MUDANÇAS CLIMÁTICAS: O DESAFIO DO SÉCULO.
Selma FerrazDoutora em Filosofia Jurídica pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Usp);
Professora de Filosofia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná;Sócia da Roberto Ferraz Advogados, Curitiba-Pr.
Sumário: 1. Seria a vocação o elo perdido entre o homem e a natureza? 2. Sobre a Gestão de Florestas Públicas (Lei 4776/2005). 3. MDL e o Global Carbon Market. 4. Política fiscal e meio ambiente: uma visão ditatorial ou paternalista?
1. Seria a vocação o elo perdido entre o homem e a natureza?
Quem acompanha a série de ocorrências climáticas no mundo e as associa às
previsões contidas no Apocalipse de São João, experimenta um misto de receio e dúvida
que remete à crucial questão: estar-se-ia de fato presenciando os últimos dias da terra?
Entretanto, na história, foram registradas ocorrências de fenômenos naturais
violentos o suficiente para dizimar cidades inteiras.
Primeiramente, embora não comprovados, encontram-se os relatos bíblicos que
narram o desaparecimento de Sodoma e Gomorra e a fuga milagrosa de Noé. Ao lado
deles, se verificam ainda, o soterramento de Pompéia no ano 68 d c e a inundação de
Zeugma na Macedônia, três mil anos antes de Cristo.
Apesar dos vestígios físicos ou apenas narrativos destes episódios, paira, todavia,
sobre eles, a dúvida que grita: por quê?
Teriam sido absolutamente casuais? É possível admitir que estivessem
relacionados a comportamento, costumes ou cultura dos povos que vitimaram?
Sodoma e Gomorra, por exemplo, segundo interpretação teológica, teriam sido
inundadas por Deus pela ausência de virtude na vida de seus habitantes. O episódio da
Arca, ao contrário, indicaria a idéia de re-começo, de fundação de uma vida social mais
justa e virtuosa, uma nova aliança entre Deus e os homens.
Hannah Arendt, no seu tratado sobre a Liberdade1 explora bastante as idéias de
começo e re-começo da polis. Ela explica que os historiadores gregos – de Heródoto a
1 Debates, Política, “Entre o passado e o futuro”, Editora Perspectiva, 2001 (1ª.Edição 1954), pág.188.
Tucídides – partiam o que quer que tivessem de relatar, ab urbe condita, da fundação da
cidade, garantia da liberdade romana. Liberdade compreendida sob duplo sentido:
privilégio de estar livre do jugo de terceiros e responsabilidade eterna por zelar – res
gestae – da República Romana.
A noção de resgestae, como portadora de uma responsabilidade que se eterniza no
tempo, faz recordar outros episódios que na Bíblia teriam ocorrido por causa da
desobediência do povo em zelar pela conservação da moral divina.
A destruição do Templo de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia é um
exemplo deste tipo de ruptura ontológica.2
Todavia, conforme a teologia milenar, estes momentos são sempre seguidos por
outros, marcados pelo desejo divino perpétuo de reunir-se aos homens. Daí o emprego do
termo “religião”, do latim “religare”.
Assim, encontra-se também na Bíblia relatada a ordem dada por Ciro, rei da
Pérsia, que em obediência a Deus – desejoso de reunir-se -, mandou reerguer o templo de
Jerusalém e libertar o povo hebreu capturado por Nabucodonosor.
Na mitologia platônica verifica-se a mesma narrativa. Em sua versão sobre a
criação do mundo, Platão evoca no mito de Prometeu a figura de Hermes, o enviado por
Zeus para ensinar aos homens a virtude da justiça.
Hermes, assim como Gabriel,3 são conhecidos como anjos anunciadores da
justiça, ou ainda, como portadores do elo perdido ou aliança – mística – com a qual o
homem recupera o seu natural discernimento do bom, do belo e do vero.
Talvez por isso falar-se de Jesus como anunciador da boa nova, ou de chamarem-
no Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”. Numa ilustração de ordem teológica, poder-
se-ia dizer que enquanto aqueles eram anjos mensageiros, Jesus foi recebido como a
própria encarnação da bondade, da beleza e da verdade.4
2 Em “Leitura do Segundo Livro das Crônicas”.3 Apenas como referência, o islamismo acredita que foi o anjo Gabriel que anunciou a Maomé a sua condição de profeta. 4 Na filosofia platônica e na kantiana, (conferir na “A República” e em “Sonhos de um Visionário”) a verdadeira beleza deriva da completude da alma, ela é uma emanação do ser e por isso não está sujeita à corrupção da matéria. A alma que caminha rumo ao bom, ao belo e ao vero, realidades transcendentais do ser, vai incorporando, ao caminhar, os verdadeiros atributos de beleza, entre os quais estão: pureza, delicadeza, ternura, firmeza, certeza, piedade, alegria, paciência, fidelidade, amizade, etc. Tais predicativos não se opõem à matéria, antes, transparecem nela. Assim, revelam os gestos e as palavras, sejam elas faladas, escritas, pintadas, esculpidas, cantadas, dançadas, etc.
Diz ainda o mito platônico que na criação do mundo, foi porque Epimeteu
esquecera-se do homem durante a distribuição de talentos, que retornou ao Olimpo para
roubar, sorrateiramente, de Atenas a techyné do fogo. Mas, esta primeira civilização,
composta de homens dotados apenas da técnica do fogo se destruiu: faltava-lhe a arte da
justiça.
Todas estas narrativas, porém, não fazem sentido para a sociedade tecnicista
surgida no século XIX e consolidada no século XX.
Para os cientistas que pesquisam as causas do aquecimento da terra, falar de
aliança entre Deus e os homens ou de religião como resgate da capacidade de
conhecimento de sua própria verdade, não passa de mais uma fantasia entre tantas.
Hoje, não restam dúvidas de que o grande vilão do aquecimento, contra o qual o
mundo vem tentando cientificamente lutar, esconde-se atrás das inumeráveis formas de
uso de combustível fóssil que se disseminou no rápido processo de industrialização
ocorrido no século XX.
E o que Deus teria a ver com isso? Perguntar-se-iam os cientistas do progresso
industrial.
Todavia, a quê atribuir a crença generalizada na industrialização como causa de
progresso? Qual progresso?
Não é sem razão, portanto, que causa horror (veja-se em “One Word: ready or
not” de Willian Greider) imaginar a China substituindo bicicletas por carros populares.
A China, no renascimento, garantia sua posição na economia mundial graças a
excelência artística de suas sedas e porcelanas. Hoje, ao lado do agigantamento da
produção de arroz, em condições de trabalho desumanas, a indústria vive não de criar,
mas de copiar e todos anseiam por um progresso familiar baseado no padrão ocidental:
carros, casas equipadas, consumo de tecnologia eletrônica, design e grifes internacionais
diversas.5
5 Em documentário realizado sobre a China, o canal France 2, mostrava imagens de um novo e terrível fenômeno social que vem se alastrando por todo o país e que consiste no procedimento cirúrgico de “ocidentalização” dos olhos de meninas entre 16 e 20 anos. Apesar da pobreza ditada pela vida operária, a família, num esforço que inclui pais, irmãos e avós, reúne o necessário para custear as despesas da cirurgia, que “mudará o destino da jovem menina”. Este, certamente, será o grande desafio filosófico do III Milênio: conscientizar as sociedades de que nenhuma mudança física pode suprir a necessidade de respostas metafísicas às questões existenciais. Sobretudo à filosofia cumprirá falar sobre realidade ontológica do ser, raiz e fonte de toda transformação intelectual verdadeira.
Com esta mudança drástica de padrão criada pelo tecnicismo capitalista e
amplifica pelo materialismo comunista, como não considerar a hipótese de que os
terríveis e incessantes fenômenos climáticos possam estar relacionados à ruptura do
homem com a sua própria verdade?
Falar de ruptura às vezes choca o pensamento dos que se habituaram a observar
as condições de vida e seu impacto sobre o meio ambiente por janelas empoeiradas de
velhas idéias.
O repertório de velhas idéias, às quais se pode atribuir a culpa pelo problema do
aquecimento da terra, compreende dogmas que se não forem derrubados, dificilmente
identificar-se-á no horizonte futuro as soluções capazes de solucioná-lo.
Numa primeira aproximação é possível dizer que a luta contra o aquecimento
implicará na vitória da felicidade vocacional sobre o dogma da riqueza e do lucro.
Fala-se muito de novos mercados, mercados emergentes, mercados regionais,
estratégias de mercado, mercados concorrentes, etc. Porém, muito pouco se fala a
respeito do sentido do trabalho, sobre a relação intrínseca (metafísica) entre o homem e a
sua vocação. Quase nada de escuta falar do tipo de satisfação intelectual que só o trabalho
pode trazer na brevidade desta existência.
Infelizmente também nada se ouve sobre como o trabalho, especialmente o
trabalho, pode dar visibilidade ao ser. Pouco importando se se realize dentro ou fora dos
muros que envolvem a vida familiar. 6
O trabalho, é preciso sublinhar, pelo fato de se entrelaçar às circunstâncias
pessoais e à essência que cada qual traz dentro de si, abre as vias para uma plenitude
possível de ser atingida e vivenciada aqui e agora.
Aliás, esta é a noção filosófica para palavra grife (na filosofia de Kant
Vernunftbegriffe): uma espécie de marca indelével inscrita no coração de cada homem,
que se revela, se mostra através do trabalho.
Nesta perspectiva ontológica, a ênfase na “maximização” do lucro ou na liderança
mercantil, sem contar outras idéias oriundas não se sabe bem de onde, perde sentido e
6 Foi marcante a luta epistemológica empreendida por São Josemaria Escrivá para esclarecer que a descoberta vocacional é uma descoberta que o homem faz de si mesmo e que, por isso, ela é ao mesmo tempo existencial e transcendental.
propósito, uma vez que nenhuma delas consegue responder nem o grande mistério da
existência menos ainda o da felicidade.
Não que deva o homem contentar-se com menos ou que venha a se desvencilhar
do trabalho por entendê-lo um obstáculo à vida contemplativa, assim como acreditava a
aristocracia francesa do ancien régime.
Este falso dilema precisa ser resolvido. Não há na filosofia estóica nenhuma ode à
vida contemplativa (ou “dolce fare niente”), menos ainda em Platão se verifica qualquer
referência ao trabalho como impedimento ao livre filosofar.
Ao contrário, em ambas as correntes de pensamento, o trabalho surge como
atividade inerente ao ser: uma espécie de estrada que conduz à descoberta da própria
identidade e junto com ela, ao porquê da existência.
Ora, como poderiam o médico, o juiz, o arquiteto, o paisagista, o designer, o
advogado, o esportista, o professor, etc., falar de estratégias de maximização do lucro?
Se um aumento de renda lhes aprouver, se for efetivo, certamente estará
conectado não a estratégias, mas a um incremento da capacidade criativa que só a
descoberta real e incondicional da própria vocação permite alcançar e, por que não
admiti-lo, através do próprio filosofar sobre a vida?7
Quando a visão de mercado vier a ser substituída por uma visão ontológica
(metafísica) do trabalho, provavelmente, não se falará mais do problema da distribuição
de renda, pois a maioria estará desempenhando aquilo que nasceu para desempenhar
fazendo uso de suas próprias capacidades.
Também muito pouco se falará de atividade poluente, pois as melhores criações
humanas não poluem: curar, orientar, cantar, tocar, desenhar, compor, dançar, etc.
Mas, alguns dirão, nem só disso vivem os homens. Eles também necessitam
alimentar-se, vestir-se, abrigar-se, etc. E tais necessidades são supridas pelo mercado.
Todavia, a fabricação de roupas, por exemplo, polui quando não visa à criação,
mas o lucro. Aliás, com toda atividade produtora ocorre o mesmo, pois quem visa o
máximo lucro nunca adquirirá a verdadeira arte.
7 Sobre esta marca indelével que fica gravada em todo trabalho e que deixa transparecer a perseverança e amor de quem o realizou, marca que o destaca frente aos demais, feitos por desejo de louvor, riqueza, luxo, etc -, vale ler os livros IX e X de A República, de Platão. Neles encontra-se resumida a idéia de que o trabalho feito por quem não conquistou com amor a arte na qual deveria estar fundamentado, não tem alma, não tem personalidade.
O cultivo não é poluente, mas o agro negócio será, toda vez que destruir florestas
em busca do lucro máximo. O cultivo é antes de tudo uma arte milenar. O uso de
agrotóxicos é resultado da perda da arte de cultivar que os antigos descobriram e
praticaram. Fossem as lavouras artisticamente (ou artesanalmente) cultivadas,
desapareceria o uso de produtos químicos.
Muitas pessoas no mundo estão passando a consumir produtos orgânicos. Daí a
razão do surgimento das empresas que conferem este certificado. Sendo possível reduzir
o cultivo para garantir qualidade de frutas, verduras e legumes, por que não seria para
outros tipos de cultivo?
Com todas as atividades acontece o mesmo. Tivessem prevalecido as artes e
ofícios que se fizeram presentes nas sociedades passadas, o clima na terra não teria se
alterado.
Sem dúvida a descoberta vocacional não é feita do dia para noite. Ela precisa ser
desejada, buscada. Às vezes exige muita coragem. Como tiveram aqueles com vocação
para o esporte, quando ousaram abandonar os circuitos profissionalizantes tradicionais do
“mercado de trabalho”.
Soubéssemos seguir as trilhas da intuição vocacional, provavelmente haveria
fartura de bens e serviços de altíssima qualidade, além, é claro, de cultura e arte, ao invés
de “entretenimento”.
Quando é o amor ao trabalho que impulsiona o desejo de perfeição, toda a
sociedade lucra. Há abundância e variedade de serviços e de bens. Todos se realizam, ao
mesmo tempo em que têm as suas necessidades normalmente supridas.
As crises de abastecimento de bens e de serviços, isto é, o subdesenvolvimento
econômico, é uma triste decorrência da ausência de consciência ontológica (ou
semântica) do trabalho na vida do homem. Ela é a grande culpada pelo caos social que se
espalhou pelo mundo na forma de violência, consumo de drogas, prostituição, práticas
mercantis e políticas fraudulentas, compulsão por status, por consumo, entre outras
anomalias emocionais, ou, como diria Kant, patológicas.8
Vencer esta batalha é missão que cada qual deve realizar dentro do seu próprio
campo de trabalho, quer dizer, de seu próprio ofício. É o que faz o médico quando ensina 8 Conferir em “Lições de Ética”, a afirmação de Kant segundo a qual toda necessidade subjetiva é uma necessidade por estímulos (elas configuram imperativos problemáticos e não categóricos).
ao jovem aprendiz o amor à arte da medicina; o mesmo se dá em todas as áreas abertas ao
conhecimento.
2. Sobre a Gestão de Florestas Públicas (Lei 4776/2005).
O quadro antes descrito leva a ver que a recente promulgação de lei federal
prevendo a gestão compartilhada de florestas públicas, representa um passo importante na
recuperação do sentido de realidade que deve ser priorizado em respeito à vida e aos
direitos humanos.
Com ela um novo paradigma surge no horizonte trazendo consigo a esperança de
que é possível desacelerar o aquecimento da terra, harmonizando crescimento econômico
e biodiversidade.
Mudar o modelo de gestão das florestas públicas num momento como este,
comandado pela globalização da economia, é medida que tem chance de salvar a reserva
florestal brasileira (o pulmão do mundo) do velho e cansado modelo de exploração
extrativista, – não renovável - além de ser capaz de impedir a adoção de um modelo de
desenvolvimento industrial - ou agrícola-, que destrói a biodiversidade e aquece a terra.9
Porém, apesar dos muitos aspectos positivos da nova lei, é preciso cuidar, por
outro lado, para que o tipo de compartilhamento que venha a ser implementado para a
extração renovável dos recursos naturais, não redunde em novas formas de
“operacionalização” da força de trabalho.
Exemplo disto ocorreu com a extração – na verdade colheita – do karité na África,
atividade, que até alguns anos, era comandada por uma cadeia de exploradores que se
estendia até a Europa.
Hoje, ela começa a ser organizada com a criação de grandes cooperativas
femininas. São mulheres que passam de seis a oito horas por dia, curvadas, colhendo do
chão este tipo de castanha que compete com o cacau.
Mas, apesar do progresso na organização e no compartilhamento financeiro da
atividade extrativista, melhor seria se lhes tivesse sido permitido dar o passo que 9 No Brasil, 60% das florestas estão em terras públicas. A nova lei adotou mecanismos para prevenir a concentração do poder econômico, mediante a criação de áreas de manejo que foram dividas em unidades grandes, médias e pequenas. O legislador viu nesta alternativa um modo seguro de garantir o acesso do produtor de qualquer porte.
precisariam dar para ingressar no III milênio: associar o desgaste físico da colheita ao
prazer intelectual de criar produtos médicos, alimentícios e cosméticos feitos a partir
dele.
Não sendo esta a vocação de todas, bom seria que o esforço físico que fazem
servisse à descoberta e ao desenvolvimento de outras.
A descoberta vocacional, conforme se disse antes, constitui uma das verdades em
que se apóia a psicologia humana. Precisamente por isso é que a vocação precisa ser vista
pelo poder público e pela sociedade como prioridade máxima de uma política que vise
harmonizar a proteção da biodiversidade com desenvolvimento econômico e humano.
A vocação, e vale repetir, é o elo de união entre desenvolvimento humano e
econômico, pois que o seu exercício, quando repercutido no espaço público, converte-se
em fonte irradiadora de bem estar individual e de progresso social.
Por isso, antes de se iniciar, sem maiores cautelas, a privatização das florestas
públicas, conviria lembrar que os recursos que ela oferece, como espécie de dádiva de
Deus, - e aqui se pode falar sem temor da verdadeira riqueza que é a biodiversidade –
deveriam suscitar a curiosidade criativa do maior número possível de indivíduos.
Afinal, por quê determinar a priori que quem tem mais capital tem maior
capacidade de usar criativamente os recursos que a floresta oferece gratuitamente?
Também não dá para aceitar, sem maiores questionamentos, a idéia de que a
concessão será dada à empresa com maior capacidade técnica de exploração dos recursos
naturais. Ora, o que se pode entender por capacitação técnica? Os índios brasileiros, não
precisaram dispor de máquinas nem computadores de última geração para criar toda
gama de medicamentos que pelo seu elevado know-how, vem sendo estudada por
grandes laboratórios.10
O maior laboratório de que o homem sempre dispôs para descobrir os segredos da
natureza, está na sua capacidade de perceber intuitivamente as características intrínsecas
de plantas, ervas, flores e frutos.11
10 A Convenção sobre Biodiversidade prevê expressamente no artigo 17 a obrigação das Partes de trocar informações sobre os conhecimentos especializados e os conhecimentos autóctones e tradicionais.11 Neste particular, vale conferir o livro “L’âme, souffle de vie”, no qual o Professor Guy-François Delaporte, em interessante leitura sobre os Comentários de São Tomas de Aquino ao Tratado da Alma de Aristóteles, menciona que: La vie est donc le dynamisme interne qui pousse la plante, la bête e l’homme à se nourrir, assimiler, croître, s’épanouir et se reproduire. (...) C’est également ce dynamisme qui pousse l’animal e l’homme à voir, à sentir, à toucher et à goûter, à se représenter et à se souvenir, à désirer ou à
A titulação tem pouca ou quase nenhuma relevância quando se trata de atuar em
áreas para as quais o conhecimento técnico importa muito se estiver associado à
capacidade de percepção intelectual das características essenciais do ser. A capacidade de
percepção intelectual não pode, infelizmente ser garantida por nenhuma instituição
humana, por encontrar-se presa à vontade individual. Ela é de cunho, por assim dizer,
psicológico.
Por isso que em matéria de percepção de realidades sensíveis, que na filosofia
aristotélica é explicada como estágio de vida intelectiva,12 as exigências superam a crença
total na formação de ordem técnica, pois que as descobertas que a mente é capaz de
realizar, ultrapassam o limitado âmbito da acumulação de dados e informações.13
Definitivamente, todo cognoscível, pelo seu caráter essencial – imaterial - é fonte
inesgotável de descobertas, razão pela qual a simples memorização de informações
técnicas, apesar de inócua, pode se revelar bastante improdutiva, sem mencionar o
potencial que às vezes tem de abrir espaço – pela ausência de ciência – a especulações
econômicas de toda sorte.
Também não se deveria crer cegamente no princípio da soberania do Estado
quando explorado com fins de delimitação de mercados. A proteção criativa e profícua
das florestas públicas deveria prever o mais máximo compartilhamento possível das
descobertas feitas sobre características intrínsecas dos recursos naturais, inclusive por
razões mercadológicas, uma vez que a inovação, seja em que área for, não se dá sem que
o conhecimento seja compartilhado.
A transmissão, sem fronteiras, de tais descobertas permitiria a criação de um
grande espaço de conhecimento – virtual - do qual certamente extrair-se-iam verdadeiras
inovações nas áreas da farmacologia, alimentos e cosméticos.
repousser. C’est toujours ce dynamisme qui pousse l’homme à comprendre, réfléchir, juger et vouloir. Toutes ces opérations sont oeuvres vitales. Elles sont oeuvre de l’âme. 12 Referimo-nos ao Tratado da Alma escrito por Aristóteles no qual a vida intelectiva, como exclusividade humana, é explicada como sendo a capacidade de compreensão de realidades sensíveis. 13 A mentalidade tecnocrata precisa reconhecer que nos primórdios da ciência o homem contava apenas com a sua capacidade de observar e pensar. Sobretudo, que os esforços de reflexão e observação visavam o conhecimento, pois que não se poderia então falar de tecnologia aplicada, pois faltava o mercado como realidade social a determinar o pensamento. A ausência de relações mercantis faz, então, notar que muitas das descobertas no campo das ciências foram possíveis pela simples apreciação da realidade.
A gama de produtos que podem ser feitos a partir de raízes, frutas e flores é
inesgotável; conforme se disse, são realidades cognoscíveis, ou seja, matérias nas quais
estão contidas características essenciais – intrínsecas - infindáveis.
Deste modo, usar o princípio da soberania nacional como barreira à inteligência, é
decisão que contraria as noções de liberdade individual e bem comum.
Neste particular, sobressaem os argumentos lançados pelos EUA e Japão quando
recusaram a assinar o pré - projeto da Convenção sobre Diversidade Biológica.
Em face da necessidade de adotar um critério justo de acesso aos recursos
biológicos e genéticos, representantes de ambos os países repudiaram a regularização que
se pretendia então adotar, alegando que tal medida enfraqueceria as capacidades de
pesquisa e inovação14.
De fato, como seria possível defender a restrição total de acesso à biodiversidade
que o subdesenvolvimento terminou por propiciar aos países do sul? Seria o mesmo que
ver o garotinho, dono da bola, acabar com a disputa de futebol porque não lhe deixaram
fazer gols.
Deste modo, no texto da Convenção ficou reconhecida a soberania dos Estados
sobre seus recursos biológicos e genéticos para permitir ou recusar o acesso a estes por
terceiros.15 Por outro lado, foi também instituído um sistema prevendo a repartição dos
benefícios tecnológicos ou financeiros gerado pelo acesso comercial aos recursos.
Além destes pontos, seria preciso verificar outros que possam revelar
incongruências normativas entre institutos jurídicos nacionais e supranacionais.
O Brasil, por exemplo, como país signatário do Protocolo de Kyoto e da
Convenção sobre a Diversidade Biológica, ao promulgar a lei de gestão de florestas
públicas, acabou criando dissonâncias jurídicas significativas.
14 Conferir esta e outras questões relacionadas ao histórico da Convenção sobre a Diversidade Biológica no artigo escrito por Philippe le Prestre, publicado em “La Biodiversité, tout conserver ou tout exploiter? Textes réunis par Marie-Helène Parizeau, De Boeck & Larcier s.a., 1997, Département De Boeck Université, Paris-Bruxelles. 15 A restrição, apesar de livremente incluída na Convenção, revela, é preciso admitir, resquícios de pensamento nacionalista. A reserva biológica brasileira tem tanta importância à humanidade quanto à asiática ou africana. Existem muitos produtos feitos a partir da bétula, planta natural das florestas canadenses. Nada impede que sejam transplantados, para outras localidades, os diversos tipos de plantas e até mesmo de insetos empregados em fármacos, alimentos ou cosméticos.
É que enquanto a Convenção está calcada no compartilhamento de novas
tecnologias de utilização durável dos recursos biológicos16, a Lei 4.776/05, nada
menciona a este respeito.
A confrontação dos textos leva a interpretar que o concessionário, segundo seus
termos, sucederá o Estado como Parte contratante. É que, considerando-se a continuidade
das licitações nela previstas, não haverá porque falar de soberania dos Estados signatários
para decidir o acesso, compartilhado, aos recursos biológicos.
Por todos estes detalhes jurídicos, antropológicos e éticos, conviria não perder de
vista que acima de tudo está o direito do homem a ter acesso à biodiversidade para nela
descobrir todo o seu potencial benéfico.
Depois, é preciso ver que toda e qualquer medida legal ou política que se desvie
de um modelo de preservação da biodiversidade pautado no livre exercício vocacional,
redundará necessariamente em competição econômica e guerra de patentes.17
Trocar o modelo de desenvolvimento industrial, que substituiu o monopólio
fundiário pelo fabril e poluiu o planeta, é muito salutar, inclusive pelo potencial de
devolver ao homem a capacidade de criar que o trabalho operário lhe roubou.
No início foi esboçada uma possível associação entre os efeitos nefastos ao clima
e o distanciamento intelectual do homem com a sua própria verdade. Talvez, a sede de
poder e lucro tenha sido a grande culpada desta ruptura que agora ameaça a vida no
planeta.
Resta, no entanto, a esperança de que a preocupação que ora mobiliza as forças
socais e políticas no mundo, possa representar o elo perdido que trará de volta o amor ao
trabalho e à natureza. 18
16 O artigo 16 da Convenção regulamenta o acesso à tecnologia e estabelece o dever das partes de transferi-la como elementos essenciais à realização dos objetivos que estabelece.17 Neste contexto, conforme ressaltam os órgãos de defesa dos direitos dos índios, seria uma verdadeira aberração se eles fossem submetidos a pagar royalties para indústrias multinacionais para poderem utilizar descobertas suas. 18 Como não realçar neste panorama a recuperação da criatividade científica que vem sendo determinada pela urgência em se identificar fontes alternativas de energia renovável?
3. MDL e o Global Carbon Market.
Segundo os termos consignados no Protocolo de Kyoto, os países industrializados
precisariam reduzir até 2010, ao menos 5% da emissão de gases de efeito estufa.
Para tanto foram instituídos os chamados Mecanismos de Desenvolvimento
Limpo, que consiste na possibilidade dada a um país poluidor de compensar as suas
emissões através da aquisição de créditos oriundos de projetos realizados por países em
desenvolvimento.19
Desde que foi acordado em 1997, contando com a assinatura de 141 países, o
Protocolo somente ganhou força com a ratificação dada pela Rússia, uma vez que os
EUA decidiram não participar.
Do ponto de vista prático, a retirada dos EUA enfraqueceu muito a
aplicabilidade das metas de redução. Quando decidiu retirar seu país, George W. Bush
alegou que o tratado era injusto por excluir os países em desenvolvimento das metas de
redução previstas pelo Protocolo. Estes, segundo ele, também são responsáveis pelos
atuais índices de emissão.
Por outro lado, Bush defendeu que atingir tais metas dependeria mais da adoção
de medidas voluntárias e também da criação de novas tecnologias no campo energético.
Com a retirada dos EUA, o mercado de trocas de créditos entre países ficou
contido. Porém, desde o ingresso da Rússia, quando se passou a contar efetivamente com
a participação de 55% dos países emissores de dióxido de carbono, este panorama
modificou-se, completamente.20
De fato, o Global Carbon Market já é uma realidade internacional. Graças e ele, a
quantidade de projetos tecnológicos visando reduzir os gases de efeito estufa na
atmosfera aumentou assustadoramente.
19 A referência é feita aos MDL (Mecanismos de Desenvolvimento Limpo) em razão de sua aplicabilidade à situação atual do Brasil. As demais modalidades, designadas, respectivamente, Joint Implementation (artigo 17 ) e Emission Trade (artigo 6), afetam os países que devem atingir as metas de redução de emissões estipulada pelo Protocolo. 20 A ênfase é sempre dada ao dióxido de carbono pela sua predominância. Todavia, no Protocolo estão relacionados os seguintes gases: dióxido de nitrogênio, hidrofluorcarbono, perfluorcarbono e hexafluoreto.
Neste ponto, impossível não reconhecer o sucesso da idéia que os participantes do
Protocolo tiveram de atenuar o impacto ambiental gerado pela industria21, através da
criação de um mercado em que países “poluidores” sejam obrigados a adquirir créditos
de carbono de outros, que por sua vez são capazes de implementar tecnologias e realizar
projetos passíveis de serem habilitados.
Todavia, frente à impossibilidade de se reverter, em curto prazo, um sistema
econômico que funciona, mas polui, a saída adotada para diminuir o aquecimento da
terra, nem começou a vigorar e já se revela cheia de suscetibilidades.
Em primeiríssimo lugar está o problema da centralização, pelo governo federal, -
num país grande como o Brasil – do sistema de habilitação de projetos e concessão de
créditos.
É claro que por trás do crédito deve haver um projeto efetivo, um projeto que seja
capaz de capturar qualquer gás, carbono ou metano, gerador do efeito estufa. Mas, por
quê esta verificação de capacidade deveria ser controlada só pelo governo federal?
Numa comparação por analogia, ocorre imaginar a globalização do comércio
dependendo do Estado para analisar e conceder certificados de qualidade como os
internacionalmente conhecidos ISO’s 9000 e 14000.
Há um número grande de pessoas no mundo que só adquire produtos orgânicos
certificados. Desde quando esta tendência foi se ampliando, foi crescendo também a
quantidade de empresas privadas que prestam este tipo de serviço. Muitas delas, também
conhecidas e respeitadas internacionalmente.
Pensando neste exemplo, seria uma loucura imaginar milhares de pessoas
dependendo do Estado para poder adquirir toda a gama de produtos orgânicos que são
produzidos e comercializados diariamente.
Com respeito às certificações mencionadas dá-se o mesmo. A obtenção delas
exige das empresas interessadas o preenchimento de uma série de requisitos, alguns deles
voltados ao controle de qualidade, outros visando garantir a inexistência de mão de obra
infantil no processo produtivo, sem contar a preocupação com a preservação ambiental,
etc.
21 A indústria é sem dúvida alguma a grande vilã do aquecimento. Todavia, existem outras atividades, como a suinocultura, por exemplo, que por produzir altas quantidades de gás metano, chega a ser, ainda mais, poluentes.
As empresas brasileiras que se dispuseram a realizar todas as etapas relacionadas
à aquisição de tais certificações conseguiram furar a barreira que as excluía do mercado
internacional.
A Perdigão foi uma empresa que passou a fornecer para a rede Wal Mart depois
de ter enfrentado uma série de análises e verificações que culminaram na necessidade de
remodelação de quase todo sistema produtivo. Em compensação, observados os
requisitos e feitas as adaptações, a empresa passou a integrar um mercado seleto que
exige qualidade, mas paga por ela.
Com o mercado de carbono parece que deveria ocorrer o mesmo. No Brasil
encontram-se operando diversas empresas de engenharia ambiental capacitadas para
avaliar projetos destinados à redução de dióxido de carbono e outros gases.
Cresce também cada vez mais no país, o número de empresas que contratam os
serviços de consultoria técnica e jurídica na área ambiental.
No que diz respeito à concessão de créditos podendo ser comercializados no
mercado internacional, restou, no entanto, ter de enfrentar o estreito circulo brasiliense,
que pretende submeter o processo de habilitação à sua tradicional rigidez burocrática.
Sob a crença de que deve garantir ao comprador, leia-se, às empresas
multinacionais que emitem um índice elevado de dióxido de carbono, a mais máxima
segurança quanto à real procedência do crédito, uma vez mais o governo se interpõe num
mercado que deveria se guiar pela livre parceria entre empresas estrangeiras interessadas
em comercializar créditos ou desenvolver novas tecnologias.22
Ao que parece, os fenômenos climáticos que não cessam de ocorrer em toda parte,
deram aos dirigentes de empresas consciência suficiente para investir em modernas
tecnologias de redução de gases poluentes.
É preciso incluir neste rol de integrantes do Carbon Market as empresas
financeiras interessadas em patrocinar projetos, dos mais variados tipos, tendentes à
criação de áreas de desenvolvimento auto – sustentável.
A Carbon Expo, organizada na cidade de Colônia, Alemanha, discutia este ano,
entre outros temas, sobre qual será o papel dos esquemas de investimento ecológico.
22 É preciso lembrar que o índice de emissões pode ser calculado. É um dado passível de ser auferido como outros tantos utilizados pelas administrações públicas nas suas tomadas de decisão.
Embora o Brasil apareça, depois da Índia, como país onde tramita o maior número
de projetos visando habilitar créditos, a realidade mostra que ainda estamos muito aquém
do patamar estabelecido pelo Protocolo no que tange à criação de novas tecnologias.
No continente europeu foi registrado um declínio de 3% nas emissões, mas
segundo noticiado pela folha de São Paulo23, esta queda aconteceu principalmente por
causa do declínio econômico nas ex Repúblicas Soviéticas e mascarou um aumento de
8% nas emissões entre os países ricos. Ainda nos termos da publicação, a Onu afirma
que os países industrializados estão fora da meta e prevê para 2010 um aumento de 10%
em relação a 1990. Segundo a Organização apenas quatro países têm chance de atingir as
metas.
O cenário não é nada animador. A urgência em encontrar alternativas para agilizar
a descoberta de novas tecnologias e fomentar a troca de créditos, revela quanto e como a
burocracia governamental pode atrapalhar neste momento crucial em que o que está em
jogo é a sobrevivência do planeta.24
Não é sem motivo que as relações internacionais nesta área deveriam se dar sem
nenhuma intromissão do governo.
Primeiro porque há um número grande de empresas privadas interessadas em
investir em projetos a um custo financeiro muito menor do que os bancos brasileiros
poderiam atingir.
Por outro lado, pensar em investimentos pesados na área pelo Banco Central
causa tremor, num país em que o número de alfabetos funcionais predomina, onde a livre
concorrência é desrespeitada pela presença de produtos clandestinos, onde a sonegação, a
informalidade e a criminalidade imperam.
Neste prisma, não se fazem necessários investimentos públicos diretos, nem
mesmo os fiscais, que normalmente se dão através de benefícios e incentivos.
A diferença resulta do fato de que a inovação tecnológica, bem como a mais
máxima preservação de áreas verdes, é interesse que ultrapassa as fronteiras nacionais.
23 Folha On Line - 16/02/2005 “Entenda os principais pontos do Protocolo de Kyoto” 24 Depois do que ocorreu em New Orleans, hoje cidade desertada, houve também as inundações no Reno deixando desabrigadas centenas de famílias húngaras e romenas.
Ao expor sua compreensão sobre a justiça distributiva, John Finnis ressalta o fato
de que muitos projetos de interesse público somente podem ser realizados mediante a
conjugação de esforços.25
Identificar caminhos que sejam efetivamente capazes de alterar o quadro atual de
emissões, é uma finalidade que interessa a todos.
Assim como a economia, conforme já o ressaltara Kant no seu tratado sobre a
“Paz Perpétua”, a proteção do ar e por conseqüência, da biodiversidade, é tema bem mais
do que comum: não há como fechar os territórios para que se isolem das intempéries
climáticas, como na literatura de Albert Camus (A Peste).
Os analistas da globalização defendem que a economia moderna está tão
interligada que o menor distúrbio num mercado afeta todos os demais.
Com o clima ocorre o mesmo. É claro que as queimadas nas florestas de Portugal
e França, não encontram paralelo no Brasil. Todavia, as sucessivas ondas de calor (no
francês, canicule) ou frio, as designadas “frentes frias”, ou a longuíssima estiagem no São
Francisco, apontam para os reflexos de se sofrer de modo passivo as conseqüências da
industrialização.
Em se tratando de intensidade, por mais que os problemas climáticos no Brasil
ainda sejam suportáveis e que tragam menos prejuízos, o fato é que o nosso crescimento,
apesar de pequeno (atrás da China e da Índia), ainda é essencialmente industrial. A
contribuição do agro negócio é duvidosa, pois quanto maior for a concentração de áreas
cultiváveis, tanto mais atraente a atividade industrial se torna para os que buscam uma
alternativa de enriquecimento.
O panorama revela uma importante verdade: não basta prever a concessão de
benefícios fiscais às empresas para que reduzam suas emissões, é preciso identificar e
ampliar o leque de alternativas vocacionais como único meio possível de harmonizar
desenvolvimento humano e econômico.
De que adianta gastar tributo para custear ou incentivar a redução se a cada dia
surgem novas fábricas ou novos tipos de monocultura?
Talvez as soluções possíveis venham a exigir do consumidor uma mudança
radical de comportamento.25 Em análise que faz da justiça distributiva, (Natural law and Natural rights) John Finnis, argumenta que uma classe de objeto comum surge da vontade dos indivíduos de colaborar para melhorar sua situação.
A crise energética no estado da Califórnia obrigou a edição de uma lei proibindo a
divulgação publicitária de eletrodomésticos em geral. Não é preciso dizer que tal
realidade causou uma importante diminuição nos gastos com criação e publicidade, que
foram revertidos em benefício do aperfeiçoamento tecnológico dos produtos.
O status e o conforto de utilizar produtos elétricos para as menores necessidades
do cotidiano familiar teve de se curvar à realidade: faltava fonte para tanto consumo.
No período de crise de abastecimento acontecida em São Paulo deu-se o mesmo.
Todos tiveram de re-aprender a viver numa situação nova, uma vez que de estrelas do lar,
computadores e eletrodomésticos passaram à condição de figurantes.
Esses exemplos revelam quão insuficiente são as leis que prevêem a concessão de
incentivos fiscais, seja para incentivar o consumo de determinado bem, seja para garantir
algum tipo agricultura, ou ainda para desenvolver o comércio ou o turismo.
A velocidade com que a realidade se altera é um fator que não pode ser
desprezado pelo legislador que pretenda atingir o ponto ideal de equilíbrio econômico e
social.
Por outro lado, é insensato, conforme o verificou Demasi, que em nome da
garantia de emprego, as indústrias passem a fabricar produtos de baixo durabilidade –
quase descartáveis -.
Este tipo de medida ofende o direito do homem de desenvolver sua vocação e de
gozar da qualidade de vida que a preservação do ecossistema lhe pode permitir.
Todos estes fatores reunidos levam a ver que muitas das ações políticas ou
privadas, tomadas com as melhores intenções, podem resultar em desvios ou obstáculos
ao caminho natural de conscientização moral.
4. Política fiscal e meio ambiente: uma visão ditatorial ou paternalista?
Em se tratando de mecanismos aptos a reverter a atual situação do clima no
mundo, o melhor a se fazer, convém frisar, ainda é investir no desenvolvimento humano,
raiz da qual depende, o resgate do elo perdido entre o homem e a natureza.
Com esta particular ótica que vê os desajustes ambientais como decorrência de
desajustes “antropológicos” fica claro que o governo, - ao invés de ocupar-se em
descobrir como investir o dinheiro dos impostos numa economia cambiante - agiria
melhor se gastasse com a criação de novos espaços de desenvolvimento intelectual, do
qual dependem e derivam as descobertas em todas as áreas, e, em especial, na área
ambiental.
A criação de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo é resultado da conjugação
de vários fatores e os incentivos governamentais são a menor parte nesta engrenagem.
Japoneses e holandeses, conscientes disso, estão promovendo parcerias com
empresas brasileiras na construção de aterros. Parece haver um projeto realizado em
parceria com japoneses26 para o qual foi prevista, inicialmente, a captura sem reutilização
de gás metano, o que revela que esta área é capaz de atrair investimentos para os quais
não há a expectativa do lucro imediato.
O governo brasileiro se apressou em analisar tais projetos e liberá-los para a
comercialização de créditos. Cuidou inclusive de promover acordos de parceria, como o
que acaba de realizar com a França. Há, todavia, uma grande quantidade de alternativas,
outras, que não estão sendo sequer conhecidas pelos analistas do governo, que se
limitaram à aprovação de projetos segundo os parâmetros (preliminares) instituídos pelo
Protocolo.
Trata-se de projetos aptos a reduzir emissões, mas que não geram créditos, na
ótica dos especialistas, aos quais compete emitir certificações, por estarem relacionadas à
atividade “normal” da empresa.
Ora, por quê a substituição dos antigos motores a diesel por novos, a biodiesel,
por exemplo, não poderia gerar créditos à empresa nacional? Só porque no Protocolo este
tipo de transação comercial – Emission Trade – foi estabelecido (ou apenas proposto?)
para funcionar entre países sujeitos à redução de emissões?
26 Apesar da impossibilidade de citar com precisão os nomes das empresas envolvidas, o projeto foi realizado em parceria com a Construtora Camargo Correa.
Parece ingênuo, diante do tamanho do problema das alterações climáticas,
descartar o comércio de créditos – Emission Trade – entre os países em desenvolvimento
e os que ficaram sujeitos às metas de redução.
Do mesmo modo, poderiam ser vendidos aos países submetidos à redução, os
créditos derivados da implementação conjunta – Joint Implementation – de novas
tecnologias.
Ambas as alternativas de comércio de créditos de carbono, por ora restritas por
força de uma interpretação “normativista” dos termos inscritos no Protocolo, deveriam
ser estendidas aos demais signatários, principalmente porque a possibilidade de uma dada
tecnologia ser capaz de “capturar” carbono pode ser medida, pode ser calculada. Aliás,
não fosse por isso, tanto a previsão do Comércio de Emissões, quanto das
Implementações Conjuntas, não fariam nenhum sentido.
O Brasil, como país em desenvolvimento, não está sujeito aos parâmetros de
redução instituídos no Protocolo. Então por quê todo o esforço feito pela redução de
emissões - que pode ser calculado - não poderia dar à empresa brasileira o direito de
vender créditos às empresas estrangeiras que hoje se encontram impossibilitadas, por
falta de novas tecnologias, a reduzir o nível de suas emissões?
Não se trata de criar novos tipos de incentivos fiscais, os existentes já bastam para
ofender a livre concorrência e o bem comum. Trata-se, antes de utilizar as armas do
poder público para ampliar ao máximo a geração de parcerias visando o desenvolvimento
de tecnologias voltadas à redução de emissões, bem como a criação de outras que
assegurem a preservação auto-sustentável da biodiversidade.
Entre a alternativa que aposta na concessão de incentivos como meio de atração
de investimentos (como funciona a Lei Rouanet para a cultura), é preferível deixar ao
empresário o direito de comercializar fora toda a emissão que tiver podido reduzir com os
seus próprios esforços, ou através da associação com parceiros internacionais, estes sim,
obrigados, pelos termos do Protocolo, à redução nele estipulada.
Cabe ao comprador – ou parceiro - avaliar e constatar a efetividade do crédito que
irá adquirir, independentemente de chancela governamental, mesmo porque ela é de
ordem tecnológica e não burocrática.
É a eficácia da tecnologia que está em questão. Um aval burocrático não pode
garantir que dada tecnologia seja realmente capaz de capturar dióxido (monóxido) de
carbono, metano, ou qualquer outro dos gases previstos. Esta análise depende de
comprovação científica e não de fé pública.
Por todas estas razões, a comprovação da origem e eficácia do crédito necessita
ser feita pelo adquirente e não pelo Governo Federal. Gastar tempo e dinheiro público
nesta atividade distorce os fins da política, quando compreendida como função social à
qual incumbi a promoção moral e vocacional do indivíduo e não a simples criação de
barreiras burocráticas ao livre fluxo de parcerias feitas com propósitos ambientais.
Conforme se afirmou antes, a política adotada pelo Governo Federal, ao vincular
o procedimento de habilitação à superação de trâmites burocráticos, dos quais depende a
admissão ou rejeição de projetos, ao invés de fomentar e dar livre trânsito às parcerias
surge como mais um obstáculo, colocado pelos agentes públicos, entre os únicos atores
possíveis na luta contra o aquecimento global: empresários e tecnólogos.
Também não é possível endossar a hipótese de novas intromissões
governamentais, conforme se mencionou antes, na forma de concessões de benefícios
fiscais.
A redução da carga fiscal em áreas pontuais da economia constitui um expediente
contrário ao livre mercado e à livre iniciativa. Sendo ambas noções basilares do preço
justo, quando não observadas, cai por terra, conseqüentemente, qualquer possibilidade de
realização de uma sociedade justa.
O governo erra quando pretende, (como fazem alguns pais quando consultam as
“tendências de mercado” para decidir a carreira do filho), determinar, a priori, quais
setores da economia devem receber incentivos na forma de isenções ou empréstimos
diretos.
A urgência do problema exige muito mais do que a adoção de velhas fórmulas.
Assim como George Bush, em coletiva recente, afirmou que o americano é viciado em
petróleo e que é preciso descobrir novas alternativas para a produção de energia,
igualmente se pode dizer que o povo brasileiro está se tornando depende de incentivos
fiscais e que a relação contribuinte-fisco é uma relação ora ditatorial, ora paternalista.
Em se tratando de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, a política ambiental
adotada pelos governos federal e estadual prevê a concessão de isenções (IPI e ICMS)
aplicadas ao cultivo de mamona.
A produção de mamona no Brasil ou de qualquer outra fonte alternativa de
combustível biológico ainda é incipiente não por faltarem incentivos, mas por
inexistência de mercado.
Até que se esgotem as fontes de combustível fóssil, mesmo o álcool perde
competitividade; imagine-se a situação dos outros combustíveis biológicos.
A produção de diesel a partir da mamona, com maior competitividade, vem
atraindo a atenção de grandes empresas. Certamente, a necessidade básica de
aquecimento no Norte, associada ao (provável) fim das fontes de petróleo e ao aumento
dos distúrbios climáticos, concentrará cada vez mais investimentos na identificação de
fontes alternativas de energia renovável.
Por isso, é de se supor que o álcool também tenha seu mercado ainda mais
ampliado. Todavia, por ora, as isenções praticadas não causam nenhum impacto, pois esta
é uma realidade que está apenas se esboçando.27
No que diz respeito, portanto, ao Mercado de Carbono, não se pode afirmar a
existência de uma política fiscal, pois, conforme se disse, a substituição de combustível
fóssil por renovável (a partir da mamona), ainda é incipiente.
Apesar disso, ampliar a produção de biodiesel através da implementação de
mecanismos artificiais, na forma de empréstimos governamentais diretos, é de se frisar, é
medida que não se coaduna com a consolidação de uma efetiva economia de mercado.
A posição do Brasil no mercado internacional de aço, por exemplo, continua
sendo, preponderantemente, a de fornecedor de matéria prima. Enquanto houver fontes
para explorar, - exatamente como ocorreu com a extração de petróleo-, não resta às
empresas do setor senão investir em modernas tecnologias de extração ou na construção
de estradas de ferro e portos, como veio ocorrendo nos últimos anos.
Contudo, tais investimentos foram realizados pelas empresas com recursos
próprios – mais de 40% do capital da Vale do Rio Doce, por exemplo, é comercializado
diariamente na bolsa de Nova York.
27 Convém lembrar que o Brasil (a Petrobras) acaba de anunciar a sua autonomia no suprimento de petróleo.
O governo, através do BNDS, participa deste capital, mas remunerando-se em
taxas normais de mercado.
O futuro dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo está, sem nenhuma dúvida,
calcado na criação de novas tecnologias voltadas à substituição de combustível fóssil por
renovável.
Ao lado delas figuram outras que precisarão solucionar os problemas gerados pela
eliminação crescente de florestas e por culturas que geram muito gás metano como é o
caso da suinocultura.
Com relação às florestas, ocorre pensar, conforme se mencionou antes, que a
privatização da gestão no Brasil, poderá, de fato, representar uma alternativa econômica à
monocultura e à pecuária.
Falar de áreas quilombolas, baseadas na extração de óleos e essências, por
famílias, é falar de uma saída social ao problema da preservação da biodiversidade e do
aquecimento – não necessariamente ao problema da liberdade vocacional -.
Ao que tudo indica, a posição que o Brasil irá ocupar será bastante estratégica,
sobretudo no que tange à preservação ambiental. A condição de país cujo interior ainda
apresenta baixa densidade demográfica, sem dúvida alguma, será determinante na atração
de investimentos.
Todavia, eles precisarão ser feitos pela iniciativa privada. A atuação do governo,
assim como foram as medidas adotadas no pró-álcool, já não mais se harmoniza aos
parâmetros instituídos pela “globalização” da economia.
Antes, as economias eram exclusivamente nacionais. O governo funcionava como
garantidor de mercados estratégicos, como foi a reserva de mercado na área da
informática, por exemplo.
Hoje, o livre comércio exige que, definitivamente, o governo se retire da
economia, deixando à iniciativa privada a assunção do risco que lhe é inerente.
A economia não é atividade na qual o governo possa se imiscuir sem praticar
injustiças ou, como diz, Milton Fridman, atrapalhar28.
28 Conferir em “Why Government is the Problem”, Essays in Public Policy, Hoover Institution, Stanford University, 1993.
Quando muito, o governo pode funcionar como agente fomentador e facilitador da
criação de parcerias. Ao governo também podem ser reservados os incentivos à pesquisa,
desde que não haja a pré-determinação de áreas.
O mercado não pode funcionar como matriz das opções de investimento do
dinheiro público.
A família que adota o mercado como matriz para as decisões domésticas também
se equivoca, imagine quão absurdo é transportar este modelo para as relações sociais.
Nenhum investimento público na economia se justifica; nem mesmo empréstimos
a empresas lucrativas – quer dizer, às que honram suas dívidas - podem ser tidos por
aceitáveis.
O quadro atual é de ser visto como uma anomalia que se resolverá na medida em
que a economia for se consolidando.
Pensando com J. Finnis, é preciso de fato reconhecer a importância da
participação do governo em projetos bastante específicos para os quais não haja interesse
do capital privado, como seriam as lutas contra a violência ou contra a disseminação de
moléstias, contra o analfabetismo, contra o uso de drogas, etc.29
A produção de biodiesel não configura um investimento deste gênero, pois
envolve a previsão de um mercado bastante lucrativo; é só uma questão de tempo.
Deste modo, é preciso admitir que em face do interesse do capital privado
estrangeiro em financiar quaisquer projetos que sejam capazes de capturar carbono,
metano e outros gases de efeito estufa, ou de garantir a preservação da biodiversidade,
ficam descartadas as hipóteses de incentivos diretos, através de financiamentos e
empréstimos, ou indiretos, através de incentivos e benefícios fiscais.
29 Na abordagem que faz do conceito de justiça distributiva ( Natural Law and natural rights), o autor menciona projetos de ordem pública para cuja realização se faz necessária a “determinação” de pessoa competente O conceito é utilizado não só para a avaliação da distribuição da renda, mas, aos moldes de J.Ralws, também para a análise da distribuição justa de funções públicas: Um governo que designar para cargos públicos políticos que não os merecem violará a justiça distributiva.