XV ENDIPE
SIMPÓSIO: NOVAS PERSPECTIVAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Silvia Helena Vieira CruzFaculdade de Educação - UFC
RESUMO
O presente trabalho parte da posição de que, como já apontaram vários autores (Cruz, 1995 e Machado, 1998, por exemplo) a formação do professor de Educação Infantil é uma condição para a qualidade do seu trabalho. Ao mesmo tempo, considera que a professor que atua nessa área precisa desenvolver uma profissionalidade específica que inclui aliar educação e cuidado das crianças e estabelecer uma relação próxima com as suas famílias. Tece algumas considerações acerca dos conteúdos e estratégias a ser utilizados em cursos de formação inicial no sentido de enfrentar os grandes desafios envolvidos nesse processo de ampliar conhecimentos, desenvolver habilidades e repensar valores e atitudes relativos à criança, infância e Educação Infantil. A formação continuada é considerada necessária, especialmente tendo em vista as lacunas históricas da formação inicial, mas são apontados alguns problemas que têm sido detectados nos modelos adotados. Como uma possibilidade a ser considerada, é apresentada de forma sintética a abordagem denominada formação em contexto, a qual tem como base as necessidades sentidas pelos profissionais e tem se mostrado bastante adequada para aprimorar a capacidade de reflexão e mudança das práticas dos docentes, tomando-os como parceiros do processo de formação. O trabalho conclui com alguns comentários acerca de iniciativas do MEC no campo da formação de professores. Foca especialmente as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (CNE/CP Nº 5/2005), ressaltando os avanços desse documento em relação ao que vem sendo acumulado na área da Educação Infantil, mas apontando também a necessidade de considerar melhor o aspecto das interações, o que é mais evidente quando se trata da educação de crianças pequenas.
PALAVRAS-CHAVE: formação de professores para Educação Infantil, qualidade na Educação Infantil, prática pedagógica na Educação Infantil, criança de zero a cinco anos
Introdução
Várias pesquisas ressaltam a grande possibilidade de ganhos importantes para o
bem estar, aprendizagens e desenvolvimento das crianças de 0 a 5 anos decorrentes da
sua inserção na Educação Infantil. No entanto, sabe-se também que tais ganhos
dependem diretamente da qualidade das experiências vividas nas creches e pré-escolas.
As discussões em torno do que consiste a qualidade na Educação Infantil tendem
a estar sempre abertas a novas concepções e perspectivas, partindo da percepção de
qualidade como um conceito subjetivo, valorativo, relativo e dinâmico, contextualizado,
que precisa ser definido num processo participativo e democrático (Oliveira-
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Formosinho, 2001; Dahlberg, Moss e Pence, 2004). Entretanto, é consenso entre os
vários autores que a qualidade do trabalho com a criança é intrinsecamente vinculada à
formação e a qualificação do profissional da área. Como Machado (1998) afirma,
a associação entre qualidade do atendimento, qualidade das interações adulto-criança e formação profissional é um uníssono nas diferentes fontes consultadas, seja quando pretende-se delimitar o próprio conceito de qualidade (Balleyguier, 1992; Ghedini, 1992, Howes et al., 1992a; Pierrehumbert, 1992), seja para verificar os efeitos da permanência em instituições coletivas no desenvolvimento das crianças (Clarke-Stewart, 1992; Howes et al., 1992b; Palmérus, 1992a e b; Andersson, 1992; Melluish et al., 1992; Balleyguier et al., 1992), seja para justificar políticas educacionais (Campos, 1997).
Deste modo, se quisermos melhorar a qualidade da educação oferecida às
crianças pequenas temos que, necessariamente, nos comprometer com a qualidade da
formação dos seus professores (Hollanda e Cruz, 2004).
A formação do professor é um instrumento de valorização do trabalho e de
realização pessoal e profissional. Se isso é verdadeiro para todas as áreas de atuação do
professor, torna-se mais evidente para a Educação Infantil, uma vez que esta área ainda
está construindo a sua identidade. Essa identidade inclui um maior âmbito de
responsabilidades (cuidado e educação abrangendo a criança como um todo e uma
maior interação com as famílias) e, ao mesmo tempo, precisa se firmar como a de um
profissional da educação. Isso significa que o professor que atua na Educação Infantil
precisa construir uma profissionalidadei específica relativa a aspectos diferenciadores do
papel de professoras de crianças pequenas.
Legalmente, é exigido que o professor tenha concluído pelo menos o ensino
médio, na modalidade magistério, sendo considerada mais apropriada a formação em
nível superior (Artigo 62 da LDB, ratificado por vários outros documentos). O Plano
Nacional de Educação (PNE/2001) tinha como uma de seus objetivos e metas relativos
à Educação Infantil que, em cinco anos a partir da sua promulgação, todos os
professores tivessem habilitação específica de nível médio e, em dez anos, 70%
tivessem formação específica de nível superior. Sabe-se, no entanto, que ainda há um
número significativo de professores atuando em creches e pré-escolas (inclusive
públicas ou conveniadas com o poder público) que não atendem a esses requisitos
mínimos: de acordo com o Censo de 2007, 17,8% dos professores que atuam em
creches e 13,1% dos que trabalham nas pré-escolas não têm a formação requerida pela
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legislação. A quantidade de professores atendidos pelo Programa de Formação Inicial
para Professores em Exercício na Educação Infantil - PROINFANTIL (programa
emergencial do MEC para proporcionar a habilitação mínima necessária para a prática
profissional na Educação Infantil) expressa essa situação: já foram formados perto de
5.900 e atualmente cursam esse Programa cerca de 12.000 profissionais.
É importante destacar que, embora esses chamados professores leigos atuem
em todas as regiões do país e tanto com turmas de creche como de pré-escola, o baixo
nível de formação dos profissionais é mais acentuado nas regiões mais pobres, como é o
caso do Norte e Nordeste, e nas creches (especialmente as conveniadas ou
comunitárias). Como apontam Petralanda e Cruz (2004), esta pouca qualificação do
professor de Educação Infantil está também relacionada à sua desvalorização
profissional, que, por sua vez, reflete concepções e preconceitos ainda presentes na
realidade brasileira. Dentre eles, resiste a idéia de que basta gostar de crianças para
cuidar delas, o que leva à aceitação de mulheres com pouca ou nenhuma formação
profissional e, conseqüentemente, com baixa remuneração salarial. Tais idéias e práticas
parecem associadas à faixa etária atendida:
Por serem profissionais que trabalham com alunos muito pequenos, o prestígio e salário das professoras da pré-escola costumam ser mais baixos do que o de professores que se ocupam de outras faixas etárias: quanto menor a criança, menor o status de seu educador. (Campos, 1994).
Vale apontar que tanto a baixa qualificação como do desprestígio do professor
de Educação Infantil requerem uma análise mais aprofundada de caráter histórico,
cultural e social dos modelos de Educação Infantil que vem sendo construídos ao longo
da história educacional do Brasil, bem como do papel e da função social deste
profissional em cada contexto sócio-econômico e político vigente, o que aqui não será
possível.
Por outro lado, sabe-se que há uma grande diferença entre titulação e formação.
Muitas vezes o diploma, seja de nível médio como de nível superior não traduz,
necessariamente, a aquisição de conhecimentos e habilidades necessários para a
docência nessa etapa da educação. Tal fato decorre desses cursos em geral serem
voltados para a educação de crianças de seis a dez/onze anos das séries iniciais do
Ensino Fundamental e de não incorporarem temas e dimensões que, necessariamente,
integram o trabalho educativo com crianças menores, especialmente as que frequentam
as creches em período integral.
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E isso acontece apesar da legislação educacional posterior à LDB sobre a
formação de professores incluir vários pareceres e resoluções do Conselho Nacional de
Educação (CNE) contendo diretrizes e normas referentes à formação dos professores
para a Educação Infantil. De acordo com Barreto (2005)
Coerente com o princípio da LDB (Art. 61) de que a formação de profissionais da educação deve atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desenvolvimento do educando, as resoluções do CNE enfatizam que as propostas pedagógicas dos cursos de formação devem contemplar as especificidades de cada etapa e modalidade de ensino.
Podemos nos perguntar: quantos cursos de Pedagogia que supostamente formam
professores para atuar em creches e pré-escolas consideram, em seus programas, as
Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil (antes Resolução CNE/CEB nº1,
de 1999, e atualmente Resolução CNE/CEB, de 2009)?
Desafios na formação inicial de professores para a Educação Infantil
A profissionalidade específica dos docentes que atuam na Educação Infantil é
decorrência do objetivo desta etapa da educação e das características das crianças que a
freqüentam. Vale lembrar, portanto, que a LDB, no seu artigo 29, dispõe que “A
educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o
desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade em seus aspectos físico,
psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da sociedade.” É
importante notar que é enfatizado o desenvolvimento, não a aprendizagem; as
aprendizagens necessárias são aquelas que atendem e favorecem o desenvolvimento.
Além disso, a referência é ao desenvolvimento integral da pessoa. É possível concluir,
portanto, que o foco é a criança e o seu desenvolvimento, não determinados conteúdos
(a não existência, em nosso país, de um currículo mínimo obrigatório para essa etapa da
educação reforça essa opção). Por outro lado, como destaca Oliveira-Formosinho (2001)
a globalidade do seu desenvolvimento, a vulnerabilidade e a dependência da família,
características da criança pequena, precisam ser consideradas quando se pensa sobre o
trabalho educativo adequado na Educação Infantil.
iNotas? Segundo Katz (1993, apud Oliveira Formosinho e Formosinho, 2001), o conceito de
profissionalidade, “diz respeito ao crescimento em especificidade, racionalidade e eficácia dos conhecimentos, competências sentimentos e disposições para aprender ligados ao exercício profissional dos educadores de infância”.
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Conforme essa autora, a criança pequena aprende de forma globalizada, e não
compartimentada. Ela desenvolve-se nos níveis físico, cognitivo, afetivo e social de
maneira holística, como um todo integrado, a partir das suas interações sociais. Outra
característica da criança pequena que também tem decorrências no papel de professor de
Educação Infantil, refere-se à sua vulnerabilidade: apesar de possuir desde bem pequena
muitas competências, a criança, especialmente na creche, é bastante dependente do
adulto, necessitando de cuidados físicos e psicológicos constantes, como alicerce para o
seu desenvolvimento. O seu professor assume, portanto a responsabilidade pelo
conjunto total das suas necessidades, possuindo tanto uma função pedagógica como de
cuidados (que são referentes a todos os aspectos, não apenas à alimentação, higiene ou
prevenção de acidentes, como comumente é considerado), que devem estar articuladas e
interligadas.
Dessa forma, a prática pedagógica do professor de crianças de zero a cinco anos
inclui, entre outras coisas: aliar cuidado e educação; planejar experiências
diversificadas, que atendam aos vários aspectos do desenvolvimento infantil;
estabelecer e manter uma relação cooperativa e amistosa com as famílias; aprender a ser
parceiro do desenvolvimento infantil, estimulando-o, mas não o apressando; abordar as
diferentes áreas de conhecimento de maneira integrada; vincular a aquisição de novos
conhecimentos e habilidades pelas crianças aos seus reais desejos e necessidades,
promovendo uma verdadeira aprendizagem significativa; dar atenção individualizada às
crianças; dar atenção privilegiada aos aspectos emocionais, especialmente durante o
período de adaptação à creche ou pré-escola; dar oportunidade e estímulo para a criança
expressar os seus sentimentos, desenvolver a sua autonomia, a sua curiosidade,
imaginação, capacidade de expressão e autonomia, ajudando-a a desenvolver a sua
identidade cultural, racial e religiosa.
Para preparar o futuro professor a desenvolver essa prática, a formação inicial
em nível médio e, preferencialmente, no curso de Pedagogia precisa enfrentar grandes
desafios. Entre estes, merecem maior destaque a formação específica, com conteúdos
voltados para a prática docente na área e a inclusão de temas relativos à Educação
Infantil nas demais disciplinas do curso.
A formação inicial deveria não só promover informações e desenvolver
habilidades necessárias, mas também trabalhar (no sentido de incrementar ou modificar)
atitudes e valores implicados no trabalho realizado junto às crianças e suas famílias
(CRUZ, 1996).
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As informações deveriam permitir repensar, sistematizar, situar, ampliar e
enriquecer dois grandes conjuntos de informações, intimamente relacionados:
1. As referentes às características do desenvolvimento e da aprendizagem infantil,
focalizando a criança concreta, localizada histórica e socioculturalmente, que são
imprescindíveis para o educador observar e entender as suas crianças, propor e
acompanhar atividades com elas;
2. As relacionadas à creche e à pré-escola e ao trabalho educativo a ser desenvolvido
junto às crianças e suas famílias, fundamentais para que o profissional possa
desenvolver bem o seu trabalho, contextualizá-lo e posicionar-se diante dos problemas
que a área enfrenta:
- A constituição histórica da infância e da educação infantil;
- As políticas de Educação Infantil;
- A identidade profissional e o trabalho docente na educação infantil (por
exemplo, temas relativos à educação/cuidado de crianças pequenas em contextos
educacionais, à gestão e divisão social do trabalho nas instituições de educação
infantil, à relação com a família e com a comunidade)
- O currículo na Educação Infantil, que poderia tratar dos fundamentos históricos,
culturais e sociais do currículo dessa etapa da educação; modelos e abordagens
curriculares de Educação Infantil; as decorrências das Diretrizes curriculares nacionais
da Educação Infantil para a prática pedagógica; conhecimentos, saberes e práticas
culturais na educação infantil; a organização do trabalho pedagógico; a aprendizagem
das práticas sociais, construção e ampliação do conhecimento pela criança nas creches
e pré-escolas (conhecimento sobre o mundo social e a natureza; conhecimento
matemático; jogos e brincadeiras no cotidiano da Educação Infantil; as artes visuais e
cênicas, a música e o movimento nos processos de formação estética na construção da
identidade das crianças; cultura escrita, letramento e literatura infantil na creche e pré-
escola; projetos de trabalho na Educação Infantil); e a inclusão de crianças com
deficiências físicas, intelectual ou sensorial, com transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades/superdotação; alteridade e as relações de gênero,
étnico-raciais e geracionais na Educação Infantilii.
Por outro lado, não se pode minimizar a importância do desenvolvimento de
habilidades e competências necessárias para instrumentalizar o educador para um
ii Tais conteúdos foram contemplados no Curso de especialização Curso de Especialização em Educação Infantil do MEC, elaborado por um grupo de especialistas da área, do qual a autora participou.
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trabalho mais rico, prazeroso e efetivo. Daí a necessidade de incluir nos cursos de
formação vivências que estimulem a sua sensibilidade, propiciem experiências
inusitadas e desafiadoras, levem à aquisição de técnicas expressivas, à confecção e à
utilização de novos materiais didáticos etc. Tais vivências constituem-se em momentos
privilegiados para a articulação das percepções e sentimentos despertados nessa prática
com os aspectos teóricos estudados.
Além disso, é necessário ainda trabalhar/interferir nas atitudes e opiniões do
educador acerca da criança (especialmente da criança pobre) e da sua família,
propiciando a emergência de atitudes e opiniões positivas, que incluam a crença na
capacidade da criança aprender, o respeito pelos costumes e valores das suas famílias.
Tais atitudes e opiniões são determinantes para um trabalho que realmente contribua
para o desenvolvimento mais completo e mais rico da criança, portanto, para que a
Educação Infantil tenha maior qualidade. Merece destaque a construção, pelos futuros
professores, de um olhar e de uma escuta sensíveis para captar e compreender as
crianças, lembrando que a observação e a escuta das crianças deve ser referência para a
prática pedagógica com bebês e crianças pequenas. Trata-se de uma tarefa difícil, uma
vez que muitas vezes representa uma mudança radical na postura corrente acerca da
criança, mas que precisa ser enfrentada, pois é fácil constatar nas creches e pré-escolas a
permanência de concepções de crianças como pouco competentes, dependentes do
desejo do adulto e, claro, sem direito à voz. Tais concepções, muitas vezes difusas e
pouco conscientes, marcam as decisões tomadas, as relações estabelecidas com as
crianças, a prática pedagógica.
O fato das formações oferecidas via de regra não incluírem um trabalho mais
sistemático, intencionalmente planejado e permanentemente avaliado, voltado para as
atitudes e valores dos futuros professores, provavelmente seja um dos motivos para a
pouca influência que têm tido na qualidade das práticas desenvolvidas.
Outro problema que precisa ser melhor equacionado é o fato das demais
disciplinas que compõem o currículo do curso de Pedagogia ainda não incluírem em
seus programas conteúdos relativos à Educação Infantil. A título de exemplo, as
disciplinas que tratam da História da Educação e de Política da Educação não
contemplam discussões acerca da constituição histórica da infância e da Educação
Infantil e das políticas para a infância e para essa etapa da educação. Isso tem várias
decorrências negativas, como a necessidade das disciplinas da área de Educação Infantil
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precisar dar conta de todos esses temas não tratados e, principalmente, não favorecer ao
aluno em formação uma visão da Educação Infantil como parte da educação.
A formação continuada: necessária e pouco efetiva
Considerando que atualmente há lacunas importantes na formação inicial que
historicamente foi oferecida aos pedagogos, o processo contínuo de formação dos
professores que atuam na Educação Infantil é imprescindível para melhorar o trabalho
desses profissionais. No entanto, muitas vezes os cursos de formação continuada
oferecidos não tem se traduzido em uma melhoria substantiva do fazer docente.
Infelizmente, os modelos tradicionais dos cursos de formação comumente são
voltados para a capacitação e reciclagem de curta duração, são geralmente esporádicos,
concebidos à margem das situações cotidianas do trabalho dos educadores, tendo como
objetivo primordial o repasse dos programas e das reformas educativas estabelecidas
pelas instâncias superiores de educação do governo (Nascimento, 1997a). Pautam-se
numa dicotomia entre formação e trabalho, estabelecendo uma relação hierarquizada
entre os detentores do conhecimento, os planejadores e, portanto, formadores e os
desinformados e carentes de conhecimentos (Kramer, 1989; Fernandes, 2000).
Em se tratando de formação voltada para profissionais que já atuam na área, é
imprescindível que os temas tratados tenham estreita relação com a prática dos
professores. Nesse sentido é necessário esclarecer que a defesa da escola enquanto local
a ser privilegiado para a formação, não significa, como alerta Oliveira-Formosinho
(2001), que a formação deva ser barricada na escola, isto é, encerrada fisicamente nas
suas paredes, mas sim que deve partir das demandas apresentadas pelos professores a
partir da sua prática. Além disso, a formação precisa ter como referência fundamental o
saber docente, o reconhecimento e valorização do que o professor acumulou na sua
vivência pessoal e profissional – o que é importante para que ele também reconheça e
valorize o conhecimento da criança.
Por outro lado, esse processo de desenvolvimento, que é pessoal e profissional,
não pode ser centrado nos professores, mas realizado a partir deles, “centrado nas
necessidades daqueles a quem os professores servem – as crianças, as famílias, as
comunidades” (Oliveira- Formosinho, 2001).
Vale destacar também que, se consideramos um professor como um ser humano
complexo, entendemos que para que eles transformem positivamente as suas ações em
sala de aula, é importante que sejamos capazes de atingi-lo como um todo. Como já foi
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referido, não basta trazer certas informações e ensinar certas habilidades; é preciso
abordar as concepções, valores, posturas do professor; é preciso possibilitar ao docente
dar-se conta dos papéis e dos valores que tem assumido cotidianamente em sala de aula
e repensá-los. Como diz Tavares (1991): os professores ensinam aquilo que são... A
formação continuada dos professores é, portanto, "mais uma forma de desenvolvimento
do adulto do que uma maneira de ensinar a ensinar" (Nascimento, in Candau, 1998).
Formação em contexto: uma nova perspectiva para a formação do professoriii
Gostaria, mesmo de forma sintética, trazer uma nova perspectiva de formação de
professores da Educação Infantil, que busca romper com os modelos clássicos de
formação, passando a conceber o desenvolvimento profissional atrelado ao
desenvolvimento dos contextos onde o professor atua, por pressupor que a prática
docente é influenciada e influencia o contexto institucional onde ocorre. Essa
perspectiva também inova ao inserir a formação continuada dos professores num
processo mais amplo que inclui a investigação e a intervenção no seu contexto
profissional.
Esta perspectiva de formação foi viabilizada, inicialmente, no Reino Unido,
através do projeto Aprendizagem Pré-Escolar Efetiva: um plano de Ação para Mudança
- APE, sendo posteriormente implantada em Portugal através da Associação CRIANÇA
(Criando Infância Autônoma Numa Comunidade Aberta), sob a coordenação da Profa.
Dra. Julia Oliveira Formosinho.
O projeto propõe estratégias de avaliação e desenvolvimento da qualidade
da Educação Infantil, procurando ampliar a qualificação dos profissionais que trabalham
com as crianças de forma dinâmica, desenvolvimental e colaborativa. Deste modo, este
trabalho possibilita simultaneamente às organizações e aos profissionais, analisar
colaborativamente a qualidade dos serviços oferecidos através de processos de
investigação-ação e construir uma dinâmica de desenvolvimento organizacional que
venha a ter impacto nos profissionais e nas aprendizagens das crianças (Pascal e
Bertram, 1999). Esta tendência deriva-se dos movimentos em prol da formação centrada
na escola (Novoa, 1991; Candau, 1997; Nascimento, 1997b), que apontam a
importância e a necessidade do suporte organizacional para a formação profissional do
professor.
iii Este tópico, em parte, é baseado em Hollanda e Cruz (2004).
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As ações desencadeadas nesse processo buscam apoiar o desenvolvimento
profissional e organizacional dos contextos de educação infantil através da avaliação da
qualidade dos serviços educacionais e das práticas docentes para, posteriormente,
planejar e realizar ações interventivas direcionadas para superar as dificuldades
detectadas. Esta avaliação é realizada conjuntamente com os professores, como uma
etapa inicial de um processo de reflexão na e para a ação (Schön, 1992), que busca
traçar diretrizes e ações concretas capazes de viabilizar uma melhoria da sua prática
pedagógica em sala de aula. Para realizar essa avaliação é utilizada uma série de
métodos de investigação que envolve observações da prática pedagógica, análise
documental, entrevistas semi-estruturadas com gestores, professores e pais. São também
aplicados a Escala de Envolvimento da Criança (Laevers, 1994), que avalia o nível de
envolvimento das crianças nas atividades, considerando-o como indicador da qualidade
das suas experiências de aprendizagem, e a Escala de Empenhamento do Adulto
(Laevers, 1994), que se propõe a analisar características pessoais e profissionais que
definem a capacidade de intervenção do professor no processo de ensino-aprendizagem.
É importante destacar que essa avaliação da qualidade educacional é realizada numa
perspectiva democrática, colaborativa, possibilitando a participação e o envolvimento
ativo de todos os participantes neste processo. O objetivo consiste em debater sobre a
questão da qualidade na Educação Infantil a partir da discussão sobre as percepções e
concepções acerca do tema que serão compartilhadas pelos participantes em cada
contexto específico. Este processo de avaliação da qualidade é, portanto, efetuado com
os agentes educativos e não para os participantes do processo.
Nessa etapa, são investigadas as seguintes dimensões de uma prática educativa
de qualidade propostas por Pascal e Bertram (1999): objetivos do modelo de educação
que é ministrado, profissionais da instituição, acompanhamento e avaliação do trabalho
educativo desenvolvido pela escola, relações e interações entre as crianças e entre estas
e os adultos, experiências de aprendizagem/currículo, planejamento de atividades e
elaboração de relatórios, parceria pais-escola-comunidade, igualdade de oportunidades,
estratégias de ensino e aprendizagem e espaço físico.
Certamente trata-se de uma etapa bastante delicada, pois ao avaliar como está
sendo desenvolvido o trabalho num determinado contexto são expostas fragilidades do
trabalho, o que, naturalmente, é difícil. Todavia, se constitui numa experiência muito
positiva pois as professoras podem ter uma visão mais clara e objetiva de problemas que
enfrentam no seu quotidiano, inclusive expressar e partilhar seus descontentamentos e
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suas ansiedades. Numa experiência realizada em Fortaleza por um grupo ligado à
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Cearáiv, as professoras apontaram
também como muito importante ter a experiência de avaliar suas ações sem serem
apontadas como culpadas pelos equívocos e inadequações constatadas.
A etapa seguinte é o planejamento da ação, realizado com o objetivo de
desenvolver um levantamento das ações necessárias para a melhoria da qualidade dos
serviços educacionais da instituição tendo em vista as fragilidades detectadas bem como
dos recursos e competências indispensáveis para superá-las. É fundamental que todos os
participantes sejam esclarecidos sobre o que vai acontecer nesta etapa e como eles
podem ajudar, pois isso contribui para que se sintam envolvidos no processo de
planejamento e ação, percebendo a necessidade da sua contribuição e apoio às diretrizes
estabelecidas pelo grupo. Ao final desta fase, o grupo deve estar com um plano de ação
concreto e realista apresentando objetivos claramente definidos, as metodologias e os
recursos indispensáveis para atingi-los, bem como o tempo necessário para desenvolver
as ações pretendidas no projeto.
Na terceira etapa o objetivo é o melhoramento da qualidade através da
implantação do plano de ação, o que implica na operacionalização de um programa de
desenvolvimento profissional e institucional intimamente relacionado com as ações
previamente estabelecidas pelo grupo. Embora as duas etapas anteriores sejam também
formativas (pois permitem o compartilhamento de interesses, opiniões, percepções e
conceitos sobre vários assuntos relativos às dimensões estruturais da qualidade), são as
ações desencadeadas nessa etapa que voltam-se mais diretamente à formação dos
profissionais do contexto. Numa experiência recente, por exemplo, foi detectado que a
dimensão experiências de aprendizagem/currículo estava com grandes fragilidades e as
professoras decidiram que a prioridade seria entender melhor a construção da escrita
pelas crianças e como poderia atuar nesse processo, pois estavam tendo dificuldade
nessa área. Foi, então, desenvolvida uma série de estratégias para atender a essa
demanda, tais como: discussão de textos e vídeos, realização de atividades
experimentais nas salas das professoras que se dispuseram a isso, discussão dessas
iv O PARQUE foi um grupo de pesquisa e formação de professores ligado ao Núcleo de Desenvolvimento, Linguagem e Educação da Criança – NUDELEC - do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação – FACED - da Universidade Federal do Ceará - UFC - e integrava a Rede Contextos Integrados de Educação Infantil, coordenada pela Profa. Dra. Tizuko Morchida Kishimoto, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP.
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atividades com o conjunto de professoras, visitas a instituições de Educação Infantil que
têm realizado um bom trabalho em relação a esse tema.
Na quarta fase da formação, denominada reflexão, todo o grupo é levado a
discutir sobre o processo de avaliação e desenvolvimento da qualidade educacional no
contexto específico. O grupo deve, portanto, refletir sobre o impacto da efetivação do
seu plano de ação na qualidade dos serviços educacionais oferecidos às crianças. Este
processo é facilitado pela utilização dos mesmos instrumentos iniciais de avaliação da
qualidade, a fim de comparar os resultados agora obtidos com os anteriores. A partir
desta análise reflexiva, novos problemas podem ser levantados, dando margem para o
início de um novo processo de avaliação e desenvolvimento da qualidade.
Esta perspectiva de formação concebe, portanto, o professor como pessoa e
profissional que reflexivamente e colaborativamente constrói interpretações da sua ação
pedagógica e dos seus processos de desenvolvimento, criando metas para novas práticas
educativas. Supõe, então, a capacidade do professor de desenvolver atitudes críticas e
reflexivas frente às situações cotidianas vivenciadas em sala de aula e na escola,
procurando instigar o seu potencial criativo e participativo no contexto onde atua. Para
tanto, a formação de professores em contexto procura estimular uma perspectiva de
mudança nas próprias concepções pessoais e profissionais dos professores e,
conseqüentemente, nas suas práticas pedagógicas. Esta mudança implica no repensar e
na auto-reflexão sobre a ação docente, o que se dá num longo, dinâmico e complexo
processo de construção e (re)construção de valores, crenças e atitudes pessoais e
profissionais.
Considerações finais
A Educação Infantil é um direito da criança. E a criança tem direito não apenas
ao acesso à creche ou à pré-escola, mas a uma experiência educativa de qualidade, que
realmente seja prazerosa e eficaz na promoção das suas múltiplas aprendizagens e
desenvolvimento. Como o professor é a figura mais importante para a qualidade dessa
experiência, é imprescindível que a sua formação inicial e continuada sejam foco de
atenção por parte das políticas públicas.
O MEC vem tendo várias iniciativas nesse sentido: elaborou as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (CNE/CP
nº 1/2002) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (CNE/CP
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Nº 5/2005); implantou o PROINFANTIL e deve iniciar ainda em 2010 cerca de 80
turmas para um curso de especialização em Educação Infantil.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia avançam em
relação a documentos anteriores ao definir que a formação de professores para exercer
funções de magistério na Educação Infantil é um dos objetivos do curso de Licenciatura
em Pedagogia. O mesmo documento afirma também que o egresso do curso de
Pedagogia deverá estar apto a compreender, cuidar e educar crianças de zero a cinco
anos, de forma a contribuir, para o seu desenvolvimento nas dimensões, entre outras,
física, psicológica, intelectual, social. A incorporação de conhecimentos que vêm sendo
acumulados na área da Educação Infantil fica também expressa quando afirma:
Destaca-se da mesma forma a relevância das investigações sobre as especificidades de como crianças aprendem nas diversas etapas de desenvolvimento, especialmente as de zero a três anos em espaços que não os da família. A aprendizagem dessas crianças difere daquelas entre 7 e 10 anos; elas se manifestam por meio de linguagens próprias à faixa etária, e em decorrência há especificidades nos modos como aprendem. Estudos vêm demonstrando que o desconhecimento dessas particularidades, entre outras, tem gerado procedimentos impróprios e até de violência às linguagens e necessidades do educando. Daí decorre a exigência precípua de o curso de Pedagogia examinar o modo de realizar trabalho pedagógico, para a educação da infância a partir do entendimento de que as crianças são produtoras de cultura e produzidas numa cultura, rompendo com uma visão da criança como um “vir a ser”.
Por outro lado, ao definir as formas através das quais os estudantes
desenvolverão seus estudos, as diretrizes elencam as disciplinas, seminários e
atividades de natureza predominantemente teórica, as práticas de docência e gestão
educacional e as chamadas atividades complementares, e o estágio curricular. Parece
haver um maior equilíbrio e relação entre conhecimentos e vivências oferecidos aos
estudantes, apesar de não serem referidas estratégias para o desenvolvimento de
posturas e valores que favorecem o exercício da docência. Especialmente na Educação
Infantil, onde, como foi apontado, é exigida a construção de uma “profissionalidade
alargada” que inclui grande ênfase no aspecto afetivo, nas interações estabelecidas. Esse
aspecto torna-se mais evidente quando se trata da educação de crianças em creches;
como ressalta Machado (1998)
Considerando que a formação em temas específicos para a educação infantil dos muito pequenos é um dado novo nos sistemas educacionais nacionais, será preciso prever o
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aperfeiçoamento de metodologias e a criação de materiais específicos para sua apropriação.
O fato de estipular o prazo de um ano para a sua implantação, levou muitos
cursos a promoverem a modificação da sua proposta pedagógica, incluindo a formação
para a docência na Educação Infantil. Apesar de não garantir uma sólida formação para
a área, essa alteração permite o contato com conteúdos que certamente contribuirão para
uma melhor atuação profissional, pois não era incomum que egressos de cursos que não
ofereciam disciplinas nem estágios em Educação Infantil assumissem a docência em
creche e pré-escolas.
É nesse contexto que a formação continuada assume especial importância. A
partir da constatação da pouca eficácia dos modelos clássicos, esse trabalho enfocou
também, embora de maneira sintética a chamada formação em contexto. Procurou
evidenciar que a formação em contexto é uma perspectiva específica de formação
continuada porque tem características que a diferenciam da formação que
tradicionalmente é oferecida aos professores já em exercício. Basicamente, concebe a
escola como “lugar de fazer” e “lugar de aprender”; tem como base as necessidades
sentidas pelos profissionais; articula os conteúdos da formação aos contextos de
trabalho; toma os professores como sujeitos do processo de formação; enfoca o conjunto
dos professores, tomando-os como parceiros e estimulando a sua capacidade de reflexão
e mudança. São essas características que dão a essa abordagem uma possibilidade muito
maior de transformar a prática dos professores e promover o desenvolvimento
profissional da equipe de um determinado contexto.
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