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A ESTRUTURA DA POSSE DE ESCRAVOS NO MÉDIO VALE DO
PARAÍBA: BANANAL, 1830-18801
Breno Aparecido Servidone Moreno2
Na virada dos anos 1970 para os anos 1980, a demografia histórica,3 introduzida no Brasil por
Maria Luiza Marcílio,4 passou a ganhar novos adeptos no cenário científico e, com o tempo, acabou
se firmando como área promissora, sobretudo nos estudos sobre o passado escravista brasileiro.5
Mediante a análise de uma fonte pouco explorada até aquele momento, as Listas Nominativas de
Habitantes, os pesquisadores colocaram à prova o paradigma da plantation escravista – elaborado por
Caio Prado Junior e reafirmado por alguns estudiosos que o sucederam6 –, alicerçado na grande
propriedade rural, na monocultura, no emprego de centenas de trabalhadores escravizados e na
produção voltada para o mercado externo.
1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de
maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. 2 Doutorando em História Social na FFLCH-USP. Este paper faz parte de uma pesquisa mais ampla, intitulada “Terra,
trabalho e capital: hierarquias sociais no Médio Vale do Paraíba (Bananal, século XIX)”, financiada pela FAPESP. E-
mail: [email protected]. 3 Sobre a definição de demografia histórica, ver: COSTA, Iraci del Nero da. Por uma definição de demografia histórica.
Boletim de História Demográfica, São Paulo, ano I, n. 2, jul. 1994. NADALIN, Sérgio Odilon. História e demografia:
elementos para um diálogo. Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP, 2004. 4 A tese de doutorado de Marcílio, defendida na França, em 1968, La ville de São Paulo. Peuplement et population. 1750-
1850, inaugurou a demografia história no Brasil. O trabalho foi traduzido para o português pelas editoras Pioneira e Edusp
em 1973, sob o título A cidade de São Paulo. Povoamento e população – 1750-1850. 5 Para um balanço sobre a demografia histórica no Brasil, ver: MOTTA, José F. A demografia histórica no Brasil:
contribuições à historiografia. Revista Brasileira de Estudos da População, Campinas, v. 12, n. 1/2, jan./dez. 1995. p.
133-149. MOTTA, José F.; COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira
de Estudos da População, Campinas, v. 14, n. 1/2, jan./dez. 1997. p. 151-157. MARCÍLIO, Maria Luiza. A demografia
histórica brasileira nesse final de milênio. Revista Brasileira de Estudos da População, Campinas, v. 14, n. 1/2, jan./dez.
1997. p. 125-143. MOTTA, José F. Demografia histórica no Brasil. In: ARRUDA, José Jobson; FONSECA, Luís Adão
da. (Org.). Brasil-Portugal: história, agenda para o milênio. Bauru: EDUSC; São Paulo: FAPESP; Portugal: ICCTI, 2001.
p. 473-507. BACELLAR, Carlos de Almeida P.; SCOTT, Ana Silvia V.; BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. Quarenta
anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos da População, Campinas, v. 22, n. 2, dez. 2005. p. 339-350. 6 Tal modelo encontrou distintas formulações; dentre os trabalhos mais significativos, vale lembrar aqui: PRADO
JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia. 1. ed., 1943. São Paulo: Brasiliense, 2004. STEIN,
Stanley J. Vassouras. Um município brasileiro do café, 1850-1900. 1. ed., 1957; trad. port. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 1. ed., 1959. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. NOVAIS,
Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 1. ed., 1979. São Paulo: Hucitec, 2001.
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As pesquisas no campo da demografia histórica, nos últimos 40 anos, causaram profundo
impacto na historiografia da escravidão. No geral, podem-se destacar três pontos fundamentais.
Primeiramente, as pesquisas permitiram a revisão do conhecimento presente na historiografia acerca
dos padrões de distribuição da propriedade cativa em relação às atividades mineratória, açucareira e
cafeeira. Em segundo lugar, aprofundaram a compreensão da economia escravista brasileira, tanto
nas regiões comprometidas com aquelas atividades, como em outros municípios. Por último, a análise
da posse de escravos, em especial, contribuiu de modo notável, em termos quantitativos e qualitativos,
para o conhecimento do perfil demográfico dos cativos e dos escravistas nos séculos XVIII e XIX.7
De fato, estas pesquisas revelaram que a ideia corrente na historiografia de que a fazenda
típica era a grande propriedade rural constituiu-se a exceção do passado escravista brasileiro. No
entanto, a questão ainda permanece em aberto, pois quase todas as pesquisas centraram o foco, grosso
modo, no período de 1710 a 1830, e nos primeiros anos da década de 1870. A estrutura da posse de
escravos nos períodos de expansão da produção de café e da plantation escravista, de apogeu e de
grandeza da economia cafeeira, ou seja, entre os anos 1830 e 1880, foi um tópico muito pouco
frequentado, a despeito da centralidade do Vale do Paraíba para a formação do mercado mundial de
café, para a construção do aparato institucional do Estado nacional brasileiro e para a notável
expansão da escravidão em nosso país. Salvo engano, os trabalhos de Ricardo Salles e Rodrigo
Marretto sobre Vassouras e Cantagalo, respectivamente, são um dos poucos a trazer uma investigação
sistemática sobre a estrutura da posse de escravos no Médio Vale do Paraíba, o coração da economia
cafeeira, após a década de 1830.8
Desse modo, este artigo pretende contribuir para o debate historiográfico acerca da posse de
escravos no Império do Brasil, examinando a matéria por meio de uma análise sistemática dos
7 MOTTA, José F. Corpos escravos, vontades livres: estrutura da posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro
(Bananal, 1801-1829). São Paulo: Annablume – FAPESP, 1999. p. 68. 8 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. MARRETO, Rodrigo M. A acumulação e a concentração da propriedade escrava
na Vila de Cantagalo (século XIX). In: ENCONTRO INTERNACIONAL E XVIII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA
ANPUH-RIO: HISTÓRIA E PARCERIAS, 2018, Niterói. Anais.... Niterói: UFF/ANPUH, 2018. p. 1-12. Renato Leite
MARCONDES, em dois artigos, também investigou o tema, centrando-se, no entanto, nos anos 1870. Ver, de sua autoria,
A propriedade escrava no Vale do Paraíba paulista durante a década de 1870. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29,
2002. p. 51-74; Small and medium slaveholdings in the coffee economy of the Vale do Paraíba (in the Province of São
Paulo, Brazil). The Hispanic American Historical Review, DURHAM, v. 85, n. 2, 2005. p. 259-281.
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inventários post mortem de Bananal – maior município cafeeiro do Vale do Paraíba paulista – nos
períodos de expansão, apogeu e grandeza da cafeicultura escravista, entre as décadas de 1830 e 1880.
Não se pretende, em hipótese alguma, negar os notáveis contributos oriundos da historiografia da
“pequena posse”. Intenta-se, antes de mais nada, recolocar a questão da posse de escravos em uma
nova perspectiva: a despeito da predominância das pequenas escravarias em todo o Império do Brasil,
eram as grandes propriedades rurais que concentravam a mão de obra escrava, as terras e os pés de
café no Médio Vale do Paraíba, o coração do Império do Brasil.
* * *
A montagem e o deslanche da cafeicultura no Vale do Paraíba remonta a um processo mais
amplo de fortalecimento da instituição escravista nas Américas. As mudanças advindas com o
surgimento da economia-mundo industrial do século XIX coagiram os escravistas a aumentar, cada
vez mais, a produtividade de sua mão de obra para evitar sua exclusão do mercado mundial. Nesse
novo contexto, as antigas regiões produtoras do Caribe inglês e francês entraram em colapso, devido
ao crescente movimento abolicionista metropolitano, às ações de resistência dos cativos e ao
esgotamento de suas capacidades produtivas. Ao mesmo tempo, surgiram novas oportunidades para
as regiões que até o momento se encontravam na periferia das áreas de exploração escravista: Estados
Unidos, Cuba e Brasil. Nesses locais emergiram propriedades rurais escravistas com plantas
produtivas inéditas, que romperam com os padrões vigentes no mundo atlântico.9
Em Bananal, até as décadas de 1780 e 1790, quando se concluiu a estrada do Caminho Novo
da Piedade,10 predominavam as pequenas propriedades policultoras, dedicadas à produção de gêneros
de subsistência (milho, arroz, feijão e farinha de mandioca) e à criação de animais (suíno e bovino).
O cultivo de mantimentos era destinado, em especial, ao sustento dos próprios lavradores, mas já
havia um comércio precário de excedentes, voltado, sobretudo, à venda de milho. O excedente dessa
produção era reservado, em grande medida, às tropas de mulas que começaram a circular por aquela
9 TOMICH, Dale. A “Segunda Escravidão”. In: ______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial.
São Paulo: Edusp, 2011. p. 81-97. 10 Sobre o Caminho Novo da Piedade, ver: RODRIGUES, Píndaro de Carvalho. O Caminho Novo: povoadores do
Bananal. São Paulo: Governo do Estado, 1980. (Coleção Paulística, XVIII). TOLEDO, Francisco Sodero. Estrada Real:
Caminho Novo da Piedade. Campinas: Editora Alínea, 2009.
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estrada.11 Construído com o objetivo de facilitar os contatos entre a sede do Vice-Reino e as minas de
Goiás e de Mato Grosso, o novo caminho provocou o aumento no trânsito das tropas de mulas no
entorno do povoado, fundado com o nome de Senhor Bom Jesus do Livramento do Bananal, em 1783.
Com a saída de Saint Domingue (atual Haiti) do mercado mundial de café, em decorrência da
rebelião escrava (1791-1804) que desestruturou as plantations locais, a América portuguesa passou
a se dedicar ao cultivo do artigo.12 Em Bananal, as primeiras mudas de pés de café foram introduzidas,
provavelmente, nos anos 1790. Contudo, o registro de sua produção apareceu pela primeira vez, na
Lista Nominativa, em 1799: três agricultores foram responsáveis pela exportação de nove arrobas.
Em 1802, em apenas um desses fogos se registrou a colheita de café (40 arrobas).13
No decurso das primeiras décadas do Oitocentos, a montagem da cafeicultura escravista foi
decisiva para o desenvolvimento socioeconômico de Bananal.14 Os domicílios escravistas dedicados
à cultura do café disseminaram-se na região, em termos numéricos (de 62 para 145) e proporcionais
(de 51,2% para 74,4%), entre os anos de 1817 e 1829. A população cativa bananalense, por seu turno,
cresceu igualmente no mesmo período: havia, em 1817, 1.010 escravos; em 1822, o número subiu
para 1.575; e, no ano de 1829, atingiu o total de 2.283 cativos. Nesse sentido, as colheitas de grãos
de café majoraram paulatinamente na mesma quadra histórica. Em 1817, quando ocorreu o primeiro
salto na produção, Bananal produziu pouco mais de 4 mil arrobas. Cinco anos mais tarde, 1822,
exportou 22,4 mil arrobas. Em 1829, a safra dobrou, atingindo 47,3 mil arrobas.15
Após os anos 1830, Bananal transformou-se numa típica região de plantation escravista. Cerca
de 82 fazendas cafeeiras foram responsáveis por alçar a vila, em 1836, ao segundo lugar na produção
11 HERRMANN, Lucila. Evolução da estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos. São Paulo:
IPE/USP, 1986. p. 13-52. MOTTA, Corpos escravos, vontades livres, op. cit. p. 35. 12 MARQUESE, Rafael de B. Capitalismo, Escravidão e a Economia Cafeeira do Brasil no longo século XIX. Saeculum,
João Pessoa, v. 29, jul./dez. 2013. p. 297. 13 MOTTA, op. cit. p. 49-50. 14 Para compreender melhor o processo de implantação da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba paulista, ver: LUNA,
Francisco V.; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo:
Edusp, 2005. p. 81-106. MOTTA, op. cit. 25-63. MORENO, Breno A. S. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-
1830. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (Org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda
Escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. p. 328-350. 15 MOTTA, op. cit. p. 46-50; 114; 128; 141. ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO (AESP). 4ª Companhia de
Ordenanças. Areias, 1822. Idem, 5ª e 6ª Companhias de Ordenanças. Areias, 1829.
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de café da província de São Paulo, com a colheita de 64,8 mil arrobas (11% da safra de São Paulo).16
No ano de 1854, a cidade produziu a maior safra da província: 554,6 mil arrobas (12,8% do total).
Algo em torno de 70 fazendas de café empregavam 7.622 cativos (13,6% da escravaria da província),
330 agregados (7,8% do total) e 10 colonos (0,5% do total).17
Desse modo, pode-se depreender que os produtores de café escravistas foram os principais
agentes na conformação da economia agroexportadora de Bananal. A partir dos 502 inventários post
mortem,18 autuados entre 1830 e 1879, é possível vislumbrar o impacto da cafeicultura escravista
entre os inventariados. Parcela majoritária desses processos pertenciam aos produtores de café: 314
inventários (62,5% do total). A análise dos inventários sugere, ainda, que a propriedade cativa estava
disseminada por (quase) todas as camadas livres de Bananal, pois a posse cativa foi registrada em
407 processos (81,1% do total). É inegável a existência de um contexto marcadamente escravista. Os
cafeicultores escravistas eram donos de quase toda a população cativa inventariada: 13.402 indivíduos
(96,2% do total), o que denota de forma clara o papel central da cafeicultura escravista no
desenvolvimento da localidade durante o período em análise.
Para examinar a estrutura da posse cativa em Bananal, optou-se pelo modelo adotado por
Ricardo Salles.19 Buscando compreender a dinâmica histórica da relação de forças entre senhores e
escravos no momento em que se abria a crise da escravidão no Império do Brasil, o autor investigou
a posse de escravos em Vassouras, Rio de Janeiro, um dos maiores municípios cafeeiros do século
XIX. Para tanto, valendo-se de uma função linear que representa a dificuldade que os senhores de
16 MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciais
de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. 1. ed., 1838. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978. p. 35-36;
124; 130; 132. Segundo o autor, Bananal possuía, ainda, oito engenhos de açúcar, 12 destilarias de aguardente e um
engenho de serrar, em 1836. 17 OLIVEIRA, José J. Machado de. Quadro estatístico de alguns estabelecimentos ruraes da Província de São Paulo.
Documentos com que o Illustríssimo e Excellentíssimo Senhor Dr. José Antônio Saraiva, Presidente da Província de São
Paulo, Instruiu o Relatório da Abertura da Assembléia Legislativa Provincial no dia 15 de Fevereiro de 1855. São Paulo:
Typografia 2 de Dezembro, 1855. 18 Esses processos encontram-se guardados e conservados no Museu Major Novaes (MMN), no município de Cruzeiro,
em São Paulo. Cabe destacar que, na verdade, chegaram até nós 524 inventários. Porém, excluíram-se da amostra 22
processos que não foram concluídos na época e, por isso, estão incompletos. Dos 502 inventários, utilizaremos 407
processos para analisar a posse de escravos. Cf. INVENTÁRIOS post mortem. Cruzeiro: MMN, 1830-1879. 19 SALLES, op. cit. p. 155-157. Vale destacar que essa classificação foi desenvolvida por Magno Fonseca Borges. Cf.
BORGES, Magno F. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira em
Vassouras, 1821-1850. 2005. Dissertação (Mestrado em História) – DH-USS, Vassouras, Rio de Janeiro.
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escravos enfrentariam ao migrar de uma faixa de tamanho de posse para outra, Salles reuniu os
escravistas em cinco grupos: 1) mini (com quatro ou menos escravos); 2) pequeno (cinco a 19
cativos); 3) médio (20 a 49 escravos); 4) grande (50 a 99 cativos); 5) mega (com 100 ou mais
escravos).
A distribuição de escravistas e de escravos, segundo as faixas de tamanho de posse (FTP),
entre as décadas de 1830 e 1880, pode ser vislumbrada na Tabela 1. Observa-se que, de um lado, a
maior parte dos inventariados era composta por mini e pequenos proprietários (68,3% do total); por
outro, os grandes e megaescravistas representavam 16,7% dos inventariados. Finalmente, os médios
proprietários compunham 15% de todos os escravistas. Vê-se, portanto, que a propriedade cativa
estava bastante disseminada na população inventariada de Bananal, na medida em que um terço dos
proprietários detinha a posse de, pelo menos, um cativo.20
Tabela 1 – Distribuição de Escravistas e Escravos por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Bananal, 1830-1879
FTP Escravistas Escravos
N % N %
Mini 134 32,9 274 2,0
Pequenos 144 35,4 1.416 10,2
Médios 61 15,0 1.865 13,4
Grandes 32 7,9 2.175 15,6
Mega 36 8,8 8.198 58,9
Total 407 100,0 13.928 100,0
Fonte: INVENTÁRIOS post mortem. Cruzeiro: MMN, 1830-1879.
Se, por um lado, a propriedade de escravos estava difundida pelas camadas sociais livres da
região, por outro, havia uma brutal concentração dessa mesma propriedade. Os mini e pequenos
20 Sobre a estrutura da posse de escravos, a partir dos inventários post mortem, ver: FRAGOSO, João L. R.;
FLORENTINO, Manolo G. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma
economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. 1. ed., 1993. Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. p. 86-89; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África
e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1. ed., 1997. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. p. 27-31; BARROSO, Daniel S.
O cativeiro à sombra: estrutura da posse de cativos e família escrava no Grão-Pará (1810-1888). 2017. 342 f. Tese
(Doutorado em História Econômica) – FFLCH-USP, São Paulo.
7
escravistas detinham apenas 12,2% de toda a mão de obra, enquanto os grandes e megaproprietários
eram senhores de grande parte da população cativa, 74,5% do total. Só o grupo dos megaproprietários
(8,8% do total) controlava algo em torno de três quintos de toda a escravaria. Por último, os médios
escravistas possuíam 13,4% do total de escravos de Bananal (Tabela 1).21
Entre as décadas de 1830 e 1880, a propriedade de escravos em Bananal era disseminada nas
camadas sociais e, ao mesmo tempo, concentrada nas mãos de poucos inventariados, principalmente
os megaproprietários. Esses escravistas controlavam a produção e a exportação de café para o
mercado mundial, em vista do montante de indivíduos escravizados nessas unidades produtivas.
Contudo, é importante que se levante uma questão: a posse de cativos encontrava-se concentrada
pelos megaproprietários nos anos 1830, ou teria havido uma acumulação e concentração gradual
dessa propriedade ao longo do século XIX?
De acordo com as Tabelas 2 e 3, que apresentam a evolução temporal da distribuição de
proprietários e de escravos, observa-se que, no primeiro período (1830-1839), os mini e pequenos
escravistas, que representavam 75,4% dos inventariados, eram donos de 21,1% da mão de obra cativa
de Bananal. Os médios proprietários, por sua vez, detinham a posse de 20,9% dos cativos, embora
constituíssem 15,8% dos inventariados. Os grandes e megaescravistas, que compunham apenas 8,8%
dos proprietários, dominavam 58,1% de toda a população cativa. Nota-se, porém, que 46% da
escravaria do município estava confinada nas senzalas pertencentes aos megaproprietários (5,3% do
total). Os dados permitem inferir que, ainda durante a fase de expansão da produção de café e da
plantation escravista, os escravos estavam concentrados nas mãos dos megaproprietários.
No decênio de 1840, ainda no período de expansão da lavoura cafeeira, não ocorreram
transformações substantivas na estrutura da posse de escravos em Bananal. Os grupos dos médios,
grandes e megaescravistas mantiveram-se praticamente inalterados, tanto no que diz respeito ao
conjunto dos donos de cativos quanto à participação na propriedade cativa. Os mini e pequenos
escravistas, ao contrário, experimentaram profundas alterações. Houve, na verdade, uma inversão de
21 Nas Vilas de São Francisco e Santo Amaro, coração da economia açucareira na Bahia, os senhores de engenho, que
possuíam 60 ou mais cativos em suas propriedades, em 1816-1817, perfaziam a 54,5% dos escravistas e detinham a posse
de três quartos dos escravos. Observa-se que a propriedade cativa nessa região não era tão concentrada quanto em Bananal.
Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. 1. ed., 1988; trad.
port. São Paulo: Cia. das Letras, 2011. p. 356-376.
8
papéis entre estes senhores: os miniproprietários aumentaram sua participação relativa, elevando-se
a 43,1% dos inventariados, ao passo que os pequenos escravistas se reduziram a 34,7% dos
proprietários. Consequentemente, a fatia da propriedade cativa pertencente aos miniproprietários
saltou de 2,3%, nos anos 1830, para 4,5%, na década de 1840; no caso dos pequenos, a população
escrava caiu de 18,8% para 15,9%, no mesmo período.
Tabela 2 – Evolução da Distribuição de Proprietários por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Bananal, 1830-1879
Período 1830-1839 1840-1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879
FTP N % N % N % N % N %
Mini 17 29,8 31 43,1 22 24,7 36 37,9 28 29,8
Pequenos 26 45,6 25 34,7 32 36,0 29 30,5 32 34,0
Médios 9 15,8 9 12,5 13 14,6 14 14,7 16 17,0
Grandes 2 3,5 3 4,2 10 11,2 9 9,5 8 8,5
Mega 3 5,3 4 5,6 12 13,5 7 7,4 10 10,6
Total 57 100,0 72 100,0 89 100,0 95 100,0 94 100,0
Fonte: INVENTÁRIOS post mortem. Cruzeiro: MMN, 1830-1879.
Tabela 3 – Evolução da Distribuição de Escravos por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Bananal, 1830-1879
Período 1830-1839 1840-1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879
FTP N % N % N % N % N %
Mini 28 2,3 65 4,5 49 1,1 73 2,4 59 1,6
Pequenos 234 18,8 227 15,9 338 7,3 296 9,6 321 9,0
Médios 260 20,9 259 18,1 391 8,5 434 14,1 521 14,6
Grandes 150 12,1 195 13,6 732 15,9 573 18,7 525 14,7
Mega 572 46,0 684 47,8 3.096 67,2 1.696 55,2 2.150 60,1
Total 1.244 100,0 1.430 100,0 4.606 100,0 3.072 100,0 3.576 100,0
Fonte: INVENTÁRIOS post mortem. Cruzeiro: MMN, 1830-1879.
Durante a primeira década da fase de apogeu da cafeicultura escravista, nos anos 1850, a posse
de escravos alterou-se radicalmente em Bananal. Os megaproprietários passaram a deter 67,2% de
toda a população cativa inventariada no município, aumentando, assim, a concentração de escravos
9
sob seu domínio. Estes proprietários saltaram de 5,6%, nos anos 1840, para 13,5% de todos os
inventariados, no decênio seguinte. O grupo dos grandes proprietários, embora tenha experimentado
um acréscimo em sua participação no conjunto dos escravistas – pulou de 4,2% para 11,2%, no
mesmo período – manteve o controle de uma proporção de cativos análoga à década anterior: de
13,6%, tornou-se dono de 15,9% da escravaria bananalense. Por sua vez, a participação dos
miniproprietários, dentre os inventariados, reduziu-se profundamente: despencou de 43,1%, na
década de 1840, para 24,7%, nos anos 1850. Nesse sentido, sua escravaria reduziu-se a 1,1% de todos
os cativos. Os pequenos e médios proprietários, por fim, conservaram-se no mesmo patamar da
década de 1840, quanto ao bloco dos escravistas; entretanto, suas escravarias declinaram na passagem
para os anos 1850: os pequenos, que tinham 15,9% dos cativos, agora eram donos de 7,3%; os médios,
detentores de 18,1% da mão de obra, passaram a comandar 8,5% dos escravos.
No período final do apogeu da cultura do café (1860-1869), ocorreram novas transformações
na estrutura da posse de escravos. Houve, de certo modo, uma reorganização na distribuição de
proprietários e de escravos. O grupo dos miniproprietários expandiu-se (de 24,7%, nos anos 1850,
para 37,9%, no decênio de 1860) e, como resultado, ampliou a fatia da posse de cativos (de 1,1% para
2,4%). Os pequenos e grandes proprietários retraíram-se, enquanto grupo, no mesmo período; no
entanto, aumentaram sensivelmente sua parcela no conjunto dos escravos. O grupo dos médios
proprietários manteve sua participação praticamente inalterada, em relação à década de 1850,
enquanto sua posse se elevou a 14,1% da população cativa. Por último, os megaproprietários
reduziram-se a 7,4% dos inventariados, juntamente com sua escravaria, que pendeu de 67,2% para
55,2% de toda a mão de obra de Bananal.
Na fase de grandeza da cafeicultura escravista de Bananal (1870-1879), observa-se a retomada
no processo de concentração da propriedade cativa. Os megaproprietários ampliaram sua fatia no
conjunto dos inventariados, elevando-se a 10,6% dos escravistas, e passaram a controlar 60,1% da
parcela de escravos do município. Os pequenos e grandes proprietários, por seu turno, sofreram uma
ligeira retração no conjunto dos inventariados, seguida de perto pela redução nos percentuais de
escravos mantidos em suas senzalas. O grupo dos médios proprietários alargou-se, embora sua
10
escravaria não tenha aumentado a participação ante os demais inventariados. Finalmente, os
miniproprietários decresceram, mais uma vez, juntamente com a sua mão de obra.22
Em síntese, pode-se extrair, a partir dos dados acerca da estrutura da posse de escravos, que
houve um processo paulatino de acumulação e concentração da propriedade cativa pelos grandes e,
sobretudo, megaproprietários de escravos. Estes grupos, que nos anos 1830 constituíam 8,8% dos
inventariados e dominavam 58,1% da população cativa de Bananal, passaram a representar 19,1%
dos proprietários e tornaram-se donos de 74,8% da mão de obra escrava, na década de 1870. Esse
processo de expansão física dos grandes e megaproprietários coadunou-se com o crescimento bruto
da população escrava bananalense. Entre 1836 e 1854, o número de escravos pulou de 3.470 para
7.631, e a taxa de crescimento igualou-se a 120%. No período subsequente (1854-1872), a população
servil, que elevou-se a 8.281, apresentou uma taxa correlata bem menor (de 8,5%), embora positiva.23
Portanto, observa-se, de forma clara, a ampliação da escravaria durante os períodos de expansão e
apogeu da cafeicultura escravista.
O crescimento da população escrava de Bananal ocorreu durante a vigência do tráfico atlântico
de africanos para o Brasil. Entre 1801-1805 e 1826-1830, a média anual de desembarques de
africanos, nos portos do Centro-Sul do Brasil, aumentou de forma considerável: de 13 mil para mais
de 40 mil. No período de 1826-1830, a média anual atingiu o maior índice – até aquele momento –
da série histórica.24 Este incremento nos desembarques ocorreu, principalmente, devido ao tratado
22 Hebe Mattos, por meio de uma outra fonte, as Listas de Classificação dos Escravos para Serem Libertados pelo Fundo
de Emancipação, produzida no ano de 1873, traçou a estrutura da posse de escravos em Bananal. Os números, apesar de
divergentes, como esperado, em virtude da própria natureza de cada uma das fontes (os Inventários e as Listas),
apresentam as mesmas tendências de disseminação e concentração da propriedade cativa. Vejamos: os proprietários com
4 ou menos escravos (60,2%) eram donos de 7,5% da população cativa arrolada na Lista; os escravistas com 5 a 19 cativos
(24,7%) detinham a posse de 16,8% dos escravos; os proprietários com 20 a 49 cativos (8,2%) possuíam 17,4% da
escravaria; os escravistas com 50 a 99 cativos (4,1%) eram donos de 20,9% da mão de obra; por fim, os proprietários de
100 ou mais escravos (2,7%) controlavam 37,5% dos cativos de Bananal. Cf. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Resgate
– uma janela para o oitocentos. In: ______; SCHNOOR, Eduardo. (Org.). Resgate. Uma janela para o oitocentos. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1995. p. 234-235. 23 Em termos comparativos, a população livre de Bananal cresceu, entre 1836-1854, 18,9% e, entre os anos 1854-1872,
90,2%. Havia 3.238 habitantes livres, em 1836, 3.851, em 1854, e 7.325, em 1872. MÜLLER, op. cit. p. 35-36; 124; 130;
132. OLIVEIRA, op. cit. BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo (org.). São Paulo do passado: dados demográficos, 1872.
Campinas: NEPO-UNICAMP, 1998. p. 37.
24 Os dados do tráfico atlântico foram retirados de: BANCO DE DADOS: ESTIMATIVAS. 2009. Viagens: O Banco de
Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/estimates/e6X0rWN8.
Acesso em 15 de mar. 2019.
11
assinado, em 1826, entre D. Pedro e a coroa inglesa, que previa o término do tráfico no ano de 1830.25
Provavelmente, os escravistas procuraram se precaver do fim iminente do tráfico, comprando no
mercado cativos suficientes para trabalharem em suas propriedades rurais. Na primeira metade dos
anos 1830, houve uma drástica redução na importação de africanos, posto que somente 57.800 cativos
desembarcaram ilegalmente nos portos do Centro-Sul, indício claro de que a lei antitráfico não havia
sido feita para “inglês ver”. Vale notar que, deste montante, quase 30 mil aportaram no Centro-Sul
no ano de 1835.
Em virtude da pressão política exercida pelos cafeicultores do Vale do Paraíba, o tráfico
atlântico de africanos em larga escala foi reaberto ilegalmente a partir de 1836.26 Aliás, uma das
primeiras reações contrárias à Lei de 7 de novembro de 1831 partiu justamente da Câmara Municipal
de Bananal, cujos vereadores enviaram uma representação à Assembleia Geral sugerindo a pura e
simples derrogação da Lei.27 Deste modo, a entrada de africanos aumentou subitamente: em 1836-
1840, a média anual subiu para mais de 41 mil escravos; caiu para quase 20 mil no quinquênio
seguinte e, por fim, elevou-se novamente ao patamar de mais de 41 mil em 1845-1850.
É certo que uma parte dos africanos que aportaram no Centro-Sul foi adquirida pelos
proprietários de escravos de Bananal, na primeira metade do Oitocentos. Isso permitiu que os
cafeicultores acumulassem uma quantidade cada vez maior de escravos em suas unidades produtivas.
Tornou possível, ainda, aos grandes e, sobretudo, aos megaproprietários concentrarem parcela
majoritária da população cativa de Bananal. O que, por sua vez, assegurou aos maiores proprietários
o monopólio virtual do processo produtivo do café.
Outro aspecto marcante acerca da posse cativa se relaciona ao predomínio dos mini e
pequenos proprietários ao longo da quadra histórica analisada. Nos anos 1830, eles correspondiam a
75,4% dos inventariados e controlavam 21,1% da escravaria. No último período (1870-1879), sua
participação reduziu-se a 63,8%, bem como sua escravaria, que passou a representar somente 10,6%
25 Sobre a Lei de 1831, ver: GRINBERG, Keila; MAMIGONIAN, Beatriz (Org.). Dossiê: “Para inglês ver”? Revisitando
a lei de 1831. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 29, v. 1/2/3, jan./dez. 2007. p. 91-340. 26 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011. p. 121-191. 27 BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de
escravos, 1807-1869. 1. ed., 1970. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1976. p. 104. PARRON, op.
cit. p. 129-130.
12
da mão de obra inventariada. Não obstante a retração na participação destes grupos no conjunto dos
proprietários, eles sempre perfizerem, no mínimo, três quintos dos inventariados. Quanto à escravaria
mantida em suas senzalas, a fatia mínima e máxima oscilou, respectivamente, entre 8,4% e 21,1% do
total de cativos arrolados nos inventários de Bananal.
A acumulação e concentração da propriedade cativa pelos grandes e, principalmente,
megaproprietários deu-se, aparantemente, a reboque dos mini e pequenos proprietários. Para facilitar
a observação deste fenômeno, elaborou-se os Gráficos 1 e 2, que apresentam a evolução na
distribuição de proprietários e de escravos em Bananal entre as décadas de 1830 e 1880.
Gráfico 1 – Evolução da Distribuição de Proprietários por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Bananal, 1830-1879
Fonte: Tabela 2.
Os dados do Gráfico 1 apontam que os pequenos proprietários sofreram um declínio paulatino
em sua participação no conjunto dos inventariados. Os médios proprietários, por seu turno, ampliaram
sensivelmente sua fatia entre os escravistas. Em relação aos miniproprietários, a despeito das bruscas
oscilações, nota-se a tendência à manutenção de sua participação no seio dos inventariados. Por fim,
os grandes e megaproprietários expandiram-se no decurso do tempo, dobrando sua participação frente
aos demais inventariados. O Gráfico 2, sugere, primeiramente, que os mini, pequenos e médios
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
50%
1830-1839 1840-1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879
Mini Pequenos Médios Grandes Mega
13
escravistas diminuíram sua participação relativa no que tange à posse de escravos. E indica, também,
que os grandes e, singularmente, os megaescravistas expandiram a concentração de escravos em
Bananal, entre as décadas de 1830 e 1880.
Gráfico 2 – Evolução da Distribuição de Escravos por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Bananal, 1830-1879
Fonte: Tabela 3.
Os informes disponíveis no Quadro 1 sugerem um padrão demográfico uniforme quanto à
distribuição de proprietários e de escravos nos municípios de Bananal (São Paulo), Vassouras e
Cantagalo (ambos situados no Rio de Janeiro). Os dados extraídos dos inventários atestam, por um
lado, que parcela majoritária dos proprietários tinha poucos escravos. Os mini e pequenos
proprietários de Bananal, Vassouras e Cantagalo, perfaziam, respectivamente, a 68,3%, 55% e 68%
dos inventariados. Por seu turno, os grandes e megaproprietários correspondiam a 16,7%, 21% e 13%.
Nesses três municípios de grande lavoura, havia, de fato, uma predominância das “pequenas posses”
frente às demais propriedades, conforme as pesquisas no campo da demografia histórica têm
destacado nas últimas décadas. Ao que tudo indica, esse perfil de propriedade enraizou-se em todo o
Império do Brasil. Por outro lado, os dados sugerem, ainda, que a grande propriedade escravista
dominou o processo produtivo do café no Vale do Paraíba cafeeiro. Os grandes e megaproprietários
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
1830-1839 1840-1849 1850-1859 1860-1869 1870-1879
Mini Pequenos Médios Grandes Mega
14
concentravam mais de dois terços de toda a escravaria de Bananal, Vassouras e Cantagalo. Ao passo
que os mini e pequenos eram donos de apenas 12,2%, 12% e 15% das escravarias, respectivamente.
Quadro 1 – Distribuição (%) de Proprietários e Escravos por Faixas de
Tamanho de Posse (FTP). Vale do Paraíba Cafeeiro (Períodos Selecionados)
Município Bananal (1830-1879)28 Vassouras (1821-1880)29 Cantagalo (1810-1880)30
Proprietários Escravos Proprietários Escravos Proprietários Escravos
FTP % % % % % %
Mini 32,9 2,0 16,0 1,0 24,0 2,0
Pequenos 35,4 10,2 39,0 11,0 44,0 13,0
Médios 15,0 13,4 22,0 18,0 19,0 19,0
Grandes 7,9 15,6 12,0 22,0 6,0 13,0
Mega 8,8 58,9 9,0 48,0 7,0 53,0
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: cf. notas 28, 29 e 30.
A disputa acirrada pelo controle da oferta de café entre as principais produtoras mundiais
(Cuba, Java, Jamaica, Demerara e Haiti) estabeleceu esse novo padrão de posse de escravos no Vale
do Paraíba cafeeiro. Nesse contexto, o Brasil conseguiu rivalizar e ultrapassar todos os seus demais
concorrentes.31 Os dados sobre a propriedade cativa em Bananal, Vassouras e Cantagalo sugerem que
isso se tornou possível devido à concentração da posse cativa por um grupo exclusivo de
proprietários, os megaescravistas. No caso de Bananal, esses escravistas, além de concentrarem a
escravaria, dominavam a propriedade fundiária e os cafezais cultivados. Entre as décadas de 1830 e
1860, os megaproprietários, que perfaziam a 11,4% dos produtores de café, controlavam 62,1% dos
escravos, 65,9% dos pés de café e 51,9% da superfície de Bananal, segundo os inventários.32
Essa constatação pode ser extrapolada para outras localidades do Médio Vale do Paraíba,
coração da cafeicultura escravista do Brasil no século XIX. Os municípios fluminenses de Rio Claro,
28 Cf. Tabela 1. 29 Cf. SALLES, op. cit. p. 155-157. 30 Cf. MARRETO, op. cit. p. 4-5. 31 Cf. MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no
século XIX. In: SALLES, R.; GRINBERG, K. (Org.). O Brasil Imperial (1808-1889). Volume II (1831-1871). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 339-383. 32 MORENO, Breno A. S. Terra, trabalho e capital: hierarquias sociais no Médio Vale do Paraíba (Bananal, século XIX).
2017. 147 f. Relatório de Qualificação (Doutorando em História Social) – FFLCH-USP, São Paulo. p. 107 (Tabela 29).
15
São João Marcos, Barra Mansa, Resende, Piraí, Valença e Paraíba do Sul muito provavelmente
conformavam padrão demográfico semelhante ao de Bananal, Vassouras e Cantagalo. Estas regiões
estavam intrinsecamente voltadas à produção de café para o mercado mundial. Assim, o “coração do
Império” não seria somente Vassouras, como afirmou Salles, mas sim a plantation escravista de café,
que dominava a paisagem agrária no Médio Vale do Paraíba.
Considerações Finais
Grande parte dos esforços empreendidos desde os anos 1980 consistiu em rever o modelo
demográfico da plantation escravista, isto é, os pesquisadores apontaram que teria prevalecido no
Brasil pequenas posses de escravos. Este artigo, ao trabalhar de forma sistemática com um único
município, não desmente esse quadro, que possivelmente mantém validade para as demais regiões do
Império do Brasil, mas demonstra, de forma cabal, que a grande propriedade escravista dominou de
forma inconteste a paisagem geográfica, econômica e social de Bananal.
Essa conclusão pode ser estendida ao Vale do Paraíba cafeeiro. Os dados disponíveis sobre
Vassouras e Cantagalo sugerem a existência de tendências relativamente uniformes de concentração
da propriedade escrava nos três municípios.33 São necessárias investigações correlatas para outras
cidades da Bacia do Paraíba. Em Piraí, localizado entre Bananal e Vassouras, aparentemente houve
um padrão demográfico ainda mais concentrado em relação àquelas localidades, com uma presença
mais acentuada do domínio dos megaescravistas sobre o espaço econômico e social.34 De qualquer
forma, pode-se avançar a hipótese segundo a qual o que identifiquei para Bananal, em vista da
correlação estreita com Vassouras e Cantagalo, represente o padrão demográfico da cafeicultura
escravista no Vale do Paraíba Oitocentista.
33 Ao comparar de forma sistemática a evolução da posse de escravos e o perfil demográfico da população cativa entre os
municípios de Bananal e Vassouras, no período de 1830 a 1860, demonstrei que havia tendências relativamente uniformes
de concentração da propriedade cativa e na composição demográfica da mão de obra em ambas as localidades. Cf.
MORENO, Breno A. S. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. 2013.
270 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH-USP, São Paulo. p. 83-167. 34 É o que sugerem as explorações iniciais da pesquisa em andamento de Rafael Marquese e Ricardo Salles. Informação
fornecida por Marquese e Salles, em 2017.
16
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