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A Balada do Crcere de Reading

A Balada do Crcere de Reading Traduo de Paulo Vizioli

I

O casaco escarlate no usou, pois tinhaDe sangue e vinho o jeito;E sangue e vinho em suas mos havia quandoPrisioneiro foi feito,Deitado junto mulher morta que ele amavaE matara em seu leito.

Ao caminhar em meio aos Julgadores, roupaCinza e gasta vestia;Tinha um bon de crquete, e seu passo lpidoE alegre parecia;Mas nunca em minha vida vi algum olharTo angustiado o dia.

Eu nunca vi algum na vida que tivesseTanta Angstia no olhar,Ao contemplar a tenda azul que os prisioneirosDe cu usam chamar,E as nuvens deriva, que iam com as velasCor de prata pelo ar.

Num pavilho ao lado, andei com outras almasTambm a padecer,Imaginando se seu erro fora graveOu um erro qualquer,Quando algum sussurrou baixinho atrs de mim:- O homem tem que pender.?

Cristo! As prprias paredes da priso eu viGirando a meu redorE o cu sobre a cabea transformou-se em elmoDe um ao abrasador;E, embora eu fosse alma a sofrer, j nem sequerSentia a minha dor.

Sabia qual o pensamento perseguidoQue lhe estugava o andar,E por que demonstrava, ao ver radiante o dia,Tanta angstia no olhar;O homem matara a coisa amada, e ora deviaCom a morte pagar.

Apesar disso - escutem bem - todos os homensMatam a coisa amada;Com galanteio alguns o fazem, enquanto outrosCom face amargurada;Os covardes o fazem com um beijo,Os bravos, com a espada!

Um assassina o seu amor na juventude,Outro, quando ancio;Com as mos da Luxria este estrangula, aqueleEmpresta do Ouro a mo;Os mais gentis usam a faca, porque friosOs mortos logo esto.

Este ama pouco tempo, aquele ama demais;H comprar, e h vender;Uns fazem o ato em pranto, enquanto que um suspiroOutros no do sequer.Todo homem mata a coisa amada! - Nem por issoTodo homem vai morrer.

No vai morrer um dia a morte de vergonhaNum escuro traspasso;Nem h de Ter um pano a lhe cobrir o rosto,E no pescoo um lao;Nem atravs do cho vai atirar os psPara o vazio do espao.

No vai sentar-se, noite e dia no silncio,Com uma guarda tesaQue h de vigi-lo quando tenta o prantoE quando tenta a reza;Sempre a vigi-lo, para que no roubeDa priso sua presa.

No vai na aurora despertar com vultos hrridosCruzando o seu umbral:O tiritante Capelo todo de branco,O Xerife espectral,E o Diretor, de negro luzidio, e a caraDo Juzo Final.

Nem vai vestir, com pressa comovente, as roupasDe almas condenadas,Enquanto um mdico boal exulta, e anotaSuas tores crispadas,Manuseando o relgio com um tique-taqueDe horrveis marteladas.

Nem, a arear-lhe a garganta, vai sentir aflitoA sede que antecedeO carrasco, enluvado como um jardineiro,Que vem junto paredeE ata-o com trs correias, para que a gargantaNo sinta mais a sede.

Nem curvar a cabea para ouvir o OfcioFnebre ser lido;Nem, enquanto o terror lhe diz dentro do peitoNo ter ele morrido,Com seu caixo h de cruzar, ao se moverPara o estrado temido.

Nem atravs de um teto vtreo vai fitarO espao azul... l atrs;Nem com lbios de argila um dia vai rezarPara implorar a paz;Nem, por fim, vai sentir em sua face trmulaO beijo de Caifs.

II

Nosso guardio passeou no ptio seis semanasO cinza ainda vestia.Com seu bon de crquete e seu passo lpidoQue alegre parecia;Mas nunca em minha vida vi algum olharTo angustiado o dia.

Eu nunca vi algum na vida que tivesseTanta angstia no olhar,Ao contemplar a tenda azul que os prisioneirosDe cu usam chamar,E as nuvens divagantes arrastando velosEnredados pelo ar.

No contorcia as mos, como o imbecil que tentaNutrir, com cego af,No antro do negro Desespero, essa enjeitadaQue a Esperana v;Ele apenas se punha a contemplar o sol,Sorvendo o ar da manh.

No contorcia as mos, e nunca, fraco ou frouxo,Chorava em seu alinho,Mas o ar, como se fosse andino saudvel,Sorvia ali, sozinho;E, com a boca aberta, ele sorvia o solComo se fosse vinho!

E, no outro pavilho, eu e as demais almasTambm a padecer,Tendo esquecido se nosso erro fora graveOu um erro qualquer,Olhvamos entanto, com obtuso espanto,Aquele que ia pender.

E estranho era notar, passando, como lpidoE alegre parecia;E estranho era observar o modo como olhavaTo angustiado o dia;E estranho era pensar como era grande a dvidaQue ele pagar devia.

O olmo e o carvalho tm folhagens agradveis,Primaveril tributo;J a forca, onde a serpente finca embaixo o dente, uma rvore de luto,E, verde ou ressequida, l se perde a vidaBem antes que d fruto.

O mundano procura algum lugar na alturaComo o maior trofu;Mas quem vai ao encalo do alto cadafalsoE da corda do ru,Para enxergar por uma gola de assassinoA ltima vez o cu?

Se brilham vida e amor ao som de violinos doce e bom danar;Danar seguindo a pauta do alade ou flauta ameno e singular;No doce, ao revs, quando com geis psSe dana encima do ar!

Com mrbida suspeita, em curiosa espreita,O olhamos dia a dia,Cada um tambm assim a imaginar seu fim,Por que ningum sabiaQual rubro inferno horrvel sua no visvelAlma atormentaria.

No mais, por fim, o morto caminhava em meioAos Julgadores seus,E eu sabia que estava na terrvel jaulaCom o banco dos rus,E que seu rosto eu nunca mais veria nesteDoce mundo de Deus.

Fomos dois barcos condenados na tormenta,Cruzando um do outro a via;No fizemos sinal e no dissemos nada...Nada a dizer havia,Pois nosso encontro no se deu na noite santa,Mas no infamante dia.

Sendo dois rprobos, por muros de prisoVimo-nos, pois, rodeados;Este mundo expulsara a ns de seu regao,E Deus, de seus cuidados;Na armadilha de ferro sempre espera do ErroNs fomos apanhados.

III

No ptio o cho duro, alto o infiltrado muroAos que devem pagar;E era ali nesse limbo, sob um cu de chumbo,Que ele vinha por ar,A cada lado um Carcereiro, por temorDe que fosse expirar.

Ou noite e dia se sentava em sua angstia,Com uma guarda tesaSempre a vigi-lo - vendo-o erguer-se para o pranto,Curvar-se para a reza;Sempre ali a vigi-lo, para que o patbuloNo roubasse da presa.

Era o Regulamento, para o Diretor,Sabidamente o forte;Proclamava o Doutor que um fato cientfico,E nada mais, a morte;Dois folhetos por dia o Capelo deixava,Um piedoso suporte.

E cachimbo e cerveja, ao dia duas vezes,Tinha ele em tempo certo;Jamais oferecia esconderijo ao medoSeu esprito aberto;E muita vez dizia da sua alegriaPor ter o algoz to perto.

E carcereiro nenhum indagava porqueTinha esse estranho gosto:O homem, a quem a sina sem merc destinaNo crcere tal posto,Precisa colocar nos lbios um cadeadoE mascarar o rosto.

Seno vai comover-se, e tentar ajudarquele que o consterna;E o que pode a Piedade em Antro de Assassinos,Presa mesma caverna?Que palavra encontrar que possa confortarA pobre alma fraterna?

Cabisbaixos gingamos em torno ao pavilho,Os Bufes em parada!Pouco importava a ns, pois ramos a atroz,Satnica Brigada:E a cabea raspada e ps de chumbo fazemAlegre mascarada.

E a Brigada rasgava a corda de alcatroCom as unhas sangrantes;Ela escovava o cho, esfregava o porto,E as grandes cintilantes;E lavava o assoalho, em alas no trabalho,Com baldes reboantes.

E inda as pedras quebrava, os sacos remendava,Coa broca erguia o p;As latas estrugia, os cnticos gania,Suava junto m;Porm, no peito de cada homem se escondia,Mudo, um Terror sem d.

E mudo, todo dia, em onda ele surgia -Onda de ervas coberta;Ningum lembrava a dura sorte que amarguraA gente tola e a esperta,At passarmos ns, voltando do trabalho,Por uma cova aberta.

Era amarelo esgar a boca a bocejarE algo vivo a querer;Para o sedento asfalto a lama suplicavaO sangue, seu prazer;E soubemos nessa hora que antes de outra auroraAlgum ia pender.

Reentramos com calma, remoendo n'almaA Morte, o Medo e o Nada;Co' uma sacola o algoz foi-se a arrastar os psNa sombria morada;E cada homem tremia ao rastejar de volta tumba numerada.

Invadiam noite o corredor vazioContornos de Temor,Que erravam no desterro dessa rua de ferroCom passos sem rumor,E vinham, entre as barras que s estrelas velam,Brancas faces compor.

Ele jazia como algum que jaz e sonhaEm doce campo aberto;Os carcereiros observavam-no a dormir,Sem compreender, por certo,Como podia dormir tal sono de abandonoEstando o algoz to perto.

Os sonhos, porm, somem quando chora um homemQue nunca chorou antes:E assim, sem fim vigiamos ns - ns, os velhacos,Os tolos, os meliantes;E a nossas mentes veio, a rastejar, alheioTerror com mos crispantes.

Ai! Que tremenda coisa a remoer a culpaQue dos outros por direito!T o cabo envenenado a espada do PecadoCravou-se em nosso peito,E foi chumbo fundido o pranto ali vertidoPelo que fora feito.

Com sapatos de feltro os guardas se esgueiravamNas portas com cadeado;O seu olhar de espanto via em cada cantoUm vulto recurvado;E no sabiam por que se ajoelhava a orarQuem nunca havia orado.

A noite toda oramos, loucos pranteadoresDo morto a nosso encargo!As plumas no caixo eram as que agitavaA meia-noite ao largo;E ao sabor do Remorso era o sabor da esponjaCom o seu vinho amargo.

Cantou o galo cinza, e ento o galo rubro,Mas nunca vinha o dia:Com formas tortas, de tocaia em nossos cantos,O Terror prosseguia;Turbavam nossa paz todas as almas msQue erram na hora tardia.

Em vo veloz, iam por ns tal como um bandoQue em meio neve passa;Com torneio e toro, seu fino rigodoDa lua faz chalaa,Nesse encontro espectral de andamento formalE repulsiva graa.

Com trejeitos se vo as sombras, mo com mo,Formando uma cadeia;Sua lenta ciranda era uma sarabandaEm fantasmal colmeia,Desenhando - os grotescos - doidos arabescos,Como o vento na areia!

Fazendo piruetas como marionetes,Saltitavam absortos;Mas com flautas de Horror erguiam seus clamorHediondos e retortos...Seu canto era alongado, seu canto era gritado,Canto que acorda os mortos.

- Oho!? Clamavam. - Largo o mundo! Mas que embargo um membro acorrentado!E tambm corts, sim, uma ou outra vezArremessar o dado;Na Casa da Vergonha, entanto, jamais ganhaQuem joga co'o Pecado.?

No era apenas ar o bando a cabriolarCom tal gozo e prazer:Para quem tinha a vida por grilhes contidaE no podia correr -Chagas de Cristo! - os seres eram coisas vivas,Terrveis de se ver.

Rodavam frente a frente. Rindo tolamente,Uns aos pares valsavam;Outros, com requebrar prprio de um lupanar,Nos degraus se esgueiravam...Com seu desdm sutil e seu olhar servil,A orar nos ajudavam.

Ps-se ento a gemer o vento da manh,Sem noite espantar -A noite que tecia a teia da agoniaNo seu grande tear;E, orando ali, bem cedo nos venceu o medoDa Justia Solar.

Gemendo, o vento em volta dos chorosos murosVagava; at que, enfim -Roda de ao a girar - sentimos o arrastarDos minutos sem fim.Vento gemente! O que fizemos para termosUm senescal assim?

Eu vi ento as negras barras (gelosiaCom o chumbo forjada)Movendo-se, ante a minha cama de trs pranchas,Na parede caiada,E soube que nalgum lugar fazia DeusSer vermelha a alvorada.

s seis horas limpamos nossas celas,s sete tudo espera...E o vibrar e o voltear de uma asa poderosaSobre o crcere impera,Pois o Senhor da Morte - o bafo frio e forte -Para matar viera.

Em real pompa no passou, nem cavalgouCorcel branco-lunar.O alapo corredio e trs jardas de fioBastam para enforcar:Co'a corda da vergonha veio a ao medonhaO Arauto praticar.

ramos como um bando em pntano tateandoNa suja escurido:No ousvamos dar vazo nossa angstia,Dizer uma orao;Algo morrera em ns, e o que morrera foraA Esperana... a Iluso.

Pois a cruel Justia do Homem Segue avante,Vai firme, no trepida:Tanto ela mata quanto mata o forteEm sua mortal corrida... com taco de ferro que ela mata o forteA hedionda parricida!

Grossa de sede a lngua, espera das oito horasSentamo-nos toa,Porque o bater das oito o sino do DestinoQue nos amaldioaE tem a seu servio um lao corredioPara a alma ruim e a boa.

Ficamos cada qual espera do sinal(Nenhuma opo melhor),Como coisas de pedra em vale solitrio,Sem voz e sem rumor;Mas cada corao batia lesto e presto,Qual louco num tambor!

Quando, em sbito choquem, vem do relgio um toqueQue fere o ar invernoso;Ento, todo o presdio deu triste gemidoDe desespero ocioso,Igual ao som que chega aos assustados charcosDo covil de um leproso.

E, como muitas vezes no cristal de um sonhoV-se o pior delito,Eis na trave enganchada a corda besuntadaDe cnhamo maldito,E eis o som da orao que o lao do carrascoEstrangulou num grito.

Somente eu conheci a dor que o fez berrarCom amargor to forte,E os remorsos violentos e suores sangrentosDe sua negra sorte:Quem vive mais do que uma vida tambm deveMorrer mais que uma morte.

IV

O Capelo no reza o culto na capelaQuando enforcam algum:Tem nesse dia o corao muito enojado,Palor nas faces tem;Ou aquilo que traz nos olhos estampadoNo deve olhar ningum.

Assim, trancaram-nos at quase meio-dia;E eis o sino afinal..Nossos guardas abriram cada cela escutaCom tinir de metal,E cada homem deixou, pelos degraus de ferro,O Inferno pessoal.

Samos para o doce ar do Senhor. Porm,No como se soa,Visto que o medo acizentava o rosto de umE o de outro embranquecia;E nunca em minha vida vi um bando olharTo angustiado o dia.

Eu nunca vi um bando que tivesseTanta angstia no olharAo ver a tenda azul que de cu, no crcere,Usvamos chamar,E cada nuvem descuidada que passavaLivre e feliz pelo ar.

Mas entre ns havia alguns que caminhavamCom semblante cado,Por que sabiam que eles que a morte mereciam,Tivessem o devido:O outro matara quem vivia: eles, porm,Quem havia morrido.

Quem peca vez Segunda acorda uma alma mortaPara nova aflio;Ergue-a do plio maculado e novamenteA faz sangrar ento;Grandes gotas de sangue ainda a faz sangrar,E a faz sangrar em vo!

Quais monos ou bufes, eis-nos em feia vesteDe flechas recamada...amos em silncio, roda, sempre roda,Na lisa rea asfaltada;amos em silncio, roda, sempre roda,Ningum a dizer nada.

amos em silncio, roda, sempre roda,E a Memria feroz mente oca invadia com atrozes coisas,Tal como um vento atroz.E nossa frente o Horror marchava e, rastejando,Vinha o Terror emps.

Andando acima e abaixo, os guardas dominaramSeu bando de animais;Vestiam todos uniformes impecveis,Trajes dominicais;Mas no que haviam trabalhado a cal nas botasMostrava bem demais.

Pois onde antes se vira escancarada covaJ no havia mais nada:Apenas um espao com areia e lama,Junto muralha odiada,E abrasadora cal, para que mortalhaAo homem fosse dada.

Sim, tem mortalha, esse infeliz! E tal mortalhaPouca gente reclama,Pois sob um ptio de priso descansa nuPara agravo da fama,E, com grilhes de ferro em cada p, envoltoPor um lenol de chama!

E, custica, lhe come a cal, o tempo todo,Osso e carne macia;Devora os ossos quebradios quando noite,E a carne quando dia...Dia e noite, porm, devora o corao,Que a fome lhe sacia.

Por um longo trinio, mudas ou razesNingum l vai plantar;Por um longo trinio, estril, nu serO maldito lugar,Que h de ficar mirando o azul de cu atnitoSem represso no olhar.

Julgam que o corao de um assassino os grosPlantados mancha e estanca.No verdade! A terra franca do SenhorNo sabem quanto franca;E a rosa rubra desabrocha inda mais rubra,A branca inda mais branca.

A rosa rubra vem de sua boca, a brancaDo corao malquisto!Quem dizer poderia por que estranha viaO seu querer faz Cristo,Quando ante o papa at o basto do peregrinoReflorescer foi visto?

Mas rosa, rubra ou lctea, florescer no lograAqui no ar da priso;Aqui neste lugar, o cacom o seixo e a pedraSo tudo o que nos do,Por que sabem que as flores podem nos curarA desesperao.

Portanto, nunca ir rosa alva ou cor-de-vinhoCair despetaladaNaquele estreito espao com areia e lama,Junto muralha odiada,A anunciar que Deus quis que a vida de Seu FilhoPor todos fosse dada.

Contudo, embora o odiado muro da prisoAinda o cerque tirano,E no possa um esprito vagar noiteCom grilhes a seu dano,E no possa um esprito chorar se jazEm tal solo profano,

Ele est em paz, o desgraado... Ou logo em pazH de estar a alma sua:Nada mais o perturba; e ali, ao meio-dia,O Terror no o acua,Visto que a terra mida e sem luz em que descansaNo tem nem Sol nem Lua.

Foi enforcado como enforcam animais:Nem mesmo foi tangidoUm requim para dar repouso a seu espritoConfuso e espavorido;Mas bem depressa o retiraram, e o puseramNum buraco escondido.

Sem as roupas de estopa, foi arremessadoAo mosqueiro voraz;E todos riram da garganta rubra e inchada,Do olhar fixo e tenaz...E o desdm que gargalha eivou toda a mortalhaEm que o culpado jaz.

Junto cova injuriada o Capelo no veioDe joelhos orar,Nem a marcou co'a cruz bendita que deu CristoAo pecador vulgar,Pois era esse homem um daqueles a quem CristoDesceu para salvar.

Mas tudo bem! Cumpriu apenas o destinoTraado pela vida;E por um pranto estranho a urna da Compaixo,Trincada, ser enchida,Pois prias vo prante-lo, e os prias choram sempre,E choram sem medida.

V

No sei se as Leis so justas ou se as Leis so falhas...Isso no cabe a mim.Ns s sabemos, na priso, que o muro forte;Como sabemos, sim,Que cada dia um ano, um ano cujos diasParecem no ter fim.

Mas isto eu sei, que toda Lei que a humanidadeFez para o Ser Humano - Desde que a Abel matou Caim, e desde o incioDe nosso mundo insano -Transforma o trigo em palha e salva s o fareloCom um cruel abano.

Tambm sei isto - e que isto seja em toda menteUma noo tranqila:Tijolos de vergonha o que usam na prisoQuando vo constru-la,E grades pem para Jesus no ver como o homemOs seus irmos mutila.

Com barras o homem borra a graciosa luaE cega o sol feraz:E conservar coberto aquele Inferno certo,Pois l dentro se fazAlgo que nem Filho de Deus nem Filho do HomemDevem olhar jamais!

Como ervas venenosas as aes mais visBrotam no ar da priso;Ali, somente as coisas que so boas no HomemSecaro, murcharo...Guarda a porta pesada a Angstia; e o Carcereiro a Desesperao.

L a criana assustada fica mngua atQue chore noite e dia;L se fustiga o fraco, e se flagela o tolo,E ao velho se injuria;L muitos endoidecem, todos se embrutecem,Ningum se pronuncia.

A nossa pequenina cela uma latrinaDe treva e sujidade.E o bafo azedo e forte de uma viva MorteSufoca toda grade;Resta a Luxria s - e tudo mais pNa m da Humanidade.

A gua salobre que bebemos traz consigoUma nojenta lama,E o po amargo que eles pesam na balanaTem greda em cada grama,E o Sono, com olhar selvagem, no se deita,Mas para o Tempo clama.

Porm, se a magra Fome e a Sede esto qual spideE vbora em porfia,Pouco importa a comida na priso servida,Pois o que mata e esfria que de noite o corao se torna a pedraQue se ergue quando dia.

Tendo no peito a meia-noite, e em sua celaCrepsculo eternal,Cada homem rasga a corda ou gira a manivelaNo Inferno pessoal,Quando o silncio mais terrvel do que o somDe um sino de metal.

E jamais se aproxima com palavras docesA doce humana voz;E o olho a vigiar constantemente junto porta impiedoso e feroz...E, nessa alheao, apodrecendo voCorpo e alma em todos ns.

E a corrente da Vida assim enferrujamosNa torpe solido:E alguns homens praguejam, e outros homens choramOu nem gemidos do...Mas as eternas Leis de Deus rompem bondosasO ptreo corao.

E cada corao no crcere partido - Na cela ou onde for - como aquele frasco roto que entregou Seu tesouro ao Senhor,E encheu o lar do impuro lzaro com nardoDo mais alto valor.

Feliz o corao partido: pode a pazDo perdo conquistar!Seno, como o homem vai fazer reto o seu planoE do Erro se limpar?Como pode, a no ser por corao partido,O Senhor Cristo entrar?

E o de garganta rubra e inchada, o de olhar fixo,Aguarda enternecidoAs santas mos que ao paraso o bom ladroHaviam conduzido;E Deus jamais desprezar um coraoContrito e arrependido.

Trs semanas de vida deu-lhe o homem da LeiCom a rubra casaca,Trs pequenas semanas, para curar na almaO mal que alma lhe ataca,Limpar cada sinal de sangue sobre a moQue segurou a faca.

E ele lavou com lgrimas de sangue a moQue guiou o cutelo,Pois s o sangue limpa o sangue, e apenas lgrimasLivram do pesadelo...E a ndoa carmesim que fora de CaimDe Cristo o nveo selo.

VI

No crcere de Reading junto a Reading TownH um fosso de m fama,E nele jaz um desgraado a quem devoramCruis dentes de chama.Jaz num sudrio ardente, e o msero sepulcroSeu nome no proclama.

E, at que Cristo chame os mortos, ali possaEm silncio jazer...No preciso dar suspiros ocos, nemTolo pranto verter:Aquele homem matara a sua coisa amada,E tinha que morrer.

Apesar disso - escutem bem - todos os homensMatam a coisa amada;Com galanteio alguns o fazem, enquanto outrosCom face amargurada;Os covardes o fazem com um beijo,Os bravos, com a espada!

OUTRA TRADUO

Balada do Crcere de Reading Traduo de Gondin da Fonseca

por C. 3. 3. - memria de C.T.W.Soldado que foi da Real Guarda Montada.Morreu na Priso de Sua Majestade, Reading, Berkshire7 de julho de 1896.

Ele despira a tnica vermelha;

mas sangue prpuro, encarnado,

sangue e vinho das mos lhe gotejavam,

quando o viram, alucinado,

junto do leito dela, - o seu amor,

seu pobre amor apunhalado.

Ia andando entre os mais, e era cinzento

o traje velho que vestia.

Usava um gorro s listas, e o seu passo

ligeiro e alegre parecia.

Porm eu nunca vi homem que olhasse,

to anelante, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,

com to profundo sentimento,

essa breve, essa estreita faixa azul

que os presos chamam firmamento:

e as nuvens brancas, velas cor de prata,

vogando no ar, flutuando ao vento!

Eu, com outras almas angustiadas, ia

andando em ptio separado,

a cismar qual o crime, grande ou leve,

por que o teriam condenado,

- quando algum sussurrou atrs de mim:

"vo pendurar esse coitado!"

Jesus! as prprias grades da priso

rodam, de sbito, em delrio!

Pesa o cu sobre mim, qual elmo de ao

que o Sol inflama, - ardente crio!

E a minha alma, de mgoas trespassada,

esquece, olvida o seu martrio.

Eu soube, ento, a idia lacerante

que o atormenta, e o faz correr,

e o faz olhar, tristonho, o cu radiante,

radiante, e alheio ao seu sofrer:

ele matou aquela que adorava,

- por causa disso vai morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:

o seu amor, o seu ideal.

Alguns com uma palavra de lisonja,

outros com um frio olhar brutal.

O covarde assassina dando um beijo,

O bravo mata com um punhal.

Uns matam o Amor velhos; outros, jovens;

(quando o amor finda, ou o amor comea);

matam-no alguns com a mo do Ouro,

e alguns com a mo da Carne, - a mo possessa!

E os mais bondosos, esses apunhalam,

- que a morte, assim, vem mais depressa.

Uns vendem, outros compram; uns amam pouco,

noutros, o Amor dura de mais;

uns enterram-no aos ais, vertendo pranto,

outros sem prantos e sem ais:

todo o homem mata o Amor; porm, nem sempre,

nem sempre as sortes so iguais.

Nem sempre ele padece morte infame,

por um dia trgico e bao,

o capuz na cabea, e na garganta

a corda fria, o horrendo lao;

nem fica a balanar, do alto de um poste,

- soltos os ps e as mos no espao.

Nem vai sentar-se entre homens silenciosos.

que esto imveis, de vigia,

ou procure rezar; ou chore, triste,

em amarssima agonia:

a sua vida presa da priso,

- ah, no a roube ele algum dia!

Nem v, ao despertar, sombras estranhas

cruzando a sua mida cela:

o Capelo, de branco e vacilante,

mais o Xerife, atroz, que o vela;

e o Diretor, de luto, como a Sorte,

- a face plida, amarela.

Nem tem de erguer-se arrebatadamente,

vestir as roupas da priso,

enquanto algum doutor, boal, lhe espia

a mais ligeira contoro,

- com o tique-taque hostil do seu relgio

a martelar-lhe o corao:

Nem vai sentir, fogosa, na garganta,

uma secura imitigvel,

antes que o Algoz, Soturno, abrindo a porta,

- hirto, enluvado, inexorvel, -

o ate com trs correias, pra que nunca

sofra mais sede, o insacivel!

Nem tem de ouvir, curvado, o Ofcio Fnebre,

Ofcio Fnebre de morto;

nem, pensando que ainda no morreu,

contemplar, transido, absorto,

o seu prprio caixo, entrando, lento,

no seu antro de Desconforto.

Nem, por teto de vidro, enxergar,

do dia, a luz tnue e fugaz;

nem a Deus rogar, com lbios secos,

breve agonia, - o Sono, a Paz;

nem sentir, na sua face trmula,

o beijo torpe de Caifaz.

II

Seis semanas inteiras ele andou

com a veste usada que trazia.

Tinha um gorro de listas, e o seu passo

ligeiro e alegre parecia;

porm eu nunca vi homem que olhasse,

to anelante, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,

com to profundo sentimento,

essa breve, essa estreita faixa azul

que os presos chamam firmamento;

e as nuvens esgaradas no horizonte,

- flocos de espuma errando ao vento!

No retorcia as mos, - tal como alguns

de idia curta, e alma lou,

que ousam crer, mesmo em negro Desespero,

numa Quimera estulta e v:

ele fitava, calmo, a luz da aurora

sorvendo o ar puro da manh.

No retorcia as mos e no chorava,

nem lamentava o seu inferno;

ia, apenas, bebendo o ar como um blsamo,

blsamo bom, blsamo eterno...

Abria os lbios e bebia o Sol

como uma taa de falerno.

E eu, e todos os mais, - ns que penvamos

num outro ptio separado,

esquecemos de pronto as nossas faltas,

a nossa Sorte, o nosso Fado,

para seguir, com olhar de assombro, esse homem

que ia, entre ns, ser enforcado!

E era estranho que o vssemos andando,

- to leve e alegre parecia...

E era estranho que o vssemos fitando,

to anelante, a luz do dia.

E era estranho lembrar que ele, a sua dvida,

de tal maneira a pagaria.

Tem lindas folhas o lamo e o carvalho,

que em maio brotam viridentes:

mas medonha a forca, - arvore negra,

raiz mordida de serpentes:

e verde ou seca, morre o condenado

sem lhe avistar frutos pendentes.

para o cu, para o azulado empreo,

que o anseio humano se alevanta!

Mas quem, do alto da forca, atado a um lao,

com a corda presa na garganta,

ergue seu turvo olhar ao firmamento

quando o carrasco se adianta?

Danar, ao som de um violino, enleva,

se a Vida bela e belo o Amor;

danar, ao som de flautas e alades,

raro, fino, embalador...

Mas horrvel, no ar, com os ps ligeiros,

danar, num ltimo estertor!

Curiosamente, mudos, consternados,

o vigivamos dia a dia,

pensando que talvez nosso destino

igual ao dele acabaria:

pois ningum sabe pra que rubro inferno

sua alma, cega, se transvia.

Por fim, deixei de v-lo entre os mais presos,

sempre sozinho, vagamundo...

Soube ento que o levaram; que jazia

em negro crcere profundo,

e que eu, jamais, de novo o enxergaria,

neste belo, divino mundo...

Dois navios perdidos que se cruzam

em ruim paragem tormentosa,

- ns nos cruzamos, mudos, sem um gesto,

numa atitude silenciosa:

pois de dia nos vimos (no de noite)

e a luz casta, vergonhosa.

Muros de uma priso nos circundavam,

ramos rus por nossos danos.

Deus e o seu mundo, inexoravelmente,

nos repeliram desumanos;

e a sinistra armadilha do Pecado

nos seduziu com seus enganos.

III

um forte, o ptio dos Endividados:

muralhas frias, pedra dura.

L passeava ele no ar, sob o cu plmbeo,

entre dois guardas da clausura,

temerosos que o preso lhes morresse

de qualquer morte prematura.

Ou sentava-se entre esses que sua dor

sempre ficavam de vigia,

quer de joelhos, rezasse, quer se erguesse

para chorar sua agonia;

- no fosse ele roubar-lhes uma vida

que s fora pertencia.

O Diretor timbrava em executar

a letra do Regulamento;

para o Doutor, a morte era, em cincia,

um banal acontecimento;

- duas vezes por dia o Capelo

deixava um opsculo ao detento...

Duas vezes por dia ele fumava

o cachimbo, e bebia um trago.

Sentia a alma valente, e sem lugar

para o pavor, o medo aziago:

e dizia esperar, nimo alegre,

do Carrasco o sinistro afago.

Mas nenhum guarda nunca perguntou

a razo desse estranho gosto...

Os Guardas da Cadeia! Quem por sorte,

quem por sorte ocupe esse posto,

deve trazer nos lbios um cadeado

e andar de mscara no rosto.

Pois de outra forma se comoveria,

tentaria uma frase amena...

Mas no "Antro de Homicidas", que diria

da Caridade a voz serena?

Que palavra de alvio ela traria

a uma alma irm, nessa geena?

Cadenciados, marchando em volta ao ptio,

ns somos loucos em parada!

Que importa? Bem sabemos que Sat

o general desta Brigada.

Lenta, arrastando os ps, cabelo curto,

l vem a alegre mascarada!

Desfiamos cordas alcatroadas, rijas,

- unhas gastas, dedos sangrentos;

esfregamos o cho, limpamos portas,

e metais claros, espelhentos;

e enxaguamos, aos turnos, o assoalhado,

batendo baldes barulhentos.

Cosemos sacos e quebramos pedras,

furamos tbuas com uma pua.

Tinem marmitas; cantos se misturam;

gira o moinho, e a gente sua...

Mas dentro da nossa alma, um terror mudo,

um terror grande se insinua.

Por isso os dias correm lentos, como

vagas, rolando com sargaos!

E ns nos esquecemos do Destino,

que os homens vis prende em seus laos,

- quando, ao vir do trabalho, um dia, vemos

uma cova, ante os nossos passos.

Boca amarela e rude, ela bradava

por uma vitima; e, feroz,

a terra hostil pedia sangue ao ptio,

- pedia sangue, em alta voz!

Ah! logo vimos que ao romper da aurora

iria forca um dentre ns.

Recolhemo-nos todos, a alma atenta

Morte, Sorte, e ao Medo infando.

O Algoz passou com o seu pequeno saco,

na treva os passos arrastando:

e cada qual, na tumba numerada,

se enfiou, trmulo e cismando.

Nos longos corredores, essa noite,

a Sombra e o Medo erraram juntos;

pelo Antro Frreo, passos se sentiam,

sem som, furtivos, desconjuntos...

E por fora das grades, espiavam

faces macabras de defuntos.

E ele dormia calmo, como quem

dorme em abril, numa clareira.

Os que, de noite, o sono lhe vigiavam,

no sabiam de que maneira

podia algum dormir, to sossegado,

tendo o Carrasco cabeceira.

No h, porm, repouso, quando choram

os que nunca verteram pranto!

Assim, ns, criminosos, ns velamos,

(noite sem fim, de Horror e Espanto!)

e a angstia alheia, - a Dor No-la estendeu

por sobre as almas, como um manto.

Ai! do Pecado de outrem, como dura,

como terrvel a expiao!

Ai! com o gldio do Mal, envenenado,

varando o nosso corao,

- que lgrimas de fogo no choramos

pelo crime daquele irmo!

Com sapatos de feltro, s nossas portas

passavam, mudos, os rondantes;

e viam, surpreendidos, pelas frestas,

formas humanas, vacilantes:

e estranhavam por que que erguiam preces,

esses que nunca oraram dantes!

Loucos, velando um morto, ns rezamos,

ajoelhados, fitando o cu.

A escurido da noite, parecia

de uma ea negra o negro vu.

E era esponja embebida em vinho amargo,

o Remorso de cada ru.

Cantaram galos, rubros e cinzentos,

sem que rompesse o dia aps...

Tortuosas formas ttricas, nas celas,

nos transiam de horror atroz:

e os espritos maus da noite-morta,

riam, pulando em frente a ns.

E rpidos giravam, deslizavam,

como viandantes na neblina.

Imitavam a Lua, contorcendo-se

em pose grcil, feminina:

e, passos nobres, elegncia odiosa,

chegavam outros, em surdina.

Alegres, trejeitando, e de mos dadas,

entram, de sbito, em ciranda!

Rodopiam fantasmas em delrio,

numa grotesca sarabanda;

e, caricatos, fazem arabescos,

como o vento na areia branda!

Com piruetas gentis de marionetes,

leves, levssimos bailavam!

Era estridente a msica do Medo

com que o seu baile acompanhavam:

e, para despertar na cova os mortos,

alto, bem alto, eles cantavam:

"Oh! - diziam - o mundo largo. A viagem

para os trpegos, enfadonha!

Jogar os dados uma ou duas vezes,

de bom-tom, gente bisonha!

Mas, ai! perde quem joga com o Pecado,

na oculta Casa da Vergonha."

No eram sombras vs, esses fantoches,

volteando em doida alacridade!

Para ns, - vidas presas na Priso,

ps tolhidos, sem liberdade,

eram, - Senhor do Cu! - entes bem vivos

e de execranda fealdade!

Sempre ao redor, valsavam contorcendo-se:

alguns, giravam com seus pares;

outros subiam, geis, as escadas,

em atitudes singulares...

E outros arremedavam nossas preces,

rindo, a zombar, fazendo esgares.

Gemia o vento da manh, l fora,

mas a noite, sem arrebol,

em seu tear gigante inda tecia,

da treva, o fnebre lenol!

E ns, a orar, soframos, temendo

a Justia clara do Sol.

Gemia o vento em volta das muralhas

do mido crcere infernal;

e o Tempo, enfim, moveu-se, - como roda

de ao, a girar no vendaval.

vento soluante! que fizemos,

para te ter por senescal?

Por fim, a sombra amarga da janela,

ferros cruzados em xadrez, -

ante o meu catre, na parede branca,

foi surgindo, com timidez...

Vi que a aurora de Deus, rubra de sangue,

rompera, algures, outra vez.

Varremos, s seis horas, nossos quartos;

e s sete, como em pesadelo,

um bater de asas, forte, encheu os ares,

passou, num trgico arrepelo.

Era o Senhor da Morte que chegava,

com frio hlito de gelo.

E no chegou, pomposo, em corcel branco,

manto de rei, de arminho e penas.

Bastam forca uns metros, s, de esparto,

e uma tbua, das mais pequenas...

Para o trabalho oculto, o Arauto veio

com a corda da Desonra apenas.

ramos como quem, num brejo escuro,

a tatear, trmulo avana.

Nem j tnhamos nimo de orar,

nem de entrever paz e bonana!

Morrera dentro em ns alguma coisa:

morrera, em ns, nossa Esperana.

A Justia dos Homens, firmemente,

segue na sua arremetida:

implacvel, severa, vai levando,

o forte e o fraco de vencida:

- com calcanhar de ferro esmaga o forte,

a monstruosa parricida!

O toque das oito horas aguardamos,

cheios de sede, - ardor aflito!

pois o toque das oito o do Destino

com que nasceu o homem maldito;

e o Destino usa sempre a mesma corda,

para o justo e para o prcito.

S tnhamos, sentados, que esperar

por esse toque ameaador...

Pedras soltas, num vale abandonado,

era sem fim nosso torpor:

mas, agitado, o corao batia,

como um demente num tambor!

Sbito, na Priso, bate o relgio,

e o som, pelo ar, vibra espantoso!

E um gemido de dor, de desespero,

ecoa, lgubre, estrondoso,

- qual o grito que lana, num pau,

a boca negra de um leproso!

Como quem, no cristal claro de um sonho,

v uma tragdia apavorante,

assim vimos a corda gordurosa

balanar, no poste infamante;

e ouvimos a orao, que o n do Algoz

cortou, num grito lancinante.

Eu compreendi, melhor do que ningum,

aquele grito amargo e forte,

e o seu remorso, e o seu suor de sangue,

e a angstia, o horror da sua sorte!

- Pois o que vive mais do que uma vida,

deve morrer mais que uma morte.

IV

No h ofcio, no dia em que na forca

um preso cumpre a sua sina:

ou sente, o Capelo, plida a face,

ou grande dor d'alma o domina;

ou, coisas que ningum deve saber,

inda lhe bailam na retina.

Meio dia era j, quando vibrou

do sino o toque funerrio!

A cada qual, espiando, os guardas abrem

a cela, - e em passo tumulturio,

vamos descendo a frrea escada, livres

do nosso inferno sedentrio.

Fomos andando ao ar suave de Deus,

mas, como dantes, ningum ia;

- pois, faces brancas uns, outros cinzentas,

o medo nelas transluzia!

E eu nunca vi ningum olhar assim,

ansiosamente, a luz do dia.

Eu nunca vi ningum olhar assim,

com to profundo sentimento,

essa breve, essa estreita faixa azul

que os presos chamam firmamento.

E as nuvens, sem cuidado, ao longe, no ar,

felizes, livres como o vento!

Mas, entre ns, havia uns que marchavam

cabisbaixos, alma aflitiva,

sabendo bem que a forca mereciam,

pois sua falta era excessiva:

mataram uma coisa morta, e o outro,

- apenas uma coisa viva.

O que peca segunda vez acorda,

para a Dor, uma alma dormente:

tira-a do seu sudrio maculado,

e a faz sangrar sangue vivente;

e a faz sangrar, num jorro largo e forte,

e a faz sangrar inutilmente.

Quais monos e trues, vestes listadas,

bizarramente, uma por uma,

seguimos, silenciosos, dando a volta

ao ptio escuro, envolto em bruma;

seguimos, silenciosos, dando a volta,

e ningum disse coisa alguma.

Seguimos, silenciosos, dando a volta,

e nossa mente, oca, vazia,

a memria fatal de coisas fnebres,

um vento fnebre a trazia:

e o Horror nos enfrentava a cada passo,

e o Terror brbaro, o seguia.

Passam guardas de um lado para o outro,

vigiando, espiando a horda de brutos,

Seus uniformes novos, de domingo,

brilham, asseados, impolutos:

mas a cal dos sapatos denuncia

o que fizeram h minutos.

Pois onde a cova tinha sido aberta,

no se notava a menor falha:

s uma faixa de terra e areia fofa,

junto da horrenda muralha;

e um punhado de cal, da que serviu

ao pobre morto, de mortalha.

Ai! mortalha de cal, abrasadora,

bem pouca gente que a reclama!

Sob um ptio de crcere (e despido,

para mais triste e negra fama!)

ele dorme, com os ps acorrentados,

envolto num lenol de chama.

E por tempo sem conta a cal roer

a carne e os ossos desse irmo:

de noite os ossos duros, e de dia,

a carne mole, em consumpo:

comer turno a turno a carne e os ossos,

mas, sem cessar, o corao!

Trs longos anos, nada iro plantar

nesse local de desventura!

Maldito ficar trs longos anos,

maninho estril de secura!

E olhar, com assombro, o cu distante,

amargamente e sem censura.

Pensam que o corao de quem matou,

tisna a semente dadivosa.

No! A Terra de Deus acolhedora,

e, mais que o homem, generosa:

mais rubra floriria a rosa rubra

e mais de neve a nvea rosa!

Brotar-lhe-ia uma rosa cor de sangue

da boca! E, branca, outra do peito!

Quem sabe? Tem Jesus estranhas vias,

e estranho, s vezes, seu conceito:

- fez, outrora, ante um Papa, abrir-se em flores

seco bordo de um Seu eleito.

Mas nem rosas vermelhas, nem de neve,

podem florir nestes terrenos.

S nos do cacos, slex e pedras;

s nos do mgoas e venenos...

A flor abranda o Desespero aos simples,

- e crime, aqui, sofrer de menos.

Ah! jamais rosas brancas ou vermelhas

ptala a ptala cairo sobre essa lama em que ele dorme, unido

ao muro hediondo da Priso,

- pra lembrar que Jesus morreu por todos,

a ns, e aos outros que viro!

Contudo, embora a ttrica muralha

o envolva, o cinja em frreo abrao,

e um esprito de ps acorrentados

no possa, noite, errar no espao,

mas s chorar, chorar, nessa mpia terra,

morto de mgoa e de cansao,

Ele dorme em sossego, - o malfeliz!

ou dormir, dentro de pouco!

No mais, vendo o Terror em pleno dia,

sofre, e receia ficar louco.

No mais! a Negra Ptria em que repousa,

no tem, nem sol, nem luar tampouco!

Enforcaram-no, assim como a uma fera!

Nenhum sino dobrou na igreja,

que ao seu transido esprito trouxesse

uma paz doce, benfazeja:

mas depressa o esconderam numa cova,

onde a parede mais negreja.

Despiram-no. Em seguida o abandonaram,

e com sarcstico sorriso,

fitaram-lhe a garganta, inflada e prpura,

o olhar imvel, indeciso...

E envolveram-no, aps, numa mortalha,

brutos, torcendo-se de riso.

Jamais o Capelo se ajoelharia

na sua campa, que traduz

a Desonra, e jamais nela poria

a triste bno de uma Cruz,

- visto ele haver pecado, e ser dos mseros

por quem veio morrer Jesus.

Enfim, tudo acabou. Do Reino Escuro

ele transps o limiar.

A urna da Piedade, urna partida,

h de, por ele, transbordar!

Por ele choraro todos os rprobos,

esses que sempre ho de chorar.

V

No sei se as Leis so justas ou se injustas.

Os pobres presos miserveis

s sabem que as muralhas da priso

so altas, fortes, inviolveis;

e que um dia mais longo do que um ano,

- ano de dias infindveis.

Mas sei que as Leis, que o Homem, para o homem

fez, com seu nimo iracundo,

desde o primeiro que matou o irmo,

e deu incio Dor do mundo,

so peneiras que guardam joio vil

e atiram fora o gro fecundo.

E sei tambm (assim todos soubessem!)

que as paredes de uma Priso

so feitas com tijolos de ignomnia

e tm grades negras, que so

para Cristo no ver como o Homem trata

barbaramente o seu irmo.

Grades que a lua amvel desfiguram,

e o sol, de raios triunfais!

melhor, sim! que escondam esse inferno:

pois l se passam coisas tais,

que nem Filho de Deus nem filho de Homem

as deveria olhar jamais.

Como planta daninha, o ato mais vil

floresce bem, no ar da cadeia.

S o que bom no homem l se perde,

s o que mau l se granjeia.

H dentro um guarda: o Desespero; e porta,

a Angstia fica de alcatia.

Matam de fome as tmidas crianas,

at que chorem noite e dia;

azorragam os fracos e os dementes,

maltratam velhos porfia.

Uns enlouquecem; todos se pervertem,

- mas ningum diz sua agonia.

Cada clula estreita uma latrina

escura, ftida, nojenta!

Um hlito mortal, fecalizante,

enche a lucarna pardacenta.

Tudo morre; a Luxria, apenas, vive

e a Humana Mquina atormenta.

A gua suja e salobra que bebemos,

lodo e imundcie traz consigo.

O po amargo e escasso, que nos do,

tem cal e gesso mais que trigo.

E o Sono, sem dormir, pede, em desvairo,

que o Tempo abrande o seu castigo.

Embora em ns a Fome e a Sede lutem,

como serpentes em refrega,

ningum cuida em sustento. O que nos mata

, quando desce a noite cega,

sentir cada um, no corao, as pedras

que o dia inteiro ele carrega.

Com meia-noite dentro d'alma, e a cela

num crepsculo funerrio,

damos manivela e esfiamos cordas

em nosso inferno sedentrio.

E o silncio apavora, mais que o bronze

a redobrar num campanrio.

Nunca uma voz amiga vem falar-nos,

meiga, num gesto humano e puro:

o olhar que nos vigia, no postigo,

impiedoso, spero e duro:

apodrecemos, - alma e corpo em runas,

esquecidos neste monturo.

Arrastando os grilhes frreos da Vida,

vamos, sozinhos, degradados:

um se maldiz; o outro chora; - e seguem

em silncio, os mais desgraados;

mas a Divina Lei suaviza e parte

os coraes dos condenados.

E cada um que se parte, na Priso,

como aquela nfora cheia

que outrora se partiu, e o seu tesouro

deu a Jesus da Galilia,

espargindo na casa do Leproso

o olor do nardo da Judia.

Feliz esse que parte o corao

e ganha a Paz, e ganha o Amor!

Quem, de outra forma, pode libertar-se

do Pecado escravizador?

E onde, a no ser num corao partido,

entra Jesus, Nosso Senhor?

Ah! o morto de garganta inflada e prpura,

e olhar imvel, indeciso,

aguarda as santas mos, que o Bom Ladro

exaltaram ao Paraso:

Deus no despreza os coraes contritos,

e estranho, s vezes, seu juzo.

O homem da lei, vestido de vermelho.

deu-lhe, de vida, trs semanas,

para a sua alma conciliar consigo,

e sem idias ruins, tiranas,

purificar do sangue derramado,

as mos, um dia desumanas.

E ele purificou, chorando sangue,

as rudes mos de instintos crus:

pois s o sangue lava o prprio sangue

e s o pranto ao Bem reconduz:

e a ndoa rubra de Caim transforma

na branca aurola de Jesus!

VI

No crcere de Reading, junto a um muro,

terra de oprbrio os ossos come

de um desgraado, envolto num sudrio

que o afogueia e que o consome!

uma campa infamante essa em que jaz,

uma campa que no tem nome!

E a, at Jesus chamar os mortos,

tranqilamente h de jazer.

Intil verter lgrimas inteis,

e dar suspiros, e gemer.

- Ele matou aquilo que adorava,

teve, por isso, de morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:

o seu amor, o seu ideal.

Alguns com uma palavra de lisonja,

outros com um frio olhar brutal.

o covarde assassina dando um beijo,

o bravo mata com um punhal

traduo de Oscar Mendes???