A TEORIA DO ABUSO DE DIREITO NO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: NOVOS
PARADIGMAS PARA OS CONTRATOS
Fabrcio Castagna Lunardi
Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais e Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de
Santa Maria. Foi advogado e defensor pblico do Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente professor universitrio e Advogado da Unio.
RESUMO: O presente artigo cientfico tem por objetivo precpuo a anlise da Teoria do
Abuso de Direito sob um vis civil-constitucional, bem como dos novos paradigmas
traados para o direito contratual. Abordam-se a evoluo e a contextualizao da Teoria
dentro dos sistemas jurdicos, os requisitos para a sua caracterizao no Cdigo Civil de
2002, a sua relao com a boa-f objetiva e a sua aplicao nos Tribunais, sobretudo em
relao aos contratos de direito privado. As crticas Teoria do Abuso de Direito e a
responsabilidade civil decorrente da sua aplicao tambm so analisadas. O mtodo de
abordagem utilizado o dialtico, que se afigura o mais indicado para propiciar um
posicionamento lgico e coerente frente s indagaes que surgem ao longo do texto.
Como mtodo de procedimento, optou-se pelos mtodos histrico e comparativo,
analisando a evoluo do instituto e as proximidades e distines entre o abuso de direito
e o ato ilcito stricto sensu. Conclui-se, ao final, que a positivao da Teoria do Abuso de
Direito no Cdigo Civil de 2002 de suprema importncia como instrumento
concretizador dos ideais de socialidade e eticidade.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Abuso de Direito, Constituio, Contratos.
SUMRIO: 1 Introduo; 2 O novo direito civil
constitucional e a teoria do abuso de direito: evoluo;
3 A teoria do abuso do direito no Cdigo Civil de 2002;
4 A adoo da teoria do abuso de direito como clusula
geral: direito e linguagem; 5 Dos requisitos para a
caracterizao do abuso de direito; 5.1 Exerccio de um
direito; 5.2 Violao da finalidade econmica e social,
da boa-f e dos bons costumes; 5.2.1 Da finalidade
econmica e social; 5.2.2 Da boa-f; 5.2.3 Dos bons
costumes; 5.3 Do dano; 6 A aplicao da teoria do
abuso de direito nos contratos; 7 Crticas teoria do
abuso do direito; 8 Responsabilidade civil por abuso de
direito; 9 Consideraes finais; 10 Referncias
bibliogrficas.
1 INTRODUO
A publicizao do direito civil, caracterizada pela crescente interveno do Estado
nas relaes privadas e pela interpretao das normas de direito privado sob um vis
constitucional, a tendncia moderna. Esse novo direito civil tem o desiderato de
acrescentar elementos ticos, socializantes e axiolgicos ao direito privado, com a
valorizao do indivduo. o que a doutrina moderna tem chamado de
despatrimonializao do direito civil.
A Teoria do Abuso de Direito no foge a essa tendncia. Com efeito, tem o escopo
de impedir que os direitos subjetivos sejam exercidos de maneira abusiva, contrariando o
seu fim econmico e social, a boa-f, os bons costumes. Constitui-se num obstculo aos
atos emulativos, ceifando intenes esprias daqueles que se utilizam dos seus direitos
com o nico objetivo de prejudicar terceiros.
2
Com o recrudescimento dessa Teoria, passou a haver a sua positivao em
legislaes esparsas, at que foi prevista expressamente no art. 187 do Cdigo Civil de
2002. Dada a sua importncia, mereceu tratamento especfico pelo legislador, separando
o abuso de direito do ato ilcito em sentido estrito.
A par de tudo isso, o presente trabalho tem como objetivo precpuo o estudo da
Teoria do Abuso de Direito, abordando-se sua evoluo e contextualizao, os requisitos
para sua caracterizao, a sua relao com a boa-f objetiva e a sua aplicao aos
contratos de direito privado.
2 O NOVO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL E A TEORIA DO ABUSO DE
DIREITO: EVOLUO
O Estado de Direito e o movimento constitucionalista do sc. XVIII so resultado do
descontentamento popular, pois o povo no suportava mais o modelo estamental e
aristocrata, que obstaculizava, sobretudo, os interesses da burguesia emergente. Com
efeito, o excesso de poderes outorgados ao governo absolutista confrontava-se com o
novo modelo de sociedade que se almejava.
Em razo disso, surge a necessidade de se criar uma nova forma de governo,
consubstanciada e legitimada pela participao popular e que impusesse limites ao
governante. Assim, comeam a surgir as repblicas, caracterizadas pela eletividade,
temporariedade do mandato e responsabilidade do governante, em que o chefe do
governo e do Estado exercem o poder em nome do povo, que o seu titular.
H, paulatinamente, a adoo do modelo tripartite de Montesquieu, que propugna
pela separao das trs funes bsicas do Estado em trs rgos diferentes e
independentes entre si, quais sejam, Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder
Judicirio. Nesse modelo, h apenas um controle externo de legalidade de um sobre o
outro (sistema de freios e contrapesos).
Assim nasce o movimento constitucionalista, que vislumbra a necessidade de se
firmar, dentro de uma constituio escrita, as decises polticas fundamentais de um
Estado, tais como a forma de governo, as liberdades pblicas, os direitos fundamentais
do cidado, a forma e a estrutura do Estado, a organizao da administrao etc.
Emerge, dentro desse modelo, uma corrente positivista,1 que, no intuito de limitar
o poder dos governantes e garantir as liberdades pblicas, propugna pela positivao de
todas as situaes que podem ocorrer no mundo dos fatos.2 Parte da premissa de que
no pode haver lacunas na lei e que, se excepcionalmente existirem, devem ser
preenchidas pelo intrprete por frmulas que previamente determina (analogia,
costumes e princpios gerais do direito).3
Dessa forma, tentava-se garantir que a vida em sociedade no teria a intromisso
arbitrria do Estado, uma vez que este estaria balizado pela lei. Portanto, o positivismo
foi de extrema relevncia para o combate dos abusos que poderiam ser cometidos pelo
soberano, pois era a forma de o parlamento limitar os seus poderes.
Com a rpida evoluo tecnolgica e social, contudo, cada vez mais surgem
situaes fticas novas, que desafiam solues jurdicas inditas, no previstas em lei.
Ou seja, o processo legislativo no consegue acompanhar as transformaes sociais,
criando grandes vcuos legislativos. Se no bastasse, a aplicao rigorosa da lei, sem
considerar as peculiaridades do caso especfico, poderia gerar injustias ainda maiores
que a ausncia da garantia de um direito.
1 Hans Kelsen um dos maiores cones dessa doutrina que propugna pelo positivismo jurdico, como se observa na sua obra Teoria Pura do
Direito (Teoria pura do direito. Trad. Joo Baptista Machado. 6. ed. So Paulo : Martins Fontes, 1998).
2 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: lies de filosofia do direito. Trad. Mrcio Pugliesi et. al. So Paulo : cone, 1995, p. 26), o positivismo jurdico aquela doutrina segundo a qual no existe outro direito seno o positivo.
3 O art. 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil (Decreto-Lei n. 4.657/1942) assim prev: Quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpios gerais de direito.
3
Calcado no brocardo de que tudo o que no proibido, permitido, o sistema jurdico permite que particulares pratiquem atos emulativos (aemulatio, do direito
romano), que se constituem naqueles atos que, embora sem vedao expressa pelas
leis, tem o nico escopo de causar prejuzo a terceiros, sem que haja qualquer interesse
legtimo para o titular do direito.
Se, antes, o que gerava injustia era o abuso pelo poder do Estado na vida das
pessoas, com o positivismo jurdico exacerbado, o que passou a preocupar esse novo
modelo hermtico, que tem a pretenso falaciosa de prever todas as situaes fticas.
Com efeito, o modelo oitocentista d ensejo a abusos no exerccio do direito subjetivo
pelos particulares, que so encarados de forma absoluta pelo modelo individualista
imposto pela classe burguesa.
O Estado Liberal, entretanto, no atendia aos interesses do proletariado, classe
popular mais densa. Ento, o povo passa a exigir prestaes positivas do Estado, pois a
mo invisvel do mercado, cerne do liberalismo, gerava abusos pela classe burguesa em relao ao proletariado.
Em contraposio a esse modelo, o Welfare State (Estado do Bem Estar Social)
ergue suas bases, com uma viso socializadora dos direitos. Preconiza que os direitos
subjetivos devem ser exercidos em benefcio no s do indivduo, seno de toda a
sociedade, no af de proteger as minorias, os hipossuficientes. Com supedneo nesses
ideais, torna-se necessrio o combate aos abusos gerados pelo modelo individualista,
que concebe o direito subjetivo como um direito absoluto.
Com a Constituio Federal de 1988, qualificada como Constituio Cidad, que
consagra o Estado do Bem Estar Social, os direitos subjetivos e a propriedade ganham
esse enfoque socializante. So positivados, como valores fundamentais do Brasil, a
cidadania (art. 1, inc. II, da CF), a dignidade da pessoa humana (art. 1, inc. III, da
CF),4 a solidariedade social, a igualdade (art. 5, caput, CF), a funo social da
propriedade (art. 5, inc. XXIII, e art. 170, inc. III, da CF), dentre outros.
Observa-se, sob um vis constitucional, a valorizao do indivduo, o que reflete no
direito privado. Assim, o centro de proteo passa do patrimnio para o indivduo. A
propriedade, como objeto de direitos, no pode ser exercida de forma absoluta, devendo,
antes de tudo, respeitar os direitos individuais dos outros cidados.
Com isso, h a publicizao do direito civil,5 percebendo-se a reduo da autonomia
privada,6 na medida em que o Estado passa a intervir cada vez mais nas relaes entre
particulares, a fim de evitar abusos e proteger a parte mais fraca na relao jurdica.
Ocorre o fenmeno que se convencionou chamar de dirigismo contratual.
Com efeito, os princpios constitucionais determinam a relativizao dos contratos,
pois os particulares no podem mais dispor as clusulas livremente, devendo obedecer
igualdade, eticidade, socialidade e funo social.
A funo social dos contratos ganha matiz constitucional, j que a Carta Magna
determina que o direito de propriedade deve ser exercido de acordo com a sua funo
4 Conforme Jaqueline Hamester Dick (A dignidade humana como fundamento da interpretao contratual. In: GORCZESKI, Clovis; REIS,
Jorge Renato dos. Constitucionalismo contemporneo: direitos fundamentais em debate. Porto Alegre : Norton, 2005, p. 221), o princpio da dignidade da pessoa humana acabou por trazer uma nova roupagem ao sentido da prpria lei. O contrato, antes limitado
vontade das partes e a pouqussimos regramentos limitadores desta vontade, passam a estar subordinados aos limites da boa-f, da funo
social e do equilbrio contratual ou justia contratual.
5 A publicizao, que no se confunde com constitucionalizao, compreende o processo de crescente interveno estatal, especialmente no mbito legislativo, caracterstica do Estado Social do sculo XX. Tem-se a reduo do espao de autonomia privada, para a garantia da
tutela jurdica dos mais fracos (LBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalizao do direito civil. In: FIZA, Csar; S, Maria de Ftima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Org.). Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 199).
6 A doutrina moderna prefere chamar Princpio da Autonomia Privada, ao invs de Autonomia da Vontade, pelos seguintes motivos: 1) a
autonomia da pessoa e no da vontade; 2) a insero de novos elementos na formao dos contratos, como o dirigismo contratual pela
imposio da lei e do Estado, os contratos de adeso, a prevalncia da vontade da parte economicamente mais forte, o dirigismo contratual, a imposio de regras de conduta (consumismo) pela sociedade etc.
4
social (art. 5, inc. XIII, e art. 170, inc. III, CF) e o contrato uma relao de cunho
patrimonial por natureza.7
No mbito infraconstitucional, as regras arcaicas do Cdigo Civil de 1916,
elaboradas para uma sociedade tradicionalista, agrria e sob os padres ticos do sculo
XIX (pois o anteprojeto dessa poca), permitiam que juzes conservadores e legalistas
encontrassem supedneo para deixar de aplicar os novos princpios ticos e socializantes
que emanavam da nova ordem constitucional. Enquanto o Estado e a sociedade
mudaram, o Cdigo Civil (de 1916) continuou ideologicamente ancorado no Estado
Liberal, persistindo na hegemonia ultrapassada dos valores patrimoniais absolutos e do
individualismo jurdico.
Era preciso, com efeito, dentro de uma nova codificao de direito privado, conciliar
os direitos subjetivos do indivduo com os interesses superiores da sociedade, pois os
direitos subjetivos8 no constituem um fim em si mesmos, nem so instrumentos de
gozo ou de satisfao de objetivos inferiores e mesquinhos. Eles tm uma funo
eminentemente social. O exerccio anormal, a falta de interesse srio e legtimo, a desnaturao da finalidade social ou econmica do direto, o seu exerccio antifuncional, a
confiana legtima enganada, tudo isso conflui para o mesmo esturio objetivista,
reduzindo-se as divergncias aparentes a um simples verbalismo.9
Com isso, emerge a necessidade de se introduzir no direito civil conceitos ticos,
valorativos, humansticos. o que foi preconizado por Miguel Reale, na Teoria
Tridimencionalista do Direito, segundo o qual direito fato, valor e norma.10
Ou seja, o
direito no se restringe ao conceito matemtico do positivismo lgico de Pontes de
Miranda. Devem ser agregados elementos ticos e valorativos ao direito, a partir da
introduo nos textos legislativos de clusulas gerais,11
a serem preenchidas caso a caso
pelo intrprete.
7 Quando a Constituio Federal prev a funo social da propriedade, no est apenas se referindo ao termo propriedade no seu sentido
leigo, como um bem imvel urbano ou rural. Certamente, o sentido da palavra propriedade o de liame jurdico entre um bem - mvel ou imvel, material ou imaterial - e o seu titular, isto , a relao de propriedade entre uma pessoa e o bem, utilizando-se o termo no seu
sentido tcnico-jurdico. No obstante tal interpretao gramatical j seja suficiente para garantir ao termo propriedade o seu sentido
amplo, imperioso lembrar que a hermenutica constitucional determina que aos direitos fundamentais seja sempre conferida
interpretao ampliativa jamais restritiva , de modo que o art. 5, inc. XXIII, da Lei Maior impe que todos os direitos e no somente o bem imvel sejam exercidos pelos seus titulares de modo a atender sua funo social. Vale dizer, toda a relao jurdica de propriedade entre o direito e o seu titular deve ser exercida obedecendo sua finalidade social. Como os contratos so negcios jurdicos
bilaterais tendentes a criar, modificar, transferir ou extinguir a titularidade de direitos, isto , veiculam a relao de propriedade que existe entre a pessoa e um bem, o direito fundamental da funo social da propriedade impe que os contratos tambm devam atender sua
funo social. Dessa forma, conclui-se que a funo social dos contratos tem origem e fundamento no princpio da funo social da
propriedade. Por isso, no direito brasileiro, o princpio da funo social dos contratos tem supedneo constitucional, alm, claro, da previso legal do art. 421 do Cdigo Civil.
8 O direito subjetivo , segundo Chiovenda (Instituies de Direito Processual Civil. v. 1. Trad. Paolo Capitanio. 3. ed. Campinas, SP :
Bookseller, 2002. p. 17) a expectativa de um bem da vida garantido pela vontade da lei. O autor classifica os direitos subjetivos em: 1) direitos a uma prestao, definindo-os como direitos tendentes a um bem da vida a conseguir-se, antes de tudo, mediante a prestao positiva ou negativa de outros; e 2) direitos potestativos, que so, segundo o doutrinador, direitos tendentes modificao do estado jurdico existente.
9 MA RTINS, Plnio Lacerda. O abuso nas relaes de consumo e o princpio da boa-f. Rio de Janeiro : Forense, 2002. p. 37
10 O jurista ensina que A anlise fenomenolgica da experincia jurdica, confirmada pelos dados histricos sucintamente lembrados, demonstra que a estrutura do Direito tridimencional, visto como elemento normativo, que disciplina os comportamentos individuais e
coletivos, pressupe sempre uma dada situao de fato, referida a valores determinados (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 15. ed. So Paulo : Saraiva, 2003. p. 511).
11 As normas que contm clusulas gerais possuem especial abstrao e vagueza, tornando mais complexa a subsuno do direito ao caso
concreto. Elas remetem o intrprete a instncias valorativas extrajurdicas, na anlise das regras sociais. Exigem que o juiz tenha uma atividade bastante ativa na formulao da norma do caso concreto. Diferentemente, os conceitos jurdicos indeterminados so aqueles que
aludem a valores ou a fatos, de modo que a atividade interpretativa menos complexa comparativamente s clusulas gerais, pois basta
que o juiz faa uma simples anlise, dizendo no caso concreto o que significam tais conceitos. Judith Martins-Costa (A boa-f no direito privado: sistema e tpica no processo obrigacional. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 327) diferencia as clusulas gerais dos
conceitos jurdicos indeterminados, ensinando que inobstante conter a clusula geral, em regra, termos indeterminados, tais como os conceitos de que ora se trata (alguns destes conceitos indeterminados podendo indicar tambm princpios), a coincidncia no perfeita, pois a clusula geral exige que o juiz concorra ativamente para a formulao da norma. Enquanto nos conceitos indeterminados o juiz se
limita a reportar ao fato concreto o elemento (vago) indicado na fattispecie (devendo, pois, individuar os confins da hiptese
abstratamente posta, cujos efeitos j foram predeterminados legislativamente), na clusula geral a operao intelectiva do juiz mais complexa. Este dever, alm de averiguar a possibilidade de subsuno de uma srie de casos-limite na fattispecie, averiguar a exata
5
O Cdigo Civil de 2002, influenciado pela doutrina de Miguel Reale, coordenador do
Anteprojeto, impregnado com tais clusulas gerais. Para tal, utiliza-se de tcnica de
linguagem peculiar, empregando-se signos que garantem um sistema aberto, que evolui
de acordo com os padres culturais e ticos da sociedade. Nesse novo sistema, os
operadores do direito tm um papel ativo na determinao do sentido das normas
jurdicas, havendo uma construo do direito que pode sofrer mutao de acordo com o
momento histrico e a comunidade em que aplicado. Como refere Gerson Luiz Carlos
Branco, A grande modificao na linguagem do novo Cdigo Civil foi a sua projeo para o futuro, que pode ser vista pela edio de normas abertas, clusulas gerais e conceitos
jurdicos indeterminados localizados estrategicamente.12
Com efeito, se um cdigo criado para ser aplicado durante um longo tempo,
precisa dessa tcnica de linguagem, pois assim permitir que o hermeneuta interprete e
aplique a norma de acordo com os valores do momento histrico em que instado a
faz-lo. Num modelo hermtico, como o oitocentista, seria rapidamente superado diante
da constante evoluo cultural por que passa a sociedade.
So positivados, assim, no Cdigo Civil de 2002, as teorias da Boa-f Objetiva (art.
422), da Funo Social dos Direitos (art. 421, p. ex.), da Impreviso (art. 317), da Leso
Enorme (art. 478), da Leso Subjetiva (art. 157), do Abuso do Direito (art. 187), dentre
outras clusulas gerais, que garantem eticidade, socialidade, operabilidade e mobilidade
ao sistema jurdico.
A Teoria do Abuso de Direito destaca-se dentro da concepo de relativizao dos
direitos, em que se limita o livre arbtrio do indivduo em relao ao exerccio dos seus
direitos. Os direitos subjetivos deixam de ter carter absoluto, devendo ser exercidos de
forma a no prejudicar ilegitimamente as outras pessoas, de acordo com a sua finalidade
econmica e social, a boa-f e os bons costumes.
O leading case da Teoria do Abuso de Direito ocorre em 1912, quando o Tribunal de
Apelao de Amiens, em acrdo de 2 de novembro de 1912, deparou com um caso em
que o proprietrio de um imvel, no exerccio dos direitos inerentes propriedade,
levanta duas construes de madeira, em cima das quais coloca quatro lanas de ferro,
com propsito de impedir ou dificultar a subida de bales dirigveis da propriedade
vizinha, de Clement-Bayard. Com isso, tinha a finalidade de que Clement-Bayard
adquirisse a sua propriedade por um bom preo. No caso, embora considerando que
tinha o direito de propriedade, entendeu o Tribunal de Apelao de Amiens que tal direito
subjetivo no absoluto, e que no havia interesse legtimo que o autorizasse a utilizar
sua propriedade com o nico propsito especulativo ou de prejudicar o seu vizinho.13
A partir de ento embora a sua origem histrica seja bem mais remota , comea a ganhar fora a Teoria do Abuso do Direito, que, em sntese, visa a corrigir as distores
causadas por aquele que, no exerccio de um direito subjetivo ou de uma faculdade,
extrapola os limites estabelecidos pela finalidade social do direito, pela boa-f ou pelos
bons costumes.
Para definir o Abuso de Direito surgem duas principais teorias: a Teoria Subjetiva e
a Teoria Objetiva.14
A Teoria Subjetiva exige o elemento culpa para caracterizar o abuso de direito.
Outros defensores dessa Teoria defendem que no basta somente a culpa, sendo
necessrio, ainda, que haja uma finalidade especfica de prejudicar terceiros com o
exerccio de um direito subjetivo. Assim, em sntese, pode-se dizer que a Teoria
individuao das mutveis regras sociais s quais o envia a metanorma jurdica.
12 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O culturalismo de Miguel Reale e sua expresso no novo Cdigo Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith;
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes tericas do novo Cdigo Civil brasileiro. So Paulo : Saraiva, 2002. p. 24.
13 MARTINS, Plnio Lacerda. O abuso nas relaes de consumo e o princpio da boa-f. Rio de Janeiro : Forense, 2002. p. 36.
14 Essa classificao utilizada pela doutrina que trata do tema, tambm sendo seguida por Pedro Baptista Martins (O abuso do direito e o ato ilcito. Rio de Janeiro : Forense, 2002. p. 123).
6
Subjetiva preconiza que o abuso de direito precisa dos seguintes elementos: a) exerccio
de um direito subjetivo; b) que resulte, desse exerccio, prejuzo para um terceiro; c) que
haja a finalidade especfica de causar prejuzo ao terceiro; d) que no haja interesse
legtimo do titular do direito em exerc-lo de forma a prejudicar terceiro.15
Com a evoluo da Teoria do Abuso de Direito, passou-se a entender que ocorria
abuso de direito mesmo quando no presente o objetivo emulativo, bastando que o
titular do direito excedesse a finalidade social para a qual existe. Josserand16
introduz a
idia de culpa social, que difere da teoria clssica de culpa, preconizando que todo direito
tem uma finalidade social e, caso o titular do direito a exceda, haver abuso de direito.
Surge, ento, uma Teoria Objetiva, que preconiza que haver abuso de direito
simplesmente quando, no exerccio de um direito, excede-se a sua finalidade social, a
boa-f ou os bons costumes, ou seja, quando exercido fora da normalidade. Dessa
forma, observa-se que prescinde do elemento culpa para caracterizar o abuso do direito.
O Cdigo Civil de 1916 no previa expressamente a Teoria do Abuso do Direito.
Contudo, parte da doutrina, com esforo exegtico, entendia que se extraa do art. 160,
inc. I, segunda parte, o fundamento legal para o acolhimento dessa Teoria:
Art. 160. No constituem atos ilcitos:
I os praticados em legtima defesa ou no exerccio regular de um direito.
O argumento da doutrina era de que, se no constitui ato ilcito aquele que pratica
o ato no exerccio regular de um direito, ato ilcito quando o exerccio do direito
irregular, abusivo, anormal.
Outros doutrinadores, como Slvio Rodrigues17
, no entanto, entendiam que a Teoria
do Abuso de Direito encontrava respaldo legal no art. 5 da Lei de Introduo ao Cdigo
Civil, que dispe que Na aplicao da lei, o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e s exigncias do bem comum.
A par dessas disposies genricas, em que se pretendia legalmente prever a
Teoria do Abuso do direito, em disciplinamentos especficos o legislador adotou o esprito
da Teoria, como no art. 554 do Cdigo Civil de 1916, que previa que o proprietrio, ou o inquilino de um prdio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha
possa prejudicar a segurana, o sossego e a sade dos que o habitam.
Na Lei n. 8.884/94 (Lei Antitruste), tambm se adotou a Teoria no seu art. 18,
que prev a possibilidade de desconsiderao da personalidade jurdica da empresa
responsvel pela infrao ordem econmica com fundamento no abuso de direito.
O direito civil, contudo, carecia da positivao de uma norma de carter geral,
aplicvel a todos os casos de abuso de direito dentro da rbita civil.
3 A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO NO CDIGO CIVIL DE 2002
O Cdigo Civil de 2002 elidiu qualquer dvida a respeito da adoo da Teoria no
ordenamento jurdico brasileiro, prevendo expressamente no art. 187 que Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f e pelos bons costumes.
A sua redao bastante semelhante que consta no art. 334 do Cdigo Civil de
Portugal, o qual prev que ilegtimo o exerccio de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-f, pelos bons costumes ou pelo fim social
ou econmico desse direito.18
15 Idem. Ibidem. p. 123/124.
16 Culpa e Risco. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 214.
17 Direito civil: parte geral. v. 1. 30. ed. So Paulo : Saraiva, 2000. p. 314.
18 CORDEIRO, 1991 (apud MARTINS, Plnio Lacerda. O abuso nas relaes de consumo e o princpio da boa-f. Rio de Janeiro :
7
Observa-se que houve a adoo da Teoria Tridimensionalista, de Miguel Reale19
,
pois se acrescentam insofismavelmente elementos valorativos ao direito, de modo que
no se pode mais compreender o direito como um sistema hermtico, seno como um
sistema aberto, em que a anlise da ocorrncia do abuso do direito no caso concreto
passa por uma aferio axiolgica, devendo o hermeneuta observar se, ao exercer o
direito, o seu titular excedeu os fins sociais e econmicos do bem, a boa-f ou os bons
costumes, clusulas gerais que dependem de valorao.
Nesse prisma, denota-se o estreito liame entre a Teoria do Abuso do Direito e as
teorias da boa-f, da socialidade e da eticidade, introduzidas por Miguel Reale no Cdigo
Civil de 2002.
De outro lado, se antes havia discusso20
acerca da natureza jurdica do abuso de
direito ato ilcito ou direito autnomo , agora est expresso no Cdigo Civil que se trata de ato ilcito (em sentido amplo, como se demonstrar a seguir).
A doutrina, no entanto, continua se digladiando em torno do tema. Segundo Slvio
Venosa, No abuso de direito, pois, sob a mscara de ato legtimo, esconde-se uma ilegalidade. Trata-se de ato jurdico aparentemente lcito, mas que, levado a efeito sem a
devida regularidade, ocasiona resultado tido como ilcito.21
De outro lado, Flvio Tartuce
entende que o abuso de direito seria um ato lcito pelo contedo, ilcito pelas conseqncias, tendo natureza jurdica mista entre o ato jurdico e o ato ilcito ,
situando-se no mundo dos fatos jurdicos em sentido amplo.22
Helosa Carpena faz a
diferenciao entre abuso de direito e ato ilcito, mas preconiza que ambos esto no
plano da antijuridicidade.23
Com efeito, o ato ilcito no sentido clssico do instituto no se confunde com o instituto do abuso do direito. Contudo, ambos esto no plano da antijuridicidade, ou seja,
da ilicitude, pois contrariam o direito, de forma direta ou indireta. Ao mesmo tempo em
que no se podem negar as suas assimetrias, tambm imperioso reconhecer que
existem diversos pontos incomuns em relao aos institutos, sobretudo quanto aos seus
efeitos.
Assim, por questes didticas, prope-se a seguinte classificao: ato ilcito em
sentido amplo (lato sensu), como gnero pois ambos os institutos esto no plano da ilicitude; e, como suas espcies, o ato ilcito em sentido estrito (stricto sensu) e o abuso
de direito. Com efeito, o abuso de direito contrrio ao ordenamento jurdico, podendo-
se afirmar que um ilcito em sentido amplo; entretanto, o abuso de direito no afronta
a lei diretamente, como certos tipos de ilcitos (e, por isso, estes devem ser chamados de
atos ilcitos stricto sensu), seno de forma indireta, mediata, j que a pessoa possui o
direito subjetivo, mas o exerce aviltando a sua finalidade econmica e social, a boa-f ou
os bons costumes.
No ato ilcito em sentido estrito, h uma ao ou omisso culposa (culpa lato
sensu), que contraria uma norma seja por fazer o que ela probe, ou por omitir-se em
Forense, 2002. p. 34).
19 Filosofia do direito. 15. ed. So Paulo : Saraiva, 2003. p. 511.
20 Leedsnia de Albuquerque (O abuso do direito no processo de conhecimento. So Paulo : Ltr , 2002. p. 69), em obra publicada antes da entrada em vigor do Cdigo Civil de 2002, fazia crtica veemente queles que entendiam que abuso de direito era ato ilcito.
21 VENOSA, Slvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. So Paulo : Atlas, 2003. p. 604.
22 A funo social dos contratos: do Cdigo de Defesa do Consumidor ao novo Cdigo Civil. So Paulo : Mtodo, 2004. p. 186.
23 O que diferencia as duas espcies de atos a natureza da violao a que eles se referem. No ato ilcito, o sujeito viola diretamente o comando legal, pressupondo-se ento que este contenha previso expressa daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age no
exerccio de seu direito, todavia, h uma violao dos valores que justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento.
Diz-se, portanto, que no primeiro, h inobservncia de limites lgico-formais, e, no segundo, axiolgico-formais. Em ambos, o agente se encontra no plano da antijuridicidade: no ilcito, esta resulta da violao da forma, no abuso, do sentido valorativo. Em sntese, o ato
abusivo est situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilcito no se confunde, tratando-se de categoria autnoma da antijuridicidade. (O abuso do direito no Cdigo de 2002: relativizao de direitos na tica civil constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). A parte geral do novo cdigo civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro : Renovar, 2003. p. 381)
8
relao conduta positiva que ela determina , um dano e um nexo de causalidade. O agente, portanto, viola formalmente o contedo da norma, prescindindo de maior esforo
valorativo.
No abuso de direito, contraria-se a finalidade social ou econmica de um instituto, a
boa-f ou os bons costumes, necessitando-se aferir, no caso concreto, se tais valores
foram violados, isto , o agente age formalmente dentro das prerrogativas do seu direito,
mas axiologicamente ultrapassa os valores e as finalidades desse mesmo direito. Exerce
o seu direito subjetivo dentro dos limites objetivos, mas viola os limites impostos pelos
princpios gerais do direito, pela boa-f ou por princpios de ordem moral.
4 A ADOO DA TEORIA DO ABUSO DE DIREITO COMO CLUSULA GERAL:
DIREITO E LINGUAGEM
O legislador pode utilizar, na elaborao das leis, diferentes modelos de linguagem,
mais concretos ou mais abstratos, o que reflete diretamente no grau de vinculao do
juiz ao arqutipo legal.
De fato, os modelos lingsticos abstratos so capazes de atingir uma maior
quantidade de casos, porm com menor intensidade vinculativa ao intrprete, exigindo
maior esforo exegtico para sua aplicao.
Os modelos lingsticos concretos, ao revs, por serem casustas, permitem a sua
aplicao a menor quantidade de fatos, mas tm mais fora vinculativa ao intrprete.
Para sua aplicao, no necessrio grande esforo hermenutico, j que o seu grau de
concretude permite fcil subsuno do fato norma.24
De outro lado, caso o hermeneuta
pretenda afastar a incidncia de uma norma que adote este modelo, no ter de lanar
mais fundamentos do que se estivesse diante de uma norma calcada em maior
abstrao.
As normas que compreendem em seu texto clusulas gerais possuem,
insofismavelmente, maior grau de abstrao, aplicando-se a um maior nmero de casos.
Assim, propiciam ao juiz mais liberdade para criar a norma do caso concreto. No se
pense, com isso, que o juiz no tem limites para a interpretao da lei, os quais so
traados pelos critrios interpretativos, geralmente ditados pela doutrina: interpretao
gramatical, histrica, sistemtica, teleolgica, interpretao conforme a Constituio.
Tais regras de hermenutica determinam uma maior vinculao do juiz lei.25
As clusulas gerais, em razo da vagueza que seus termos apresentam, geralmente
impem que o intrprete busque o seu sentido fora do direito positivo, nas regras sociais.
No entanto, isso no conduz o juiz ao livre arbtrio, pois a doutrina e a jurisprudncia,
diante da anlise de casos concretos, tm a importante funo de traar os contornos de
tais clusulas. Assim, mesmo diante da abstrao da clusula geral, a interpretao da
doutrina e da jurisprudncia culmina tambm por vincular o juiz, embora com menor
intensidade que um dispositivo legal que trata especificamente de um determinado fato.
24 A esse respeito, irreparvel a lio de Fritjof Haft: Tem-se pura e simplesmente a escolha entre a utilizao de modelos lingusticos mais
concretos ou mais abstractos, isto , pode optar-se, por exemplo, por dizer livro ou coisa. Os modelos lingusticos abstractos concentram uma grande quantidade de realidade (tm uma grande extenso conceptual), mas so relativamente vazios do ponto de vista do contedo (a sua intensidade fraca). Com os modelos lingusticos concretos passa-se exactamente o contrrio. Se se almejar tanto uma
grande extenso como uma forte intensidade, est-se perante um dilema. A sada a que constantemente se recorre consiste na associao
de clusulas gearis a exemplos. (In: KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (Org.). Introduo filosofia do direito e teoria do direito contemporneas. Trad. Marcol Keel, Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. p. 309)
25 Segundo Hassemer (In: KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (Org.). Introduo filosofia do direito e teoria do direito
contemporneas. Trad. Marcol Keel, Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. p. 294-297), Com o propsito de vincular a actuao decisria do juiz a regras, que, mais do que a observao da letra da lei, prescrevam tambm a forma
de lidar com a prpria lei, a metodologia jurdica desenvolveu os chamados mtodos ou cnones de interpretao: a vinculao ao
sentido literal da norma legal (gramatical), ao contexto de significado dos preceitos legais pertinentes (sistemtica), s finalidades da regulamentao prosseguido pelo legislador histrico com a norma em questo (histrica), s finalidades da regulamentao, tal como
ele se exprime, hoje, objectivamente, na norma em questo (teleolgica) e s opes fundamentais quanto aos valores contidos na
Constituio (interpretao conforme Constituio). Um tratamento da lei assim guiado por regras garante que, possivelmente, as hipteses de escolha do juiz diminuam e que, com isso, seja reforada a sua vinculao lei.
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Vale dizer, para que se afaste da interpretao ditada pela doutrina e jurisprudncia, tem
de se utilizar um maior esforo argumentativo.26
Com a adoo de clusulas gerais pelo Cdigo Civil de 2002, como a Boa-F
Objetiva, o juiz no pode se olvidar, em sua deciso, da incidncia das normas que a
contm, impregnadas pelos valores eticidade e socialidade. Isto , no se admite a
aplicao de determinada norma isoladamente, seno a sua incidncia com base nos
valores que foram introduzidos no Cdigo Civil pelos novos princpios, clusulas gerais e
conceitos jurdicos indeterminados. Logo, mesmo que exista uma norma que garanta
determinado direito, o juiz no poder aplic-la para dar guarida a condutas malvolas
do seu titular, que extrapolem a finalidade social, a boa-f e os bons costumes. esse o
fundamento da Teoria do Abuso do Direito.27
Entretanto, no se pode aplicar essa Teoria indiscriminadamente a todos os casos
em que haja excesso no exerccio de um direito, pois possui requisitos prprios que
devero ser sempre analisados, sob pena de desvirtuamento do instituto.
5 DOS REQUISITOS PARA A CARACTERIZAO DO ABUSO DE DIREITO
Para a ocorrncia do abuso de direito, nos termos do art. 187 do Cdigo Civil,
imprescindvel que a pessoa esteja no exerccio de um direito, mas que este uso seja
anormal, por no atender finalidade econmica e social do direito, boa-f ou aos bons
costumes, causando um dano a outrem.
Portanto, so requisitos para a caracterizao do abuso de direito: 1) o exerccio de
um direito; 2) que tal exerccio ofenda a finalidade econmica e social, a boa-f ou os
bons costumes; 3) que haja um dano a outrem; 4) que haja nexo causal entre o dano e
o exerccio anormal do direito.
Como se observa, o art. 187 do Cdigo Civil no exige como requisito, que tenha o
sujeito inteno de prejudicar terceiro ou causar dano. Dessa sorte, resta insofismvel
que o direito brasileiro adotou a Teoria Objetiva, que prescinde do elemento subjetivo
culpa ou da finalidade de causar prejuzo para que ocorra o abuso do direito e as
conseqncias que dele advm.28
Assim, para caracterizao do abuso do direito, so
necessrios os seguintes requisitos: exerccio de um direito, violao da sua finalidade
econmica ou social, da boa-f ou dos bons costumes e dano.
5.1 Exerccio de um Direito
Como primeiro requisito para a caracterizao do abuso de direito, consta o
exerccio de um direito. Assim, se o dano se originar de um ato prejudicial que no se
consubstancia em um direito, no haver abuso de direito, pois no h como abusar
daquilo que no se tem.
Por exemplo, se um dos contratantes engana o outro sobre determinada
circunstncia essencial do contrato, no est cometendo abuso de direito, pois no tinha
o direito de enganar. Vale dizer, como inexiste o direito de enganar, no h abuso de
direito. O que est presente o dolo, um vcio do consentimento que constitui um ilcito
civil (ato ilcito em sentido estrito), vedado pelo ordenamento jurdico civil e que tem
como conseqncia a anulao do negcio jurdico.
Assim, pode-se dizer que somente haver abuso de direito quando no houver
ilcito civil (em sentido estrito), vale dizer, quando no houver uma ao ou omisso
culposa ou dolosa que cause dano a outrem (art. 186 do Cdigo Civil).
26 Nesse sentido: Ibid., p. 296/297.
27 Alm de conferirem essa abertura ao sistema jurdico, as clusulas gerais tambm lhe garantem mobilidade, pois permitem que a
incidncia da norma ao caso concreto ocorra conforme o momento histrico e o contexto cultural do lugar onde os fatos ocorrem. Dessa
forma, garantem longa vida s normas positivadas.
28 Alis, esse foi o entendimento do Conselho Superior da Justia Federal, no Enunciado 37, ao interpretar o art. 187 do Cdigo Civil: a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critrio objetivo-finalstico.
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Portanto, no abuso de direito, h o exerccio de um direito, embora anormal, e no
a mera violao de um dever jurdico.
5.2 Violao da Finalidade Econmica e Social, da Boa-F e dos Bons Costumes
Embora muitas vezes possa haver violao simultnea de um ou mais desses
preceitos o que comumente acontece , haver casos em que o agente, no exerccio do seu direito, afronta apenas um deles. Portanto, mister analis-los separadamente.
5.2.1 Da Finalidade Econmica e Social
A todo direito corresponde um fundamento ideolgico, vale dizer, uma razo para
existir. Aferi-lo sobre o prisma da finalidade econmica e social, portanto, implica sair do
direito positivo, da dogmtica jurdica, e buscar elementos na filosofia do direito.
Com efeito, a dogmtica jurdica leva em considerao o direito a partir de uma
norma posta, de um axioma, no questionando a ideologia que est por trs do instituto.
Analisar a finalidade econmica e social de um direito, assim, buscar aquilo que
antecede ao prprio direito, vale dizer, o que motivou a sua criao.
Por exemplo, o direito de propriedade sobre determinado bem existe para satisfazer
as necessidades humanas, sendo esta a sua finalidade econmica e social. Logo, se o seu
titular utiliza o direito de propriedade com fins apenas esprios, sem que tenha proveito,
estar abusando do seu direito de propriedade. Assim, quando o proprietrio, no
exerccio dos atributos da propriedade, desrespeita a poltica de defesa do meio
ambiente, tambm age em abuso de direito, porque desrespeita a finalidade social do
direito propriedade.
Nesta hiptese, poder-se-ia questionar se no teria aplicao o princpio da funo
social da propriedade ao invs da Teoria do Abuso de Direito. Observa-se, entretanto,
que, no caso, os institutos no se repelem, seno complementam-se.29
O direito greve um direito social fundamental dos trabalhadores, utilizado como
instrumento de presso para que reivindiquem direitos trabalhistas. No entanto, se
alguns grevistas no deixarem os funcionrios no-grevistas entrar no estabelecimento
da empresa para trabalhar, haver abuso do direito de greve, por se estar desvirtuando
a sua finalidade social.
No tocante s pessoas jurdicas, o art. 50 do Cdigo Civil acolhe a Teoria da
Desconsiderao da Personalidade Jurdica (Disregard of Legal Entity), dispondo que
haver abuso da personalidade jurdica caso haja desvio da finalidade ou confuso
patrimonial. Nesse caso, o abuso de direito resta caracterizado em razo da violao da
finalidade econmica do direito (de constituir uma pessoa jurdica diferente da pessoa
dos scios), que , na empresa, a produo e circulao de bens e servios. Como
29 Assim, caso, no exerccio do direito propriedade, seja violada a sua funo social, estar caracterizado o abuso de direito. Isso faz com
que a Teoria do Abuso de Direito ganhe matiz constitucional. Imprimir um carter social propriedade, abandonando o conceito absolutista e individualista, uma tendncia mundial, em razo do crescimento populacional e empobrecimento das naes, conforme
ensina Slvio Venosa (Direito civil: direitos reais. 3. ed. So Paulo : Atlas, 2003. p. 153/154). A partir do momento que se concebe que as
necessidades humanas so ilimitadas e que os bens so limitados, passa a ser imprescindvel que os bens sejam utilizados adequadamente, de modo a suprir tais necessidades. Atendendo a esses ideais, o art. 5, inc. XXIII, da Constituio Federal prev que a propriedade atender a sua funo social. A prpria Constituio conceitua funo social da propriedade, prevendo no art. 182, 2, que a propriedade urbana atende a sua funo social quando obedece s normas do plano diretor, e, no art. 186, que a funo social da propriedade rural atendida quando h o aproveitamento adequado e racional do solo e dos recursos naturais disponveis, a preservao
do meio ambiente, a obedincia das normas do direito do trabalho e a explorao da propriedade favorea o bem estar do proprietrio e
dos trabalhadores. Em conformidade com as diretrizes constitucionais, o Cdigo Civil tambm previu, no art. 1228, 1, que a propriedade deve ser exercida de acordo com suas finalidades econmicas e sociais. Dessa forma, caso seja desatendida a funo social da propriedade urbana ou rural, estar configurado o abuso de direito, de forma a gerar responsabilizao. Ainda no direito das coisas,
observa-se que o art. 1228, 2, do Cdigo Civil adotou a Teoria Subjetiva do abuso de direito, prevendo que So defesos os atos que no trazem ao proprietrio qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela inteno de prejudicar outrem. Com efeito, trata-se de proibio aos atos emulativos, em que o proprietrio se utiliza da propriedade com o fim de prejudicar outrem sem que tenha qualquer
proveito ou interesse legtimo para si. Exige, portanto, a inteno de causar prejuzo a outrem, requisito de que se prescinde para a caracterizao do abuso de direito previsto no art. 187 do Cdigo Civil.
11
sano ao abuso de direito (abuso da personalidade jurdica), h a responsabilizao
pessoal dos scios.
Dentro do direito contratual, tambm se encontram vrios casos de desvio da
finalidade econmica e social. O contrato tem a finalidade econmica de fazer circular
riquezas, pois um negcio jurdico bilateral que tem por escopo criar, transmitir,
extinguir ou modificar direitos. Logo, se determinada pessoa utiliza o contrato, por
exemplo, como instrumento de opresso contraparte, exigindo desta outras prestaes
esprias sob pena de executar o contrato, estar abusando do direito de ter o contrato
cumprido, o direito de adimplemento, caracterizando, assim, abuso do direito de
contratar.
5.2.2 Da Boa-F
Como adota a Teoria Objetiva do Abuso de Direito, quando o Cdigo Civil, no art.
187, se refere a boa-f, est tratando da boa-f objetiva, relacionada com conduta, e no de boa-f subjetiva, relacionada inteno do agente, j que esta despicienda
para caracterizar o abuso de direito.
Com isso, ganha relevncia a anlise da Teoria da Boa-F Objetiva no Cdigo Civil
de 2002. A boa-f objetiva est intimamente relacionada com o ideal de eticidade, o qual
serviu de princpio orientador para a elaborao de todo o Cdigo Civil.
Judith Martins-Costa30
prope sistematizar os casos de aplicao da boa-f em trs
grandes grupos: funo de otimizao do comportamento contratual, funo de
reequilbrio do contrato e funo de limite do exerccio dos direitos subjetivos. Conforme
a mesma autora, a aplicao da boa-f objetiva no direito civil ocorre em trs grandes
reas de abrangncia: 1) como fonte de integrao da norma; 2) como vetor
interpretativo; 3) pela imposio de um dever geral de conduta.
Havendo lacuna na norma, vale dizer, a no regulao de determinada situao
ftica que merece ser juridicizada, ser imperiosa a sua integrao. Para tal mister, o
operador do direito pode se valer da analogia, dos costumes e dos princpios gerais do
direito, conforme prev o art. 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil (Decreto-Lei n.
44.657/1942). Assim, como a boa-f objetiva um princpio geral do direito pois lealdade, probidade, proteo confiana so deveres que esto na conscincia dos
povos , sequer precisaria estar positivada. Assim, ao se preencher a lacuna da norma, deve-se dar uma soluo tica para o caso concreto, que atenda aos ditames da
lealdade, da honestidade e da probidade.
A boa-f objetiva tambm tem grande importncia como vetor interpretativo, pois,
dentro das interpretaes possveis, deve se buscar aquela que esteja de acordo com a
eticidade.
No tocante conduta, a boa-f objetiva impe, a par dos deveres principais
expressos no contrato, deveres anexos, como lealdade, probidade, eticidade, auxlio no
cumprimento da obrigao, dever de informao, de confiana, dentre outros.
Como determinante do equilbrio contratual, a boa-f objetiva informa que o
equilbrio nos contratos bilaterais e sinalagmticos quebrado com a leso subjetiva ou
pela desproporo entre as prestaes decorrentes de fato imprevisto e imprevisvel.
A leso subjetiva, nos termos do art. 157 do Cdigo Civil, ocorre quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperincia, se obriga a prestao
manifestamente desproporcional ao valor da prestao oposta. A leso ocorre na formao do contrato, desde o seu princpio, em razo de circunstncias subjetivas,
quais sejam, premente necessidade ou inexperincia.
30
A boa-f como modelo (uma aplicao da teoria dos modelos de Miguel Reale). In: MARTINS-
COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes tericas do novo Cdigo Civil brasileiro. So Paulo :
Saraiva, 2002. p. 199.
12
A Teoria da Impreviso foi adotada expressamente no art. 478 do Cdigo Civil, ao
dispor que Nos contratos de execuo continuada ou diferida, se a prestao de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em
virtude de acontecimentos extraordinrios e imprevisveis, poder o devedor pedir a
resoluo do contrato. Exige-se, portanto, alm da onerosidade excessiva, que o acontecimento posterior seja imprevisvel, razo pela qual a maioria da doutrina entende
que o dispositivo no adotou a Teoria da Onerosidade Excessiva, seno a Teoria da
Impreviso.31
O Cdigo de Defesa do Consumidor, por sua vez, adota a Teoria do Equilbrio da
Base do Contrato, ao prever no art. 6, inc. V, que direito bsico do consumidor a modificao das clusulas contratuais que estabeleam prestaes desproporcionais ou
sua reviso em razo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Logo, tratando-se de relao de consumo, no se exige que tais fatos sejam
imprevisveis para que ocorra a reviso do contrato de consumo.
Alm das duas funes acima elencadas, a boa-f objetiva tambm atua como
limite ao exerccio de direitos. a adoo das teorias com origem no direito portugus do venire contra factum proprium non potest, da supressio e da surrectio.
Segundo o venire contra factum proprium, no se pode exercer posio jurdica em
contradio com comportamento exercido anteriormente.
A supressio a limitao ao exerccio de um direito subjetivo que paralisa a
pretenso em razo do decurso de prazo sem exerccio do direito com indcios subjetivos
de que no mais seria exercido e do desequilbrio gerado entre o benefcio do credor e o
prejuzo do devedor. A supressio no se confunde com prescrio, pois, enquanto esta
exige apenas o decurso do prazo legal e tem fundamento na segurana jurdica, aquela
exige que, alm do decurso do tempo, surja a confiana gerada na outra parte pela
inatividade do exerccio de determinado direito, encontrando supedneo, portanto, no
Princpio da Confiana, corolrio da boa-f objetiva.
A surrectio, por sua vez, o nascimento de um direito como efeito, no tempo, da
confiana legitimamente despertada na outra parte por determinada ao ou
comportamento.32
Observa-se, assim, que a boa-f objetiva tem ampla aplicao no direito contratual.
No obstante o art. 422 do Cdigo Civil prescreva apenas que a boa-f objetiva
aplica-se fase contratual, a doutrina pacfica em dizer que tem incidncia tambm na
fase pr e ps-contratual.
Logo, havendo desobedincia boa-f objetiva no exerccio de determinado direito
em tese conferido pelo ordenamento jurdico, poder estar caracterizado o abuso de
direito, tendo como decorrncia a responsabilizao civil do agente.
Nem sempre, entretanto, pela violao da boa-f objetiva, haver abuso de direito.
Primeiro, preciso que o agente tenha o direito; ademais, imprescindvel que a violao da
boa-f cause dano.
5.2.3 Dos Bons Costumes
A exigncia do art. 187 do Cdigo Civil de que, no exerccio de um direito, se
obedea aos bons costumes o ponto culminante na orografia da influncia da moral
sobre o direito. Nesse tocante, h a maior coincidncia entre moral e direito, pois,
31 No entanto, diante da boa-f objetiva imposta pelo art. 422 do Cdigo Civil - que impe lealdade, honestidade, probidade, eticidade,
dever de cooperao na execuo do contrato -, deve-se admitir a adoo da Teoria da Onerosidade Excessiva pela simples quebra do equilbrio do contrato, pois o novo direito civil repudia o odioso enriquecimento de uma parte em detrimento do prejuzo suportado pela
outra.
32 Nesse sentido, Judith Martins-Costa (A boa-f como modelo (uma aplicao da teoria dos modelos de Miguel Reale). In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes tericas do novo Cdigo Civil brasileiro. So Paulo : Saraiva, 2002. p. 218).
13
quando, no exerccio do direito, avilta os bons costumes, haver o abuso de direito, um
no direito e, portanto, um ato ilcito (em sentido amplo).
Bons costumes, portanto, diz respeito moral de uma determinada sociedade. No
se confunde com costumes, que diz respeito ao direito consuetudinrio, ligado idia de
uso reiterado por determinada comunidade acreditando ele ser obrigatrio. A idia de
bons costumes est atrelada s convices morais de uma sociedade.33
No mbito contratual, se o objeto do contrato ofender aos bons costumes, o mesmo
ser ilcito (em sentido estrito) e, por conseguinte, eivado de nulidade. Assim, se um
homem contrata prostituta para prestao de servios de natureza sexual, o objeto
ilcito, pois ofende aos bons costumes. Implica dizer que tal contrato nulo, no gerando
obrigaes jurdicas para as partes, de modo que os fatos no recebem amparo do
direito.
No se pode confundir, assim, o objeto do contrato com as condutas realizadas
pelas partes no exerccio dos direitos que decorrem desse mesmo contrato. Ou seja, a
violao dos bons costumes que caracteriza o abuso de direito deve ser analisada em
relao ao exerccio de direitos que decorrem do contrato, e no em relao ao seu
objeto. Assim, haver abuso de direito quando, por exemplo, ao cobrar o devedor (no
exerccio do direito de exigir que a prestao seja cumprida), o credor pratica atos
ofensivos aos bons costumes, ridicularizando o devedor.
O abuso do direito por violao aos bons costumes tambm pode ocorrer em
quaisquer outros ramos do direito civil. Por exemplo, quando a me impe, como castigo
ao filho, que este fique para o lado de fora de casa nu, ou que v escola vestido com
roupas femininas, a fim de que no torne a mexer nos seus objetos pessoais. A me tem
o direito-dever de educar seus filhos, impondo inclusive castigos, mas estes no podem
ser imoderados ou violar os bons costumes. H, assim, o exerccio irregular de um
direito, um abuso do direito de educar seu filho por afronta aos bons costumes, que,
alis, pode ter como conseqncia a perda do poder familiar, sano prevista no art.
1638, inc. I, do Cdigo Civil.
5.3 Do Dano
Para que ocorra o abuso de direito, imprescindvel que ocorra dano a outrem. Logo,
se o titular do direito excede seus fins sociais, por exemplo, mas no causa dano a
terceiro, no ter havido abuso de direito, para fins jurdicos.34
O abuso de direito
(espcie de ato ilcito em sentido amplo), que gera efeitos jurdicos, portanto, no se
confunde com o excesso, com a extravagncia, pois se isto houver sem que ocorra dano,
no incidir a norma do art. 187 do Cdigo Civil, mas, no mximo, haver mau exerccio
do direito.
De outro lado, mesmo que o prejuzo no tenha sido pessoa determinada, pode
restar caracterizado o abuso de direito quando houver dano coletividade, isto , os
prejudicados podem ser indeterminados, mas o dano tem de ser certo, pois um dano
eventual no constitui supedneo para caracterizar o abuso de direito.
Isso no implica dizer, no entanto, que, no exerccio de um direito, o dano causado
a terceiro caracterize o abuso de direito. Quando, ao exercer normalmente um direito
subjetivo, dentro de suas prerrogativas e da sua finalidade, o sujeito causa dano a
33 Conforme Marcos de Campos Ludwig (Usos e costumes no processo obrigacional: fundamentos e aplicao em face do novo Cdigo
Civil. So Paulo : Revista dos Tribunais, 2005. p. 149-151), imprpria a confuso entre a expresso bons costumes e a noo at aqui estudada de usos e costumes: enquanto estes remetem a um fundamento emprico, ou seja, real constatao da normatividade espontnea, aquela expresso invoca dimenso da moralidade. (...) A fluidez da noo de bons costumes atrela-se intrinsicamente
dificuldade enfrentada pelo juiz ao ter de identificar, num determinado caso, a conscincia social dominante essencialmente produto ideolgico. Aqui no tem maior valia, para o aplicador do direito, o dado emprico, uma vez que no se trata de fazer remisses a usos efetivamente observados por um agrupamento social definido, ou num local especfico: quando se fala em bons costumes, o que est em
jogo todo o complexo de idias e convices morais dominantes numa determinada sociedade.
34 No mesmo sentido: DUARTE, Ronnie Preus. Boa-f, abuso de direito e o novo Cdigo Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais, So Paulo, ano 92, v. 817, p. 50-78, nov. 2003. p. 69.
14
outrem, no h qualquer abuso de direito e, por conseguinte, no surgir dever de
reparao. Assim, imprescindvel, alm do dano, o uso anormal de um direito
subjetivo.
A ttulo de exemplo, se o proprietrio de um imvel locado, pretendendo t-lo de
volta em razo do no-pagamento dos valores locatcios pelo locatrio, prope ao de
despejo contra este, a fim de tirar a famlia que ali reside. Certamente h um dano
enorme para os locatrios com o despejo, mas tal dano decorre do exerccio normal do
direito.
Observa-se, pelos exemplos acima, que a linguagem utilizada na redao do art.
187, dada sua abstrao, permite ampla aplicao a uma infinidade de casos, o que
permite ao juiz a concretizao dos valores e dos princpios introduzidos pelo Cdigo Civil
de 2002, sobretudo da boa-f objetiva.
6 A APLICAO DA TEORIA DO ABUSO DE DIREITO NOS CONTRATOS
O direito contratual, no decorrer da evoluo do direito civil, passou a ter cada vez
mais ingerncia do Estado, que, atravs de normas cogentes, limita a autonomia privada,
a fim de evitar abusos que outrora eram cometidos.
Dentre as mudanas operadas nas relaes negociais, observa-se a utilizao em
larga escala dos contratos de adeso que constituem a maior parcela dos contratos hodiernamente , o aprimoramento das estratgias de marketing, os novos padres sociais e econmicos no modelo neoliberal que impem o consumo de novas utilidades, a
disparidade econmica e de conhecimentos tcnicos entre as partes. Tais fatores
culminam na reduo da liberdade contratual, vale dizer, de as partes avenarem
livremente as clusulas contratuais, pois, na maioria dos casos, no h ampla discusso
na sua elaborao, tendo apenas o oblato a liberdade de contratar ou no contratar.
A partir do reconhecimento de que as partes num contrato geralmente no esto
em condio de igualdade (econmica, tcnica etc.), as legislaes passaram a limitar o
contedo dos contratos, fenmeno que conhecido mundialmente como dirigismo
contratual.
O Cdigo Civil de 2002 no foge a essa tendncia, pois determina que os contratos
devem atender sua funo social (art. 421), probidade e boa-f objetiva (art. 422).
Com isso, introduz novos paradigmas para o direito contratual.
Observa-se que, muitas vezes, sobretudo na seara contratual, h perfeita
interseco da Teoria do Abuso de Direito com a Teoria da Boa-F Objetiva,35
a qual est
relacionada com os deveres anexos de lealdade, proteo da confiana, de informao,
de cooperao para a execuo do contrato etc. Essa integrao das duas Teorias
decorre do fato de que ambas surgem com os mesmos propsitos: evitar abusos pelo
titular de um direito (relativizando-o) e impingir eticidade e elementos valorativos ao
direito.
Diante de tais consideraes, denota-se que o direito contratual um campo frtil
para a aplicao da Teoria do Abuso de Direito.
Como primeiro exemplo, pode-se citar o caso da empresa de industrializao de
tomates que, anualmente, no tempo de plantio, distribua sementes de tomate a
agricultores e, na poca de colheita, comprava tais produtos, mas que, num determinado
ano, depois de distribuir as sementes, no adquiriu os tomates, frustrando a legtima
expectativa dos agricultores. O Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, ao apreciar o
35 Nesse sentido, o Enunciado 25 do Conselho Superior da Justia Federal: o art. 422 do Cdigo Civil na inviabiliza a aplicao, pelo
julgador, do princpio da boa-f nas fases pr e ps-contratual. Com o mesmo entendimento, Flvio Tartuce (A funo social dos contratos: do Cdigo de Defesa do Consumidor ao novo Cdigo Civil. So Paulo : Mtodo, 2004. p. 177). Em razo da debilidade do art.
422, o Projeto 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiza, prev a modificao de tal dispositivo, que passaria a ter a seguinte
redao: Art. 422. Os contratantes so obrigados a guardar, assim nas negociaes preliminares e concluso do contrato, os princpios de probidade e boa-f e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigncias da razo e da eqidade.
15
caso, entendeu que, por violar a boa-f objetiva, a empresa teria que indenizar os
agricultores, ainda que o dano tivesse ocorrido na fase pr-negocial.36
Sabe-se que as negociaes preliminares, como regra, no obrigam as partes
enquanto no houver a aceitao da proposta. No entanto, no caso, houve o abuso do
direito de contratar, pois, embora ainda no tivesse ocorrido a contratao, a conduta da
empresa gerou legtima expectativa em relao aos produtores. Pode-se dizer que esteve
presente a regra do venire contra factum proprium non potest, pois, no tinha a empresa
o direito de cair em contradio por conduta. Se gerou conscientemente expectativa aos
produtores, teria de atend-la.
Da mesma forma, pode se qualificar como abuso do direito a hiptese em que o
proponente, aps gerar uma legtima expectativa para o oblato de que alienar
determinado bem, volta atrs, e afirma que no mais o far, causando prejuzo a este.
As partes, na fase das negociaes preliminares, tm o livre arbtrio de discutirem as
condies do contrato a ser celebrado, sem que haja o surgimento de qualquer obrigao
de contratar, contudo no podem abusar dessa prerrogativa. Assim, pela teoria do abuso
de direito, se uma das partes gerar uma legtima expectativa para a outra parte, poder
responder pelos danos que causou.
O Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul j aplicou a teoria da boa-f objetiva em
caso de instituio bancria que opera cesso a outro banco de um crdito que possui em
relao ao seu cliente, sem comunicar tal contratao a este, sendo que o cessionrio
cadastra o cliente em rgos de proteo ao crdito por essa dvida. No caso, houve
violao da boa-f objetiva, haja vista que desrespeitou dever de lealdade e a confiana
que tinha o cliente, pois, de acordo com o art. 290 do Cdigo Civil, o devedor deve ser
notificado da cesso de crdito. Logo, houve abuso do direito de cobrar, pois deveria
antes ter notificado extrajudicialmente o devedor da operao, a fim de que pagasse o
dbito, ao invs de macular a sua honra inscrevendo-o em cadastro de inadimplentes.
Por conta do abuso de direito, a instituio bancria foi condenada a pagar indenizao
pelos danos morais sofridos pelo cliente.37
No caso de protesto cambial de cheque prescrito tambm h abuso de direito, em
razo da violao da finalidade econmica de tal ttulo de crdito. De fato, quando se
constitui um ttulo de crdito, este, por ter como caractersticas a carturalidade, a
literalidade, a autonomia e a abstrao, desvincula-se do negcio jurdico causal e pode
circular livremente, valendo aquilo que consta no ttulo. Em razo de tais caractersticas,
36 Contrato. Tratativas. Culpa in contrahendo. Responsabilidade civil. Responsabilidade da empresa alimentcia, industrializadora de
tomates, que distribui sementes, no tempo de plantio, e ento manifesta a inteno de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua convenincia, no mais industrializ-lo naquele ano, assim causando o prejuzo do agricultor, que sofre a frustrao da expectativa da
venda da safra, uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocao. Provimento, em parte, do apelo, para reduzir a indenizao
metade da produo, pois uma parte da colheita foi absorvida por empresa congnere, s instncias da r. Voto vencido, julgando improcedente a ao. (BRASIL. Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, Quinta Cmara Cvel. Ao de indenizao Caso dos Tomates. Apelao cvel n 591028295. Relator: Rui Rosado de Aguiar Jr. Porto Alegre, 6 jun. 1991. In: MARTINS-COSTA, 1999, p.
473)
37 APELAO CVEL. NEGCIOS JURDICOS BANCRIOS. AO DE INDENIZAO POR DANOS MORAIS. INSCRIO NOS RGOS DE PROTEO AO CRDITO. CESSO DE CRDITO. DEVER DE BOA-F
OBJETIVA E LEALDADE. Considerando que o contrato de cesso de bens e direitos, firmado quando da incorporao do BCN, pelo Banco Bradesco, previa expressamente, como, alis, impe o art. 290 do Cdigo Civil, que os devedores daquele deveriam ser
previamente notificados da cesso dos crditos para efeito de obrig-los ao pagamento perante a cessionria, e no havendo provas de que essa comunicao tenha sido efetivamente realizada - cujo nus competia ao ru, na forma do inciso II do art. 333 do CPC -, no tinha a
Instituio Financeira o direito de exigir o dbito do demandante e, conseqentemente, de cadastr-lo nos rgos de proteo ao crdito
por essa dvida. Atitude da instituio bancria que ofende a boa-f objetiva esperada na relao negocial, desvelando abuso de direito e fugindo do padro tico de confiana e lealdade exigido na relao de consumo. Responsabilidade civil objetiva da instituio financeira,
cuja condio de prestadora de servios lhe impe dever de zelar pela perfeita qualidade do servio prestado, incluindo neste o dever de
informao, proteo e boa-f objetiva para com o consumidor, consoante se dessume das disposies constantes no art. 14, do Cdigo de
Proteo e Defesa do Consumidor. Dever de indenizar demonstrado. DANO MORAL PURO. PROVA DO PREJUZO. A
inscrio (formal e/ou materialmente) indevida nos rgos de proteo ao crdito gera, por si, o dever de
indenizar, sendo desnecessria prova de efetivo prejuzo. RECURSO PROVIDO. UNNIME. (BRASIL. Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, Dcima Oitava Cmara Cvel. Ao de indenizao por danos morais. Apelao cvel n
70013842661. Capotas CPM e Banco Bradesco S/A. Relator: Pedro Celso Dal Pra. Porto Alegre, 16 mar. 2006. Disponvel em: . Acesso em 30 jun. 2006)
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uma vez vencido e no pago, pode ser levado a protesto. No entanto, uma vez prescrito
o ttulo de crdito, pode subsistir apenas o negcio jurdico causal, de modo que no h
mais instrumento hbil para ser protestado. bvio que o titular de um direito de crdito
tem direito de cobr-lo, mas tentar forar o devedor a adimplir a obrigao pelo protesto
do ttulo abusar desse direito, pois desrespeita a finalidade econmica para a qual o
ttulo de crdito foi criado.38
Outro caso comum de abuso de direito no mbito contratual o dos planos de
sade que estipulam que, em caso de o segurado necessitar de internao hospitalar,
esta somente ocorrer por tempo limitado. Com efeito, as partes tm o direito de
estipular as prestaes que estaro compreendias no plano de sade, mas limitar o
nmero de dias em que haver cobertura dos custos da internao hospitalar afronta a
boa-f objetiva, pois ofende a eticidade. Tambm avilta a finalidade social dos planos de
sade, que prestar assistncia sade do segurado quando este precise. Vale dizer,
determinar a desinternao ou no cobrir os gastos hospitalares depois de decorrido
determinado tempo afronta a prpria finalidade social do plano de sade, que amparar
o segurado quando este necessite de tratamento de sade. Assim, resta caracterizado o
abuso do direito de livremente contratar, em razo da violao da boa-f objetiva e da
finalidade social dos planos de sade.39
Menos comuns so os casos de abuso de direito no direito contratual por violao
dos bons costumes no exerccio de um direito. Pode-se citar como exemplo o caso da
mulher que divulga publicamente na rede mundial de computadores fotos em que seu
amante est nu, dizendo que somente as retirar da Internet quando este cumprir
determinado contrato pactuado entre as partes. Nesse caso, estar caracterizado o abuso
do direito, pela violao aos bons costumes. H o direito de exigir que determinada
prestao vencida seja cumprida, mas no se pode abusar desse direito, utilizando-se de
meios esprios para obter o adimplemento da prestao. Nesse caso, h,
concomitantemente, afronta boa-f objetiva, pois esta impe, alm de outros deveres
anexos de conduta, um dever de proteo de uma parte em relao outra, bem como o
auxlio no cumprimento da prestao.
Dessa forma, quando uma das partes expe a outra ao ridculo no momento em
que vai exigir que esta cumpra sua prestao o que sempre ocorrer quando houver violao dos bons costumes no mbito contratual , h o abuso do direito de exigir o
38 APELAO CVEL. DIREITO PRIVADO NO ESPECIFICADO. AO DECLARATRIA DE CANCELAMENTO DE
APONTE DE CHEQUES. AO CAUTELAR DE SUSTAO DE PROTESTO. EXTINO DA AO PRINCIPAL, SOB O
ARGUMENTO DE QUE NO TERIA FINALIDADE ECONMICA OU JURDICA. INVIABILIDADE. A tutela cautelar exerce apenas a funo de instrumento que assegura a realizao dos direitos subjetivos. Assegura, mas no satisfaz o direito substancial, o que
somente ir ocorrer com a propositura e julgamento final da demanda principal. Hiptese em que se apresenta imprescindvel o
julgamento do mrito da demanda principal, a fim de concretizar o direito assegurado pela via cautelar, consubstanciado no cancelamento em definitivo do protesto. SENTENA DE EXTINO DO PROCESSO. ART. 515, 3 DO CPC. APRECIAO DO MRITO.
TTULOS PRESCRITOS. Estando prescritos os cheques invivel seu protesto, por constituir-se em abuso de direito do credor.
Entendimento pacfico na jurisprudncia desta Corte. Recurso de apelao ao qual se d provimento. Maioria. (BRASIL. Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, Dcima Oitava Cmara Cvel. Ao declaratria de cancelamento de aponte de cheques e Ao cautelar de
sustao de protesto. Apelao cvel n 70008636334. Fabiano Nogueira Mombach e Adelfo Gobbi. Relator: Pedro Celso Dal Pra. Porto Alegre, 23 out. 2004. Disponvel em: .
Acesso em 30 jun. 2006.)
39 Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justia manifestou a sua posio: Plano de sade. Limite temporal da internao. Clusula
abusiva. 1. abusiva a clusula que limita no tempo a internao do segurado, o qual prorroga a sua presena em unidade de tratamento
intensivo ou novamente internado em decorrncia do mesmo fato mdico, fruto de complicaes da doena, coberto pelo plano de
sade. 2. O consumidor no senhor do prazo de sua recuperao, que, como curial, depende de muitos fatores, que nem mesmo os
mdicos so capazes de controlar. Se a enfermidade est coberta pelo seguro, no possvel, sob pena de grave abuso, impor ao
segurado que se retire da unidade de tratamento intensivo, com o risco severo de morte, porque est fora do limite temporal estabelecido em uma determinada clusula. No pode a estipulao contratual ofender o princpio da razoabilidade, e se o faz, comete
abusividade vedada pelo art. 51, IV, do Cdigo de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regra protetiva, expressamente, refere-se a
uma desvantagem exagerada do consumidor e, ainda, a obrigaes incompatveis com a boa-f e a eqidade. 3. Recurso especial conhecido e provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justia, Terceira Turma. Ao cautelar inominada, ao declaratria de nulidade de clusula e ao de cobrana de despesas. Recurso Especial n 158.728-RJ. rica de Castro Nogueira e Mauro Bumaschny. Relator: Carlos Alberto Menezes Direito. Braslia, 16 mar. 1999. Dirio da Justia da Unio, Braslia, DF, 17 mar. 1999, p. 197)
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adimplemento do contrato, por violao boa-f objetiva. Alis, dentro do microssistema
de proteo ao consumidor, h vedao expressa dessa conduta de o fornecedor, ao cobrar um dbito, expor o consumidor ao ridculo , consoante art. 42 e art. 71 do
Cdigo de Defesa do Consumidor.40
7 CRTICAS TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Algumas crticas so apontadas pela doutrina teoria do abuso de direito por
juristas e filsofos de escol. Dentre eles, destacam-se Mazeud, Bartin, Savatier, Ripert e
Duguit.41
No presente trabalho, apenas traam-se as principais, que ainda poderiam, de
alguma forma, ser levantadas no estgio atual de evoluo da teoria do abuso de direito.
Segundo tais juristas, a teoria do abuso de direito, bem como as demais clusulas
gerais, ao dar ao juiz a funo de dizer o que ou no abusivo, concede-lhe um poder
que torna inseguro todo e qualquer direito. Entretanto, como aponta Alvino Lima, A objeo s poderia proceder se fosse possvel a existncia de leis perfeitas e a ausncia
de lacunas da prpria lei.42
Assim, restam superados os dogmas da escola da exegese,
da infalibilidade e oniscincia do legislador. De fato, a imperfeio das normas jurdicas,
a superao do dogma da completude e a atecnia do legislador j impem ao juiz o papel
de integrao da ordem jurdica, para dizer o direito no caso concreto. Assim, um
sistema hermtico, sem mobilidade, muito mais gravoso, medida que o juiz muitas
vezes tinha de proferir uma deciso injusta, por apego a uma norma vetusta, que no
acompanhava a evoluo social, como se observou ao longo do sculo passado, j que o
Cdigo Civil de 1916 permitia pouca mobilidade ao sistema.
Outra crtica que feita diz com a impreciso e vagueza da linguagem nos
conceitos jurdicos fins econmicos e sociais, boa-f e bons costumes cuja infringncia caracteriza abuso de direito , que podem atribuir a cada julgador uma interpretao diferente na definio desses termos, o que geraria insegurana.
Tais conceitos, entretanto, se prestam exatamente a permitir que o julgador
considere as peculiaridades do caso concreto, medida que o sistema hermtico, a par
de no conseguir prever todas as hipteses fticas deteriorao do dogma da completude , d ensejo a abusos pelo titular do direito, pois permite que se contrarie a finalidade do direito. As clusulas gerais e os conceitos jurdicos indeterminados, ao
revs, permitem que se introduza um contexto tico e socializante no direito.
Os crticos ainda ponderam que, caso se determine o abuso de direito por valores
morais, supralegais, haver confuso da moral com o direito, dando culpa moral os
mesmos efeitos decorrentes da culpa jurdica. Tal crtica deve ser afastada de plano,
medida que o que se pretende hodiernamente impregnar o direito de conceitos ticos,
morais e socializantes, opondo-se a um sistema jurdico individualista, que conduzia
arbitrariedades pelo titular do direito e que atendia aos interesses de uma minoria
privilegiada.
Observa-se, assim, que, a par das crticas, o acolhimento da Teoria do Abuso do
Direito pelo Cdigo Civil de 2002 representa um importante instrumento para a
moralizao e socializao do direito civil, em consonncia com os ditames
constitucionais da igualdade substancial, da dignidade da pessoa humana e da funo
social dos direitos, obstando os abusos que eram permitidos no antigo Cdigo.
40 Dentro do direito do consumidor, no se pode confundir abuso de direito com clusulas abusivas. A clusula somente pode ser
considerada abusiva se houver vantagem excessiva, sendo esta a sua caracterstica precpua. Conforme Plnio Lacerda Martins (O abuso nas relaes de consumo e o princpio da boa-f. Rio de Janeiro : Forense, 2002. p. 36), a clusula abusiva quando houver o concurso
dos seguintes requisitos: a) predisposio unilateral; b) insero de condies gerais; c) atribuio de vantagens excessivas ao predisponente; d) atribuio de onerosidade e desvantagem excessivas ao aderente; e) incompatibilidade com as hipteses da lista legal ou com a boa-f e a eqidade. O abuso de direito, ao contrrio, est relacionado com conduta, com exerccio de um direito. Ademais, geralmente, no abuso de direito, inexiste interesse legtimo ou benefcio para o titular do direito, enquanto, na clusula abusiva, a
vantagem excessiva condio para sua configurao.
41 LIMA, Alvino. Culpa e Risco. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 230/231.
42 Culpa e Risco. So Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 234.
18
8 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABUSO DE DIREITO
Na dogmtica, a noo de responsabilidade implica sempre a violao de um dever,
com a ofensa a um bem jurdico,43
exprimindo a idia de obrigao, encargo,
contraprestao. A doutrina de direito civil costuma definir a responsabilidade civil com
base numa conduta causadora de um dano,44
com fundamento na obrigao de
indenizar,45
e com supedneo no inadimplemento contratual ou na violao de um dever.
Com o passar do tempo, entretanto, o elemento sano ou retribuio foi mitigado.
Na nova definio de responsabilidade, no se pode mais dizer que a responsabilidade
jurdica est essencialmente ligada retribuio.46
O elemento central passa a ser a
reparao ou preveno do dano ou prejuzo, e no mais a punio do responsvel.
Em um conceito sinttico e geral, pode-se definir a responsabilidade civil como um dever jurdico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violao de um
dever jurdico originrio47
.
Esse conceito, no entanto, no abrange todas as modalidades de responsabilidade
civil, pois haver casos em que surge a responsabilizao sem a violao a um dever
jurdico. Por razes como essa, dizer-se que no existe um conceito unitrio que abranja
todas as modalidades de responsabilidade civil. De qualquer sorte, verdadeira a
premissa de que, para haver responsabilidade civil, dever sempre haver o dano jurdico,
do qual exsurge o dever de reparao.48
De outro lado, no se pode confundir as noes de obrigao (Schuld) e de
responsabilidade civil (Haftung). Obrigao sempre um dever jurdico originrio,
enquanto a responsabilidade um dever jurdico sucessivo, corolrio da violao do
primeiro, como ensina Srgio Cavalieri Filho.49
Na dogmtica, a responsabilidade civil classificada em contratual e
extracontratual. Responsabilidade contratual aquela que decorre diretamente e em
funo de um contrato, ou seja, de uma obrigao contratual originria, de modo que
ser responsabilizado civilmente aquele que inadimplir essa obrigao. A
responsabilidade extracontratual, tambm chamada de aquiliana, deriva, geralmente, de
um ato ilcito, de uma obrigao jurdica que decorre de uma norma legal, e no do
contrato.
Com a positivao da Teoria do Abuso de Direito, a responsabilidade civil ganha
novos contornos, pela especificidade do disciplinamento da matria. Com efeito,
ocorrendo abuso de direito, exsurge a responsabilidade civil para aquele que excedeu o
fim econmico e social, a boa-f ou os bons costumes, como se depreende do art. 187,
causando dano a outrem. Observa-se, assim, que, diferentemente do que ocorre com a
regra da responsabilidade civil por ato ilcito, prescinde-se do elemento culpa para que
surja a responsabilidade civil por abuso de direito.
Assim, nos moldes do art. 187 do Cdigo Civil, so elementos essenciais da
responsabilidade civil por abuso de direito: a) que o titular do direito exceda os seus fins
43 De acordo com o bem jurdico tutelado e a gravidade da leso, surgir a responsabilidade civil ou penal. Embora seja prevista a
responsabilidade penal dos fornecedores, em determinados casos, tal questo no ser tratada no presente trabalho.
44 PEREIRA, Agotinho Oli Koppe. Responsabilidade civil por danos ao consumidor causados por defeitos dos produtos: a teoria da ao
social e o direito do consumidor. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003. p. 242.
45 VENOSA, Slvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. 3. ed. So Paulo : Atlas, 2003. p. 12.
46 Op. cit. p. 103).
47 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. aum. e atual. So Paulo : Malheiros, 2003. p. 24.
48 Para aprofundar o tema, vide: LUNARDI, Fabrcio Castagna. A responsabilidade civil do fornecedor por vcios dos produtos no Cdigo
de Defesa do Consumidor. In Consulex, Braslia, DF, ano 20, n. 18, p. 5-7, 8 mai. 2006.
49 Op. cit. p. 24.
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econmicos e sociais, a boa-f ou os bons costumes; b) que cause dano (ainda que
jurdico) a terceiro; c) nexo de causalidade.
H doutrina que distingue as sanes decorrentes do ato ilcito e do abuso de
direito. Incio de Carvalho Neto50
advoga que, de regra, o ato ilegal somente admite
reparao do dano causado, enquanto o ato abusivo comporta, sempre que possvel,
alm da reparao do dano, o desfazimento do ato. No entanto, essa diferenciao
parece no se sustentar, haja vista que hodiernamente se d preferncia, em qualquer
violao a direito, tutela inibitria e ao desfazimento do ato. A ttulo de exemplo, na
seara contratual, quando tiver o contrato objeto ilcito, haver o desfazimento do
contrato, pela sua nulidade; no direito das coisas, quando o proprietrio constri
ultrapassando os limites da sua propriedade, atingindo a propriedade vizinha, ter, em
regra, que desfazer tal construo. Portanto, no parece vigorar tal diferenciao.
Imperioso aferir que existem casos de exerccio de direito que causa danos a
terceiros, mas que no constituem abuso de direito, como se observa nos exemplos a
seguir, apontados por Lucio Naves51
: a) exerccio moderado da legtima defesa; b)
direito de greve, nos limites previstos em lei; c) o proprietrio que, mesmo obedecendo
lei e o Cdigo de Posturas Municipal, ergue uma construo em seu terreno e termina por
prejudicara vista do seu vizinho; d) o proprietrio de um terreno que constri uma casa e
causa rudo constante, poeira e transtornos para os proprietrios vizinhos.
Nesses casos, embora haja dano, o exerccio do direito no excede os fins
econmicos e sociais, a boa-f ou os bons costumes, de modo que no h abuso de
direito e, por conseguinte, no h responsabilidade civil.
De outro lado, tambm se observa que pode ocorrer abuso de direito sem dano
pessoa determinada. o caso, por exemplo, do proprietrio de imvel rural de extensa
rea produtiva que no utiliza adequadamente o seu solo. Nesse caso, observa-se que o
proprietrio tem o direito de uso (jus utendi) e gozo (jus fruendi) da propriedade, mas
no atende ao seu fim econmico e social, havendo um abuso do direito de propriedade,
sem que ocorra dano a uma determinada pessoa. Entretanto, mesmo nesse caso,
observa-se um dano coletividade, em razo da violao da funo social da
propriedade e da no utilizao da propriedade para produo de alimentos em prol da
coletividade.52
H, portanto, certas peculiaridades que diferenciam a responsabilidade civil por
abuso de direito e por ato ilcito, tanto na sua formao quanto nos seus efeitos, o que
confere Teoria do Abuso de Direito relevncia e autonomia dentro da teoria da
responsabilidade civil.
Dessume-se, assim, que havendo o descumprimento de determinada clusula
contratual expressa, a parte inadimplente estar sujeita responsabilidade civil
contratual. Caso se violem deveres anexos aos contratos, abusando a parte do direito
que lhe conferido, de modo a exceder a sua finalidade social e econmica, a boa-f ou
os bons costumes, estar caracterizada a responsabilidade civil por abuso de direito.
9 CONSIDERAES FINAIS
Em contraposio ao modelo liberal, individualista, em que os direitos subjetivos
eram encarados de forma absoluta, surge um novo direito civil, com matiz constitucional,
alicerado na eticidade, no solidarismo social, na igualdade substancial, na valorizao do
indivduo e na dignidade da pessoa humana.
50 Abuso do direito. Curitiba : Juru, 2002. p. 193-198.
51 Abuso no exerccio do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1999. p. 227-233.
52 Leedsnia de Albuquerque (O abuso do direito no processo de conhecimento. So Paulo : Ltr , 2002. p. 68/69) entende que, caso o
agente exera um direito subjetivo de modo irregular, se esse exerccio no gerar dano, ainda que moral, o que h ato realizado sem direito, e no abuso de direito.
20
Dentro desse novo sistema, ganha relevncia a Teoria do Abuso de Direito, que tem
supedneo na idia de relativizao dos direitos subjetivos, de que os direitos no podem
ser exercidos de forma abusiva, devendo atender sua finalidade econmica e social,
boa-f objetiva e aos bons costumes. Por terem a mesma gnese, as teorias do Abuso de
Direito, da Boa-f Objetiva, da Impreviso e da Funo Social completam-se, sendo, por
vezes, aplicadas simultaneamente no caso concreto, haja vista que uma est imbricada
na outra.
A positivao da Teoria do Abuso de Direito no Cdigo Civil de 2002, aps longo
processo de recrudescimento, representa um grande avano, j que, por vezes, d
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