II.1 Cortiços e medidas higienistas
A revolta da vacina teve todo um plano de fundo relacionado a aspectos urbanos da cidade do
Rio de Janeiro e às políticas públicas adotadas. Temendo a proliferação de doenças, foi adotado
com o tempo um pensamento higienista que modificou a cidade. Em 1850 e 1855, ocorreu
respectivamente uma epidemia de febre amarela e outra de cólera. Isso aumentou muito a taxa de
mortalidade e a preocupação com saúde pública, então foi criada a Junta Central de Higiene. A
Câmara Municipal da Corte passou a cuidar da regulamentação de habitações coletivas, os
cortiços. Os cortiços foram uma questão central em todo esse processo de higienização e
urbanização. Começaram a surgir a partir da década de 1850. O fluxo imigratório de portugueses
para o Rio estava alto, e o número de escravos alforriados também, o que aumentava a
especulação imobiliária na cidade. Os ainda escravos também eram um fator, já que muitos
passaram a sair da casa de seus senhores para morarem sozinhos. Assim o senhor não teria custos
para manter aquele escravo, que deveria se manter por conta própria. Para o escravo seria mais
fácil encontrar um trabalho melhor e pagar sua alforria, e teria mais autonomia própria, algo mais
próximo da liberdade. Com tudo isso, o preço dos imóveis na cidade se tornava muito alto,
principalmente para esses escravos e os ex-escravos. Costumavam então ir para cortiços,
habitações insalubres e apertadas, que se proliferavam pela cidade. A Junta Central de Higiene,
desde que foi criada na mesma época, e a Câmara Municipal da Corte, passavam então a buscar a
higienilização da cidade do Rio de Janeiro temendo novas epidemias e contaminações. Nesse
momento, visava melhorar o estado dessas habitações, focando propriamente em higiene e no
ambiente. Algumas medidas foram tentadas, ainda que sem sucesso.
Em 1855, por exemplo, houve um projeto do fiscal da freguesia de Santa Rita. O projeto buscava
melhorar as condições dos cortiços, e consistia em medidas como:
-Reparos e melhoramentos exigidos pelo Delegado da Junta de Higiene de cada freguesia
-Proibição de casinhas onde há animais e crianças
-Calçamento e iluminação dos pátios, colocação de pilastras com água
-A Câmara Municipal ficaria responsável por remover fezes e água suja pelas 5 da manhã
-Todos os cortiços contariam com um portão de ferro, que se fecharia ao toque de recolher.
A Câmara não acatou com nenhuma dessas medidas, apenas uma outra de que seria proibido
construir novos cortiços sem licença prévia. Em 1860, a Secretaria de Polícia encaminhou um
documento ao Ministério de Negócios do Império. O documento sugeria:
-Política destinada a "promover a edificação de habitações cômodas para o povo"
-"Adiantamento pecuniário por prazo razoável" e "concessão de isenção de impostos" para
construtores
-Enquanto a situação continuasse grave, a Câmara Municipal devia bancar a construção de
moradias "que seriam alugadas aos artistas e pessoas pobres por quantia módica"
A Câmara também não acatou com nenhuma dessas medidas. Esses exemplos seguem a idéia de
melhorar as condições dessas moradias, e não a de que as próprias moradias são o problema.
Classes Perigosas e Ideologia da Higiene
Essa transição de perspectiva ocorre mais para o fim do século XIX, mais especificamente pela
década de 1870. Como cortiços eram ocupados por pessoas pobres, passou a haver associação de
pobreza e perigo, doenças, etc, ou seja, associação de classes pobres com classes perigosas. A
expressão "classes perigosas" vem desde o meio daquele século. A escritora Mary Carpenter
falava isso em estudos da década de 40. Segundo ela, seriam pessoas à margem da sociedade
civil, pessoas que já foram presas ou que "haviam optado por obter seu sustento e o de sua
família através da prática de furtos e não do trabalho". Essa definição não implica em correlação
alguma e é mais objetiva. Já M.A. Frégier, que era um funcionário da polícia de Paris, publicou
um livro sobre "as classes perigosas da população nas grandes cidades". A proposta era traçar o
perfil de malfeitores de Paris, e assim passou por prostitutas, ladrões, entre outros. Fez isso
através de estatísticas, mas nenhuma conclusão foi objetiva como os dados que usou. Muitos dos
que compunham esses perfil eram pobres, e ele não conseguiu traçar uma linha que definisse
bem a diferença entre classes pobres e classes perigosas.
A influência de Frégier foi observada no Parlamento nas sessões de 1888 que buscavam debater
o que seria da organização do trabalho com o fim da escravidão. Um dos projetos foi o de
"repressão à ociosidade". Disse Frégier:
"As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão de ser sempre a
mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais
proprimante sob o título de -classes perigosas-; pois quando mesmo o vício não é acompanhado
pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de
terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaçado à medida que
o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade".1
Das incompletas correlações de Frégier, concluíram os deputados que o trabalho é a maior
virtude dos cidadãos bons, que poupa seu dinheiro e consegue uma vida melhor. Quem é pobre,
por outro lado, deveria ser suspeito por não ter o mesmo gosto e não querer o melhor para si. Isso
seria inerente a essas pessoas, logo esses vícios criam malfeitores, que são perigosos. Então o
problema seriam pobres em si, como definiu o parlamento: "as classes pobres [...] são [as] que se
designam mais propriamente sob o título de - classes perigosas-". Além disso, consideraram que
por viver tanto tempo no cativeiro, os ex-escravos e escravos que ocupavam os cortiços não
tinham capacidade de se desprender dos velhos hábitos. O deputado Mac-Dowell transmitiu
essas idéias ao dizer que:
"Há o dever imperioso por parte do Estado de reprimir e opor um dique a todos os vícios que o
liberto trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso de uma lei fazer
desaparecer, porque a lei não pode de um momento para outro transformar o que está na natureza
[...] A lei produzirá os desejados efeitos compelindo-se a população ociosa ao trabalho honesto,
minorando-se o efeito desastroso que fatalmente se prevê como consequências da libertação de
uma massa enorme de escravos, atirada no meio da sociedade civilizada, escravos sem estímulos
para o bem, sem educação, sem os sentimentos nobres que só pode adquirir uma população
livre...".2
Isso caracterizou a chamada "Ideologia da Higiene", que seria notável nessa segunda metade e no
fim de século. Em 1873, é tomada a medida:
1 CHALOUB, Sidnei. Cidade Febril, págs. 42-432 CHALOUB, Sidnei. Cidade Febril, pág. 21
"Não serão mais permitidas as construções chamadas 'cortiços', entre as praças de D. Pedro II e
Onze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas do Riachuelo e do Livramento". Cortiços
são proibidos e expulsos das áreas centrais da cidade, para "limpa-las". 3
As políticas públicas deixam de ser para melhorar as condições de higiene para se tornar
eliminadora do que não é higiênico. Essa concepção tem um sentido civilizador, contaminado
pelo Positivismo da época. Uma organização sem critérios além dessa correlação, assim como a
própria não tinha critérios ou bases empíricas que a sustentasse. Mas a seguiu também a
Inspetoria Geral de Higiene e o Ministério do Interior. Em 1890, O Ministério do Interior
estipulou um regulamento que permitia que um inspetor de higiene determinasse que qualquer
cortiço fosse fechado com um prazo de 48 horas, tendo seus moradores retirados com o uso de
medidas coercitivas, se necessário. A Sociedade União dos Proprietários e Arrecadatários de
Prédios protesta alegando o despejo e a falta de moradia para os ex-moradores dos cortiços.
Além dos inspetores interditando cortiços onde era possível o melhoramento. O regulamento
piorava ainda mais a situação, gerando mais embates com os proprietários. O Ministério do
Interior, vendo a situação, tentou revogar a medida. Mas ainda que a Junta de Higiene fosse
subordinada ao Ministério, a Junta de Higiene havia intervido no regulamento para que não fosse
possível recorrer à decisão, e não cedeu. Com essa garantia, dois anos depois, o médico
higienista Barata Ribeiro ascendeu à presidência da Intendência Municipal e no mesmo ano para
a prefeitura da capital federal. Em 1877, havia feito seu doutorado com a tese intitulada "Quais
as medidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir o desenvolvimento e propagação
da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro". Nela, ressalta: "Só vemos um conselho a dar a
respeito dos cortiços: a demolição de todos eles, de modo que não fique nenhum para atestar aos
vindouros e ao estrangeiro, onde existiam as nossas sentinas sociais, e a sua substituição por
casas em boas condições higiênicas".4 Em 1893, o então prefeito Barata Ribeiro determinou que
o cortiço Cabeça de Porco fosse fechado.
3 CHALOUB, Sidnei. Cidade Febril, págs. 24-254 CHALOUB, Sidnei. Cidade Febril, pág. 51
Barata Ribeiro e o Cabeça de Porco
O cortiço Cabeça de Porco era um dos maiores da cidade, ficava na Rua Barão de São Félix. O
jornal Gazeta de Notícias estimava que havia cerca de 400 habitantes, e outros jornais alegavam
2 mil. Em 26 de Janeiro de 1893, Barata Ribeiro vai ao cortiço para garantir que fosse fechado.
Três dias antes, a Intendência Municipal intimou os proprietários a despejar os moradores.
Como não foi feito, o prefeito faria isso a força, com a polícia. A remoção foi feita. A Gazeta
considerou um ato heróico, como se Barata fosse Perseu e o cortiço, Medusa. O Jornal do Brazil
também fez comparação semelhante, ainda que temesse que o cortiço fosse como uma cabeça
que se transformaria em várias outras depois. O prefeito, beneficiado com a política dos
governadores de Floriano Peixoto, não encontrou resistência no ato. Os moradores tentavam
levar o máximo de seus pertences. Não se sabia muito o qeu aconteceu com eles, mas a
historiadora Lilian Fessler Vaz vem com a plausível teoria de que, como o prefeito permitiu que
as madeiras demolidas fossem levadas, os moradores as usaram para a construção de casinhas
em um morro atrás do cortiço. Esse viria a ser o morro da Favela (Providência) onde em 1897 os
egressos de Canudos também viriam a habitar. A partir daí, a demolição de cortiços passou a ser
uma política pública amplamente praticada, também por Pereira Passos por exemplo. É nesse
contexto que ocorre a Revolta da Vacina.