1
A Ciência na América Colonial nos escritos de Serafim Leite e Guillermo Furlong
Newton Da Rocha Xavier1
O início da produção de textos históricos na Companhia de Jesus é marcada pelo
Chronicon,do Padre João Polanco (1517-1576)2, numa época em que o zelo pelo registro e
narrativa dos feitos e a necessidade do testemunho eram incentivados pelo fundador Inácio
de Loyola (1491-1556). Nesse contexto, os relatos dos missionários eram vertidos para a
produção de memória institucional,e se tornavam a base para narrativas lidas dentro e fora
da instituição religiosa, ad majorem dei gloriam, pelos séculos de existência da Companhia.
É conhecida a tradição da produção epistolar da Companhia de Jesus e sua massiva
produção dos mais diversos registros, sejam eles para o público interno ou externo, mais
geral ou mais seleta.
A profusão desses escritos foi enorme e sua circulação muito significativa. Inseridos
em diversas atividades e situações locais, os jesuítas marcaram presença nas questões mais
destacadas da Idade Moderna.No século XIX entretanto, no governo do Geral da
Companhia de Jesus, Padre Luis Martin (1846-1906), entre 1892 e 1906, houve uma
inflexão nos escritos de história na Ordem fundada por Loyola: as questões políticas
enfrentadas pela Instituição nesta quadra histórica (em tempos de unificação italiana e caça
às ordens religiosas) trouxeram a necessidade de salvar os arquivos de um confisco do
governo em Roma, sendo transferidos para Exaten, Holanda.
A Companhia estava envolvida em mais uma contenda e o fortalecimento da
identidade da Instituição ganha espaço na pauta da XXIV Congregação Geral (24 de
setembro a 5 de dezembro de 1892). O trabalho de Auguste Carayon (1813-1874), dos
1 Mestre em História Social (FFLCH/USP) e Graduando em Gestão de Políticas Públicas (EACH/USP)
Agradeço ao Prof. Dr. Thomas Haddad (EACH/USP) pelos debates que impulsionaram este texto. 2 POLANCO, Joanne Alphono de. Vita Ignatii Loiolae et rerum Societatis Jesu historia. T. I.Matriti,1898
(Monumenta Historica Societatis Iesu, v. 1).
2
irmãos Alois (1823-1858),de Augustin de Backer (1809-1846),do Pe. Carlos Sommervogel
(1834-1902) e a publicação do "Atlas Geographicus Societas Jesu"3, além da publicação da
Monumenta Historica Societatis Jesu (MHSI) em fascículos mensais de 160 páginas
figuram entre os legados desse momento. Destaca-se também o Padre Antonio Astrain
(1857-1928), guiado pelo projeto de Luis Martín enquanto ainda era seu provincial, e
depois Geral da Companhia, sendo diretor da MHSI de 1922 até 1928.
O ARSI (Archivum Romanum Societas Iesu) passa por mudanças que refletiram na
transformação da historiografia produzida pela Companhia de Jesus. Essa inflexão pode ser
atribuída à direção do Cardeal Franz Ehrle (1845-1934), que foi vice-Prefeito da Biblioteca
do Vaticano entre 1895 e 1914, e construiu destacado trabalho para torná-la mais acessível
à pesquisa. Quando o Padre Geral Luis Martin iniciou um projeto de escrever uma história
da Companhia de Jesus,contou com a ajuda do Cardeal Ehrle,que incentivou a realização de
um trabalho aos moldes da pesquisa histórica vigente no século XIX, deixando de ser
apenas uma leitura edificante. Como apontado por Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, foi
essa mudança no modo de fazer história que refletiu na prática da Companhia e não o
contrário. O par dicotômico verdade/mentira passou a ser prioridade, e não mais o velho par
vício/virtude4.
Sob nomes como o Padre Antonio Astrain e com a ajuda de acesso aos arquivos
pelo Cardeal Ehrle, a Companhia escreve uma série de histórias de diversas
Províncias.Entender uma "História Universal" da Companhia de Jesus sem um cuidado de
pesquisa das realidades provinciais e delimitação e divisão dos quase quatro séculos de
história que a Instituição possuía naquele momento era uma tarefa impossível, já que há um
volume considerável de informações, e até mesmo de divergências, entre as linhas de
atuação em cada realidade provincial. Ademais, esse recorte administrativo reflete a
3CARREZ, Ludwig. Atlas Geographicus Societatis Iesu. Paris, Georgium Colombier. 1900. 4RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros. A “Bibliothèque de la Compagnie de Jésus” de Carlos
Sommervogel e a historiografia da Companhia de Jesus. In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História,
Florianópolis. 2015. pág. 10
3
tradição dos jesuítas, e assim as memórias e narrativas foram sistematizadas e publicadas
no decorrer dos séculos.
É nessa linha "genealógica" que podemos encaixar dois homens comprometidos
com a História da Companhia na América do Sul: os sacerdotes Serafim Leite (1890-1969)
e Guillermo Furlong (1889-1974), autores de relevantes obras sobre a história da atuação
Companhia de Jesus nos impérios ibéricos, na América Portuguesa e Província Jesuítica do
Paraguai respectivamente, e nos debruçarmos sobre semelhanças e diferenças, marcados
pelo carisma de sua ordem religiosa, mas também pelas especificidades inerentes à inserção
que cada um teve em seu contexto.
FURLONG: a Arcádia Perdida5
O santafesino de ancestralidade irlandesa, Guillermo Furlong-Cardiff entrou na
Companhia de Jesus em 1903, e teve sua formação em Tortosa, na Espanha e em
Woodstock, nos EUA. Regressando à Argentina, atuou no Colegio del Salvador, entre 1916
e 1920, de onde saiu para cursar Teologia e sua terceira provação em Barcelona.Regressou
ao Colegio del Salvador em Buenos Aires, com uma estadia em Montevideu, entre 1930 e
1934. Foi assíduo colaborador da revista Estudios, uma publicação da Academia Literaria
del Plata, fundada por ex-alunos doColegio del Salvador. Na revista, o Pe. Furlong foi
grande participante, com contribuições sob dezenas de pseudônimos6.
Chamam a atenção as numerosas publicações de Furlong, que dividia seu tempo
entre o ofício de historiador e o trabalho na Ação Católica de seu país. Entre essa
5 A inspiração para citar a Arcádia Perdida de Furlong partiu de duas produções que devem aqui ser
devidamente citadas: ASÚA, Miguel de. Science in the Vanished Arcadia: Knowledge of Nature in the Jesuit
Missions of Paraguay and Río de la Plata. Brill, Boston. 2014 e IMOLESI, María Elena Imolesi, De la utopía
a la historia. La reinvención del pasado en los textos de Guillermo Furlong, Mélanges de l’École française de
Rome - Italie et Méditerranée modernes et contemporaines. URL : http://mefrim.revues.org/1713. (consulta
em 07/08/2016) 6 TESLER, Mario. La obra oculta del Padre Furlong. Instituto de Investigaciones Históricas Juan Manuel de
Rosas, Buenos Aires 1994. at passim
4
bibliografia, merecem destaque aquelas que podem ser consideradas obras de síntese:
Misiones y sus pueblos guaranies:El transplante cultural e Jesuitas y la cultura
rioplatense7. Pesquisou no Archivo General de la Nacion (Buenos Aires), trazendo à luz
muitos documentos incontornáveis para o estudo da história da região. Além de tudo isso,
ressalta-se sua ligação com seus irmãos de Ordem em Roma.
Seu trabalho está imbuído de nacionalismo, conforme já apontaram Mariana
Schossler e Eliane Fleck. Sua atuação na Ação Católica e Congregações Marianas também
é notória em sua biografia e obra, combatendo autores com visões mais críticas à atuação
da igreja na Argentina8.
A questão nacional argentina é exaltada por Furlong, que em sua produção reflete o
êxito imperial na fundação da Nação. Sua produção sobre a época colonial deixa claro o
papel da Companhia de Jesus na expansão imperial espanhola em toda a extensão da
Província Jesuítica do Paraguai, nos mais diversos ofícios retratados em sua escrita.
Sendo assim, seus livros são um esforço para retratar a evangelização e, mais do que
isso, o transplante cultural da Companhia de Jesus e sua importância para a gênese da nação
argentina. De fato, para ele o trabalho jesuítico no espaço platino foi essencial para o
desenvolvimento da cultura, imprensa e educação na região. Tudo isso com publicação de
fontes inéditas, acompanhadas de um estudo crítico-analítico, em embate com correntes
historiográficas mais anticlericais9.
O jesuíta argentino entrou em diversas controvérsias na História Civil da região
platina, contra homens como Blas Garay, historiador do Paraguay, ao defender a
importância das missões e executar o que Maria Imolesi qualificou como uma "escrita de
7 FURLONG, Guillermo. Misiones y sus pueblos de Guaranies. Buenos Aires, Imprenta Balmes, 1962.
HIstória Social y cultural del Rio de la Plata. (1536-1910) 3V. TEA. Buenos Aires. 1969 8 FLECK, Eliane Cristina Deckmann, SCHOSSLER, Mariana. Em busca do personagem: a construção de
uma memória sobre Guillermo Furlong SJ na revista Archivum (1979). In: História Unicap, v. 1, n.1. jan/jun
de 2014. pp. 91-113 9 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. A abordagem historiográfica dos séculos XIX e XX sobre a atuação de
médicos e boticários jesuítas na América platina nos século XVIII. In: História, Ciências, Saúde-
Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 21, n.2, abr-jun. 2014. p.667-685. p. 671.
5
espelho10. Em sua obra "Transplante Cultural", Furlong deixa claro já no titulo a
centralidade da questão. Sua defesa do trabalho científico jesuíta quer responder às
conhecidas ideias de obscurantismo jesuítico. Aponta a inserção dos irmãos de Companhia
nos debates internacionais, e a luta na adversidade da missão marca sua escrita.
Uma figura merece destaque nos escritos de Furlong acerca de matemática e
astronomia: Buenaventura Suarez. Inserido no trabalho cientifico da região, o sacerdote
astrônomoé celebrado sobretudo pela sua condição de criollo e por sua trajetória ser toda
realizada no Novo Mundo:
"Buenaventura Suarez, una de las figuras más prominentes y mas
simpaticas en la história de la ciencias matematicas era argentino. Jamás estuvo en
Europa. Todos sus estudios los cursó en el colegio que los jesuitas tenían en Santa
Fé, su ciudad natal, y en Cordoba, en cuya universidad aprendeu las ciencias asy
filosoficas como naturales.
No se trata de un europeo, de un ex aluno de Kircher, como el Padre
Mascardi, a quien hemos mencionado ya, ni de un discipulo y amigo de Newton,
como Padre Falkner, de quien nos ocuparemos mas adelante; ni se trata de un
colaborador del Observatorio de Roma o de Milan, como foi Alonso Frias, sino de
un criollo que, por el ambiente cientifico, en que se formo, y por los maestros com
quem contó y por los libros que estuvieron a su disposicion, llegó a realizar
observaciones y estudios que fueron justamente admirados, ponderados y editados
en los centros culturales de Europa, y hasta en la exigente Universidad de
Upsala."11
10 IMOLESI, María Elena, De la utopía a la historia. La reinvención del pasado en los textos de Guillermo
Furlong. p. 14. 11 FURLONG,História Socilal y Cultural del Rio De la Plata (1530-1810). El Transplante Cultural: Ciência.
TEA. Buenos Aires. 1969. p.426.
6
Exaltar o Pe. Buenaventura Suarez é exaltar a Companhia de Jesus e o
desenvolvimento científico trazido por ela ao que seria a Argentina. Furlong deixa claro a
pertença do insigne personagem à Santa Fé, e mais do que qualquer outro membro da
Ordem, é exaltado na obra. O historiador não se furta ao diálogo com a historiografia do
século XIX, que apontou em homens como o Pe. Buenaventura uma exceção em uma
realidade não propícia ao saber científico. Com contundência, Furlong responde à esse tipo
de análise, citando a obra de Juan Gutierrez sobre a educação argentina, mais precisamente
no conteúdo sobre ciências matemáticas e náuticas, em que os jesuítas são citados
profusamente como homens que teriam praticado ciência em ambiente hostil repleto de
pessoas desinteressadas12:
"Gutierrez ha escrito que Suarez era un autodidata que triunfó sobre su
medio. Fue la floracion, la cumbre, a que llegraron los esfuerzos, los tanteos, los
ensayos de toda la centuria que le habia precedido. El proclamar autodidactas a
los hombres eminentes que vivieron en la epoca colonial foi una solucion fácil e
ingeniosa que los desconecedores de la cultura de otrora daban para explicar la
existencia de sabios entre nosotros, pero como el número de éstos es mucho mayor
de lo que se suponia, resulta que los autodidactas han abundado en América más
que los aliodidactas."13
Do mesmo modo, segundo Furlong, a região do grande Paraguai perdeu com a
Expulsão da Companhia em 1767. O trauma na educação e desarticulação do trabalho
missionário foram de impacto terrível, com prejuízo econômico e social. Como não poderia
ser diferente, exalta aquela realidade com rigor documental e debate afinado ao seu tempo
12 GUTIERREZ, Juan Maria. Noticias historicas sobre el origen y desarollode la enseñanza pública superior
en Buenos Aires. Buenos Aires, 1868. pp 181-218, pp 137-174. 13 História Social y Cultural del Rio De la Plata (1530-1810). El Transplante Cultural: Ciência. TEA. Buenos
Aires. 1969. p.426.
7
,travando combate ferrenho na produção historiográfica argentina à visão dos jesuítas como
responsáveis por uma "infecunda escolástica" que permearia o pensamento colonial14.
Acima de tudo é um historiador institucional. Ecoa também a larga produção dos
jesuítas exilados como Florian Paucke em San Javier entre os Mocobies, Pedro Lozano e
seu livro sobre o Gran Chaco, ou outras produções como a extensa produção cartográfica
da região no século XVIII que exalta o trabalho dos padres que regaram o solo do grande
Paraguai com sangue e suor. Sai das páginas um mundo que se esvaiu, uma "Arcádia
perdida" como encontramos descrito por Robert Bontine Cunningham Graham, um
improvável defensor anglo-saxão, simpático ao socialismo e primeiro presidente do Scotish
National Party (SNP), citado por Furlong como um defensor do trabalho jesuítico no
Paraguai exatamente pelo seu distanciamento da questão em sua obra Misiones y sus
pueblos de guaranies15.
SERAFIM LEITE: o eco da vinha estéril
Serafim Leite teve amplo destaque ao escrever sobre a presença jesuítica na
América Portuguesa. Na juventude, trabalhou como comerciante no Pará, seu contato
primeiro com o Brasil. Ao retornar à Europa em 1914, ingressou na Companhia de Jesus e
em 1929 integrou a revista Brotéria, onde escreveu sobre literatura, apologética, cultura e
sociedade.
Em 1933 iniciou sua obra de destaque, a História da Companhia de Jesus no Brasil,
com seus volumes publicados em 1938 (I e II) e entre 1943 e 1950 (III ao X). Sua obra é
uma grande síntese de seus estudos e teve muito impacto no Brasil por trazer à luz uma
grande quantidade de documentos inéditos, sendo por isso condecorado pelo governo
brasileiro e eleito membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.A trajetória
14 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. A abordagem historiográfica dos séculos XIX e XX sobre a atuação de
médicos e boticários jesuítas na América platina no século XVIII. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.21, n.2, abr.-jun. 2014, p.667-685 p. 678 15 FURLONG, Guillermo. Misiones y sus pueblos guaranies. p. 732ss
8
luso-brasileira de Serafim Leite marca sua história que, nas palavras do próprio sacerdote, é
uma ramificação da História da Companhia de Jesus de Portugal, e que seria parte
integrante de uma história universal da Companhia posteriormente16.
Seu foco está nas questões sobre catequese, política,estudo dos idiomas, ciência e
artes & ofícios. Ao contrário de Furlong, Serafim Leite não pensava em exaltar a
nacionalidade brasileira: era português e pensava suas questões a partir daí. Coloca a
Companhia como um elemento fundamental ao desenvolvimento econômico e tecnológico
da colônia, inclusive publicando um livro apenas sobre as artes & ofícios da Companhia de
Jesus no Brasil, onde dá pormenores biográficos dos irmãos coadjutores que desenvolveram
atividades na América Portuguesa, com o objetivo de ressaltar aspectos pouco estudados da
atuação jesuítica17.Sua produção visava repensar o lugar da Companhia na História do
Brasil e analisar as mesmas questões tributárias das velhas ideias de atraso jesuítico e o
apagamento de certas empreitadas dos religiosos na região.
A comparação inevitável com o trabalho nas possessões espanholas acontece ao se
referir ao ensino universitário, um tipo de comparação presente nas obras de outros autores
da historiografia recente18. Apesar de pontuar todos os problemas, Serafim não ignora
alguns avanços na ciência e aponta a vinda dos "Padres Matemáticos" Diogo Soares (1684-
1748) e Domingos Capassi (1694-1736) da Europa como uma prova da vontade jesuítica de
investigação e produção de conhecimento, sempre fiéis à Companhia e abertos aos bafejos
da produção científica da época, sob a autoridade da Coroa Portuguesa19. Não eram filhos
do Novo Mundo como o Pe. Buenaventura, mas portugueses no trabalho de demarcação de
fronteiras.
Tal como seu irmão de ordem platino,Pe. Furlong, Pe. Serafim combate alguns
preconceitos historiográficos contra a intelectualidade ibérica que não valoriza a história da
16 Acervo Biblioteca Padre Antonio Vieira. Hemeroteca. 4.1.1950/04/13- R616. 13/4/1950 17 LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Edições Brotéria. Rio de
Janeiro, 1953 18 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. The Celestial Pilgrimages of Valentin Stansel (1621-1705), Jesuit
Astronomer and Missionary in Brazil. In: FEINGOLD, Mordechai. Archimedes, Vol. 6, pg 249 - 270. 19 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII, Livro 2, capítulo V. p.225ss
9
ciência colonial.Para argumentar contra o bloqueio ao trabalho de Humboldt, ressalta que
quando o explorador esteve na América Portuguesa, no início do século XIX, há muito a
ordem de Santo Inácio já tinha sido expulsa dos domínios portugueses20. De maneira
perspicaz, Leite aponta a viagem de La Condamine, geógrafo que teve amplo contato com
os jesuítas durante sua estadia no Pará, em 174321.
"(...) diz-se às vezes, Portugal, para manter o Brasil ignorante, o isolava das
correntes de cultura européia, e diz-se ao mesmo tempo que Portugal em si mesmo
estava fora dessas correntes (o que já é uma afirmação contraditória); diz-seque
fechava as portas do Brasil aos sábios (Humboldt), e aos estrangeiros, (...)
A estes temas depreciativos foi moda, algum tempo acrescentar-se ainda o
pirilampo da cultura holandesa.
Humboldt cai fora do período dos nossos estudos, pois em 1800 a
Companhia de Jesus não existia no Brasil.”
Contrasta essa situação com a estadia de La Condamine22 quase sessenta anos
antes:
“(...) Outro sábio não menos ilustre, La Condamine, tinha sido recebido no
mesmo Pará, em 1743, no Reinado de Dom João V, com todas as honras; e os
jesuítas acolheram-no fidalgamente e lhe facilitaram as observações científicas,
ficando com ele em contato epistolar. Outros sábios estrangeiros entraram no
Brasil, nos séculos XVII XVIII, e da Companhia de Jesus não poucos, entre os quais
Pfeil, Estancel e Capassi. Este último com Diogo Soares subvencionados pelo
erário público"23.
20 LEITE, Serafim, Idem, pág. 226. 21 LEITE, Serafim, Idem, pág. 226. 22 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, tomo VII, livro 2, capútulo V, pág. 225ss 23 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus. Tomo VII, Livro 2, capítulo V. pág. 225ss
10
Dessa maneira, Serafim Leite exime a Ordem e Portugal de culpas por quaisquer
"atrasos" científicos vigentes nas terras americanas.
Se, como já vimos, Guillermo Furlong exalta o criollo Buenaventura Suarez ou os
irmãos estrangeiros que tiveram destaque nas ciências, Serafim lamenta a falta de empenho
dos habitantes da América Portuguesa para o estudo, como também a falta de vocações,
seja na época colonial, seja já no século XX, em ambiente de pouca abertura para o trabalho
religioso e intelectual.
O contraste não para por aí. Ainda lamentando sobre a questão do ensino de
Ciências, mostra a potencialidade dos mestres da Companhia e a falta de alunos e
condições materiais adequadas, como no caso do Pe. Gaspar de Samperes, homem apto em
ambiente infrutífero, quase como uma semente em solo infértil.
"Se houvesse gente e meio propício, desde o século XVI que o Engenheiro P.
Gaspar de Semperes24teria ensinado no Brasil Matemáticas superiores. O Brasil
nos dois primeiros séculos tinha porém preocupações mais urgentes, que era a da
sua própria formação, alargamento e estabilização, com a produção da riqueza
demográfica e material, condições prévias e indispensáveis, para cultura mais
generalizada do espírito."25
Essa dificuldade da instalação das aulas de matemática, que só funcionariam no
século XVIII no colégio da Bahia, não foi, afirma Serafim Leite, por falta de mestres,
arrolando nomes como o de Inácio Stafford (1599-1642), Jacobo Cocleo (1628-1710),
Aloíso Pfeil (1638-1701), Valentim Estancel (1621-1705), Diogo Soares (1684-1748) e
Domingos Capassi (1694-1736)
24 O nome do Padre Gaspar de Samperes aparece com as duas grafias na obra. 25 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VII, Livro II, Cap. II, Editora Itatiaia,
Belor Horizonte, 2006 (1949) pág.164.
11
Ao mencionar a raiz do problema, utiliza as justificativas do século XVII,
mencionando ideias racistas e preconceituosas: influência do clima, primeira nutrição
inadequada (aleitamento materno por escravas), educação familiar frouxa, mestiçagem,
origem social, sentimentalismo mórbido que tolhia a liberdade dos movimentos,
depravação de costumes, deficiência física e preconceito social contra o trabalho26.
O jesuíta continua a ressaltar as dificuldades da realidade do Brasil: a messe é
grande, os operários são poucos. Ao falar sobre o recrutamento de religiosos, Serafim cita
que a Ordem ainda tinha problemas para conseguir candidatos. Numa crítica que atravessa
séculos, ele expande a falta de vocações sacerdotais dos tempos coloniais até o século XX,
praticamente atualizando suas críticas27.
Analisar a causa da detração e do sentimento de dificuldade de trabalho científico
sem conectar a essa visão de mundo repercutida em Serafim Leite é perder a profundidade
da questão. Não se pode enxergar os tomos da obra sobre ciência e ensino como parte
isolada de uma obra que se prentende totalizante. Essa enumeração das causas dos
problemas brasileirosnão é uma mera reprodução de um velho documento, e sim um eco,
como podemos perceber na escrita do próprio religioso ao falar do que foi acima
enumerado:
"(...) Quase todos os oito pontos mencionados estão ainda hoje sujeitos a
discussão entre antropólogos, educadores e sociólogos, discussão apaixonante nas
três formas literárias sucessivas (...)"28
Tal como em Furlong, ecoam em Serafim as velhas ideias da dificuldade de
evangelização. Não que nas antigas narrativa da América Espanhola elas não existissem:
foram relatadas com muito vigor os martírios e perigos dos antigos missionários no grande
26 Idem, Tomo VII, Livro II. pág 233-235. 27Idem. Tomo VII, Livro III. pág. 233. 28LEITE, Serafim, Idem, pág. 236.
12
Paraguai dos jesuítas, como também problemas com a inconstância da alma indígena e seus
costumes pecaminosos. A questão é que na escrita do autor português prevaleceu a velha
tristeza de Pe. Manuel da Nóbrega, Pe. José de Anchieta e da narrativa dura do Pe. Simão
de Vasconcelos, operários da chamada "vinha estéril", para resgatar a imagem
veterotestamentária e resgatada por Pe. Manoel da Nóbrega em seu diálogo sobre a
conversão do gentio e largamente analisado pela historiografia29.
Conclusão
Em meio à discussão sobre as peculiaridades da atuação do trabalho jesuítico pelo
planeta, há a contenda entre o desejo de construção de uma identidade única e global da
Companhia e a inserção das particularidades de cada região nessa construção, o que
demandava certa flexibilidade dos missionários.
Entre Serafim Leite e Guillermo Furlong, podemos perceber as contradições dessas
atuações no que se refere à produção historiográfica. Os contrastes vão além da escrita
criolla do argentino ou da lusitanidade de Serafim Leite, que vê a Companhia de Jesus no
Brasil como uma prolongação do trabalho jesuítico português. Por outro lado, em ambos há
uma fidelidade aos irmãos de ordem do passado, a quem rendem homenagem e atualizam
as opiniões, carregando nas tintas onde acham mais propício.
Furlong exalta a cultura de seu país e a produção científica, de forma estratégica,
como se dissolvesse a História da Companhia na realidade platina, fundindo a Companhia
29 Citar a vinha estéril aqui é uma referência a importante ao Diálogo sobre a conversão do gentio (1558), que
trata da dificuldade do trabalho missionário em terras americanas e é referenciado na obra de Charlotte
Castelnau-L'Estoile: CASTELNAU-L'ESTOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil (1580-1620). São Paulo: EDUSC, 2006.
13
de Jesus e a pátria. Serafim, mais cuidadoso, foca em sua obra os primeiros dois séculos da
atuação jesuítica, com prioridade nos trabalhos dos pioneiros da Província Luso-americana.
O contraste desenhado por Furlong entre a glória santafesina de Buenaventura
Suarez em um mundo pleno de potencialidades e injustiçado pela historiografia anticlerical,
e a dificuldade do trabalho na América Portuguesa, mostra em Serafim uma defesa da
Companhia e não da terra do Brasil, essa sendo dura, palco de um trabalho difícil, tal como
era também na Província do Paraguai, com a diferença de que nela não havia fruto. A figura
da Vinha estéril, apontada pelos primeiros sacerdotes desembarcados no Brasil e a
dificuldade de ensinar, a despeito da capacidade dos mestres, mostra o desafio na América
Portuguesa.
A memória dos dois sacerdotes, imbuídos de uma mesma tarefa, mas com uma
perspectiva diferente, nos mostra a dificuldade de um estudo prosopográfico da Companhia
de Jesus, ao mesmo tempo que nos dão valiosas informações da História da Ciência dos
impérios ibéricos. Furlong tinha claramente um compromisso com a pátria e com a ordem,
enquanto o sacerdote português deixava de lado qualquer relação pessoal com a colônia,
tentando sempre ser mais universal na construção da história da Companhia. Dessa forma,
correlacionar os dois autores passa a ser uma boa forma de exemplificar a grande
dificuldade apresentada no século XIX em se construir uma historia universal da
Companhia, tal qual foi ansiada primeiramente pelo Pe. Geral Luis Martin. Em comum nas
duas produções, o que unia os dois autores era a luta por uma valorização das atuações
jesuíticas em suas realidade , incluindo-se aí a ciência.
Bibliografia:
ASUA, Miguel de. Science in thevanished arcadia. Knowledge of nature in the jesuit
missions of Paraguay. Boston. Brill 2014.
CARREZ, Ludwig. Atlas Geographicus Societatis Iesu. Paris, Georgium Colombier. 1900.
14
CASTELNAU-L'ESTOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil (1580-1620). São Paulo: EDUSC, 2006.
FEINGOLD, Mordechai. The new science and Jesuit science: seventeenth century
perspectives: Archimedes Vol.VI. Dordrecht Kluwer Academic Publishers 2003. Boston.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. A abordagem historiográfica dos séculos XIX e XX
sobre a atuação de médicos e boticários jesuítas na América platina no século XVIII.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.2, abr.-jun. 2014, p.667-
685.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann, SCHOSSLER, Mariana. Em busca do personagem: a
construção de uma memória sobre Guillermo Furlong SJ na revista Archivum (1979). In:
História Unicap, v. 1, n.1. jan/jun de 2014. pp. 91-113
FURLONG, Guillermo. Cartografía Jesuítica del Rio de la Plata. Buenos Aires. Talleres S.
A., Casa JacoboPeuser, Ltda. 1936.
________, Guillermo. Glorias Santafesinas. Buenaventura Suárez, Francisco Javier Iturri
y Cristóbal Altamirano. Buenos Aires, Editorial Surgo, 1929.
________, Guillermo. Historia social y cultural del Rio de la Plata, 1536-1810. Buenos
Aires. Editora Argentina, 1969.3v.
________, Guillermo, Los jesuítas y la cultura rioplatense. Montevideu, Urta y Curbelo,
1933.
_________, Guillermo. Misiones y sus pueblos guaranies. 1610-1813. Buenos Aires,
Imprenta Balmes, 1962.
GUTIERREZ, Juan Maria. Noticias historicas sobre el origen y desarollode la enseñanza
pública superior en Buenos Aires. Buenos Aires, 1868. pp 181-218, pp 137-174
HADDAD, Thomas A. S. (2014). Filósofos naturais do demônio: astronomia, alteridade e
missionação no sul da Índia, século XVII. História Unisinos (São Leopoldo, Brasil), Vol.
18, No. 1, 3-14.
15
HUGHES, THOMAS. HIstory of the Society Of Jesus in North America (Colonial and
Federal). Longmans, Green and Co.New Yoork. 1907.
IMOLESI, María Elena Imolesi, « De la utopía a la historia. La reinvención del pasado en
los textos de Guillermo Furlong », Mélanges de l’École française de Rome - Italie et
Méditerranée modernes et contemporaines. In: http://mefrim.revues.org. (acesso em
2/5/2016)
_______, María Elena. Sobre el país de los felicianos. La narrativa histórica de Guillermo
Furlong SJ acerca de las misiones jesuíticas de guaraníes. Disponível
em:https://www.academia.edu/4242363/ (acesso em 2/5/16)
JOUVANCY, Joseph de. Historiae Societatis Jesu Pars Quinta, Tomus Posterior.Roma,
1710.
LEITE, Serafim. Entrevista (sem título). Acervo Biblioteca Padre Antonio Vieira.
Hemeroteca. 4.1.1950/04/13- R616. 13/4/1950
_____, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 4 vols. São Paulo : Edições
Loyola, 2004 (1938)
_____, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Edições
Brotéria; Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1953. 324 p.
NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio (1558). In: LEITE, Serafim.
Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade
de São Paulo, v.2, 1954. p. 317-345.
O´NEILL, Charles, DOMINGUEZ, Joaquín María. Diccionario histórico de la Compañía
de Jesús. 4 vols. Editora Univ Pontifica Comillas, 2001.
PÉREZ, Rafael. La Compañía de Jesús en Colombia y Centroamérica. Después desu
restauración, Imprenta Castellana, Valladolid, 1896.
POLANCO, Joanne Alphono de. Vita Ignatii Loiolae et rerum Societatis Jesuhistoria. T.
I.Matriti,1894,8.(Monumenta Historica Societatis Iesu, v. 1).
16
RODRIGUES, Luiz Fernando Medeiros. A “Bibliothèque de la Compagnie de Jésus” de
Carlos Sommervogel e a historiografia da Companhia de Jesus. In: Anais do XXVIII
Simpósio Nacional de História, Florianópolis. 2015
SCHOSSLER, Mariana. Uma produção histórico-nacionalista do historiador jesuíta
guillermo furlong: uma análise da biografia sobre Cornelio Saavedra In: Anais do XXVIII
Simpósio Nacional de História, Florianópolis. 2015
TESLER, Mario. La obra oculta del Padre Furlong. Instituto de Investigaciones Históricas
Juan Manuel de Rosas, Buenos Aires, 1994.