CRISTIANE FERREIRA FRAGA
VIOLNCIA DO ESTADO NAS FAVELAS:
Quem so os perigosos?
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Programa de Ps-Graduao em Psicologia
Mestrado em Psicologia
Orientadora: Prof Dr CRISTINA MAIR BARROS RAUTER
NITERI
2011
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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
F811 Fraga, Cristiane Ferreira.
Violncia do Estado nas favelas: quem so os perigosos? / Cristiane Ferreira Fraga. 2011. 86 f. ; il.
Orientador: Cristina Mair Barros Rauter. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2011. Bibliografia: f. 72-77.
1. Violncia policial. 2. Pobreza. 3. Subjetividade. I. Rauter, Cristina Mair Barros. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 363.232
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CRISTIANE FERREIRA FRAGA
VIOLNCIA DO ESTADO NAS FAVELAS:
Quem so os perigosos?
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Prof Dr CRISTINA MAIR
BARROS RAUTER
NITERI 2011
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BANCA EXAMINADORA
___________________________ Professora Doutora Cristina Mair Barros Rauter - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
__________________________ Professora Doutora Ceclia Maria Bouas Coimbra
Universidade Federal Fluminense
___________________________
Professor Doutor Luiz Antonio Baptista Universidade Federal Fluminense
___________________________ Professora Doutora Maria Helena Zamora
Pontifcia Universidade Catlica
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Para todos aqueles que na contra mo dos discursos discriminatrios produzidos pelo Capitalismo, resistem e persistem na vida.
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AGRADECIMENTOS Aos meus pais que sempre estiveram ao meu lado acreditando em todos os meus sonhos e de
maneira incondicional torcendo por mim.
Ao meu irmo David que com suas palavras de encorajamento me ajudou a prosseguir.
A minha irm Lilian por me trazer tanta alegria principalmente pelo maravilhoso presente que
so meus sobrinhos Gabriel e Paulo Csar.
Ao meu av Jos Ferreira por seu incrvel bom humor e que apesar de no saber o que o
mestrado me apresenta com muito orgulho como a doutora da famlia.
A minha querida orientadora Cristina Rauter, que com toda sua pacincia e dedicao foi um
presente da vida para mim.
Aos meus primos e tios com quem tenho o prazer de dividir a alegria desse momento.
A minha mestra e amiga Regina Dias, com quem tive os primeiros contatos com a
esquizoanlise, que no apenas uma teoria, mas uma forma de perceber a vida.
Aos amigos acadmicos que muito contriburam na minha caminhada: Artur Bento, Aline
Nascimento, Ricardo Aquino, Joana Ferraz e principalmente a Pmera Ferreira.
Aos companheiros de mestrado que muito contriburam para meu crescimento acadmico e
foram parceiros de muitas risadas: Alice Souto, Ana Paula Coutinho, Bruno Rossoti, Danielle
Pinheiro, Dbora Franco, Poliana Cordeiro, Valria Figueiredo, Fernando Albuquerque,
Geraldo Artte, Roberta Furtado, Maria Clara Fernandes, Mnica Farias, Joseane Tavares,
Nicolle Mascitelle e principalmente a Diana Malito e Aline Garcia, no quero nunca perde-los
de vista.
Aos companheiros de orientao pelas eternas questes com a tica de Spinoza: Donati, Jos
Carlos Brazo (vulgo ZK), Catarina Resende e Vicente Carneiro.
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A Mrcio Costa e toda sua famlia que participaram de maneira fundamental nesse processo,
principalmente a sua me Nice.
Aos meus amigos que estiveram ao meu lado em momentos de alegria ou de tenso, sempre
compreendendo minhas lgrimas de desabafo: Anderson Gino, Andrea Paes, Bianca Roxo,
Caio Mello, Daniel Gaspary, Fernanda Cleto, Flvia Paes, Gina Kelly Guerra, Giselle Kokis,
Gislene Bastos, Greice Gonalves, Jos Amaral, Lia Augusto, Lidiane Teles, Marcello Silva,
Karol Martins, Suely Peixoto, Tarciana Bastos, Tito Lima e Vnia Cristina.
Aos colegas de trabalho pela compreenso e apoio nessa dupla jornada, principalmente aos
meus chefes, estes me ajudaram nos momentos de cansao e necessidade. Sem esse
fundamental apoio no seria possvel a concluso do mestrado. Gostaria de poder citar todos,
mas para no cometer falhas prefiro no faz-lo.
Aos professores do Mestrado que me ajudaram com seus textos e aulas: Ktia Aguiar, Luiz
Antnio Baptista, Andr Queiroz, Llian Lobo, Eduardo Passos, Andr Martins, Ceclia
Coimbra e Maria Lvia.
rede Contra a Violncia que possibilitou meu encontro com companheiros de militncia.
banca examinadora pelo convite aceito e os comentrios feitos na qualificao e pr-banca.
A Baruch de Espinosa que com sua genialidade foi capaz de promover um encontro que
modificou minha forma de compreender a vida.
A Deus que de maneira transcendente ou imanente, tanto faz, permitiu todo o pulsar da vida.
8
(...) que se escamem algumas evidncias, ou lugares-comuns, no que se
refere loucura, normalidade, doena, delinquncia e punio;
fazer, juntamente com muitos outros, de modo que certas frases no
possam mais ser ditas to facilmente ou que certos gestos no mais
sejam feitos, sem, pelo menos alguma hesitao; contribuir para que
algumas coisas mudem nos modos de perceber e nas maneiras de
fazer; participar desse difcil deslocamento das formas de sensibilidade
e dos umbrais da tolerncia.
(FOUCAULT, 2006)
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RESUMO A violncia do Estado est representada nesta pesquisa pela ao policial nas favelas do Rio de Janeiro. As invases nas favelas so acompanhadas de mortes, violncia e desrespeito aos moradores. Pautadas em ideias que aproximam delinquncia e pobreza, so disseminados na sociedade discursos que fortalecem as prticas abusivas do Estado. A naturalizao desta violncia representa um jogo de saber/poder que ao longo de anos vem sendo propagado pela mdia e j faz parte do discurso hegemnico. Faremos um resumo da histria da polcia no Rio de Janeiro que poder mostrar que, desde a sua criao, em 1808, a polcia tinha a funo de proteger a corte dos mais pobres. Aps a abolio da escravatura, os ex-escravos passaram a ser a preocupao da polcia. Moravam em morros prximos ao centro da cidade ou em cortios, que com o passar dos anos foram transformados em locais vistos de grande perigo social. O mito da guerra civil que vem sendo construdo por dcadas justifica a invaso das favelas pela polcia. Para desconstruir o mito de que algum nasce criminoso lanaremos mo de conceitos Deleuze e Guattari que apontam para uma subjetividade em constante processo. A perspectiva de Spinoza, que sugere que os encontros so geradores de constantes afeces, aposta nos mltiplos modos de subjetivao que podem surgir a partir da violncia. No entanto o Estado sempre procura manter a populao em situao de submisso. Palavras- chave: Violncia policial; Classes Perigosas; Produo de subjetividade.
10
ABSTRACT The present research attempts to represent the states violence through Police actions inside Rio de Janeiros slums. The slums invasions are followed by death, violence and disrespect to its inhabitants. Based on the idea that relates poverty and delinquency many speeches reinforcing States abusive practice have been widely spread throughout society. Thus, violence gradual naturalization represents a sort of power/ knowledge game which has been propagated by media and is currently part of the mainstream discourse.The present work endeavors to make a summary on Rio de Janeiros police history in order to state that since its creation in 1808 the police operates to protect the court from poor people. Before slavery abolition the former slaves became a concern for police force as well as the places where they started to inhabit as hillsides and tenements adjacent to the city centre which were openly recognized as of social threat. Ergo, the civil war myth that has been constructed for decades is used to justify the slums invasion by police force. As to deconstruct the myth that one is born a criminal we are going to make use of concepts from Gilles Deleuze and Flix Guattari that indicates the constant process of subjectivity. Inasmuch, Spinozas perspective suggests that the encounters are generated by persistent affection which relies on the multiple ways of subjectivity that may emerge from violence. However, the State is constantly aiming to keep population oppressed in a status of submission.
Key-words: Police violence, dangerous classes, productions of subjectivity
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SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................... 12
1.0 AES DE EXTERMNIO NO RIO DE JANEIRO! ONDE E COMO? .............................................................................................................................................. 19
1.1 Quem o Estado? ............................................................................................. 22
1.2 Violncia do Estado e Aes Policiais ............................................................... 25
1.3 O criminoso a pena em Foucault e Nietzsche ................................................... 29
1.4 Processos de Subjetivao ................................................................................. 33
1.5 O Estado Produzindo Quimeras ......................................................................... 37 1.6 Os discursos e suas verdades ............................................................................ 43
2.0 ALGUNS ANALISADORES DA POLICIA NO RIO DE JANEIRO............................................................................................................................ 45
2.1 A Guarda Real .................................................................................................... 46
2.1.1 Cortios ............................................................................................................ 49
2.2 A polcia na era Vargas - 1930 a 1945 .............................................................. 50
2.3 Perodo Ditatorial .............................................................................................. 52 2.4 BOPE e UPP ..................................................................................................... 54
3.0 EM BUSCA DA LIBERDADE; A CAMINHO DA SERVIDO? ................................................................................................................................................ 59
3.1 O Estado e suas tcnicas de submisso ............................................................. 66
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 69 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................... 72
ANEXOS ................................................................................................................... 78
12
INTRODUO
...Mas no me deixe sentar na poltrona No dia de domingo, domingo!
Procurando novas drogas de aluguel Neste vdeo coagido...
pela paz que eu no quero seguir admitindo. O Rappa
Rio de Janeiro, abril de 2008. O Jornal Meia Hora traz em sua capa a imagem de um
inseticida. No rtulo as letras SBPM, uma foto da caveira smbolo do BOPE e uma pequena
frase: Eficaz contra vagabundos, traficantes e assassinos. A manchete do jornal dizia:
Bopecida, o inseticida da polcia, terrvel contra os marginais. Na reportagem a declarao
do coronel da Polcia Militar Marcus Jardim, comandante do 1 Comando de Policiamento de
rea (CPA): a PM o melhor inseticida social1.
Em operao classificada por coronel da Polcia Militar como "inseticida social", nove supostos traficantes foram mortos ontem durante incurso do Bope (Batalho de Operaes Especiais) na Vila Cruzeiro, na Penha (zona norte). Quatorze homens foram presos e seis ficaram feridos no confronto. A operao com 180 homens foi comandada pelo Bope, que manteve parte do efetivo na favela. "Amanh [hoje] o pau na vagabundagem continua", disse o comandante de Policiamento da Capital, coronel Marcus Jardim. "A PM o melhor inseticida contra a dengue. Conhece aquele produto, [inseticida] SBP? Tem o SBPM. No fica mosquito nenhum em p. A PM o melhor inseticida social", disse, rindo. (grifo meu)2
Ao longo do dia, ouvi vrios leitores elogiando a reportagem, muitos acharam a capa
do jornal criativa, mas no momento em que li o jornal me senti mal, um estranhamento e um
sentimento de repdio tomaram conta de mim. Nesta poca, eu estava interessada em leituras
que tratassem sobre o holocausto e sobre o perodo das ditaduras militares na Amrica Latina.
Naquele momento, percebi que o Estado poderia ter trocado seus alvos, mas ele continuava
exterminando os indesejados; ainda era um inseticida social. Lembrei do Primo Levi, que
afirma em um de seus livros, que ao sair vivo do campo de concentrao sentiu vergonha de
ser homem. Essa foi minha sensao: vergonha. Vergonha de ler aquilo, vergonha por aquela
reportagem ser elogiada, vergonha de ter um comandante da polcia que fosse capaz de dar
uma declarao como essa e vergonha pela minha omisso.
1 Jornal Meia Hora, 17 de abril de 2008. 2 TOLEDO, Malu. Folha de So Paulo no Rio.
13
Devemos estabelecer diferenas entre a violncia atual do Estado nas favelas cariocas
e algumas barbries passadas. Neste trabalho no pretendo falar que o que acontece hoje no
Rio de Janeiro igual ao que aconteceu no passado, estou aqui apenas traando o caminho
que me levou a pesquisar esse tema. Com grande interesse pela violncia do Estado, deparei-
me com questes atuais, as quais me despertaram o desejo de entender melhor o que acontece
hoje nas favelas cariocas e no Rio de Janeiro, que vive com o fantasma da guerra urbana.
Fantasma esse que torna justificvel, para muitos, as chacinas nas favelas. Diz-se com
frequncia que estamos em guerra, apesar de sabermos que o que se passa nas grandes cidades
brasileiras, em especial no Rio de Janeiro, no pode ser tecnicamente descrito como uma
guerra. Porm, pode ser estratgico para as polticas de segurana pblica afirmar a existncia
de uma guerra, o que por si s justifica as intervenes armadas a que assistimos nas favelas,
em especial no Rio de Janeiro.
Durante a Segunda Guerra toneladas de inseticida eram comprados para matar pessoas
nos campos de concentrao. O Primo Levi3 questiona sobre a inocncia dos alemes: porque
os donos das lojas ou os que nelas trabalhavam no procuravam saber a finalidade dessa
grande quantidade de veneno para ratos? Diferente da suposta inocncia dos alemes, hoje, no
Rio de Janeiro, possvel ler para que serve o inseticida social num jornal de circulao
popular. Sua utilidade no ignorada, mas, como os alemes, somos coniventes com a
barbrie. Creio que daqui a alguns anos, assim como estes veem hoje o holocausto, veremos
com indignao o extermnio nas favelas. Pois alm de coniventes apoiamos e pedimos essa
barbrie.
Em uma conversa com um amigo judeu, fiz a comparao entre o que o Estado faz
hoje nas favelas e o que aconteceu na Segunda Guerra. Ele ficou muito ofendido e pude
entender mais tarde que a razo desse sentimento fora o fato de que eu estava aparentemente
comparando judeus e criminosos. Ou seja: apesar de integrante de uma comunidade que
sofrera a perseguio nazista ele no fazia nenhuma relao entre a mesma e o que se passa
hoje nas favelas cariocas. Ele acrescentou que durante o Terceiro Reich as teorias nazistas
eram transmitidas s crianas nas escolas. E ento lhe perguntei: - No ensinamos s nossas
crianas que os pobres e favelados so perigosos e que as aes com o caveiro nas favelas
so necessrias para a paz?
3 LEVI (1998)
14
Com certeza, essa pergunta inquietou mais a mim do que quem a ouviu. A partir de
ento, fiquei atenta aos microfascismos cotidianos. As pequenas falas ou atitudes que
fortalecem os discursos hegemnicos de que a pobreza e a delinquncia andam juntas.
s vezes sem perceber, fortalecemos pensamentos que apoiam o extermnio dos mais
pobres. Frases sutis so repetidas sem analisar suas implicaes. Somos de fato, como diz
Luiz Antonio Baptista, amoladores de faca. Apesar de no apertar o gatilho colocamos a
munio nas armas, amolamos a faca e batemos palmas quando mais um indesejado social
eliminado. Pois como diz o ditado popular: bandido bom bandido morto.
Ser jovem, negro e morar em zonas pobres torna-se uma combinao perigosa, a qual
pode custar a vida. No entanto, apesar do nmero de bitos ultrapassarem alguns pases em
guerra, essa barbrie no vista com indignao pela mdia ou pela opinio pblica. A
indiferena aos fatos pode ser chamada de silncio cmplice.4
"Qual a paz que eu no quero conservar, pra tentar ser feliz?".5 Pensando nesse
questionamento da msica do O Rappa, estou convencida de que quero a inquietao que me
leva a pensar sobre os processos; quero a inquietao que faz afirmar as subjetividades
singulares, que resistem ao discurso hegemnico; desejo a falta de paz que no me torna
cmplice. No quero conservar uma falsa paz para concordar com a maioria das pessoas e
tentar ser feliz. Pois, como continua a msica: pela paz que eu no quero seguir
admitindo.
O mito da guerra civil est presente na histria da humanidade sempre que
necessrio justificar perseguies, violaes e o domnio de certos grupos sobre outros6. Esse
mito e a naturalizao da violncia nas favelas tm uma longa histria e uma estratgia de
saber/poder que justificam os extermnios. Essas aes so pautadas em concepes que
acreditam na existncia de uma essncia violenta e criminosa, e que essa essncia
encontrada com maior facilidade nos segmentos pobres. Esses pensamentos vm sendo
construdos desde meados do sculo XIX, com teorias que associam e naturalizam pobreza e
criminalidade. Essa relao foi sendo construda atravs de teorias racistas, eugnicas e
higienistas7.8
4 ZAMORA, M. H. e CANARIM (2009) 5 Rappa 6 COIMBRA (2000) 7 O movimento higienista tinha a ateno voltada para a sade e higiene dos mais pobres, pois acreditava-se que desta maneira poderiam controlar a propagao de doenas epidmicas, com por exemplo a febre amarela. Para eles os pobres ofereciam maior perigo de contgio. CHALHOUB (2006) 8 COIMBRA (2000)
15
O importante o que ele poder vir a fazer, no o que fez, ou seja, dependendo de sua raa, de sua cor, de sua condio financeira, esse sujeito estar propenso a realizar atos que agridem no s a moral e os bons costumes, mas que ferem a lei. (COIMBRA, 2000)
A partir desses pensamentos discriminatrios e racistas o genocdio de negros pobres
vem se tornando cada vez mais natural e muitas vezes entendido como necessrio. com
naturalidade que a opinio pblica percebe o desrespeito aos moradores das favelas. Invases
s casas com um mandado de busca genrico9 um dos exemplos que podemos citar. Apesar
de ser contra a lei, o mandado de segurana genrico nunca foi questionado pelas emissoras
de TV. Ou seja, tornou-se uma medida aceitvel uma vez que admitimos que estamos numa
guerra civil.
No quero encontrar culpados para a situao em que vive o Rio de Janeiro, quero
apenas problematizar os acontecimentos. No busco uma origem de todo mal, mas busco
entender os processos que permitem que os acontecimentos ocorram tal como eles se do.
No capitalismo no temos lugar para todos na lgica de consumo. O que fazer com
aqueles que esto margem? O poder cria estratgias de coero para inibir a potncia dos
mais pobres. Poderosos processos de produo de subjetividades agem no sentido de impedir
que estes, que so mais numerosos, se revoltem. Assim, todos passam a acreditar no
potencial criminoso daqueles que habitam os bairros pobres ou os de pele mais escura.
Estes necessitam de vigilncia para que no incomodem a vida estabilizada das pessoas de
bem. Uma mentira repetida diversas vezes torna-se verdade. Esta sentena, fomentada pela
cincia, pelos estudos criminolgicos, pelas estatsticas e pelas reportagens, acaba apontando
que as aes de invaso nas favelas so extremamente necessrias. Com tantos argumentos, os
moradores das zonas perigosas so induzidos a concordar com o que acontece. Afinal, o
que est dado que ali realmente mora o mal social. Ento, para justificar a misria
produzida pelo capitalismo, procura-se um culpado, neste caso, o pobre preguioso, aquele
que quer ganhar a vida de maneira fcil. J que o senso comum afirma que ele o nico
culpado por sua misria, este ter que ser responsabilizado, pois tido como acomodado e
aquele que no quer trabalhar e por isso vai procurar seu sustento cometendo ilcitos penais.
No tenho uma nica resposta sobre a escolha do meu tema, pois assim como a vida,
minha implicao mltipla, com a vida que resiste e persiste. Acredito que essa implicao
9 Autorizao emitida pelo judicirio para que a polcia ingresse em nmero indeterminado de residncias em determinadas localidades, podendo abranger ruas, quarteires ou at comunidades inteiras.
16
se deu a partir de diversos encontros com o tema na minha experincia cotidiana, como
moradora do Rio de Janeiro. Eu no poderia deixar de me inquietar com esse tema vivendo
nesta cidade. Pois, como disse Spinoza tudo que acontece em um corpo dever ser percebido
pela mente humana, "nada poder acontecer nesse corpo que no seja percebido pela
mente".10
Sei que ao final da dissertao a inquietao ir permanecer, mas no quero achar
solues, desejo apenas pensar sobre os processos.
Para escrever sobre como a violncia do Estado produz subjetividades, utilizo a
perspectiva esquizoanaltica. Nessa medida, no busco uma verdade, mas estou atenta aos
processos.
Pretendo abordar o tema a partir de uma perspectiva de maneira transdisciplinar, cujo
campo do saber poder ser chamado de campo de disperso, ou seja, far oposio a
qualquer saber que se pretenda universal e ordenado. 11 Desta maneira, sero utilizados
fragmentos histricos, anlises sociolgicas e filosficas, bem como teorias do campo da
psicologia, mais especificamente da esquizoanlise. Sero privilegiados autores que apostam
na riqueza do encontro e no acreditam em uma verdade esttica. Reportagens que falam
sobre o tema, podero evidenciar a problemtica. Sero utilizadas falas e percepes que
puderam se dar a partir das reunies do grupo Rede contra a violncia. 12
A dissertao possui quatro captulos. O primeiro captulo, Aes de extermnio no
Rio De Janeiro! Onde e como?, abordar fatos que possam esclarecer o que chamaremos de
aes de extermnio nas favelas cariocas. Essas aes so naturalizadas pela mdia e aceitas
pela opinio pblica. Os assassinatos dos moradores das favelas so justificados por teorias
racistas e eugnicas que afirmam que os pobres so potenciais criminosos e necessitam da
coero do Estado. As medidas de segurana utilizadas pelo Estado nas chamadas reas
perigosas no evidenciam a queda no nmero de delitos cometidos. No entanto, h um
aumento significativo de pessoas em privao de liberdade. A populao carcerria cresce a
passos largos.
10 (E II p.12). 11 RAUTER (1993) 12 A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia surgiu no ano de 2004 como fruto da luta mais organizada das comunidades e dos movimentos sociais contra a violncia de Estado, a arbitrariedade policial e a impunidade.
17
O Bio-poder descrito por Foucault permite compreender as estratgias de
adestramento do corpo. Este o principal artifcio do capitalismo, que necessita de corpos
obedientes e teis para o funcionamento de sua engrenagem.
O exerccio do Estado aparece camuflado por ideais de igualdade para todos. Com
uma sociedade que transgride os direitos fundamentais, h uma aparente falha do Estado, no
entanto, as tcnicas de coero mostram seu perfeito funcionamento. As medidas punitivas
so transformadas ao longo da histria, mas atrs de uma aparente humanizao nos atuais
modos de punir a partir da experincia da priso, o que est em funcionamento um controle
social mais abrangente e eficaz.
A ideia de uma personalidade imutvel ser problematizada. Esta ideia justifica o mito
do potencial criminoso, aquele que nasce com tendncia para o crime e dificilmente ter um
futuro diferente.
Os processos subjetivos so produzidos a partir dos encontros, na perspectiva de
Spinoza. No possvel prever as aes de uma pessoa, j que esta estar em continuo
processo. As formas de pensar e agir so produzidas a partir da multiplicidade e
heterogeneidade e no a partir de identidades cristalizadas.
O capitalismo utiliza a mdia para direcionar maneiras de pensar, ser e agir. Desta
forma, mitos e preconceitos so amplamente disseminados na sociedade. Os discursos
produzidos por este meio so tidos como verdades e so utilizados para fortalecer esses
mitos, que por sua vez tambm produzem subjetividades e prticas sociais.
O segundo captulo, Alguns analisadores da polcia no Rio De Janeiro, contar uma
breve histria da polcia militar. Esta histria comea em 1908 com a primeira estruturao da
fora policial quando foi criada a guarda real. Desde sua criao a polcia tinha a funo de
prevenir os mais ricos das aes dos mais pobres.
A invaso aos cortios, o policiamento na poca Vargas e a utilizao da polcia no
perodo da ditadura militar, tambm so momentos analisadores da polcia no Rio de Janeiro.
Hoje a capital fluminense tem diversos morros ocupados pela Unidade de Polcia Pacificadora
(UPP); favelas so invadidas pela PM, Polcia Civil e exrcito com a promessa de trazer paz
aos seus moradores. No entanto, essa paz prometida comprometida por abusos policiais e
assassinatos.
No terceiro captulo, Em busca da liberdade; a caminho da servido?, Spinoza ser o
principal intercessor para pensar os mltiplos modos de subjetivao produzidos pela
violncia do Estado. O Estado, com suas tcnicas de submisso, utiliza mecanismos de
18
controle social para manter as coletividades em situao de submisso. No entanto, uma
compreenso das causas da violncia e o contgio afetivo entre os atingidos pode contribuir
para um aumento de potncia a partir do trauma sofrido.
19
CAPTULO I: AES DE EXTERMNIO NO RIO DE JANEIRO! ONDE E
COMO?
A modernidade exige cidades limpas, asspticas, onde a misria j que no pode ser mais escondida e/ou administrada deve ser eliminada. Eliminao no pela sua superao, mas pelo extermnio daqueles que
a expe incomodando os olhos, ouvidos e narizes das classes mais abastadas. (Ceclia Coimbra)
Nesse primeiro captulo sero apresentados fatos que possam elucidar o tema
escolhido, mostrando que a inquietao com a violncia policial no exagero nem tampouco
um fato isolado. No Brasil muitos so marcados pela violncia policial e entre esses muitos
jovens.
No difcil perceber a ao policial nas favelas do Rio de Janeiro. Todos os dias em
nossos telejornais somos contemplados com reportagens que descrevem as estratgias
policiais de combate ao crime organizado e ao trfico de drogas. A mdia, principal
fomentadora do senso comum, transmite informaes de maneira a naturalizar as mortes
ocorridas durante essas aes nas favelas, fortalecendo a lgica de que: bandido bom
bandido morto.
De acordo com dados oficiais do Instituto de Segurana Pblica do Rio (ISP), a polcia
matou nos chamados autos de resistncia13 1.137 pessoas em 2008. No ano de 2009 esse
nmero caiu para 1.048, tendo sido o ms com menor incidncia de mortes dezembro, com 71
mortes. Em 2010 o nmero de mortes por autos de resistncia foram 855. Sero apresentados
ao longo desta pesquisa casos em que as pessoas assassinadas em autos de resistncia nunca
tiveram passagem pela polcia, desmentindo a alegao de que os mortos durante as aes
policiais so todos bandidos. A partir desses nmeros possvel perceber, que os moradores
da favela do Rio de Janeiro, a maioria negros, tm enfrentado a cada dia a luta pela vida. De
um lado, uma poltica de segurana pblica que tem como lema o extermnio de alguns
indivduos considerados bandidos perigosos e por isso perfeitamente matveis e do outro uma
classe mdia, atravessada pela mdia, que no cessa de pedir punies, favorecendo uma
poltica de extermnio.
13 Segundo o art. 329 do cdigo penal brasileiro o auto de resistncia : opor-se execuo de ato legal, mediante violncia ou ameaa a funcionrio competente para execut-lo. A caracterizao do auto de resistncia evita a priso em flagrante de agente policial envolvido em homicdio. Os nmeros no Rio de Janeiro da letalidade policial e auto de resistncia so os maiores do pas.
20
Essa poltica de extermnio, que parece to sutil aos cariocas e aos espectadores desses
jornais, torna-se evidente quando, por exemplo, justificando sua visita ao Brasil em novembro
de 2009, a comissria de Direitos Humanos da Organizao das Naes Unidas (ONU), a sul-
africana Navanethem Pillay, afirma : ... me disseram que h at um genocdio de negros no
pas, o que motivo de grande preocupao e razo da minha visita. 14
Violncia e assassinato no so prticas recentes do Estado Brasileiro. Pode-se aqui
lembrar de um perodo no qual a tortura era uma prtica oficial do Estado. Durante a Ditadura
Militar no Brasil, opositores ao governo foram presos, torturados e mortos. Hoje a tortura e os
desaparecimentos continuam, desta vez nas favelas e bairros pobres das grandes cidades.
H ainda hoje, em nmeros oficiais disponveis no site do Grupo Tortura Nunca Mais
137 pessoas desaparecidas. 15 Essa lista de desaparecidos continua at hoje em aberto, pois
nenhum esclarecimento oficial foi feito, o que s seria possvel com a abertura dos arquivos
da ditadura. Na ditadura militar era difundida a ideia de que os militares precisavam proteger
o Brasil contra os subversivos. Aqueles que no estavam de acordo com o Governo Militar ou
que pertenciam a organizaes de esquerda eram presos e torturados. Muitos no resistiram e
morreram. Em alguns casos seus corpos nunca foram encontrados, suas famlias foram
impedidas de sepult-los.
O alvo da violncia oficial mudou: agora no mais o inimigo poltico, mas o morador
da favela, aquele que supostamente ameaa a paz da classe mdia. Mesmo depois do retorno
democracia, o Estado continua sombreado por duas dcadas de ditadura, influenciando o
funcionamento do Estado e as mentalidades coletivas. Desta maneira, o senso comum tende a
aproximar a defesa dos direitos do homem com a tolerncia a bandidagem. 16
O inimigo interno que justificava os crimes na ditadura agora representado pela
figura do jovem pobre e negro. Torturas nas cadeias e execues durante as incurses
policiais nas favelas cariocas so acontecimentos j banalizados pelo senso comum.
As crticas feitas chamada criminalidade designada no Direito Penal Brasileiro so,
na maioria das vezes, pautadas na individualizao de condutas, no considerando os
processos segregativos, excludentes e racistas, que vivemos no Brasil. As anlises do direito
positivista individualizam o crime, considerando quem pobre, negro e vive em favelas como
mais propcio a cometer delitos, gerando a ideia de que existiria uma personalidade
delinquente.
14 TABAK, Flavio. Jornal o Globo. 11/11/2009. 15 Informao contida no site do Grupo Tortura Nunca Mais/ RJ. A lista de desaparecidos permanece em aberto. 16 WACQUANT (2001)
21
Para Wacquant (2001), a violncia policial no Brasil vem de uma tradio de controle
dos miserveis atravs da fora. Essa tradio tem origem na escravido e nos conflitos
agrrios. A sociedade brasileira caracterizada por disparidades sociais e pela pobreza em
massa.
Esse pensamento sobre o potencial de periculosidade do criminoso j tem o seu lugar
na histria. No sculo XIX, estudos feitos sobre a anormalidade do criminoso apontavam que
insensibilidade, mentira, vaidade, preguia, apetite sexual exagerado, tendncias
homossexuais e at a promiscuidade eram caractersticas comuns entre eles. Incapazes de ter
controle moral adequado, sua anormalidade era explicada como um retorno ao estado
selvagem hereditariamente determinado. O crime era visto como sintoma de um mal
hereditrio. No Brasil, os costumes como o carnaval, o samba, o fato de serem cangaceiros
nordestinos, e at a miscigenao eram indcios de uma incapacidade para o controle moral e
assim se explicava lassido para o trabalho, o desrespeito s autoridades e as tendncias para
o crime. 17
Atualmente, possvel notar aes de extermnio nas favelas cariocas justificadas em
explicaes parecidas com as do sculo XIX. No com indignao que grande parte da
populao recebe notcias de jovens mortos pela polcia nas favelas do Rio de Janeiro. Matar
os supostos criminosos acaba sendo uma alternativa totalmente aceitvel, mesmo que para
isso seja necessria a morte de moradores no envolvidos com o trfico, tendo em vista as
tendncias criminosas que se pressupe serem comuns entre essas pessoas e a dificuldade para
identificar entre elas quem no tem envolvimento com o chamado crime organizado.
Wacquant (2001) chama a ateno para a globalizao da tolerncia zero. Importada
dos Estados Unidos, o ideal de cidades tranquilas e seguras acompanha a legitimao das
aes policiais e jurdicas para a pobreza que incomoda e causa desordem nos espaos
pblicos. O discurso de guerra ao crime e de reconquista ao espao pblico assimila os
delinquentes, sem-teto, mendigos entre outros tidos como marginais. Acompanhada de um ar
de modernidade, a tolerncia zero no pensa sobre a gnese social e econmica do Estado,
mas coloca a insegurana espalhada pelas cidades como uma responsabilidade individual dos
moradores das chamadas zonas incivilizadas.
Em diversos lugares no mundo as tcnicas nova-iorquinas de tolerncia zero so
implantadas, com a populao carcerria aumentando consideravelmente. Nos Estados
Unidos, por exemplo, se o sistema carcerrio fosse uma cidade seria hoje a quarta maior
17 RAUTER ( 2003).
22
metrpole do mundo. Mesmo com a diminuio da criminalidade as prises continuam
crescendo, o nmero de pessoas detidas e julgadas no para de aumentar. Com essa incrvel
matemtica (menos crimes mais prises), 60% dos detentos tinham seus processos anulados
pelo procurador antes de chegar ao juiz, ou quando chegavam eram considerados presos sem
motivo. A maioria dos processos eram de pessoas de bairros pobres, o que mostra um objetivo
bem mais poltico-miditico que judicial, pois o alvo da tolerncia zero so as classes a
margem do mercado de trabalho. 18
Assim como nas diversas cidades do mundo, o Brasil tambm adota a tolerncia
zero como medida para ter uma sociedade mais segura. Em 1999, o governador de Braslia
anuncia a adeso e contrata 800 policiais. Com o sistema penitencirio super lotado ele
declara que para solucionar esse problema ser necessrio a construo de mais prises. No
Rio de Janeiro as prises, delegacias e casas de recuperao para menores infratores esto
super lotadas, incrivelmente a maioria dos presos so negros e pobres. Mais uma vez, a
polcia cumpre o seu papel de origem: manter as populaes pobres sob controle. Veremos
com mais detalhes a funo policial no prximo captulo.
Para uma melhor discusso sobre o Estado e sua funo nas aes policiais, esse
captulo contm subtemas, que apresentaro subsdios para pensar o Estado e a forma como a
polcia atua nas favelas nos dias atuais.
1.1 - Quem o Estado?
O Estado pode ser, para alguns, garantidor de direitos; para outros, objeto de desejo ou
ainda motivo de medo. Mas o que se entende por Estado? Para essa problematizao
utilizaremos entre outros autores Foucault, que nos prope um Estado que no detentor de
todo o poder, to pouco est com sua funo corrompida quando violento. No Brasil, a luta
pelas liberdades democrticas acontece justamente com a luta pelo fim da Ditadura Militar.
Nessa poca, a esquerda brasileira acreditava que a volta do Estado Democrtico de Direito,
que havia sido derrubado com a tomada do poder pelos militares, era a esperana de tempos
melhores.
A partir da lgica partidria havia uma busca pelos lugares de poder e acreditava-se
que este estava centralizado no Estado. A luta por um Estado Democrtico de Direito parecia
18 WACQUANT (2001)
23
ser a possibilidade de confrontar poderes estabelecidos. No entanto, a ditadura de mercado,
um modo mais sutil de dominao global, era imposta nessa mesma poca. O aparelho de
Estado no pode ser utilizado de forma diferente, o aparelho de Estado, funciona segundo
certas lgicas, e ocup-lo , na maior parte das vezes, servi-lo na condio de operador de
seus dispositivos e, nesta condio, o operador no muda a mquina, ele a faz funcionar. 19
Lutar contra um poder definido, nico e que possui endereo uma estratgia
impossvel de ser alcanada. Pois o poder no algo unitrio, no um objeto natural, uma
coisa; uma prtica social e, como tal, constituda historicamente. 20 Os poderes se articulam
atravs de prticas que se exercem em nveis variados, esto em pontos diferentes da rede
social, e podem estar ou no integrados ao Estado. O fato do poder no est necessariamente
integrado ao Estado no diminui o papel do Estado nas relaes de poder existentes na
sociedade. Mas vai afirmar que o Estado o nico rgo central do poder, j que muitas
relaes de poder foram constitudas fora dos Aparelhos de Estado.
O Estado no deve ser visto como um monstro frio frente aos indivduos, nem deve ser
reduzido a certo nmero de funes, isso o coloca em uma posio privilegiada a ser ocupada.
O Estado no tem uma unidade, uma individualidade, uma funcionalidade, to pouco tem a
importncia que lhe dada. 21
A luta da esquerda por um Estado Democrtico de Direito no perodo da ditadura pode
ser entendida como a idealizao de um Estado independente de tcnicas de
governamentalidade. No entanto, um Estado que tem a populao como alvo, que utiliza o
saber econmico e acaba por controlar a sociedade atravs dos dispositivos de segurana, pois
tem a polcia como instrumento para tal. 22
Para Foucault (1979) a arte de governo do sc. XVIII o que ele chama de
governamentalidade e define como:
O conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos os dispositivos de segurana. (FOUCAULT 1979, p. 291 292)
19 COIMBRA, C.; Monteiro, A. & Mendona, M (2006) pag. 11 20 MACHADO, (2005) intro pg. X 21 FOUCAULT (1979) 22 FOUCAULT (1979)
24
Para isso, o governo usar tcnicas que vo agir indiretamente, sem que as pessoas se
deem conta. A populao aparece como sujeito de necessidades e objeto nas mos do
governo.23
Essa estratgia de poder fica clara quando Foucault fala sobre o poder de gerir a vida,
que se desenvolveu a partir do sculo XVII, o bio-poder. Com tcnicas de controle centradas
no corpo, o bio-poder adestra, amplia aptides, ordena o crescimento paralelo de docilidade e
utilidade, e opera tambm nos processos biolgicos como nascimentos, mortalidade,
longevidade e outros fatores. 24
O capitalismo, que depende de corpos controlados e inseridos no aparelho de
produo, tem como elemento fundamental o bio-poder. Os aparelhos de Estado sendo
instituies de poder presentes em todos os nveis sociais so utilizados por instituies como:
famlia, escola, polcia, etc. A partir dessa utilizao manipulam processos econmicos,
determinam fatores de segregao e de hierarquizao social, garantem relaes de
dominao entre outras estratgias que foram plausveis atravs do exerccio do bio-poder e
suas mltiplas formas de operao. 25
Ao pensar em Estado Democrtico remete-se aos direitos garantidos pela
democracia, no entanto as diversas violaes dos direitos fundamentais podem demonstrar
o no cumprimento das funes do Estado. Mas, como se pode ver o Estado no o nico
detentor dos poderes, e no que lhe cabe ele deve controlar a populao atravs de estratgias
saber/poder. Assim quando h uma suposta falha na funo do Estado, na verdade ele est
exatamente no seu exerccio: controlar a populao atravs de dispositivos de poder.
A violncia evidenciada no Estado brasileiro tem uma funo, a de mant-lo
assim como ele . A produo de delinquentes til para o capitalismo, j que no h espao
para todos na lgica de consumo.
A partir desta viso de Estado tal como foi problematizada, ser pensado a
seguir como esse Estado se apresenta nas aes policiais.
23 FOUCAULT (1979) 24 FOUCAULT (2006) 25 FOUCAULT (2006)
25
1.2 - Violncia do Estado e Aes Policiais
O Ministrio Pblico de So Paulo denunciou (...) quatro policiais militares acusados de espancar e matar o motoboy Alexandre Menezes dos Santos, de 25 anos, na madrugada do dia 8 de maio. (...) Segundo o MP, o jovem apanhou por entre 20 a 30 minutos. Os policiais agiram "impelidos por absoluto desprezo pela vida do jovem pardo, pobre, perifrico, desprezando os pedidos da me da vtima para que parassem as agresses e ameaando-a de priso se interviesse". (...) Alexandre Santos foi morto quando chegava em casa (...) aps trabalhar como entregador em uma pizzaria. Segundo informaes do Boletim de Ocorrncia (BO), um dos policiais aplicou uma gravata no motoboy na tentativa de imobiliz-lo, mas ele teria conseguido se desvencilhar. Ento, outro golpe foi dado. Alexandre perdeu os sentidos e desmaiou, morrendo pouco tempo depois. (...) Em entrevista ao iG, a me de Alexandre, (...) disse que implorava para [os policiais] pararem de bater em seu filho. Eu me ajoelhei, tentei pegar na mo deles (policiais) e implorava para pararem de bater no meu filho. Eles s diziam: 'fica quieta que voc pode ser presa (...) Quando perguntei o motivo da agresso ao meu filho, o policial apenas respondeu: 'estava cumprindo o meu trabalho'. O trabalho deles era matar o meu filho. (Notcia do Jornal ltimo Segundo de So Paulo em 17/05/2010)
Essa histria nos parece assustadora, no entanto no com dificuldade que
encontramos manchetes parecidas em nossos jornais. A cada dia mais pessoas so atingidas
por violncia policial.
As aes violentas do Estado hoje tm novos alvos. O que na ditadura militar era
justificado pela existncia do inimigo interno26, do subversivo, deslocou-se agora para o
combate ao criminoso identificado como traficante.
No quero aqui dizer que a violncia e tortura praticada pela ditadura a mesma que
acontece hoje nas favelas. Poderamos aqui relacionar inmeras diferenas, inclusive o
momento histrico em que se do. Mas, gostaria apenas de trazer, nessas linhas iniciais, a
violncia praticada pelo Estado brasileiro que embora sejam diferentes e em diferentes
momentos, possuem algumas semelhanas.
Assim como na poca da ditadura, nem sempre os envolvidos nos ditos crimes27, ou
seja, aqueles que poderiam ser considerados culpados, so os nicos que sofrem as
consequncias da chamada guerra urbana. Essa expresso guerra urbana forjada pelos
meios de comunicao e difundida entre a populao, e assim utilizada para que de maneira
justificvel a represso se torne diria nas favelas. Podemos afirmar que nas prticas de
26 Inimigo Interno pode ser qualquer pessoa, que de uma maneira ou outra, possam questionar, se opor e, de alguma forma, levar desestabilizao da segurana nacional. Termo importado dos Estados Unidos e utilizado no Brasil na elaborao de toda Doutrina de Segurana Nacional, vigente em anos de 1960 a 1970. 27 No perodo ditatorial pensamentos ou aes, que iam contra s prticas do governo, eram considerados crimes. Tais crimes subversivos eram praticados pelos opositores polticos e sua represso era justificada pela ameaa a segurana nacional.
26
violncia do Estado, permanece a prtica de tortura, que de longe foi banida com a
redemocratizao do Pas, e continua sendo amplamente utilizada como recurso das
investigaes policiais. 28
O termo tortura foi definido pela ONU na Conveno contra a tortura e outros
tratamentos ou penas cruis desumanos ou degradantes: 29
(...) o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, fsicos ou mentais, so infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informaes ou confisses; de castig-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminao de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos so infligidos por um funcionrio pblico ou outra pessoa no exerccio de funes pblicas, ou por sua instigao, ou com o seu consentimento ou aquiescncia. No se considerar como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequncia unicamente de sanes legtimas, ou que sejam inerentes a tais sanes ou delas decorram.30
A tortura definida pela ONU de forma ampla, abrangendo no s o que aconteceu
com os presos polticos na ditadura, mas o que acontece hoje nas favelas do Rio de Janeiro e
de todo o Brasil. Pode-se dizer que algumas prticas violentas do Estado dizem respeito ao
extermnio dos mais pobres; muitas vezes esse extermnio seguido de sofrimento fsico e
mental, infringido por um funcionrio pblico no exerccio de sua funo, como definiu a
ONU.
Percebemos assim, que tortura e violncia do Estado so termos bem abrangentes.
Para uma melhor delimitao do objeto da nossa pesquisa, se faz necessrio um enfoque.
Falaremos da violncia praticada pelo Estado durante as aes policiais nas favelas do Rio de
Janeiro nos primeiros dez anos do sculo XI.
28 NOBRE (2004) 29 Conveno que considerou a carta da assembleia de 1975, o reconhecimento dos direitos iguais e inalienveis de todos os membros da famlia humana, a obrigao do Estado de promover o respeito universal e a observncia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e levando em conta o "artigo 5" da Declarao Universal dos Direitos do Homem e o "artigo 7" do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, que determinam que ningum ser sujeito a tortura ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Em 1975, quando o Brasil ainda vivia um momento de grande represso poltica, sob a vigncia do Ato Institucional n 5, que vigorou at o ano de 1978, a Organizao das Naes Unidas aprovava em assembleia geral a Declarao sobre a Proteo de Todas as Pessoas Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruis, Desumanos ou Degradantes. O Ato Institucional nmero cinco, foi o quinto decreto emitido pelo regime militar aps o Golpe de 1964. O AI-5 foi o instrumento que deu ao regime militar absoluto poder, tento com um de seus efeitos o fechamento do congresso nacional por um ano. Foi o golpe dentro do golpe, em 13/12/1968. 30 Parte I, artigo1, ONU
27
Segundo Chau (1997), as vrias culturas e sociedades do violncia contedos
diferentes, considerando o tempo e os lugares. No entanto, existem pontos em comum ao
definir a violncia. A violncia de maneira geral entendida:
(...) como uso da fora fsica e da coao psquica para obrigar algum a fazer alguma coisa contraria a si, contraria aos seus interesses e desejos, contraria ao seu corpo e sua conscincia, causando-lhe danos profundos e irreparveis, como a morte, a loucura, a auto agresso ou a agresso aos outros. (...) Em nossa cultura, a violncia entendida como o uso da fora fsica e do constrangimento psquico para obrigar algum a agir de modo contrrio sua natureza e ao seu ser. A violncia a violao da integridade fsica e psquica, da dignidade humana de algum. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustia, a mentira, o estupro, a calnia, a m-f, o roubo so considerados violncia, imoralidade e crime. (CHAU, 2000 pg. 432, 433)
A partir dessa definio de violncia, trataremos da violncia policial, que
indiscriminadamente, sem distinguir entre inocentes ou culpados tortura e ceifa vidas.
Ao longo das ltimas dcadas, a polcia a principal perpetradora de crimes contra a
vida, podendo ser considerada uma mquina de extermnio. A violncia letal no Brasil sugere
que parcelas da populao tenham suas vidas circunscritas pela violncia e pelo medo.
Atravs das aes da polcia, o Estado atua de forma criminosa e numa escala inaceitvel.
Apesar disso, a violncia policial no significa melhor eficincia no combate s atividades
criminosas.
H uma banalizao do extermnio de jovens pobres em supostos confrontos com a
polcia. Tudo isso acompanhado de aplausos de uma classe mdia acuada pelo medo, que
deseja a limpeza da cidade, mesmo que isso no garanta direitos iguais a todos. A falta de
comoo na sociedade e na mdia para com as invases da polcia nas reas pobres o retrato
da conformidade com a ideia de que essas reas do territrio esto excludas do marco da
legalidade e permanentemente em estado de exceo.
Para Agamben (2004), o estado de exceo se apresenta como a forma legal daquilo
que no poderia ter forma legal. quando a legalidade das leis pode ser suspensa para que
aes do Estado, transgressoras das leis, possam ser vistas como necessrias. Em uma guerra
civil, por exemplo, o estado de exceo pode ser a resposta imediata do poder estatal aos
conflitos internos. No Estado democrtico de direito o estado de exceo pode ser visto como
uma continuidade do que acontecia na soberania, quando o soberano decidia sobre quando
deveria suspender a legitimidade das leis.
Em referncia ao Terceiro Reich, estado de exceo que durou doze anos, Agamben
define a suspenso das leis no direito pblico como totalitarismo moderno, pois permite a
eliminao fsica no s dos adversrios polticos, mas tambm de categorias inteiras de
28
cidados que, por qualquer razo, paream no integrveis ao sistema poltico. 31 Nos
Estados contemporneos, inclusive nos ditos democrticos, o estado de exceo aparece cada
vez mais como paradigma de governo. Uma medida provisria e excepcional passa a ser uma
tcnica de governo, e estreita cada vez mais a democracia e o absolutismo.
O estado de exceo instaurado na segunda guerra utilizava campos de concentrao
para a aniquilao do homem, no contemporneo temos campos de concentrao a cu aberto.
Nas favelas onde o direito individual suspenso, os moradores no so vistos como iguais e
qualquer ao contra sua vida no vista como crime. O Estado moderno utiliza mecanismos
jurdicos para fazer com que as leis sejam suspensas em nome da paz, to sonhada. As
ameaas de uma cidade perfeita so eliminadas, descartadas, tidas como no humanas. Os
direitos fundamentais garantidos na Constituio federal so violados pelo poder pblico.
Com um mandado de busca e apreenso coletivo e genrico, qualquer casa da favela
pode ser revistada. Esse tipo de ao contraria completamente o Cdigo de Direito Penal
Brasileiro, que determina que:
Art. 243 - O mandado de busca dever: I - indicar, o mais precisamente possvel, a casa em que ser realizada a diligncia e o nome do respectivo proprietrio ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que ter de sofr-la ou os sinais que a identifiquem; II - mencionar o motivo e os fins da diligncia; III - ser subscrito pelo escrivo e assinado pela autoridade que o fizer expedir. (Cdigo de Direito Penal)
Em total descumprimento ao Cdigo Penal, os mandados de busca coletivos e
genricos se validam atravs do estado de exceo, no qual os policiais podem invadir casas
de comunidades inteiras. Tenho absoluta convico que o mandado coletivo e genrico jamais
seria usado no Leblon, bairro onde o atual governador mora com sua famlia. No entanto o
estado de exceo abre brechas para que qualquer ao do Estado possa se tornar legal. Em
modulaes subjetivas magnficas, propaga o medo, torna natural e totalmente aceitveis
essas aes, vendidas como necessrias para a paz to desejada.
As manchetes que deveriam ser vistas com total indignao passam a ser corriqueiras
e normais aos olhos dos que veem essas histrias atravs dos jornais.
(...) Julio Csar de Menezes Coelho, de 21 anos, foi morto com dois tiros no peito, na Cidade Alta. A verso apresentada pela polcia, no domingo de manh, era de que ele era um dos quatro traficantes mortos durante confronto com PMs em Cordovil. No entanto, Julio estudava no Colgio Municipal Montese e, h seis
31 AGAMBEN (2004, p.13)
29
meses, trabalhava no McDonald's da Rua Hilrio de Gouveia, em Copacabana. (...) - Policiais no respeitam os moradores. O Csar estava indo trabalhar, mas, antes, parou para conversar. Era um bom garoto, todos aqui gostavam dele. Estamos cansados disso, queremos dar um basta nessa situao - desabafou Claudia dos Santos, uma espcie de tia de considerao do jovem, indignada com a morte do jovem e com o fato de ele ter sido tachado de bandido. (...) No confronto de sbado, outras trs pessoas foram mortas, uma delas no identificada. Rodrigo Alves Catureba e Wantuiller Marques Lopes, a exemplo de Julio, no tm passagem pela polcia, segundo informou ontem tarde o comandante do 16 BP (...).32 O menino Caque dos Santos, de cinco anos, morto por uma bala perdida durante incurso da Polcia Militar na favela do Pica-Pau, em Cordovil, (...) Ele foi levado por moradores para o Hospital Getlio Vargas, na Penha, (...) Policiais do 16 BPM (Olaria) que participaram da ao disseram que foram recebidos a bala pelos traficantes da rea. De acordo com a corporao, os militares no revidaram ao ataque. O pai do menino, Rogrio Batista dos Santos, em entrevista Rdio Bandnews deu outra verso ao ocorrido e disse que apenas os policiais atiraram. S teve tiro deles. De ningum mais", acusou. Ele contou ainda que trs PMs entraram na comunidade paisana, vestidos de sorveteiros. Aps a fuga de dois suspeitos, os policiais teriam atirado e, j vestidos com uniformes da corporao, entrado num carro modelo Gol da Polcia Militar, cuja placa foi identificada durante a entrevista do pai rdio.33
O menino Caque estava apenas brincando na porta da casa da av paterna quando foi
atingido por uma bala. Difcil foi o batalho responsvel pela morte da criana acus-lo de
envolvimento com o trfico como fez com o estudante Julio Cesar de 21 anos, como vemos
nas reportagens acima.
Sem um julgamento prvio, na favela qualquer um pode perder a vida a qualquer
momento. Pois o esteretipo de possvel criminoso junto com a desculpa de combate ao
crime so suficientes para justificarem os extermnios.
1.3 O criminoso e a pena em Foucault e Nietzsche
Mas qual poltica se faz presente no contemporneo? Foucault (2007) inicia o livro
Vigiar e Punir com a aterrorizante descrio de um suplcio. O condenado, em um grande
espetculo, tinha seu corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado, exposto vivo ou
morto em praa pblica. O sofrimento fsico e a dor do corpo faziam parte da pena. O suplcio
no apenas a privao do viver, mas uma tcnica para produzir certa quantidade calculada
de tortura para reter a vida no sofrimento. Para esse clculo era levada em considerao a
gravidade do crime cometido, a pessoa do criminoso e o nvel social de suas vtimas, assim
era determinado o tipo e a intensidade de ferimentos e o tempo de sofrimento, e em quanto
32 Extra em 20/09/2010. 33 O Dia online em 01/04/2011.
30
tempo se deveria deixar o criminoso morrer. O suplcio era um ritual, um elemento da liturgia
punitiva. Esse ritual tem que ser marcante, ele traa sobre o corpo do condenado sinais que
no devem se apagar da memria dos homens, os gritos com excesso de violncia fazem parte
do cerimonial de justia que assim manifesta sua fora. O suplcio se prolongava aps a morte
do condenado, os cadveres eram arrastados, expostos, queimados. Uma justia alm do
possvel sofrimento.
O suplcio penal no corresponde a qualquer punio corporal: uma produo diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcao das vtimas e a manifestao do poder que pune: no absolutamente a exasperao de uma justia que, esquecendo seus princpios, perdesse todo o controle. Nos excessos dos suplcios, se investe toda a economia de poder. (FOUCAULT, 2007 pg. 32)
Os ritos punitivos eram efeitos de certa mecnica de poder, de um poder que faz valer
as regras e as obrigaes. A desobedincia ao Rei um ato de hostilidade, uma ofensa que
precisa de vingana.
Rituais de suplcio se estenderam at o final do sculo XVIII e comeo do XIX,
quando as festas de punio foram sendo substitudas pela nova forma de punir: a privao de
liberdade como forma correta de um criminoso pagar por seu crime. Os protestos contra os
suplcios apareciam em toda parte. As cerimnias de punio passaram a ter um cunho
negativo, era preciso acabar com a confrontao fsica entre o condenado e o soberano que era
influenciada pela vingana do prncipe e pela clera do povo. Uma aparente humanizao das
penas fez com que o carrasco passasse a se parecer com o criminoso, os juzes com os
assassinos, o supliciado um objeto de piedade e admirao. A execuo pblica agora
chamada de violncia. Os suplcios se tratavam de uma modalidade do poder soberano, no
qual o poder do rei de dispor da vida dos sditos precisava ser exibido.
Com a passagem do poder soberano para uma sociedade disciplinar o poder tem como
foco o corpo que se manipula e se modela. Tem como objetivo fabricar corpos dceis e
submissos. dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeioado. 34 As disciplinas so os mtodos que permitem o controle das
operaes do corpo estabelecendo a relao entre docilidade e utilidade. O corpo deve assim
ser mais obediente e mais til; para isso ele aumenta as foras do corpo para utilidades
econmicas, em contra partida diminui essas mesmas foras em termos polticos de
obedincia, resultando assim em uma aptido aumentada e uma dominao acentuada.
34 FOUCAULT (2007, P.118)
31
Tcnicas minuciosas de poder definem o modo de investimento poltico e detalhado do
corpo, uma microfsica do poder que tende a cobrir todo campo social, como tcnicas de
grande poder de difuso, arranjos sutis, de aparncia inocente, mas profundamente suspeitos,
dispositivos que obedecem a economias inconfessveis 35, participaram da modificao do
regime punitivo. A priso uma instituio disciplinar.
No foram apenas as formas de punio que se modificaram com a sociedade
disciplinar. A suposta suavizao das penas, na verdade, trouxe novos modos de perceber os
crimes e os criminosos. A importncia dos crimes de sangue foi substituda pela importncia
dos crimes contra o patrimnio. A ilegalidade passa do ataque ao corpo para o ataque aos
bens. como se a ilegalidade mudasse o alvo, a criminalidade de massa passa para uma
criminalidade de margens e agora especfica de alguns profissionais e mais freqente nas
classes mais populares. Essa transformao est ligada a vrios outros processos econmicos
inclusive a elevao do nvel de vida, a multiplicao das riquezas e das propriedades. O que
promove uma justia penal mais pesada, no deixando escapar pequenas delinquncias que
antes poderiam passar sem que fossem notadas.
Na verdade a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produo, o aumento das riquezas, uma valorizao jurdica e moral maior das relaes de propriedade, mtodos de vigilncia mais rigorosos, um policiamento mais estreito da populao, tcnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informao: o deslocamento das praticas ilegais correlato de uma extenso e de um afinamento das prticas punitivas. (FOUCAULT 2007, p. 66)
No final do sec. XX, as sociedades disciplinares passaram por modificaes e surgem
as sociedades de controle. As instituies disciplinares tm seus muros derrubados, e o
controle passa a operar ao ar livre. Os confinamentos tpicos da sociedade disciplinar que
tomaram o lugar do poder soberano operavam como moldes, j o controle uma modulao e
funciona de maneira auto deformante, mudando continuamente. 36
H uma coexistncia entre o poder disciplinar e a sociedade de controle, as instituies
disciplinares operam junto com o controle subjetivo caracterstico dessa nova modulao;
agora o marketing passa a ser o maior instrumento de controle social. A nova roupagem do
capitalismo ter a funo de controle das massas.
35 FOUCAULT (2007, P.120) 36 DELEUZE (2000)
32
verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema misria de trs quartos da humanidade, pobres demais para a dvida, numerosos demais para o confinamento: o controle no s ter que enfrentar a dissipao das fronteiras, mas tambm a exploso dos guetos e favelas. (DELEUZE, 2000, P. 224)
Os valores sociais passam pela lgica de consumo, no entanto nem todos podero estar
inseridos nesse quadro. Com a modificao da interpretao dos crimes e as novas formas de
punir, a cada dia h o aumento exagerado de presidirios, que mesmo com novas construes
de presdios, so incapazes de acompanhar o crescente nmero de detentos. Pensaremos assim
no com a ideia de excluso, mas de insero, pois nessa nova poltica do corpo todos tm
uma funo social, mesmo que seja para justificar a violncia e o medo disseminado pelos
meios de comunicao.
Em genealogia da moral, Nietzsche (2004) descreve como durante um grande perodo
da histria, o castigo no visava a responsabilizao do culpado por seu ato delinquente, mas
sim pela ideia de que qualquer dano poderia ser compensado com a dor do seu causador: ideia
de equivalncia dano e dor. Essa equivalncia, dano e dor, teve origem na relao contratual
credor e devedor, na qual o devedor, para transmitir confiana e seriedade em sua promessa,
empenha ao credor algo que ainda possua, como o corpo da sua mulher, sua liberdade ou
mesmo a sua vida. O pagamento, em dinheiro, terra ou algum bem, pode ento ser substitudo
por alguma satisfao ntima concedida ao credor, satisfao de quem pode livremente usar
seu poder sobre um impotente. Atravs da punio o credor goza da sensao de poder
desprezar e maltratar algum como inferior. A compensao pelo dano um convite e um
direito crueldade.
O castigo nesse nvel de costumes, simplesmente a cpia, mimus [reproduo] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu no s o direito e proteo, mas tambm qualquer esperana de graa, ou seja, o direito de guerra e a celebrao do Vae victis! [Ai dos vencidos!] em toda a sua dureza e crueldade o que explica por que a prpria guerra (incluindo o sacrifcio ritual guerreiro) forneceu todas as formas sob as quais o castigo aparece na histria. (NIETZSCHE 2004, p. 61)
Atravs da relao devedor-credor, nasce o sentimento de culpa. O homem deve
honrar sua dvida e para isso preciso que ele se lembre de que est devendo, sendo
necessria a memria para que o homem seja responsvel e confivel, que seja capaz de fazer
promessas. Sacrifcios, penhores e martrios e muito sangue acompanharam a necessidade de
o homem criar em si uma memria. Quanto mais fraca a memria da humanidade mais duras
sero as leis penais e maior o esforo para vencer o esquecimento e manter as determinaes
33
do convvio social. Com uma breve apreciao em nossas antigas legislaes penais,
possvel compreender quanta dor precisou para se criar pensadores. A razo, a seriedade o
domnio sobre os afetos, todas essas coisas fundamentais para a vida na sociedade tiveram um
alto preo pago pelo homem, tudo a custo de muito horror. 37
A partir da relao devedor-credor, viver em comunidade significa desfrutar de
proteo, paz e confiana: esses so os deleites de uma vida em comunidade. Mas caso o
indivduo no cumpra com seu compromisso, o credor trado exigir pagamento. O criminoso
um devedor e a ira do credor ir devolv-lo ao estado selvagem e fora da lei, do qual at
ento ele era protegido. 38
As penas se modificaram. As sociedades e o Estado operam com as disciplinas,
criando corpos dceis e teis. Agora o confinamento o principal modo de punir, a exibio
do sofrimento do condenado no mais necessria, o castigo opera sobre o corpo de maneira
diferente, um sistema de privao, de obrigao e de interdies sobrevm sobre o corpo. Na
humanizao das penas temos, na verdade, um aparelho judicirio que possibilita e garante
maneiras de explorao que um determinado grupo de indivduos exerce sobre outro grupo
em uma sociedade. 39
Em diferentes perodos histricos a relao com a dvida social se transforma. No
entanto, a manipulao subjetiva est sempre presente adestrando corpos e produzindo
subjetividade.
1.4 - Processos de subjetivao
Iremos discutir o conceito de produo de subjetividades, pois para falar de violncia
necessrio romper com uma tradio individualizadora da psicologia e poder falar a partir de
uma perspectiva que no dissocie os fatos individuais dos fatos sociais ou coletivos.
Proponho usar a palavra subjetividades no plural, pois se trata sempre de processos
de produo das subjetividades, processos que emergem das relaes, logo esto em constante
mudana. Para Guattari (2005) a produo de subjetividades deriva do entrecruzamento de
determinaes coletivas de vrias espcies, no s familiar, mas tambm econmica,
37 NIETZSCHE (2004) 38 NIETZSCHE (2004) 39 RAUTER (2003)
34
tecnolgica, miditica, entre outras. A subjetividade fabricada e modelada no registro social
a partir de seus diversos atravessamentos.
Pensando assim, a construo do sujeito no previamente determinada, tampouco
uma questo de escolha, mas um agenciamento com o fora, com as foras que perpassam um
contexto scio-histrico em que esse sujeito est inserido. O individual produzido no
coletivo, as diversas relaes sociais familiares, de trabalho, comunitrias, religiosas, dentre
tantas outras , esto todo o tempo nos invadindo e produzindo formas de sentir, pensar e agir.
Levando em considerao que a subjetividade familiar tambm produzida no social,
pensamos que no possvel que a famlia seja a nica responsvel pelos processos de
subjetivao, mas essa produo principalmente um atravessamento social muito mais
complexo.
As sociedades modernas ocidentais entendem o homem como uma entidade natural,
singular e distinta, como portadora de um eu, uma essncia. A partir dessa noo de eu,
funciona grande parte de nossos sistemas penais, com uma ideia de responsabilidade e
inteno. 40 A ideia de um indivduo livre onde seu modo de existir uma questo de escolha
faz com que todo o contexto social seja desconsiderado, sem implicaes com o mundo ao
redor. O sujeito torna-se o nico responsvel pelo que lhe acontece e pelo que produz.
A partir de uma crise do eu as cincias sociais assistem morte do sujeito. Assim,
rejeita-se a definio de um sujeito universal, estvel, totalizado, interiorizado e
individualizado. Emerge uma subjetividade socialmente construda, o psicolgico no sendo
mais uma questo individual, mas, ao contrrio, um evento social. Diversas vertentes das
cincias sociais compreendem ento o subjetivo a partir da anlise do que fica de fora do
espao interior; outras vertentes colocam ainda em discusso esse dualismo interior-exterior
questionando a possibilidade de um interior que fique a margem de certos processos
constitutivos que teriam sua origem no exterior, no social. No entanto, em todas as anlises
nega-se a possibilidade de uma psique isolada do contexto sociocultural, definindo assim os
processos de subjetivao como parte do tecido relacional, processos esses que se constituem
nos encontros da trama social. 41
J Deleuze e Guattari buscam uma crtica mais radical para pensar os processos de
subjetivao para alm dos pressupostos a que a psicologia continua presa. Frente a uma ideia
de sujeito essencializado com uma identidade unitria, Deleuze e Guattari (2010) propem
formas de pensar a subjetividade a partir da noo de multiplicidade e heterogeneidade. Para 40 ROSE (1976) 41 ROSE (1976)
35
os autores, no h dois tipos de produo, uma individual e a outra social. No h de um lado
uma produo social e de outro uma produo desejante, mas uma nica e mesma produo.
A produo social a produo desejante em condies determinadas. Ainda que repressivas,
as formas de reproduo social so produzidas pelo desejo de modo paradoxal.
Atravs de uma genealogia e de uma cartografia da subjetividade ocidental, Deleuze e
Guattari analisam os processos de subjetivao, pois para eles s existem processos, o eu
no est enclausurado, tampouco interior, mas sim um movimento de agenciamento cuja
interioridade transborda ininterruptamente em contato como o exterior. 42
A produo subjetiva produzida atravs dos encontros. Na coexistncia entre os
corpos se produzem turbulncias e transformaes, muitas vezes irreversveis. Quando os
fluxos e partculas da nossa atual composio se conectam com outros fluxos e partculas, ou
seja, com o exterior e seus elementos estrangeiros, a forma atual desestabilizada, sendo
necessrio, nessa medida, criar um novo corpo afetivo e cognitivo. Novas subjetividades so
produzidas a partir desses encontros. 43
A interioridade transborda em contato com o exterior, as subjetividades se produzem a
partir dos encontros. Mas que exterior? Que encontros? Pensaremos aqui o encontro com o
fora, com aquilo que exterior sua forma atual. O fora habitado por foras, estratificadas
ou no. As foras so mltiplas e nem todas as foras esto capturadas pelos estratos
histricos. atravs do saber que as relaes de fora so codificadas, estratificadas. O saber
controla e gerencia as relaes de poder, tornando as foras plmbeas a organizadas. 44 O
poder so as foras, as foras do fora, relaes de foras puramente intensivas que, embora
cegas e mudas, so a condio para o exerccio do saber, isto , do que podemos ver e falar.
por meio da visibilidade e dos enunciados, do saber, que ocorre a estratificao das
relaes de fora, o poder. Dependendo das maneiras pelas quais os corpos esto dispostos na
arquitetura, nas instituies, nos agenciamentos sociais, ou seja, nos regimes de visibilidade,
nos permitido ou no enxergar certos elementos. A visibilidade ou a luminosidade o que
determina as condies do que podemos ver em certo lugar e em certa poca. A outra via de
estratificao do poder utilizada pelo saber so os enunciados. No se pode enunciar qualquer
coisa em qualquer perodo histrico. Poderemos identificar um modo de subjetivao a partir
42 DOMENECH, TIRADO & GOMES (2001) 43 ROLNIK (1995). 44 COSTA ( 2009).
36
da estratificao das foras pelo saber, que utiliza a visibilidade e os enunciados para criar
maneiras de perceber, pensar, agir, ou seja, estar no mundo. 45
No entanto temos a produo de subjetividade singular, que no prevista pelo saber
estratificado socialmente, produzida pela dobra do fora, quando, frente aos poderes
constitudos, uma fora toma outra fora como ponto de apoio. a subjetividade produzida a
partir de encontros, e por sua vez, criadora de novos agenciamentos que poder traar linhas
de fuga, que decodificam os saberes estabelecidos e desterritorializam as estratgias de poder
j constitudas diferente da subjetividade marcada pelos estratos histricos, definida por
linhas duras de saber que codificam certas estratgias de poder. Pois, precisamos lembrar que
para Deleuze (1988) o fora, no um limite fixo, mas uma matria mvel, animada de
movimentos peristlticos, de pregas e de dobras, que constituem um lado de dentro. Essa
constituio se d na curvatura do lado de fora, profundas dobras que no ressuscitam a velha
interioridade, mas constituem um novo lado de dentro, um dentro que seria a prega do fora
selvagem, nmade, pura potncia virtual e no domesticada ainda pelo saber.
No entanto, importante ressaltar que o dobramento desse fora, isto , das foras
ainda no domesticadas pelo social estratificado, s pode se dar por meio de pregas ou
pinas, que nada mais so do que estratgias ou tticas de subjetivao. Estas nunca so
absolutamente novas, mas sempre tomadas do agenciamento social em que se vive, ainda que
agenciadas de outro modo. Significa dizer que novos modos de subjetivao emergem tendo
como material os saberes e relaes de poderes constitudos, mas fazendo outros usos. uma
forma de resistncia ao poder, tomar o estabelecido contra o estabelecido. As tticas ou
estratgias so justamente formas historicamente circunscritas da fora, tomar outra como
ponto de apoio e dobrar o fora, isto , as foras ainda no estratificadas, produzindo formas
ainda no codificadas de subjetividade. So propriamente os processos de subjetivao em
exerccio concreto.
No Brasil que a violncia de Estado tem um endereo, ela no atinge qualquer um,
seus atingidos so previamente marcados no contexto social. Os processos de excluso
acompanhados de violncia, no podem ter o mesmo efeito subjetivo que outras formas de
sofrimento fsico.
Sabe-se que uma abordagem policial muda totalmente de estratgia a depender do
nvel econmico dos abordados. E como j vimos anteriormente prticas violentas so
comuns nas incurses policiais nas favelas do Rio de Janeiro. A partir da definio da ONU,
45 COSTA (2009)
37
podemos chamar essas prticas de tortura, pois esto sendo praticadas por um funcionrio do
Estado em exerccio da sua funo.
Para Sironi, (1999) a tortura remete ao silncio, ela tem um efeito de segredo. Sua
funo no fazer falar, mas fazer calar. O silncio sobre a violncia do Estado tem tido
efeitos sobre a subjetividade no s dos atingidos ou familiares, mas de uma srie inteira de
geraes. As marcas da tortura que outrora um dia impressas nos corpos tornam-se pedaos de
tempo e vida privatizados. 46 As pessoas se sentem desvalorizadas e diminudas e, raramente,
compartilham tais sentimentos.
Alguns torturados continuam por muitos anos com o sofrimento presente. A
experincia da tortura produz frequentemente uma ruptura com os grupos de pertencimento. O
que provoca no torturado muito sofrimento a vivncia de um antes e um depois da tortura,
como que uma quebra em sua histria de vida. 47
Entre os que sofreram tortura comum notar a exacerbao de uma negatividade, que
pode se expressar um alto grau de culpabilidade e perda de autoconfiana. 48
Segundo Rauter (2002) se o ato violento no provoca a morte, contudo, novos modos
de vida emergem, j que a vida sempre produo do novo e de mudanas. A violncia
produz marcas, traz consigo um carter de irreversibilidade e de repetio. Aps os
acontecimentos traumticos vividos pelos atingidos pela violncia do Estado, as recordaes
aparecem mesmo que se deseje expuls-las da conscincia. No entanto, as recordaes podem
estar a servio da vida, trazendo novos modos de existir, novas lutas, sempre linhas de
produo de novos modos de organizao subjetiva.
1.5 - O Estado Produzindo Quimeras
Sob um grande cu de cinza, numa grande plancie poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vrios homens que marchavam curvados. Trazia cada um deles s costas uma enorme Quimera, to pesada como um saco de farinha ou de carvo, ou como o equipamento de um infante romano.
Porm o monstruoso animal no era um peso inerte; ao contrrio, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus msculos elsticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito com as suas duas garras imensas; e sua cabea fabulosa sobrelevava a cabea do homem, tal um desses horrveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo.
Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhe aonde eles iam assim. Respondeu-me que no sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que,
46 RODRIGUES & MOURO (2002) 47 SIRONI (1999) 48 RAUTER (2009)
38
evidentemente, iam alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencvel de caminhar. Curioso: nenhum deles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia pendente do pescoo e agarrado s costas; dir-se-ia consider-lo parte integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o mnimo desespero; sob a tediosa cpula do cu, os ps mergulhados na poeira de um solo to desolado como o cu, eles marchavam com o ar resignado daqueles que so condenados a esperar eternamente.E o cortejo passou a meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto em que a redonda superfcie do planeta se furta curiosidade do olhar humano.
E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender esse mistrio; mas logo a irresistvel Indiferena caiu sobre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido do que o estavam aqueles homens pelas suas esmagadoras Quimeras. (BAUDELAIRE 2006, p.127)
Homens caminhando com gigantescas Quimeras envolvendo e oprimindo seus corpos.
Pode algum no perceber uma Quimera aferrada em seu peito? Pode algum caminhar sem
destino?
assim que muitos caminham. Sem destino e com grandes Quimeras que os oprimem
de maneiras imperceptveis. No poderemos perceber a violncia de Estado apenas no que se
encontra explcito. Alm de torturas fsicas e encarceramentos h toda uma produo de
saberes que validam esses procedimentos. As prticas judicirias se articulam com os saberes
em dispositivos de controle social. Marcas fsicas no so suficientes, necessrio produzir
formas de pensar que justifiquem essas marcas, para isso os saberes entram em cena, ao lado
do que visvel caminham grandes Quimeras - estratgias de manipulao muitas vezes
invisveis.
Retomando o que j foi explicitado anteriormente, Foucault props o conceito de
poder disciplinar enquanto uma forma de saber-poder constituda em rede, operando o
esquadrinhamento do campo social a partir de diferentes instituies: a escola, o hospital, a
fbrica e a priso. Um dos objetivos da disciplina fazer com que seu poder social seja
elevado o mximo de intensidade e estendidos to longe quanto possvel. 49
No capitalismo tardio o controle tende a substituir as disciplinas, embora tal
substituio no seja total. A partir do controle ao ar livre, corpos e mentes so modulados
atendendo. Os meios de comunicao de massa, protagonistas na manipulao subjetiva,
agem como Quimeras imperceptveis, formando opinies cada vez mais padronizadas pelo
discurso hegemnico. Atravs da mdia, percepes dominantes so disseminadas em nosso
cotidiano. Segundo Coimbra (2001), a mdia alm de estar nas mos de poucos e produzir
massas subjetivas, organiza de forma sensacionalista e hierarquizada os fluxos de
acontecimentos, selecionando o que poder ser discutido, debatido e pensado. Desta forma
49 FOUCAULT 2007, P. 179
39
cria identidades, sujeitos, saberes e verdades. As verdades produzidas massivamente por
equipamentos sociais podem ainda serem modificadas, adaptadas, trocadas por outras
verdades, tudo isso a critrio e convenincia da mdia.
O controle social capitalstico funciona atravs da produo de subjetividades, que
Guattari chama de cultura e equivalncia: o capital ocupa-se da sujeio econmica e a
cultura da sujeio subjetiva. A cultura de massa cria indivduos normatizados, articulados
uns com os outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas de valores, sistemas de submisso
no sistemas de submisso visveis e explcitos (...), mas sistemas de submisso muito mais
dissimulados. Esses sistemas no so internalizados ou interiorizados, uma produo
de subjetividade social e inconsciente que busca uma hegemonia em todos os campos. Assim
a cultura impossibilita a reflexo dos processos. 50 Um pensamento hegemnico sobre as
questes sociais no Brasil produzido e difundido pela cultura de massa. Culpabilizar os
menos favorecidos pela sua situao de misria um exemplo desse tipo de produo, que
no analisa os processos que determinam tais estados sociais.
A segregao uma funo da economia subjetiva capitalstica diretamente vinculada culpabilizao. Ambas pressupem a identificao de qualquer processo com quadros de referncia imaginrios, o que propicia toda espcie de manipulao. como se para se manter a ordem social tivesse que instaurar, ainda que da maneira mais artificial possvel, sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de valor e sistemas de disciplinarizao. Tais sistemas do uma consistncia subjetiva s elites (ou pretensas elites) e abrem todo um campo de valorizao social, onde os diferentes indivduos e camadas sociais tero que se situar. (GUATTARRI & ROLNIK 2005, p. 50)
Para os ditos inimigos da sociedade (os segmentos mais pauperizados da populao),
so criadas identidades homogneas e desqualificadas. Considerados suspeitos pelos
meios de comunicao devem ser evitados ou at eliminados. 51 Assim, pensaremos que as
populaes pobres com todo o perigo que representam para as classes mais abastadas,
percebem-se como tal, muitas vezes aceitando o esteretipo da criminalidade como causa
efeito: sou pobre, logo posso ser perigoso.
A mass mdia e outros equipamentos sociais desviam a ateno dos inmeros
problemas que rondam a criminalidade, como por exemplo, a m distribuio de renda e a
marginalidade social, para enfatizar a insegurana urbana, o medo do crime e o
esteretipo do criminoso. Desta forma, a pobreza e a misria passam a ser mais aceitveis.
50 GUATTARRI & ROLNIK (2005). 51 COIMBRA (2001)
40
A grande massa de excludos vista como se agisse diferente das elites, pensando,
percebendo e sentido diferente e por isso no podendo ter o mesmo tratamento. 52
Discursos que estabelecem relao entre vadiagem/ ociosidade/ indolncia e pobreza e
entre pobreza e periculosidade/ violncia/ criminalidade, justificam a necessidade de
vigilncia e represso contra os pobres. A busca por uma sociedade homognea, assptica,
higinica, branca e disciplinada faz com que a elite deseje cada vez menos o contato com
pobres e negros. 53
O atual governador do Estado do Rio, Sergio Cabral, em uma entrevista assevera:
A questo da interrupo da gravidez tem tudo a ver com a violncia pblica (...) Voc pega o nmero de filhos por me na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Mier e Copacabana, padro sueco. Agora, pega na rocinha. padro Zmbia, Gabo. Isso uma fbrica de produzir marginal. Estado no d conta. No tem oferta da rede pblica para que essas meninas possam interromper a gravidez (...)54
O acesso ao aborto para nosso governador a melhor maneira de diminuir a
criminalidade, eliminando vidas pobres antes de seu nascimento. A quem ele quer beneficiar
com as polticas de extermnios do Estado? As adolescentes pobres que no podem ir a uma
clnica onde de maneira oficiosa se faz abortos? Ou as classes abastadas com padro sueco
que podero ser incomodadas com os indesejveis filhos dos favelados?
Desta maneira, com esse tipo de reportagem se dissemina sutilmente quem tem direito
vida. Assim, os pobres so cada vez mais identificados como a classe perigosa. Esses
discursos criam uma linha imaginria entre os pobres e as demais classes, numa tentativa de
mant-los afastados, para que o perigo fique longe. Os marginalizados, por esse sistema
perverso, entendem cada vez mais o seu espao, at onde devem chegar para no incomodar,
sen