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Notandum 41 mai-ago 2016 CEMOrOC-Feusp / IJI-Univ. do Porto
A actualização do direito reclama conhecimentos
sobre a sua utilização histórica recente
Direito e direitos humanos
António Pedro Dores1
Resumo: O direito, o direito democrático, tem vindo a perder influência, dignidade e prestígio, nas últimas décadas. Impressiona o descartar dos direitos humanos e da democracia, a par da impotência profissional e política para denunciar a degradação evidente do respeito dos princípios de direito distintivos da nossa civilização. A soberania popular constituinte, as relações dos direitos entre os povos, os seus representantes e a política, são sempre problemáticas. Mas há épocas, como as que vivemos, onde é preciso voltar a pensar nelas, para as actualizar. A sobrevalorização da normalidade democrática, do fim da história e das ideologias, a par da desvalorização da soberania e da política, da vontade e das opções populares, correspondem à desresponsabilização cívica da prática profissional (colaboradores em de vez de trabalhadores) e do ensino (escolarização das massas) favoráveis a vocações técnico-pragmáticas, tornando o ambiente inabitável às vocações filosófico-doutrinárias. É tempo de revisitar as origens do programa humanista de tarefas sociais e políticas a que, tacitamente, estamos vinculados, em particular o positivismo do século XIX e os direitos humanos da segunda metade do século XX, para melhor compreender como será possível contribuir para a necessária actualização do direito e, de facto, dos saberes. Palavras Chave: direito; democracia; vocação, especialização. Abstract: Law, the democratic law, loses influence, dignity and prestige, in the last years and decades. Human rights and democracy are set aside, as much as the professional and political abilities to denounce and fight back the clear lack of respect of the western way to produce and give life to legal principals. Constitutional popular sovereignty, rightful and legal relations between peoples, its representatives and politics are always problematic. However, there are epochs, as the one we live in, when it becomes necessary to rethink all the arrangements and update them. The emphasis to the democratic normality, to the end of the history and ideologies, contrasts with the disdain to politics, sovereignty, popular will and stated popular options. At civic and professional levels, people are devalued (they become collaborators instead of workers), as well at school level (mass school). This ambience recommends vocational and pragmatic horizons to teachers, students and workers. It becomes much difficult to develop doctrinaire or philosophical perspectives. One need to recall the 19th and second part of 20th century’s origins of humanistic program and its social and political tasks: positivism, human rights. It would help to look the past to build innovative perspectives to law and, in general, wisdom. Keywords: Law; democracy; vocation; specialization..
Direito e direitos humanos
Os últimos desenvolvimentos na política europeia, a respeito das finanças
gregas, revelam um clima de agressividade entre os estados, apelando a sentimentos
nacionalistas, marcado pelas mentiras (ao ponto de ter sido acordado um plano de
resgate, o terceiro, reconhecidamente inexequível por ambas as partes) e pelas
chantagens, em que cada uma das partes intenta processos de intenção à outra.
O que é que o direito tem a ver com tal situação?
Como chamou a atenção Maria Luísa Malato neste colóquio, a retórica é a arte
primeva de procurar representar a verdade material (inatingível) através do seu émulo,
a verosimilhança discursiva. É um dos fundamentos técnicos e políticos do direito: o
1 Professor do departamento de sociologia no ISCTE-IUL, [email protected] .
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que parece é, costuma dizer-se. Quando a verosimilhança está excluída de uma base de
entendimento entre as partes, pode dizer-se que falta matéria para que o direito possa
fazer caminho, isto é, regular as relações sociais através da razão. Quando isso
envolve decisões cruciais da União Europeia, alegadamente respeitadora da
democracia, do estado de direito e dos direitos humanos, há quem justificadamente
tema estar-se na presença de um sinal de fim de um tempo para os países europeus. As
regras velhas não são respeitadas e as novas ainda não foram formuladas.
Primeiro declarou-se a crise financeira. Depois anunciou-se a crise social.
Mais tarde tornou-se patente a crise política. A crise jurídica era-lhes anterior, pelo
menos em Portugal. Vive-se actualmente, neste aspecto, um contra ataque de alguns
poderes judiciais, ganhando prestígio por atingirem algumas figuras do regime,
banqueiros e um ex-primeiro-ministro, com acusações criminais. Levantam-se teorias
da conspiração sobre porque prende este e não aquele? “Que dê os outros?” – como
dizia há uns anos o humorista Jô Soares.
A nível internacional, a existência mítica de um conselho clandestino de
sábios, federador de todas as sociedades secretas, torna-se realidade prosaica quando o
Eurogrupo, entidade onde se tomam decisões sobre a vida dos cidadãos e sobre as
relações entre estados, se auto-declara grupo informal, sem tutela jurídica ou política
formal. A soberania popular constituinte, a normatividade da regulação de direito
entre os povos, os seus representantes e a política, abaladas pelos referendos repetidos
até darem o resultado esperado, revelam-se ultrapassadas pela informalidade ao mais
alto nível. Sem registo de manifestações de surpresa geral. Nem nos partidos do
regime, nem nos outros. A independência e autonomia entre os poderes executivo e
judicial estão tão fragilizadas como limitadas as possibilidades de cooperação entre
órgãos de soberania
O direito, o direito democrático, tem vindo a perder influência, dignidade e
prestígio, nas últimas décadas. Em Portugal, passou-se do tempo em que a maioria dos
deputados eleitos era de juristas, para um sistema de contratação externa da produção
legislativa a empresas de advogados eventualmente representadas por deputados na
Assembleia da República mas, sobretudo, com influência junto dos poderes instalados
nos aparelhos partidários e empresariais dominantes. A um excesso de advogados no
mercado da política seguiu-se um recuo dos juristas principais do espaço público para
as antecâmaras do poder oligárquico.
Impressiona a irresponsabilidade com que os juristas descartam os critérios
doutrinários dos direitos humanos e da democracia, ou melhor, a sua impotência
profissional e política para denunciar a degradação evidente do respeito dos princípios
de direito distintivos da nossa civilização. De que modo a formação de juristas poderá
contribuir, naquilo que lhe cabe, para reverter a actual situação, em Portugal e na
Europa? É a este assunto a que dedicamos de seguida atenção.
Usaremos o positivismo e os direitos humanos como âncoras para pensar as
relações entre a evolução das sociedades modernas e os usos contraditórios do direito.
Com a violência, da Revolução Francesa ou da 2ª Grande Guerra, surgem direitos à
paz e ao respeito mútuo. Para logo emergirem os conflitos sobre o valor efectivo e a
legitimidade real dos novos usos autoritários das normas bem-intencionadas.
Usaremos, também, a relação entre o direito e a sociologia, ou, mais precisamente, a
estranha falta de relação entre as duas disciplinas, apartadas pelo processo de híper-
especialização.
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Do positivismo
O positivismo é uma doutrina inclinada a dispensar a coerção e a tortura.
Suscita a possibilidade de neutralização das práticas vingativas das classes
dominantes, em troca da estabilidade normativa. Imagina que o conhecimento sobre as
leis das coisas, as leis naturais e as leis sociais, dispensa e não recomenda a acção
autoritária, quando o objectivo é resolver problemas. Os críticos vêm nisso uma
desconsideração para a política, contra a gaiola de aço burocrática de que falou Max
Weber, uma esperança irrealista de os problemas humanos serem sobretudo práticos.
Os códigos jurídicos sinalizam e formalizam o que não se deve fazer e como
se reagirá em caso de violação das regras. Imaginando que a lei se impõe a todos e a
cada um, incluindo às classes dominantes. As penas devem respeitar a dignidade
humana. O tempo de prisão é, tão só, a suspensão temporária de direitos de auto-
determinação ambulatória. Tempo durante o qual os condenados têm direito de se
conformar ou reagir, reclamando a verificação da qualidade do conhecimento jurídico
em vigor relativamente ao respeito pela sua condição humana.
Durkheim (1960) concebe o trabalho do direito como paralelo e complementar
ao da sociologia: ambos têm por finalidade descobrir e actualizar os conhecimentos
sobre como funciona a sociedade, para ele equivalente de consciência social ou
solidariedade, para a respeitar. O sancionamento das práticas sociais deveria ser feito
conforme a consciência colectiva, determinada esta pelos estudos, jurídicos e sociais,
da verosimilhança do sucesso da integração social dos indivíduos e do bem-estar
geral. A retórica judicial, portanto, seria a voz pública do conhecimento disponível
sobre a consciência colectiva, isto é, de como a solidariedade social está pronta a
funcionar em cada momento. Os sinais jurídicos, argumentos, decisões, sansões,
servem de orientação para colocar nos carris as práticas sociais consideradas
indesejáveis e desadequadas.
O positivismo prevê o uso da relação biunívoca entre aquilo que se sabe e é e
aquilo que se diz, entre o mundo ontológico e o mundo virtual, como modo seguro de
orientação coerente e científica da acção das pessoas. Funda-se na convicção de as
vidas adaptadas ao modo moderno de viver serem mais felizes do que aquelas que se
debatem com a procura de formas de adaptação ou inadaptação inovadoras. Isto é, ter
desejos de ser diferente, não se encaixar na divisão de trabalho habitual, gostar de
viver num mundo diferente, são atitudes que não devem ser alimentadas, por não
serem positivas.
A sociedade moderna, porém, ao contrário das sociedades de antigo regime,
não deveria ser dura com o crime. Afinal, a destruição criativa, que Schumpeter
(1961) haveria de reconhecer mais tarde, já era o motor das sociedades europeias mais
avançadas no final do século XIX. Para tirar proveito da criatividade haveria de a
controlar e sancionar, mas de modo humano, sem alienar a condição humana do
criminoso-inovador. Embora fosse necessário conter a anomia (crime/criatividade) em
níveis aceitáveis, havia que reconhecer a utilidade da inovação para benefício de
todos. Durkheim recomendou a paulatina abolição das penas de prisão, substituídas
por multas ou por outras alternativas a penas físicas, como maneira de afirmar a
modernidade.
A esta esperança positivista corresponde, em termos liberais, a norma de
utilização apenas em última instância das condenações criminais. Mais vale não
condenar um arguido culpado do que fazer penar um inocente, costuma dizer-se. Os
ideais positivista e liberal contrastam com a realidade actual, quando as prisões são
instituições globais, presentes em todos os países, e usadas em quase todos de modo a
que a sobrelotação é um dos principais problemas identificados, a par do desrespeito
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pelos direitos humanos e pela reincidência, isto é, o falhanço do tratamento punitivo e
ressocializador, incapaz de servir de prevenção. Ao invés, quem passe pela prisão vê
aumentada a probabilidade de voltar a ser condenado por cometer crimes.
A finalidade clássica das penas, a ressocialização, está desqualificada como
teoria inconsequente. Cumprindo a teoria a função de separar o mundo entre aqueles
que falam, em particular nas universidades, na administração, nos tribunais, na
política, e o mundo dos que vivem as consequências do “braço secular” do direito na
pele, os presos e os profissionais que lidam directamente com eles nas prisões (Dores
& Preto, 2013) e noutros territórios violentos, ideologicamente escondidos dos olhares
modernos (Hirschman, 1997; Ruggiero, 2000).
Nas últimas décadas, não apenas em Portugal, mas no mundo ocidental em
geral, com destaque para os EUA, a sobrelotação crónica das prisões é resultado de
bagatelas penais (Wacquant, 2000) produzidas pelas políticas proibicionistas
(Woodiwiss, 1988). Na Europa, continente dos direitos humanos, todos ou muitos dos
sistemas penitenciários não respeitam as normas penitenciárias europeias (Crétenot,
2014). Há um direito nos livros e há o direito dos tribunais. A que se deve acrescentar
a ausência de direito nas prisões. Ausência que se expande para fora das prisões. Com
as políticas de medo, com a construção de condomínios fechados, com a existência de
bairros populares onde a polícia não entra a não ser ao tiro, como numa guerra, com a
imprensa sensacionalista (Dores, 2013), etc.
Anti-positivismo
Anos atrás, dois sociólogos portugueses acusaram-se mutuamente de serem
positivistas, sendo o termo usado como expressão depreciativa. Um, mais académico,
acusava o outro de holismo, de pretender explicar toda a realidade com uma fórmula
geral, essencialista, mágica. Outro, mais crítico, acusava o seu oponente de
empirismo, de imaginar poder dispensar incluir a reflexão política e ideológica geral
na análise social. Outro autor, de cuja referência lamentavelmente não disponho,
notava como o positivismo passou a estar presente na sociologia recente através do
anti-positivismo, isto é, o acordo entre quase todas as correntes teóricas em renegar,
uns mais por este aspecto e outros mais pelo outro, o positivismo, sem todavia
conseguirem libertar-se dele. Mouzelis (1995) aponta este bloqueio dizendo que,
desde Parsons, a teoria social sofre de reificação e reducionismo. Por outras palavras:
inventa cenários onde possa colocar as peças soltas imaginadas como autónomas do
conjunto.
Para a análise das relações entre a teoria social e o direito, é interessante fazer
o contraponto entre o direito constitucional e o direito aplicado no dia-a-dia, por um
lado, e a sociologia crítica, holista, face à sociologia académica, mais preocupada com
a minuciosa análise de dados empíricos, por outro lado; de um lado a necessidade do
trabalho com a filosofia e, do outro lado, a atenção aos protocolos técnicos habituais.
Mas o mais relevante é o acordo entre praticamente todas as correntes sociológicas e
do direito em omitirem a centralidade social, política e empírica da violência nas vidas
das pessoas. Sobretudo, claro, as com menos recursos de auto-defesa.
Hirshman (1997) e Elias (1990) mostram diversas facetas de como a ideologia
moderna tornou a violência tabu. Com a urbanização, refere Foucault (1999), a
violência deixou de ser exposta e motivo de honra e passou a exercer-se
burocraticamente, kafkianamente, sistematicamente, dentro de muros, como
incorporação. Criou-se um mundo auto-disciplinado, automatizado, de autómatos
humanos assalariados, de recursos humanos em que cada trabalhador é uma unidade
de matéria-prima mais ou menos disciplinada e qualificada. Em contraponto com os
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mundos da marginalidade, das liberdades, dos negócios, do empreendedorismo ou da
exclusão miséria. O mundo moderno, na produção e no consumo, é feito como um
puzzle: as peças são reunidas pela imaginação publicitária que nos ocupa o espaço
público, as televisões, o correio, a satisfação das necessidades essenciais, a mente e o
corpo.
O pacifismo pós II Grande Guerra, consequência das experiência directa dos
horrores da destruição da Europa e do plano Marshall de reconstrução, conduzido
pelos EUA, reforça esta tendência de fazer tabu da violência (Malešević, 2010:1-5,
17). O pacifismo positivista, reagindo às violências revolucionárias e da reacção
contra revolucionária do século XIX, deu uma ênfase exagerada à ordem, ao mesmo
tempo que mantinha vivas as esperanças num mundo melhor, com a ajuda da razão.
Por exemplo, na esperança de um dia se perder o hábito dos castigos corporais como
forma de pena judicial, por mera evolução moral natural dos sentimentos de
repugnância contra a tortura, aceitou manter e reforçar o tabu cognitivo contra os
estudos sobre a natureza da violência e, também, da própria natureza humana. Há,
pois, um padrão epistémico que, no século XIX e na segunda metade do século XX,
reage com espírito positivo à experiência do inferno belicista, imaginando um mundo
novo finalmente sem conflitos, ou como se diz hoje, o fim das ideologia e o fim da
história, na verdade repetindo Marx e Engels que imaginaram o comunismo como o
fim da luta de classes e o fim da pré-história da humanidade.
O alheamento do direito e da sociologia da violência penal – e das guerras –
mantem-se firme. Os castigos corporais, a tortura e os genocídios não pararam de
aumentar.
No plano cognitivo, o positivismo não provou a alegada capacidade humana
de fazer a correspondência biunívoca entre o que se diz e o que se faz. O mundo
prático, violento, é densamente povoado de segredos, mistérios e até trivialidades tão
banais que ninguém se lhes refere. Como as penitenciárias. O mundo virtual,
cognitivo, é construído letra a letra, máquina a máquina, imagem a imagem, por
muitos computadores. Mas o objectivo disso não é reproduzir a realidade. O contrário:
serve para criar um outro mundo, hipnótico e sedutor, alienado do mundo vernáculo.
Para efeitos de funcionamento da economia, mas também para prazer das pessoas
modernas.
O que tem acontecido é o empobrecimento da reverência tradicional
camponesa perante a natureza, tratada actualmente praticamente só como escrava dos
nossos desejos. Uma crise financeira é pretexto mais que suficiente para a suspensão
de toda a reflexão ecológica, tornada segunda, terceira ou enésima prioridade.
O anti-positivismo apontou o irrealismo da pretensão positivista de reduzir o
mundo das representações a meros significantes de significados materiais; reclamou os
prazeres da subversão epistémica como postura mais digna e satisfatória de viver de
acordo com a doutrina dominante; as desigualdades sociais e as lutas de classes
mantiveram-se e eternizaram-se. Foi-se perdendo a esperança de um mundo novo.
Abriu-se espaço ao relativismo. As universidades passaram a ser pontos de encontro
de especialidades cognitivas que se desconhecem mutuamente (Lahire, 2012:319-
356).
Voltemos ao exemplo das penitenciárias para mostrar como funciona o
relativismo. O abolicionismo prisional, vigoroso e optimista dos anos setenta,
imaginou que o estado realizaria a abolição pelo facto de lhe ser apresentada
racionalmente a impossibilidade das prisões cumprirem as suas finalidades
institucionais. A história, porém, seguiu rumo bem diferente. Transformou as
penitenciárias num sector económico florescente em França, no Reino Unido, na
Austrália, e sobretudo nos EUA encarregues de encarcerar ¼ dos 10 milhões presos de
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todo o mundo (Gilmore, 2007). A obscura doutrina do nothing works (Martinson,
1974) terá informado uma cultura penitenciária (Garland, 2001) que se permite
interpretar a lei contra si mesma. Na prática, o que foi abolida foi a pretensão das leis,
como as das finalidades das penas, obrigarem os estados ou os funcionários. À
margem da lei, políticos sem escrúpulos beneficiaram da cumplicidade da opinião
pública, a chamada imprensa popular ou de escândalos, para implementar políticas
conhecidas como tolerância zero e troca de segurança por liberdades, associadas a
guerras lançadas a pretexto de mentiras, sem condenação judicial. Com os anos e a
crise, a xenofobia e o racismo tornou-se um problema, no sistema criminal europeu
(Palidda & Garcia, 2010; Palidda, 2011) e na política.
Esta abolição tácita das normas em vigor pelas interpretações relativistas do
direito, da sociedade, do estado, da violência, da legitimidade política, da finalidade
das instituições, é uma das características do nosso tempo. De que as crónicas
mentiras dos políticos são apenas um fenómeno mais evidente. E o aumento da
procura de serviços jurídicos um sinal. A sua melhor compreensão reclama uma
profunda crítica epistemológica capaz de romper com o alheamento entre as ciências
positivas, naturais ou duras, e as ciências sociais, humanas ou moles (Damásio, 1994).
A que as ciências jurídicas serão chamadas a dar o seu contributo.
A verdade deificada atribuída ao Livro, ou à caverna de Platão, como uma
forma de continuar o estado mental imaginado pelos nominalistas para o estado
teológico, foi alvo de uma elaboração célebre, por Augusto Comte. Após a superação
dos estados mais primitivos de consciência humana, defendeu o autor da Lei dos Três
Estados, o estado positivo de consciência permitiria ter certezas científicas. O retorno
à pureza original, in principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, num estado
superior de evolução, era uma aspiração pós-revolucionária muito apreciada. Karl
Marx também imaginou o comunismo como uma forma mais elevada do comunismo
primitivo. O pensamento positivo prometia ser capaz, ao mesmo tempo, de oferecer
textos premonitórios e realistas, como as instruções de montagem dos produtos de
bricolage.
Cinco séculos após a invenção da imprensa, os ecrãs e a internet criam
virtualmente mundos inimagináveis. A imposição da universalidade da cultura, do
pensamento e dos conflitos ocidentais, que de alguma forma esteve na base do sucesso
do positivismo, contestada internamente – por ser incapaz de oferecer o que prometia,
uma imagem fidedigna da realidade, a biunivocidade entre textos e palavras, leis e
sentenças – e externamente – por ser colonialista, opressora e destruidora – continua a
funcionar mas agora de outro modo: através do panóptico materialismo consumista
associado ao uso hipnotizante da imaginação, como num casino ou num centro
comercial (Bauman, 2000).
É provável que as novas maneiras de imaginar a vida, a vida em sociedade, a
moral, o direito, a sabedoria, venham a ter efeitos práticos, ou já estejam a tê-los. Mas
não serão, nunca foram, como desejaram os positivistas: não basta enunciar a lei
natural ou humana para que ela produza realidade. O que não significa que diferentes
enunciações sejam indiferentes à realidade: a realidade é cada vez mais feita de
enunciações. Mas, por outro lado, nenhum mundo virtual, por muito rico que seja, será
capaz de tornar-se independente do mundo material, do destino cósmico do planeta,
cuja trajectória pode ser influenciada mas não negada pela espécie humana.
Os relativistas dominantes, os neoliberais, mostraram que não é preciso mudar
as instituições para as subverter (Jakobs & Meliá, 2003). Aproveitando a incapacidade
actual de construir uma alternativa real à epistemologia positivista e negando-a nos
seus aspectos a reter: a saber, a vantagem de intercomunicação entre saberes, como o
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direito e a sociologia, e a necessária atenção à violência para a regular, em termos
nacionais, internacionais e ecológicos.
Dos direitos humanos
A liberdade aristocrática (Boétie, 1997), capaz de comparar uma pessoa com
Deus, repudia o mecanicismo ou o organicismo associados ao positivismo. As
relações biunívocas entre os materiais, as práticas e as equações matemáticas são
tecnologicamente úteis e provaram a sua eficácia. Nos campos social e jurídico (ou
diplomático), porém, fora da natureza, não há relações biunívocas eficientes. Há
autodeterminação (Foucault, 2004).
(Augusto Comte, além de positivista, era um excêntrico fundador de uma
religião própria; Newton era também um alquimista. O Deus de Newton era o
Cosmos. O de Comte era a sociedade; a sociologia seria a ciência síntese de todas a
ciências. Esta religiosidade científica rompia com a distinção cartesiana entre o
sagrado e o profano, o espírito e o corpo, separação que ainda hoje conforma todo o
nosso pensamento subordinado às duas culturas (Snow, 1956). O positivismo, na
prática, foi usado pela contestação racionalista e realista aos segredos e às incoerências
românticas do século XIX, conforme nos dá conta Eça de Queiroz, em Os Maias, na
cena do debate literário no jantar de amigos. Com o desgaste das lutas, perdeu o fulgor
e, também, a capacidade de impor um pensamento pós-cartesiano, de que tando
necessitamos hoje em dia para compensar os excessos de especialização e isolamento
cognitivos).
O uso de qualquer tecnologia, como o fogo ou as pontas de sílex, reclama a
presença do direito, para que os conflitos supervenientes possam ser enfrentados
(Supiot, 2002): quem (não) guarda? Quem (não) usa? Quem (não) toma posse? Quem
(não) controla? O direito é uma forma de sabedoria de ponta, na medida em que é
confrontado com as inovações. Através dos conflitos emergentes das novidades, cujos
apaziguamentos e normalização lhe são requisitados, os juristas afeiçoam as
sociedades e as pessoas ao seu devir. As penas são formas de impor soluções e de
condicionar futuros conflitos através da regulamentação. Construída uma tradição, ela
deve ser imposta, a menos de alegações capazes de se lhe encontrar defeito (como na
lógica positiva) ou do uso da força para redesenhar desejos, aspirações e direito. O
direito, como pensava Marx, será uma superestrutura. Embora não apenas uma
decorrência do modo de produção, do taylorismo, do fordismo, da gestão line,
consoante o modelo de gestão de recursos em moda. Terá o seu papel na produção de
legitimidade política e social dos poderes do dia.
Para além da função positiva do direito, aplicada sobretudo nos regulamentos
e na burocracia, há uma função nobre do direito: a função constituinte. A
representação do soberano ausente, o povo.
As sociedades, e os tribunais, são mais ou menos conservadores conforme são
mais ou menos permeáveis ao debate sobre as regras jurídicas previamente
estabelecidas e às interpretações correntes sobre como devem ser aplicadas. Após a
Revolução Francesa, como também após a Revolução dos Cravos em Portugal, os
julgamentos expeditos e emocionais reclamaram dos juristas uma inclinação
conservadora. Para que o direito pudesse ser ponderado. Positivismo significa fixar
alguma segurança através da estabilidade das normas e das interpretações legítimas.
Como se as sociedades, os factos, as pessoas fossem coisas. Impõe um respeito pelo
normativo alheado das causas sociais dos litígios, sempre complexas, variáveis,
difusas e susceptíveis às emoções. Procede-se a uma naturalização do direito, como se
fosse intemporal e rotineiro.
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No tempo actual de aceleração das mudanças sociais e tecnológicas jamais
experimentado e face a ondas sucessivas de nova legislação, os juristas são
estimulados a dispensar reflexões elaboradas, a dar prioridade à sua própria precária
empregabilidade, a adiar (definitivamente?) preocupações próprias de mentes
cultivadas, que demoram décadas a produzir quando se é competente e se está
suficientemente bem apoiado profissionalmente. A produção em massa de juristas teve
o efeito de trazer à profissão pessoas dispostas a cumprir os mínimos para
funcionarem e sobreviver. A proletarização dos juristas organizada pelo estado e pelas
sociedades de advogados, as novas práticas disciplinares e de avaliação das profissões
jurídicas, a sindicalização de magistrados, são sinais que explicam a consensualidade
corporativa defensiva, longe dos ideais liberais de serviço à sociedade. O positivismo
no direito refere-se, hoje, a um trabalho avesso ao confronto filosófico e sociológico
com a vida que pode ser pensada fora da retórica casuística e dos quadros habituais
das práticas judiciais consagradas burocraticamente.
A situação actual é instável e em mudança de direcção imprevisível. A actual
despolitização e os novos modos de funcionamento em rede, utilizando a internet
(Castells, 2004, 2012), remetem-nos para um novo mundo capaz de auto-gestão, caso
aprenda a usar a informação disponível a todo o tempo para tratar de qualquer
problema. Pequenos grupos de afinidades, uns locais outros globais, podem partilhar
entre si soluções para problemas particulares através do mútuo conhecimento ao
mesmo tempo muito especializado, humano, pessoal e tecnologicamente distanciado.
Um discurso único totalitário, incompatível com a vertigem do mundo actual mas bem
acolhido por quem requer segurança (como aqueles viajantes agarrados aos ferros na
montanha russa) aumenta a alienação entre o que se faz e aquilo que se diz. O
aumento das guerras (50 vezes (Morris, 2013:621)) e dos genocídios (Malešević,
2010:269; Santos, 2014) é apresentado como um mundo de paz.
A sociedade do risco (Beck, 1992) não se refere a um mundo higienizado,
urbanizado, armado até aos dentes. Refere-se à consciência difusa da
insustentabilidade prática do mundo actual e dos projectos das classes dominantes,
nomeadamente o extrativismo, tanto social como ambiental (Acemoglu & Robinson,
2013; Acosta, 2013; Francisco, 2015). A organização da produção, portanto o
taylorismo, o fordismo, a burocracia, a tecnologia, etc., não pode continuar ser
pensada apenas como problema prático, ao cuidado de engenheiros. E o direito
aplicável teria vantagem em ser pensado em função dos efeitos práticos nos
trabalhadores (Quiñonero, 2010), nos consumidores e na humanidade. Sabe-se hoje
que a economia e o progresso não resolvem todos os problemas. Pior, constituem-se
em graves problemas para a humanidade e o ambiente. É tempo de inverter a
separação que Adam Smith promoveu entre a moral e a economia. A ética é, também,
um problema prático quando está em causa o aquecimento global. Supiot tem razão:
cabe ao direito ponderar os modos de utilização legítimos das tecnologias. Nas
guerras, na produção industrial e nas relações laborais.
Do mesmo modo que Descartes separou analiticamente as partes do todo,
Adam Smith a moral da economia, o positivismo separou o direito de códigos sem
ideologia da sociedade esquiva e imperfeita das desigualdades sociais.
A separação entre sociologia e direito positivos, evidenciada pela existência
de várias faculdades de direito e sociologia, em vários países europeus, cujos
departamentos separados não conseguem organizar actividades conjuntas, é um caso
particular da separação em partes estanques da realidade complexa, para fins de estudo
especializado. A necessidade de mútua penetração foi reconhecida pelos arquitectos da
justaposição dos departamentos de sociologia e direito. Algo estrutural, porém,
impede a realização dessa colaboração. Será possível ultrapassá-lo?
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O mesmo fenómeno que separa cognitiva e praticamente as partes mecânicas
de um motor – ou do universo newtoniano – separa também o direito da sociedade, o
direito nos livros do direito nos tribunais, o direito da sociologia, os princípios do
direito e a sua aplicação prática.
Quadro 1. Diferenças e semelhanças entre Direito e Penitenciárias
Diferenças Semelhanças
Direito Penitenciárias
Sucesso multissecular Fracasso secular Ideal igualitário
Adequa princípios a situações Adapta pessoas a situações Justiça casuística
Diz-se Faz-se Sistema de recursos
Regula sociedade Exclui da sociedade Identificam anormalidades
Solidariedade na partilha de
soberania
Socialmente selectivas Segredos de Estado
Os direitos humanos, fonte de legitimidade da construção da humanidade
solidária, espécie de um povo só, sofrem do mesmo problema: de que servem as
declarações, quando na prática não são tidas em conta (Crétenot, 2014)? Os diálogos
entre a moral e a técnica, entre a filosofia e as profissões, entre o poder judicial e a
sociedade, entre os valores universais e a diversidade da vida, podem ser
desbloqueados? A favor da humanização da humanidade? A favor da liberdade e da
igualdade?
Para o ensino do direito
A relação do direito moderno com o povo é problemática. Apesar das
constituições típicas da modernidade se distinguirem por consagrarem o povo como o
soberano, a traição do soberano parece ser um dos desportos favoritos dos grupos
dominantes.
Na teoria, podemos associar a genuinidade popular a movimentos
constituintes e a entropia politiqueira à normalidade institucional. Mais tarde ou mais
cedo, o envelhecimento dos mecanismos constitucionais abre portas a toda a espécie
de distorções e perversões. Os reformistas pensam poder resolver o problema
lubrificando os mecanismos testados pelo tempo, aprimorados pela crítica. Os
revolucionários pensam ser necessário começar de novo, mudar de ambiente, fazer
falar o povo, que já mostrou – embora em ocasiões excepcionais – ter o poder de
purificar as esperanças num futuro entusiasmante. Mas a que custo?
Na Grécia, povo e direitos humanos estão na ordem do dia. O governo que
marcou o fim do regime bipartidário do PASOK-Nova Democracia denunciou a crise
humanitária vivida no país; diagnóstico que foi aceite sem discussão pelos dignatários
europeus. Com o referendo sobre as negociações da dívida grega ficou a saber-se a
disposição popular de assumir a sua vontade autónoma relativamente ao status quo.
Mais uma vez, de forma dramática, o soberano representado sob a forma
eleitoral foi traído pelos políticos. Temendo-se a possibilidade de expressão da
vontade popular por meios violentos (Mitralias, 2015). Qual é o lugar do direito, neste
período histórico? Será verbo-de-encher, superestrutura que se moldará aos poderes
fácticos, como pensava Karl Marx? Poderá tornar-se uma arma do soberano para
defesa dos seus direitos constitucionais, como defendem Eric Thoussant e outros
72
(AAVV, 2015), a nível internacional, denunciando a dívida como um velho processo
de exploração sem mérito?
Em termos práticos, poderão os estados estabelecer com instituições
financeiras contratos ruinosos para si próprios em nome do resgate do sistema
financeiro global, demasiado grande para falir, como tem denunciado Paulo Morais
(Lopes & Brígida, 2014) em Portugal? Ou, ao invés, os estados devem fidelidade
política e jurídica ao soberano, o povo, a quem devem assegurar os direitos
constitucionais, políticos, económicos, sociais e culturais? As empresas e sobretudo as
grandes empresas serão elementos privilegiados do povo, como acontece nos EUA
onde estão reconhecidos os direitos de cidadania das empresas? Poderão tratados
internacionais determinar, por contrato, a submissão das finanças de estados soberanos
à competência de tribunais sujeitos a formas de soberania não popular, como o tratado
orçamental na UE ou como o TTIP pretende generalizar? Ou, em sentido inverso,
haverá interesse e possibilidade de estender a eficácia do direito à defesa da natureza,
como reclamam Bolívia e Equador nas suas constituições, sem saberem como o fazer
na prática?
Que povo poderá impor uma ordem jurídica à actual oligarquia globalmente
dominante? Que direito terá esse povo?
Foi Max Weber quem distinguiu, precisamente, os juristas formais, agarrados
às leis como se elas fossem boias de salvação para não se confrontarem com a vida
social e para se conformarem com a autoridade da melhor interpretação, e os juristas
abertos ao mundo, atentos às práticas, usando o direito para promover e desenvolver o
seu próprio sentido de justiça, em diálogo com a sociedade, as instituições e os outros
interessados. À vocação técnica, limitada à eficiência descritiva dos casos, opõe-se a
vocação doutrinária e filosófica, centrada no debate sobre a legitimidade das
interpretações dos princípios aplicáveis.
Quadro 2. Regimes de orientação profissional de juristas
Economicismo Humanismo
Formalismo Abstenção política Abstenção ideológica
Intervencionismo Construção de mercados Direitos humanos
A Enciclopédia foi uma descrição das capacidades e potencialidades criativas
dos ofícios, de como a acção formava a moral, o trabalho se orientava por requisitos
sociais. Herdeiros do Iluminismo, mas também das resistências aristocráticas ao
trabalho, nunca deixámos de separar, com a clareza possível, o trabalho manual e o
trabalho criativo, a rotina imposta e a liberdade individual, a submissão e a
marginalidade.
Com o desenvolvimento do capitalismo tardio, a exploração da força de
trabalho submetida estende-se às profissões liberais, sujeitando-as a profundos
processos de proletarização. Retirando o chão à criatividade intervencionista própria
das liberdades aristocráticas liberais. Ou melhor, monopolizando essa potencialidade
profissional no topo das sociedades: nas direcções das empresas de advocacia, e até
nos tribunais (Sousa, 2015), alheadas e protegidas do direito. Tais práticas remetem a
democracia para o palco das impotências indecentes. Transportando o debate jurídico
do plano cívico para o plano conspirativo, reflectido na disputa político judicial em
torno de redes de corrupção que se apontam mutuamente em público.
73
A impunidade nos negócios públicos, de que as Parcerias Público Privadas e
os seus ex-ministros actuais gestores das concessões são o símbolo, contrasta com a
desprotecção no acesso ao direito dos cidadãos, dos arguidos e dos condenados. Qual
é a responsabilidade, se ela existe, dos juristas nesta situação?
Alguém um dia atribuiu a Dostoievki a ideia de “uma visita às prisões mostrar
o grau de civilização de um povo”. O respeito pelos direitos humanos, ou mais
precisamente o desrespeito, mostra, certamente, o grau de predominância dos juristas
formalistas sobre os intervencionistas, dos juristas situacionistas sobre os
constituintes. Como refere Paulo Morais (Lopes & Brígida, 2014), quando os próprios
deputados são reféns dos partidos e dos interesses privados que colonizam a
Assembleia da República, o formalismo torna-se o nó górdio. E coloca a questão de
saber se o ensino do direito está adaptado aos tempos que correm. Havendo
inquietações sobre as melhores formas de elaborar uma formação adequada às
necessidades: qual o lugar do povo na ordem jurídica actual e futura? Soberano ou à
distância? Qual o lugar da sociologia (nas suas vertentes de análise tecnológica e
moral, por exemplo) nos cursos de direito?
Fecho
Infelizmente, a necessidade, todavia evidente, de mudança criativa na
formação de juristas não está na ordem do dia; em contraste com os fortes ventos de
mudança, em sociedade. Queira-se ou não, resista-se ou não, as transformações
sociais, para o melhor ou para o pior, afiguram-se profundas, no próximo futuro.
Deverá o ensino do direito preparar o choque da sociedade com o futuro? Poderá e
saberá fazê-lo?
A crise financeira grega e europeia, as lutas contra a corrupção, as vocações
dos juristas, as prisões, a filosofia das ciências, os direitos naturais, o povo, o direito.
O que se pode recomendar é a substituição de uma lógica centrípeta, caracterizada por
uma hiperespecialização disciplinar (Lahire, 2012:319-356) por uma orientação
centrífuga, não apenas nas ciências naturais e sociais (Damásio, 1994; Prigogine,
1996) mas também no direito.
No século XIX, num momento pós-revolucionário, o positivismo fixou a nova
doutrina da liberdade, igualdade e fraternidade. Foi usado como uma arma de luta
contra os segredos sociais, como o incesto aristocrático denunciado em Os Maias, ou
o escamoteamento das vidas duras dos trabalhadores, denunciado pelo neo-realismo,
ou os privilégios, de que os debates jurídicos haveriam de passar a presumir a bondade
da sua abolição. O anti-positivismo reagiu ao sucesso intelectual dessa corrente,
apontando-lhe as limitações. A especialização cartesiana, utilizada para a afirmação do
positivismo, dividiu à nascença sociologia e direito positivos. Tornou-se empirismo
nas ciências sociais, e formalismo em direito: tornou-se simplista, rígida e dogmática.
Não constituindo obstáculo à desqualificação das práticas profissionais entretanto
proletarizadas. A desqualificação do direito e do poder das organizações judiciais
públicas, a favor da privatização dos serviços jurídicos, segue o seu curso contra
natura.
No meio da agudização das lutas de classes, na segunda metade do século
XIX, o positivismo era revolucionário. Com o tempo, ficou conhecido como uma
ideologia conformista de defesa da ordem estabelecida. Nem filosofia, nem religião,
nem ideologia, o positivismo reclamava um sincretismo pacificador, avesso ao
cartesianismo. Mas esgotou-se nele.
Estamos, porém, numa época de revisitar as origens e os seus fundamentos.
Nomeadamente o falhanço escandaloso das promessas inacabadas de igualdade e
74
fraternidade, como complementos das liberdades. A derrota do sonho holista de uma
sociedade nova e um homem novo, lembram-se? Ficou o pesadelo cartesiano da
hiperespecialização.
Tocqueville, na senda de Descartes, separou a subtileza aristocrática do
sentido de liberdade (por exemplo, participando na gestão da coisa pública para
proveito próprio) e a evidência popularucha de como agir pela igualdade
(nomeadamente, imitando os comportamentos aristocráticos quotidianos e anulando as
leis que legitimaram os privilégios). Desdenhou da democracia, a tradução política do
igualitarismo, alegando os riscos das paixões populares acabarem necessariamente em
despotismo. Tocqueville, como Adam Smith e muitos outros, separou a ética da moral
e esta da economia, como quem separa princípios e fins, equiparando os primeiros à
nobreza e os segundos ao trabalho operativo. (Esta epistemologia marcou as ciências
sociais até hoje: Mouzelis (1995) refere-se a isso como reificação (dos princípios) e
reducionismo (do alcance do trabalho). Regista a inibição da capacidade cognitiva
associada a esses defeitos). A teoria, separada da prática, replicou e reproduziu o
espírito separado da matéria, o superior separado do inferior. A humanidade separada
do mundo, que nos permite, ainda hoje, pensar o nosso progresso contra a natureza e o
ambiente, explorando ambos como escravos. E explorando escravos e grande arte dos
assalariados como se fossem naturezas mortas.
As mesmas dinâmicas centrípetas e de especialização alegadamente
pragmática (há quem diga burocrática (Bernardo, 1997; Graeber, 2015)) foram
mobilizadas através das concepções de separação de poderes de Montesquieu e do
método analítico de Descartes, até à hiperespecialização actual. Opuseram-se a elas,
de certa forma, positivistas como Durkheim.
Em Formas Elementares da Vida Religiosa, o autor refere a separação radical
entre o mundo profano, a que poderíamos chamar também quotidiano ou prático, e o
mundo sagrado, o mundo virtual ou susceptível à manipulação, criado em momentos
de excitação em que sonhamos acordados. A separação do mundo em quotidiano de
trabalho rotineiro e festividades de intensa e renovadora sociabilidade, porém, é da
ordem das representações. O mundo real é o mesmo, alterado pelos estados de espírito
criados pelas diferentes situações. Os estados de espírito exaltados, a que o observador
pode ser imune no seu esforça de neutralidade (por exemplo, quando se dá conta da
diferença dos nomes profano e sagrado atribuídos, pelas mesmas pessoa, à mesma
colina ou à mesma árvore), não devem ser ignorados porque são fenómenos sociais. A
desmultiplicação de linguagens consoante o âmbito social das relações a estabelecer
provam a existência real de diferentes estados de espírito. Falar de sociologia em
português, para a comunidade dos seus falantes, revela-se também em estados de
espírito bem diferentes dos captados e captáveis pela sociologia em inglês, como bem
sabem os avaliadores internacionais (Bennett, 2011).
A natureza humana, é isso que se pode concluir, é ao mesmo tempo una
(religada pelo carácter multipolar das práticas humanas) e irremediavelmente
desconexa, entre o que se faz e o que se diz. Esta exposição da natureza humana como
unidade e diversidade mutuamente relacionadas é homóloga da do cristianismo: Deus
Pai (os princípios inscritos eternamente nas palavras e hábitos herdados, como um
espaço), Deus Filho, como Homem (as práticas escolhidas em cada momento por cada
um, no tempo) e o Espírito Santo (a fecundidade e o mistério da vida na Terra).
Profundamente marcada ideológica e civilizacionalmente.
A sociologia e o direito, apartados como estão entre si, são produto e sintoma
da estratégia cognitiva centrípeta-cartesiana. A sua confluência, a realizar um dia, será
produto de uma outra estratégia cognitiva, centrifuga. No dia em que os tribunais
poderem acolher formas de avaliação dos contextos macrossociais, como sugeriu John
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Rawls (1993), muita coisa terá mudado. Talvez nessa altura a sociologia tenha
aprendido a identificar os estados de espírito que transformam a mesma realidade em
outra coisa, por força da mente humana.
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