto. O sentido do presente está adiante; o que está à mão ganhasentidoeéavaliadopelonoch-nicht-geworden,peloqueaindanãoexiste.

Viver a vida como uma peregrinação é, portanto, intrinsecamenteaporético.Eobrigacadapresenteaserviraalgumacoisaqueainda-não-é,easervi-ladiminuindoadistância,trabalhandoparaaproximidadeeaimediatez.Mas se a distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado, o presenteperderia tudo o que o fazia significativo e valioso. A racionalidadeinstrumentalfavorecidaeprivilegiadapelavidadoperegrinolevaàbuscadosmeios que podem realizar o estranho feito de manter o fim dos esforçossempreàvistasemnuncachegarlá,detrazerofimcadavezmaisparaperto,mas impedindo aomesmo tempo que a distância caia para zero.A vida doperegrinoéumaviagememdireçãoàrealização,mas“realização”nestavidaéequivalenteàperdadesentido.Viajaremdireçãoàrealizaçãodásentidoàvidadoperegrino,masosentidoquedátemalgodeumimpulsosuicida;essesentidonãopodesobreviveràchegadaaodestino.

Aprocrastinaçãorefleteessaambivalência.Operegrinoprocrastinaparaestar mais bem preparado para captar as coisas que verdadeiramenteimportam.Mascaptá-lassinalizaráofimdaperegrinação,eassimtambémofim de uma vida que dela deriva seu único sentido. Por essa razão, aprocrastinação tem uma tendência a romper qualquer limite de tempocolocadodeantemãoeaestender-seindefinidamente—adcalendasgraecas.A procrastinação tende a tornar-se seu próprio objetivo. A coisa maisimportante deixada de lado no ato da procrastinação tende a ser o fim daprópriaprocrastinação.

Opreceitocomportamentaledeatitudequefundouasociedademodernae tornou possível e inescapável omodomoderno de estar nomundo foi oprincípiodoadiamentoda satisfação (da satisfação de uma necessidade ouum desejo, do momento de uma experiência agradável, do gozo). É nessatransformação que a procrastinação entra na cena moderna (ou, mais

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exatamente, torna moderna a cena). Como explicou Max Weber, foi esseadiamento particular, e não a pressa e a impaciência, que resultou emmodernas inovações espetaculares e frutíferas — como, de um lado, aacumulaçãodocapitale,deoutro,apropagaçãoeoenraizamentodaéticadotrabalho.Odesejodemelhorardeuaoesforçoseuestímuloemomento;maso“não ainda”, o “não já”, conduziu esse esforço a sua conseqüência não-prevista, que veio a ser conhecida como crescimento, desenvolvimento,aceleraçãoe,portanto,sociedademoderna.

Naformado“adiamentodasatisfação”,aprocrastinaçãoretémtodasuaambivalência interior. Libido e Tânatos competem entre si em cada ato deadiamento,ecadaadiamentoéotriunfodaLibidosobreseuinimigomortal.O desejo estimula o esforço pela esperança de satisfação, mas o estímuloretém sua força enquanto a satisfação desejada permanecer uma esperança.Todoopodermotivadordodesejoéinvestidoemsuarealização.Nofim,parapermanecervivoodesejotemquedesejarapenassuaprópriasobrevivência.

Na forma do “adiamento da satisfação”, a procrastinação põe arar esemearacimadecolhereingeriroproduto,oinvestimentoacimadolucro,apoupança acima do gasto, a autocontenção acima da auto-indulgência, otrabalho acima do consumo.Mas nunca diminuiu o valor das coisas a quenegava prioridade nem subestimou seu mérito e significação. Essas coisaseramosprêmiosdaabstinênciaauto-infligida,asrecompensasdoadiamentovoluntário.Quantomaisseveraaauto-restrição,maiorseriaeventualmenteaoportunidadedeauto-indulgência.Poupe,poisquantomaisvocêpouparmaisvocê poderá gastar. Trabalhe, pois quanto mais você trabalhar mais vocêconsumirá. Paradoxalmente, a negação da imediatez, a aparente degradaçãodosobjetivos, redunda em sua elevação e enobrecimento.Anecessidadedeesperar magnifica os poderes sedutores do prêmio. Longe de rebaixar asatisfaçãodosdesejos comomotivopara os esforçosdavida, o preceito deadiá-la torna-a o propósito supremo da vida. O adiamento da satisfaçãomantémoprodutoraserviçodoconsumidor—mantendooconsumidorquevivenoprodutorplenamenteacordadoedeolhosbemabertos.

Devido a sua ambivalência, a procrastinação alimenta duas tendênciasopostas.Umalevaàéticadotrabalho,queestimulaatrocadelugaresentremeiosefinseproclamaavirtudedotrabalhopelotrabalho,oadiamentodogozocomoumvaloremsimesmo,e,valormaisrefinadodoqueosvaloresquesedestinavaa servir,aéticado trabalho insisteemqueoadiamentoseestenda indefinidamente. Outra tendência leva à estética do consumo,rebaixando o trabalho ao papel puramente subordinado e instrumental derevolver a terra, uma atividade que deriva todo seu valor daquilo para quepreparaoterreno,etambémlevaàconsideraçãodaabstinênciaedarenúnciacomo sacrifícios talvez necessários, mas embaraçosos e corretamente mal-

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vistos,aseremreduzidosaomínimo.Comoumafacadedoisgumes,aprocrastinaçãopodeserviràsociedade

moderna tanto em seu estágio “sólido” como no “líquido”, tanto em seuestágio de produtor como no de consumidor, ainda que sobrecarregue cadaestágio com tensões e conflitos de atitude e axiológicos não-resolvidos. Apassagemparaasociedadedeconsumidoresdopresentesignificouportantoumamudança de ênfasemais que umamudança de valores. E, no entanto,levouoprincípiodaprocrastinaçãoaopontode ruptura.Esseprincípioestáhojevulnerável,eperdeuoescudoprotetordaproibiçãoética.Oadiamentodasatisfaçãonãoémaisumsinaldevirtudemoral.Éumaprovaçãopuraesimples,umaproblemáticasobrecargaquesinalizaimperfeiçõesnosarranjossociais ou inadequação pessoal, ou nas duas ao mesmo tempo. Não umaexortação, mas uma admissão resignada e triste de um estado de coisasdesagradável(masremediável).

Se a ética do trabalho pressiona por uma extensão indefinida doadiamento,aestéticadoconsumopressionaporsuaabolição.Vivemos,comodisse George Steiner, numa “cultura de cassino”, e no cassino a chamadanuncamuitodistantede“riennevaplus”colocaolimiteàprocrastinação;seum ato merece recompensa, a recompensa é instantânea. Na cultura docassino,aesperaétiradadoquerer,masasatisfaçãodoquerertambémdeveserbreve;devedurarapenasatéqueabolinhadaroletacorradenovo,tertãopouca duração quanto a espera, para não sufocar o desejo, que deveriapreencher e reinventar—desejo que é a recompensamais ambicionada nomundodominadopelaestéticadoconsumo.

E assim se encontram o começo e o fim da procrastinação, a distânciaentreodesejoe sua satisfaçãose reduzaummomentodeêxtase—êxtaseque, comoobservou JohnTusa (noGuardian de 19.7.1997) deve haver emquantidade: “Imediato, constante, divertido, agradável, em quantidade cadavez maior, em formas cada vez mais diversificadas, em ocasiões cada vezmaisfreqüentes.”Oqueconta,entreasqualidadesdascoisasedosatosésóa“auto-satisfaçãoinstantânea,constanteeirrefletida”.Obviamente,ademandadequeasatisfaçãosejainstantâneavaicontraoprincípiodaprocrastinação.Mas, sendo instantânea, a satisfação não pode ser constante, a menos quetambémsejadecurtaduração, impedidade se estender alémdaduraçãodeseupoderdediversãoeentretenimento.Naculturadocassino,oprincípiodaprocrastinação sofre ataque em duas frentes ao mesmo tempo. Estão sobpressãooadiamentotantodachegadadasatisfaçãoquantoodesuapartida.

Esseé,porém,umdosladosdahistória.Nasociedadedosprodutores,oprincípioéticodoadiamentodasatisfaçãocostumavaasseguraradurabilidadedo esforço do trabalho. Na sociedade dos consumidores, por outro lado, omesmo princípio pode ainda ser necessário na prática para assegurar a

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durabilidade do desejo. Muito mais efêmero e frágil que o trabalho, e, aocontráriodotrabalho,nãoreforçadoporrotinas institucionalizadas,odesejonão tem chance de sobreviver se a satisfação for deixada para as calendasgregas. Para se manter vivo e fresco, o desejo deve ser, algumas vezes, efreqüentemente, satisfeito — ainda que a satisfação signifique o fim dodesejo.Asociedadedominadapelaestéticadoconsumoprecisaportantodeumtipomuitoespecialdesatisfação—semelhanteaopharmakondeDerrida,essadrogacurativaqueéaomesmotempoumveneno,oumelhor,umadrogaque deve ser dosada cuidadosamente, nunca na dosagem completa— quemata.Umasatisfaçãoquenãoérealmentesatisfatória,nuncabebidaatéofim,sempreabandonadapelametade…

Aprocrastinaçãoserveàculturadoconsumidorpelasuaautonegação.Afontedoesforçocriativonãoémaisodesejoinduzidodeadiarasatisfaçãododesejo,masodesejo induzidodeencurtaro adiamentoouaboli-lode todo,acompanhadododesejoinduzidodeencurtaraduraçãodasatisfaçãoquandoela chega. A cultura em guerra com a procrastinação é uma novidade nahistóriamoderna.Elanãotemlugarparatomardistância,nemparareflexão,continuidade, tradição— essaWiederholung (recapitulação) que, de acordocomHeidegger,eraamodalidadedoSercomooconhecemos.

Oslaçoshumanosnomundofluido

Os dois tipos de espaço, ocupados pelas duas categorias de pessoas, sãomarcadamente diferentes, mas inter-relacionados; não conversam entre si,mas estão em constante comunicação; têm muito pouco em comum, massimulamsemelhança.Osdoisespaçossãoregidospor lógicasdrasticamentediferentes, moldam diferentes experiências de vida, geram itineráriosdivergentesenarrativasqueusamdefiniçõesdistintas,muitasvezesopostas,de códigos comportamentais semelhantes. E no entanto os dois espaços seacomodamdentrodomesmomundo—eomundodequeambosfazemparteéomundodavulnerabilidadeedaprecariedade.

O título de um artigo apresentado em dezembro de 1997 por um dosanalistasmaisincisivosdenossotempo,PierreBourdieu,é“Leprécaritéestaujourd’hui partout”22. O título diz tudo: precariedade, instabilidade,vulnerabilidade, é a característica mais difundida das condições de vidacontemporâneas(e tambémaquesesentemaisdolorosamente).Os teóricosfranceses falam de précarité, os alemães, de Unsicherheit eRisikogesellschaft,os italianos,de incertezza e os ingleses, de insecurity—mas todos têm em mente o mesmo aspecto da condição humana,experimentadadeváriasformasesobnomesdiferentesportodooglobo,massentida como especialmente enervante e deprimente na parte altamente

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desenvolvida e próspera do planeta — por ser um fato novo e semprecedentes.Ofenômenoquetodosessesconceitostentamcaptarearticularéa experiência combinada da falta de garantias (de posição, títulos esobrevivência), da incerteza (em relação à sua continuação e estabilidadefutura) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões: posses,vizinhança,comunidade).

A precariedade é a marca da condição preliminar de todo o resto: asobrevivência,eparticularmenteotipomaiscomumdesobrevivência,aqueéreivindicada em termos de trabalho e emprego. Essa sobrevivência já setornou excessivamente frágil, mas se torna mais e mais frágil e menosconfiável a cadaanoquepassa.Muitaspessoas,quandoouvemasopiniõescontraditórias dos especialistas, mas em geral apenas olhando em volta epensandosobreodestinodeseusentespróximosequeridos,suspeitamcomboasrazõesque,pormaisadmiráveisquesejamascaraseaspromessasqueospolíticosfazem,odesempregonospaísesprósperostornou-se“estrutural”:paracadanovavagaháalgunsempregosquedesapareceram,esimplesmentenãoháempregossuficientesparatodos.Eoprogressotecnológico—defato,o próprio esforço de racionalização— tende a anunciar cada vezmenos, enãomais,empregos.

Quão frágeis e incertas se tornaram as vidas daqueles já dispensáveiscomo resultado de sua dispensabilidade não émuito difícil de imaginar. Aquestão é, porém, que— pelomenos psicologicamente— todos os outrostambém são afetados, ainda que por enquanto apenas obliquamente. Nomundo do desemprego estrutural ninguém pode se sentir verdadeiramenteseguro.Empregos seguros em empresas seguras parecemparte da nostalgiadosavós;nemhámuitashabilidadeseexperiênciasque,umavezadquiridas,garantamqueo emprego seráoferecido e, umavezoferecido, serádurável.Ninguémpoderazoavelmentesuporqueestágarantidocontraanovarodadade“reduçãode tamanho”, “agilização”e“racionalização”, contramudançaserráticasdademandadomercadoepressõescaprichosasmasirresistíveisde“competitividade”, “produtividade” e “eficácia”. “Flexibilidade” é a palavradodia.Elaanunciaempregossemsegurança,compromissosoudireitos,queoferecem apenas contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem avisoprévio e nenhum direito à compensação.Ninguém pode, portanto, sentir-seinsubstituível—nemosjádemitidosnemosqueambicionamoempregodedemitir os outros. Mesmo a posição mais privilegiada pode acabar sendoapenastemporáriae“atédisposiçãoemcontrário”.

Na falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” pareceumaestratégiarazoável.Oquequerqueavidaofereça,queofaçahicetnunc—noato.Quemsabeoqueoamanhãvaitrazer?Oadiamentodasatisfaçãoperdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço

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investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora darecompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hojeparecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente foremconquistados.Todos aprendemos comamargas experiências queos prêmiospodem se tornar riscos de uma hora para outra e prêmios resplandecentespodemse tornarmarcasdevergonha.Asmodasvêmevãocomvelocidadeestonteante,todososobjetosdedesejosetornamobsoletos,repugnantesedemau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida quesão “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. CitandoBourdieu umavezmais:“Osquedeploramocinismoquemarcaoshomensemulheresdenosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais eeconômicasqueofavorecem…”QuandoRomapegafogoehámuitopoucoounadaquesepossafazerparacontrolaroincêndio,tocarviolinonãoparecemaisbobonemmenosadequadodoquefazerqualqueroutracoisa.

Condiçõeseconômicasesociaisprecáriastreinamhomensemulheres(ouosfazemaprenderpelocaminhomaisdifícil)aperceberomundocomoumcontêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; omundo inteiro — inclusive outros seres humanos. Além disso, o mundoparece ser constituído de “caixas pretas”, hermeticamente fechadas, e quejamaisdeverãoserabertaspelosusuários,nemconsertadasquandoquebram.Osmecânicosdeautomóveisdehojenãosãotreinadosparaconsertarmotoresquebradosoudanificados,masapenaspararetirarejogarforaaspeçasusadasou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente daprateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura interna das “peçassobressalentes” (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso comofuncionam; não consideram esse entendimento e a habilidade que oacompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo decompetência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral:cada“peça”é“sobressalente”esubstituível,eassimdeveser.Porquegastartempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais quealgunsmomentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seulugar?

Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio enebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-seobjetivosdistantes,abandonaro interesseprivadoparaaumentaropoderdogrupoesacrificaropresenteemnomedeumafelicidadefuturanãoparecemumaproposiçãoatraente,oumesmorazoável.Qualqueroportunidadequenãoforaproveitadaaquieagoraéumaoportunidadeperdida;nãoaaproveitaréassim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa.Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades deamanhã,quantomaisforemlevesesuperficiais,menororiscodeprejuízos.“Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa

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estratégiaseapliqueeindependentedoquemaispossasugerir.Nummundoinseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar osfelizes globais que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao selivrardequalquercoisaqueatrapalheosmovimentos.Raramenteparamportemposuficienteparaimaginarqueoslaçoshumanosnãosãocomopeçasdeautomóvel — que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar edesintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não sãofáceisdesubstituirquandoperdemautilidade.

E assim a política de “precarização” conduzida pelos operadores dosmercadosdetrabalhoacabasendoapoiadaereforçadapelaspolíticasdevida,sejam elas adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas.Ambas convergem para o mesmo resultado: o enfraquecimento edecomposição dos laços humanos, das comunidades e das parcerias.Compromissos do tipo “até que a morte nos separe” se transformam emcontratosdo tipo“enquantodurara satisfação”, temporaise transitóriospordefinição, por projeto e por impacto pragmático — e assim passíveis deruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhoresoportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la aqualquer—incalculável—custo.

Emoutraspalavras,laçoseparceriastendemaservistosetratadoscomocoisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aosmesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. Nomercadodeconsumo,osprodutosduráveis sãoemgeraloferecidosporum“período de teste” a devolução do dinheiro é prometida se o compradorestiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é“concebido”emtaistermos,entãonãoémaistarefaparaambososparceiros“fazercomquearelaçãofuncione”,“nariquezaenapobreza”,nasaúdeenadoença,trabalharafavornosbonsemausmomentos,repensar,senecessário,asprópriaspreferências,concederefazersacrifíciosemfavordaumauniãoduradoura.É,emvezdisso,umaquestãodeobtersatisfaçãodeumprodutopronto para o consumo; se o prazer obtido não corresponder ao padrãoprometidoeesperado,ouseanovidadeseacabarjuntocomogozo,pode-seentrarcomaaçãodedivórcio,combasenosdireitosdoconsumidor.Nãoháqualquerrazãoparaficarcomumprodutoinferiorouenvelhecidoemvezdeprocuraroutro“novoeaperfeiçoado”naslojas.

Oque se segue é que a suposta transitoriedadedas parcerias tende a setornarumaprofeciaautocumprida.Seo laçohumano,comotodososoutrosobjetosdeconsumo,nãoéalgumacoisaasertrabalhadacomgrandeesforçoe sacrifício ocasional, mas algo de que se espera satisfação imediata,instantânea,nomomentodacompra—ealgoqueserejeitasenãosatisfizer,a ser usada apenas enquanto continuar a satisfazer (e nemumminuto além

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disso)—, então não faz sentido “jogar dinheiro bom em cima de dinheiroruim”, tentar cada vez mais, e menos ainda sofrer com o desconforto e oembaraçoparasalvaraparceria.Mesmoumpequenoproblemapodecausararupturadaparceria;desacordostriviaissetornamconflitosamargos,pequenosatritossãotomadoscomosinaisdeincompatibilidadeessencialeirreparável.Como o sociólogo norte-americano W.I. Thomas teria dito, se tivessetestemunhado essa situação: se as pessoas supõem que seus compromissossãotemporárioseatésegundaordem,essescompromissostendemasetornartemporáriosemconseqüênciadasprópriasaçõesdessaspessoas.

Aprecariedadedaexistênciasocialinspiraumapercepçãodomundoemvolta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas apercepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens deconsumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algoexcessivamentedifícil.Pessoasinsegurastendemaserirritáveis;sãotambémintolerantescomqualquercoisaquefuncionecomoobstáculoaseusdesejos;e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não háescassezde coisas e pessoas que sirvamde objeto a essa intolerância. Se asatisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento deinsegurança(semjamaissaciarasededesegurançaecerteza),nãohárazãoevidenteparasertoleranteemrelaçãoaalgumacoisaoupessoaquenãotenhaóbvia relevância para a busca da satisfação, e menos ainda em relação aalgumacoisaoupessoacomplicadaourelutanteemtrazerasatisfaçãoquesebusca.

Háaindaoutraligaçãoentrea“consumização”deummundoprecárioeadesintegração dos laços humanos. Ao contrário da produção, o consumo éuma atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo nos momentosemqueserealizanacompanhiadeoutros.Esforçosprodutivos(emgeraldelongo prazo) requerem cooperação mesmo quando apenas demandam aadição de forçamuscular bruta: se carregar um pesado tronco de um lugarpara outro requer umahora a oito homens, não se segue que umhomemopossafazeremoito(ouqualquernúmerode)horas.Nocasodetarefasmaiscomplexas que envolvem a divisão do trabalho e demandam diversashabilidades especializadas que não se encontram em uma só pessoa, anecessidadedecooperaçãoéaindamaisóbvia;semela,oprodutonão teriachance de surgir. É a cooperação que transforma os esforços diversos edispersosemesforçosprodutivos.Nocasodoconsumo,porém,acooperaçãonãosóédesnecessáriacomoéinteiramentesupérflua.Oqueéconsumidooéindividualmente,mesmo que num saguão repleto.Num toque de seu gênioversátil,LuisBuñuel (emO fantasmada liberdade)mostraoatodecomer,esseatoprototípicodegregariedadeesociabilidade,comoamaissolitáriaesecreta de todas as atividades, zelosamente protegida da curiosidade dosoutros.

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Aautoperpetuaçãodafaltadeconfiança

Em seu estudo retrospectivo da sociedade capitalista/moderna do“desenvolvimento compulsivo e obsessivo”, Alain Peyrefitte23 chega àconclusãodequeacaracterísticamaisimportante,emesmoconstitutivadessasociedade era a confiança: confiança em si mesmo, nos outros e nasinstituições. Os três constituintes da confiança costumavam serindispensáveis.Condicionavam-seeseapoiavamentresi: semumdeles,osoutros dois implodiriam e entrariam em colapso. Poderíamos descrever amoderna construção da ordem como um esforço contínuo de implantar asfundaçõesinstitucionaisdaconfiança:oferecendoumaestruturaestávelparaoinvestimentodaconfiançaetornandoaceitávelacrençadequeosvalorespresentementeestimadoscontinuariamaserestimadosedesejados,edequeas regras para a busca e obtenção desses valores continuariam a serobservadas,nãoseriaminfringidaseseriamimunesàpassagemdotempo.

Peyrefitte indica a empresa que gera empregos como o lugar porexcelência para a disseminação e cultivo da confiança. O fato de que aempresa capitalista fosse também o foco de conflitos e confrontações nãodeve nos enganar: não há enfrentamento sem confiança. Se os empregadoslutavamporseusdireitos,éporqueconfiavamno“poder”doquadroemque,comoesperavamequeriam,seusdireitosseinseriam;confiavamnaempresacomolugaradequadoaquementregavamseusdireitosparaguarda.

Esse não é mais o caso, ou pelo menos deixa rapidamente de sê-lo.Nenhumapessoaracionalesperariapassartodasuavida,oupelomenosboaparte dela, em uma mesma empresa. A maioria das pessoas racionaispreferiria confiar as economias de toda a vida aos notoriamente arriscadosfundosdeinvestimentoecompanhiasdeseguros,quejogamnasbolsas,enãocontarcomaspensõesqueasempresasemqueatualmentetrabalhampodempagar. Como bem resumiu Nigel Thrift recentemente, “é muito difícilconstruir a confiança em organizações que estão sendo ao mesmo tempo‘desmontadas’,‘reduzidas’e‘reengenheirizadas’.”

Pierre Bourdieu24 mostra a ligação entre o colapso da confiança e oenfraquecimento da vontade de engajamento político e ação coletiva: acapacidadedefazerprojeçõesparaofuturo,sugere,éaconditiosinequanonde todo pensamento “transformador” e de todo esforço de reexaminar ereformar o estado presente das coisas — mas projeções sobre o futuroraramenteocorrerãoapessoasquenãotêmopéfirmenopresente.AquartacategoriadeReichclaramentecarecedessafirmeza.Presoscomoestãoaseuslugares,impedidosdesemoveredetidosnoprimeiropostodefronteiraseofizerem, estão numa posição a priori inferior à do capital que se movelivremente.Ocapitalécadavezmaisglobal;eles,porém,permanecemlocais.

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Por essa razão estão expostos, desarmados, aos inescrutáveis caprichos demisteriosos “investidores” e “acionistas”, e das aindamais desconcertantes“forçasdomercado”,“termosdetroca”e“demandasdacompetição”.Oquequer que ganhem hoje lhes pode ser tirado amanhã sem aviso prévio. Nãopodemvencer.Nem—sendoaspessoasracionaisquesãooulutamporser— estão dispostos a arriscar a luta. É improvável que reformulem suasqueixas como uma questão política e se voltem para o poder políticoestabelecido embusca de reparação.Comopreviu JacquesAttali há algunsanos, “o poder residirá amanhã na capacidade de bloquear ou facilitar omovimentoporcertasvias.OEstadonãoexerceráseuspoderesparacontrolara rede. E assim a impossibilidade de exercer o controle sobre a redeenfraqueceráirreversivelmenteasinstituiçõespolíticas”.25

A passagem do capitalismo pesado ao leve e da modernidade sólida àfluida ou liquefeita é o quadro em que a história do movimento dostrabalhadoresfoi inscrita.Elatambémvailongeparadarsentidoàsnotóriasreviravoltas dessa história. Não seria nem razoável nem particularmenteesclarecedor dar conta dos lúgubres dilemas em que o movimento dostrabalhadores caiu na parte “avançada” (no sentido “modernizante”) domundo, em relação à mudança na disposição do público— tenha sido elaproduzidapeloimpactodebilitantedosmeiosdecomunicaçãodemassa,poruma conspiração dos anunciantes, pela sedutora atração da sociedade doconsumo ou pelos efeitos soporíferos da sociedade do espetáculo e doentretenimento.Culparosatabalhoadosouambíguos“políticos trabalhistas”também não ajuda. Os fenômenos invocados nessas explicações não sãoimaginários,masnãofuncionariamcomoexplicaçõessenãofossepelofatodequeocontextodavida,oambiente social emqueaspessoas (raramenteporsuaprópriaescolha)conduzemosafazeresdavida,mudouradicalmentedesdeo tempoemqueos trabalhadoresqueseamontoavamnas fábricasdeprodução em larga escala se uniam para lutar por termos mais humanos ecompensadores de venda de seu trabalho, e os teóricos e práticos domovimento dos trabalhadores sentiam na solidariedade destes o desejo,informe e ainda não articulado (mas inato e a longo prazo avassalador), deuma“boasociedade”queefetivariaosprincípiosuniversaisdajustiça.

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5•COMUNIDADE

As diferenças nascem quando a razão não está inteiramente desperta ouvoltouaadormecer.Esseeraocredoimplícitoqueemprestavacredibilidadeàclaraconfiançaqueosliberaispós-iluministasdepositavamnacapacidadedosindivíduos humanos para a imaculada concepção. Nós, humanos, somosdotadosdetudodequetodosprecisamparatomarocaminhocertoque,umavezescolhido,seráomesmoparatodos.OsujeitodeDescarteseohomemdeKant, armadosda razão, não errariamem seus caminhoshumanos amenosque empurrados ou atraídos para fora da reta trilha iluminada pela razão.Escolhasdiferentessãoosedimentodetropeçosdahistória—oresultadodeuma lesãocerebralchamadapelosváriosnomesdepreconceito, superstiçãooufalsaconsciência.Aocontráriodosveredictoseindeutigdarazãoquesãopropriedadedecadaserhumano,asdiferençasdejuízotêmorigemcoletiva:os“ídolos”deFrancisBaconestãoondeoshomenscirculameseencontram— no teatro, num mercado, em festas tribais. Libertar o poder da razãohumanasignificavalibertaroindivíduodetudoisso.

Esse credo foi trazido à tona pelos críticos do liberalismo. Não erampoucos os críticos, que denunciavam a interpretação liberal do legado doIluminismo por entender errado as coisas ou por errar ao fazê-las. Poetasromânticos, historiadores e sociólogos se uniram aos políticos nacionalistasaoobservarque—antesmesmoqueoshomenscomeçassemaexercitarseuscérebrosparacriaromelhorcódigodeconvívioquesuarazãopodiasugerir—elesjátinhamumahistória(coletiva)ecostumes(coletivamenteseguidos).Nossos contemporâneos comunitários dizem quase o mesmo, apenasutilizandotermosdiferentes:quemse“auto-afirma”ese“autoconstrói”nãoéo indivíduo “desacomodado” e “desimpedido”, mas uma pessoa que usa alinguagemeéescolarizada/socializada.Nemsempreéclarooqueoscríticostêm em mente: a visão do indivíduo autocontido é falsa ou prejudicial?Devemos liberais sercensuradosporpregara“opinião falsa”oupor fazer,inspirarouabsolverafalsapolítica?

Parece, contudo, que a recente querela entre liberais e comunitários dizrespeitoàpolíticaenãoà“naturezahumana”.Aquestãonãoétantosabersealibertaçãodoindivíduodasopiniõesherdadasedagarantiacoletivacontraasinconveniênciasdaresponsabilidadeindividualaconteceounão—masseissoébomouruim.RaymondWilliamspercebehámuitoqueoqueénotávelsobre a “comunidade” é que ela sempre existiu. Há comoção em torno da

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necessidadedecomunidadeprincipalmenteporqueécadavezmenosclaroseas realidades que os retratos da “comunidade” afirmam representar sãoevidentes,e,se,casopossamserencontradas,merecerãosertratadas,emvistadaexpectativadesuaduração,comorespeitoqueexigem.Avalentedefesada comunidade e a tentativa de restaurar sua posição negada pelos liberaisdificilmenteteriamacontecidosenãofossepelofatodequeosarreioscomosquais as coletividades atam seus membros a uma história conjunta, aocostume,linguagemeescola,ficammaisesgarçadosacadaanoquepassa.Noestágio líquido da modernidade, só são fornecidos arreios com zíper, e oargumento para sua venda é a facilidade com que podem ser usados pelamanhã e despidos à noite (ou vice-versa). As comunidades vêm em váriascores e tamanhos,mas, se colocadas num eixoweberiano que vai de “levemanto” a “gaiola de ferro”, aparecerão todas notavelmente próximas doprimeiropólo.

Namedidaemqueprecisamserdefendidasparasobrevivereapelarparaseus próprios membros para que assegurem essa sobrevivência com suasescolhas individuais e assumam responsabilidade individual por essasobrevivência — todas as comunidades são postuladas: mais projetos querealidades,algumacoisaquevemdepoisenãoantesdaescolhaindividual.Acomunidade “tal como aparece nas pinturas comunitárias” poderia sersuficientemente tangível para ficar invisível e permitir o silêncio; mas oscomunitáriosnãopintamsuassemelhanças,emuitomenosasexibem.

Esseéoparadoxo internodocomunitarismo.Dizer“ébomserpartedeumacomunidade”éumtestemunhooblíquodenãofazerparte,ounãofazerparte pormuito tempo, amenos que osmúsculos ementes dos indivíduossejamexercitadoseexpandidos.Pararealizaroprojetocomunitário,éprecisoapelar às mesmíssimas (e desimpedidas) escolhas individuais cujapossibilidadehaviasidonegada.Nãosepodeserumcomunitáriobona fidesemacenderumavelaparaodiabo:semadmitirnumaocasiãoaliberdadedaescolhaindividualquesenegaemoutra.

Aosolhosdos lógicos, essacontradiçãopoderiapor si sódesacreditaroesforçodedisfarçaroprojetopolíticocomunitáriocomoumateoriadescritivada realidade social. Para o sociólogo, no entanto, o que constitui umimportante fato social que merece ser explicado/compreendido é a própriapopularidade (talvez crescente) das idéias comunitárias (enquanto o fato deque o disfarce tenha sido tão bom a ponto de não obstruir o sucessocomunitárionãomelindrariamuito,sociologicamentefalando—écorriqueirodemais).

Em termos sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável àacelerada“liquefação”davidamoderna,umareaçãoanteseacimadetudoaoaspecto da vida sentido como a mais aborrecida e incômoda entre suas

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numerosas conseqüências penosas — o crescente desequilíbrio entre aliberdade e as garantias individuais. O suprimento de provisões se esvairapidamente,enquantoovolumederesponsabilidadesindividuais(atribuídas,quandonãoexercidasnaprática)crescenumaescalasemprecedentesparaasgerações do pós-guerra. Um aspectomuito visível do desaparecimento dasvelhas garantias é a nova fragilidade dos laços humanos. A fragilidade etransitoriedade dos laços pode ser um preço inevitável do direito de osindivíduos perseguirem seus objetivos individuais,mas não pode deixar deser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis para perseguireficazmenteessesobjetivos—eparaacoragemnecessáriaparapersegui-los.Isso também é um paradoxo— e profundamente enraizado na natureza davidanamodernidadelíquida.Eneméaprimeiravezquesituaçõesparadoxaisprovocam e evocam respostas paradoxais. À luz da natureza paradoxal da“individualização” moderna-líquida, a natureza contraditória da respostacomunitária ao paradoxo não deve espantar: a primeira é uma explicaçãoadequadadasegunda,enquantoestaéumefeitoadequadodaprimeira.

Ocomunitarismorenascidorespondeàquestãogenuínaepungentedequeopêndulooscilaradicalmente—etalvezparalongedemais—afastando-sedopólodasegurançanadíadedosvaloreshumanos fundamentais.Poressarazão,oevangelhocomunitáriotemumagrandeaudiência.Elefalaemnomedemilhões:precarité,comoinsisteBourdieu,estaujourd’huipartout—elapenetracadacantodaexistênciahumana.Emseu recente livroProtégeroudisparaître,1umiradomanifestocontraaindolênciaeahipocrisiadaselitesdopoderdehojeemfacede“lamontéedesinsecurités”,PhilippeCohenlistaodesemprego(novedecadadeznovasvagassãoestritamentetemporáriasede curtoprazo), asperspectivas incertasnavelhice eos infortúniosdavidaurbanacomoasprincipaisfontesdadifusaansiedadeemrelaçãoaopresente,aodiadeamanhãeaofuturomaisdistante:afaltadesegurançaéoqueuneas três, e o principal apelo do comunitarismo é a promessa de um portoseguro,odestinodossonhosdosmarinheirosperdidosnomarturbulentodamudançaconstante,confusaeimprevisível.

ComoobservouamargamenteEricHobsbawm,“apalavra ‘comunidade’nunca foi utilizada tão indiscriminadamente quanto nas décadas em que ascomunidadesnosentidosociológicosetornaramdifíceisdeencontrarnavidareal”.2“Homensemulheresprocuramgruposdequepossamfazerparte,comcertezaeparasempre,nummundoemquetudoomaissedeslocaemuda,emquenadamaisécerto.”3 JockYoungfazumsumáriosucintodaobservaçãodeHobsbawm:“Exatamentequandoacomunidadeentraemcolapso,inventa-se a identidade.”4 Pode-se dizer que a “comunidade” do evangelhocomunitário[communityofthecommunitariangospel]nãoéaGemeinschaftpré-estabelecida e seguramente fundada da teoria social (e formulada como“lei da história” por Ferdinand Tönnies), mas um criptônimo para a

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“identidade” zelosamentebuscadamasnunca encontrada.E comoobservouOrlando Patterson (citado por EricHobsbawm), embora as pessoas tenhamqueescolherentrediferentesgruposdereferênciadeidentidade,suaescolhaimplicaafortecrençadequequemescolhenãotemopçãoanãoserogrupoespecíficoaque“pertence”.

Acomunidadedoevangelhocomunitárioéumlarevidente(olarfamiliar,nãoumlarachadooufeito,masumlaremquesenasceu,de tal formaquenão se pode encontrar a origem, a “razão de existir”, em qualquer outrolugar):eumtipodelar,porcerto,queparaamaioriadaspessoasémaiscomoum belo conto de fadas que uma questão de experiência pessoal. (A casafamiliar, outrora envolta seguramente por uma densa rede de hábitosrotinizadoseexpectativascostumeiras,teveasproteçõesdesmanteladaseestáinteiramenteàmercêdasmarésqueaçoitamorestodavida.)Queolarestejafora do domínio da experiência ajuda: seu aconchego não pode ser posto aprova, e seus atrativos, como são imaginados, ficam imunes aos aspectosmenos atraentes do pertencimento obrigatório e das obrigações não-negociáveis—ascoresmaisfortesestãoausentesdapalhetadaimaginação.

Serumlarevidentetambémajuda.Osqueestavampresosdentrodeumacasacomumdealvenariapodiam,vezououtra,serassaltadospelaestranhaimpressãodeestarnumaprisãoenãonumporto seguro;a liberdadeda ruaacenavadefora,tãoinacessívelquantoasonhadasegurançadolartendeaserhoje. Se a sedutora segurança do lar é, porém, projetada numa telasuficientemente grande, não sobra “de fora” nada para estragar a festa. Acomunidadeidealéumcompleatmappamundi:ummundototal,queoferecetudo de que se pode precisar para levar uma vida significativa ecompensadora. Focando o que mais causa dor aos sem teto, o remédiocomunitário da passagem (disfarçada de retorno) para um mundo total etotalmenteconsistenteaparececomoumasoluçãoverdadeiramenteradicaldetodososproblemas,presentesefuturos;outroscuidadosparecempequenoseinsignificantes,secomparados.

Omundo comunitário está completo porque todo o resto é irrelevante;maisexatamente,hostil—umermorepletodeemboscadaseconspiraçõesefervilhante de inimigos que brandem o caos como sua arma principal. Aharmonia interior do mundo comunitário brilha e cintila contra a escura eimpenetrávelselvaquecomeçadooutroladodaestrada.Élá,paraesseermo,que as pessoas que se juntam no calor da identidade partilhada jogam (ouesperambanir)osmedosqueaslevaramaprocuraroabrigocomunitário.Naspalavras de Jock Young, “o desejo de demonizar os outros se baseia nasincertezas ontológicas”dosdedentro.5Uma “comunidade includente” seriauma contradição em termos. A fraternidade comunitária seria incompleta,talvezimpensável,aindaqueinvejável,semessainclinaçãofratricidainata.

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Nacionalismo,marco2

A comunidade do evangelho comunitário é étnica, ou uma comunidadeimaginadanopadrãodeumacomunidadeétnica.Essa escolhade arquétipotemboasrazões.

Primeiro, a “etnicidade”, ao contrário de qualquer outro fundamento daunidadehumana,temavantagemde“naturalizarahistória”,deapresentarocultural como um “fato da natureza”, a liberdade como “necessidadecompreendida(eaceita)”.Fazerpartedeumaetniaestimulaàação:devemosescolheralealdadeànossanatureza—devemostentar,comomaioresforçoe sem descanso, viver à altura do modelo e assim contribuir para suapreservação.Oprópriomodelo,contudo,nãoéumaquestãodeescolha,quenão se dá entre diferentes referenciais de pertencimento, mas entrepertencimentoefaltaderaízes,entreumlareafaltadeumlar,osereonada.Esseéprecisamenteodilemaqueoevangelhocomunitárioquer (eprecisa)tornarclaro.

Segundo,aopromoveroprincípiodequeaunidadeétnicasuperatodasasoutras lealdades, o Estado-nação foi o único “caso de sucesso” dacomunidadenostemposmodernos,ou,melhor,aúnicaentidadequeapostounoestatutodecomunidadecomalgumgraudeconvicçãoeefeito.Aidéiadaetnicidade(edahomogeneidadeétnica)comobaselegítimadaunidadeedaauto-afirmação ganhou com isso uma fundamentação histórica. Ocomunitarismocontemporâneonaturalmenteesperacapitalizaressa tradição;dadaaoscilaçãoatualdasoberaniadoEstadoeanecessidadeevidentedequealguém carregue a bandeira que parece cair das mãos desse Estado, aesperançanãoestádetodoperdida.Maséfácilobservarquehálimitesparase traçar paralelos entre as realizações do Estado-nação e as ambiçõescomunitárias. Afinal, o Estado-nação deveu seu sucesso à supressão decomunidades que se auto-afirmavam; lutou com unhas e dentes contra o“paroquialismo”, os costumesou “dialetos” locais, promovendouma línguaunificada e umamemória histórica às expensas das tradições comunitárias;quanto mais determinada a Kulturkämpfe iniciada e supervisionada peloEstado,maiorosucessodoEstado-naçãonaproduçãodeuma“comunidadenatural”.Alémdisso,osEstados-nação(diferentementedascomunidadeshojeprojetadas)nãoselançaramàtarefanoescuroenempensariamemdependerapenas da força da doutrinação. Seu esforço tinha o poderoso apoio daimposição legal da língua oficial, de currículos escolares e de um sistemalegalunificado,queascomunidadesprojetadasnãotêmenemestãopertodeadquirir.

Bem antes do recente crescimento do comunitarismo, havia argumentosde que existia uma pedra preciosa sob a carapaça feia e espinhenta da

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modernaconstruçãodanação.IsaiahBerlinsugeriuqueháaspectoshumanose elogiáveis na moderna “terra natal”, separados de seu lado cruel epotencialmente sangrento. A distinção entre patriotismo e nacionalismo ébastante popular. Em geral, o patriotismo é omembro “positivo” da dupla,deixandoonacionalismo,comsuasrealidadesdesagradáveis,comomembro“negativo”:opatriotismo,maispostuladoqueempiricamenteverificado,éoque o nacionalismo (se amansado, civilizado e eticamente enobrecido)poderiasermasnãoé.Opatriotismoédescritopelanegaçãodostraçosmaisrejeitados e vergonhosos do nacionalismo.LeszekKolakowski6 sugere que,enquantoonacionalistaquerafirmaraexistência tribalpelaagressãoeódioaos outros, acredita que todos os infortúnios de sua própria nação sãoresultado de conspirações estrangeiras e se ressente contra todas as outrasnaçõespornãoadmiraremapropriadamentenemdaremomerecidocréditoàsua própria tribo, o patriota destaca-se pela “benevolente tolerância emrelaçãoàvariedadeculturaleespecialmenteàsminoriasétnicasereligiosas”,assim como por sua disposição de dizer à sua própria nação coisas que adesagradamequeelanãogostariadeouvir.Aindaqueadistinçãosejaboa,emoral e intelectualmente louvável, seu valor é um tanto enfraquecido pelofatodequeelanãoopõeduasopçõespassíveisdeadesão,massimumaidéianobreeumarealidadeignóbil.Amaioriadaspessoasquegostariamqueseusentes queridos fossem patriotas com toda probabilidade denunciariam ascaracterísticas atribuídas à posição patriótica como evidência de hipocrisia,traição à pátria ou pior. Tais características — tolerância da diferença,hospitalidadeparacomasminoriasecoragemdedizeraverdade,aindaquedesagradável—sãomaisencontráveisemterrasondeo“patriotismo”nãoéum “problema” em sociedades suficientemente seguras de sua cidadaniarepublicanaparanãosepreocuparemcomopatriotismoenquantoproblema,emenosaindaemvê-locomotarefaurgente.

BernardYack,organizadordeLiberalismwithoutIllusions(UniversityofChicago Press, 1996), não estava errado quando, em sua polêmica contraMaurizio Viroli, autor de Love of Country: An Essay on Patriotism andNationalism(OxfordUniversityPress,1995),parafraseouHobbes,cunhandoumaforismo,“onacionalismoéopatriotismo indesejadoeopatriotismo,onacionalismodesejado”.7Defato,hárazõesparaconcluirquehápoucoquedistinga nacionalismo de patriotismo, além de nosso entusiasmo por suasmanifestaçõesouaausênciadelasouograudevergonhaouconsciênciadeculpacomqueosadmitamosouneguemos.Énomeá-losquefazadiferença,e a diferença é principalmente retórica, e distingue não a substância dosfenômenosmencionados,mas omodo como falamos sobre sentimentos oupaixões que são essencialmente similares. Contudo são a natureza dossentimentosepaixõesesuasconseqüênciascomportamentaisepolíticasquecontam e afetam a qualidade do convívio humano, e não as palavras que

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usamos para descrevê-las. Olhando para os feitos narrados nas históriaspatrióticas, Yack conclui que, sempre que sentimentos patrióticos sublimes“seelevaramaoníveldapaixãocompartilhada”,“ospatriotasmostraramumapaixão feroz, nunca gentil”, e que os patriotas podem ter demonstrado aolongodos séculos“muitasvirtudesúteisememoráveis,masagentilezaeasimpatiaparacomestranhosnuncaforampreeminentesentreelas”.

Nãohá comonegar, contudo, que a diferença na retórica é significante,nemsuasocasionaisepungentes reverberaçõespragmáticas.Umaretóricaéfeitaàimagemdodiscursodo“ser”,aoutra,do“tornar-se”.O“patriotismo”como um todo é tributário do credo moderno do “inacabado”, damaleabilidade(maisprecisamente,da“reformabilidade”)doshomens:pode,portanto,declararemsãconsciência(mantendoounãoapromessanaprática)que o chamado a “cerrar fileiras” é um convite feito e aberto: que “cerrarfileiras” éumaescolha eque tudooque sepede éque seja feita a escolhacerta e que se permaneça fiel a ela, para o bemou para omal, por todo osempre.O“nacionalismo”,poroutrolado,émaiscomoaversãocalvinistadasalvaçãoouaidéiadeSantoAgostinhodolivrearbítrio:depositapoucafénaescolha—vocêé“umdenós”ounãoé,eemqualquercasohápouco,talveznada, que você possa fazer para mudá-lo. Na narrativa nacionalista,“pertencer”éumdestino,nãooprodutodeumaescolhaoudeumprojetodevida.Podeserumaquestãodehereditariedadebiológica,comoahojeforademoda e abandonada versão racista do nacionalismo, ou de hereditariedadecultural,comonavariante“culturalista”,hojeemvoga—masemqualquerdos casos a questão foi decidida bem antes que essa ou outra pessoacomeçasse a andar e falar, de modo que a única escolha disponível aoindivíduoéentreabraçaroveredictododestinocomasduasmãosedeboafé,ourebelar-secontraeleeassimtornar-seumtraidordasuavocação.

Essadiferençaentrepatriotismoenacionalismotendeaultrapassarameraretóricaeentrarnodomíniodapráticapolítica.Seguindoa terminologiadeClaudeLévi-Strauss,podemosdizerqueaprimeirafórmulaémaiscapazdeinspirarestratégias“antropofágicas”(“devorar”osestrangeiros,demodoquesejamassimiladospelocorpodequemdevoraesetornemidênticosàsoutrascélulasdeste,perdendosuaprópriadistintividade),enquantoqueasegundaseassociamaisàestratégia“antropoêmica”,de“vomitar”e“cuspir”aquelesquenão são “aptos a ser nós”, seja isolando-os por encarceramento dentro dosmurosvisíveisdosguetosounos invisíveis (aindaquenãomenos tangíveisporessarazão)murosdasproibiçõesculturais,sejacercando-os,deportando-os ou forçando-os a fugir, como na prática que recebe o nome de limpezaétnica. Seria prudente, no entanto, lembrar que a lógica do pensamentoraramenteseimpõeàlógicadosatos,enãoháumarelaçãobiunívocaentrearetóricaeaprática,eassimcadaumadasestratégiaspodeestarenvolvidaemqualquerdessasretóricas.

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Unidade—pelasemelhançaoupeladiferença?

O“nós” do credo patriótico/nacionalista significa pessoas comonós; “eles”significapessoasquesãodiferentesdenós.Nãoque“nós”sejamosidênticosemtudo;hádiferençasentre“nós”,aoladodascaracterísticascomuns,masassemelhançasdiminuem,tornamdifusoeneutralizamseuimpacto.Oaspectoemquesomossemelhantesédecididamentemaissignificativoqueoquenossepara;significativobastanteparasuperaroimpactodasdiferençasquandosetratadetomarposição.Enãoque“eles”sejamdiferentesdenósemtudo;maseles diferem em um aspecto que é mais importante que todos os outros,importanteobastanteparaimpedirumaposiçãocomumetornarimprovávelasolidariedade genuína, independente das semelhanças que existam. É umasituação tipicamente ou/ou: as fronteiras que “nos” separam “deles” estãoclaramente traçadas e são fáceis de ver, uma vez que o certificado de“pertencer” só tem uma rubrica, e o formulário que aqueles que requeremuma carteira de identidade devem preencher contém uma só pergunta, quedeveserrespondida“simounão”.

Note-sequeaquestãodequaldasdiferençasé “crucial”— istoé,qualdelaséotipodediferençaqueimportamaisquequalquersemelhançaefaztodas as características comuns parecerem pequenas e insignificantes (adiferença que torna a divisão que gera hostilidade um caso encerrado antesmesmodocomeçodareuniãoemqueaeventualidadedaunidadepoderiaserdiscutida)—émenoreacimadetudoderivativa,enãoconstituiopontodepartida do argumento. Como explicou Frederick Barth, as fronteiras nãoreconhecem e registram um estranhamento já existente; elas são traçadas,como regra, antes que o estranhamento seja produzido. Primeiro há umconflito,umatentativadesesperadadeseparar“nós”e“eles”entãoostraçoscuidadosamente espiados “neles” são tomados como prova e fonte de umaestranheza que não admite conciliação. Sendo os seres humanos como são,criaturas multifacetadas com muitos atributos, não é difícil encontrar taistraçosquandoabuscaéfeitaasério.

O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga ascampainhas,declarandoqueapenasosqueestãodentrotêmdireitodeaíestare acomodar-se de vez. O patriotismo é, pelo menos aparentemente, maistolerante, hospitaleiro e acessível — deixa a questão para os que pedemadmissão. E no entanto o resultado último é, quase sempre, notavelmentesemelhante. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem apossibilidadedequeaspessoaspossamseunirmantendo-se ligadasàssuasdiferenças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, longe derequerer a semelhança ou promovê-la como um valor a ser ambicionado ebuscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e

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conhecimento,aomesmotempoemqueacrescentaforçaesubstânciaaoqueasfazoquesão—eissosignificaaoqueasfazdiferentes.

BernardCrickcitadaPolíticadeAristótelessuaidéiadeuma“boapolis”,articuladacontraosonhodePlatãodeumaverdade,umpadrãounificadodejustiça,quesubjugaatodos:

Há um ponto em que uma polis, ao avançar na unidade, deixa de ser umapolis;masdequalquerformachegaquaseaperdersuaessência,eassimseráumapolispior.Écomosesetransformasseaharmoniaemmerouníssono,ouse reduzisse um tema a uma única batida. A verdade é que a polis é umagregadodemuitosmembros.

Emseucomentário,Crickavançanaidéiadeumtipodeunidadequenemopatriotismonemonacionalismoestãodispostosaadmitirecomfreqüênciarejeitarão ativamente: um tipo de unidade que supõe que a sociedadecivilizadaéinerentementepluralista,queviveremconjuntoemtalsociedadesignifica negociação e conciliação de interesses “naturalmente diferentes” eque “é normalmente melhor conciliar interesses diferentes que coagir eoprimirperpetuamente”8: em outras palavras, que o pluralismo damodernasociedade civilizada não é simplesmente um “fato bruto” que pode não serdesejado oumesmo detestadomas que nem por isso desaparece, mas umacoisa boa e uma circunstância afortunada, pois oferece benefícios muitomaiores que os desconfortos e inconveniências que produz, amplia oshorizontesdahumanidadeemultiplicaasoportunidadesdeumavidamelhorque a que qualquer das alternativas pode oferecer. Podemos dizer que emrigorosa oposição tanto à fé patriótica quanto à nacionalista, o tipo maispromissor de unidade é a que é alcançada, e realcançada a cada dia, peloconfronto, debate, negociação e compromisso entre valores, preferências ecaminhosescolhidosparaavidaeaautoidentificaçãodemuitosediferentesmembrosdapolis,massempreautodeterminados.

Esseé,essencialmente,omodelorepublicanodeunidade,deumaunidadeemergentequeéuma realizaçãoconjuntadeagentesengajadosnabuscadeauto-identificação;umaunidadequeéumresultado,enãoumacondiçãodadaa priori, da vida compartilhada; uma unidade erguida pela negociação ereconciliação,enãopelanegação,sufocaçãoousupressãodasdiferenças.

Essa,queropropor,éaúnicavariantedaunidade(aúnicaformadeestarjuntos) compatível com as condições da modernidade líquida, varianteplausível e realista. Uma vez que as crenças, valores e estilos foram“privatizados”—descontextualizadosou“desacomodados”,com lugaresdereacomodação que mais lembram quartos de motel que um lar próprio epermanente —, as identidades não podem deixar de parecer frágeis etemporárias, e despidas de todas as defesas exceto a habilidade e

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determinaçãodosagentesqueseaferramaelaseasprotegemdaerosão.Avolatilidade das identidades, por assim dizer, encara os habitantes damodernidade líquida. E assim também faz a escolha que se seguelogicamente: aprender a difícil arte de viver com a diferença ou produzircondições tais que façam desnecessário esse aprendizado. Como disserecentementeAlainTouraine,opresenteestadodasociedadeassinala“ofimda definição do ser humano como um ser social, definido por seu lugar nasociedade, que determina seu comportamento ou ação”, e assim a defesa,pelosatoressociais,desua“especificidadeculturalepsicológica”sópodeserconduzidacom“consciênciadequeoprincípiodesuacombinaçãopodeserencontrado dentro do indivíduo, e não mais em instituições sociais ouprincípiosuniversais”.9

Asnotíciasdacondiçãosobreasquaisosteóricosteorizameosfilósofosfilosofam são diariamente marteladas pelas forças conjuntas das artespopulares, quer apareçam com seu nome de ficção, quer disfarçadas de“histórias verdadeiras”. Como os que assistiram ao filme Elizabeth foraminformados, mesmo ser a rainha da Inglaterra é uma questão de auto-afirmaçãoede autocriação; seruma filhadeHenriqueVIIIdemandamuitainiciativa individual, apoiada em astúcia e determinação. Para forçar osbriguentos e recalcitrantes cortesãos a se ajoelharem e fazer reverência e,mais que isso, a ouvir e obedecer, ela precisou comprarmuitamaquilagemparaorostoemudarseuestilodecabelo,enfeiteseorestantedaaparência.Nãoháafirmaçãoquenãosejaauto-afirmação,nemidentidadequenãosejaconstruída.

Tudoseresume,comcerteza,àforçadoagenteemquestão.Asarmasdedefesanãoestãodisponíveisdemaneirauniformeparatodos,eérazoávelqueindivíduos mais fracos e mal armados procurem a força do número paracompensar sua impotência individual. Dada a variada amplitude do hiatouniversalmente experimentado entre a condição do “indivíduo de jure” e apossibilidade de obter o status de “indivíduode facto”, omesmo ambientemoderno fluido pode favorecer uma diversidade de estratégias desobrevivência. O “nós”, como insiste Richard Sennett, “é hoje um ato deautoproteção. O desejo de comunidade é defensivo…Certamente é quaseumaleiuniversalqueo“nós”podeserusadocomodefesacontraaconfusãoeodeslocamento”.Mas—eesteéum“mas”crucial—quandoodesejodecomunidade“seexpressacomorejeiçãodosimigranteseoutrosestranhos”,éporque

a política atual baseada no desejo de refúgio tem por alvo os fracos, queviajam nos circuitos do mercado global de trabalho, e não os fortes, asinstituições que mobilizam os trabalhadores pobres ou fazem uso de suaprivação relativa. Os programadores da IBM … Num modo importante,

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conseguiram transcender esse sentido defensivo da comunidade quandodeixaramdeculparseuscolegasindianoseseupresidentejudeu.10

“Nummodoimportante”,talvez—massóemum,nãonecessariamenteomaissignificativo.Oimpulsoderetirar-sedacomplexidadeeivadaderiscosparaoabrigodauniformidadeéuniversal;oquediferesãoosmodosdeagirapartirdesseimpulso,eessesmodostendemadiferiremproporçãodiretaaosmeioserecursosdequeosatoresdispõem.Osmaisbemaquinhoados,comoos programadores da IBM, confortáveis em seu enclave ciberespacial masmuitomenos imunesaosazaresdodestinonosetor físicodomundosocial,mais difícil de “virtualizar,” podem arcar comos custos de fossos e ponteslevadiçashigh-techparamanteroperigoàdistância.GuyNafilyah,dirigentede uma companhia imobiliária líder na França, observou que “os francesesestão inquietos, têmmedo dos vizinhos, com exceção dos que se parecemcomeles”.JacquesPatigny,presidentedaAssociaçãoNacionaldosLocadoresde Imóveis, concorda, e vê o futuro no “fechamento periférico e filtroseletivo”dasáreasresidenciaiscomousodecartõesmagnéticoseguardas.Ofuturo pertence a “arquipélagos de ilhas situadas ao longo dos eixos decomunicação”. As áreas residenciais verdadeiramente extraterritoriais,isoladasecercadas,equipadascomintricadossistemasdeintercomunicação,ubíquascâmerasdevídeoparavigilânciaeguardas fortementearmadosemrondas24horaspordiaseespalhamaoredordeToulouse,comofizeramháalgumtemponosEUAecomofazememnúmeroscrescentesemtodaapartepróspera domundo que se globaliza rapidamente.11Os enclaves fortementeguardados têm uma semelhança notável com os guetos étnicos dos pobres.Diferem, entretanto, num aspecto importante: foram livremente escolhidoscomoumprivilégiopeloqualdeve-sepagarumaltopreço.Eossegurançasqueguardamoacessoforamempregadoseportamsuasarmaslegalmente.

RichardSennettfazumainterpretaçãosociopsicológicadatendência:

A imagem da comunidade é purificada de tudo o que pode trazer umasensaçãodediferença,quediráconflito,aquemsomos“nós”.Dessemodo,omito da solidariedade comunitária é um ritual de purificação … O quedistingue esse compartilhamentomítico nas comunidades é que as pessoassentemquepertencemumasàsoutras,eficamjuntas,porquesãoasmesmas…Osentimentode“nós”,queexpressaodesejodesemelhança,éummododeevitarolharmaisprofundamentenosolhosdosoutros.12

Comomuitasoutras iniciativasdospoderespúblicos,osonhodepurezafoi, na era da modernidade líquida, desregulamentado e privatizado; agirsobreessesonhofoideixadoparaainiciativaprivada—local,degrupos.Aproteção da segurança pessoal é agora uma questão de cada um, e as

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autoridadeseapolícialocalestãoàmãoparaajudarcomconselhos,enquantoasimobiliáriasassumemdebomgradooproblemadaquelesquesãocapazesdepagarporseusserviços.Medidas tomadaspessoalmente—isoladamenteouemconjunto—precisamestaraoníveldaurgênciaquelevouàsuabusca.De acordo com as regras comuns do raciocínio mítico, o metonímico éreformulado em metafórico: o desejo de repelir e empurrar os perigosostensivos próximos ao corpo ameaçado se transforma na necessidade detornaro“fora”semelhante,“parecido”ouidênticoao“dentro”,refazero“láfora”àsemelhançado“aquidentro”osonhoda“comunidadedesemelhança”é,essencialmente,umaprojeçãodel’amourdesoi.

Étambémumatentativafrenéticadeevitaraconfrontaçãocomquestõesconstrangedoras sem resposta: se o eu, amedrontado e carente deautoconfiança,merece amor emprimeiro lugar, e semerece portanto servircomomodeloparaarenovaçãodohábitatecomopadrãoparaavaliaremedira identidade aceitável. Numa “comunidade de semelhança” tais questões,esperamos,nãoserãocolocadas,eassimacredibilidadedasegurançaobtidapelapurificaçãonuncaserápostaàprova.

Emoutrolugar(Embuscadapolítica,JorgeZahar,2000),discutia“não-santíssimatrindade”deincerteza,insegurançaefaltadegarantias,cadaumagerando ansiedade ainda mais aguda e penosa pela dúvida quanto à suaproveniência; qualquer que seja sua origem, a pressão acumulada buscadesesperadamente uma saída, e com o acesso às fontes da incerteza e dainsegurançabloqueadoouforadealcance,todaapressãosedesloca,paracairafinalsobreafiníssimaeinstávelválvuladesegurançacorporal,domésticaeambiental. Como resultado, o “problema da segurança” tende a sercronicamentesobrecarregadodecuidadoseanseiosquenãopodelevarnemdescarregar.Essa aliança resulta na sede perpétua pormais segurança, umasede que nenhuma medida prática pode saciar, pois seu destino é deixarintactasasfontesprimáriaseprolíficasdaincertezaedafaltadegarantias,asprincipaisprovedorasdaansiedade.

Segurançaaumcertopreço

Lendoosescritosdosrenascidosapóstolosdocultocomunitário,PhilCohenconcluiqueascomunidadesqueeleselogiamerecomendamcomocuraparaos problemas da vida de seus contemporâneos se assemelham mais aorfanatos,prisõesoumanicômiosquealugaresdeliberaçãopotencial.Cohenestácerto;masopotencialdeliberaçãonuncafoiaquestãodoscomunitários;os problemas que se esperava que as futuras comunidades sanassem eramsedimentos dos excessos de liberação, de umpotencial de liberação grandedemaisparaserconfortável.Nalongaeinconclusivabuscadeequilíbrioentre

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liberdade e segurança, o comunitarismo ficou firme ao lado da última.Também aceitou que os dois valores humanos ambicionados estão emoposição, e que não se pode querermais de um sem renunciar a um tanto,talvez grande parte, do outro. Uma possibilidade que os comunitários nãoadmitem é que a ampliação e o enraizamento da liberdade humana podemaumentarasegurança,quealiberdadeeasegurançapodemcrescerjuntas,emenosaindaquecadaumasópodecresceremconjuntocomaoutra.

A imagem da comunidade é a de uma ilha de tranqüilidade caseira eagradávelnummardeturbulênciaehostilidade.Elatentaeseduz,levandoosadmiradoresaimpedir-sedeexaminá-lamuitodeperto,poisaeventualidadedecomandarasondasedomarosmaresjáfoiretiradadaagendacomoumaproposiçãotantosuspeitaquantoirrealista.Seroúnicoabrigodáaessavisãodacomunidadeumvaloradicional,eessevalorcontinuaacresceràmedidaqueabolsaondesenegociamoutrosvaloresdavidasetornacadavezmaiscaprichosaeimprevisível.

Comoinvestimentoseguro(oumelhor,investimentomenosnotoriamentearriscado que outros), o valor do abrigo comunitário não tem competidoressérios,àexceção,talvez,docorpodoinvestidor—agora,emcontrastecomopassado, o elemento da Lebenswelt com uma expectativa de vidaostensivamentemaislonga(defatoincomparavelmentemaislonga)queodequalquer de seus adereços ou embalagens. Como antes, o corpo continuamortal e portanto transitório, mas sua brevidade parece uma eternidadequando comparada à volatilidade e efemeridade de todos os quadros dereferência,pontosdeorientação,classificaçãoeavaliaçãoqueamodernidadelíquidapõeetiradasvitrineseprateleiras.Afamília,oscolegasdetrabalho,aclasseeosvizinhossãofluidosdemaisparaqueimaginemossuapermanênciae os creditemos com a capacidade de quadros de referência confiáveis. Aesperança de que “nos encontraremos outra vez amanhã”, crença quecostumava oferecer todas as razões necessárias para pensar à frente, agir alongo prazo e tecer os passos, um a um, numa trajetória cuidadosamentedesenhadadavida transitória e incuravelmentemortal,perdeumuitode suacredibilidade;aprobabilidadedequeoqueencontraremosamanhãseránossopróprio corpo imerso em família, classe, vizinhança e companhia de outroscolegasdetrabalhointeiramentediferentesouradicalmentemudadosémuitomaiscrívele,portanto,umaapostamaissegura.

Numensaioqueselêhojecomoumacartaàposteridadeenviadadaterradamodernidadesólida,ÉmileDurkheimsugeriaqueapenas“açõesque têmuma qualidade duradoura são dignas de nossa volição, apenas prazeresduradouros são dignos de nossos desejos”. Essa era, de fato, a lição que amodernidadesólidaincutianamentedeseushabitantes,combonsresultados,maselasoaestranhaevaziaaosouvidoscontemporâneos—aindaquetalvez

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menos bizarra que o conselho prático que Durkheim derivava dessa lição.Tendoformuladooquelhepareciaumaquestãomeramenteretórica,“qualovalor de nossos prazeres individuais, tão curtos e vazios?”, apressa-se aacalmar seus leitores, indicando que, afortunadamente, não estamoscondenados à caça de tais prazeres — “porque as sociedades têm vidainfinitamente mais longa que os indivíduos”, “elas nos permitem saborearsatisfações que não são simplesmente efêmeras”. A sociedade, na visão deDurkheim (perfeitamente aceitável em seu tempo) é aquele corpo “em cujaproteçãoabrigar-sedohorrordenossaprópriatransitoriedade”.13

O corpo e suas satisfações não se tornaram menos efêmeros desde otempo em que Durkheim louvou as instituições sociais duradouras. Oempecilho, no entanto, é que tudo o mais — e principalmente aquelasinstituições sociais — se tornou aindamais efêmero que o “corpo e suassatisfações”.Aduraçãodavidaéumanoçãocomparativa,eocorpomortaléagora talvezamais longevaentidadeàvista (de fato, aúnicaentidadecujaexpectativa de vida tende a crescer ao longo do tempo). O corpo, pode-sedizer, se tornouoúnico abrigo e santuárioda continuidade edaduração; oque quer que possa significar o “longo prazo”, dificilmente excederá oslimites impostos pelamortalidade corporal. Esta se torna a última linha detrincheirasdasegurança,expostasaobombardeioconstantedoinimigo,ouoúltimo oásis entre as areias assoladas pelo vento. Donde a preocupaçãofuriosa, obsessiva, febril e excessiva comadefesado corpo.Ademarcaçãoentreocorpoeomundoexteriorestáentreasfronteirascontemporâneasmaisvigilantementepoliciadas.Osorifíciosdocorpo (ospontosdeentrada)e assuperfíciesdocorpo(oslugaresdecontato)sãoagoraosprincipaisfocosdoterror e da ansiedade gerados pela consciência da mortalidade. Eles nãodividemmaisacargacomoutrosfocos(exceto,talvez,a“comunidade”).

Anovaprimaziadocorposerefletena tendênciaaformara imagemdacomunidade (a comunidade dos sonhos de certeza com segurança, acomunidade como viveiro da segurança) no padrão do corpo idealmenteprotegido: a visualizá-la como uma entidade internamente homogênea eharmoniosa, inteiramente limpa de toda substância estranha, com todos ospontos de entrada cuidadosamente vigiados, controlados e protegidos, masfortemente armada e envolta por armadura impenetrável. As fronteiras dacomunidadepostulada,comooslimitesexterioresdocorpo,sãoparasepararodomíniodaconfiançaedocuidadoamorosodaselvadorisco,dasuspeiçãoe da perpétua vigilância. O corpo e também a comunidade postulada sãoaveludadospordentroeásperoseespinhososporfora.

Corpoecomunidadesãoosúltimospostosdedefesanocampodebatalhacadavezmaisdesertoemqueaguerrapela certeza,pela segurançaepelasgarantiasétravada,diariamenteesemtréguas.Corpoecomunidadedevemde

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agoraemdianterealizarastarefasnopassadodivididasentremuitosbastiõesebarricadas.Oquedependedelesagoraémaisdoquepodemsuportar,detalforma que provavelmente aprofundarão, em vez de aliviar, os temores quelevaramaquelesqueandavamàprocuradesegurançaavoltar-separaelesembuscadeproteção.

A nova solidão de corpo e comunidade é o resultado de um amploconjunto de mudanças importantes subsumidas na rubrica modernidadelíquida.Umamudança no conjunto é, contudo, de particular importância: arenúncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de todas as suas principaisresponsabilidades em seu papel como maior provedor (talvez mesmomonopolístico) de certeza, segurança e garantias, seguido de sua recusa emendossarasaspiraçõesdecerteza,segurançaegarantiadeseuscidadãos.

DepoisdoEstado-nação

Nos tempos modernos, a nação era a “outra face” do Estado e a armaprincipalemsua lutapelasoberaniasobreo territórioesuapopulação.Boapartedacredibilidadedanaçãoedeseuatrativocomogarantiadesegurançaede durabilidade deriva de sua associação íntima comoEstado e—atravésdele — com as ações que buscam construir a certeza e a segurança doscidadãos sobre um fundamento durável e confiável, porque coletivamenteassegurado. Sob as novas condições, a nação tem pouco a ganhar com suaproximidade do Estado. O Estado pode não esperar muito do potencialmobilizador da nação de que ele precisa cada vezmenos, àmedida que osmassivosexércitosdeconscritos,reunidospelofrenesipatrióticofebrilmenteestimulado, são substituídos pelas unidades high-tech elitistas, secas eprofissionais,enquantoariquezadopaísémedida,nãotantopelaqualidade,quantidadeemoraldesuaforçade trabalho,quantopelaatraçãoqueopaísexercesobreasforçasfriamentemercenáriasdocapitalglobal.

EmumEstadoquenãoémaisaponteseguraalémdoconfinamentodamortalidade individual, um chamado ao sacrifício do bem-estar individual,para não falar da vida individual, em nome da preservação ou da glóriaimorredouradoEstadosoavazioecadavezmaisbizarro,senãoengraçado.O romance secular da nação com o Estado está chegando ao fim; nãoexatamenteumdivórcio,masumarranjode“viverjuntos”estásubstituindoaconsagrada união conjugal fundada na lealdade incondicional.Os parceirosestãoagoralivresparaprocurareentraremoutrasalianças;suaparcerianãoémaisopadrãoobrigatóriodeumacondutaprópriaeaceitável.Podemosdizerqueanação,quecostumavaserosubstitutodacomunidadeausentenaeradaGesellschaft,sevoltaemdireçãodaGemeinschaftdeixadaparatrásembuscadeumpadrão a emular e que lhe sirvademodelo.Oandaime institucional

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capazdemanteranaçãounidaépensávelcadavezmaiscomoumtrabalhodotipo faça-você-mesmo. São os sonhos de certeza e segurança, e não suasdisposições factuais e rotinizadas, que devem levar os indivíduos órfãos aabrigar-sesobasasasdanação,enquantobuscamasegurançateimosamentefugidia.

Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza,segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado éincansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveisarmas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e capacidade deevasãoefuga;aretribuiçãopelaviolaçãodonovoestatutoglobalérápidaeimpiedosa.Defato,arecusaaparticipardojogonasnovasregrasglobaiséocrimeasermaisimpiedosamentepunido,crimequeopoderdoEstado,presoaosoloporsuaprópriasoberaniaterritorialmentedefinida,deveimpedir-sedecometereevitaraqualquercusto.

Muitasvezesapuniçãoéeconômica.Governosinsubordinados,culpadosde políticas protecionistas ou provisões públicas generosas para os setores“economicamentedispensáveis”desuaspopulaçõesedenãodeixaropaísàmercêdos“mercadosfinanceirosglobais”edo“livrecomércioglobal”,têmseusempréstimos recusadosenegadaa reduçãodesuasdívidas;asmoedaslocaissãotransformadasemleprosasglobais,pressionadasàdesvalorizaçãoesofremataquesespeculativos;asaçõeslocaiscaemnasbolsasglobais;opaísé isolado por sanções econômicas e passa a ser tratado por parceiroscomerciaispassadosefuturoscomoumpáriaglobal;osinvestidoresglobaiscortam suas perdas antecipadas, embalam seus pertences e retiram seusativos,deixandoqueasautoridadeslocaislimpemosresíduoseresgatemasvítimas.

Ocasionalmente, no entanto, a punição não se confina a “medidaseconômicas”.Governosparticularmenteobstinados(masnãofortesobastantepara resistir por muito tempo) recebem uma lição exemplar que tem porobjetivoadvertireatemorizarseusimitadorespotenciais.Seademonstraçãodiáriae rotineirada superioridadedas forçasglobaisnão for suficienteparaforçaroEstadoaverarazãoecooperarcomanova“ordemmundial”,aforçamilitar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, dacapacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, daextraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifestaespetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadasemtáticasdeatacarecorrereaestritaseparaçãoentre“vidasaseremsalvas”evidasquenãomerecemsocorro.

Uma questão a ser discutida é se o modo como se conduziu a guerracontra a Iugoslávia foi, em termos éticos, correto e apropriado.Essaguerrafezsentido,porém,como“promoçãodaordemeconômicaglobalporoutros

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meiosquenãoospolíticos”.Aestratégiaescolhidapelosatacantesfuncionoubemcomoexibiçãoespetaculardanovahierarquiaglobaledasnovasregrasdo jogoquea sustentam.Senão fossepor suasmilharesde“baixas”muitoreaiseporumpaísarruinadoeprivadodasobrevivênciaedacapacidadedeauto-regeneração por muitos anos ainda, seríamos tentados a descrevê-lacomouma“guerrasimbólica”suigeneris;aguerraemsi, suasestratégiasetáticas, foi um símbolo (consciente ou subconscientemente) da emergenterelaçãodepoder.Omeiofoidefatoamensagem.

Como professor de sociologia, repeti a meus alunos, ano após ano, aversão padronizada da “história da civilização” com a marca da ascensãogradual mas incessante da sedentariedade e da vitória, por fim, dossedentários sobre os nômades; não havia dúvida de que os derrotadosnômades eram, essencialmente, a força regressiva e anticivilizacional. JimMacLoughlinrecentementedesvendouosignificadodessavitória,esboçandoumabrevehistóriadotratamentodispensadoaos“nômades”pelaspopulaçõessedentáriasdentrodaórbitadacivilizaçãomoderna.14Onomadismo,observa,era visto e tratado como “característica de sociedades ‘bárbaras’ esubdesenvolvidas”.Osnômadeseramdefinidoscomoprimitivos,e,deHugoGrotiusemdiante, traçava-seumparaleloentre“primitivo”e“natural”(istoé, inculto, cru, pré-cultural e incivilizado): “O desenvolvimento das leis, oprogresso cultural e o avançoda civilização estavam intimamente ligados àevoluçãoeaoaperfeiçoamentodasrelaçõeshomem-terraaolongodotempoedo espaço.” Para resumir: o progresso era identificado com o abandono donomadismoemfavordeummododevidasedentário.Tudoissoaconteceunotempodamodernidadepesada,quandoadominaçãoimplicavaenvolvimentodiretoeestreitoesignificavaconquista,anexaçãoecolonizaçãoterritorial.Ofundador e principal teórico do “difusionismo” (visão da história outroramuito popular nas capitais dos impérios), Friedrich Ratzel, pregador dos“direitos do mais forte”, que ele concebia como eticamente superior einescapável em vista da raridade do gênio civilizador e da existência daimitaçãopassiva, captouprecisamenteoespíritodaépocaquandoescreveu,nolimiardoséculocolonialista,que

a luta pela existência significa uma luta pelo espaço…Umpovo superior,invadindo o território de seus vizinhos selvagensmais fracos, rouba-lhes aterra,encurrala-osemcantospequenosdemaisparaseusustentoecontinuaausurpar mesmo suas minguadas posses, até que os mais fracos finalmenteperdem os últimos resíduos de seu domínio, e são expulsos da terra…Asuperioridade dessa expansão consiste principalmente em sua maiorcapacidadedeapropriar,utilizarplenamenteepovoaroterritório.

Claramente, não mais. O jogo da dominação na era da modernidade

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líquida não émais jogado entre o “maior” e o “menor”,mas entre omaisrápido e o mais lento. Dominam os que são capazes de acelerar além davelocidade de seus opositores.Quando a velocidade significa dominação, a“apropriação, utilização e povoamento” do território se torna umadesvantagem—umriscoenãoumrecurso.Assumiralgosobnossaprópriajurisdição e anexar a terra alheia implicam as tarefas caras, embaraçosas enão-lucrativas de administração e policiamento, responsabilidades ecompromissos— e acima de tudo limitações consideráveis à nossa futuraliberdadedemovimento.

Está longe de ser claro se outras guerras no estilo atacar e fugir serãoempreendidas, em vista do fato de que a primeira tentativa terminou porimobilizarosvencedores—sobrecarregando-oscomaatividadedeocupaçãoda terra, envolvimentos locais e responsabilidades administrativas egerenciais inadequadas às técnicas de poder da modernidade líquida. Opoderio da elite global reside em sua capacidade de escapar aoscompromissoslocais,eaglobalizaçãosedestinaaevitartaisnecessidades,adividir tarefase funçõesdemodoaocuparasautoridades locais,e somenteelas,comopapeldeguardiõesdaleiedaordem(local).

Em verdade, disseminam-se sinais de um certo “arrependimento” nocampodos vencedores: a estratégia da “força policial global” está umavezmaissubmetidaaintensoescrutíniocrítico.Entreasfunçõesqueaeliteglobaldeixaria para os Estados-nação transformados em delegacias de polícia,crescente número de vozes incluiria os esforços para resolver conflitossangrentos entre vizinhos; a solução de tais conflitos, ouvimos, deveria ser“descongestionada”e“descentralizada”,rebaixadasnahierarquiaglobal,comou sem atenção aos direitos humanos, e entregue “a quem de direito”, aossenhoresdaguerra locaiseàsarmasquepossuemgraçasàgenerosidadeou“bem compreendido interesse econômico” das empresas globais e dosgovernos que querem promover a globalização. Por exemplo, Edward N.Luttwak,seniorfellowdoCentroNorte-AmericanodeEstudosEstratégicoseInternacionais e durante muitos anos termômetro confiável das mutáveisdisposições do Pentágono, apelou no número de julho-agosto de 1999 darevistaForeign Affairs (descrita peloGuardian como “amais influente emcirculação”) para que se “dê uma chance à guerra”. As guerras, segundoLuttwak, não são de todo más, pois levam à paz. A paz, porém, só virá“quando todos os beligerantes estiverem exaustos ou quando um vencer demaneiradecisiva”.Apiorcoisa(eaOTANfezjustamente isso)édetê-lasameio caminho, antes que o tiroteio termine na exaustão mútua ou naincapacitaçãodeumadaspartesemguerra.Nessescasos,osconflitosnãosãoresolvidos,masapenastemporariamentecongelados,eosadversáriosusamotempo da trégua para rearmamento, reposicionamento e para repensar astáticas. Portanto, em seu próprio benefício e no deles, nunca interfira “em

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guerrasalheias”.OapelodeLuttwakpodebemcairemouvidosfavoráveisegratos.Afinal,

do modo como avança a “promoção da globalização por outros meios”,abster-se de intervir e permitir que a guerra atinja seu “fim natural” teriatrazido osmesmos benefícios sem o incômodo do envolvimento direto em“guerras alheias”, e especialmente em suas complicadas e pesadasconseqüências.Paraaplacaraconsciênciadespertadapelaimprudentedecisãode fazer a guerra sob uma bandeira humanitária, Luttwak indica a óbviainadequaçãodoenvolvimentomilitarcomomeioparaumfim:“Mesmoumadesinteressada intervenção de larga escala pode deixar de alcançar seuobjetivo humanitário ostensivo. É preciso perguntar-se se os kosovares nãoestariamemmelhor situaçãoseaOTANnão tivesse intervindo.”Teria sidoprovavelmente melhor para as forças da OTAN ter continuado com seustreinamentosdiáriosedeixadoaoslocaisoqueoslocaistinhamquefazer.

O que causou o arrependimento e levou os vencedores a lamentarem ainterferência (oficialmente proclamada um sucesso) foi que eles nãoconseguiramescaparàmesmíssimaeventualidadequeacampanha“atingirefugir” pretendia evitar: a necessidade da invasão e da ocupação eadministração do território conquistado. Quando os pára-quedistasaterrissarameseestabeleceramemKosovo,osbeligerantesforamimpedidosde sematar entre si,masa tarefademantê-los àdistância segura trouxeasforçasdaOTAN“docéuparaaterra”easenvolveucomaresponsabilidadedassujasrealidadesemcampo.HenryKissinger,umsóbrioeatentoanalistaeomestredapolíticaentendida(deummodomeioantiquado)comoaartedopossível,advertiucontraoutrotropeçoqueseriaarcarcomaresponsabilidadepela recuperação das terras devastadas pelos ataques dos bombardeiros.15Esse plano, diz Kissinger, “arrisca tornar-se um compromisso aberto emdireção a um envolvimento cada vez maior, colocando-nos no papel degendarmes de uma região de ódios apaixonados e onde temos poucosinteresses estratégicos”. E o “envolvimento” é justamente o que as guerrasdestinadas a “promover a globalização por outros meios” devem evitar! Aadministração civil, acrescenta Kissinger, envolveria inevitavelmenteconflitos, e caberia aos administradores, como tarefa custosa e eticamentedúbia,resolvê-lospelaforça.

Até agora há poucos (se houver) sinais de que as forças de ocupaçãopossam sair da tarefa de resolver o conflito em condições melhores queaquelesaquembombardearamesubstituíramemnomedeseufracasso.Emclarocontraste comodestinodos refugiadosemcujonomeacampanhadebombardeios foi iniciada, as vidas cotidianas dos que retornaram raramentechegam às manchetes, mas as notícias que ocasionalmente chegam aosleitores e ouvintes são sinistras. “Uma onda de violência e represálias

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continuadas contra sérvios e aminoria roma emKosovo ameaça solapar aprecária estabilidade da província, deixando-a etnicamente limpa de sérviosapenasummêsdepoisdatomadadecontrolepelastropasdaOTAN”,relataChrisBirddePristina.16AsforçasdaOTANemcampoparecemperdidasedesvalidas diante dos furiosos ódios étnicos, que pareciam tão fáceis deatribuir àmalícia de apenas um celerado, e portanto tão fáceis de resolver,quando vistos das câmeras de TV instaladas a bordo dos bombardeirossupersônicos.

JeanClair,ecomeleoutrosobservadores,esperaqueoresultadoimediatodaguerranosBálcãssejaumaprofundaeduradouradesestabilizaçãodetodaaárea,eaimplosão,nãoamaturação,dasjovensevulneráveis(ouaindanemnascidas) democracias como a macedônia, albanesa, croata ou búlgara.17(DanielVernetapresentaseu levantamentodasopiniõessobreaquestãoporcientistaspolíticosesociaisdeclassealtadaregiãosobo título“OsBálcãsdiantedoriscodeagoniasemfim”.18)MasClair tambémseperguntacomoserá preenchido o vazio aberto depois que as raízes da viabilidade dosEstados-naçãoforamcortadas.Asforçasglobaisdemercado,jubilosascomaperspectiva de não mais serem detidas ou obstruídas, provavelmente seinstalarão no local, mas não vão querer (nem conseguir, se quiserem)representar as autoridades políticas ausentes ou enfraquecidas.Nem estarãonecessariamente interessadas na ressurreição de um Estado-nação forte econfianteemplenocontroledeseuterritório.

“Outro PlanoMarshal” é a resposta mais comum à perplexidade atual.Não são sóos generais que são conhecidospor estar sempre envolvidosnaúltimaguerravitoriosa.Masnãoépossívelpagarparasairdecadaapuro,pormaior que seja a soma posta de lado para isso. O problema dos Bálcãs éinteiramente diferente do da reconstrução da soberania e do sustento doscidadãos dos Estados-nação depois da SegundaGuerra.O que enfrentamosnosBálcãsdepoisdaguerradoKosovonãoéapenasatarefadareconstruçãomaterialquaseapartirdozero (o sustentodos iugoslavosestápraticamentedestruído),mas tambémos agitados e inflamadoschauvinismos interétnicosquesaíramdaguerrareforçados.AinclusãodosBálcãsnarededosmercadosglobaisnãoserádemuitaserventiaparaamainaraintolerânciaeoódio,dadoqueaumentaráainsegurançaqueera(econtinuasendo)afonteprincipaldossentimentos tribais em ebulição.Há, por exemplo, umperigo real de que oenfraquecimento da capacidade de resistência sérvia possa servir comoconviteparaqueseusvizinhosseenvolvamemnovarodadadehostilidadeselimpezasétnicas.

Dadaalamentávelfolha-corridadospolíticosdaOTANemsuagrosseiraadministração das delicadas e complexas questões típicas do “cinturão depopulaçõesmistas”(comoHannahArendtadequadamentechamouaregião)

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dosBálcãs, pode-se temernova sériede custososdesastres.Nãoerraríamosemmuitotampoucoemsuspeitardaiminênciadomomentoemqueoslídereseuropeus,tendoseasseguradodequenenhumanovaondaderefugiadosembuscadeasiloameaçaseuprósperoeleitorado,percamointeresseintrínseconasterrasinadministráveis,comojáfizeramtantasvezesantes—naSomália,Sudão, Ruanda, Timor Leste e Afeganistão. Estaremos então de volta aocomeço, depois de um desvio semeado de cadáveres.Antonina Jelyazkova,diretorado Instituto InternacionaldeEstudosdeMinorias,expressoubemaquestão(citadaporVernet):“Nãosepoderesolveroproblemadasminoriascom bombas. As explosões deixam o diabo à solta dos dois lados.”19Tomandooladodasposiçõesnacionalistas,asaçõesdaOTANfortaleceramos já frenéticos nacionalismos da área e prepararam o terreno para futurasrepetições de atentados genocidas. Uma dasmais terríveis conseqüências éque a mútua acomodação e a amigável coexistência de línguas, culturas ereligiõesdaáreanuncafoitãoimprovávelcomoagora.Quaisquerquesejamas intenções, os resultados contrariam o que um empreendimentoverdadeiramenteéticonoslevariaaesperar.

A conclusão, ainda que preliminar, não é auspiciosa. As tentativas demitigaraagressãotribalpelasnovas“açõespoliciaisglobais”foramatéaquiinconclusivas, emaisprovavelmentecontraproducentes.Osefeitos totaisdaincessanteglobalização têmsidomarcadamentedesequilibrados:a feridadoreiníciodaguerracivilchegouantesdoremédionecessárioparacurá-la,queestá, namelhor das hipóteses, na fase de testes (mais provavelmente na detentativaeerro).Aglobalizaçãoparecetermaissucessoemaumentarovigorda inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistênciapacíficadascomunidades.

Preencherovazio

Para as multinacionais (isto é, empresas globais com interesses ecompromissoslocaisdispersosecambiantes),“omundoideal”“éummundosemEstados,oupelomenoscompequenosenãograndesEstados”,observouEricHobsbawm.“Amenosquetenhapetróleo,quantomenoroEstado,maisfracoeleé,emenosdinheiroénecessárioparasecomprarumgoverno.”

O que temos hoje é, com efeito, um sistema dual, o sistema oficial das“economiasnacionais”dosEstados,eoreal,masnãooficial,dasunidadeseinstituições transnacionais… Ao contrário do Estado com seu território epoder,outroselementosda“nação”podemseresãofacilmenteultrapassadospelaglobalizaçãodaeconomia.Etnicidadeelínguasãodoisexemplosóbvios.Sem o poder e a força coercitiva do Estado, sua relativa insignificância é

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clara.20

Como a globalização da economia procede aos saltos, “comprargovernos” é, certamente, cada vez menos necessário. A clara incapacidadedosgovernosdeequilibrarascontascomosrecursosquecontrolam(istoé,osrecursosqueelespodemestarcertosdequecontinuarãonodomíniodesuajurisdição independente do modo que escolham para equilibrar as contas)seria suficiente para fazê-los não só se renderem ao inevitável, mascolaboraremativamenteedebomgradocomos“globais”.

Anthony Giddens utilizou a metáfora apócrifa do “juggernaut” paracaptar o mecanismo da “modernização” do mundo. A mesma metáfora seadapta bem à globalização da economia de hoje: é cada vez mais difícilseparar os atores e seus objetos passivos, pois a maioria dos governoscompetem entre si para implorar, adular ou seduzir o juggernaut global amudarderumoevirprimeiroàsterrasqueadministram.Ospoucosentreelesque são lentos, míopes ou orgulhosos demais para entrar na competiçãoenfrentarãosériosproblemaspornão teremoquedizera seuseleitoresque“votam com suas carteiras”, ou então serão prontamente condenados erelegadosaoostracismopeloafinadocoroda“opiniãomundial”,paraseremdepois varridos (ou ameaçados de ser varridos) por bombas capazes derestaurarseubomsenso,trazendo-os(devolta)aoredil.

Se o princípio da soberania dos Estados-nação está finalmentedesacreditado e removido dos estatutos do direito internacional, se acapacidadederesistênciadosEstadosestáefetivamentequebradaapontodenãoprecisarserlevadaseriamenteemcontanoscálculosdospoderesglobais,asubstituiçãodo“mundodasnações”pelaordemsupranacional(umsistemapolítico global de freios e contrapesos para limitar e regular as forçaseconômicasglobais)éapenasumdospossíveiscenários—e,daperspectivade hoje, não o mais provável. A disseminação mundial do que PierreBourdieuchamoude“políticadaprecarização”éigualmenteprovável,senãomais.SeogolpenasoberaniadoEstadosedemonstrarfatalouterminal,seoEstadoperderseumonopóliodacoerção(quetantoMaxWebercomoNorbertElias consideravamcomo sua característica distintiva e, simultaneamente, oatributosinequanondaracionalidademodernaouordemcivilizada),nãosesegue necessariamente que o volume total de violência, inclusive violênciacomconseqüênciaspotencialmentegenocidas,diminuirá;elapodeserapenas“desregulada”, descendo do nível do Estado para o da “comunidade”(neotribal).

Na falta doquadro institucional de estruturas “arbóreas” (para utilizar ametáfora de Deleuze/Guattari), a socialidade pode perfeitamente retornar asuasmanifestações“explosivas”, ramificando-see fazendobrotar formaçõesde grau variado de durabilidade, mas invariavelmente instáveis,

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calorosamente contestadas e destituídas de base em que se apoiar — àexceção das ações apaixonadas e frenéticas de seus partidários. Ainstabilidade endêmica dos fundamentos precisará ser compensada. Umacumplicidade ativa (voluntária ou forçada) nos crimes, que só a existênciacontinuada de uma “comunidade explosiva” pode isentar efetivamente depunição, é a candidata mais provável a ocupar a vaga. Comunidadesexplosivas precisam de violência para nascer e para continuar vivendo.Precisam de inimigos que ameacem sua existência e inimigos a seremcoletivamente perseguidos, torturados e mutilados, a fim de fazer de cadamembro da comunidade um cúmplice do que, em caso de derrota, seriacertamente declarado crime contra a humanidade e, portanto, objeto depunição.

Numa série de estudos provocativos (Des choses cachées depuis lafondationdumonde;Leboucémissaire;Laviolenceetlesacré),RenéGirarddesenvolveu uma teoria ampla do papel da violência no nascimento epersistência da comunidade.Um impulso violento está sempre em ebuliçãosob a calma superfície da cooperação pacífica e amigável; esse impulsoprecisasercanalizadoparaforadoslimitesdacomunidade,ondeaviolênciaéproibida. A violência, que caso contrário desmascararia o blefe da unidadecomunal, é então reciclada como arma de defesa comunal. Dessa formarecicladaelaé indispensável;precisaser reencenadasempresoba formadeumsacrifício ritual,cujavítimasubstitutaéescolhidadeacordocomregrasque raramente são explicitadas, e são no entanto estritas. “Há umdenominadorcomumquedeterminaaeficáciade todosossacrifícios.”Essedenominadorcomumé

a violência interna — todas as dissensões, rivalidades, ciúme e querelasdentro da comunidade, que os sacrifícios contribuem para suprimir. Opropósito do sacrifício é restaurar a harmonia da comunidade, reforçar otecidosocial.

Oqueuneasdiversasformasdesacrifícioritualéseupropósitodemanterviva amemória da unidade comunal e de sua precariedade.Mas, para quedesempenheessafunção,a“vítimasubstituta”,objetosacrificadonoaltardaunidadecomunal,deveserescolhidaadequadamente—easregrasdeseleçãosãoexigenteseprecisas.Para seradequadoaosacrifício,oobjetopotencial“devetergrandesemelhançacomascategoriashumanasexcluídasdasfileirasdos ‘sacrificáveis’ (isto é, os humanos considerados ‘membros dacomunidade’), ainda que mantenham um grau de diferença que impeçaqualquer possível confusão”. Os candidatos devem ser de fora, mas nãodistantesdemais;semelhantes“anós,membroscabaisdacomunidade”,masinequivocamente diferentes. O ato de sacrificar esses objetos se destina,

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afinal,atraçarestritaseimpassáveisfronteirasentreo“dentro”eo“fora”dacomunidade.Nãoéprecisodizerqueascategoriasdasquaisasvítimassãoregularmenteselecionadassão

seres que estão fora ou nas fronteiras da sociedade; prisioneiros de guerra,escravos … indivíduos de fora ou marginais, incapazes de estabelecer oucompartilhar os laços sociais que unem o resto dos habitantes. Seu statuscomo estrangeiros ou inimigos, sua condição servil, ou simplesmente suaidade,impedeessasfuturasvítimasdeseintegraremàcomunidade.

Afaltadelaçossociaiscomosmembros“legítimos”dacomunidade(ouaproibiçãodeestabelecer tais laços) temumavantagemadicional:asvítimas“podem ser expostas à violência sem risco de vingança”21 pode-sepuni-loscom impunidade—oupelomenos pode-se esperar por isso,manifestando,porém,aexpectativaoposta,pintandoacapacidadeassassinadasvítimasnascoresmaisvivaselembrandoqueacomunidadedevecerrarfileirasemanterseuvigorevigilâncianomáximo.

A teoria de Girard parece fazer sentido da violência que é profusa eexaltada nas esgarçadas fronteiras das comunidades, especialmentecomunidades cujas identidades são incertas ou contestadas, ou, maisprecisamente, do uso comum da violência como instrumento para desenharfronteiras quando estas estão ausentes, ou são porosas ou apagadas. Trêscomentáriosparecem,porém,necessários.

Primeiro:seosacrifícioregularde“vítimassubstitutas”éumacerimôniade renovação do “contrato social” não-escrito, ele pode desempenhar essepapelgraçasa seuoutroaspecto—oda lembrançacoletivadeum“atodecriação” histórico ou mítico, do pacto original a partir de um campo debatalhamergulhadoemsangueinimigo.Senãohouvetalevento,eleprecisaser retrospectivamente construído pela assídua repetição do ritual desacrifício. Genuíno ou inventado, porém, ele cria um padrão para todas ascandidatasaostatusdecomunidade—asfuturascomunidadesqueaindanãoestão em posição de substituir a “coisa real” pelo ritual benigno e oassassinato de vítimas reais pela morte de vítimas substitutas. Por maissublimadaquesejaaformadosacrifícioritualquetransformaavidacomunalnumareencenaçãocontínuadomilagredo“diada independência”,as liçõespragmáticas tiradas por todas as que aspiram ao status de comunidadeinduzemafaçanhasdepoucasutilezaouelegâncialitúrgica.

Segundo:aidéiadeumacomunidadecometendoo“assassinatooriginal”a fim de tornar sua existência segura e garantida e cerrar fileiras éincongruente nospróprios termosdeGirard; antes queo assassíniooriginalfossecometidodificilmentehaveriafileirasaseremcerradaseumaexistênciacomunalparaserassegurada.(OpróprioGirarddeixaissoimplícito,quando

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explica em seu capítulo 10 o simbolismo ubíquo do corte na liturgia dosacrifício:“Onascimentodacomunidadeéanteseacimadetudoumatodeseparação.”)Avisãodaexportaçãocalculadadaviolência internaparaalémdasfronteirasdacomunidade(acomunidadeassassinandoestranhosafimdemanterapazentreseusmembros)émaisumcasodoexpedientetentadormasequivocadodetomarafunção(genuínaouimputada)porexplicaçãocausal.Éantesopróprioassassinatooriginalquetrazacomunidadeàvida,colocandoademandadesolidariedadeeanecessidadedecerrarfileiras.Éalegitimidadedasvítimasoriginaisqueclamapelasolidariedadecomunalequetendeaserconfirmadaanoapósanonosrituaisdesacrifício.

Terceiro:aafirmaçãodeGirarddequeo“sacrifícioéprincipalmenteumato de violência sem risco de vingança” (p.13) precisa ser complementadapela observação de que, para tornar o sacrifício eficaz, a ausência de riscodeve ser cuidadosamente ocultada ou,melhor ainda, enfaticamente negada.Doassassíniooriginalo inimigodeve teremergidonão inteiramentemorto,mas morto-vivo, um zumbi pronto a levantar-se da tumba a qualquermomento. Um inimigo realmente morto, ou um inimigo morto incapaz deressuscitar, não inspirará temor suficiente para justificar a necessidade deunidade—eosrituaisdesacrifíciosãoregularmenterealizadosparalembraratodosqueosrumoresdodesaparecimentofinaldoinimigosãopropagandadopróprioinimigoe,portanto,aprovaoblíqua,masvívida,dequeoinimigoestávivo.

Numa formidável série de estudos sobre o genocídio na Bósnia, ArneJohan Vetlesen diz que, na falta de fundamentos institucionais confiáveis(esperaríamosqueduráveiseseguros),umespectadornão-envolvido,mornoouindiferentesetornaomaisodiadoeomelhordosinimigos:“Dopontodevista de um agente do genocídio, esses estranhos são pessoas que têm umpotencial … para deter o genocídio em curso.”22 Independente de que osespectadores efetivem ou não esse potencial, sua presença enquanto“espectadores” (pessoas que não fazem nada para destruir o inimigo) é umdesafioàúnicaproposiçãodequeacomunidadederivasuaraisond’être:dequeéumasituação“ounós,oueles”,queadestruição“deles”éindispensávelpara“nossa”sobrevivênciaematá-“los”éaconditiosinequanonda“nossa”sobrevivência.Comoaparticipaçãonacomunidadenãoestápredeterminadaouinstitucionalmenteassegurada,o“batismodosangue(derramado)”—umaparticipação pessoal no crime coletivo— é a única maneira de aderir e aúnica legitimação da participação contínua. Por oposição ao genocídiopraticadopeloEstado(e,principalmente,poroposiçãoaoHolocausto),otipode genocídio que é o ritual de nascimento das comunidades explosivas nãopodeserconfiadoaosespecialistasoudelegadoadepartamentosouunidadesespeciais.Nãoétantoumaquestãodequantos“inimigos”sãomortos;émaisimportantequantossãoosassassinos.

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Tambéméimportantequeosassassinatossejamcometidosabertamente,àluzdodiaeàvistadetodos,queexistamtestemunhasdocrimequeconheçamosassassinospelonome—demodoqueaevasãoeaimpunidadedeixemdeserumaopçãoviáveleacomunidadenascidadocrimeiniciáticopermaneçacomoúnico refúgioparaosassassinos.A limpezaétnica, comoArne JohanVetlesendescobriuemseuestudodaBósnia,

fixa emantém as condições de proximidade entre criminoso e vítima e atécria essas condições se elas não existirem, e as estende, como questão deprincípio, se correm o risco de desaparecer. Nessa violênciasuperpersonalizada, famílias inteiras foram forçadas a ser testemunhas detortura,estuproeassassinato…23

Outravezporcontrastecomogenocídioaoestiloantigo,eacimadetudoao Holocausto como “tipo ideal”, as testemunhas são ingredientesindispensáveis na mistura de fatores que dão vida a uma comunidadeexplosiva.Umacomunidadeexplosivapodecontarrazoavelmente(aindaqueàs vezes enganosamente) com longa vida apenas enquanto o crime originalforlembradoe,assim,seusmembros,cientesdequeasprovasdocrimequecometeram são abundantes, permanecem unidos e solidários— cimentadospelointeresseconjuntodecerrarfileirasparacontestaranaturezacriminosaepuníveldeseusatos.Amelhormaneiradegeraressascondiçõesé reavivarperiódicaou continuamente amemória do crime e omedodapuniçãopelaadiçãodenovoscrimesaosvelhos.Comoascomunidadesexplosivasnascemempares (nãohaveria o “nós” se não fosse por “eles”) e como a violênciagenocida é um crime a que qualquer dos membros do par recorre comfacilidade quando se sente mais forte, não faltam oportunidades paraencontrar um pretexto adequado a uma nova “limpeza étnica” ou atentadogenocida.Aviolênciaqueacompanhaasociabilidadeexplosivaeéomododevidadascomunidadesquesedimenta,portanto,seautopropaga,autoperpetuae autoreforça. Ela gera o que Gregory Bateson chamou de “cadeiasesquizogenéticas”,queresistembravamenteasereminterrompidas,quedirárevertidas.

UmacaracterísticaquetornaascomunidadesdotipoanalisadoporGirarde Vetlesen particularmente ferozes, violentas e sangrentas, dotando-as deconsiderável potencial genocida, é sua “conexão territorial”. Esse potencialtem origem em outro paradoxo da era da modernidade líquida. Aterritorialidade está intimamente ligada às obsessões espaciais damodernidade sólida; alimenta-se delas e contribui, por sua vez, para suapreservação.Ascomunidadesexplosivas,aocontrário,estãoemcasanaerada modernidade liquefeita. A mescla de sociabilidade explosiva comaspirações territoriais está fadada, portanto, a resultar em mutações

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monstruosas.Aalternânciadeestratégias“fágicas”e“êmicas”naconquistaedefesa do espaço (que em geral era a principal questão nos conflitos damodernidadesólida)apareceinteiramenteforadelugar(eoqueéaindamaisimportante, “fora do tempo”) num mundo dominado pela variedadeleve/fluida/desoftwaredamodernidade;nessemundo,elaquebraanormaemvezdesegui-la.

Aspopulaçõessedentáriassitiadasserecusamaaceitarasregraseriscosdonovojogodepoder“nômade”,atitudequeanovaeliteglobalnômadeachaextremamente difícil (bem como repulsiva e indesejável) de entender e nãopodepercebersenãocomoumsinalderetardamentoeatraso.Quandosetratade confrontos, e particularmente confrontosmilitares, as elites nômades domodernomundolíquidopercebemaestratégia territorialmenteorientadadaspopulações sedentárias como “bárbara” por comparação à sua própriaestratégiamilitar“civilizada”.Agoraéaelitenômadequedáotomeditaoscritérios pelos quais as obsessões territoriais são classificadas e julgadas.Amesa foi virada — e a velha e testada arma da “cronopolítica”, outrorautilizada pelas triunfantes populações sedentárias para expulsar os nômadesparaapré-históriabárbaraeselvagem,éagorautilizadapelasvitoriosaselitesnômades em sua luta com o que restou da soberania territorial e contraaquelesqueaindasededicamàsuadefesa.

Em sua reprovação das práticas territoriais, as elites nômades podemcontar com o apoio popular. O ultraje experimentado à vista das massivasexpulsõeschamadasde“limpezaétnica”ganhavigor adicional pelo fato deque elas parecem estranhamente uma versão ampliada das tendênciasmanifestadas diariamente, aindaque emmenor escala, perto de casa—emtodos os espaços urbanos das terras que fazem a cruzada civilizadora.Lutandocontraos“faxineirosétnicos”,exorcizamosnossos“demônios”,quenos estimulam a pôr emguetos os indesejáveis “estrangeiros”, a aplaudir oestreitamentododireitodeasilo,ademandararemoçãodosconstrangedoresestrangeiros das ruas da cidade e a pagar qualquer preço pelos abrigoscercadosdecâmerasdevigilânciaeguardasarmados.Naguerraiugoslavaoqueestavaemjogoparaosdoisladoseranotavelmentesemelhante,emboraoqueeraoobjetivodeclaradodeumdosladosfosseumsegredoansiosamenteguardado pelo outro. Os sérvios queriam expulsar de seu território umaminoria albanesa recalcitrante e embaraçosa, enquanto os países daOTAN,porassimdizer,“respondiamàaltura”:suacampanhamilitarfoideslanchadapelo desejo dos outros europeus de manterem os albaneses na Sérvia,matando assim no ninho a ameaça de sua reencarnação como migrantesconstrangedoreseindesejados.

Cloakroomcommunitiesa

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A ligação entre a comunidade explosiva em sua encarnação modernaespecificamente líquida e a territorialidade não é porém necessária, nem,certamente,universal.Amaioriadascomunidadesexplosivascontemporâneassão feitas sob medida para os tempos líquidos modernos mesmo que suadisseminaçãopossaserprojetadaterritorialmente;elassãoextraterritoriais(etendem a obter sucesso mais espetacular quanto mais livres forem daslimitações territoriais)—precisamente como as identidades que invocam emantêmprecariamentevivasnobreveintervaloentreaexplosãoeaextinção.Sua natureza “explosiva” combina bemcomas identidades da eramodernalíquida:demodosemelhantea tais identidades,ascomunidadesemquestãotendemaservoláteis,transitóriasevoltadasao“aspectoúnico”ou“propósitoúnico”.Suaduraçãoécurta,emboracheiadesomefúria.Extraempodernãode suapossívelduraçãomas,paradoxalmente,de suaprecariedadeede seufuturo incerto, da vigilância e investimento emocional que sua frágilexistênciademandaagritos.

O termo “cloakroom community” capta bem alguns de seus traçoscaracterísticos. Os freqüentadores de um espetáculo se vestem para aocasião, obedecendoaumcódigodistintodoque seguemdiariamente—oatoque simultaneamente separaavisita comouma“ocasiãoespecial”e fazcomqueosfreqüentadorespareçam,enquantoduraroevento,maisuniformesdo que na vida fora do teatro. É a apresentação noturna que leva todos aolugar—pordiferentesquesejamseusinteressesepassatemposduranteodia.Antesdeentrarnoauditório,deixamossobretudosoucapasquevestiramnasruas no cloakroom da casa de espetáculos (contando o número de cabidesusadospode-se julgarquãocheiaestá a casaequãogarantidoestáo futuroimediatodaprodução).Duranteaapresentação,todososolhosestãonopalco;e tambéma atençãode todos.Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondasdeaplauso,gritosdeaprovaçãoeexclamaçõesdesurpresasãosincronizados—como se cuidadosamente planejados e dirigidos. Depois que as cortinas sefecham,porém,osespectadoresrecolhemseuspertencesdocloakroome,aovestirem suas roupas de rua outra vez, retornam a seus papéis mundanos,ordinários e diferentes, dissolvendo-se poucosmomentos depois na variadamultidão que enche as ruas da cidade e da qual haviam emergido algumashorasantes.

Cloakroomcommunitiesprecisamdeumespetáculoqueapeleainteressessemelhantesemindivíduosdiferentesequeosreúnaduranteumcertotempoem que outros interesses — que os separam em vez de uni-los — sãotemporariamente postos de lado, deixados em fogo brando ou inteiramentesilenciados. Os espetáculos enquanto ocasiões para a breve existência decloakroom communities não fundem e misturam cuidados individuais em“interessesdegrupo”adicionadas,aspreocupaçõesemquestãonãoadquiremumanovaqualidade,eailusãodecompartilharqueoespetáculopodegerar

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nãoduramuitomaisqueaexcitaçãodaperformance.Os espetáculos passaram a substituir a “causa comum” da era da

modernidadesólida,dohardware—oquefazdiferençaparaanaturezadasidentidades ao novo estilo e leva a dar sentido às tensões emocionais etraumas geradores de agressividade que de tempos em tempos asacompanham.

“Comunidades de carnaval” parece ser outro nome adequado para ascomunidades em discussão. Tais comunidades, afinal, dão um alíviotemporárioàsagoniasde solitárias lutascotidianas,àcansativacondiçãodeindivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si mesmos pelospróprios cabelos. Comunidades explosivas são eventos que quebram amonotoniadasolidãocotidiana,ecomotodososeventosdecarnavalliberamapressãoepermitemqueos foliões suportemmelhora rotinaaquedevemretornarnomomentoemqueabrincadeiraterminar.E,comoafilosofia,nasmelancólicasmeditações deWittgenstein, “deixam tudo como estava” (semcontar os feridos e as cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de“baixasmarginais”).

“Cloakroom” ou “de carnaval”, as comunidades explosivas são umacaracterísticatãoindispensáveldapaisagemdamodernidadelíquidaquantoopleito essencialmente solitário dos indivíduos de jure em seus ardentes(emboravãos)esforçosdeelevar-sea indivíduosde facto.Osespetáculos ecabides no cloakroom e as folias carnavalescas que atraem multidões sãomuitosevariados,paratodosostiposdegostos.OadmirávelmundonovodeHuxley tomou emprestado ao 1984 de Orwell o estratagema dos “cincominutos de ódio (coletivizado)”, complementando-o esperta eengenhosamente com o expediente dos “cinco minutos de adoração(coletivizada)”.Acadadia, asmanchetesdeprimeirapáginada imprensa edoscincoprimeirosminutosdaTVacenamcomnovasbandeirassobasquaisreunir-seemarcharombro(virtual)aombro(virtual).Oferecemum“objetivocomum”(virtual)emtornodoqualcomunidadesvirtuaispodemseentrelaçar,alternadamente atraídas e repelidas pelas sensações sincronizadasdepânico(àsvezesmoral,masgeralmenteimoralouamoral)eêxtase.

Um efeito das cloakroom communities/comunidades de carnaval é queelaseficazmenteimpedemacondensaçãodecomunidades“genuínas”(istoé,compreensivaseduradouras),queimitameprometemreplicaroufazersurgirdo nada. Espalham em vez de condensar a energia dos impulsos desociabilidade, e assim contribuem para a perpetuação da solidão que buscadesesperadamente redenção nas raras e intermitentes realizações coletivasorquestradaseharmoniosas.

Longe de ser uma cura para o sofrimento nascido do abismo não-transpostoeaparentementeintransponívelentreodestinodoindivíduodejure

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e o do indivíduo de facto, são os sintomas e às vezes fatores causais dadesordemsocialespecíficadacondiçãodemodernidadelíquida.

aLiteralmente,“comunidadesdeguarda-casacos”,emalusãoaoslocaisonde,emmuseuseteatros,deixam-secapasecasacos,quesãoretiradosàsaída.(N.T.)

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POSFÁCIO

ESCREVER;ESCREVERSOCIOLOGIA1

Anecessidadedepensaréoquenosfazpensar.

TheodorW.Adorno

CitandoaopiniãodopoetatchecoJanSkácelsobreacondiçãodopoeta(que,nas palavras de Skácel, apenas descobre os versos que “estiveram sempre,profundamente, lá”), Milan Kundera comenta (em L’Art du roman, 1986):“Escrever significaparaopoeta romperamuralhaatrásdaqual seescondealgumacoisaque‘sempreestevelá’.”Sobesseaspecto,atarefadopoetanãoé diferente da obra da história, que também descobre, e não inventa: ahistória,comoospoetas,descobre,emsemprenovassituações,possibilidadeshumanasantesocultas.

O que a história faz corriqueiramente é um desafio, uma tarefa e umamissãoparaopoeta.Paraelevar-seaessamissão,opoetadeverecusarservirverdadesconhecidasdeantemãoebemusadas,verdadesjá“óbvias”porquetrazidasàsuperfícieeaídeixadasaflutuar.Nãoimportaqueessasverdades“supostas de antemão” sejam classificadas como revolucionárias oudissidentes,cristãsouatéias—ouquãocorretaseapropriadas,nobresejustassejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua denominação,essas “verdades” não são as “coisas ocultas” que o poeta é chamado adesvelar; são antes partes da muralha que é missão do poeta destruir. Osporta-vozesdoóbvio,doauto-evidentee“daquiloemquetodosacreditamos”sãofalsospoetas,dizKundera.

Mas o que tem que ver a vocação do poeta com a do sociólogo? Nóssociólogos raramente escrevemos poemas. (Alguns de nós que o fazemostomamos uma licença, para a atividade de escrever, de nossos afazeresprofissionais.)Enoentanto,senãoquisermospartilhardodestinodos“falsospoetas” e não quisermos ser “falsos sociólogos”, devemos nos aproximartantoquantoosverdadeirospoetasdaspossibilidadeshumanasaindaocultas;e por essa razão devemos perfurar asmuralhas do óbvio e do evidente, damodaideológicadodiacujatrivialidadeétomadacomoprovadeseusentido.Demolir taismuralhasévocaçãotantodosociólogoquantodopoeta,epelamesma razão: o emparedamento das possibilidades desvirtua o potencialhumanoaomesmotempoemqueobstruiarevelaçãodeseublefe.

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TalvezoversoqueopoetaprocuratenhaEstado“semprelá”.Nãosepodeestar tão certo, porém, sobre o potencial humano descoberto pela história.Seráqueoshumanos—osquefazemeosqueforamfeitos,osheróiseasvítimas da história — sempre carregarão consigo o mesmo volume depossibilidades à espera do momento certo para serem reveladas? Ou aoposiçãoentredescobertaecriaçãoénulaevaziaenãofazsentido?Comoahistóriaéoprocessoinfindáveldacriaçãohumana,nãoseriaelapelamesmarazãooprocessoinfindáveldoautodescobrimentohumano?Apropensãopararevelar/criar sempre novas possibilidades, para expandir o inventário daspossibilidadesjádescobertasetornadasreais,nãoéoúnicopotencialhumanoque sempre “esteve lá”, e sempre estará? Saber se a nova possibilidade foicriadaou“meramente”reveladapelahistóriaésemdúvidaumestímulobem-vindoparamentesescolásticas;quantoàprópriahistória,elanãoesperapelarespostaepodeseguirsemela.

OlegadomaispreciosodeNiklasLuhmannaseuscolegassociólogoséanoçãodeautopoiesis—autocriação(dogregoποιειη,fazer,criar,darforma,o oposto de πασχειη, sofrer, ser um objeto e não a fonte do ato)—, quepretende captar e encapsular a essência da condição humana.A escolha dotermo foi em si mesma uma criação ou descoberta da ligação (parentescoherdadomaisqueafinidadeescolhida)entreahistóriaeapoesia.Apoesiaeahistóriasãoduascorrentesparalelas(“paralelas”nosentidodouniversonão-euclidiano regulado pela geometria de Bolyai e Lobachevski) dessaautopoiesisdaspotencialidadeshumanas, emqueacriaçãoé aúnica formaquepodetomaradescobertaeaautodescobertaéoprincipalatodecriação.

Asociologia,soutentadoadizer,éumaterceiracorrente,paralelaaessasduas. Ou pelo menos isso é o que ela deveria ser para ficar dentro dessacondiçãohumanaque tenta entender e tornar inteligível; e é oque ela vemtentandoserdesdeo início,embora tenhasido repetidasvezesdesviadaporter tomado equivocadamente as aparentemente impenetráveis e ainda nãodecompostasmuralhas comoos limites últimosdopotencial humano, e porterseapressadoagarantiraoscomandanteseàstropassobseucomandoqueaslinhasquetraçaramparamarcaroslimitesjamaisseriamultrapassadas.

AlfreddeMussetsugeriuháquasedoisséculosqueos“grandesartistasnãotêmpátria”.Hádoisséculosessaspalavraserammilitantes,umaespéciedegrito de guerra. Foram escritas em meio às ensurdecedoras fanfarras dopatriotismojuvenilecrédulo,eporissomesmobelicosoearrogante.Muitospolíticos estavam descobrindo sua vocação para a construção de Estados-naçãocomumasólei,umasólíngua,umasóvisãodemundo,umasóhistóriaeumsófuturo.Muitospoetasepintoresestavamdescobrindosuamissãodenutrirostenrosbrotosdoespíritonacional,ressuscitandotradiçõesnacionais

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hámuitotidascomomortasouconcebendooutrasnovaseoferecendoànaçãoashistórias,canções, semelhançasenomesdeancestraisheróicos—algoacompartilhar,amareguardaremcomum,eassimelevaromeroviverjuntosaoníveldopertenceràmesmacoisa,abrindoosolhosdosvivosparaabelezae doçura do pertencimento ao levá-los a lembrar e venerar seusmortos e aalegrar-se por cultivar seu legado. Contra esse clima, o rude veredicto deMusset tinha todas as marcas de uma rebelião e um chamado às armas:concitava seus colegas escritores a recusar cooperação ao empreendimentodospolíticos, profetas epregadoresdas fronteirasvigiadas edas trincheirasarmadas. Não sei se deMusset intuiu a capacidade fratricida dos tipos defraternidades que os políticos nacionalistas e ideólogos laureados estavamdeterminadosaerguer,ousesuaspalavrasnãopassavamdeexpressõesdeseudesagrado intelectual com os estreitos horizontes e com a mentalidadeparoquial. Qualquer que fosse o caso então, quando lidas agora, com avantagemdotempo,pelalentedeaumentomanchadacomasmarcasescurasdas limpezasétnicas,genocídiose túmuloscoletivos,aspalavrasdeMussetparecemnão terperdidonadadesuaurgênciaedesafio,e tampoucodesuacapacidadedegerarcontrovérsia.Agoracomoentão,elasmiramocoraçãodamissãodoescritoredesafiamsuaconsciênciacomaquestãodecisivaparaaraisond’êtredequalquerescritor.

Umséculoemeiodepois,JuanGoytisolo,provavelmenteomaiorentreosescritores espanhóis vivos, assume uma vez mais a questão. Em entrevistarecente(“LesbataillesdeJuanGoytisolo”,noMonde,de12.2.1999)eledizquequandoaEspanhaaceitou,emnomedapiedadecatólicaesobinfluênciadaInquisição,umanoçãoaltamenterestritivadaidentidadenacional,opaíssetornou,porvoltadofinaldoséculoXVII,um“desertocultural”.Note-sequeGoytisoloescreveemespanhol,masviveumuitosanosemParisenosEUA,antes de fixar-se finalmente no Marrocos. E note-se também que nenhumoutro escritor espanhol tem tantas obras traduzidas para o árabe. Por quê?Goytisolonãoduvidadarazão.Eexplica:“Aintimidadeeadistânciacriamuma situação privilegiada. Ambas são necessárias.” Ainda que por razõesdiferentes, ambas essas qualidades se fazem presentes nas relações deGoytisolo com seu espanhol nativo e com o árabe, o francês e o inglêsadquiridos — as línguas dos países que sucessivamente se tornaram suaspátriassubstitutasescolhidas.

Como Goytisolo passou grande parte de sua vida longe da Espanha, alínguaespanholadeixoudeserparaeleaferramentafamiliardacomunicaçãodiária, mundana e ordinária, sempre à mão e dispensando a reflexão. Suaintimidade com a língua da infância não foi — nem poderia ter sido —afetada,masagoraestácomplementadapeladistância.Alínguaespanholasetornou o “lar autêntico em seu exílio”, um território conhecido e sentido evividodedentroenoentanto—comotambémsetornouremoto—cheiode

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surpresasedescobertas.Esseterritórioíntimo/distanteseprestaaoescrutíniotranqüilo e distante sine ira et studio, pondo a nu as armadilhas e aspossibilidades não-testadas, invisíveis no uso vernacular, mostrando umaplasticidadeinsuspeitada,admitindoeconvidandoàintervençãocriativa.FoiacombinaçãodeintimidadeedistânciaquepermitiuaGoytisoloperceberquea imersãonão-refletidana língua—exatamenteaespéciede imersãoqueoexílio tornaquaseimpossível—écheiadeperigos:“Sevivemosapenasnopresente, arriscamo-nos a desaparecer juntamente com o presente.” Foi oolhar“defora”edistantedesua línguanativaquepermitiuaGoytisolodarum passo além do presente que constantemente se esvai e enriquecer seuespanhol de um modo de outra maneira improvável, talvez de todoinconcebível.Trouxedevoltaàsuaprosaepoesia termosantigos,hámuitocaídosemdesuso,eaofazê-losoprouapoeiraqueoscobria,limpouapátinado tempo e ofereceu às palavras umavitalidadenova e insuspeitada (ouhámuitoesquecida).

Em Contre-allée, livro recentemente publicado em colaboração comCatherineMalabou,JacquesDerridaconvidaseusleitoresapensaremviagem— ou, mais precisamente, a “pensar viajar”. O que quer dizer pensar aatividade única de partir, ir embora de chez soi, ir para longe, para odesconhecido, arriscando todos os riscos, prazeres e perigos que o“desconhecido”oculta(atémesmooriscodenãovoltar).

“Estarlonge”éumaobsessãodeDerrida.Háalgumarazãoparasuporquea ela nasceuquando, em1942, aos 12 anos, Jacques foi expulsoda escola,quereceberadogovernodeVichyaordemdepurificar-sedosalunosjudeus.Assimcomeçouo“exílioperpétuo”deDerrida.Desdeentão,eledividesuavidaentreaFrançaeosEUA.NosEUA,eraumfrancês;naFrança,pormaisquetentasse,vezporoutraosotaqueargelinodesuainfânciairrompiaatravésdesuarefinadaparolefrancesa,traindoopiednoirescondidosobafinapeledo professor da Sorbonne. (Alguns pensam que foi por isso que Derridapassou a exaltar a superioridade da escrita e compôs o mito etiológico daprioridade para sustentar a afirmação axiológica.) Culturalmente, Derridacontinuaria “sem Estado”. Isso não significava não ter uma terra natalcultural.Aocontrário:ser“culturalmentesemEstado”significavatermaisdeumaterranatal,construirumlarpróprionaencruzilhadadasculturas.Derridase tornou e permaneceu um métèque, um híbrido cultural. Seu “lar naencruzilhada”foifeitodalíngua.

Construirumlarnaencruzilhadaculturalfoiamelhordasoportunidadesparasubmeteralínguaaprovascomqueelapoucasvezessedepara,paraversuas qualidades não-percebidas, descobrir do que ela é capaz e quais aspromessasquenãopoderealizar.Desselarnaencruzilhada,paraabrir-nososolhos,veioanotíciadainerentepluralidadeedaindecidibilidadedosentido

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(em L’Écriture et la différence), da impureza das origens (em De lagrammatologie)edaperpétuanão-realizaçãodacomunicação(emLaCartepostale)—comonotouChristianDelacampagnenoMondede12demarçode1999.

AsmensagensdeGoytisoloedeDerridasãodiferentesdadeMusset:nãoéverdade,sugeremoromancistaeofilósofoemuníssono,queagrandeartenãotempátria—aocontrário,aarteeosartistaspodemtermuitaspátrias,eamaioria deles certamente temmais de uma. Em vez de ser sem pátria, osegredo é estar à vontade em muitas pátrias, mas estar em cada uma aomesmotempodentroefora,combinaraintimidadecomavisãocríticadeumestranho,envolvimentocomdistanciamento—oqueaspessoassedentáriasdificilmenteaprendem.Pegarojeitoéaoportunidadedoexílio:tecnicamenteumexílio—queénolugar,masnãodolugar.Aliberdadequeresultadessacondição (que é essa condição) revela que as verdades caseiras são feitas edesfeitas pelo homem e que a língua materna é um fluxo infindável decomunicaçãoentreasgeraçõeseumtesourodemensagenssempremaisricasque quaisquer de suas leituras e sempre à espera de serem novamentereveladas.

George Steiner considerava Samuel Beckett, Jorge Luis Borges eVladimir Nabokov os maiores escritores contemporâneos. O que os une,disse, e o que os fez grandes, é que os três se moviam com a mesmafacilidade — estavam igualmente “à vontade” — em vários universoslingüísticos,enãoemapenasum.(Cabeumlembrete:“universolingüístico”éumpleonasmo:ouniversoemquecadaumdenósviveélingüístico,enãopode ser senão lingüístico— é feito de palavras.As palavras iluminam asilhasdasformasvisíveisnooceanoescurodoinvisívelemarcamosdispersospontosderelevâncianamassainformedainsignificância.Sãoaspalavrasquedividem o mundo em classes de objetos nomeáveis e fazem surgir seuparentesco ou oposição, proximidade ou distância, afinidade ouestranhamento — e enquanto estiverem sozinhas no campo elevam todosessesartefatosaoníveldarealidade,aúnicarealidadequeexiste.)Éprecisoviver, visitar, conhecer intimamente mais de um desses universos paradescobrirainvençãohumanaportrásdaestruturaimpositivaeaparentementeirredutível de qualquer desses universos, e para descobrir quanto esforçoculturalhumanoénecessárioparaadivinharaidéiadanaturezacomsuasleise necessidades; tudo isso é preciso para se reunir, ao final, a audácia e adeterminaçãopara juntar-se,conscientemente, a esse esforço cultural, cientedeseusriscosearmadilhas,mastambémdoilimitadodeseushorizontes.

Criar(e tambémdescobrir)significasemprequebrarumaregra;seguiraregraémerarotina,maisdomesmo—nãoumatodecriação.Paraoexilado,romperregrasnãoéumaquestãodelivreescolha,masumaeventualidadeque

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nãopodeserevitada.Osexiladosnãosabemobastantesobreas regrasquereinamemseupaísdechegada,nemastratamcomsuficientefervorparaqueseusesforçosparaobservá-laseconformar-seaelassejampercebidoscomosérioseaprovados.Emrelaçãoaseupaísdeorigem,apartidaparaoexíliofoiláregistradacomoopecadooriginaldosexilados,àluzdoqualtudooqueelesvenhamafazermaistardepoderáserusadocontraelescomoevidênciadesuaquebradas regras.Poraçãoouomissão,quebraras regrasse tornaamarcaregistradadosexilados.Dificilmenteissoosfaráqueridospelosnativosdospaísespelosquaisfazemseusitinerários.Mas,paradoxalmente,tambémlhes permite trazer para todos os países envolvidos dons de que elesmuitoprecisamequenãopoderiamreceberdeoutrasfontes.

Esclareço. O “exílio” em discussão não é necessariamente um caso demobilidadefísica,corporal.Podeenvolvertrocarumpaísporoutro,masnãoobrigatoriamente. Como disse Christine Brooke-Rose (em seu ensaio“Exsul”), a marca distintiva de todo exílio, e particularmente do exílio doescritor(istoé,oexílioarticuladoempalavraseassimtransformadoemumaexperiência comunicável) é a recusa a ser integrado— a determinação desituar-seforadoespaço,deconstruirumlugarpróprio,diferentedolugaremqueosoutrosàvoltaseinserem,umlugardiferentedoslugaresabandonadose diferente do lugar em que se está. O exílio é definido não em relação aqualquerespaçofísicoparticularouàsoposiçõesentreváriosespaçosfísicos,mas por uma posição autônoma assumida em relação ao espaço como tal.“Emúltimaanálise”,perguntaBrooke-Rose,

cadapoetaouromancista“poético”(explorador,rigoroso)nãoéumaespéciedeexilado,queolhadeforaparadentro,comosolhosdamente,umaimagembrilhanteedesejáveldopequenomundocriado,paraoespaçodoesforçodeescrever e do espaçomais curto do ler? Esse tipo de escrita,muitas vezescontraeditorepúblico,éaúltimaartecriativasolitária,não-socializada.

A resoluta determinação de permanecer “não-socializado” oconsentimento a integrar-se apenas sob a condição de não-integração; aresistência — muitas vezes penosa e agoniante, mas em última análisevitoriosa—àgrandepressãodolugar,tantooantigoquantoonovo;aásperadefesa do direito de julgar e de escolher; a adesão à ambivalência ou ainvocaçãodela—essassão,podemosdizer,ascaracterísticasconstitutivasdo“exilado”.Todaselas—note-se—referem-seaatitudeseestratégiasdevida,àmobilidadeespiritualmaisqueàfísica.

MichelMaffesoli (emDunomadisme:Vagabondages initiatiques,1997)escreve sobre o mundo que todos habitamos nos dias de hoje como um“território flutuante”emque“indivíduosfrágeis”encontramuma“realidadeporosa”.Aesseterritóriosóseadaptamcoisasoupessoasfluidas,ambíguas,

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num estado de permanente transformar-se, num estado constante deautotransgressão.O“enraizamento”,seexistir,sópodeserdinâmico:eledeveserreafirmadoereconstituídodiariamente—precisamentepeloatorepetidode“autodistanciamento”,esseatofundador,iniciático,de“estardeviagem”,na estrada.Depois de comparar a todos nós—os habitantes domundo dehoje—aosnômades,JacquesAttali (emCheminsdesagesse,1996)sugereque, alémdeviajar leves e ser gentis, amigáveis ehospitaleiros em relaçãoaos estranhos que encontram em seu caminho, os nômades devem estarconstantementealertas,lembrandoqueseusacampamentossãovulneráveisenãotêmmurosoufossosqueimpeçamaentradadeintrusos.Acimadetudo,lutando para sobreviver nomundo dos nômades, precisam acostumar-se aoestado de desorientação perpétua, a viajar por estradas de rumo e tamanhodesconhecidos, raramente olhando além da próxima curva ou cruzamento;elesprecisamconcentrar todasuaatençãonopequenotrechodeestradaquetêmquevencerantesdoescurecer.

“Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidadeporosa”,sentem-secomoquepatinandosobregelofino;e“aopatinarsobregelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio “Prudence”,“nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não,precisamdesegurança,anseiamporsegurança,buscamasegurançaeassimtentam, aomáximo, fazer o que fazem com amáxima velocidade. Estandoentrecorredoresrápidos,diminuiravelocidadesignificaserdeixadoparatrás;aopatinaremgelofino,diminuiravelocidadetambémsignificaaameaçarealdeafogar-se.Portanto,avelocidadesobeparaotopodalistadosvaloresdesobrevivência.

Avelocidade,noentanto,nãoépropíciaaopensamento,pelomenosaopensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso,“tomarseutempo”,recapitularospassosjádados,examinardepertoopontoalcançadoea sabedoria (ou imprudência, se forocaso)deo teralcançado.Pensartiranossamentedatarefaemcurso,querequersempreacorridaeamanutençãodavelocidade.Enafaltadopensamento,opatinarsobreogelofinoqueéumafatalidadeparatodososindivíduosfrágeisnarealidadeporosapodeserequivocadamentetomadocomoseudestino.

Tomara fatalidadepordestino,comoinsistiaMaxScheleremsuaOrdoamoris, éumerrograve: “Odestinodohomemnãoéuma fatalidade…Asuposiçãodequefatalidadeedestinosãoamesmacoisamereceserchamadadefatalismo.”Ofatalismoéumerrodojuízo,poisdefatoafatalidade“temumaorigemnaturalebasicamentecompreensível”.Alémdisso,emboranãoseja uma questão de livre escolha, e particularmente de livre escolhaindividual,afatalidade“temorigemnavidadeumhomemoudeumpovo”.Para ver tudo isso, para notar a diferença e a distância entre fatalidade e

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destino,eescaparàarmadilhadofatalismo,sãonecessáriosrecursosdifíceisde obter quando se patina sobre gelo fino: tempo para pensar, edistanciamento para uma visão de conjunto. “A imagemde nosso destino”,adverte Scheler, “só nos abandona quando lhe damos as costas”. Mas ofatalismo é uma atitude que se auto-referenda: faz com que o “voltar ascostas”,essaconditiosinequanondopensamento,pareçainútileindignodesertentado.

Tomardistância,tomartempo—afimdeseparardestinoefatalidade,deemancipar o destino da fatalidade, de torná-lo livre para confrontar afatalidadeedesafiá-la:essaéavocaçãodasociologia.Eéoqueossociólogospodem fazer caso se esforcem consciente, deliberada e honestamente pararefundiravocaçãoaqueatendem—suafatalidade—emseudestino.

“Asociologiaéaresposta.Masqualeraapergunta?”,dizeperguntaUlrichBeck em Politik in der Risikogesellschaft. Algumas páginas antes, Beckpareceraarticularaperguntaqueprocura:apossibilidadedeumademocraciaqueváalémda“especialistocracia”,umaespéciededemocraciaque“começaondeseabreodebateeaformaçãodedecisõessobresequeremosumavidanascondiçõesquenossãoapresentadas…”.

Essa possibilidade émarcada por umponto de interrogação não porquealguémdeliberadaemaldosamentetenhafechadoaportadodebateeproibidoa tomada de decisões bem embasada; a liberdade de falar e reunir-se paradiscutirquestõesdeinteressecomumjamaisfoitãocompletaeincondicionalcomoagora.AquestãoéqueéprecisomaisqueasimplesliberdadeformaldefalareaprovardecisõesparacomeçarseriamenteotipodedemocraciaquenaopiniãodeBeckénosso imperativo.Tambémprecisamossabersobreoquedevemosfalaredoquedevemseocuparasdecisõesquedevemos tomar.Eissoprecisaserfeitonasociedadeemquevivemos,ondeaautoridadedefalaredecidiréreservadaaosespecialistasquedetêmodireitoexclusivodedefiniradiferençaentre realidadee fantasiaedesepararopossíveldo impossível.(Especialistas, podemos dizer, são quase por definição pessoas que “sabemdas coisas”, que as tomam como são e pensam sobre a maneira menosarriscadadevivercomelas.)

PorqueissonãoéfácileprovavelmentenãovaificarmaisfácilamenosquesefaçaalgumacoisaéoqueBeckexplicaemseuRisikogesellschaft:aufdemWegineineandereModerne.Escreve:“Oqueoalimentoéparaafome,aeliminaçãodosriscos,ouainterpretaçãoqueosexclui,éparaaconsciênciado risco.” Numa sociedade pressionada principalmente pela necessidadematerial não havia opção entre “eliminar” a miséria e “interpretá-la comoinexistente”. Em nossa sociedade, mais assombrada pelo risco que pelanecessidade material, a opção existe— e é feita diariamente. A fome não

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podeseraliviadapelanegação;nafome,osofrimentosubjetivoesuascausasobjetivasestão indissoluvelmente ligados,ea ligaçãoéevidenteenãopodeserdesmentida.Masosriscos,aocontráriodanecessidadematerial,nãosãoexperimentadossubjetivamente;pelomenosnãosão“vividos”diretamenteanão ser que sejam mediados pelo conhecimento. Podem nunca chegar aodomínio da experiência subjetiva — podem ser trivializados ouexpressamente negados antes de chegar lá, e a possibilidade de que sejamimpedidosdechegarcrescejuntocomaextensãodosriscos.

Segue-sequea sociologia émais necessáriaquenunca.O trabalho emqueossociólogossãoespecialistas,otrabalhodetrazernovamenteàvistaoeloperdidoentreaafliçãoobjetivaeaexperiênciasubjetiva,setornoumaisvital e indispensável que nunca; e isso precisará da ajuda profissional dossociólogos, porque é cada vez menos provável que possa ser feito pelospraticantesdeoutroscamposdeespecialização.Todososespecialistaslidamcomproblemas práticos e todo conhecimento especializado se dedica à suasolução, e a sociologia é um ramo do conhecimento especializado cujoproblema prático a resolver é o esclarecimento que tem por objetivo acompreensãohumana.Asociologiaétalvezoúnicocampodeespecializaçãoemque(comoobservouPierreBourdieuemLamisèredumonde)a famosadistinção de Dilthey entre explicação e compreensão foi superada ecancelada.

Compreenderaquiloaqueestamosfadadossignificaestarmosconscientesdeque isso é diferente de nosso destino.E compreender aquilo a que estamosfadadoséconheceraredecomplexadecausasqueprovocaramessafatalidadee sua diferença daquele destino. Para operar nomundo (por contraste a ser“operado”porele)éprecisoentendercomoomundoopera.

O tipode esclarecimentoque a sociologia é capazdedar se endereça aindivíduosqueescolhemlivrementeetêmporobjetivoaperfeiçoarereforçarsualiberdadedeescolha.Seuobjetivoimediatoéreabrirocasosupostamentefechadodaexplicaçãoepromoveracompreensão.Aautoformaçãoeaauto-afirmação dos homens e mulheres individuais, condição preliminar de suacapacidadededecidirsequeremotipodevidaquelhesfoiapresentadacomouma fatalidade, é quepodeganhar emvigor, eficácia e racionalidade comoresultado do esclarecimento sociológico. A causa da sociedade autônomapodeganharjuntocomacausadoindivíduoautônomo;elassópodemvencerouperderjuntas.

CitandodeLedélabrementdel’Occident,deCorneliusCastoriadis,

uma sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, éumasociedadequequestionatudooqueépré-determinadoeassimliberaa

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criação de novos significados. Em tal sociedade, todos os indivíduos sãolivres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem (epuderem).

A sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber,quenãohásignificados‘assegurados’,quevivenasuperfíciedocaos,queelaprópriaéumcaosembuscadeforma,masumaformaquenuncaéfixadadeuma vez por todas”. A falta de significados garantidos — de verdadesabsolutas, de normas de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadasentreocertoeoerrado,deregrasdeaçãogarantidas—éaconditiosinequanon de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma eindivíduos verdadeiramente livres; a sociedade autônoma e a liberdade deseusmembrossecondicionammutuamente.Asegurançaqueademocraciaeaindividualidadepodemalcançardependenãodelutarcontraacontingênciaeaincertezadacondiçãohumana,masdereconhecereencarardefrentesuasconseqüências.

Se a sociologia ortodoxa, nascida e desenvolvida sob a égide damodernidade sólida, se preocupava com as condições da obediência econformidadehumanas,aprimeiraocupaçãodasociologia feita sobmedidaparaamodernidadelíquidadeveserapromoçãodaautonomiaedaliberdade;tal sociologia deve enfocar a autoconsciência, a compreensão e aresponsabilidadeindividuais.Paraoshabitantesdasociedademodernaemsuafasesólidaeadministrada,aoposiçãoprincipalsedavaentreconformidadeedesvio; a oposiçãoprincipal da sociedademoderna em sua fase liquefeita edescentrada,aoposiçãoqueprecisaserenfrentadaparapavimentarocaminhopara uma sociedade verdadeiramente autônoma, se dá entre assumir aresponsabilidadeebuscarumabrigoondea responsabilidadepelasprópriasaçõesnãoprecisaserassumidapelosatores.

Esteoutroladodaoposição,buscarabrigo,éumaopçãosedutoraeumaperspectivarealista.AlexisdeTocqueville(nosegundovolumedesuaDeladémocratie en Amérique) observou que se o egoísmo, fantasma queatormentouaespéciehumanaemtodososperíodosdesuahistória,“secaassementesdetodasasvirtudes”,oindividualismo,afliçãonovaetipicamentemoderna,secaapenas“afontedasvirtudespúblicas”os indivíduosafetadosestão ocupados “criando pequenos grupos para seu próprio desfrute” edeixando a “sociedade maior” de lado. Essa tentação cresceuconsideravelmentedesdequeTocquevillefezsuaobservação.

Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida emcompetição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, éperigosoecobraumaltopreçopsicológico.Nãosurpreendequeaatraçãodasegunda resposta, de fugir da escolha responsável, ganhe força. Como dizJulia Kristeva (em Nações sem nacionalismo), “é rara a pessoa que não

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invoca uma proteção primal para compensar a desordem pessoal”. E todosnós, em medida maior ou menor, às vezes mais e às vezes menos, nosencontramosemEstadode“desordempessoal”.Vezporoutra,sonhamoscomuma “grande simplificação” sem aviso, nos envolvemos em fantasiasregressivascujaprincipalinspiraçãosãooúteromaternoeolarprotegidopormuros. A busca de um abrigo primal é o “outro” da responsabilidade,exatamentecomoodesvioea rebeliãoeramo“outro”daconformidade.Oanseioporumabrigoprimalveiohojeasubstituirarebelião,quedeixoudeser uma opção razoável; como diz PierreRosanvallon (em novo prefácio aseuclássicoLecapitalismeutopique),nãohámais“umaautoridadenopoderpara depor e substituir. Parece não havermais espaço para a revolta, comoatestaofatalismodiantedofenômenododesemprego”.

Sinaisdadoençasãoabundantesevisíveis,mas,comorepetidamenteobservaPierre Bourdieu, procuram em vão uma expressão legítima no mundo dapolítica. Sem expressão articulada, precisam ser lidos, obliquamente, nasexplosões da fúria xenófoba e racista — manifestações mais comuns danostalgiadoabrigoprimal.Aalternativadisponívelenãomenospopulardabuscadebodes-expiatóriosedaintolerânciamilitanteneotribais—aretiradadaarenapolíticaeafugaparatrásdosmurosfortificadosdoprivado—nãoémais a estratégia dominante e, acima de tudo, não é mais uma respostaadequadaàfonteverdadeiradaaflição.Eénestepontoqueasociologia,comseu potencial de explicação que promove a compreensão, atinge seu lugarmaisqueemqualqueroutromomentoemsuahistória.

Segundo a antiga e ainda válida tradição hipocrática, como PierreBourdieulembraaosleitoresdeLamisèredumonde,averdadeiramedicinacomeçacomoreconhecimentodadoençainvisível—“fatosdequeodoentenão fala ou esquece de relatar”.O que é preciso no caso da sociologia é a“revelaçãodascausasestruturaisqueossinaisefalasaparentessóevidenciampordistorção[nedévoilentqu’enlesvoilant]”.Éprecisoenxergar—explicare compreender— os sofrimentos característicos de uma ordem social que“semdúvidafezrecuaragrandemiséria(aindaque talvezmenosdoquesedizfreqüentemente),aomesmotempoemquemultiplicavaosespaçossociais…queofereciamcondições favoráveis parao crescimento semprecedentesdetodosostiposdepequenasmisérias”.

Diagnosticarumadoençanãoéomesmoquecurá-la—essaregrageralvaletantoparaosdiagnósticossociológicoscomoparaosmédicos.Masnote-se que a doença da sociedade difere das doenças do corpo num aspectotremendamente importante: no casode umaordem social doente, a falta deum diagnóstico adequado (silenciado pela tendência de “interpretar comoinexistentes” os riscos observada por Ulrich Beck) é parte crucial e talvez

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decisiva da doença. Como bem disse Cornelius Castoriadis, está doente asociedade que deixa de se questionar; e nem poderia ser diferente,considerando que—quer o saiba ou não—a sociedade é autônoma (suasinstituições são feitas por humanos e, portanto, podem ser desfeitas porhumanos),equeasuspensãodoautoquestionamentoimpedeaconsciênciadaautonomiaaomesmo tempoemquepromovea ilusãodeheteronomiacomsuas conseqüências fatalistas inevitáveis. Recomeçar o questionamentosignificadarumgrandepassoparaacura.Domesmomodocomonahistóriadacondiçãohumanaadescobertaequivaleàcriaçãoenopensamentosobreacondiçãohumanaexplicaçãoecompreensãosãoumasócoisa,assimtambém,nos esforços de melhorar a condição humana, diagnóstico e terapia semisturam.

PierreBourdieuexpressouissoperfeitamentenaconclusãoaLamisèredumonde: “Tornar-se consciente dos mecanismos que fazem a vida penosa,mesmo impossíveldeservivida,nãosignificaneutralizá-los; trazerà luzascontradições não significa resolvê-las.”E, no entanto, pormais céticos quepossamosserquantoàeficáciasocialdamensagemsociológica,nãopodemosnegar os efeitos de permitir que aqueles que sofrem descubram apossibilidadede relacionar seus sofrimentosa causas sociais;nempodemosdescartar os efeitos de tornarem-se conscientes da origem social dainfelicidade“emtodasassuasformas,inclusiveasmaisíntimasesecretas”.

Nadaémenosinocente,lembraBourdieu,queolaissez-faire.Observaramiséria humana com equanimidade, aplacando a dor da consciência com oencantamento ritual do credo “não há alternativa”, implica cumplicidade.Quem quer que, por ação ou omissão, participe do acobertamento ou, piorainda, da negação da natureza alterável e contingente, humana e não-inevitável daordem social, notadamentedo tipodeordem responsável pelainfelicidade,éculpadodeimoralidade—derecusarajudaaumapessoaemperigo.

Fazer sociologia e escrever sociologia têm por objetivo revelar apossibilidadedeviveremconjuntodemododiferente,commenosmisériaousemmiséria: essa possibilidade diariamente subtraída, subestimada ou não-percebida.Nãoenxergar,nãoprocurareassimsuprimiressapossibilidadeéparte da miséria humana e fator importante em sua perpetuação. Suarevelação não predetermina sua utilização; quando conhecidas, aspossibilidades também podem não ser submetidas ao teste da realidade,porquetalveznãoconfiemosnelasobastante.Arevelaçãoéocomeçoenãoofim da guerra contra a miséria humana. Mas essa guerra não pode serempreendida seriamente, emenosaindacomumapossibilidadepelomenosparcialdesucesso,amenosqueaescaladaliberdadehumanasejareveladaereconhecida,de talmodoquea liberdadepossa serplenamenteutilizadana

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lutacontraasfontessociaisdetodainfelicidade,inclusiveamaisindividualeprivada.

Não há escolha entre maneiras “engajadas” e “neutras” de fazersociologia.Umasociologiadescomprometidaéumaimpossibilidade.Buscaruma posição moralmente neutra entre as muitas marcas de sociologia hojepraticadas, marcas que vão da declaradamente libertária à francamentecomunitária,éumesforçovão.Ossociólogossópodemnegarouesquecerosefeitos de seu trabalho sobre a “visão demundo”, e o impacto dessa visãosobre as ações humanas singulares ou em conjunto, ao custo de fugir àresponsabilidade de escolha que todo ser humano enfrenta diariamente. Atarefa da sociologia é assegurar que essas escolhas sejam verdadeiramentelivresequeassimcontinuem,cadavezmais,enquantodurarahumanidade.

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NOTAS

Capítulo1—Emancipação

1.HerbertMarcuse,“Liberationfromtheaffluentsociety”,citadoconformeCriticalTheoryandSociety:aReader,StephenEricBronnereDouglasMacKayKellner(orgs.),Londres:Routledge,1989,p.277.

2.DavidConway,ClassicalLiberalism:TheUnvanquishedIdeal,NovaYork:St.Martin’sPress,1955,p.48.

3.CharlesMurray,WhatitMeanstobeaLibertarian:APersonalInterpretation,NovaYork:BroadwayBooks,1997,p.32.VertambémospertinentescomentáriosdeJeffreyFriedmanem“What’swrongwithlibertarianism”,CriticalReview,verão1997,p.407-67.

4.DeSociologieetphilosophie(1924).AquicitadoseguindoatraduçãoemÉmileDurkheim:SelectedWritings,Cambridge:CambridgeUniversityPress,1972,p.115.

5.ErichFromm,FearofFreedom,Londres:Routledge,1960,p.51,67.6.RichardSennett,TheCorrosionofCharacter:ThePersonalConsequencesof

WorkintheNewCapitalism,NovaYork:W.W.Norton&Co.,1998,p.44.7.GilesDeleuzeeFelixGuattari,Anti-Oedipus:CapitalismandSchizophrenia,

trad.RobertHurley,NovaYork:VikingPress,1977,p.42.8.AlainTouraine,“Canwelivetogether,equalanddifferent?”,EuropeanJournal

ofSocialTheory,nov1998,p.177.9.FrankfurtamMain:Suhrkamp,1986.RiskSociety:TowardsaNewModernity,

Londres:Sage,1992.10.Beck,RiskSociety,p.137.11.InUlrichBeck,EcologicalEnlightenment:EssaysonthePoliticsoftheRisk

Society,NovaJersey:HumanityPress,1995,p.40.12.TheodorAdorno,NegativeDialectics,trad.E.B.Ashton,Londres:Routledge,

1973,p.408.13.TheodorAdorno,MinimaMoralia:ReflectionsfromDamagedLife,Londres:

Verso,1974,p.25-6.14.Adorno,NegativeDialectics,p.220.15.Adorno,MinimaMoralia,p.68.16.Adorno,MinimaMoralia,p.33-4.17.TheodorAdornoeMaxHorkheimer,DialecticsofEnlightenment,Londres:

Verso,1986,p.213.18.AdornoeHorkheimer,DialecticsofEnlightenment,p.214-5.19.VictorGourevitcheMichaelS.Roth(orgs.),LeoStraussonTyranny,including

194

theStrauss-KojèveCorrespondence,NovaYork:FreePress,1991,p.212,193,145,205.

Capítulo2—Individualidade

1.NigelThrift,“Theriseofsoftcapitalism”,CulturalValues1/1,abr1997,p.29-57.AquiThriftdesenvolvecriativamenteconceitoscunhadosedefinidosporKenethJowitt,NewWorldDisorder(Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1992),eMichelSerres,Genesis(AnnArbor:TheUniversityofMichiganPress,1995).

2.AlainLipietz,“Thenexttransformation”,inMicheleCangiani(org.),TheMilanoPapers:EssaysinSocietalAlternatives,Montreal:BlackRoseBooks,1996,p.116-7.

3.VerV.I.Lênin,“Ocherednyezadachisovetskoivlasti”,Sokinenia27,fev-jul1918,Moscou:GIPL,1959,p.229-30.

4.DanielCohen,Richessedumonde,pauvretésdesnations,Paris:Flammarion,1997,p.82-3.

5.MaxWeber,TheTheoryofSocialandEconomicOrganization,trad.A.R.HendersoneTalcottParsons,NovaYork:Hodge,1947,p.112-4.

6.GerhardSchulze,“Fromsituationstosubjects:moraldiscourseintransition”,inPekkaSulkunen,JohnHolmwood,HilaryRadnereGerhardSchulze(orgs.),ConstructingtheNewConsumerSociety,NovaYork:Macmillan,1997,p.49.

7.Turo-KimmoLehtonenePasiMäenpää,“ShoppingintheEast-CentralMall”,inPasiFalkeColinCampbell(orgs.),TheShoppingExperience,Londres:Sage,1997,p.161.

8.DavidMiller,ATheoryofShopping,Cambridge:PolityPress,1998,p.141.9.ZbyzkoMelosikeTomaszSzkudlarek,Kultura,TozsamosciDemokracja:

MigotanieZnaczen,Cracóvia:Impuls,1998,p.89.10.MarinaBianchi,TheActiveConsumer:NoveltyandSurpriseinConsumer

Choice,Londres:Routledge,1998,p.6.11.HilaryRadner,“Producingthebody:JaneFondaandthenewpublicfeminine”,

inSulkunenetalii(orgs.),ConstructingtheNewConsumerSociety,p.116,117,122.12.UmcorolárioapropriadoeperspicazdoespantodeTonyBlairaparecenacarta

deDr.SpencerFitz-GibbonaoGuardian:“ÉinteressantequeRobinCooksejaumhomemmauagoraquesuapromiscuidadeextramatrimonialfoirevelada.Noentanto,nãofazmuitotempoeleesteveenvolvidonavendadeequipamentoàditaduranaIndonésia,umregimequemassacrou200milpessoasnoTimorLesteocupado.Seosmeiosdecomunicaçãoeopúblicobritânicossesentissemtãoultrajadosemrelaçãoaogenocídioquantoaosexo,omundoseriaumlugarmuitomaisseguro.”

13.VerMichaelParenti,InventingReality:ThePoliticsoftheMassMedia,NovaYork:St.Martin’sPress,1986,p.65.NaspalavrasdeParenti,amensagemsubjacenteaosmassivoseubíquoscomerciais,oquequerquetentemvender,éque“afimdeviverbemedemaneiraapropriada,osconsumidoresprecisamqueosprodutorescorporativososguiem”.Defato,osprodutorescorporativospodemcontarcomum

195

exércitodeconselheiros,assessorespessoaiseescritoresdelivrosdeauto-ajudaparamartelaramesmamensagemdeincompetênciapessoal.

14.HarvieFerguson,TheLureofDreams:SigmundFreudandtheConstructionofModernity,Londres:Routledge,1996,p.205.

15.HarvieFerguson,“Watchingtheworldgoround:Atriumcultureandthepsychologyofshopping”,inBobShields(org.),LifestyleShopping:TheSubjectofConsumption,Londres:Routledge,1992,p.31.

16.VerIvanIllich,“L’Obsessiondelasantéparfaite”,Lemondediplomatique,mar1999,p.28.

17.CitadodeBarryGlassner,“Fitnessandthepostmodernself”,JournalofHealthandSocialBehaviour30,1989.

18.VerAlbertCamus,TheRebel,trad.AnthonyBower,Londres:Penguin,1971,p.226-7.

19.GillesDeleuzeeFelixGuattari,OedipusComplex:CapitalismandSchizophrenia,trad.RobertHurley,NovaYork:VikingPress,1977,p.5.

20.EfratTseëlon,“Fashion,fantasyandhorror”,Arena12,1998,p.117.21.ChristopherLasch,TheCultureofNarcissism,NovaYork:W.W.Nortonand

Co.,1979,p.97.22.ChristopherLasch,TheMinimalSelf.Londres:PanBooks,1985,p.32,29,34.23.JeremySeabrook,TheLeisureSociety.Oxford:Blackwell,1988,p.183.24.ThomasMathiesen,“Theviewersociety:MichelFoucault’s‘Panopticon’

revisited”,TheoreticalCriminology1/2,1997,p.215-34.25.PaulAtkinsoneDavidSilverman,“Kundera’sImmortality:theinterview

societyandtheinventionoftheself”,QualitativeInquiry3,1997,p.304-25.26.HarvieFerguson,“Glamourandtheendofirony”,TheHedgehogReview,

outono1999,p.10-6.27.JeremySeabrook,TheRaceforRiches:TheHumanCostsofWealth,

Basingstoke:MarshallPikering,1988,p.168-9.28.YvesMichaud,“Desidentitésflexibles”,LeMonde,24.10.1997.

Capítulo3—Tempo/Espaço

1.CitadodeChrisMcGreal,“FortresstowntoriseonCapeoflowhopes”,Guardian,22.1.1999.

2.VerSarahBoseley,“Warningoffakestalkingclaims”,Guardian,1.2.1999,citandoreportagemassinadaporMichelPathé,PaulE.MulleneRosemaryPurcell.

3.SharonZukin,TheCultureofCities,Oxford:Blackwell,1995,p.39,38.4.RichardSennett,TheFallofPublicMan:OntheSocialPsychologyof

Capitalism,NovaYork:VintageBooks,1978,p.39ss.5.Sennett,TheFallofPublicMan,p.264.6.LiisaUusitalo,“Consumptioninpostmodernity”,inMarinaBianchi(org.),The

ActiveConsumer,Londres:Routledge,1998,p.221.

196

7.Turo-KimmoLehtonenePasiMäenpää,“ShoppingintheEast-CentreMall”,inPasiFalkeColinCampbell(orgs.),TheShoppingExperience,Londres:Sage,1997,p.161.

8.MichelFoucault,“Ofotherspaces”,Diacritics1,1986,p.26.9.RichardSennett,TheUsesofDisorder:PersonalIdentityandCityLife,

Londres:Faber&Faber,1996,p.34-6.10.VerStevenFlusty,“Buildingparanoia”,inNanElin(org.),Architectureof

Fear,NovaYork:PrincetonArchitecturalPress,1997,p.48-9.TambémZigmuntBauman,Globalization:TheHumanConsequences,Cambridge:PolityPress,1998,p.20-1.[Ed.bras.:Globalização:asconseqüênciashumanas.RiodeJaneiro:JorgeZaharEditor,1999.]

11.VerMarcAugé,Non-lieux:Introductionàl’anthropologiedelasurmodernité,Paris:Seuil,1992.TambémGeorgesBenko,“Introduction:modernity,postmodernityandsocialsciences”,inGeorgesBenkoeUlfStrohmayer(orgs.),SpaceandSocialTheory:InterpretingModernityandPostmodernity,Oxford:Blackwell,1997,p.23-4.

12.JerzyKociatkiewiczeMonikaKostera,“Theanthropologyofemptyspace”,QualitativeSociology1,1999,p.43,48.

13.Sennett,TheUsesofDisorder,p.194.14.Zukin,TheCultureofCities,p.263.15.Sennett,TheFallofPublicMan,p.260ss.16.Benko,“Introduction”,p.25.17.VerRobShields,“Spacialstressandresistance:socialmeaningsof

spatialization”,inBenkoeStrohmayer(orgs.),SpaceandSocialTheory,p.194.18.MicheldeCerteau,ThePracticeofEverydayLife,Berkeley:Universityof

CaliforniaPress,1984;TimCrosswell,“Imaginingthenomad:mobilityandthepostmodernprimitive”,inSpaceandSocialTheory,p.362-3.

19.VerDanielBell,TheEndofIdeology,Cambridge,Mass.:HarvardUniversityPress,1988,p.230-5.

20.DanielCohen,Richessedumonde,pauvretédesnations,Paris:Flammarion,1997,p.84.

21.NigelThrift,“Theriseofsoftcapitalism”,CulturalValues,abr1997,p.39-40.OsensaiosdeThriftservemparaabrirosolhos,masoconceitode“capitalismomole”utilizadonotítuloeemtodootextopareceumnomeequivocado—eumacaracterizaçãoquelevaaoerro.Nãohánadade“mole”nocapitalismodesoftwaredamodernizaçãoleve.Thriftobservaque“dançar”e“surfar”estãoentreasmelhoresmetáforasparaaproximaranaturezadocapitalismoemsuanovaforma.Asmetáforassãobemescolhidas,poissugeremfaltadepeso,levezaefacilidadedemovimento.Masnãohánadade“mole”nadançaounosurfediários.Dançarinosesurfistas,eespecialmenteosquevivemnapistadosalãodebailelotadoounacostabatidaporaltasondas,precisamserduros,enãomoles.Esãoduros—comopoucosdeseuspredecessores,capazesdeficarparadosoumover-seemtrilhasclaramentemarcadasebemmantidas,jamaisprecisaramser.Ocapitalismosoftwarenãoémenosfirmeeduroqueseuancestralhardware.Elíquidonãoquerdizermole.Bastapensarno

197

dilúvio,numainundaçãoounarupturadeumdique.22.VerGeorgSimmel,“Achapterinthephilosophyofvalue”,inTheConflictin

ModernCultureandOtherEssays,trad.K.PeterEtzkorn,NovaYork:TeachersCollegePress,1968,p.52-4.

23.RelatadoemEileenApplebaumeRosemaryBatt,TheNewAmericanWorkplace,Ithaca:CornellUniversityPress,1993.CitadodeRichardSennett,TheCorrosionofCharacter:ThePersonalConsequencesofWorkintheNewCapitalism,NovaYork:W.W.Norton&Co.,1998,p.50.

24.Sennett,TheCorrosionofCharacter,p.61-2.25.AnthonyFlew,TheLogicofMortality.Oxford:Blackwell,1987,p.3.26.VerMichaelThompson,RubbishTheory:TheCreationandDestructionof

Value,Oxford:OxfordUniversityPress,1979,especialmentep.113-9.27.LeifLewin,“Man,society,andthefailureofpolitics”,CriticalReview,

inverno-primavera1998,p.10.ApassagemcriticadaédoprefáciodeTullockaWilliamC.MitchelleRandyT.Simmons,BeyondPolitics:Markets,Welfare,andtheFailureofBureaucracy,Boulder,Col.:WestviewPress,1994,p.xiii.

28.GuyDebord,CommentsontheSocietyoftheSpectacle,trad.MalcolmImrie,Londres:Verso,1990,p.16,13.

Capítulo4—Trabalho

1.Noprefácio,queescreveunacondiçãodeCoordenadordaComissãoparaoAno2000,aseuTheYear2000,orgs.HermannKahneAnthonyJ.Wiener.AquicitadodeI.F.Clarke,ThePatternofExpectation,1644-2001,Londres:JonathanCape,1979,p.314.

2.PierreBourdieu,Contre-feux:Propôspourserviràlarésistancecontrel’invasionneo-liberale,Paris:Liber,1998,p.97.[Ed.bras.:Contrafogos.Táticasparaenfrentarainvasãoneoliberal,RiodeJaneiro:JorgeZaharEditor,1998]

3.AlainPeyrefitte,Du“miracle”enéconomie:leçonsauCollegedeFrance,Paris:OdileJacob,1998,p.90,113.

4.KenethJowitt,NewWorldDisorder,Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1992,p.306.

5.GuyDebord,CommentsontheSocietyoftheSpectacle,trad.MalcolmImrie,Londres:Verso,1990,p.9.

6.PeterDrucker,TheNewRealities,Londres:Heinemann,1989,p.15,10.7.UlrichBeck,RiskSociety:TowardsaNewModernity,trad.MarkRitter,

Londres:Sage,1992,p.88.8.VerDavidRuelle,Hasardetchaos,Paris:OdileJacob,1991,p.90,113.9.JacquesAttali,Cheminsdesagesse:traitédulabyrinthe,Paris:Fayard,1996,

p.19,60,23.10.VerPaulBairoch,Mythesetparadoxesdel’histoireéconomique,Paris:La

Découverte,1994.

198

11.DanielCohen,Richessedumonde,pauvretésdesnations,Paris:Flammarion,1998,p.31.

12.VerKarlPolanyi,TheGreatTransformation,Boston:BeaconPress,1957,especialmentep.56-7ecap.6.

13.RichardSennett,TheCorrosionofCharacter:ThePersonalConsequencesofWorkintheNewCapitalism,NovaYork:W.W.Norton&Co.,1998,p.23.

14.Sennett,TheCorrosionofCharacter,p.42-3.15.PierreBourdieu(org.),Lamisèredumonde,Paris:Seuil,1993,p.631,628.16.Sennett,TheCorrosionofCharacter,p.24.17.RobertReich,TheWorkofNations,NovaYork:VintageBooks,1991.18.Sennett,TheCorrosionofCharacter,p.50,82.19.Attali,Cheminsdesagesse,p.79-80,109.20.NigelThrift,“Theriseofsoftcapitalism”,CulturalValues,abr1997,p.52.21.PierreBourdieu,Surlatelevision,Paris:Liber,1996,p.85.[Ed.bras.:Sobrea

televisão,RiodeJaneiro:JorgeZaharEditor,1997]22.Bourdieu,Contre-feux,p.95-101.23.AlainPeyrefitte,Lasociétédeconfiance:éssaisurlêsoriginesdu

dévélopment,Paris:OdileJacob,1998,p.514-6.24.Bourdieu,Contre-feux,p.97.25.Attali,Cheminsdesagesse,p.84.

Capítulo5—Comunidade

1.PhilippeCohen,Protégeroudisparaître:leselitesfaceàlamontéedesinsecurités,Paris:Gallimard,1999,p.7-9.

2.EricHobsbawm,TheAgeofExtremes,Londres:MichaelJoseph,1994,p.428.3.EricHobsbawm,“Thecultofidentitypolitics”,NewLeftReview217,1998,

p.40.4.JockYoung,TheExclusiveSociety,Londres:Sage,1999,p.164.5.Young,TheExclusiveSociety,p.165.6.LeszekKolakowski,“Zlewa,zprawa”,Mojeslusznepogladynawszystko,

Cracóvia:Znak,1999,p.321-7.7.VerBernardYack,“Canpatriotismsaveusfromnationalism?Rejoinderto

Virioli”,CriticalReview12/1-2,1998,p.203-6.8.VerBernardCrick,“Meditationondemocracy,politics,andcitizenship”,

manuscritoinédito.9.AlainTouraine,“Canwelivetogether,equalanddifferent?”,EuropeanJournal

ofSocialTheory2/1998,p.177.10.RichardSennett,TheCorrosionofCharacter:ThePersonalConsequencesof

WorkintheNewCapitalism,Londres:W.W.Norton,1998,p.138.11.VerJean-PaulBessetePascaleKrémer,“Lenouvelattraitpourlesrésidences

199

‘sécurisées’”,LeMonde,15.5.1999,p.10.12.RichardSennett,“Themithofpurifiedcommunity”,TheUsesofDisorder:

PersonalIdentityandCityStyle,Londres:Faber&Faber,1996,p.36,39.13.CitadodeAnthonyGiddens(org.),ÉmileDurkheim:SelectedWritings,

Cambridge:CambridgeUniversityPress,1972,p.94,115.14.VerJimMacLaughlin,“Nation-building,socialclosureandanti-traveller

racisminIreland”,Sociology,fev1999,p.129-51.TambémparaacitaçãodeFriedrichRabel.

15.VerJeanClair,“DeGuernicaàBelgrade”,LeMonde,21.5.1999,p.16.16.Newsweek,21.6.1999.17.VerChrisBird,“SerbsfleeKosovorevengeattacks”,Guardian,17.7.1999.18.VerDanielVernet,“LesBalkansfaceaurisqued’unetourmentesansfin”,Le

Monde,15.5.1999,p.18.19.Vernet,“LesBalkansfaceaurisqued’unetourmentesansfin”.20.EricHobsbawm,“Thenationandglobalization”,Constellations,mar1998,

p.4-5.21.RenéGirard,Laviolenceetlesacré,Paris:Grasset,1972.Aquicitadona

traduçãoinglesadePatrickGregory,ViolenceandtheSacred,Baltimore:JohnsHopkinsUniversityPress,1979,p.8,12,13.

22.ArneJohanVetlesen,“Genocide:acasefortheresponsibilityofthebystander”,jul1998(manuscrito).

23.ArneJohanVetlesen,“Yugoslavia,genocideandmodernity”,jan1999(manuscrito).

Posfácio

1.EsteensaiofoipublicadopelaprimeiravezemTheory,CultureandSociety,2000,1.

200

ÍNDICEREMISSIVO

adiamentodasatisfação,1-2Adorno,TheodorW.,1,2,3-4Agar,HerbertSebastian,1aptidãoversussaúde,1-2Arendt,Hannah,1Aristóteles,1,2Arnold,Matthew,1Atkinson,Paul,1Attali,Jacques,1-2,3,4,5-6ausentes,senhores,1-2autoridade(napolítica-vida),1-2,3-4

Bacon,Francis,1Bairoc,Paul,1Bakhtin,Mikhail,1Barth,Frederick,1Bateson,Gregory,1,2-3Beattie,Melody,1Beck,Ulrich,1,2,3,4,5,6-7,8-9,10Beck-Gernsheim,Elisabeth,1Bell,Daniel,1,2Benjamin,Walter,1,2Benko,George,1,2-3Bentham,Jeremy,1,2,3-4Berlin,Isaiah,1,2Bianchi,Marina,1Bierce,Ambrose,1Blair,Tony,1boasociedade,1,2,3,4,5-6Boorstin,DanielJ.,1Bourdieu,Pierre,1,2,3,4,5,6,7,8,9,10-11Brook-Rose,Christine,1Buñuel,Luis,1

201

burocracia,1-2,3-4Butler,Samuel,1

Calvino,Italo,1Camus,Albert,1capitalismopesadoversuscapitalismoleve,1,2-3,4-5,6-7,8,9,10-11Carlyle,Thomas,1Castoriadis,Cornelius,1,2,3causacomum,1-2,3Certeau,Michelde,1cidadania,1-2,3-4civilidade,1-2,3Clair,Jean,1Cohen,Daniel,1,2-3,4Cohen,Phil,1Cohen,Philippe,1compras,1-2,3-4,5-6comunidadepostulada,1-2comunidade,1,2,3-4comunidadesnômadesversuscomunidadessedentárias,1,2-3,4-5comunismo,1comunitarismo,1,2-3,4-5,6-7,8confiança,1,2,3-4conquistaterritorial,1-2consumismo,1-2,3-4,5-6,7,8Conway,David,1corpoecomunidade,1-2Coser,Lewis,1Crick,Bernard,1Crosswell,Tim,1Crozier,Michel,1,2,3culturadecassino,1

Davis,Mike,1Debord,Guy,1,2Delacampagne,Christian,1Deleuze,Giles,1,2,3dependênciamútua,1,2-3,4-5,6-7Derrida,Jacques,1-2

202

desacomodação,1-2,3,4Descartes,René,1,2desejoversusquerer,1-2,3-4desencontro,1desengajamento,1,2-3,4,5-6,7-8,9,10-11,12desregulamentação,1-2,3-4,5-6,7Diderot,Denis,1-2direitoshumanos,1Drucker,Peter,1,2,3Durkheim,Émile,1,2,3-4

Elias,Norbert,1-2,3Emerson,RalphWaldo,1Engels,Friedrich,1espaçopúblico,1,2,3-4Estadodebem-estar,1Estado-nação,1-2,3-4,5-6estamentosversusclasses,1,2-3estéticadoconsumo,1-2estrangeiros,1-2exércitoreservadetrabalho,1exílio,1-2exterritorialidadedepoder,1,2,3

Ferguson,Harvie,1-2,3Feuchtwanger,Lion,1Flew,Anthony,1flexibilidadedotrabalho,1-2fluidezdoslaços,1-2,3-4Flusty,Steven,1fluxodepoder,1-2,3Fonda,Jane,1-2Ford,Henry,1,2,3-4,5-6fordismo,1,2-3,4,5-6,7Foucault,Michel,1,2,3,4Franklin,Benjamin,1Freud,Sigmund,1,2Fromm,Erich,1

203

Gates,Bill,1Giddens,Anthony,1,2,3,4-5Girard,René,1Glassner,Barry,1Goytisolo,Juan,1-2Gramsci,Antonio,1GrandeIrmão,1,2,3Granowetter,Mark,1Grotius,Hugo,1Guattari,Felix,1,2,3guerra,1-2,3-4

Habermas,Jürgen,1Hazeldon,George,1-2,3Hobbes,Thomas,1,2Hobsbawm,Eric,1-2,3Horkheimer,Max,1,2,3Huxley,Aldous,1-2,3,4,5

IbnKhaldoun,1identidade,1-2,3-4,5-6,7-8,9,10-11Illich,Ivan,1imortalidade,1-2individualização,1-2,3,4,5,6-7indivíduodejureedefacto,1-2,3-4,5,6-7

Jelyazkova,Antonina,1-2Jowitt,Kenneth,1

Kant,Immanuel,1,2Kennedy,JohnFitzgerald,1Kissinger,Henry,1-2Kociatkiewicz,Jerzy,1Kojève,Alexander,1-2Kostera,Monika,1Kolakowsi,Leszek,1Kristeva,Julia,1-2Kundera,Milan,1

Lasch,Christopher,1-2

204

Lênin,Vladimir,1Lessing,Ephraim,1-2Lévi-Strauss,Claude,1,2,3Lewin,Leif,1-2liberdade,1-2,3-4,5,6,7-8,9,10-11,12,13-14,15,16,17líderesversusexemplos,1-2,3-4limpezaétnicaversusHolocausto,1-2Lipietz,Alan,1Luhmann,Niklas,1Luttwak,EdwardN.,1-2Lyotard,François,1

MacLaughlin,Jim,1,2Maffesoli,Michel,1Man,Henride,1Marcuse,Herbert,1,2Marx,Karl,1-2,3,4-5Mathiesen,Thomas,1-2Melosik,Zbyszko,1Michaus,Yves,1Mills,JohnStuart,1Mills,WrightC.,1modelorepublicano,1modernização,1-2,3-4,5-6Murray,Charles,1Musset,Alfredde,1-2

Nietzsche,Friedrich,1

O’Neill,John,1Offe,Claus,1-2,3-4Orwell,George,1-2,3-4,5,6

Panóptico,1-2,3,4-5Parenti,Michael,1Paterson,Orlando,1patriotismoversusnacionalismo,1-2Peyrefitte,Alain,1,2Platão,1-2,3Polanyi,Karl,1,2

205

política-vida,1,2-3,4,5-6,7,8-9“precarização”,1-2programasdeentrevista,1-2,3progresso,1-2

racionalidadeporreferênciaavalores,1-2Ratzel,Friedrich,1Reich,Robert,1,2revolução,1-2risco,1,2-3Ritzer,Geroge,1,2,3Roman,Joël,1Rosanvallon,Pierre,1rotinização,1-2,3-4,5-6Ruelle,David,1Rutherford,Jonathan,1

SantoAgostinho,1Scheler,Max,1Schields,Rob,1Schopenhauer,Arthur,1Schulze,Gerhard,1Schütz,Alfred,1Seabrook,Jeremy,1,2-3segurança,1-2Sennett,Richard,1,2,3,4,5-6,7,8,9-10,11-12,13,14-15Sidgwick,Henry,1-2Silverman,David,1Skácel,Jan,1Steiner,George,1,2Strauss,Leo,1,2,3-4Szkudlarek,Tomasz,1

Taylor,Frederic,1teoriacrítica,1-2,3-4,5,6-7Thompson,E.P.,1Thompson,Michael,1Thrift,Nigel,1,2,3Tocqueville,Alexisde,1,2,3,4

206

Tönnies,Ferdinand,1totalitarismo,1-2Touraine,Alain,1,2trabalhoético,1Tullock,Gordon,1Tusa,John,1

Uusitalo,Liisa,1

Valéry,Paul,1Vernet,Daniel,1Vetlesen,ArneJohan,1Viroli,Maurizio,1

Walpole,Horace,1Weber,Max,1,2,3,4-5,6,7,8,9,10Williams,Raymond,1Wittgenstein,Ludwig,1,2WoodyAllen,1,2

Yack,Bernard,1Young,Jock,1-2

Zukin,Sharon,1,2

207

Títulooriginal:LiquidModernity

Traduçãoautorizadadaediçãoinglesapublicadaem2000porPolityPress,

deOxford,Inglaterra

Copyright©2000,ZygmuntBauman

Copyrightdaediçãoemlínguaportuguesa©2001:JorgeZaharEditorLtda.

ruaMarquêsdeSãoVicente99,1ºandar22451-041RiodeJaneiro,RJ

tel.:(21)2529-4750/fax:(21)[email protected]

Todososdireitosreservados.Areproduçãonão-autorizadadestapublicação,notodo

ouemparte,constituiviolaçãodedireitosautorais.(Lei9.610/98)

Capa:CarolSáeSérgioCampante

Ediçãoeletrônica:julho2011

ISBN:978-85-378-0772-9

ArquivoePubproduzidopelaSimplíssimoLivros

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Índice

Sumário 4Prefácio:SerLeveeLíquido 5Capítulo1.Emancipação 18Asbênçãosmistasdaliberdade 19Ascasualidadeseasortecambiantesdacrítica 24Oindivíduoemcombatecomocidadão 30Ocompromissodateoriacríticanasociedadedosindivíduos 37Ateoriacríticarevisitada 40Acríticadapolítica-vida 46

Capítulo2.Individualidade 50Capitalismo—pesadoeleve 51Tenhocarro,possoviajar 55Paredemedizer;mostre-me! 59Acompulsãotransformadaemvício 66Ocorpodoconsumidor 70Comprarcomoritualdeexorcismo 74Livreparacomprar—ouassimparece 75Separados,compramos 81

Capítulo3.Tempo/Espaço 84Quandoestranhosseencontram 87Lugaresêmicos,lugaresfágicos,não-lugares,espaçosvazios 90Nãofalecomestranhos 95Amodernidadecomohistóriadotempo 100Damodernidadepesadaàmodernidadeleve 103Asedutoralevezadoser 107Vidainstantânea 112

Capítulo4.Trabalho 118Progressoefénahistória 119Ascensãoequedadotrabalho 126Docasamentoàcoabitação 133Digressão:brevehistóriadaprocrastinação 140Oslaçoshumanosnomundofluido 144

209

Aautoperpetuaçãodafaltadeconfiança 149Capítulo5.Comunidade 151Nacionalismo,marco2 155Unidade—pelasemelhançaoupeladiferença? 158Segurançaaumcertopreço 162DepoisdoEstadonação 165Preencherovazio 171Cloakroomcommunities 177

Posfácio:Escrever;EscreverSociologia 181Notas 194Índiceremissivo 201Copyright 208

210