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Page 1: 50 dias de revolta

efferson Batista Pires, de 28anos, trabalha desde os 15anos, nunca roubou, nun-ca matou, mas está commedo de sair de casa por-que pode ser preso a qual-quer momento. Um erro

da Justiça fez com que passasse 50dias detido, por engano, no lugarde outro Jeferson, integrante deuma quadrilha especializada emroubo de carga, que se passa pelorapaz para não ser incomodado.Atualmente preso no estado doRio de Janeiro, o criminoso falsifi-cou documento com dados pes-soais do jovem de Belo Horizonte– como nome dos pais, ano denascimento e número do RG.

Foi grande a surpresa do verda-deiro Jefferson (que tem dois efesno nome e assina Pires, não Peres,como o assaltante), ao tentar tirarum atestado de bons antecedentesno posto Psiu, da Praça Sete, noCentro de Belo Horizonte, em de-zembro: soube que havia ummandado de prisão em seu nome.Daí, foram nove dias encarceradono Ceresp São Cristóvão, na Lagoi-nha, na Região Noroeste da capital,e mais 41 dias preso na cadeia pú-blica de Viçosa, na Zona da Mata.Só 50 dias depois o juiz foi infor-mado do erro e mandou soltá-lo.

Mas o drama do rapaz não aca-bou. Segundo o advogado, seu no-me está em pelo menos outros 15processos e inquéritos em municí-pios da Zona da Mata, como Miraí,Ponte Nova, Rio Pomba, Além Pa-raíba e Ubá. Isso significa que, aqualquer momento, juízes dessascidades podem pedir sua prisão.“Somos pobres e o mínimo que agente tem que ter é o nome limpopara poder trabalhar. Não sou ban-dido. Eles estão acusando meu no-me, não minha pessoa”, disseJefferson, finalmente em casa, massem saber como resolver o proble-ma. A família ainda deve metadedos R$ 3 mil cobrados pelo advoga-do, que viajou a Viçosa e Rio Pom-ba para mostrar aos Juízes a foto-grafia do Jeferson criminoso, for-necida por policiais da Divisão deCrimes Contra o Patrimônio, daPolícia Civil. O mesmo advogadocobra mais R$ 15 mil para defen-der o jovem nos municípios ondetem o nome envolvido em delitospraticados por outro.

Entre 2003 e 2006, enquanto ocriminoso homônimo vivia umcírculo vicioso – alternando assal-tos, prisões em flagrante, volta àsruas e assaltos em Minas, EspíritoSanto e Rio de Janeiro –, Jeffersontrabalhava montando bicicletasergométricas, servindo como aju-dante de produção, ou descarre-gando caminhões de refrigerante.Desempregado desde 2007, come-çaria em um novo emprego emuma empresa de manutenção dear-condicionado, em dezembro.Faltava-lhe apenas o atestado debons antecedentes para assinar o

contrato, mas os 50 dias de prisãofizeram com que o patrão procu-rasse outro funcionário.

A mulher, Poliana AparecidaCustódio, de 23 anos, foi pega desurpresa. Ele se preparava paraencomendar o bolo, salgados davizinha Rosa Maria e os doces damãe para o aniversário de 5 anosdo filho do casal, em 23 de dezem-bro. A festa foi cancelada por cau-sa da prisão. Para Jefferson, nãoestar com o filho naquele mo-mento foi pior do que ter passadoo Natal e o ano-novo longe da fa-mília. Ele garante não ter sidomaltratado na cadeia, mas perdeusete quilos. A família procurouuma emissora de TV e uma rádio,para denunciar o caso, enquantoo rapaz estava preso. Mas nin-guém acreditou na história.

“Aqui só tem gente inocente,não trabalhamos com culpados”,brincou a delegada Rosely BaetaNeves, da Divisão de Crimes Con-tra o Patrimônio, ao lembrar daocasião em que foi procurada pe-lo advogado de Jefferson. Ele pe-dia ajuda para identificar o verda-deiro criminoso. Afinal, acredita-va que seu cliente estava presopor engano. Apesar do ceticismoinicial, a delegada chamou umagente de sua equipe, que já tra-balhou na Zona da Mata. Ele selembrou do verdadeiro crimino-so e forneceu a foto.

CORRESPONDÊNCIA Seis corres-pondências enviadas à família sãoprova da angústia vivida pelo jo-vem preso sem saber porquê. Noprimeiro texto, remetido quandoainda estava no Ceresp São Cristó-vão, no prédio do Departamentode Investigações (DI), Jefferson pe-de à mãe que não deixasse o filhode 4 anos saber onde ele estava.Chamado pelo carcereiro, novedias depois de preso, ele pensouque o mal-entendido estaria des-feito. Mas, na verdade, estava sen-do transferido para Viçosa, muni-cípio de origem do pedido de pri-são preventiva. “Mãe, estou escre-vendo mais uma vez para vocês(...); estou apavorado por causadisso, preso há 33 dias e nem umadvogado me procurou até hoje(…). Só o fato de estar a 250 quilô-metros de Belo Horizonte está medeixando doido”, escreveu o ra-paz, em 11 de janeiro.

O irmão Jackson Palermon Pi-res, de 34, viajou duas vezes a Vi-çosa, mas não viu o irmão porquea visita só era autorizada somen-te depois de 30 dias de perma-nência do suspeito na prisão. “To-dos os dias de visita até choroquando não vejo ninguém, estoutão sozinho aqui e só Deus parame consolar”, afirmou em umadas cartas. Ele fala com amor esaudade da mulher, Poliana.“Manda um beijo para o Kayck(filho), fala com ele que o papaiestá com muita saudade. “

Trabalhador passa quase dois meses atrás das grades por crime que não cometeu, até oreconhecimento do erro pela Justiça. Cartas narram o desespero e a indignação na cadeia

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Surpreendido por um mandado de prisão em seu nome, Jefferson Pires contou com o apoio da família para superar o trauma

Identidade de riscoA polícia não sabe como o crimi-

noso da Zona da Mata teve acessoaos dados pessoais de Jefferson Pi-res. Há suspeita de que alguém te-nha achado a carteira de identidadeque o rapaz tirou quando criança.Adulto, ele substituiu o documen-to, mas não sabe onde está o origi-nal. Segundo o diretor-adjunto doInstituto de Criminalística da Polí-cia Civil, o delegado João Lopes, ca-sos de pessoas que adotam a iden-tidade de outras são comuns. Aorientação mais importante paranão ser vítima desse tipo de aborre-cimento é registrar Boletim deOcorrência (BO) quando perder do-cumentos.

“Se o documento cai na mão demarginais, ele tem um valor razoá-vel. A pessoa troca apenas a foto efaz compras sem pagar ou mesmocomete crimes”, conta o delegado.O pior vem depois, em caso de fla-grante do criminoso. “O sujeito é li-berado e desaparece. Decreta-se aprisão preventiva. Quem vai serpreso? O verdadeiro dono da iden-tidade”, afirma o policial.

Casos de presos que passam peloInstituto e juram, de pés juntos, quenão têm envolvimento com o cri-me, são analisados com cuidado, ga-rante o diretor-adjunto. “Uma alter-

nativa é levar o acusado ao Fórum,buscar a vítima ou policial envolvi-do na ocorrência, para saber se háerro. Outra forma é o laudo de con-fronto de digitais”, explica João Lo-pes. Até que isso ocorra, a pessoa fi-ca presa por precaução. “É uma si-tuação complicada ficar na cadeiacom um tanto de bandido, esperan-do o estado resolver a situação”, ad-mite o diretor-adjunto, que não vêalternativa à situação.

A delegada Rosely Baeta Neves,da Divisão de Crimes Contra o Patri-mônio, pediu ao Instituto de Crimi-nalística da Polícia Civil a realizaçãode exame com as digitais do Jeffer-son, mas o resultado ainda não saiu.

Já em liberdade, Jefferson afir-ma ter procurado a Defensoria Pú-blica para tentar regularizar a si-tuação nos municípios onde res-ponde a processos e inquéritos.Mas foi orientado a pedir ajuda arepresentantes do órgão em cadamunicípio. O processo que resul-tou na prisão do rapaz foi iniciadoem Viçosa, mas o juiz da comarcadeclinou da competência e o enca-minhou para a Comarca de RioPomba. Por meio da assessoria, ojuiz de Rio Pomba, Elias Aparecidode Oliveira, informou que não vaicomentar o caso. (TH)

THIAGO HERDY

CARTAS DA PRISÃO

DEZEMBRO 2007,Ceresp São Cristóvão, BH

“Mãe, é seu filho Jefferson.Estou preso sem saber porque. Vocês todos sabem quesou inocente, que não cometi assalto nenhum, peçoque vocês orem por mim porqueeu estou com muita saudadede todos vocês e do Kayck,não deixe ele saber ondeestou. (…) Não esqueça demim porque estou passandoum momento muito difícil davida. (…) Peço para mandarroupa velha, pasta de dente esabonete e biscoito demaizena, porque biscoitorecheado não entra aqui; sónão fala nada pra ninguém,mãe, sei não, eles podem fazeralguma coisa comigo aqui, ok?(...) Mande algumas coisas paramim, porque estou com aquelaroupa tem uma semana.”

5 DE JANEIRO DE 2008,Cadeia Pública de Viçosa

“Mãe, sou eu, Jefferson,estou apavorado e sem dinheiropara comprar as coisas aqui, memanda uma carta explicandotudo o que está acontecendo aí,estou até precisando de uma psicóloga, porque nãoestou com a cabeça boa, é muita coisa para umapessoa só. Todo dia eu choro de depressão, rezo e peçoa Deus para me tirar desse pesadelo.”

11 DE JANEIRO DE 2008,Cadeia Pública de Viçosa

“Mãe, (…) só o fato de estar preso, a 250quilômetros de BH, já está me deixando doido,porque estou longe da minha família e com muita

saudade de todos. (…) Jánão agüento mais ficarlonge do meu filho Kayck eda Poliana, e já estouficando revoltado com tudoisso que tá acontecendocomigo, porque souinocente e estou pagandopor um crime que nãocometi. Vocês me falaramque o cara que usou meusdocumentos já foi preso, eninguém me soltou atéhoje, e nem advogado meprocurou para resolver oproblema.”

18 DE JANEIRO DE 2008,Cadeia Pública de Viçosa

“Poliana, manda umbeijo para o Kayck, falacom ele que o papai estácom muita saudade dele,e estou com muita

saudade de você, neguinha,parece que tem mais de anos que não vejo vocês.(...) Deus sabe da minha inocência, peço a Ele paracontinuar seguindo minha vida, trabalhando comosempre fiz e cuidando de você e do Kayck.”

50dias derevolta

JAUREMAR DE CASTRO/EM – 4/3/08