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SANTO ANSELMO E A ESCOLÁSTICA Terezinha Oliveira
DFE/PPE/UEM
[email protected]/[email protected]
RESUMO: Neste trabalho pretendemos expor, em linhas gerais, em que medida o debate
estabelecido por Santo Anselmo, o primeiro grande escolástico da Idade Média,
contribuiu para a formação do pensamento educacional na Idade Média e no início
da Modernidade. Para fazer essas considerações estabelecemos como premissa
básica dois aspectos. O primeiro reside no fato de que a Escolástica foi um método
pedagógico gestado no interior das escolas medievais para responder às questões
próprias dos homens dessa época. Conseqüentemente, não podemos julgar essa
forma de educação a não ser com o olhar da história. O segundo aspecto que
arrolaremos em nossa discussão constitui a própria essência dialética do
pensamento anselmiano. Ao partir da idéia de que somente a razão e o intelecto
humano permitem aos homens acreditarem na existência de Deus, Santo Anselmo
inaugura o grande debate que será o vetor das discussões medievais a partir do
século XI, qual seja, o debate entre fé e razão.
PALAVRAS-CHAVE: Pensamento Educacional na Idade Média; Escolástica;
Anselmo de Bec; Fé e Razão.
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Nessa comunicação pretendemos tecer algumas considerações sobre um dos
momentos mais significativos da História da Educação na Idade Média, a saber o
desenvolvimento do pensamento escolástico. Assim, num primeiro momento,
observaremos alguns aspectos deste método pedagógico e, a seguir,
apresentaremos algumas formulações do pensador medieval considerado o
fundador da Escolástica no século XI, Santo Anselmo.
É preciso considerar, antes de tudo, que escolástica deriva de escola,
escolares. Assim, em si mesma ela expressa a idéia de escola. É no interior da
escola que este método foi gestado e desenvolvido. Ele espelha, em grande medida,
as preocupações dos mestres e dos alunos do Medievo, uma vez que se trata da
busca do entendimento da sociedade, da natureza, de Deus, da fé e da razão a
partir da dúvida e da dialética.
Sob este aspecto, é importante destacar dois aspectos relevantes para o
entendimento da educação nessa época histórica. De um lado, a idéia de escola
como um espaço físico destinado ao saber é original, ou seja, trata-se de uma
instituição criada pelo homem medieval. Na antigüidade tivemos, por exemplo,
centros de saberes como os jardins de Epicuro, mas estes espaços não estavam
destinados apenas à educação, ao contrário das escolas palacianas, catedraliças do
medievo. Por outro lado, em função de uma certa estabilidade social, proveniente do
feudalismo, os homens medievais passaram a não aceitar mais as verdades divinas
(entendidas aqui como os ensinamentos da Igreja) como a única possibilidade de
entendimento/explicação do mundo. Eles principiam a questionar as verdades
estabelecidas, dando origem, então, a uma grande disputa que norteou a vida dos
intelectuais do medievo, qual seja, o debate entre a fé e a razão. É, pois, a partir
dessas duas premissas que pretendemos analisar o pensamento escolástico em
Santo Anselmo.
Esse método de ensino ou concepção teórica cuja base é a filosofia expressa
a mesma preocupação das primeiras escolas medievais, ou seja, está voltada para a
formação do ser. Embora apresente um olhar transcendental, esta transcendência
passa sempre pela forma de ser do homem na terra. Assim, a maior preocupação
dos mestres escolásticos é com a vida terrena, uma vez que é o modo como os
homens vivem e se relacionam no curto espaço de suas vidas terrenas que
assegura a felicidade ou infelicidade na supraterrena.
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Essa filosofia contém, em seu bojo, características do pensamento
agostiniano ao conservar a idéia de que os homens devem aprender a ser seres
cristãos para assegurar a vida transcendental pós-morte (o cristianismo), mas,
também, aflora em seu íntimo a retomada do pensamento aristotélico, especialmente
a razão lógica. Não é gratuito, por conseguinte, que um dos seus maiores
expoentes, Tomás de Aquino, expresse tão claramente os dois cânones da filosofia:
Santo Agostinho e Aristóteles.
Desse modo, a nosso ver, a Escolástica deve ser analisada como uma
doutrina que, ao permitir a comunhão de forças díspares e fundamentais dos
homens medievais, a religião e a razão filosófica, explicita a vida social dos homens.
Essa conjunção da visão metafísica do ser humano com a doutrina cristã dirigiu os pensadores à consideração dos seres e, finalmente, do próprio Ser que lhes fundamenta e justifica a existência. [...] E é essa razão pela qual os escolásticos tiveram tanto apreço por Aristóteles que na sua Metafísica empreendeu com êxito o primeiro e o mais notável estudo já realizado sobre o ser, estudo que ele denominou filosofia primeira, ciência da verdade e teologia [...]. (NUNES, 1979, Idem, p. 245)
Assim, é por expressar as duas grandes forças formadoras do ser social na
Idade Média que a Escolástica pode, a nosso ver, legitimar a nova forma de ensino
difundida nos mosteiros, nas abadias e, dois séculos mais tarde, nas Universidades.
Não é por acaso que Grabmann define a Escolástica como a especulação
filosófico-teológica forjada nas escolas da Idade Média. Com isso o autor não
pretende assinalar apenas que a Escolástica é a ciência das escolas, ou seja, um
pensamento que se formou, primeiro, nas escolas das catedrais e dos conventos e,
posteriormente, nas Universidades e escolas mendicantes, como assinalamos
acima. Pretende – e a nosso ver este constitui o aspecto mais importante da sua
definição - , antes de tudo, rebater a idéia (ainda presente à época em que escreveu
seu livro) de que a filosofia escolástica da Idade Média representa uma mera
recapitulação e compêndio dos pensamentos antigo e dos Santos Padres. Enquanto
tal, a Escolástica somente teria valor na medida em que conteria o que existia em
suas fontes e nas obras de seus predecessores. Ao contrário, para Grabmann a
Escolástica constituiria um pensamento vivo, criado ao longo desse período.
(GRABMANN, 1928, p. 32)
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A maneira como este autor interpreta a Escolástica é, para nós, muito
importante e, a bem dizer, ponto de partida do nosso estudo desse pensamento. O
fio condutor da nossa pesquisa é que a Escolástica foi forjada para responder às
questões reais dos homens da época medieval. Desse modo, a Escolástica não
constitui uma mera recopilação do existente. Antes, ela responderia às questões
humanas de sua época, revelando, assim, um impulso vital que passa despercebido
aos estudiosos que julgam que a Escolástica nada teria criado.
A formulação de Grabmann tem, pois, o mérito de contrapor-se a duas
maneiras de conceber a Escolástica que possuem em comum o fato de analisarem
esta forma de pensamento fora da sua historicidade. A primeira é a que parte da
formulação de que a Escolástica nada criara de novo. A segunda deriva do fato de
estar apoiada na crítica que foi feita à Escolástica já no século XVII. Para nós, em
oposição a estas duas formas de analisar a Escolástica, o pensamento escolástico
encontra-se intimamente ligado, como já ressaltamos anteriormente, às questões
vitais dos homens da Idade Média.
No estudo da Escolástica é preciso observar duas ordens de questões. A
primeira, como a define Grabmann, a Escolástica é a filosofia cristã da Idade Média.
Assim, este autor vincula esse pensamento a uma dada época histórica. A segunda
é que a Escolástica está ligada a uma dada instituição, ou seja, essa especulação
filosófico-teológica foi forjada nas escolas da Idade Média. Não é casual, por
conseguinte, que este estudioso do pensamento medieval observe que o próprio
nome - Escolástica - indique sua origem, ou seja, trata-se da ciência das escolas.
Estas duas ordens de questões significam que se deve estudar a Escolástica
não somente no interior da sociedade medieval mas, igualmente, que se trata de
uma filosofia/teologia que foi formulada no interior de uma dada instituição, a escola.
Como nota Grabmann, “O desenvolvimento do ensino desde as escolas
catedralícias e conventuais aos centros científicos das Universidades, do studium
generale, foi poderoso influxo para a evolução da Escolástica.” (1928, p. 35)
Desse modo, como se pode inferir do que foi salientado acima, não se pode
separar o estudo da Escolástica do estudo da escola/Universidade. A
escola/Universidade é o local ou instituição onde se forjou esse pensamento. Dessa
maneira, instituição e pensamento encontram-se interligados. Não podemos,
conseqüentemente, estudar a Escolástica desvinculada dessas instituições criadas
na Idade Média.
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Após essas breves considerações sobre a escolástica passaremos a analisar
o pensamento de um dos maiores precursores dessa doutrina pedagógica. Todavia,
cumpre observar alguns aspectos dos escritos de Santo Anselmo antes de
iniciarmos nossa análise. Santo Anselmo, foi chamado a provar a existência de Deus
a partir de suas formulações. Nesse sentido, suas formulações, exemplo perfeito das
reflexões escolásticas, precisavam mostrar, pela razão e pelo intelecto, a existência
de Deus em todas as coisas. É por isso que a sua reflexão evidencia alguns
aspectos novos e relevantes no que diz respeito ao pensamento educacional.
Em primeiro lugar, só o fato de ter que demonstrar a existência de Deus
significa que esta verdade estava sendo questionada. Em segundo, a forma como
escolhe para debater essa sentença revela um novo caminho do pensamento, pois,
embora siga os ensinamentos do grande mestre da Igreja, Santo Agostinho,
Anselmo precisa responder a questões e problemas próprios do século XI.
Exatamente por isso precisa colocar tudo como dúvida e incerteza para, em seguida,
argumentar a favor ou contra uma dada questão. É por esse caminho que procura
mostrar que o nada não existe, que Deus é o criador de todas as coisas, que são a
razão e o intelecto humano que permitem que os homens tenham fé. Assim, suas
considerações, ao não absolutizar as verdades, tratando-as como dogmas, tornam-
se fundamentais para se compreender todo o processo de construção do
pensamento escolástico que se desenvolverá.
O próprio principio formulador das questões de Anselmo apresenta uma
relação dialética. Como homem da Igreja, o bispo de Bec coloca que os homens
precisam entender que há algo que cria todas as coisas existentes na natureza na
medida em que nada surge do nada, ou seja, é preciso que se entenda que existe
um bem supremo maior, criador de todos os elementos da natureza, logo Deus
existe. Todavia, como teórico de seu tempo, ele afirma que, para que os homens
compreendam qualquer elemento da natureza e a sua essência, eles precisam
entender e desenvolver a razão, ou seja, coloca como premissa para existência do
homem a fé e a razão. Assim, a máxima que Anselmo pretende mostrar é que para
se crer em Deus e entender a criação da própria natureza o homem precisa fazer
uso da razão.
Se houvesse alguém que, pelo fato de nunca ter ouvido falar nisso ou por não acreditar, ignorasse existir uma natureza superior a tudo que existe –
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a única suficiente por si mesma, em sua felicidade -, e que concede, por sua bondade, à criatura ser aquilo que é, permitindo-lhe inclusive, ser boa sob algum aspecto; se esse alguém ignorasse isso e muitas outras coisas, nas quais nós cremos com certeza acerca de Deus e das criaturas, penso que tal pessoa, embora de inteligência medíocre, possa chegar a convencer-se, ao menos em grande parte, dessas coisas, usando apenas a razão. E poderá fazê-lo de várias maneiras. Eu lhe indicarei apenas uma, que acho ser a mais fácil. Como todos aspiram a fruir das coisas que julgam boas, nada mais provável que essa pessoa venha, um dia, a dirigir a sua mente para a busca do ser pelo qual são boas as coisas que ela deseja só porque assim as julga e, desta maneira, guiada pela razão e ajudada pelo ser que busca, consiga chegar, através do raciocínio, às coisas que irracionalmente ignoram. (ANSELMO, 1973, p. 13)
Um outro momento muito importante da obra de Anselmo é quando observa
que todas as coisas só podem ser compreendidas em relação a algo. Nada é bom
em si ou ruim em si. O que definiria a qualidade e a utilidade das coisas seria a sua
relação com os demais elementos da natureza, da sociedade.
Com efeito, todas as coisas que são ditas justas entre si ou, mais ou menos justas, em relação a outras, não podem ser entendidas dessa forma a não ser em relação à justiça, que não é algo diferente nas diferentes coisas. Sendo, portanto, certo que todas as coisas, quando comparadas entre si, apresentam-se boas no mesmo grau ou em grau diferente, é necessário que elas sejam boas por um “algo” que é o mesmo em todas, embora às vezes pareçam sê-lo umas por um motivo e, outras, por outro. Um cavalo, por exemplo, parece ser bom por dois motivos: por ser forte e por ser veloz. Mas embora o cavalo seja bom pela força e pela velocidade, não parece, com isso, que a força e a velocidade possam ser o mesmo. Ainda: se o cavalo é bom enquanto é forte e veloz, então por que um ladrão, forte e veloz, é mau? Evidentemente deve-se dizer que o ladrão é mau porque é danoso e o cavalo bom, porque útil. Na verdade, nada sói julgar-se bom senão por alguma utilidade, como acontece com a saúde e aquilo que lhe diz respeito; ou por sua honestidade, como é o caso da beleza e daquilo que a fomenta. Mas, como este demonstração não pode ser destruída por nenhum meio, é necessário deduzir, também, que tudo o que é útil e honesto, se realmente é bom, é bom por aquilo pelo qual é bom tudo o que é bom. (Idem, p. 14)
Além de discutir a qualidade e a utilidade das coisas, Anselmo insiste na idéia
de que algo só existe se em si é algo ou se faz parte de algo. Além disso, o autor
observa que as coisas em si não possuem um valor intrínseco, inerente a sua
natureza. A nosso ver, o que Anselmo está colocando é que não existe uma verdade
para todas as coisas, ou seja, embora Deus seja o criador de tudo e do todo - não
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nos esqueçamos que essas formulações são de um grande teólogo -, são as
relações estabelecidas entre os homens, entre os homens e a natureza que definem
a qualidade da coisa, se é boa ou prejudicial. Em última instância nada é bom ou
ruim em si mesmo.
Na passagem a seguir, o bispo de Bec continua a indagar sobre a origem e a
importância das coisas. Há algo importante a ser ressaltado nessa passagem que é
o fato de sua discussão revelar o conhecimento que Anselmo tinha dos debates
travados pelos pré-socráticos, o que demonstra, uma vez mais, o contato que os
intelectuais medievais tiveram com o pensamento antigo.
Não duvido que esta imensa mole de coisas que é o universo, com todas as suas partes seja formada de água, terra, ar e fogo. Ora, estes quatro elementos da natureza podem ser pensados sem a forma que têm nas coisas visíveis, de maneira a poder-se considerar a sua natureza, indeterminada e confusa, como matéria de todos os corpos sem suas formas distintas. Não é disto que eu duvido, repito, mas quero saber de onde provém a matéria do universo, da qual estamos falando. Se, pois, ela procede de outra, na verdade, esta outra é que é a matéria do universo corpóreo. Se, portanto, o universo das coisas visíveis e invisíveis se origina de alguma matéria, não apenas não poderá existir, mas sequer poderá dizer-se que derive de outra matéria que não seja uma destas: ou da natureza suprema, ou de si mesma, ou de uma terceira essência, que seria, sem dúvida, o nada. De fato não é absolutamente possível pensar que existam outras coisas afora estas duas: que formam o conjunto do universo, o que não existem por si, mas devido àquela que é a máxima entre todas. Isto porque, aquilo que, maneira nenhuma, tem existência, pode ser matéria de algo. (Idem, p. 22)
A nosso ver, ao legitimar a existência das coisas no universo a partir das
categorias pré-socráticas, o bispo de Bec permite aos homens de sua época
observar a existência das coisas a partir da sua própria natureza, ou seja, existe
uma força suprema que cria todas as coisas, mas a origem delas é perceptível a
partir dos elementos formadores da natureza: água, ar, fogo e terra.
Essa discussão de Anselmo acerca da origem e essência das coisas é uma
clara demonstração dos novos tempos que deram ao medievo uma marca muito
peculiar. É nesta época que registramos os primeiros movimentos que deram origem
à modernidade. Assistimos nela o ressurgimento do comércio, o florescimento das
cidades, o primeiro movimento universal que conseguiu agregar, em si, os mais
diferentes segmentos sociais: a primeira cruzada. Segundo Ruy Nunes, foi nesse
momento que o Ocidente viu florescer uma de suas mais brilhantes escolas. “Note-
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se que no século XI a mais famosa escola foi a abadia de Bec onde espargiram
luzes os italianos Lanfranco e Anselmo, grandes teólogos, peritos em dialética e que
promoveram o renascimento dos estudos sagrados e profanos” (1979, p. 139).
Ainda acerca da origem das coisas, Anselmo nos mostra algo que é
extremamente revelador do grau e complexidade das questões que inquietavam
teóricos do século XI. Com efeito, ao discutir sobre o sentido do nada em uma de
suas argumentações o abade de Bec observa que todas as coisas existentes
possuem em si uma origem e que, portanto, não se pode afirmar que algo venha do
nada.
Mas, ao falar-se do nada, apresenta-se uma dúvida. Todo ser que produz outro é causa daquilo que origina e faz-se mister que toda causa preste uma ajuda qualquer à essência do seu efeito. Esse princípio está tão consagrado pela experiência que não seria possível tirá-lo da mente de ninguém por meio da discussão, apenas mediante engano. Se, portanto, alguma coisa foi feita do nada, o nada é a causas daquilo que foi produzido. Mas, de que modo aquilo que não possui existência pode oferecer ajuda a algo para transitar ao ser? E se o nada não pode oferecer nenhuma ajuda, como persuadir a alguém que uma coisa consegue originar-se do nada? De que modo persuadí-lo? Mais ainda. O nada ou é alguma coisa ou não é nenhuma. Se é alguma coisa, então tudo o que saiu do nada foi feito de algo. Mas, ao contrário, se não é nenhuma coisa, fica incompreensível como algo possa ser feito do nada, que é carência de tudo: do nada, nada se origina, como sói dizer-se comumente. Donde se conclui que tudo aquilo que foi feito recebeu a origem de algo, pois uma coisa é feita de algo ou de nada. Pense-se, então, o nada como sendo alguma coisa ou nenhuma, porém fica evidente que tudo que foi feito origina-se de algo. (Idem, p. 23-24)
Ao discutir a existência ou inexistência do nada, Anselmo demonstra uma
nova forma de investigar a natureza das coisas, ou seja, é preciso investigar todas
as possibilidades para se explicar a existência de algo. Se observarmos mais
detidamente suas formulações, veremos que ele coloca na ordem do dia uma nova
forma de encarar as discussões de sua época. Ao destacar que para se entender
algo é necessário observar todas as possibilidades, ele está explicitando que a fé ou
a crença cega em algo não são mais suficientes para explicar todas as coisas.
Prometi não deixar escapar, nesta meditação, nenhuma objeção possível, por insensata que pareça: então, o que haveremos de entender por nada?
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Há creio, três maneiras de resolver esta dificuldade que se manifesta quando dizemos que uma coisa é feita do nada. A primeira é aquela de dizer que uma coisa é feita do nada , mas, ao contrário, entender que não está absolutamente feita, como, por exemplo, acontece quando, indicando um homem que está calado e perguntamos a alguém ”O que é que está dizendo?” e temos a resposta: “Nada”, vale dizer, está calado. Não fala. Através desta maneira, a quem nos perguntasse acerca da essência suprema e daquilo que não existe ou nunca existiu, de que foi feito, a resposta completa é: “de nada”; isto é, não foi feito. [...] Se entendermos neste último sentido que expusemos acima (a saber: que, salvo a essência suprema, todas as coisas que derivam dela foram criadas por ela do nada, isto é, que não foram feitas de algo), a nossa conclusão estará de acordo com as premissas e não decorrerá dela nenhuma contradição. Assim, sem nenhum inconveniente ou contradição poder-se-á dizer que as coisas feitas pela substância criadora foram feitas do nada, do mesmo modo que costumamos nos referir a um homem que, de pobre, ficou rico ou que, depois da doença, recobrou a saúde, querendo significar, com isso, que ele agora é rico e, antes, não possuía nada, ou que agora, tem a saúde que, antes, não tinha. Assim, também sem inconvenientes pode ser entendida a afirmação que a essência criadora fez a universalidade das coisas do nada, ou que o universo foi criado, por meio dela, do nada. O que vale dizer que todas aquelas coisas que antes não existiam, porque eram nada, agora são algo. (Idem, p. 24-25)
Do ponto de vista de Anselmo, o nada só existe enquanto possibilidade de vir
a ser algo, portanto, o nada, enquanto nada, não existe. É a partir dessas reflexões
que demonstra a existência de uma razão que precede todas as demais coisas, seja
a razão divina, seja a razão humana. Para o bispo de Bec, as coisas só existem
quando há uma prévia concepção do que virá a ser.
Capítulo IX: Que as coisas que foram feitas do nada eram, no entanto, algo antes de sua criação com referência à razão do criador. Mas aqui parece-me divisar a necessidade de examinar com certo cuidado em que sentido é possível dizer que as coisas não eram nada antes de serem feitas. Com efeito, não pode fazer uma coisa qualquer, se já não se encontra, na inteligência de quem pretende fazê-la, o modelo, ou para falar mais exatamente, a forma, a semelhança, a norma das coisas a ser feita. É evidente, portanto, que antes que todas as coisas fossem feitas, já existia na inteligência da natureza suprema a essência, a qualidade, a maneira de como haveriam de ser. Por isso, aquelas coisas que foram feitas do nada eram antes de serem feitas, no sentido em que não eram aquilo que agora são, nem exista uma matéria de que haveriam de ser feitas; todavia, elas eram algo em relação à razão de quem cria; razão pela qual, e segundo a qual, seriam feitas. (Idem, p. 26)
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Desse modo, explicita que nada pode vir do nada porque, para algo existir,
pressupõe-se que deva existir, ao menos, na mente do criador, seja o criador divino
seja o artífice.
Nessa discussão, vemos claramente a utilização do método escolástico para
argumentar a existência, a importância e o uso da razão.
Capítulo X: Que aquela razão é, por assim dizer, uma certa maneira de falar as coisas, assim como faz o artífice antes de compor sua obra, primeiro, a expressa dentro de si. Mas, a forma das coisas, preexistentes na razão suprema aos seres criados, que haveria de ser se não uma maneira de dizer as mesmas em sua razão, assim como faz o artífice, antes de realizar uma obra, que a concebe e a expressa em sua imaginação? Por ‘dizer na mente ou na razão’ entendo aqui que acontece quando pensamos nas palavras que indicam as coisas, mas quando divisamos as mesmas diretamente, sejam elas futuras ou já existentes, pela forçado pensamento. O uso contínuo ensina-nos que é possível falar uma coisa de três maneiras: ou dizendo a coisa por signos sensíveis, vale dizer, percebidos pelos sentidos corpóreos, portanto, pela sensibilidade; ou representando esses signos, que são sensíveis externamente, de uma maneira não sensível, mediante o pensamento; ou não usando destes signos, nem sensivelmente nem de maneira não sensível, mas dizendo as coisas dentro de nossa mente com a imaginação, reproduzindo as formas corpóreas, ou com a atividade racional, conforme a diversidade das próprias coisas. Com efeito, eu posso pensar um homem de uma maneira distinta quando digo a palavra homem para significá-lo; ou diferente, quando considero tacitamente esse nome na minha mente; e diferente, quando esse mesmo nome é intuído pela mente através de uma imagem corpórea ou mediante uma imagem mental. Mediante uma imagem corpórea, quando a mente representa a si mesma a figura sensível dele; mediante uma imagem mental, isto é, quando pensa a essência universal dele, que é a de ser animal, racional, mortal. (Idem, p. 26-27. Grifos nosso)
Essa passagem de Anselmo, onde nos explica porque, do seu ponto de vista,
nada pode ser criado do nada, o uso do intelecto é a condição primeira para o
entendimento de qualquer coisa na natureza. Ao intelecto, que denominamos razão,
Anselmo usa diferentes signos que designam o mesmo sentido: mente, pensamento,
imagem mental, razão, imaginação. São diferentes palavras que, em última
instância, demonstram que sem o uso da imaginação intelectiva o homem não
consegue compreender a origem de nada. Para tudo é preciso o uso da mente, da
intelecção. Anselmo, indubitavelmente, está usando o método dialético para explicar
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que o uso da razão é que faz o homem compreender a essência de cada uma das
coisas. Logo, para que o homem compreenda que tudo tem uma origem, ou,
colocado de outro modo, que nada vem do nada, é preciso, antes de tudo, o uso da
razão. Ele usa deste argumento, inclusive, para designar o que é o homem. Na
passagem acima, o bispo de Bec coloca que existem pelo menos três maneiras de
entender o homem (a própria existência humana). Todavia, em todas elas é por meio
da mente que se consegue entender a existência do homem.
Devemos nos indagar, no entanto, porque é tão importante a Anselmo
demonstrar que a existência humana e que tudo que existe no universo é
imprescindível à mente humana ou ao intelecto?
Deste modo, como afirmamos anteriormente, Anselmo foi chamado pela
Igreja para provar a existência de Deus e para que ele pudesse provar a existência
divina precisou, antes, criar uma forma pedagógica de demonstrar aos homens que
a natureza só existe porque existe algo que a criou, ou seja, Deus. Ao explicitar que
as coisas só podem existir por meio de uma imaginação intelectiva, que cria tudo,
Anselmo precisou mostrar aos homens do século XI que há uma razão que a tudo
precede. Ao estabelecer essa máxima, ele explicitou aos homens que eles só
poderiam crer na existência de Deus a partir do uso de sua própria intelecção, ou
seja, da razão.
Anselmo considera a razão/intelecto a condição primeira para se ter a fé. Não
queremos com isso afirmar que Anselmo, um dos maiores quadros da Igreja do
século XI, estivesse negando-a. Ao contrário, é para poder legitimar a existência de
Deus que torna lídimo a existência da razão/intelecto.
Capítulo XI Como a comparação com o artífice está longe de ser exata. Embora seja certo que a substância suprema, antes de criar cada coisa de acordo com sua palavra íntima, a tenha dito dentro de si, de maneira semelhante àquela com que o artífice concebe, primeiro, em sua mente a obra que, depois, executa de acordo com a sua idéia, entretanto enxergo, nesta semelhança, uma diferença bastante grande. A substância suprema, na verdade, não tirou certamente, de alguma parte, a matéria para compor, nela, a forma das coisas a serem feitas, nem para fazê-las como elas são. O artífice, ao contrário, não pode conceber, através da sua imaginação, uma coisa corpórea a não ser que ela, em seu conjunto ou em suas partes, já se tenha deixado conhecer, de alguma maneira, por meio de outras coisas. Ele não consegue, também, executar a obra assim imaginada, se lhe faltar a matéria ou que se faz necessário para que a obra imaginada possa ser realizada. Embora, pois,
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o homem, por meio do pensamento ou da pintura, chegue a representar um animal como não existe em parte nenhuma, todavia, ele só conseguirá seu propósito reunindo aquelas partes do animal que imprimiu na memória através de outras coisas conhecidas anteriormente. Assim diferem, uma da outra, as palavras das obras a serem feitas, na substância criadora e na mente do artífice: aquela da substância suprema não foi tirada de parte alguma, não recebeu ajuda de outros, mas foi suficiente por si como causa primeira e única, para levar a efeito a obra; esta, a do artífice, ao contrário, não é nem primeira nem única, nem suficiente sequer para iniciar a obra. Disso decorre que as coisas que foram criadas por aquela de forma alguma são diferentes daquilo que são, devido a ela; mas ao contrário, as coisas feitas pelo artífice não poderiam existir se – já anteriormente – não fossem algo, diferente da palavra do próprio artífice (Idem, p. 28-29).
A passagem acima explicita claramente as diferenças existentes entre a força
criadora de Deus e a criação do artífice. Enquanto criação divina, as coisas são
criadas pela vontade do ser superior, mas aquelas coisas que são criadas pelos
homens, artífices, precisam, antes, ser pensadas, criadas, estar acabadas na
memória para depois se concretizarem, ou seja, o homem precisa de sua razão
intelectiva para criar algo. Do ponto de vista de Santo Anselmo, para muitos
estudiosos é a razão intelectiva que permite aos homens entender a existência de
Deus e, concomitantemente, criar todas as coisas existentes ao seu redor, com
exceção daquelas existentes naturalmente na natureza.
Nossa intenção com essa exposição sobre o pensamento escolástico,
exposto a partir de considerações acerca do pensamento Anselmiano, é mostrar o
quanto o pensamento e a ação criativa dos teólogos/filósofos medievais contribuíram
para a formação tanto de uma tendência educacional que criou grandes educadores
na Idade Média como para a formação do pensamento educacional moderno.
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REFERÊNCIAS
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