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A OIT e A PrOTeçãO InTernACIOnAL dOs dIreITOs hUMAnOs eM MATérIA de reLAções de TrAbALhO

Silvio Beltramelli Neto1

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. PANORAMA HISTÓRICO: DA FORMAÇÃO ÀS “NOVAS POLÍTICAS NORMATIVAS”; 3. CONVENÇÕES E RECOMENDAÇÕES; 4. MECANISMOS DE CONTROLE; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ; 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1. INTRODUÇÃO

Por mais que a comunidade internacional tenha se esforçado, notadamente na seara da ONU, para afirmar a indivisibilidade, interdependência e a comple-mentariedade entre os direitos humanos, pretendendo dissipar qualquer dis-tinção qualitativa entre os chamados direitos civis e políticos e os direitos so-ciais, é fato a existência de um abismo em relação aos mecanismos de proteção correlatos, dentro dos diferentes sistemas internacionais, com intenso prejuízo para os direitos econômicos, sociais e culturais.

Vale lembrar que os tratados internacionais gerais sobre direitos econô-micos, sociais e culturais contam também com obrigações voltadas especifica-mente às relações de trabalho, em regra relativas à liberdade de profissão, à não discriminação no trabalho, ao direito à remuneração, à sindicalização, entre outros.

Muito se discute, atualmente, sobre estratégias para alteração deste quadro de déficit dos mecanismos internacionais de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Despontam, todavia, como um importante contraponto a este quadro defi-citário dos direitos econômicos, sociais e culturais os mecanismos de proteção dos direitos trabalhistas estabelecidos pela Organização Internacional do Tra-balho - OIT, os quais, embora também permeados por sérias dificuldades, ao

1 Procurador do Trabalho da 15ª Região, lotado em Campinas/SP. Doutor em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba e especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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menos se encontram instituídos, desde o início do século XX, de modo institu-cionalizado e, o mais importante, em franca atividade.

O presente estudo, dentro desta linha de contribuição à afirmação dos di-reitos sociais, mais especificamente dos direitos trabalhistas, tem por objeto lançar um olhar panorâmico sobre a OIT, desde sua organização, passando pe-los seus mecanismos de atuação, com ênfase para a mudança de postura desta Organização, verificada nas décadas mais recentes, na busca pela maior efetivi-dade de suas ações. Não se tratará aqui, pois, do conteúdo das normas interna-cionais produzidas no âmbito da OIT, mas das iniciativas relacionadas à busca da sua real produção de efeitos.

2. PANORAMA HISTÓRICO: DA FORMAÇÃO ÀS “NOVAS POLÍTICAS NORMATIVAS”

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que colocou fim à Primeira Guerra Mundial. Seu surgimento é calcado na convicção da comunidade internacional no sentido de que a paz mundial permanente tem como requisito a justiça social, tão deman-dada em tempos de rigorosa exploração do trabalho, impingida pela Revolução Industrial.2

Note-se, pois, que a OIT é anterior à própria ONU, vindo a institucionalmen-te vincular-se a essa, como agência especializada, apenas em 1946.

Traço essencial e singular desta Organização Internacional é sua natureza tripartite, que confere assento e poder igual de voz e voto a representantes de governos, trabalhadores e empregadores. São três os órgãos fundamentais da OIT, conforme consta do art. 2º da Constituição da OIT.

A Conferência Geral é constituída pelos representantes dos Estados-Mem-bros, composta de quatro representantes de cada um desses Estados (dois Dele-gados do Governo, um representante dos empregados e um dos empregadores, cada qual podendo se fazer acompanhar de um certo número de consultores técnicos ou “conselheiros”). Cada delegado tem o direito de votar, individual-mente, em todas as questões submetidas às deliberações da Conferência. É no âmbito da Conferência Geral que se estabelecem e se adotam as normas inter-nacionais do trabalho, funcionando, igualmente, como fórum de discussão de questões sociais e laborais fundamentais.

O Conselho de Administração é composto de 56 integrantes (28 represen-tantes dos Governos, 14 representantes dos empregadores e 14 representan-

2 A ligação umbilical entre paz mundial e justiça social, em especial na perspectiva das condições de trabalho, está expressamente afirmada nos três “considerandos” que compõem o preâmbulo da Constituição da OIT, cuja leitura recomenda-se.

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tes dos empregados). Dos 28 representantes dos Governos, 10 serão nomeados pelos Estados-Membros de maior importância industrial (assim declarados pelo próprio Conselho, mediante exame de uma comissão imparcial) e 18 serão nomeados, a cada três anos, pelos Estados-Membros designados para esse fim pelos delegados governamentais da Conferência, excluídos os delegados daque-les 10 Membros. Este órgão toma decisões sobre a política da OIT, determina a ordem do dia da Conferência Internacional do Trabalho, adota o projeto de Programa e Orçamento para apresentação à Conferência e elege o Diretor-Geral.

A Repartição Internacional do Trabalho é o órgão de secretaria perma-nente, chefiado pelo Diretor-Geral, por sua vez designado pelo Conselho de Administração.

Alguns episódios históricos de formação e consolidação da OIT são marcan-tes3 e merecem menção, ainda que breve.

Assinado em 1919, o Tratado de Versalhes é resultante da proposta de uma Comissão do Trabalho estabelecida pelo Tratado de Paz que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Tal Comissão baseou-se em ideias, gestadas no século XIX, em favor de uma organização internacional encarregada das relações de trabalho, tendo por paradigma os eixos orientadores da Associação Internacional para a Proteção Legal dos Trabalhadores, instituída em 1901, na Basiléia. Em 1920, dá-se a instalação da sede permanente da OIT em Genebra, na Suíça.

Em 1925, institui-se o Comitê de Peritos (“Comité de Expertos”), integra-do por juristas independentes, encarregados de supervisionar a aplicação das normas aprovadas no âmbito da OIT, em especial pela análise dos relatórios periódicos, a cuja apresentação se obrigavam os Estados-Membros e os Esta-dos-Partes nas Convenções ratificadas.

A Declaração da Filadélfia, de 1944, é aprovada como documento que expli-cita os itens e objetivos da OIT e os princípios que devem inspirar a política dos seus Membros, tendo sido oficialmente incorporada, como anexo, à Constitui-ção dessa Organização, em 1946. Neste mesmo ano, ao final da Segunda Guerra Mundial, a OIT converte-se em agência da ONU.

Aprovada em 1948, a Convenção n.º 87, sobre a liberdade sindical, é o tra-tado internacional que marca a intensificação da defesa irrestrita da não inter-venção estatal nos sindicatos. Em seguida, em 1949, aprova-se a Convenção n.º 98, sobre o direito à sindicalização e à negociação coletiva, em complemento à Convenção n.º 87, visando a proteção ao direito fundamental do trabalhador de associar-se a determinado sindicato, bem como dever de fomento, promoção e pleno desenvolvimento da negociação coletiva.

3 Cf. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em: <http://www.ilo.org/global/about-the-ilo/history/lang--es/index.htm>. Acesso em: 11 ago. 2014.

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Em 1950, é criada pela OIT a Comissão de Investigação e Conciliação, após acordo com o Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), destinada a con-duzir procedimentos de monitoramento em matéria de liberdade sindical; as tratativas com o ECOSOC permitiram que estados filiados a ONU, mas não à OIT, pudessem ter casos de violação à liberdade sindical submetidos a esta Comis-são, a qual, contudo, apreciou pouquíssimas demandas, mormente por depen-der da expressa anuência estatal para o desencadeamento da investigação.

O Comitê de Liberdade Sindical é instituído em 1951, com a função especí-fica de monitorar o cumprimento das Convenções n.ºs 87 e 98, tendo, ao longo da história, atuação profícua em defesa da liberdade sindical e do direito à sin-dicalização e à negociação coletiva, notadamente porque conta com procedi-mentos mais flexíveis em relação à Comissão de Investigação e Conciliação, na medida em que se abre para a recepção de reclamações por organizações não representadas na OIT e ainda procede à necessária apuração, ainda que sem prévia autorização do Estado envolvido, tampouco sua ratificação àquelas Con-venções, uma vez que se está a tratar de princípios fundamentais previstos na Declaração da Filadélfia, oponíveis por isso a qualquer Estado-Membro da OIT.

No período da Guerra Fria (entre 1948 a 1970), dá-se a consolidação da OIT, quando dobra o número de Estados-Membros da Organização, tornando os pa-íses desenvolvidos minoria, frente à quantidade de nações em desenvolvimen-to filiadas; na mesma época, quintuplica-se o seu orçamento e quadruplica-se o número de funcionários. Entre 1970 e 1973, a OIT marcadamente desenvolve os seus mecanismos de monitoramento e da apuração de violações às suas normas.

Já em 1998, é editada a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento, documento que reafirma os qua-tro princípios relativos a direitos fundamentais que permeiam todas as normas criadas no âmbito da OIT, quais sejam: (i) a liberdade sindical e o reconhecimen-to efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; iii) a abolição efetiva do trabalho infantil; e iv) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Tal rea-firmação se dá na forma daquela declaração, que vem acompanhada pela insti-tuição de uma agenda de “seguimento” (monitoramento) dos Estados-Membros pela Organização, no que tange às medidas de promoção e de proteção daque-les quatro princípios, independentemente da adesão às Convenções. Com esta política de “seguimento”, a OIT reduz a periodicidade dos relatórios dos Estados-Membros sobre as providências relativas aos referidos princípios, que passa de quadrienal para anual.

Em continuidade à alteração da postura da OIT, para além das normas con-vencionais, dá-se, a partir de 1999, o deslocamento do foco institucional da aprovação de Convenções e Recomendações para as articulações voltadas aos espaços de definição das políticas econômicas internacionais e nacionais, com

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base no “Programa de Trabalho Decente”, cuja implementação encontra-se cal-cada em uma agenda de concretização de quatro objetivos estratégicos: geração de empregos, garantia dos direitos trabalhistas (contra a supressão ou flexibili-zação), ampliação da proteção social (tendo em mira o incremento da produti-vidade com inclusão social) e a promoção do diálogo social (entre organizações de trabalhadores e de empregadores).

Nesta linha, a Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multina-cionais e Política Social, de 2000, mostra-se fiel à estratégia de concretização dos princípios e direitos fundamentais no trabalho (enunciados em 1998), pela via do fomento à adesão à “Agenda do Trabalho Decente”. Com esta Declaração a OIT “tem por objetivo incentivar as empresas multinacionais a contribuírem positivamente para o progresso econômico e social e a minimizarem e resolve-rem as dificuldades que possam ser criadas por suas operações”. Neste docu-mento, a OIT propõe a governos a ratificação de determinadas Convenções e Recomendações centrais em vigor, além da adoção, por Estados, empresas mul-tinacionais e representações dos trabalhadores e empregadores de posturas alinhadas com determinadas políticas sociais, mais especificamente: promoção do emprego, igualdade de oportunidades e de tratamento, estabilidade no em-prego, formação de profissionais, melhores salários, benefícios e condições de trabalho, liberdade sindical e direito à sindicalização, entre outros.

Advém, então, em 2008, a Declaração da OIT sobre a Justiça social para uma Globalização Equitativa (2008), terceira declaração da história da Organização, que exalta os Estados-Membros a, frente ao atual contexto da globalização, con-duzirem, no plano nacional, suas políticas sociais e econômicas em consonância com a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Traba-lho e seu Seguimento, de 1998, e com a “Agenda do Trabalho Decente”, de 1999. Deixa-se claro que, para tanto, os Estados poderão contar com a Organização, no que se refere ao intercâmbio e ao apoio relativo a informações, sobretudo técnicas; o mesmo documento ainda determina a intensificação do monitora-mento referente à observância dessa nova Declaração.

A OIT, pode-se afirmar, é Organização Internacional que evidencia, de for-ma cabal, a essencialidade da dimensão social dos direitos humanos e a im-portância da consideração da exploração do trabalho como elemento central da promoção e da proteção da dignidade humana, convertendo-se em exemplo pioneiro de sistema de proteção dos direitos humanos, em muitos aspectos ten-do servido de paradigma para os sistemas global e regionais instituídos após a Segunda Guerra Mundial.

A despeito disso, o último quarto do século XX foi marcado por uma queda sensível de efetividade das ações da OIT, em que pese a grande quantidade de normas editadas em seu seio. A Organização sofreu com um abalo de crédito e de compromisso por parte dos Estados da comunidade internacional e viu sua

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posição de entidade internacional central em matéria de regulação das relações de trabalho ser colocada em xeque, sobretudo em vista do deslocamento dessa regulação para outras searas, como, por exemplo, as normativas nascidas nos contextos da ONU, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE), das demais Organizações Internacionais Regionais, além da di-fusão das chamadas “cláusulas sociais” nos tratados internacionais comerciais gestados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).4

Foi este quadro de descrédito que motivou a alteração de conduta da OIT, que, inspirada sobremaneira pela Declaração e Programa de Ação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague,1995)5, começa a colocar em prática o que CRIVELLI chama de “novas políticas normativas”:

Desde os anos 70, quando já se viam os sinais de mudanças profundas no processo produtivo e na economia internacional, a OIT ensaiou alguns passos iniciais na formulação de novas políticas normativas. Em reação às iniciativas da ONU e da OCDE de regularem a atuação das corporações transnacionais, a OIT também apresentou sua proposta de normatização por meio da Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multina-cionais e Política Social. [...]

As demais iniciativas vieram nos anos 90, já em meio ao cenário interna-cional de questionamento do papel e eficácia do modelo de direito inter-nacional do trabalho da OIT. As iniciativas de política normativa da OIT dividem-se em instrumentos jurídicos, como a Declaração Tripartite acima mencionada e a Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamen-tais no Trabalho, em políticas normativas, estrito senso, como é o caso da definição do trabalho decente e do enfoque integrado e, ainda, em propos-tas de políticas normativas apresentadas pela Comissão Mundial, que cui-da da dimensão social da globalização.”6

Dentro deste quadro, assim arrola a OIT aquilo que intitula “quatro com-ponentes da estratégia normativa”: (i) melhor promoção e implementação do conjunto atualizado de suas normas; (ii) fortalecimento do sistema de moni-toramento do cumprimento das normas; (iii) importância de se obter maior notoriedade para as normas; e (iv) promoção de assistência técnica, cooperação técnica e capacitação para a implementação da normativa.7

4 Para as dificuldades enfrentadas pela OIT no período final do século XX, cf. CRIVELLI, Ericson. Direito internacional do trabalho contemporâneo. São Paulo: LTr, 2010, p. 90-153.

5 A Cúpula Mundial Sobre Desenvolvimento Social deu-se em Copenhague, entre 6 e 12 de março de 1995, momento em que, pela primeira vez na história, representantes de Estados encontraram-se, a convite da ONU, para debater o desenvolvimento social e reconhecer a importância da adoção de medidas a seu favor, compiladas no Plano de Ação que acompanha a conhecida “Declaração de Copenhague sobre Desenvolvimento Social”.

6 Id. Ibid., p. 161-162. A citada “Comissão Mundial” consubstancia Grupo de Trabalho instituído pela OIT para estudo específico dos impactos da globalização na dimensão social. Diversas propostas oriundas desta Comissão foram e ainda são debatidas na perspectiva das ações institucionais da OIT.

7 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em: <http://www.ilo.org/global/standards/international-labour-standards-policy/lang--es/index.htm>. Acesso em: 10 set. 2014.

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Com tais “novas políticas normativas”, sem descurar da importância da ra-tificação das Convenções e apoiada na “ideia-mestra” do Trabalho Decente, a OIT passa a adotar um discurso de reafirmação de princípios e direitos fun-damentais oponíveis a todos os seus Estados-Membros (com óbvia inspiração na noção de normas imperativas), associado a um verdadeiro cronograma de intensificação do monitoramento das políticas sociais e econômicas, nacionais e internacionais, mediante recomendações na forma de Declarações e Resoluções que visam instar a implementação dos quatro objetivos estratégicos relaciona-dos à “Agenda do Trabalho Decente”: geração de empregos, garantia dos direi-tos trabalhistas, ampliação da proteção social e a promoção do diálogo social tripartite.

Concomitantemente, a OIT, na trilha da Declaração e Programa de Ação de Copenhague, passa a propor, dentro da concepção de “enfoque integrado”, a coordenação dos diversos órgãos internacionais envolvidos com as questões econômicas e sociais sob as premissas arroladas do Desenvolvimento Social e, mais especificamente, sob seu desdobramento mais afeto às relações laborais: o Trabalho Decente.

3. CONVENÇÕES E RECOMENDAÇÕES

Independentemente das aludidas “novas políticas normativas”, é certo que os meios ordinários de produção de normas da OIT mantêm sua importância, haja vista que, na promoção do Trabalho Decente e dos princípios e direitos fun-damentais no trabalho, essa Organização insta os Estados a aderirem aos seus principais documentos normativos.

Nesta senda do plano convencional, duas são as principais modalidades de normas editadas no âmbito da OIT, quais sejam, a Convenção e a Recomenda-ção, ambas gestadas e aprovadas sempre com respeito ao tripartismo (partici-pação ativa e deliberativa de Estados e representantes de trabalhadores e de empregadores). Esclarece a própria OIT que:

As regras são ou convenções, que são tratados internacionais que podem ser ratificados pelos Estados membros, ou recomendações, que atuam como diretrizes não vinculativas. Em muitos casos, a convenção estabelece os princípios básicos que devem ser aplicados pelos países que a ratifi-cam, enquanto uma recomendação relacionada complementa a convenção, fornecendo orientações mais detalhadas sobre a sua implementação. Re-comendações também podem ser autônomas, ou seja, não relacionadas a qualquer convenção.8

8 Tradução livre. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em: <http://www.ilo.org/global/standards/introduction-to-international-labour-standards/conventions-and-recommendations/lang--es/index.htm>. Acesso em: 13 ago. 2014.

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A OIT conta com uma profusão de convenções e recomendações, acerca dos mais variados temas (são 189 convenções adotadas e 203 recomendações)9, mas em consonância com a nova estratégia normativa de atuação, sobretudo no que tange à busca da implementação dos princípios e direitos fundamentais no trabalho, o Conselho de Administração da OIT estabeleceu que oito são as suas “Convenções Fundamentais” (uma das quais, apenas, ainda não ratifica-da pelo Brasil):

Convenção Adoção pela OIT

Ratificação pelo Brasil(Promulgação)

29-Trabalho Forçado ou Obrigatório 193025/04/1957

(Dec. 41.721/57)

87-Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização 1948 Não ratificada

98-Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva 1949

18/11/1952(Dec. 33.196/53)

100- Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor

195125/04/1957

(Dec. 41.721/57)

105-Abolição do Trabalho Forçado 195718/06/1965

(Dec. 58.822/66)

111-Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação 1958

26/11/1965(Dec. 62.150/68)

138-Idade Mínima para Admissão 197328/06/2001

(Dec. 4.134/02)

182-Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação 1999

02/02/2000(Dec. 3.597/00)

Desde 1995, a OIT vem empreendendo esforços para a adesão dos Estados, em escala global, às oito Convenções Fundamentais, já tendo alcançado 86% (oitenta e seis por cento) do número de possíveis ratificações.10

A favor desta empreitada está a obrigação, já de há muito em vigor e enun-ciada no art. 19, 5b e 6b, da Constituição da OIT, de qualquer Estado-Membro submeter, dentro do prazo de um ano, a partir do encerramento da sessão da

9 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:1:0::NO:::>. Acesso em: 13 ago. 2014.

10 Id. Ibid.

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Conferência (ou, quando, em razão de circunstâncias excepcionais, tal não for possível, logo que o seja, sem nunca exceder o prazo de 18 meses após o referi-do encerramento), a convenção ou a recomendação aprovada à autoridade ou autoridades nacionais competentes, a fim de que estas a transformem em lei ou tomem medidas de outra natureza. No caso da autoridade nacional competente não aquiescer com os termos da normativa, remanesce aos Estados-Membros o dever de manter a Repartição Internacional do Trabalho informada sobre ou-tras formas que adote ou pretenda adotar visando a implementação da norma, ou então sobre as dificuldades encontradas para tanto (art. 19, 5e e 6d da Cons-tituição da OIT).

De todo o dito até aqui, infere-se que as Convenções e as Recomendações deixaram de ser as únicas ferramentas da OIT, passando a se somar a outros ins-trumentos político-normativos, que compõem as designadas “novas políticas normativas”, manejadas sob o “enfoque integrado”. Deixou-se, assim, de apostar unicamente na obrigação convencional, dependente da voluntariedade da ade-são estatal, passando-se à utilização do parâmetro hodierno acerca das fontes internacionais das normas de direitos humanos, o qual privilegia o costume in-ternacional e as normas imperativas, sobretudo o jus cogens.

4. MECANISMOS DE CONTROLE

Os mecanismos de monitoramento e de apuração de violação em face das normas internacionais do trabalho, adotados pela OIT, são, basicamente, de duas ordens: o controle regular ou periódico e os procedimentos especiais.

O controle regular ou periódico dá-se pelo exame periódico dos informes dos Estados-Membros acerca da aplicação, por lei e na prática, das normas inter-nacionais do trabalho, no plano interno. Tais informes são confeccionados não apenas pelos representantes governamentais, mas também pelas organizações de empregados e empregadores. É dever de todos os Estados-Membros apre-sentar informes (“relatórios” ou “memórias”) sobre a aplicação das Convenções ratificadas (art. 22 da Constituição da OIT), das não ratificadas (art. 19.5.e da Constituição da OIT) e das Recomendações (art. 19.6.d da Constituição da OIT).

A periodicidade dos relatos varia entre dois e cinco anos, podendo, contudo, em algumas situações específicas, ser mais breve. Cópias dos informes devem ser distribuídas pelos Estados-Membros às representações de empregados e empregadores, os quais poderão oferecer seus comentários, sem prejuízo de seu próprio relatório.

Os informes são analisados por dois órgãos, quais sejam, a Comissão de Pe-ritos em Aplicação de Convenções e Recomendações e a Comissão Tripartida de Aplicação de Convenções e Recomendações da Conferência Internacional do Trabalho.

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Sobre a Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomen-dações, destaque-se:

• Composição → vinte eminentes juristas, nomeados pelo Conse-lho de Administração e procedentes de diferentes nacionalida-des, sistemas jurídicos e culturas;

• Mandato → três anos;• Natureza da atividade → trabalho técnico imparcial, realizado

pelos peritos de modo independente (i.e., sem vinculação com os interesses dos Estados de que são nacionais);

• Encaminhamento dos trabalhos → o exame dos informes resul-ta em observações que constarão do Informe Anual da Comis-são, composto de três partes, sendo a primeira o Informe Geral, dedicado aos comentários sobre os Estados-Membros em face das obrigações constantes na Constituição da OIT; a segunda voltada a observações sobre a aplicação das normas interna-cionais do trabalho; e a terceira destinada a estudos gerais. Durante os trabalhos de exame, a Comissão pode encaminhar solicitações diretas aos Estados, com pedidos de informações adicionais, esclarecimentos, etc.

O Informe Anual da Comissão de Peritos será, então, apresentado à Confe-rência Internacional do Trabalho subsequente e terá seu conteúdo e suas con-clusões analisados pela Comissão Tripartida de Aplicação de Convenções e Recomendações da Conferência Internacional do Trabalho, a respeito da qual, observa-se:

• Composição → delegados de governos, empregados e empre-gadores, grupo formado para atuação na ocasião da reunião anual Conferência Internacional do Trabalho;

• Natureza da atividade → analisar as observações do Informe Anual da Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações, destacando para debate tripartido os pontos considerados mais sensíveis, além do exame de dezenas de si-tuações individuais de determinados Estados;

• Encaminhamento dos trabalhos → as conclusões da Comissão Tripartida, que podem contemplar recomendações gerais e es-pecíficas (para determinados temas ou Estados), são compila-das e apresentadas para discussão na sessão plenária da Con-ferência Internacional do Trabalho.

Já os procedimentos especiais, diferentemente do controle regular, desen-cadeiam-se a partir de uma reclamação ou de uma queixa. Ambas devem ser endereçadas à Repartição Internacional do Trabalho.

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A reclamação, regida pelos arts. 24 e 25 da Constituição da OIT, deve ser apresentada por uma organização profissional de empregados ou de emprega-dores em face de um Estado-Membro, com vistas à apuração de execução insa-tisfatória de uma Convenção à qual tenha aderido o Estado acusado. O trâmite de uma reclamação encontra-se disciplinado em regulamento próprio, adotado pelo Conselho de Administração da OIT.11

Recebida a reclamação, a Repartição Internacional do Trabalho a transmite ao Conselho de Administração e comunica sua apresentação ao Estado envolvi-do. A mesa do Conselho de Administração realiza o exame da admissibilidade da reclamação, a qual, acaso admitida, ensejará a constituição pelo mesmo Con-selho de uma comissão tripartite (ou “comissão de inquérito”) encarregada da apuração do quanto denunciado.

Requisitos

de admissibilidade da reclamação

perante o Conselho de Administração

da OIT

(art. 2.2 do Regulamento)

• forma escrita;

• proveniente de uma organização de trabalhadores ou de empregadores;

• fazer referência específica ao artigo 24 da Constituição da Organização;

• referir-se a um Estado-membro;

• referir-se a uma Convenção da qual o Estado acusado seja parte; e

• indicar as razões pelas quais acusa o Estados de não assegurar, de modo eficaz, a conformidade da Convenção ratificada, dentro de sua jurisdição.

Consta da introdução do Regulamento, acerca da legitimidade ativa para o oferecimento das reclamações, que o direito de apresentar uma reclamação é concedido sem restrições a qualquer organização de trabalhadores ou de em-pregadores, independente do número de seus membros ou de sua nacionalida-de (aceitando-se, inclusive, autoria por organização profissional internacional). Consta, igualmente, que, na análise da legitimidade ativa para a reclamação, o Conselho de Administração é livre para avaliar a veracidade da representação profissional que o autor da reclamação alega ter, guiando-se pelas diretrizes normalmente adotadas pela OIT, em seus distintos órgãos, a respeito; tal liber-dade significa, inclusive, ausência de vinculação a qualquer definição nacional do termo “organização profissional”.

Sobre o iter de apreciação meritória da reclamação, aponte-se:

11 Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---normes/documents/mee-tingdocument/wcm_041901.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2014.

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1. Instrução → nas atividades de investigação, a comissão tripar-tite oportunizará a manifestação do Estado averiguado, além de poder solicitar informações adicionais ao reclamante e ao ente estatal (arts. 4º e 5º do Regulamento);

2. Informe conclusivo → ao final, a comissão tripartite produz in-forme sobre o caso, contendo a descrição das medidas investi-gatórias, as conclusões sobre a acusação e as recomendações sugeridas para embasamento da decisão do Conselho de Admi-nistração;

3. Decisão → a decisão final, após exame do informe da comissão tripartite, é do Conselho de Administração, por deliberação, da qual não participa o representante do Estado acusado, embora seja convocado a tomar parte dos debates, sem direito a voto (art. 7º do Regulamento). As reuniões do Conselho de Adminis-tração são confidenciais. Prevalecendo a procedência da recla-mação, duas podem ser as decisões do Conselho de Adminis-tração: (i) determinar a publicação do conteúdo da reclamação e, se for o caso, da manifestação do Estado a respeito (art. 25 da Constituição da OIT); ou (ii) adotar o procedimento de apura-ção relativo a queixas (art. 26.4 da Constituição da OIT c/c art. 10 do Regulamento);

4. Acompanhamento posterior → acaso o Conselho de Adminis-tração opte por adotar recomendações ao Estado investigado, a observância dessas passa à incumbência da Comissão de Pe-ritos em Aplicação de Convenções e Recomendações, dentro do controle regular ou periódico.

Na hipótese da reclamação versar sobre as Convenções n.º 87 e 98, relati-vas à liberdade sindical, negociação coletiva e direito de sindicalização, a mesa do Conselho de Administração, quando do exame da admissibilidade do feito, poderá transmití-la ao Comitê de Liberdade Sindical (CLS), a pretexto da ne-cessidade de tratamento específico, no que tange ao monitoramento da imple-mentação daquelas Convenções pelos seus Estados-Partes.

A regulamentação do procedimento de reclamações perante o CLS consta do documento “Procedimentos Especiais da Organização Internacional do Tra-balho para o exame de queixas baseadas em violação ao exercício da Liberdade Sindical”12 (Proced. CLS), revisado de modo mais detido, pela última vez, em 2002, no âmbito do Conselho de Administração.

12 Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:62:4428787955640270::NO:62:P62_LIST_ENTRIE_ID:2565060:NO#A17>. Acesso em: 16 ago. 2014.

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No que toca ao exame de admissibilidade das reclamações que versem so-bre a matéria afeta ao CLS, informa CRIVELLI:

Os procedimentos internos adotados têm regras de admissibilidade mais flexíveis que os demais mecanismos contenciosos de controle existentes na OIT. Admite a apresentação de reclamação por organizações que não tenham âmbito de representação nacional e, ainda, que o Estado-membro acusado de violação não tenha ratificado a Convenção específica sobre a liberdade sindical, o Comitê considera a sua garantia uma exigência consti-tucional oriunda da Declaração da Filadélfia.13

Notas sobre o CLS, dignas de destaque:• Composição → órgão vinculado ao Conselho de Administração,

é composto por um presidente independente e três represen-tantes dos Estados, três dos trabalhadores e três dos emprega-dores, integrantes daquele Conselho;

• Natureza da atividade → trabalho técnico imparcial, realizado de modo independente (i.e., sem vinculação com os interesses dos Estados de que são nacionais);

• Trâmite → o trâmite de instrução de uma reclamação perante o CLS segue, em linhas gerais, o quanto observado pelas já estu-dadas comissões tripartites (instrução > informe com conclu-sões e recomendações ao Conselho de Administração), embora conte com uma regulamentação mais detalhada, constante do Proced. CLS;

• Acompanhamento posterior → nota distintiva, todavia, em re-lação ao procedimento comum das reclamações, é a possibili-dade do CLS monitorar, para o caso de reclamações proceden-tes em face de Estados que não ratificaram as Convenções 87 e 98, a implementação de suas recomendações, inclusive solici-tando informes periódicos e mantendo informados a respeito o Conselho de Administração e o Diretor-Geral da OIT (arts. 73 e 74 do Proced. CLS);

• Atividade jurisprudencial → a despeito de sua natureza de me-canismo quase-judicial de apuração de violações a determina-das normas internacionais do trabalho, o CLS apresenta vas-tíssima atividade decisória, fonte rica de padrões de aplicação e de interpretação da normativa internacional acerca de liber-dade sindical, negociação coletiva e direito de sindicalização,

13 CRIVELLI, Ericson, op. cit., p. 88.

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mantendo por isso registradas suas principais posições em uma “recompilação” de decisões”.14

Já a queixa processa-se com fundamento nos arts. 26 a 34 da Constituição da OIT e pode ser apresentada por um Estado-Membro contra outro Estado--Membro, sob a acusação de descumprimento de convenção que ambos tenham ratificado. Os delegados da Conferência Internacional também são legitimados para o mesmo instrumento de demanda. A queixa é dirigida ao Conselho de Administração, que, outrossim, poderá apresentá-la ex officio.

A admissão da queixa pelo Conselho de Administração leva à constituição de uma “Comissão de Inquérito”, composta por quadros técnicos e independentes e incumbida da apuração da acusação e da sugestão de recomendações a respei-to, se for o caso. Antes, porém, do advento da Comissão de Inquérito, poderá o Conselho de Administração contatar, preliminarmente, o Estado acusado, para que se manifeste quanto à queixa, nos termos do art. 24 da Constituição da OIT. Em sendo insatisfatórios os esclarecimentos estatais solicitados, abre-se, pois, espaço para a criação da Comissão de Inquérito. É possível também que o Con-selho de Administração delibere pela remessa da queixa ao Comitê de Liberda-de Sindical, acaso verse sobre os temas aos quais se dedica.

Nos termos do art. 27 da Constituição da OIT, o Estado-Membro acusado está obrigado a fornecer à Comissão de Inquérito todas as informações de que disponha sobre o mérito da apuração.

Ao final das diligências instrutórias, cabe à Comissão de Inquérito a pro-dução de relatório com as conclusões sobre os fatos, bem como a proposta de recomendações a serem dirigidas ao Estado investigado (art. 28 da Constituição da OIT). Tal relatório será apreciado pelo Conselho de Administração e seu con-teúdo será publicado, além de transmitido aos Estados envolvidos no litígio, os quais contam com o prazo de três meses para manifestarem concordância com as conclusões adotadas.

Na hipótese do Conselho de Administração sufragar o relatório e as inclusas recomendações da Comissão de Inquérito, o Estado envolvido insatisfeito po-derá optar pelo encaminhamento do caso à Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão jurisdicional da ONU, nos termos do art. 29.2 da Constituição da OIT. A decisão da CIJ será, então, irrecorrível e poderá manter, alterar ou anular as con-clusões e as recomendações da Comissão de Inquérito (art. 31 da Constituição da OIT).

A qualquer tempo, o Estado “condenado” poderá informar ao Conselho de Administração que adotou as recomendações propostas pela Comissão de In-

14 Disponível em: http://www.ilo.org/global/standards/applying-and-promoting-international-labour-standards/committee-on-freedom-of-association/WCMS_090634/lang--es/index.htm. Acesso em: 10 set. 2014.

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quérito ou determinadas pela CIJ, podendo solicitar até mesmo a constituição de uma nova Comissão de Inquérito para a confirmação da implementação das providências de conformidade noticiadas (art. 34 da Constituição da OIT). É possível, igualmente, que o acompanhamento das medidas tomadas pelo Esta-do para atendimento das recomendações seja delegado à Comissão de Peritos em Aplicação de Convenções e Recomendações.

Sobre os procedimentos adotados em relação às Comissões de Inquérito e sua comparação com a tramitação das reclamações, afirma-se que:

Apesar de não haver procedimentos claros previamente estabelecidos, como observam Potobsky e Cruz, as comissões de inquérito têm se diferen-ciado das comissões que apreciam as Reclamações. As decisões de natu-reza procedimental têm evoluído caso a caso. Neste sentido, foram sendo adotados novos procedimentos, como a possibilidade de a comissão ouvir testemunhas e, ainda, a maior liberdade que o Conselho de Administração tem em estabelecer a sua composição. Os demais procedimentos, solicita-ção de informações, visitas ao país para verificação in loco, assemelham-se muito aos procedimentos das comissões que examinam Reclamações.15

Certo é que a queixa é o procedimento de apuração de mais alto nível da OIT, por isso que, em geral, trata de violações graves, que persistem mesmo após o Estado violador já haver sido instado, de forma recorrente, a solucionar a situ-ação.16 Bem por isso, até hoje, não chegaram a vinte as queixas processadas.17

No contexto desta miríade de procedimentos de controle da OIT, o Brasil conta, atualmente, com duas reclamações em trâmite perante o Comitê de Li-berdade Sindical e sessenta e duas já processadas e encerradas, na mesma sea-ra. Além dessas, outras quatro reclamações foram analisadas dentro do marco do art. 24 da Constituição da OIT.18

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Particularmente no que se refere ao trabalho, existe farta previsão normati-va (para além das Convenções e Recomendações da OIT), que perpassam todo tipo de documento jurídico internacional, a começar pela Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos (arts. XXIII e XXIV) e pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (art. XIV). Tratados pretensamente dedicados

15 CRIVELLI, Ericson, op. cit., p. 87.16 Cf. esclarecimento da própria OIT, neste sentido, contido em: http://www.ilo.org/global/standards/

applying-and-promoting-international-labour-standards/complaints/lang--es/index.htm. Acesso em: 10 set. 2014.

17 Lista completa pode ser acessada em: http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:50011:0::NO:::. Acesso em: 20 ago. 2014.

18 Todos os dados sobre os procedimentos de controle da OIT aplicados ao Brasil podem ser acessados em: http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:11110:0::NO:11110:P11110_COUNTRY_ID,P11110_CONTEXT:102571,SC. Acesso em: 10 set. 2014.

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a direitos civis e políticos também apresentam disciplina relativa ao trabalho, como, por exemplo, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (arts. 8º e 22) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (arts. 6º e 16). Diga-se o mesmo de diversos tratados que versam sobre temas específicos, v.g. a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-nação Racial (art. V), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (arts. 8º, 11 e 14), Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 32) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (arts. 8º e 27).

Neste passo, os direitos sociais (em sentido lato) e os direitos afetos à rela-ção de trabalho permeiam todas as normas internacionais de direitos humanos. Entretanto, à proteção normativa dos direitos sociais não corresponde o mesmo nível de atuação dos sistemas internacionais dedicados ao monitoramento e à apuração de violações. Exceto na seara dos mecanismos da OIT, poucas ainda são as decisões internacionais vinculantes que instam os Estados a implemen-tarem, de modo amplo, direitos econômicos, sociais e culturais básicos, incluin-do os trabalhistas.

Pensa-se que esta timidez pode e deve ser suplantada pela provocação sis-temática dos sistemas internacionais de proteção para a apreciação de casos de afronta a direitos sociais, pressionando para que, à luz de casos concretos, conceitos como “direitos meramente programáticos” e “reserva do possível” percam força. Há, portanto, uma necessidade e um espaço (que deve ser apro-veitado pelos legitimados ativos) para o aperfeiçoamento dos sistemas interna-cionais de proteção, no que se refere aos direitos econômicos e sociais.

Sob esta ótica, afigura-se imprescindível um olhar mais atento para a experi-ência história e duradora da OIT. Trata-se do primeiro organismo internacional a estabelecer um sistema perene de monitoramento e apuração de violação de certas normas de direitos humanos, a ponto de se tornar o grande referencial do sistema erigido (e, depois, aperfeiçoado) a partir da criação da ONU e da edi-ção da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E destaque-se: esse mesmo organismo vanguardista estava, como está, incumbido da proteção de normas essencialmente sociais, atinentes às relações de trabalho.

Por mais que se possa alegar que as relações de trabalho verificam-se, em geral, entre particulares, tal não basta para desqualificar a OIT como uma ex-periência importante em matéria de proteção internacional de direitos sociais, porquanto, em uma sociedade capitalista, tomada pela globalização financeira, a regulamentação da venda da força de trabalho toca o coração de todo o siste-ma, e, consequentemente, do aspecto econômico atávico à realização de qual-quer direito social.

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Vista por este ângulo, a mencionada crise de efetividade da política normati-va da OIT — resultante da aposta única nas normas dependentes de ratificação estatal e vivenciada no final do século XX — é produto da resistência impingida pelo capital globalizado aos Estados e que encontrou contraponto na adoção das “novas políticas estratégicas” que emergem sobre o alicerce da concepção de Trabalho Decente, as quais, no campo jurídico, enfatizam a obrigatoriedade irredarguível das normas costumeiras em prejuízo daquelas condicionadas à adesão estatal expressa e individual.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CAVALLARO, James. BREWER, Stephanie Erin. O papel da litigância para a justiça social no sistema interamericano. In Sur – Revista Internacional de direitos humanos. Ano 5. Número 8. São Paulo: junho de 2008.

CRIVELLI, Ericson. Direito internacional do trabalho contemporâneo. São Paulo: LTr, 2010.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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