1. A negação da vontade: uma possibilidade obscura
Certamente, uma falta na relativamente extensa obra de Schopenhauer consiste no fato de
não se encontrar ali uma efetiva explicação da doutrina negação da Vontade por ela mesma. É
sabido, e ele mesmo o reconhece, que muitos de seus escritos, tais como os Parerga e paralipomena
– como indica o próprio título grego da compilação: acréscimos e descartes –, não tratam de nada
(ou muito pouco) novo com relação ao dito anteriormente, ao menos no que concerne a seus
temas centrais. Mesmo obras relativamente complementares tais como a mal sucedida e propalada
Sobre o fundamento da moral têm seus princípios fundamentalmente já contemplados em O mundo
como vontade e representação, sobretudo nas edições posteriores, acrescidas de cinquenta capítulos de
Suplementos e um Apêndice3 contendo sua “Crítica da filosofia kantiana”, que pode ser encarada,
em vários pontos essenciais, como um recalcado parricídio4. Talvez por um certo senso
autocrítico, se não por preguiça, Schopenhauer faz sempre remissão à sua “obra capital”, quando
não à sua tese de doutoramento Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, bastante
originais, à parte a inegável e profunda dívida a Kant, sendo justamente pela crítica e apenas por
ela que a genialidade de Schopenhauer pode ser vislumbrada como a do valoroso discípulo que
supera o mestre.
Enfim, talvez seja lícito concordar com o fato, evidente nos escritos de Schopenhauer, de
que seu anseio por reconhecimento público e também acadêmico o tenha levado a multiplicar sua
obra em vista de despertar a atenção para si e suprindo a ausência de comentários que a falta de
notoriedade acarreta. Isto não é de modo algum um caso único na produção de grandes filósofos.
Nesse caso, as autorremissões adquirem um papel estrategicamente autopromocional, pondo em
evidência os livros já publicados quando não há muito de novo ou revisto a dizer, embora isso
não devesse ser bastante para justificar a indiferença ou mesmo despertar a repulsa de tantos
pensadores. Schopenhauer quis, sem conseguir, esgotar o tema de uma só vez, e qualquer
3 Por esta razão, bem como por economia, as referências e citações serão feitas preferencialmente a partir da terceira edição de O mundo..., exceto quando esta não parecer suficiente no tocante a alguma abordagem ou formulação particular. Schopenhauer justifica o caráter esparso de sua exposição dizendo, na última página do “Apêndice” de O mundo...: “meus escritos, tão pouco numerosos, não foram todos compostos de uma vez, mas sucessivamente, no curso de uma longa vida, e com intervalos distanciados; por conseguinte, não se deve esperar encontrar condensado em um só lugar tudo aquilo que pude dizer sobre um mesmo assunto” (Schopenhauer, 2004, p. 668). 4 Por vezes, após a exaltação inicial, as críticas chegam a ser bastante sarcásticas ou mesmo ofensivas, tais como aquelas dirigidas a seus “inimigos” do idealismo alemão. Isto é anunciado no “Apêndice” de O mundo... nos seguintes termos: “É preciso que os erros sejam isolados, neutralizados, e depois esquecidos. Também, na polêmica que vou inaugurar contra Kant, tenho apenas em vista os seus erros e suas fraquezas; ponho-me como inimigo contra ambos e lhes declaro uma guerra sem misericórdia, uma guerra de extermínio; longe de querer arrumá-los ou encobri-los, tenho como fim somente colocá-los sob total claridade a fim de melhor assegurar-lhes a destruição.” (Schopenhauer, 2004, p. 522; grifos nossos).
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acréscimo substancial posterior seria prontamente incluído na obra fundamental, tornando-a, de
certo modo, suficiente dentro de suas pretensões até o limiar do enfadonho, o que não deixa de
ser admirável. Afinal, parece que seu pensamento chegou à maturidade entre sua tese de
doutoramento e a elaboração da “obra capital”, de maneira que um plano completo de
pensamento já foi sistematizado e nela realizado, muito embora seu autor continuasse, ao longo
da vida, encontrando mais o que dizer.
Contudo, com estas palavras não se pretende nenhuma leviandade em julgar Arthur
Schopenhauer, nem mesmo sob o aspecto “moral” – tal busca por notoriedade, embora
contradiga sua própria ética destruidora do egoísmo e, por extensão, da vaidade, ao lado de
outros muitos fatos quase anedóticos de sua vida privada, talvez testemunhe uma das “verdades”
contidas em seu pensamento, qual seja, a impossibilidade de uma conversão do caráter pela
simples “vontade” individual ou pelo conhecimento racional.5 As observações feitas aqui são
relevantes enquanto permitem ressaltar o curioso fato de que um dos pontos altos (se não
culminante) de seu pensamento, segundo ele mesmo estima (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 489;
[cap. XLVIII] p. 1380), recebeu exaustivas descrições por meio de também não menos exaustivos
exemplos e referências biobibliográficas das mais diferentes espécies e qualidades. Ora, sabe-se que
exemplos, bem como definições, não explicam, ainda que sejam úteis ao esclarecimento, isto quando
não o dificultam. Dito de modo técnico, por mais que Schopenhauer se empenhe em suplementar
sua doutrina da negação da vontade com análises, procedendo à aplicação da doutrina a casos
particulares6, jamais chega a uma explícita síntese que explique o porquê da negação e não apenas
exponha seu como. Seus exemplos parecem sustentar uma indução, uma vez que Schopenhauer
não formula uma doutrina da negação da vontade em sentido estrito que permita deduzir
5 Não é à toa que Russell (1967, p. 305-306) diz que seu “evangelho da resignação [...] não é muito coerente nem muito sincero”, fornecendo exemplos desta “insinceridade”. Acusação desse tipo também é feita por Guéroult (cf. Lancelin; Lemonnier, 2009, p. 105). A isto Schopenhauer (2004, p. 482 [§68]) já antecipara uma resposta, dizendo, por exemplo: “não se é necessariamente bom escultor porque se é um belo homem, nem se é um belo homem porque se é um bom escultor”, sendo “uma pretensão muito estranha querer que, antes de recomendar uma virtude”, um moralista “a possua ele mesmo”, assim como não é necessário “que o santo seja filósofo” ou “que o filósofo seja santo” (v. tb. p. 76 [§9]). Comparar com o que diz Kant (2007, p. 16 [BA IX]), em tom bem mais ameno: “O homem, com efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da força necessária para a tornar eficaz in concreto no seu comportamento”. 6 Talvez se possa tomar como justificativa para esse método expositivo de Schopenhauer – em verdade, “pouco filosófico” – a necessidade de que não se trate apenas de uma exposição abstrata, conceitual, filosófica, segundo ele mesmo diz, mas que faça com que o olhar do leitor se volte para a vida concreta, vivida por alguém, pois só o testemunho, só a vivência pode preparar a espécie de conhecimento necessário à negação da vontade, pois é um conhecimento intuitivo que se encontra “somente na ação, em nossa conduta” (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 482-483; [2003b], [cap. XIV, §172] p. 420). Por isso, trata-se de esclarecer a afirmação e a negação da vontade expondo “os modos de vida pelos quais uma e outra se exprimem, e de ver seu significado” (id., 2004, [§60] p. 412; grifo nosso). Em uma palavra, trata-se da exposição de seus fenômenos. Sobre isto, veja-se também o início do último capítulo suplementar a O mundo..., intitulado “Epifilosofia” (id., ibid., p. 1414-1415), em que a ausência de porquês é justificada pela necessidade de se desvencilhar do princípio de razão suficiente, ou seja, de não discorrer sobre o mundo como vontade como se se tratasse de fenômeno regido pela lei da causalidade, o que é cabível e até necessário apenas quando se trata do mundo como representação.
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logicamente algo além de seus exemplos. Somos, portanto, obrigados a apreender a doutrina a
partir de casos particulares.
Com efeito, se este modo de exposição deixa a doutrina na obscuridade, a profusão de
exemplos mais atrapalha do que auxilia o leitor crítico, mais interessado na “consistência” e na
própria essência da negação da vontade do que no em que ou como reconhecê-la na vida concreta
de algum indivíduo anônimo. Um bom exemplo disto se exprime na incontornável questão:
Como a Vontade tão voraz se acalma em sua própria imobilidade, no fim de si mesma e sua
voracidade, quando sua natureza é aniquilar e inquietar, e pode ser ela mesma a voluntariamente, em
um derradeiro movimento de retorno sobre si mesma, não mais querer, e, por fim, uma vez querendo
isto, nunca deixa de se manifestar como corpo que, a qualquer momento, torna a querer para além
de si?7 Esta tese parece insustentável e inadmissível em uma reflexão que não se deixe convencer
pela mera narração de casos exóticos, fora o evidente paradoxo aí expresso. Em suma, é o
próprio Schopenhauer a tornar pretensamente fácil a compreensão pelo leitor na medida em que
o conduz a reduzir algo tão complexo a fatos de que se pode ter notícia em obras de cunho
antropológico ou folhetins, geralmente à luz de curiosidades religiosas, como as práticas de
mártires ou faquires, como se as práticas ascéticas servissem à apropriada elucidação da negação
da vontade como possibilidade última do querer... Do mesmo modo, é o próprio Schopenhauer a
comprometer a consistência e a relevância filosófica do que afirma tão repetidas vezes como
sendo a mais importante aquisição de sua doutrina. Para Russell (1967, p. 307), à parte a
“considerável importância como uma fase do desenvolvimento histórico”, a filosofia de
Schopenhauer termina sendo incoerente e um tanto superficial... Por sua vez, nesta “dialética
trágica da vontade” percebe-se a convergência de salvação e aniquilamento que caracteriza,
segundo Szondi (2004), a “tragicidade” em geral; o trágico, em Schopenhauer, como em outros,
teria no princípio de individuação seu “autêntico fundamento”8 (ver Szondi, 2004, p. 64).
Feita esta apreciação geral e bastante inconclusiva sobre o perfil do pensamento
schopenhaueriano, devemos passar à tematização preliminar de alguns dilemas e dificuldades
confrontadas em sua leitura que, a nosso ver, não costumam receber resposta satisfatória. Por
exemplo, as questões do pessimismo, do solipsismo, da ambiguidade da vontade, do ascetismo e
do misticismo, sempre no interesse de considerar mais de perto o que usualmente se qualifica
como inconsistências doutrinárias.
7 Evidentemente esta é uma formulação bastante grosseira e preliminar, cujo intuito é não apenas indicar a própria superficialidade da compreensão usual quanto explicitar a complexidade da tese, de modo que a imprecisão desta síntese um tanto apressada reside, antes de tudo, na impossibilidade de se reduzir a tese a uma tal linearidade própria a uma sequência de eventos contraditórios entre si. 8 Afinal, se, por um lado, é na aniquilação da individualidade que se encontra a salvação, por outro lado, a salvação só é possível ao fenômeno máximo da individuação, a saber, o indivíduo humano. Neste sentido é que a eterna luta da vontade pode ser compreendida como dialeticamente trágica.
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1.1. Insuficiências interpretativas
O importante livro de Pernin sobre Schopenhauer – “importante” no sentido de fornecer
uma ampla exposição introdutória a seu pensamento –, dedica pouco mais de três páginas ao
tema da negação da vontade, o que muito surpreende por se tratar do próprio ápice dessa
filosofia. Restrita ao como da negação, Pernin (1995, p. 171) mostra com relativa correção que a
mesma começa (?) pela “renúncia aos frutos da ação”, passando-se então ao ascetismo na medida
em que “o corpo é a manifestação direta da vontade em um indivíduo dado” – ou seja, não basta
deixar de desejar coisas exteriores (motivos para agir, os “frutos da ação”) quando já se é uma
vontade –, tratando-se “de esgotá-lo e reduzi-lo, enquanto a morte não faz o resto”. De todo
modo, isto faz parecer que a negação pertence ao mundo da vida. Algo mais, porém, é aí
apontado: “Aqui, encontramos uma dificuldade. A renúncia ao querer não pode ser voluntária, deliberada
sem contradição. Não podemos esforçar-nos voluntariamente para a nossa salvação. Grande
mistério da aventura mística que se deve considerar!”. Isto significa: embora seja a Vontade a
negar a si própria, e tal negação seja neste sentido voluntária, não se trata da vontade deliberativa
(racional) de um sujeito – característica do “voluntário” ao menos desde Aristóteles (ver abaixo,
capítulo 4.1) –, estando a referida recusa fora da esfera individual. Isto parece o mais estranho à
primeira vista, mas é por isso que não cabe ao sujeito – que é mero fenômeno da Vontade – a
decisão de negar a Vontade, mas somente a ela mesma. Afinal, toda deliberação parte de motivos,
sendo por eles determinada, enquanto que a negação da vontade consiste em ato livre, impossível ao
sujeito, desde sempre já determinado segundo a vontade de que ele mesmo é fenômeno.
Portanto, não é cabível interpretar que a Vontade desaparece realmente em sua totalidade
fazendo com que o mundo desapareça como em um passe de mágica mediante sua negação in
abstracto pela vontade individual, mesmo porque o corpo persiste in concreto como vontade afirmada.
Negar não pode significar o mesmo que fazer desaparecer, como veremos mais adiante. Do
mesmo modo, a supressão do fenômeno é inútil, mesmo nos casos do aborto, do infanticídio
(Schopenhauer, 2004, [§69] p. 501-502) ou do suicídio (p. 499-501), que só afetam fenômenos
individuais.9
9 Ver von Hartmann apud Nietzsche, 2005b, (§9) p. 155-156: “proclamar-se-á provisoriamente que a afirmação do querer-viver é a única legítima; pois é unicamente pela total aceitação da vida e dos seus sofrimentos, não por uma covarde renúncia ou um abandono egoísta, que se pode servir ao processo universal. / A busca de uma negação individual da vontade é também absurda e inútil, ou seja, mais absurda ainda do que o suicídio. / O leitor avisado compreenderá, sem precisar de outras explicações, como se configuraria uma filosofia prática edificada sobre estes princípios, compreenderia que esta filosofia tinha o significado não de um divórcio, mas de uma reconciliação com a vida” (grifo nosso). Nietzsche trocará de posição, desprezando, em Crepúsculo dos ídolos (2000b, [“Incursões de um extemporâneo”, §16] p. 76) a já corrente associação entre von Hartmann e Schopenhauer. Identificamos em von Hartmann refutações a duas das três interpretações errôneas para a negação: ambas têm em comum serem iniciativas individuais (a aniquilação do desejo pela prática ascética e a aniquilação da pessoa, esta última desqualificada pelo
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Se de fato diz Schopenhauer (2004, [§25] p. 174) que “se, per impossibile [em latim no
original alemão], um só ente, o mais modesto que fosse, viesse a se aniquilar completamente, o
mundo inteiro deveria desaparecer”, não é cabível que se trate de uma efetiva possibilidade a não
ser que recusássemos à coisa-em-si a indestrutibilidade que lhe é própria – afinal, “se aniquilar
completamente” deve incluir a Vontade ela mesma como aquilo que fundamentalmente somos. A
propósito, vale observar que a expressão “per impossibile” indica antes tratar-se de um recurso
retórico pelo qual se destaca a unidade da Vontade em vez de se propor uma tese contrária à da sua
indestrutibilidade. Deve-se, então, antes de concluir apressadamente que se trata de uma nova
contradição de Schopenhauer, atentar para o contexto da “suposição” (hypothesis) aqui transcrita
[§25], que consiste no discurso sobre a unidade da Vontade malgrado seus múltiplos graus de
objetivação manifestos pelos indivíduos. Do ponto de vista formal, trata-se da condição da
contemplação estética, em que o sujeito se vê alheio às formas do conhecimento na medida em
que supera o princípio de razão, de maneira que toda matéria torna-se aí amorfa e destituída de
qualidades, assim como o próprio sujeito deve com isso desaparecer enquanto fenômeno (ver
Schopenhauer, 2004, [cap. I] p. 684-685). Não se diz, contudo, que não subsista como coisa-em-si,
como Vontade. A propósito, o fato de o mundo não mais aparecer como uma justaposição de
entidades individuais não significa que um fenômeno possa por sua própria força interior dar fim
àquilo de que é fenômeno. Por sua vez, persistindo o fenômeno, da negação do desejo individual por
coisas particulares não decorre mais do que a castidade e o ascetismo, transformações estas que,
embora sendo as mais exploradas por comentadores e pelo próprio Schopenhauer, nada
esclarecem filosoficamente, mas apenas antropologicamente. Há de se observar também, com relação a
este último caso, que o ascetismo, como se verá a seguir, é uma expressão, uma decorrência e não o
princípio da negação da vontade. Fica claro na leitura de Pernin, porém não mais do que na própria
obra de Schopenhauer, que se trata de uma negação que provém do universal e se dirige ao universal,
mas não no sentido de que a Vontade ou o mundo ou qualquer de seus fenômenos simplesmente deixem de ser em
absoluto!
Por meio de uma leitura mais atenta, Pernin (1995, p. 171-172) parece chegar a uma
compreensão clara do como da negação, mas, sem uma análise das essências da liberdade e da
vontade, bem como da própria negação, suas palavras mais conclusivas são ainda, para nós,
inconclusivas:
próprio Schopenhauer). A terceira seria a de que a coisa-em-si é aniquilada como tal por ela mesma, o que é absurdo não apenas por ser a Vontade indestrutível, mas também porque o fenômeno não é mais do que sua expressão, como que agindo em seu nome, jamais podendo subsistir nesse caso. O problema levantado neste capítulo, considerando estas três interpretações insustentáveis, foi pela primeira vez discutido no trabalho “Angústia, representação e negação da vontade em Arthur Schopenhauer”, apresentado no VIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), ocorrido em 2003 na cidade paranaense de Toledo, constituindo o mais antigo registro da pesquisa aqui desenvolvida.
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As manifestações da vontade são sempre ligadas ao conhecimento pelo jogo das motivações que as ocasionam. Mesmo no caso excepcional da renúncia, o conhecimento deve exercer suas funções de solicitação. A renúncia será a resposta da vontade a um conhecimento de conjunto, que intervém sempre a título de solicitação. A inteligência se faz puro espelho da vontade, abandonando sua parcialidade servil de uma maneira decisiva. [...] O mundo da representação se desvanece como as máscaras do Carnaval e a paz desce sobre um ser que abandonou a sua individualidade. O caráter empírico é então dissolvido, negado. Como no teatro de marionetes, pode-se romper os fios que os ligam às mãos que os manobram; do mesmo modo, o caráter é suprimido porque as representações não desempenham mais o seu papel de motivos. E (carta a Jean Auguste Becker, de 23 de agosto de 1844) isso é compatível com a tese do determinismo indestrutível das nossas ações. O caráter pode ser negado, embora não possa ser mudado. A liberdade se manifesta diretamente na ordem fenomenal para destruí-la. Em lugar de representações mobilizantes, obtemos um espetáculo de conjunto tranquilizante.
Em momento próprio, dever-se-á discutir o papel do conhecimento na negação da
vontade, sendo entretanto necessário não apenas aprofundar a noção de motivo como motivo
representado, mas também, e principalmente, garantir que essa “intuição”, esse “conhecimento
de conjunto” não é ele mesmo uma representação, uma mera fantasia do espírito como tantas
outras, uma simples “mistificação” de uma experiência subjetiva e ilusória que, como tal, é ainda
um motivo da vontade ansiosa por felicidade.10 Na ausência de “rigor” com relação ao
pensamento sobre a essência da vontade, toda “mística” schopenhaueriana recai em esotérico e
arbitrário dogmatismo: “O mundo em si é assim, e não se o vê como tal enquanto já não se pode
vê-lo como é em si”. Nenhum exemplo particular é capaz de justificar filosoficamente essa tese, não
passando de testemunho que, para ser aceito como tal, já deve supor a prévia inclinação para
aceitar aquilo que é testemunhado, pois, caso contrário, é mero exotismo ou esoterismo... Mais
que isso: Russell mostra o quão há de escandaloso nessa “mitologia” em torno de uma Vontade a
um tempo metafisicamente fundamental e moralmente má e perversa, prova de que
Schopenhauer é, segundo ele, um pessimista (1967, p. 300).
É um insulto aos místicos dizer que acreditam nesta mitologia. E a insinuação de que, sem conseguir a completa não-existência, o sábio pode, não obstante, viver uma vida de algum valor, não é possível de conciliar-se com o pessimismo de Schopenhauer. Enquanto o sábio existe, existe porque conserva a vontade, que é o mal. Pode diminuir a quantidade do mal debilitando sua vontade, mas não pode jamais adquirir um bem positivo. (Russell, 1967, p. 305)
10 De todo modo, segundo as pretensões e limitações do presente estudo, tal discussão não poderá ser exaustiva nem exceder o necessário para caracterizar o sentido da liberdade da vontade que se nega e, é claro, o que é aí livremente negado.
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Ora, retornemos ao questionamento acerca de Schopenhauer ser de fato um pessimista.
Não será esta “incoerência” um indício do contrário, do mesmo modo que se evadem aí aqueles
que enxergam alguma ponta de otimismo no saldo final da doutrina schopenhaueriana da
salvação? Afinal, Russell, ao inferir o pessimismo com que rotula Schopenhauer, também
apresenta uma interpretação demasiado maniqueísta da “Vontade como mal”, o que não faz
sentido se o “pessimismo” schopenhaueriano consiste em justamente não reconhecer nenhum
bem real positivo, sendo negativo e ilusório todo bem representado. Categorias morais não
podem passar de abstrações regidas pelo princípio de razão suficiente. De que então este “mal”
seria a contrapartida? A que se oporia este satan (inimigo, adversário, opositor) na ausência do
bom Deus? Se, por sua vez, se concebe esse “mal” como categoria ontológica – no sentido de
carência de ser, tornado célebre por Santo Agostinho em remissão aos “padres” capadócios –,
que faltaria a um querer cego e indeterminado? O saber sobre o Bem? Com efeito, atribuir uma
essência determinada à Vontade ou ao mundo, qual seja, como bons ou maus em si, suporia um
sentido previamente dado, um fundamento, o que não se acomoda no pensamento de
Schopenhauer que, antinaturalista, concebe o mundo como absurdo, a Vontade como sem
princípio e sem finalidade, um mundo sem causalidade em si mesmo. A este problema responde
muito bem Piclin, citado em nota por Roger – que, aliás, recusa a tese de Rosset (1967; segunda
edição em 1994) segundo a qual Schopenhauer é um “filósofo do absurdo”11 – ao final de seu
prefácio a Sobre a essência do fundamento: “Pode ser que o vocabulário de Schopenhauer e a
mordacidade de sua frase por vezes tenham enganado o intérprete, mas não achamos que a
doutrina de Schopenhauer seja ambivalente, como se existissem para ele uma ‘boa’ Vontade e um
‘mau’ Querer-viver” (Schopenhauer, 2001, p. LXXXI, n. 106; ver p. XII, n. 11). Veremos mais
adiante que “bom” e “mau” são categorias atribuíveis ao caráter, que, embora seja chamado de
coisa-em-si (Vontade) no sentido de constituir a essência particular a cada indivíduo, só se aplicam à
Vontade enquanto, respectivamente, se nega e se afirma, designando, respectivamente, a propriedade ou
a impropriedade de sua autoconsciência, como bem se lê no §22 da monografia Sobre o fundamento da
moral. Em que consiste sua propriedade? No mesmo lugar responde Schopenhauer (2001, [p. 271]
p. 218-219):
11 Roger se justifica citando a qualificação do mundo por Schopenhauer como “demoníaco”, o que significaria “regido pelo Mal”. Conforme tentamos mostrar aqui, a oposição ao otimismo explica esta retórica, mas não pode ser compreendida em desconsiderando a crítica ao racionalismo que supõe um mundo ordenado. Se, de fato, Schopenhauer se mostraria como um profundo pessimista afirmando que há uma ordenação perversa da natureza, não parece ser este o caso, como teremos a oportunidade de constatar ao longo deste estudo. Em momento próprio, ademais, veremos em que sentido, sim, Schopenhauer pode ser melhor compreendido como “filósofo do absurdo”. Brum (1998, p. 32), por sua vez, recorrendo a Julian Young e Clément Rosset, considera Schopenhauer, ao mesmo tempo, filósofo do absurdo e pessimista. O que a posição de Roger indica, nesse ínterim, é que, apesar de citar Piclin, em nota final, e um tanto fora de contexto, compartilha de uma interpretação típica.
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“A individuação é o mero fenômeno que nasce mediante o espaço e o tempo, que não são nada além de formas de todos os objetos condicionadas por meio de minha faculdade cerebral de conhecimento. Por isso, também a multiplicidade e a diferenciação dos indivíduos é um mero fenômeno, quer dizer, só está presente na minha representação. Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência.”
A rigor, portanto, o que se nega – em mim, no outro, no mundo – não é nada de
“positivo”, mas, pelo contrário, de ilusório... Nega-se o objeto da subjetividade em nome do
essencial, recusa-se a multiplicidade pelo reconhecimento da unidade da Vontade. Vontade “má”
é vontade afirmada como indivíduo dotado de uma falsa autoconsciência. Brum (1998, p. 48), que
parece assumir a interpretação de que a vontade “é o mal e a maldade”, por outro lado,
demonstra compreender claramente que se trata aí da vontade afirmada no mundo: “Percebe-se
que, à medida que o homem se afasta da afirmação da vontade, se torna melhor, menos perverso,
segundo Schopenhauer. A vontade (que é o mal e a maldade para Schopenhauer) deve ser
domada para que a ilusão do princípio de individuação se dissipe”. “Afirmar o seu apego ao
corpo, ou afirmar sua vontade, já é isolar-se dos outros, participar da ilusão da individuação”
(Brum, 1998, p. 43). Enfim, parece que algo de positivo é negado não como em si, mas como objeto
real de nossas representações que consiste precisamente naquilo que a consciência egoísta e
sobretudo a má tomam para si como verdadeiro: a separação dos entes entre “eu” e “não-eu”,
entre “si mesmo” e “o outro”. Em que lugar se poderia encontrar, pois, um “solipsismo
schopenhaueriano”? Em lugar algum senão no mundo como representação!
1.2. A ambiguidade da Vontade
De volta então às lacunas deixadas por Pernin, perguntamos: e se o princípio de
individuação, condição de toda entidade dada, só é superado in abstracto, e não por um claro e
verdadeiro conhecimento do em-si? Segundo que mistério a negação do caráter empírico coincide
com a negação da vontade se o caráter empírico é particular? Negação do que antes se afirma
como caráter já não é uma mudança de caráter e não somente no caráter? Ou será que a negação
do caráter, em suprimindo-o, suprime o que, por natureza e segundo a mesma é imutável? Em
que sentido isso se concilia com a indestrutibilidade das ações e com a imutabilidade do caráter?
Ou será, finalmente, que a negação do caráter consiste tão-somente na superação daquilo que faz
com que nos creiamos ao mesmo tempo substanciais e distintos de todo o resto, particularizados, a
saber, o representar-se como indivíduo? Eis aí um grande dilema para as “filosofias da diferença”
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que, se opondo às “filosofias da identidade”, desconsideram a face extralógica da questão – posta
por Schopenhauer e, antes dele, por Mestre Eckhart – à luz da qual, superada a identidade-
pessoal, precipitam-se no nada todas as diferenças.
A sequência da pretensa explicação de Pernin, que aí se encerra dando lugar a
considerações sobre as circunstâncias favoráveis à negação da vontade (!), gera mais perguntas do
que fornece explicações. Seu principal valor para o iniciante reside tão-somente no seguinte: “o
caráter é suprimido porque as representações não desempenham mais o seu papel de motivos”. A
compreensão desta fugidia e breve afirmação é o passo inicial e decisivo para a compreensão da
relação entre angústia e representação, mas apenas um passo, contudo fundamental, como se verá,
para a compreensão do sentido da própria negação da vontade.12 O caminho para tanto é mais
longo, e há bastante a percorrer até que se chegue lá... Afinal, defende-se aqui que, na verdade,
são as representações que desaparecem ou, melhor dito, a vontade individual se torna indiferente
a elas a ponto de não mais reconhecer-se como tal. Não seria um superação subjetiva e abstrata,
pois o próprio locus da faculdade abstrativa, o sujeito, em sendo suprimido na negação desde sua
subjetividade imediata, mesmo que não em seu ser, é instantaneamente posto à parte e perde seu
poder de efetivação (ver abaixo, capítulo 3). Não suprimida a essência, essa vontade persiste
enquanto há vida, de modo que nenhum dos fenômenos desaparece “realmente”, mas deixam de
atrair minha adesão, deixam de me comprometer – i.e., é suspenso o caráter de já sempre estar
previamente (pro) posto (metido) junto a (com) fenômenos enquanto motivos representados no
interesse de minha vontade.
Em que, portanto, reside a “tranquilidade”? Em um mundo que sofre como não mais eu
mesmo sofro? Eu mesmo ainda sou, e o que eu sou é também fenômeno, representação de um
eu compassivo que não mais se diferencia de qualquer não-eu, mas que sofre como e com todo não-eu
– nisto consistiria Mitleid, dito em breves palavras. Trata-se, pois, de uma certa espécie de
representação que deixa de me afetar uma vez que a vontade se nega em mim... Mas como
entender a persistência de alguma representação se na compaixão está suspensa a diferenciação,
dando lugar à identificação? Com-padecer supõe uma unidade de indivíduos distintos, não uma
efetiva dissolução das individualidades. Não é esta dissolução que Schopenhauer pretende indicar,
mas a imediaticidade do modo como o não-eu é representado, ou seja, sem a interferência da
egoidade interessada para a qual o outro é um objeto – suprime-se o espaço que me distancia do
outro. Na pura intuição em que se funda a compaixão não há uma destruição da individualidade,
mas a superação do egoísmo pelo qual ordinária e originariamente o eu se afirma contra o não-eu,
12 Este passo, fundamental para considerações ulteriores, será dado em nosso sexto capítulo à luz da discussão sobre os pensamentos de Kierkegaard e Heidegger no capítulo quinto.
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objetando-o – etimologicamente, “objeto” consiste naquilo que “jaz diante de”, como algo de
oposto, contrário, donde o termo “objeção”; a relação é muito clara no alemão “Gegenstand”,
“objeto”. “A compaixão é um acontecimento no âmbito da vontade. Uma vontade que sofre por
sua própria essência e, mediante a contemplação da dor alheia, deixa, por instantes, de querer-se
exclusivamente a si mesma em sua limitação individual.” (Safranski, 1991, p. 439) Que ambos os
polos da relação sujeito-objeto persistem como tais de algum modo, mesmo no compadecer, fica
claro na seguinte passagem da monografia Sobre o fundamento da moral, sinalizando que a diferença
constitutiva subsiste nesse fenômeno muito embora não aja como motivação. “Já que não posso
entrar na pele do outro, então só através do conhecimento que tenho dele, isto é, da representação
dele na minha cabeça, é que posso me identificar com ele, na medida em que minha ação anuncie
aquela diferença como suprimida.” (Schopenhauer, 2001, [§16, p. 208] p. 136) A negação da
egoidade na compaixão não elimina sujeito ou objeto; o que deixa de haver é a relação cognitiva
fundamental de ser-para. Segundo Schopenhauer (2001, [§16, p. 211-212] p. 140), deve ficar claro
que ele é o sofredor e não nós e justo na sua pessoa e não na nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele, portanto nele, e sentimos sua dor como sua e não temos a imaginação de que ela seja nossa. E, mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a nossa consciência com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão.
Isto jamais se confunde com o prazer na própria felicidade frente à dor alheia. Conforme
citação do próprio Schopenhauer ([§19, p. 247-248] p. 187-188), esta concepção de compaixão
fora antes formulada por Rousseau no quarto livro do Emílio. “Como foi dito, só através do fato
de que eu sinta esse sofrimento, embora me seja dado como algo externo, meramente por meio
da intuição ou por notícia, que eu o sinta por simpatia [mitempfinde], o sinta como meu e, no entanto,
não em mim, mas num outro”, eliminando toda distância entre o padecer e o ver padecer, indicando
“que a barreira entre eu e o não-eu tenha sido, por um momento, suprimida”. A partícula “com”
(“mit”) de “compaixão” (“Mitleid”) indica o compartilhamento de um mesmo sentimento por mais
de um. Trata-se de um processo “misterioso, pois é algo de que a razão não pode dar conta
diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo caminho da experiência” por
real e cotidiano que seja seu fenômeno, justamente porque não é razoável sentir em outro assim
como está descartado o sentir em mim pela imaginação. ([§18, p. 229] p. 162-163). Certo é que a
negação da vontade enquanto suspensão de meus interesses, embora promova em mim uma
desconsideração de minha individualidade, não suprime a fatalidade de ser o “quem” que sou.
A negação como tal da vontade como tal, portanto, permanece na obscuridade e
inexplicada, e mesmo seus fenômenos são “misteriosos”. O que temos de indício até o momento
29
é a substituição do interesse pela compaixão como aquilo que passa a “ligar” eu e não-eu, agora
imediatamente, e não mais por intermédio das representações egoístas – naturalmente isto só se
aplica a uma compaixão em sentido estrito, não à mera prática da benevolência caridosa para com
os outros que ordinariamente envolve autoelevação. Todavia, sem a devida justificativa filosófica,
Schopenhauer não passa de um pregador, e de um pregador pessimista. Mas não o reduzamos a
tão pouco tão cedo... A princípio é certo que, mediante a negação da vontade, promovendo na
vontade que sou – ou melhor, na vontade que meu corpo e minha egoidade manifestam – uma
não-motivação por objetos por já não ser eu mesmo um sujeito volitivo dirigido a/por
representações segundo algum interesse, a indiferenciação mostra-se como um nada, como uma não-
existência, posto que não mais me tomo em consideração. Conclui Russell (1967, p. 305):
Não podemos interpretar isto de outro modo senão significando que o fim dos santos é chegar o mais aproximadamente possível da não-existência, que, por alguma razão jamais explicada claramente, não podem conseguir por meio do suicídio. Por que razão se deve preferir o santo a um homem que esteja sempre bêbedo, não é fácil de se verificar [...].
O teor deste questionamento de Russell é fácil de identificar. Se o fim é a libertação pela
não-existência, pelo nada, por que não se a conquista pela reiterada neutralização da
“consciência”? Por que, afinal, é ao invés requerido um conhecimento de certa espécie?
Conhecimento de que? De nada? O como e o que são sempre expostos, mas não claramente em
seu sentido – para não falarmos em “porquês” –, como diz Russell (se é que o sentido se descobre
apropriadamente por meio de explicações). Isto indica, todavia, que a vontade deve, de algum modo,
estar aí. A natureza da autonegação do fenômeno corporal pelo suicídio ou da consciência pelo
entorpecimento das faculdades é evidentemente negativa, reativa – como diria Nietzsche –, e,
como será desenvolvido mais adiante, egoísta, tendo como apoio a adesão à individualidade – eu
me aniquilo; eu me entorpeço. Abre-se mão da responsabilidade pela própria existência na mesma
medida em que, paradoxalmente, se busca assumir o controle sobre ela, mesmo em produzindo o
descontrole da não-consciência, como em um querer-não-mais-responder. A negação da vontade
nada pode ter a ver com controle, seja pela autodestruição de si como algo que não se quer, seja
pelo autocegamento pela via de um torpor autoinfligido artificialmente.
Ainda, contudo, que se dê este passo além do que Russell não conseguiu ver, permanece
intacta a essência de sua dúvida, proveniente de uma certa perplexidade diante do fato de que a
possibilidade da negação da vontade só pode ser adequadamente compreendida em sua
positividade, como ato livre, ativo, e não como mera recusa ou renúncia encobridora; enfim, de
30
outro modo que não aquele consolidado na tradição.13 Embora também expressa de modo ainda
inconclusivo, merece menção a hipótese de Roger no já referido prefácio, tratando da inversão da
Vontade que, essencialmente afirmadora, se nega a si própria: “Ela se inscreve no plano de uma
metafísica em que a vontade pode, sem dúvida, tanto se afirmar quanto se negar, mas em que a
Verneinung [negação], isto é, a resignação, prefigurada pela compaixão, se aproxima ao máximo da
essência. [...] não da ‘minha essência’, pois esse possessivo doravante está ultrapassado, mas da
Vontade” (Schopenhauer, 2001, p. LXXX-LXXXI).
O ascetismo como primeiro modo de expressão da negação da vontade não deve ser
simplesmente reduzido a um “ódio à vida”, traço geral do niilismo segundo Nietzsche, ou mero
sinal de pessimismo segundo os comentadores em geral. Neste sentido, é a princípio muito
estranho que a aguda interpretação inicial de Nietzsche haja degenerado na medida em que parecia
cada vez mais inconciliável com seu próprio projeto filosófico, com o perdão da palavra que
afirma ter ele um “projeto”, coisa sumariamente recusada pela maioria de seus adeptos. De todo
modo, a exaltação do ascetismo por Schopenhauer é adequadamente compreendida à luz das
expressões fundamentais da afirmação da Vontade em geral. A afirmação da Vontade como
querer-viver supõe dois estágios radicais na existência natural de todo indivíduo vivo: 1) conservar
a vida a todo custo apesar de todo sofrimento que isto implique; 2) perpetuar o querer-viver
individual por meio da procriação, pela qual é a própria individualidade como tal (não o indivíduo
dado – isto é muito importante!) que se perpetua na descendência (Schopenhauer, 2004, [§60] p.
414). Na falta deste segundo estágio, o primeiro deixaria de ter lugar, pois a vida extinguir-se-ia
dentro de alguns anos.
Algo aqui é bastante importante: pode-se apontar no ser humano uma inquestionável
superioridade com relação aos demais fenômenos da Vontade, que nada tem a ver, em última
instância, com a racionalidade ou a ordem da criação. Trata-se do fato de ser a única espécie
capaz de levar a liberdade à perfeição, ou seja, negar o que a Biologia (ciência da vida natural,
regida por determinações) designa como instinto de conservação da espécie – a Biologia, enquanto
ciência que é, interpreta a vida como necessidade, sujeita a causas universais e inescapáveis, o que se
traduz na noção de “instinto”, entendido como impulso interno, predeterminação impessoal e
incontrolável. Em outras palavras, embora Schopenhauer explique metafisicamente esse
“instinto”, bem como o da conservação da própria vida, recorrendo à noção de “vontade-de-
viver” – justificando, portanto, a Biologia –, traz duas contribuições originais: 1) não se encontra
na racionalidade a dignidade humana – pelo contrário, na medida em que a razão apenas fornece
representações de motivos estimulantes para o querer-viver como, de modo menos perfeito, o
13 V. acima, nota 9, a originalíssima apreciação de von Hartmann.
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fazem os instintos em outros animais –; 2) embora reconhecendo a excelência humana na
possibilidade do ato livre, distingue-se da tradição quanto à compreensão do uso próprio dessa
liberdade, dizendo que ela se mostra perfeitamente apenas na negação de todo querer positivo,
indo mesmo contra toda determinação natural e independentemente de qualquer obrigação
moral, sendo assim rejeitada a deontologia kantiana.14 O mundo inanimado não é capaz da
autoconservação ou da reprodução, o que é, todavia, equilibrado pela sua tendência à permanência,
sem falar no “princípio” de indestrutibilidade da matéria; o mundo vegetal é capaz de ambas, mas
de modo inteiramente passivo; o mundo animal já é capaz de ambas lutando incondicionalmente
por tal e qual; nisto a humanidade se destaca, pois, diferente da simples animalidade, tem como
possibilidade agir de modo antinatural, ou seja, contra toda determinidade natural (Schopenhauer,
2004, [§70] p. 506).
Cabem aqui algumas observações. Ao rejeitar a redução da vontade à razão e, por extensão,
à consciência, Schopenhauer contraria toda uma tradição do pensamento ocidental, opondo-se
especialmente a Kant, e mais: menospreza a razão como faculdade submetida aos impulsos da
primeira. Nesse ínterim, Schopenhauer não apenas absolutiza a incondicionalidade da vontade –
movimento ausente tanto em Kant como em Leibniz, por exemplo – e, com isso, ao menos tenta
superar a mera inversão de valores morais e antropológicos... Do mesmo modo, Schopenhauer
não apenas parece ser o primeiro a excluir a vontade do âmbito do “espírito”. Mais notório deve
ser que Schopenhauer, embora como todos os modernos reconheça na possibilidade da liberdade
a “dignidade” humana, diverge de todos ao afirmar que ser livre consiste em um dirigir-se às
cegas. Como se lê no texto Sobre a vontade na natureza (Schopenhauer, [s.d.], p. 3-4), em que
Schopenhauer se opõe ao dualismo em Fisiologia15, a vontade (Wille) se distingue da
arbitrariedade (Willkür) – distinção já encontrada em Kant (Caygill, 2000, p. 318-319) – por esta,
derivada daquela e iluminada pelo intelecto, consistir em uma eleição segundo motivos, obrando
voluntariamente/involuntariamente segundo determinações causais, enquanto a vontade
independe de motivos, reflexão, consciência ou preferências, sendo justamente por isso que, para
14 O duplo caráter do ser humano – ser-determinado pela natureza; ser-livre pela moralidade – será tema de capítulo posterior (4.2), onde se aprofundará a problemática aí envolvida. 15 Tal dualismo consistiria em atribuir origens diferentes aos movimentos voluntários e involuntários, indicando como voluntários os conscientes e, involuntários, os inconscientes. Nesse sentido, Schopenhauer não substitui esse dualismo – redutível à dicotomia racional/irracional – por algum outro; ao invés disso, submete o voluntário e o involuntário igualmente à ordem das representações, que, como tais, são sempre expressões da Vontade. Não há aí dualismo, mas o fenômeno decorrente da intervenção do fisiológico. Voluntário e involuntário têm em comum o fato de remeterem a uma causalidade. Em outras palavras, a dualidade entre a Vontade e sua expressão fenomenal só faz sentido do ponto de vista da representação, sendo produto do intelecto, e não uma realidade em si. Também tudo o que se considera voluntário e involuntário, como decorrente ou não do exercício de uma faculdade de arbítrio, não passa de representação.
32
Schopenhauer, nenhum arbítrio pode ser indiferente.16 As próprias noções de “voluntário” ou
“involuntário”, como diz ele no mesmo lugar, não podem dizer respeito à vontade, mas ao
arbítrio segundo motivos ou a excitações (representações), respectivamente. Assim, nossos
olhares devem ser desviados de nossas ações para nossos motivos e destes para sua
insubstancialidade representacional, de modo que a natureza humana, comum à do mundo
fenomenal em sua totalidade, é tornada irredutível a categorias racionais – pois as precede
também ontologicamente – bem como a princípios ou fins. O próprio homem, em sua concretude
fenomenal, é um “meio” pelo qual se expressa na natureza o ser-livre que, como tal, e não na mera
representação conceitual da “humanidade”, é fim em si mesmo.
A possibilidade, exclusiva do homem, de expressar de modo mais perfeito o ser-livre reside
em poder não mais se dirigir a fins. Uma vez que o homem não está, graças a suas representações
abstratas, confinado à experiência imediata, suas ações também sofrem a influência motivante de
conceitos proporcionando-lhe uma liberdade relativa em comparação aos animais desprovidos de
razão (Schopenhauer, 2001, [§6, p. 148] p. 59). Não que o homem deva ou mesmo possa
livremente pautar sua conduta em meras abstrações, mas sim, que tais abstrações lhe permitem
uma deliberação acerca dos meios, possibilidade expressa fenomenalmente através da diversidade
dos caráteres particulares. Além disso, o mundo se lhe apresenta ou se lhe pode apresentar como
fenômeno da vontade livre – o homem sabe, por exemplo, que quer a felicidade e o fim do
sofrimento; suas representações são dotadas de consciência e ele se compreende como um si mesmo.
Somente reconhecendo-se como egoidade – que é uma representação abstrata – é dada ao
homem a possibilidade, ainda que remota, de negá-la ou, pelo contrário, afundar-se nela segundo
a ilusão de que é capaz de controlar suas ações pelo arbítrio, muito embora tal decisão já não se encontre
em seu poder como indivíduo. A liberdade meramente relativa, expressa na diversidade do
fenômeno humano, diz apenas que o indivíduo se coloca acima da espécie apesar de efetivamente
não o ser; seu egoísmo é mais evidente. Se isto se funda na diversidade do caráter próprio a cada um,
tal caráter é desde sempre determinante. A liberdade perfeita deverá exigir a superação da egoidade,
o que só é possível na medida em que o intelecto, no uso de sua capacidade puramente intuitiva,
16 Kant (1974b, p. 368 et seq., especialmente n. 4) fizera do arbítrio uma espécie de “primeiro-motor” da ação, de modo que, diferente de Schopenhauer, afirma que não há arbítrio indiferente pois, quando não se decide por máximas particulares (más), se decide por uma lei universal expressa em um juízo cuja forma é a do imperativo categórico. O próprio Kant observa que esta causa-primeira, fundamento de todo agir, nos é insondável na medida em que, não causada por qualquer outra, escapa ao nosso entendimento; por sua vez, não admiti-la levaria a um regresso infinito – o argumento é análogo àquele aristotélico sobre o movimento; afinal, todo agir também o é. Devemos concordar que, sem uma decisão originária, não haveria qualquer ação livre. No entanto, deixando de lado a deontologia kantiana, Schopenhauer não aceita o arbítrio segundo leis ou máximas como fenômeno mais originário da liberdade na medida em que isto reduz a liberdade à causalidade, assim como a própria vontade parece estar reduzida ao uso da liberdade no arbítrio em vista da ação, ou seja, a escolha de causas para si mesmo. A crítica desta redução será estabelecida a partir do estudo histórico empreendido em capítulo posterior (4).
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supera tanto as abstrações da razão quanto as relações causais dadas no entendimento. O
intelecto, diferente da razão e do entendimento, é antes vinculado à pura sensibilidade, de modo
que o “inteligível” e a “inteligência” se referem a intuições puras da unidade, como a Ideia
schopenhaueriana (ver capítulo 3, abaixo). Por esta razão, o intelecto seria capaz, como ocorre na
contemplação estética, de intuir a representação imediata da Vontade, a Ideia, para além de toda
multiplicidade fenomenal. É neste sentido que o intelecto, sendo irracional (vernunftlosen Intellekt),
pode ser dito independente da razão (e também do entendimento (Verstand)!)17 ou da própria
vontade, ao menos enquanto dirigida a objetos.
[...] não é somente a vontade ela mesma que escapa da esfera de ação do princípio de razão suficiente. O intelecto puro também excede os limites da racionalidade ou fundamentação. Além disso, em sua forma desindividualizada, genérica, o intelecto também está situado fora do domínio da vontade [...]. O ponto final do processo de autoconhecimento da vontade e a subsequente autonegação é um intelecto sem-intenção [will-less] e calado [wordless] no qual toda realidade fora negada – por si. (Zöller, 2000, p. 213)
Em última análise, é pelo intelecto irracional que a liberdade da vontade se pode realizar, o
que nos permite concluir que esta se objetiva mais perfeitamente naquele do ponto de vista do
ser-livre, e, no homem, do ponto de vista da individualidade, embora não imediatamente como
na Ideia.
Uma última observação, bastante provocativa, é deixada aqui antes como uma pergunta:
Não será o impulso para a reprodução uma consciência profunda da vacuidade da individualidade
determinada, do eu, pela qual a Vontade impõe-se já sobre a representação de modo a que o
indivíduo aceite sua própria finitude em troca da alegria da posteridade? Em caso de uma
resposta positiva, não haveria aí uma ambiguidade, própria à Vontade, uma vez que, em se
afirmando no “instinto de conservação da espécie”, ao mesmo tempo se nega na medida em que
o indivíduo é feito resignar-se mediante o amor dos filhos? Não seria esta ainda uma forma de
negação da Vontade que jamais concorreria com a intervenção das representações da razão, ou
será que devemos acatar sem questionamento a reiterada afirmação de Schopenhauer de que, para
a Vontade, o indivíduo não tem qualquer valor ao lado da espécie? Tais questões são algumas
17 No uso comum, o termo alemão “Verstand” tem o sentido substantivo de intelecto e inteligência, compartilhando a raiz das palavras que designam “compreensão” etc. Por apropriada que seja sua tradução, em português, por “entendimento”, fica claro que se trata de uma operação racional. Ao empregar um termo de origem latina, “Intellekt”, Schopenhauer pretende indicar algo distinto daquele comportamento cognitivo, provavelmente no intuito de se aproximar da intuição imediata e não-discursiva das Ideias platônicas. O contrassenso da expressão “intelecto irracional”, em verdade, indica uma faculdade de inteligir de maneira extra-representacional, intelecção esta para a qual, pelo próprio espanto cuja marca se fixa na consciência, se busca em termos como “belo” e “sublime” uma tradução para o sentimento de uma “experiência” (estética) inusitada da vontade em mim.
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daquelas que não poderemos responder aqui, pois, para tanto, dever-se-ia antes desenvolver uma
análise profunda do sentido da vida e do amor como complemento ao estudo preparatório aqui
desenvolvido. De todo modo, uma outra coisa é certa na filosofia de Schopenhauer: se a
existência individual de nada vale para a Vontade, e por isto (?) se destrói a cada instante, é
também nela que a cada vez a mesma Vontade se afirma.
1.3. Os fenômenos autênticos da negação da vontade e sua positividade
Esclarecido isto, conclui-se que Schopenhauer, com razão, encontra um traço especial da
vontade humana. Este traço especial, segundo um olhar mais geral, retomando o que dizíamos há
pouco, não poderia ser melhor expresso do que na livre recusa da procriação, detendo assim o
movimento de perpetuação do fenômeno do querer-viver.18 Tal recusa não contraria apenas a
natureza e a moral, mas também uma gama de afetos e práticas sociais mais do que internalizadas
e consolidadas. O passo seguinte seria a própria mortificação do corpo, uma vez que este é ainda
vontade determinada na natureza, condição para toda outra manifestação do desejo. Que isto
prova? Que a liberdade da vontade é passível de realização no mundo dos fenômenos tão-
somente na espécie humana, sendo já explícito que isto não se deve à faculdade deliberativa da
razão, ao arbítrio, mas à inteligência, mesmo porque não se trata de um poder-agir independente.
Provisoriamente, não tiremos daí senão um ensinamento geral acerca da maneira pela qual o homem se distingue entre todos os fenômenos da vontade; com efeito, somente nele a liberdade, a independência com relação ao princípio de razão suficiente, este atributo reservado à coisa em si e que repugna ao fenômeno, tem oportunidade de intervir até no fenômeno; de uma só forma, é verdade: um dia produzindo uma contradição do fenômeno consigo mesmo. (Schopenhauer, 2004, [§55] p. 366)
Fica claro, entretanto, que se trata de uma “prova” sobre o homem, isto é, antropológica, não
sobre a vontade. Não que a filosofia de Schopenhauer seja antropocêntrica, como era usual em
seu tempo; em sua filosofia, como na de Nietzsche, o homem é antropocêntrico. De todo modo, pode-se
destacar a possibilidade da negação da vontade, pelo homem, como fenômeno de interesse para o
reconhecimento da liberdade e, daí, investigar-lhe a essência. Nesse sentido, se o primeiro
18 Deve-se ressaltar, em conformidade ao que já se afirmou acima, que não se trata da efetiva supressão de cada coisa senão como fenômeno, ou seja, daquilo que aparece como objeto na e para a representação de um sujeito. Se a relação sujeito-objeto somente se dá na consciência humana, o desaparecimento do mundo como representação, e não como coisa em si, já seria como o desaparecimento do mundo como tal. Um exemplo abusivo inspirado na Monadologia de Leibniz (1983a, [§6] p. 105): se cada mônada particular reflete todas as demais, todo um mundo, o desaparecimento, per impossibile, de uma única mônada seria como o desaparecimento de todo o universo.
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momento da via ascética é a castidade, não se trata tão-somente da recusa do apetite ou mesmo
do instinto sexual, mas do que ele significa em sua efetividade: a perpetuação da vontade
enclausurada na natureza, e não como coisa em si, mesmo porque, sendo a coisa em si alheia à
temporalidade (uma das formas do princípio de razão, tal como já lemos em Kant), é
indestrutível (Schopenhauer, 2004, [§54] p. 350-351). Dito mais claramente: não se trata da mera
supressão da vontade do indivíduo para procriar, como mera contenção deliberada do apetite
sexual, mas do impedimento do próprio ressurgimento da Vontade como tal, na sua totalidade,
sob a forma de um fenômeno qualquer, sendo ela mesma suprimida – o não-aparecimento de um
novo corpo é mera consequência natural de um ato livre de negação. É como se a Vontade, pela
negação da posteridade, expressasse a consciência do indivíduo acerca de sua insubstancialidade,
tirando todo o sentido de uma conservação de si mesmo pela descendência. Schopenhauer
mostra que esta “decisão” da Vontade não pode ser ela mesma pautada por motivos – neste caso,
não seria apropriadamente dita livre –, ou seja, como algo derivado de abstrações conceituais, mas,
em vez disso, deve provir de uma intuição pela qual se rompe – conforme já foi indicado e se
aprofundará adiante – com o princípio de individuação submetido ao princípio de razão
suficiente (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 476 et seq.). Neste sentido, ainda afirma Schopenhauer
(2004, [cap. XLVIII] p. 1387), citando uma referência de Clemente de Alexandria a Cassiano, o
vínculo entre a castidade e a superação da diferença fenomenal entre o masculino e o feminino, significando
uma superação do princípio de individuação em uma de suas expressões, a saber, a diferença de
gênero.
Isto explica por que Schopenhauer vincula sempre essa espécie de conhecimento da
unidade da Vontade ao desvelamento do mistério do mundo pela experiência mística, querendo
dizer com isto que não se trata de uma deliberação racional e calculada, pois esta sempre avalia
antes de supostamente decidir, como no caso exemplar daquele que exerce a caridade por causa da
salvação pessoal. O ascetismo, pois, parte da virtude ensejada pela intuição do mundo como
Vontade, e então avança um primeiro passo para a libertação, não sendo, contudo, nem
suficiente, nem fundante, mas tão-somente uma das expressões fáticas da liberdade da Vontade que
se nega. A castidade refletida seria, ao contrário, aquela comprometida com qualquer perspectiva
de evasão do sofrimento pessoal, comumente buscada nas religiões. Nesse movimento ascético
de regressão da Vontade para si mesma, primeiramente a castidade “nega a afirmação da Vontade
que vai além da vida do indivíduo” (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 478) para em seguida a negação
voltar-se para a Vontade que se expressa no próprio indivíduo que faz o que comumente
desagrada bloqueando toda influência de motivos exteriores animadores do querer-viver para além
do aqui e agora, bem como o próprio sentimento de desagrado que nos impele a tais motivos.
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Todavia, não parece lícito que Schopenhauer tome o ascetismo como sinônimo da negação da
vontade, como chega a fazer (2004, [§68] p. 481), mas, mais precisamente, como seu fenômeno mais
evidente, o que ainda não o esclarece em sua essência:
[...] o fenômeno maior, mais importante, mais significativo, que já se manifestou no mundo não é o do conquistador, é o do asceta. O que admiramos nele é a vida silenciosa e oculta de um homem chegado a uma concepção tal que, renunciando ao querer-viver, seu esforço age em toda parte e preenche todas as coisas, somente nele se manifestando a liberdade, de modo que sua conduta é justamente o oposto da conduta habitual. (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 485)
Nesse caso, dizer que a negação da vontade e o ascetismo são o mesmo não pode querer
dizer senão que o ascetismo, como expressão, manifesta o que é em si: vontade negada. Do
ponto de vista abstrato, conceitual, os preceitos morais do asceta são a caridade e o
reconhecimento de si no outro pela via do desvencilhamento do princípio de individuação e da
subjetividade, sem o que nenhuma negação sincera da vontade é possível, sendo por isso mesmo
que o interesse sexual cessa. Como tal libertação somente é possível pela vivência na medida em
que se tenha uma intuição mística do real, Schopenhauer, defensor do que considera um
autêntico e primitivo Cristianismo evangélico, tardio e deficiente com relação ao Hinduísmo
védico e ao Budismo, rechaça todo racionalismo cristão posterior em benefício de pensadores
como Mestre Eckhart (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 486), e isto porque e na medida em que suas
doutrinas não se justificam por conceitos, mas sim pela intuição. A propósito, apesar de não se
apresentar como pessimista, esta qualificação poderia ser imputada a Schopenhauer na medida
em que, explicitamente e por diversas vezes, se opõe a toda forma de otimismo racionalista –
entendendo-se aqui por “racionalismo” todo pensamento pautado em “abstrações conceituais”
tomadas como princípios (pré-conceitos) para deduções, sempre em benefício de uma visão de
mundo otimista: “o otimismo, nas religiões, como na filosofia, é um erro fundamental que fecha
o caminho a toda verdade” (Schopenhauer, 2004, [cap. XLVIII] p. 1397). De todo modo, a mera
oposição ao otimismo e ao racionalismo não basta para que se reduza o pensamento
schopenhaueriano aos seus contrários.19
Além das práticas ascéticas decorrentes da intuição da unidade da Vontade, Schopenhauer
(2004, [§68] p. 492-498) reconhece uma segunda via de negação, qual seja, a purificação pelo
19 Reconhecendo ser “ponto pacífico” a qualificação de Schopenhauer como pessimista, a qual jamais dirigiu publicamente a si mesmo assim como, por sua vez, jamais a recusou, não pretendemos estabelecer uma controvérsia, mas sim evitar os efeitos costumeiros do enraizado preconceito. Vale conferir o verbete “pessimismo” no dicionário de Cartwright (2005, p. 124-126), bem como “irracionalismo” (p. 89-90), onde se pondera e se aponta algumas limitações da apreciação de Schopenhauer como irracionalista na medida em que se coloca, com efeito, na contracorrente do tradicional racionalismo.
37
sofrimento extremado, desesperador, ou a proximidade da morte como iminência do que se
mostra como uma queda no nada, promovendo uma espécie de conversão, de metanoia, ou seja, um
giro de cento e oitenta graus que desvia o caráter do interesse pessoal mediante a perda de toda
esperança de salvação, o vislumbre da inutilidade de todo esforço nesse sentido. Se na primeira
via impera o reconhecimento da Vontade no sofrimento característico do mundo da vida, na
segunda, a negação se dá mediante o próprio sofrimento sentido de modo extremo a ponto de
aniquilar todo desejo, uma efetiva des-esperança.20 Em ambos os casos temos em comum o
aniquilamento de um si-mesmo egoico quando nada mais se espera ou se quer, pois o próprio
“si-mesmo” se encontra suprimido como sujeito volitivo. Aliás, se a pergunta formulada por Kant
(2001, [A 805 / B 833] p. 639) no que concerne ao problema da religião, a que são inerentes o da
existência de Deus (problema teórico) e o da moral (problema prático), consiste no “Que me é
permitido esperar?”, a resposta final de Schopenhauer seria: “Nada”. Isto significa a supressão de
representações de motivos ou razões para viver.
Nesse caso, a distinção entre a ausência de motivos para viver e a rejeição da vida individual é
digna de nota, pois, na medida em que Schopenhauer (2004, [§69] p. 499) considera o suicídio
como o contrário da negação da vontade de viver, como afirmação de um não viver sem razões, é
necessário entender a negação como um viver sem razões, o que suspende, junto a todo desejo e
individualidade, toda preocupação e cuidado de si, com a própria vida. Vive-se por viver e por
nada mais, pois, em essência, vive-se sempre por nada, sem causa e sem propósito “objetivamente”
sustentáveis senão do ponto de vista dos “otimistas”, que se valem para isto de representações
vazias; vive-se tão-somente por querer viver e mais nada, enquanto se é e na medida em que se é
desde sempre o fenômeno de uma vontade-de-viver. Do mesmo modo, segundo a liberdade da
Vontade, esta não se nega por causa da dor como um efeito que se segue a uma causa segundo o
princípio de razão (p. 495). Afinal, já vimos que a Vontade “despreza” o indivíduo em que se
manifesta. Por sua vez, o suicida seria aquele que não suporta a verdade de viver sem razões e perante a
inutilidade de todo esforço enquanto a negação da vontade-de-viver consistiria, por sua vez, em um
não se esforçar em buscar razões pelas quais continuar vivendo, suportando a vida embora não a querendo, pois
querer a vida é representar-lhe um sentido capaz de justificar o esforço para viver. Necessário notar, à luz da
sabedoria budista, que isto não implica um esforço por aumentar o próprio sofrimento e acelerar
a morte, razão mesma pela qual se prega a caridade e o equilíbrio, não a revolta.
Tudo isto já indica que a intuição da unidade da Vontade e o conhecimento que aí se dá se
referem à constatação de que se é por nada, implicando o “fundo vazio” das representações ao
20 Neste sentido, uma mais aprofundada compreensão do sentido da “certeza da morte” deverá ser desenvolvida no capítulo final deste estudo.
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lado da inutilidade de todo e qualquer esforço por fazer da vida algo dotado de sentido absoluto e
real. Portanto, uma vez que a Vontade consiste na realidade última de todo fenômeno, ou seja, de
toda representação, “o” nada21 se encontra intimamente ligado à Vontade e, por conseguinte, à
sua liberdade essencial, a qual deve então se exercer mais propriamente pela negação. Nada-
querer como próprio ao ser-livre como tal se mostra então como algo a ser desvendado, o que
faz remeter ao tema da angústia mediante a suspensão nesse nada bem como à natureza da
alienação desse ser-livre originário junto a representações, agora passíveis de ser entendidas como
motivos na ou para a fuga de si, tema de nosso último capítulo. É evidente que um “atalho”
poderia ser aqui tomado: dirigir a atenção diretamente ao problema da representação e do
conhecimento – o próprio Schopenhauer o fez seguindo seus princípios, constituindo assim uma
filosofia da imanência. Todavia, cabe-nos, antes disso, tomar o caminho mais longo em torno das
condições ontológicas e pressupostos ainda não explicitados para que então se possa finalmente
justificar a tese de Schopenhauer sobre a condição humana, o que uma preliminar explicitação
geral de sua antropologia não foi capaz de realizar. Somente assim, pela compreensão que se
opõe à mera crítica doutrinária – onde talvez fizesse sentido um esforço para “provar”, por
exemplo, que não há aí pessimismo –, poder-se-á adquirir a suficiente independência da doutrina
dada em benefício do pensamento do problema que se colocara ao doutrinador. Tal problema nos
conduzirá a uma abordagem do ponto de vista da transcendência, bem entendida como o já
sempre ultrapassar da Vontade relativamente ao dado representacional que a expressa, ou seja,
uma abordagem acerca daquilo que a imanência nos faz pensar – isto de modo algum deve ser
interpretado como um tratamento da Vontade como “entidade transcendente” em oposição à
imanência fenomenal. Afinal, sendo o presente estudo orientado segundo um tema, dever-se-á
recorrer à tradição filosófica como um todo, na medida do possível, sem atentar demasiado a
filigranas exegéticas de valor estritamente conceitual, que muito bem fazem para que vejamos o
que está próximo em detrimento do que se encontra ao redor – por estimável que isto seja junto
a especialistas, trata-se de algo que não favorece senão o encurtamento da visão, um verdadeiro
“pecado filosófico”. Por isso mesmo o presente capítulo não tem a pretensão de esgotar o tema,
nem o poderia em poucas páginas introdutórias a nosso tema mais geral. Desse modo, temos
salientado até aqui apenas as insuficiências mais expressivas e ao mesmo tempo mais corriqueiras
sem, com isso, querermos desprezar o quanto a literatura especializada avançou a este respeito,
mas, em vez disso, estabelecer o ponto de partida e tecer o fio condutor de nossas considerações,
cientes de que tal economia traz consigo o inconveniente de certa aspereza.
21 Não é lícito fazermos preceder à palavra “nada” um artigo definido, o qual, geralmente exigido pelo discurso, não pode ser empregado senão entre aspas.
2. “O” nada(-querer) segundo um duplo olhar
Com a tematização da negação da vontade chegou-se, até o momento, somente aos
fenômenos dessa negação, os quais mostram a liberdade da Vontade, que lhes é essencial. Também se
concluiu que a negação consiste na superação das representações causais e conceituais mediante a
intelecção da unidade à parte da qual nada é. O próprio mundo é então como um nada; mais que
isso, a própria Vontade “é”, enquanto fundo de todo fenômeno, nada, não “alguma coisa”. Pelo
termo “fundo” pretendemos indicar o íntimo, o essencial, e não algo dado ou exigido enquanto
causa ou fundamento, razão de ser dos fenômenos. Além de nada ter como causa, a Vontade
nada causa, sendo para além de toda causalidade própria às representações e fenômenos; a
Vontade não é um ente e já mostrara Kant que toda causa é uma condição do entendimento, da
linguagem e do raciocínio. Por isso mesmo denominamos esse “fundo” desde já “nada” e, assim,
concluímos o caráter absurdo do mundo schopenhaueriano.
[...] a vontade como realidade por trás ou por baixo do “mundo como representação” não é para ser considerada como o fundamento ou, ainda mais especificamente, a causa do mais elevado, [o] mundo representacional. É precisamente a marca da vontade no eu [self] e, por extensão, da vontade no mundo que seja ela mesma sem fundamento e, em contrapartida, não funcione como o fundamento de qualquer outra coisa. Não há razão ou fundamento para o ser da vontade, nem para quaisquer de suas manifestações. Racionalidade ou fundamentação somente ocorrem no “mundo como representação”, dependente do intelecto. Sem dúvida, em última instância, é a vontade mesma (como fonte única da realidade) que manifesta a si própria no e como o intelecto enquanto pensa os entes. Mas a relação entre a vontade como tal e os objetos suficientemente fundados do intelecto é apenas indireta; nunca há uma fundamentação direta, legalmente governada, de uma dada representação ou objeto na vontade como tal. (Zöller, 2000, p. 212-213)
Desse modo, podemos dar início a um esclarecimento mais filosófico para o problema, e
não apenas uma exposição antropológica do fenômeno, seja voltada para a sua expressão humana
(práticas ascéticas), seja para sua justificativa epistêmica (doutrina do intelecto irracional – ver
acima, nota 17 e seu contexto). Para tanto, deve-se distinguir um sentido positivo de um sentido
negativo de “nada-querer” no intuito de pôr de lado, por razões metodológicas, o que não passa
de representação particular. Enquanto críticos diagnosticadores do niilismo, Nietzsche e
Heidegger também deverão ter sua parte na discussão ao lado de Schopenhauer e Mestre
Eckhart, mediante o que duas hipóteses positivas deverão ser defendidas: de que a Vontade sempre
se afirma e de que nada-querer também diz respeito a um liberar sereno, ou seja, uma alternativa
40
para a inquietação apropriadora do querer. Por meio disso se deve mostrar ainda que a
negatividade lógica constitui o ente determinado, individual, e somente a ele pertence.
2.1. A caminho da positividade do livre nada-querer contra o psicologismo
A crítica usual segundo a qual o ascetismo – paradigma da negação do querer – é reduzido
ao niilismo, à recusa da vida e do próprio valor da existência encobre a positividade fundamental da
negação do querer-viver, na qual pretendemos encontrar o sentido mais originário do ser-livre, ou
seja, o ser-livre independente das representações usuais. Esta positividade consiste na afirmação da
liberdade sobre a determinidade do fenômeno em sua naturalidade. Liberdade e natureza se
contrapõem na medida em que a Vontade contradiz livremente seu próprio fenômeno.
Todavia, entender o livre não-querer como simples recusa disto ou daquilo envolve
evidentemente um contrassenso, muito embora seja isto que o senso comum entende por
“liberdade da vontade”, vinculando-a à faculdade (psíquica) de escolha, ou seja, à capacidade de
arbitrar.22 O contrassenso reside no fato de que, sendo o não-querer determinado, relativo a algo,
sua motivação reside na coisa recusada, ou melhor, naquilo em virtude de que se a nega, ou seja,
o que se encontra implicado na possibilidade de sua recusa ou aceitação e que, enfim,
antecipadamente determina a suposta escolha. Daí se conclui a servilidade do arbítrio, fazendo depender a
ação de seu motivo. Por exemplo: se me desagrada determinado gênero cinematográfico, tal
desagrado previamente determina minha “escolha” segundo a qual me recuso a assistir um
determinado filme “X”. Isto torna minha recusa previsível e passível de explicação, ou seja,
inteligível em termos de uma causalidade, o que Hume explicou com perfeição tanto em seu
Tratado quanto em sua Investigação. Portanto, trata-se de uma doutrina psicológica da liberdade; como
tal, está fundada no modo científico de tematização do fenômeno da escolha, ou seja, o modo de
conhecer segundo causas. Para se ter uma compreensão clara da limitação desta psicologia, basta
que se atente para o fato de que tal concepção estritamente mecânica do fenômeno da escolha –
trata-se aí do mecanismo mental da reação a estímulos avaliados pelo sentido interno, ou
sentimento – é igualmente válida como explicação para o comportamento de qualquer ser vivo, o
que é muito bem observado por Schopenhauer ao fazer analogia entre ação/reação no mundo
inorgânico, excitação no mundo vegetal e motivação no mundo animal, tema do §23 de O mundo
como vontade e representação. Tal mecânica, porém, devemos deixar na gaveta do
comportamentalismo, mais conhecido como behaviorismo... – cá entre nós, uma pseudociência.
22 Não apenas o senso comum, mas a própria tradição filosófica (v. abaixo, capítulo 4.1).
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É sabido quão longe no tempo se encontram as raízes dessa psicologia, que, se foi
preservada incólume até o aparecimento da doutrina freudiana do inconsciente, isto se deu graças
à noção de arbítrio, ou deliberação consciente – no capítulo 4 teremos oportunidade de
acompanhar essa história mais pormenorizadamente, assim como seu pressuposto
epistemológico, o da redução da liberdade à causalidade, que também receberá ali sua crítica.
Embora Freud tenha sido sensível ao fato de que a ação dos motivos não é tão previsível a partir
do estudo da consciência como se pensa, e então tenha formulado uma “entidade” – por muitos
estimada como descoberta (!) – que lhe permitisse dar conta de tal embaraço, sua “solução”
permanece calcada nas exatas mesmas bases da psicologia clássica. Se é legítimo o nome de
Psicanálise a esta ciência nova, cuja criação é requerida pela pretensa novidade de seu objeto – o
inconsciente –, por outro lado, enquanto ciência que pretendia ser, tem seu início, condicionando
assim a própria criação de seu conceito-chave, na exigência de uma causa para comportamentos não
racionalizáveis segundo os antigos paradigmas, a saber, os da consciência racional.23 O que antes
se denominava “louco”, em vista de seus ataques imprevisíveis, agora é apenas “neurótico”. As
causas de seus comportamentos não repousam na consciência racional, mas na inconsciência
pulsional. Poder-se-ia dizer que Freud está para a psicologia clássica como Sartre está para a
metafísica essencialista tradicional, ou seja, como seu inversor. Acreditamos, pois, que Freud fora
muito pouco preciso em seu orgulhoso elogio a Schopenhauer24 caso tenha desprezado o fundo
meta-físico de seu pensamento. Quando aquilo que parecia distinguir o homem das demais
espécies – a consciência – não é mais suficiente, Freud trabalha sobre seu avesso – a
inconsciência –, aplicando-lhe, contudo, regras análogas, procedimento que, como veremos
(capítulo 4.2, abaixo), Kant já empreendera à sua maneira.
De todo modo, não devemos subestimar a obra de Freud, tampouco aquela dos
pensadores que se posicionaram de modo semelhante em face do problema. Nem Freud nem
Kant jamais superaram a adesão à cientificidade, mas suas posturas são evidentemente honestas
neste sentido. Seu pensamento é válido, afinal. É assim que se comporta a vontade individual,
enclausurada na natureza onde manifesta preferências. A palavra já indica em que consiste “pré-
23 A psicanálise freudiana e todo seu legado constituem um grande exemplo da necessidade de destruição ontológica da redução do comportamento a pressupostos epistemológicos sedimentados, uma das tarefas para a qual o presente trabalho pretende servir como preparação. Deste legado, todavia, merecem ser excluídos nomes como Lacan, Winnicott e Boss. 24 “O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer – ele não somente afirma o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão – não deve ser remetida à minha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche, outro filósofo cujas conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente, com os laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim, justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da prioridade do que em manter minha mente desimpedida.” (Freud, 1996, p. 62) Ainda que a audaciosa pretensão freudiana de originalidade seja reconhecida, nada impede que sua leitura de Schopenhauer e Nietzsche tivesse sido ela mesma determinada pelo que pretendia ali encontrar.
42
ferir”, segundo sua composição latina por præ e ferre: “antecipadamente levar-se a/ser arrastado
por...”. Toda preferência indica a eleição de algo em detrimento de outro, o que, por sua vez,
supõe diferença e, por definição, sujeição da ação ao princípio de razão suficiente sob a forma do
princípio de individuação – omnis affirmatio est negatio. Além disso, e mais importante, toda eleição
já se encontra previamente determinada quando se efetiva ou meramente se toma consciência
dela, sendo por esta razão que a negação da vontade supõe a supressão do caráter empírico, ou
seja, daquela determinação que, constituindo fundamentalmente e desde a origem nosso modo
pessoal e atual de ser, já sempre nos pré-dispõe a isto ou àquilo. Por outro lado, a in-diferença
que propriamente se segue à negação da vontade consiste na ausência de predileções ou
inclinações (Schopenhauer, 2004, [§68] p. 488), não havendo a representação de um que a ser
escolhido ou recusado, tampouco um pelo que ou um a fim de que, um motivo em virtude de que se
inclinar a isto ou àquilo. Naturalmente, não pode se tratar de uma indiferença de arbítrio, pois
todo arbítrio supõe preferência ou pré-dileção – do latim dilectio, “benquerer” –, ainda que se trate
de preferir não escolher. Nas palavras de Schopenhauer ([s.d.], p. 3), admitir indiferença no
arbítrio consiste em afirmar “a possibilidade de efeitos sem causa”. Isto é: Segundo os defensores
da doutrina do “liberum arbitrium indiferentiæ”, exerço maximamente minha liberdade se minha
escolha não é pautada por interesses – é-me indiferente tomar leite ou café; contudo, para
Schopenhauer, não é admissível que eu beba um ou outro sem qualquer motivo apenas pelo fato
de minha vontade dirigir-se a um como ao outro indistintamente ou não se inclinar a qualquer
um deles em particular. Se de fato há aí alguma indiferença, em sentido fraco, como uma apatia
ou ausência de expectativa de satisfação nos efeitos da ação, não se pode dizer que haja aí
qualquer arbítrio ou escolha. Por sua vez, havendo arbítrio, há nele uma causa implícita e,
portanto, prévia determinação para agir deste ou daquele modo ou para simplesmente não agir.
Desse modo, “liberdade” e “arbítrio” parecem se contradizer reciprocamente. Pode-se ainda
acrescentar que uma escolha indiferente não pode ser provada como tal, mas apenas que não são
reconhecidas pelo agente suas motivações, preferências ou predileções – ora, isto já é explicado
pela psicologia humeana. Enquanto determinação, a escolha arbitrada pertence à classe do
necessário na medida em que já tem pressuposta uma finalidade, diferindo da necessidade natural
apenas quanto à espécie, pois, neste último caso, não se trata de uma finalidade subjetiva.
Feitas estas considerações preliminares, deve-se observar que recusar a vida por causa do
sofrimento, como muito bem observa Schopenhauer, não consiste em um “não” dirigido à vida
ela-mesma, mas ao sofrimento; ou seja, recusar-se a sofrer não significa necessariamente recusar a vida como
tal, mas sim, pelo contrário, recusar-se a viver em determinada condição, sendo esta vida o que se rejeita
– eis o objeto determinado da recusa, e não toda vida possível. Negar a vida, nesse caso, é negar a
43
minha vida efetiva, como algo singular, um objeto distinto do que eu mesmo sou como sujeito, não
uma universalidade. Em sua Fenomenologia, ao tratar da “consciência infeliz”, Hegel (1992, [§230]
p. 151), o grande desafeto de Schopenhauer, já havia reconhecido a diferença: “Porque o
renunciar à vontade própria, só por um lado é negativo: segundo seu conceito, ou em si. Mas ao
mesmo tempo, é positivo, quer dizer: é pôr a vontade como um Outro, e, determinadamente, pôr
a vontade como um não singular, e sim como um universal”.25 É de se supor que, satisfeitos os
desejos, suprimida a dor, viver-se-ia alegremente segundo esse ponto de vista abstrato ou
representação subjetiva. Significa dizer, contudo: a vida mesma é nesse caso privada de valor em
si, sendo antes avaliada segundo o que nela ocorre; o viver encontra-se submetido e reduzido ao mero
fenômeno individual da vida, avaliado segundo representações de possibilidades, sendo ele mesmo (o
fenômeno da vida) uma representação do sujeito que sofre. Ora, daí decorre que, se na representação de
um sujeito a vida é destituída de valor em si mesma, tendo seu valor alhures, residindo naquilo
que se pode ou quer realizar26, a negação da vida infeliz, como dirá Nietzsche, é uma negação
niilista na medida em que termina por contaminar todo o fenômeno da vida e a própria vida em si mesma,
universalmente, mas isto é uma consequência. Se, para Schopenhauer, viver implica, por si só,
sofrimento – assim como em Nietzsche implicará dor –, ao recusar a própria vida em virtude do
que a vida não é, o suicida aniquila o próprio fenômeno segundo uma ilusão: a ilusão da
possibilidade de uma vida feliz. Eis por que o suicídio não se confunde com a negação (universal)
da vontade de viver, sendo antes um ato inútil e insensato na medida em que intenta aniquilar o
mundo em sua totalidade pela mera supressão do indivíduo, ou melhor, da representação
individual do que o mundo em sua totalidade é para o sujeito: uma fonte de sofrimentos.
(Schopenhauer, 2004, [§§54/69] p. 357-358/499) Ora, se a afirmação de Schopenhauer de que a
25 Deve-se observar que a “positividade” do negativo não tem o mesmo sentido em Hegel e em Schopenhauer. Para Hegel, o renunciar negativo – dialético e concreto, embora conceitual, relativo ao “não” antitético que promove a superação pela e na síntese – é superior ao positivo – alienado e abstrato, embora material, relativo ao posto em sua efetividade, um algo outro que jaz ali contraposto a nós, um ob-jectum em sua diferença. Nesse caso, Hegel inverte valores científico-metafísicos consolidados, conservando, contudo, a primazia do saber, do conceito. Schopenhauer, por sua vez, não admitindo a hegeliana concretude do conceito e da Ideia (representações do intelecto e da Vontade), valorizará a recusa de cada representação positiva ou conceitual da Vontade como alteridades de um eu, ou seja, da vontade como outro, pois que todo ente é uma só Vontade. O interesse da referência a Hegel não é, todavia, o de penetrar semelhanças ou diferenças com relação a Schopenhauer, mas chamar a atenção para o fato de que Hegel já se mostra sensível ao reconhecimento não apenas desse duplo caráter da renúncia à vontade própria, mas também, e sobretudo, da correlação entre positivo e universal, negativo e singular no que respeita à qualidade e à quantidade dessa renúncia. 26 Não é por outra razão que a proximidade da morte e a velhice, caracterizadas como momentos propícios à tomada de consciência acerca da inutilidade de todo esforço, podem conduzir à negação da vontade. (Schopenhauer, 2004, [cap. XLIX] p. 1410-1411) V. Machado (1997, p. 71): “[...] as condições últimas de avaliação são as condições de vida e [...] fazer da vida objeto de avaliação implicaria se colocar fora da vida. Em última análise, os juízos de valor sobre a vida são apenas sintomas de um tipo de vida, visto ser a própria vida que avalia através do homem quando ele estabelece valores”. Sobre isto, cf. Nietzsche, 2000b, p. 18 (“O problema de Sócrates”, §2: o valor da vida não pode ser avaliado), p. 37 (“Moral como contranatureza”, §5: “Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores...”).
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supressão de um indivíduo, um sujeito cognoscente, implicaria a supressão do mundo como um
todo, em si, não merecesse problematização, realmente deveríamos concordar com a dúvida de
Russell: por que, afinal, a queda na não-existência pelo suicídio não é uma autêntica negação da
vontade? Portanto, é necessário compreender que nenhum ato individual afeta o universal.
É a paralisia resultante de não se poder continuar vivendo segundo essa ilusão sem contudo
deixar de crer nela que conduz ao ato extremo da afirmação da Vontade, segundo Schopenhauer:
a violência contra o fenômeno da vida, violência esta que em nada afeta a vida como tal. O
movimento que poderia levar à negação da vontade é subitamente interrompido, a dor não exerce
seu papel libertador (Schopenhauer, 2004, [§§68-69] p. 497; 500-501), sendo antes suprimida de
modo ilusório (individualmente) como ilusória (subjetivamente representada) é a razão do
ressentimento contra a vida, a saber, a esperança de ser feliz, esperança esta que, uma vez
frustrada, em vez de dar lugar ao des-esperar, leva o indivíduo a fugir da dor (e do in-esperado) pelo
aniquilamento de sua pessoa (Schopenhauer, 2004, [§54] p. 360) deixando intacta a Vontade.27 Se a
morte afeta o indivíduo, fenômeno da vontade-de-viver à luz do princípio de razão suficiente e
existente apenas para o intelecto e por ele como representação, a Vontade lhe é indiferente
(Schopenhauer, 2004, [§54] p. 350), e isto não se pode negligenciar quando lemos que a Vontade
despreza o indivíduo em prol da espécie. É nesse sentido que: 1) o suicídio ou o infanticídio ou o
aborto apenas dirigem sua negação ao fenômeno individual e não à Vontade em sua
universalidade; 2) o suicida é avaliado por Schopenhauer como o doente que se recusa a tomar os
remédios e a concluir seu tratamento. Se, pelo suicídio, temos uma situação como a do “arco-íris
que subsiste apesar da sucessão contínua das gotas que lhe servem um instante de suporte”
(Schopenhauer, 2004, [§69] p. 500), a negação seria a supressão não das gotas – a essência –, mas
do arco-íris – o fenômeno.28 O asceta, tendo negado a vontade de viver, sabe intuitivamente que,
se não há pelo que viver, tampouco há pelo que morrer, enquanto o suicida se mata pela supressão do
sofrimento, determinado por isto como por um motivo e segundo razões e cálculos. Em síntese, a
negação da vontade é diametralmente oposta à mera recusa do desejo ou da dor que o mesmo
acarreta ao indivíduo, de modo que o próprio ascetismo e a desesperança não podem ser
reduzidos a isto. A oposição da compaixão ao egoísmo e à maldade testemunha a favor desta
distinção.
O nada que se recusa no suicídio é, na verdade, o nada-de-bom, o nada-de-alegria, o vazio
que “acomete” toda existência. Em outras palavras, pode-se dizer que o suicida diz “não” ao que em
27 Sendo assim, a crítica posterior de Nietzsche não parece tão precisa, mas que se deixe isto à parte, por enquanto. 28 É evidente que a metáfora schopenhaueriana opõe a fugacidade irrelevante do indivíduo à permanência do todo, mas buscamos, ainda assim, ampliar o conteúdo simbólico para indicar o contraste entre coisa-em-si e fenômeno, ou seja, a relativa insubstancialidade daquilo que é percebido em face do que essencialmente constitui o fenômeno.
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verdade são ele mesmo e tudo aquilo que espera da vida: nada. Precipitar-se no nada da não-existência é,
paradoxalmente, negar “o” nada, não querer-nada, recusar-se a nada-querer. Eis um “não” negativo à
vida, o niilismo pelo qual a autodepreciação conduz à autodestruição. Como pode se dar um
“não” positivo? Ao fim do quarto livro de O mundo..., Schopenhauer (2004, [§71] p. 516) encerra
sua exposição distinguindo o nada dos afirmadores e o nada dos negadores da vontade:
[...] para aqueles que a Vontade ainda anima, o que resta após a supressão total da Vontade, é efetivamente o nada. Mas, ao contrário, para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, é nosso mundo atual, este mundo tão real com todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que consiste no nada.
No primeiro caso, temos “nada” entendido como negação absoluta, como não-ser
enquanto tal. Isto mostra com clareza que o nada é, para os afirmadores da vontade de viver, um
simples vazio, a representação abstrata de uma efetiva ausência de entes, um aterrorizante des-
aparecimento do ente como tal, uma pura negatividade. Decerto, é problemática a noção de um
“nada absoluto”, sobretudo se entendido como “vazio”, e não apenas por ser um absurdo para a
ciência – que, aliás, lida apenas com o representável –, mas sim por sempre e necessariamente
supor algo dado, negativamente, como ausente. Tal representação do nada é algo completamente
abstrato, uma mera privação de ser que é, a rigor, irrepresentável (Schopenhauer, 2004, [§71] 512-
514; [2003b], [§161] p. 409) – digamos “a rigor” porque, sem rigor, o vazio em geral é, sim,
abstratamente representável como espaço desocupado; trata-se de uma acepção secundária de
“vazio” que, embora passível de experiência, é ainda mais abstrata na medida em que todo espaço
físico é ocupado plenamente por ar. Por sua vez, mediante a negação da vontade, o que se
apresenta é o mundo em sua verdade, como Vontade, sendo este último “nada” a expressão da
independência dos motivos exteriores pelo próprio colapso da dicotomia exterior-interior, a
(re-)conquista da liberdade pelo ato livre e incondicionado (positivo) da negação da vontade, pela
qual nada se quer além de si, pois nada mais se apresenta como (objeto) desejável, como sentido
ou como causa, e assim o sujeito é suprimido (ao menos como sujeito empírico-psicológico), não a
coisa em si que nele se manifesta.
De todo modo, a compreensão do nada por Schopenhauer ainda carece de algum
aprofundamento ontológico na medida em que é dependente do problema do conhecimento: “a
consciência, encontrando-se inteiramente suprimida, o resto do mundo cairia no nada, pois, sem
sujeito, não há objeto” (2004, [§68] p. 478). Nesse caso, uma coisa é correta: “nada” significa
nada-de-ente; nada-de-representação; quer dizer, não significa uma entidade abstrata representada
como ausente. Não se trata mais de um vazio, de uma efetiva ausência, mas de uma
indeterminância e indiscriminação do que se mostra como uma única Vontade presente em
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estado puro, sem mediação do intelecto; trata-se daquilo que é alheio a toda possibilidade de
representação. Este é um bom exemplo de como uma leitura fragmentária de Schopenhauer pode
levar a equívocos, caso não se atente para o fato de que o que está em jogo na negação são os
polos em relação no ato cognitivo. Pela livre negação da vontade se supera a perspectiva do
mundo como representação, enquanto que, pelo aniquilamento do fenômeno nada se supera; o
indivíduo se suprime justamente pela incapacidade de superar o nada da vontade que ele mesmo
é.
Como já foi dito, a linguagem de Schopenhauer chega a turvar o que já é obscuro,
misterioso, mas deve-se ter em conta, e deverá ficar plenamente claro no decorrer deste estudo,
que a representação, enquanto fenômeno intelectual, nada tem de substancial, não sendo em si
mesma nada senão Vontade, muito embora seja justamente ao fenômeno que nos referirmos
como sendo algo, como sendo o ente em si, e não apenas para nós – isto já é problematizado por
Hegel desde o começo da Fenomenologia do Espírito. Uma vez compreendido este ponto, se deve
observar que a negação da vontade, definitivamente, não corresponde à compreensão do nada
como simples vazio apesar de, no entender de Schopenhauer, o que não é ente (fenômeno,
representação) é coisa alguma; é, no entanto, Vontade, “essência” inefável de todas as coisas no
sentido de que é o que cada coisa em si mesma sempre é. Seria dizer, apropriando-nos da
linguagem heideggeriana, que “a Vontade não é o ente, e não pode ser pensada segundo as
categorias ônticas do entendimento, da lógica dos conceitos determinados, mas por isso mesmo
deve ser pensada seguindo o fio condutor dos modos de ser do ente que já sempre se encontra
em relação com ela em sua essência, ente este que somos nós mesmos”. Somos nós mesmos que,
enquanto homens, capazes de representar o ser-livre, temos a possibilidade da negação como
possibilidade extrema do ser-livre da Vontade. Com efeito, algo muito importante é acrescido no
§161 do segundo volume dos Parerga e paralipomena ([2003b], p. 408):
Contra algumas tolas objeções, observo que a negação da vontade de viver não enuncia de fato o aniquilamento de uma substância, mas o puro ato de não querer: aquele mesmo ente que até então quis, agora não quer mais. Dado que conhecemos este ser, a vontade, como coisa em si somente no interior e através do ato de querer, não temos a faculdade de dizer ou de entender, depois que ela abandonou esse ato, que há de ser ou fazer: por isso a negação é para nós, que somos a manifestação do querer, uma passagem para o nada.
Ou seja, a queda no nada o é para nós, que, enquanto fenômenos da vontade de viver,
dizemos e entendemos apenas o representável, isto é, aquilo em que se manifesta a Vontade.
Ainda que com esta passagem tenhamos uma explícita declaração de que a negação da vontade
não implica a supressão de nada que seja em si, mas tão-somente a perda da objetalidade – por
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conseguinte, da cognoscibilidade e da afetividade movidas por representações – em razão da
superação da egoidade, o problema ontológico-existencial aí envolvido ainda não é tratado, nem
mesmo colocado às claras, ficando claros os limites do mundo da imanência. Conclui-se apenas
que a Vontade vive ainda na negação da vontade, cujo caráter existencial pode ser compreendido
como um ser em meio ao nada pela suspensão de toda individualização – o horror ao vazio grita
na consciência animada pela vontade individual; mas que disposição caracterizará o misterioso
“puro ato de não querer”, no qual não há um alguém que realize a “passagem para o nada”?
2.2. A positividade ontológica do não-querer
Por espantoso que pareça a muitos, a positividade da negação da vontade como expressão
da liberdade originária é ainda mais explícita em Nietzsche. Em seu Dioniso – mito e culto, Walter
Otto (apud Casanova, 2003, p. 53) assim caracteriza a embriagada dissolução dionisíaca da
individualidade em consonância ao que lemos em O nascimento da tragédia, escrito por Nietzsche
enquanto ainda era discípulo de Schopenhauer:
O mundo com o qual já estamos familiarizados, o mundo no qual os homens se estabeleceram de modo tão seguro e agradável, não está mais aí! O bramar da chegada dionisíaca varreu este mundo para fora daqui. Tudo está transformado. Mas não em um doce conto de fadas, em um paraíso de ingenuidade infantil. O mundo originário emergiu, as profundezas do ser se abriram, as configurações originárias de tudo o que há de criativo e dizimador, com seus deleites infindos e com seus pavores infindos, vieram à tona e dissiparam a imagem inofensiva do mundo bem ordenado do hábito. Elas não trazem nenhuma ilusão e nenhum sonho, elas trazem a verdade – uma verdade que enlouquece.
Esse “pavor” mediante a perda do solo habitual tranquilizante, sobre o qual se erigem e no
qual pretensamente se fundam as individualidades bem determinadas, é precisamente o humor
que, segundo Casanova (2003, p. 37), Nietzsche reconhece nos homens “diante da nadificação do
princípio de individuação”, nadificação produzida pela dissolução dionisíaca contraposta “à
quietude promovida pelo elemento apolíneo”. Nesse sentido, observa Casanova que “o termo
quietude não possui nada em comum com a mera ausência radical de movimento interior”, mas
sim, “aponta para o cerne de uma significação ontológica: para a disposição que as essências
singulares alcançam quando se acham de posse de suas determinações próprias”. É em meio ao
“elemento apolíneo” que a “individuação da totalidade traz consigo a instauração dos limites de
realização” que, de acordo com Casanova (2003, p. 38) “marcam o espaço no interior do qual
cada ente se descobre como idêntico a si mesmo e diferente de outros entes”. Ou seja, Nietzsche
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designa “apolíneo” o modo de ser que encontra a tranquilidade na diferença posta pela
individuação, e, “dionisíaco”, o modo de ser que, rompendo com essa determinação fantásmica,
chega à verdade mais profunda da indiferenciação originária e anômica, por isso mesmo
“apavorante” na mesma medida em que não oferece qualquer ponto de apoio, restando apenas o
oscilar da embriaguez extática. O humor em questão deve então estar essencialmente vinculado a
essa experiência de ausência de solo, de determinação, de egoidade. Diz ainda Casanova (2003, p.
38-39):
Os homens alcançam em meio à vigência do princípio de individuação uma experiência reconfortante de familiaridade em relação ao ser dos entes em geral e encontram aí, simultaneamente, uma aparente fixação definitiva de seu próprio ser. Desta experiência reconfortante de familiaridade diante do mundo circundante e desta aparente fixação definitiva de seu ser advém uma suposição da validade universal da lógica inerente ao mundo individuado. Eles tendem a confundir a si próprios com o que emerge da individuação e a transportar os princípios reguladores do processo de conformação dos fenômenos para o cerne da realidade: eles esquecem que as delimitações ontológicas e as leis estruturadoras destas delimitações se resumem ao modo de constituição de suas configurações e não podem ser estendidas ao em-si da realidade. À medida que os homens se veem em um tal esquecimento, toda ruptura do princípio de individuação tende a ser vivenciada como uma perda de si mesmo e como uma supressão radical de toda logicidade racional. À experiência desta perda e desta supressão corresponde, evidentemente, um pavor monstruoso.
À experiência desta perda e desta supressão corresponde, dizemos, a angústia da negação
do mundo como representação, da individualidade, da vontade de viver. Nisto reconhecemos a
máxima expressão da relação entre angústia e representação – a primeira como disposição
privilegiada mediante a supressão da segunda; esta última, como meio de fuga e apoio
tranquilizante para a familiaridade ausente ou suspensa na primeira. Na representação de uma
ordem encontramos a cada vez o conforto que a cada vez a angústia ameaça nos furtar. O
conforto maior e mais “seguro” não há de ser encontrado senão na representação de si-mesmo
como ponto de “fixação de meu próprio ser”, fixação substancializadora no sentido de uma
certeza acerca da existência efetiva do “eu” em que me reconheço e com o qual me identifico.
Não é à toa que a perda de tal certeza, ou mesmo alguma ameaça contra ela se nos mostre
ordinariamente como algo “apavorante” a que se pode remeter mesmo o comum “temor da
morte”, a ser tematizado mais adiante no capítulo 6. Tamanha a importância desse “eu”,
podemos chegar a preferir destruí-lo a mantê-lo quando não nos provê de qualquer satisfação; eis
o caso do suicídio. De todo modo, para que se compreenda como este pavor pode se
transformar, segundo Nietzsche, em êxtase, deve-se “considerar a positividade do elemento
dionisíaco”, o que, no entanto, só deverá nos ocupar mais adiante.
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Segundo Casanova (2003, p. 46, n. 42), “uma diferença fundamental entre Nietzsche e
Schopenhauer” é que “este vê o perecimento como destino inexorável da aparência”, i.e. do
fenômeno, “e se empenha em afirmar a vontade como uma instância à qual não podemos senão
nos resignar”, enquanto Nietzsche, por sua vez, “faz da união entre o devir dionisíaco da vontade
e a perfeição apolínea da individuação o modo pleno de justificação da existência”, pois, “no
instante em que ela [a arte dionisíaca] atrai o nosso olhar para a visualização da dor constitutiva
das existências finitas, esta visualização mesma nos salva de uma postura meramente resignada ou
de um desespero niilizante” (p. 55).29 “Os indivíduos depararam-se, por um lado, com a
necessidade de aniquilação e passam a ver nesta aniquilação mesma o destino comum a toda
finitude; eles alcançam, entretanto, por outro lado, através da própria aniquilação, a reconciliação
com a realidade como um todo” (p. 54). Por isso mesmo, mais adiante, complementa Casanova
(p. 59):
Na força desta embriaguez consiste o risco maior, do qual nos salva o elemento apolíneo da tragédia. Se nos unificássemos imediatamente com o ânimo musical dionisíaco, a sensação incontrolável de embriaguez diante da infinitude do princípio provocaria, subsequentemente, em meio ao retorno à experiência cotidiana, uma náusea profunda e um nojo em relação a toda e qualquer finitude. Como no caso do pessimismo schopenhaueriano, a vida “individual” perderia o seu valor próprio [...]. A bela aparência do herói trágico não nos deixa, contudo, mergulhar absolutamente no sem-fundo desta experiência e nos atrai para a visualização-afirmação do prazer próprio a toda finitude.
Desde esse período inicial, portanto, já aparece na obra de Nietzsche a exigência de
resposta ao “grande nojo” da existência, não se tratando, portanto, de um problema surgido após
sua ruptura com Schopenhauer ou ainda mais tardiamente. A esta altura, seria tautológico dizer-se
“existência individual”. Toda existência é, por definição, individual; o mundo da multiplicidade é
um mundo de indivíduos e por isso mesmo nenhuma existência, nenhuma individualidade deve
ser compreendida à luz do simples estar-em-meio a uma multiplicidade. O nojo ao mundo da
vida, ao mundo da multiplicidade, é também, e antes de tudo, uma recusa ao modo de ser próprio
ao individual, ao finito. Assim sendo, qualquer “reconciliação com a realidade como um todo” só
é possível passando-se pela re-afirmação do “valor próprio da vida individual”, atitude esta tão
mais vigorosa na medida em que se estabelece pela superação do princípio de individuação ao
29 A nosso ver, o desenvolvimento pleno desta distinção deveria conduzir a uma tematização do amor em sua propriedade. Em O nascimento da tragédia, Nietzsche encontra na beleza a justificação da existência. Posteriormente, surgirão os temas do amor fati, do eterno retorno e da superação do espírito de vingança. O elemento fundamentalmente amoroso da Mitleid schopenhaueriana, aliado ao modo fundamental de ser-no-mundo como Sorge, em Heidegger, deveria complementar esta abordagem. O amor seria a disposição própria a uma relação não-exclusora e não-distanciada entre um ente determinado e cada outro.
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invés de procurar fundar-se em frágeis razões, no egoísmo, ou qualquer mera representação
asseguradora e tranquilizante. No sentido de preservar a ordem expositiva deste estudo, adiemos
o aprofundamento da atitude afirmadora, que, no entanto, não poderá ser conduzida às suas
últimas consequências neste estudo preparatório. Por agora, basta-nos reter que a afirmação da
existência pautada na mera representação tende à alienação quando não ao fracasso: no primeiro
caso, na visão de mundo determinística; no segundo, no sentimento de impotência decorrente
dessa mesma visão – afinal, na representação impera a causalidade. A impotência do individual-
finito em face do infinito de possibilidades da Vontade, deve-se ressaltar, só faz sentido do ponto
de vista dessa mesma finitude. Tal afirmação da existência deve se voltar para a própria essência
do ser-indivíduo e dela mesma provir, a saber, o originário querer-viver reencontrado, segundo
Nietzsche, na celebração dionisíaca superadora do princípio de individuação. Nela, o querer-viver
é con-firmado em sua totalidade como “mais uma vez” – o ressurgimento do deus morto, o
“sim!” à fragmentação, ao despedaçamento, à dor. Nesta confirmação, o indivíduo não é
afirmado a partir de sua finitude, mas a partir daquilo que a transcende: a beleza. No com-
prazimento perante a beleza, a ser tematizado em nosso próximo capítulo, a própria relação com
o fenômeno se vê transformada, anunciando-se aí uma liberdade autêntica e privilegiada. A
individualidade como tal se impõe a si mesma como eterna e indestrutível na forma da beleza
própria àquilo que é obra de si mesmo, mas não no sentido de uma causa sui, pois toda
causalidade daí se retirou, tampouco de uma substantia, pois toda substância é, por definição,
determinada, ainda que indeterminável em si mesma – “ser obra de si mesmo” significa ser o que
é.
Superada a individuação, a Vontade resta a sós consigo, sendo interessante observar que, se
a negação é superação da multiplicidade fenomenal, a Vontade se reafirma nesse mesmo
movimento no indivíduo como livre e incondicionado querer-viver; em sua unidade ela se impõe
afirmativamente sobre toda a pluralidade por ela mesma negada. A negação da fragmentação é
condição do ser si-mesmo inteiro, o que deve ter como consequência a eliminação de toda e
qualquer distância entre o si-mesmo e a vida na qual se manifesta segundo o seu próprio querer
livre. A Vontade é, pois, por definição e essencialmente, afirmativa; o que se nega é apenas o
fenômeno enquanto fenômeno, sempre necessariamente condicionado. Em sua ambigüidade, toda
afirmação da Vontade no âmbito fenomenal é ao mesmo tempo negação do outro. Se o
indivíduo é destituído de “valor próprio” enquanto indivíduo, é por sua vez afirmado segundo sua
proveniência, ou seja, não por aquilo que o faz deficitário relativamente à Vontade como um todo,
mas pelo que o dignifica e eleva, que o revela como livre, como querer a si a despeito de sua