Confederación Iberoamericana de Asociaciones Científicas y Académicas de la Comunicación
A fotografia e o fotodocumentário de Jacob Riis a Pedro Meyer
Ana Carolina Lima Santos1
Resumo: Este artigo tenta organizar a história da fotografia, dando especial atenção às práticas do
documentário desenvolvidas nesse âmbito. O objetivo não é oferecer um inventário exaustivo das
correntes, dos autores, das obras ou das estratégias documentais que apareceram ao longo dos anos,
mas marcar a maneira como eles configuraram um campo de forças que tornou possível a passagem de
um entendimento da fotografia como transcrição do real factual a uma perspectiva interpretativa em que
a relação entre imagem fotográfica e realidade é problematizada em função do subjetivismo então
assumido. Além disso, pontua-se o delineamento mais recente de uma concepção de documentário que
recusa a materialidade da referência em prol do investimento em outras dimensões do real, como a
virtualidade do imaginário. Como um exemplo disso, o trabalho do fotógrafo Pedro Meyer é examinado.
Palavras-clave: História da fotografia, fotodocumentário, natureza do referente, Pedro Meyer.
Abstract: This paper attempts to organize the history of photography, with special attention to
documentary. Its central aim is not to provide an exhaust list of authors, works or strategies that had
appeared over the years, but to mark how they set up a field of forces that made possible to change the
understanding of photography as a transcription of facts in favor of an interpretative perspective –
according to which the relation between image and reality is problematized due to the subjectivity that is
assumed in photography. In that sense, the paper designs the latest tendency of documentary as a
standpoint that refuses the materiality of the reference and invests in others dimensions of reality, as the
virtuality of imaginary. As an example of that, the photographs of Pedro Meyer are examined. Keywords:
History of photography, documentary photography, status of the referent, Pedro Meyer.
1. Introdução
A história da fotografia se associa e em alguma medida se confunde com a da
fotodocumentação. Já nos primeiros usos da técnica fotográfica, era possível destacar
imagens que objetivavam dar conta de um ou outro aspecto da realidade. Para assegurar
uma representação do real que fosse objetiva, exata e verdadeira, essas fotografias
dispunham de pelo menos dois trunfos. Em primeiro lugar, o seu caráter mecânico. Por
ser tomada como fruto de uma mera causalidade física, supostamente livre da
intervenção humana, a fotografia era vista como meio ideal para a documentação do
mundo – que passava a lhe ser conferida como vocação natural. Além, a natureza
icônico-indicial era capaz de ratificar essa capacidade documental. De um lado, o ícone
apareceu como importante categoria na medida em que o valor de analogia da imagem
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em
Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia e graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela
Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected].
fotográfica conseguia trazer para o momento da percepção o sentido de presença do seu
referente, sugerindo-o; do outro, a categoria do índice evidenciou o fato de que a
fotografia, diferentemente de outras imagens, era inseparável da sua referência,
trazendo-a colada em si e assim indicando-a.
Nesse contexto, a imagem fotográfica, sobretudo a documental, desenvolveu
uma estética que priorizou tanto seu caráter mecânico quanto a sua natureza icônico-
indicial. Entre meados do século XIX e início do XX, no modelo de fotografia que se
fixou como hegemônico, era usual o investimento em uma simplicidade formal (tomada
frontal, luminosidade, nitidez e legibilidade da imagem) que conservava a idéia de uma
transparência temática, ou seja, de um modo de representação em que os dados
composicionais eram apagados para sublinhar o poder de ancoragem do real nelas
percebido, como se quisesse tornar plausível olhar para as imagens como se estivesse
diante do próprio mundo. Essa estética da transparência que se firmou enquanto padrão
era ao mesmo tempo causa e conseqüência do entendimento de que a imagem
fotográfica, por ser mecânica, icônica e indicial, poderia configurar-se como uma
espécie de duplo do real factual.
Contudo, ao longo dos anos, esse modelo foi tensionado por uma série de
práticas fotográficas: diversas correntes, autores, obras e estratégias documentais
configuraram um campo de forças em que concorreram diferentes concepções e formas
de fotodocumentação. É exatamente aí que se põe o intuito do presente artigo. Busca-se,
através de um retrospecto pela história do documentário fotográfico, demonstrar de que
maneira ele se desenvolveu a partir de um entendimento da fotografia como transcrição
do real factual, evoluiu para uma perspectiva interpretativa em que a relação entre
imagem fotográfica e realidade era problematizada em decorrência do subjetivismo
então assumido e, por fim, delineou uma concepção de documentação que abre mão da
materialidade da referência em prol do investimento em outras dimensões do real. Nesse
ponto, analisa-se mais a fundo o projeto Truths & fictions, do fotógrafo Pedro Meyer,
trabalho paradigmático dessa nova compreensão de fotodocumentação da realidade.
2. Da noção de relato objetivo do real à de expressão pessoal
A invenção do termo documentário, no sentido que atualmente se confere a ele,
é atribuída a John Griergson, que em 1926 empregou tal palavra para referir-se ao
longa-metragem Moana, do cineasta Robert Flaherty. Nesse primeiro uso, a expressão
assinalava um comprometimento do filme com a representação do real factual,
marcando-o em oposição às produções hollywoodianas descompromissadas que então
se popularizavam. De um lado estariam, pois, os filmes de ficção, tidos apenas como
fontes de entretenimento, e, do outro, os filmes cuja missão ia além do divertimento, já
que pretendiam estabelecer asserções sobre o mundo histórico (BARTOLOMEU, 1999;
DA-RIN, 2004; RAMOS, 2008, et alii). Embora essa diferenciação não seja hoje
considerada suficiente para definir o documentário, ela tem servido de ponto de partida
para conceitos mais elaborados. Nela, pontua-se um elemento que parece imprescindível
para isso, que é a existência de uma intenção declarada de produção de conhecimentos
acerca da realidade.
É precisamente essa intenção que caracteriza a utilização que a expressão
recebeu de imediato no campo da fotografia. Já na década de 1920 começou-se a
empregar o rótulo de documentário fotográfico a um tipo de produção que, antes mesmo
do termo ser cunhado, tomava a fotografia como meio para lançar informações sobre o
real – e que se opunha, por sua vez, às imagens com aspirações mais artísticas. Esse
fotodocumentário avant la lettre, a exemplo das fotografias de viagens, etnográficas e
de intenção colonialista que existiam pelo menos desde 1842, trazia indícios do que
viria a ser propriamente apreendido enquanto documental (SOUSA, 2000). Entretanto, o
nascimento oficial do documentário fotográfico é creditado somente a partir da
publicação do livro How the other half lives (1890), de Jacob Riis. No fotolivro são
reunidas imagens que expõem de perto a pobreza nova-iorquina (figura 1).
Figura 1. Jacob Riis, New York children, 1888.
Nessa época, outros projetos surgiram com objetivos e preocupações similares.
John Thompson, um dos fotógrafos que se engajaram nessa tradição que se iniciava,
resumiu bem aquilo que guiava esses trabalhos, isto é, o intento de referenciar a
realidade de modo a dar-lhe para o testemunho do espectador. “Ao fotografar „ao vivo‟
[Thompson] visava dar a conhecer, com rigor, mundos sociais desconhecidos ou que
passavam despercebidos no quotidiano. „A fidelidade destas imagens consente a
abordagem mais próxima que se possa fazer no sentido de pôr o leitor verdadeiramente
diante da cena representada‟, escreve ele” (Ibidem, p. 55). Em função disso, as práticas
documentais desse período valoravam uma idéia de objetividade produtora, justificada e
aplicada em escolhas técnicas e estéticas. Há, de fato, uma tendência ao investimento na
ética da imparcialidade ou do recuo, segundo a qual o fotógrafo não deve intervir no
mundo, mas apenas capturá-lo. Assim, abdicando do seu posicionamento ideológico, o
documentarista ambicionava representar a realidade de forma isenta, permitindo que o
espectador, ele mesmo, se posicionasse diante do real (RAMOS, 2008).
Dessa maneira, a fotografia documental manteve-se vinculada à noção de
respeito à restituição da realidade factual. Se entre a imagem fotográfica e o mundo
aparentava existir uma relação privilegiada, em que as coisas poderiam falar „por si
mesmas‟ e revelar-se ao público através da imagem, o fotógrafo deveria respeitá-la.
“Toda a ênfase [do documentário] está na evidência; os fatos falam por si mesmos... já
que apenas os fatos importam” (STOTT apud PRICE, 1997, p. 77, tradução livre). Essa
concepção, ilusória, perdurou ainda pelas próximas décadas. A adesão à straight
photography (assinalada pela rigidez e pelo controle técnico, sem espaço para
intervenções no laboratório ou na cópia) e à estética da transparência (da tomada frontal,
da luminosidade, da nitidez e da legibilidade da imagem) era justificada exatamente por
ela, reforçando a compreensão de que à fotografia cabia apenas um relato objetivo e
auto-realizado.
A idéia de um relato objetivo pautado centralmente na descrição do real foi
importante para o desenvolvimento do mais conhecido projeto fotodocumental do início
do século XX, o Farm Security Administration – FSA (figuras 2 e 3). Esse projeto, parte
estratégica dos esforços do presidente norte-americano Franklin Roosevelt para
legitimar um programa de ajuda aos agricultores, abrigou grandes nomes da fotografia
(Arthur Rothstein, Dorothea Lange, Russell Lee, Walker Evans, entre outros), que
percorreram o país a fim de retratar as precárias condições de vida da população rural,
bem como registrar as ações do governo para melhorá-las.
Figura 2. Dorothea Lange, Migrant Mother, 1936.
Figura 3. Bud Fields and his family, Walker Evans, 1936.
No entanto, embora devedora de uma concepção objetivista de fotografia, as
imagens do FSA começavam a se afastar dela. O elevador teor simbólico que despontou
nesse trabalho, fazendo emergir a figura do herói rural que, indefeso, sofre diante de um
quadro social imposto, acabou por demarcar a especificidade da atividade documental
para além do testemunho objetivo.
Assim, essas fotografias documentais, como todas as outras, eram obras
densamente construídas que utilizavam determinadas técnicas e formas para
produzir uma resposta desejada no espectador. Elas continham „fatos‟ em um
sentido simples: uma mulher usando um vestido feito de um saco de farinha,
uma família vivendo sob uma tenda improvisada de galhos e oleados. Havia,
em outras palavras, a abundância de evidências de pobreza, explicitada pelos
indicadores tradicionais da falta de prosperidade material. Mas, em suas
versões mais complexas, essas imagens são fotografias dos (literalmente)
despossuídos, cuidadosamente construídas para produzir um significado que
transcende o que é mostrado (PRICE, 1997, p. 82, tradução livre).
Demonstra-se, com isso, que o fotodocumentário, apesar de se constituir de
„imagens honestas‟ retiradas do próprio real e, portanto, históricas, não se configurava
de maneira transparente, transcrito do mundo sem quaisquer interferências, mas, ao
contrário, era codificado de acordo com interesses e padrões usuais acionados pelo
fotógrafo. Tratou-se, pois, da afirmação de uma abordagem interpretativa do
documental. Firmada com convicção a partir desse momento, essa perspectiva já se
esquematizava anteriormente, mesmo nas fotografias pré-nascimento do documentário.
Por exemplo: nas fotografias de viagens e curiosidades etnográficas, a figura do
selvagem primitivo era explicitamente explorada, inclusive com a recuperação de trajes
e com a encenação de práticas não mais presentes em seu dia a dia; nas fotografias de
intenção colonialista, a exaltação dos orgulhos nacionais e a subjugação dos povos eram
refletidas simbolicamente nas imagens, que se conformavam como testemunhos parciais
não obstante proclamadas e consumidas como não-mediadas (SOUSA, 2000).
O que efetivamente mudou, a partir do FSA, foi a consciência e a explicitação da
interpretação realizada pelo fotógrafo. A menção que John Tagg faz a uma palestra
proferida em 1951 por Berenice Abbot demonstra bem como isso se dá. Nela, a
fotógrafa celebra a capacidade (revestida de desafio) que a imagem fotográfica tem de
revelar a realidade. Só que, como Tagg pontua, o valor documental advogado por
Abbott como inerente ao processo fotográfico não se confundia com um suposto caráter
mecânico atribuído à câmera, mas era perpassado pelo que chama de „objetividade
sensível do fotógrafo‟, isto é, por algo que está implicadas nas estratégias de expressão
pessoal, a partir das quais o fotógrafo põe ordem naquilo que extrai do real, imbuindo-o
no âmbito da significação. O documental da fotografia já era, portanto, entendido como
produto da combinação dos dados da natureza (o real dado), da personalidade do artista
(objetividade sensível) e do uso motivado e seletivo dos meios de representação (leis
determinadas pela história das formas representativas) (TAGG, 2005).
Esse avanço, especialmente no que diz respeito à questão da autoria, fez-se
perceptível nos fotodocumentários realizados entre as décadas de 1930 e 1950. Além do
FSA, os fotógrafos da chamada geração mítica, a exemplo de Robert Capa, Henri
Cartier-Bresson, Margareth Bourke-White, Gyula Halasz Brassaï e Robert Doisneau,
foram importantes nesse aspecto. Ao ostentarem o status de criadores, priorizando
marcas autorais que passaram a ser reconhecidas como verdadeiras „escrituras
fotográficas‟, eles foram capazes de esboçar um senso partilhado de liberdade criativa,
conforme o qual a fotografia era resultado de um ato expressivo (SOUSA, 2000). A
noção de expressão pessoal tornou-se ainda mais fundamental nos anos seguintes,
sobretudo a partir de William Klein e de Robert Frank, cujos trabalhos contribuíram
para uma mudança no modo de se conceber o documentário fotográfico em função da
abertura para um subjetivismo mais assumido.
3. Do fotodocumentário imaginário à invenção de mundos
Um novo paradigma de fotografia documental começou a ser estabelecido com o
lançamento de New York (1956), de William Klein, e de The Americans (1958), de
Robert Frank. Esses dois livros tinham como pretensão oferecer um panorama sobre a
vida norte-americana daquele tempo, como outros projetos realizados antes e depois
deles. Porém, essas obras se destacaram das demais por terem sido construídas de um
ponto de vista inovador e pouco convencional: ao invés de concentrarem-se no registro
de personagens e acontecimentos claramente emblemáticos, Klein e Frank miravam o
aparentemente banal e sem sentido. Além disso, apesar da diferença que as separavam,
as estéticas por eles adotadas enfatizavam essa ausência suposta de significação
(LOMBARDI, 2007), principalmente por conta das imagens com enquadramentos
inusitados, composições desfocadas, borradas e/ou ambíguas (figuras 4 e 5).
Figura 4. William Klein, Candy store, 1955.
Figura 5. Robert Frank, Bar – New York, 1959.
A partir daí, a liberdade criativa dos fotógrafos abriu-se a possibilidades até
então raras ou inexistentes no campo do documentário. As temáticas, as formas de
abordagem dos objetos fotografados e as estratégias diversificaram-se – juntas, as novas
escolhas temáticas, técnicas e estéticas ostentadas jogaram a fotografia para além do
simples relato objetivo. Isso porque, dependente dessas explorações expressivas do
fotógrafo, a imagem podia ultrapassar a realidade social e concreta do mundo para fazer
referências à realidade psicológica do próprio fotógrafo, nela traduzidas. As lembranças,
as crenças, os valores e os interesses que povoam o imaginário do fotógrafo são
agregados à documentação e francamente privilegiados. Filmes granulados, negativos
super-expostos, uso abusivo da grande angular, composições abstratas e recorrências ao
ficcional são alguns dos recursos que buscavam expressar na fotografia as impressões
que o fotógrafo experiencia na realidade. De tal modo, a fotografia se estabeleceu como
resultado de um trabalho de intervenção do fotógrafo sobre o real, no qual seu
imaginário exerce papel central.
Em uma interpretação livre do conceito de Durand (2004), o imaginário
orienta o trajeto antropológico do fotógrafo, que bebe de várias bacias
semânticas em busca de armazenamento de dados para sua produção; em
seguida, passa pelo escoamento, onde escolhe novas formas de trabalhar o
conteúdo armazenado; organiza os rios, ordenando-os mentalmente; e daí
estabelece o seu próprio lago de significados, deixando brotar seus desejos,
angústias e aspirações antes de apertar o botão (Ibidem, p. 72-73).
Walker Evans, famoso pelo trabalho junto ao FSA, exprimiu bem essa
concepção no próprio título de um de seus livros posteriores, Messages from the interior
(1966). Com ele, o fotógrafo pareceu defender a idéia de que a fotografia comunica
sempre e acima de tudo a verdade interior do seu criador (SOUSA, 2000). Em
fotógrafos mais contemporâneos, como Antoine D‟Agata, Michael Ackerman, José
Ramón Bas, Claudia Anduja, Arthur Omar e Miguel Rio Branco, essa tendência
intensificou-se em vias distintas, muitas vezes convertendo-se no abandono de uma
preocupação de fidelidade ao real visível e factual e enveredando para a invenção de
mundos fotográficos abertos aos sonhos e às fantasias.
Ao seguir esses rumos, o documentário alargou seus limites e fundou não apenas
novas estéticas, mas novas concepções e formas de fotodocumentação. Paralelamente a
todas essas transformações ocorridas em obras com finalidades especificamente
documentais, a fotografia, como um todo, viveu uma série de mutações, que podem ser
inventariadas nas experimentações das vanguardas artísticas da década de 1920 (que
pioneiramente romperam com a tradição mimética da realidade e imprimiram à imagem
fotográfica um viés interpretativo e expressivo, aberto a extrapolações imaginárias), nas
hibridações da fotografia plástica levadas a cabo a partir de 1970 (que também
contribuíram para a desconstrução da fotografia como restituição de um espaço-tempo
perdido) e nas possibilidades de manipulação e geração computacional das imagem
digital (que faz com que a fotografia não mais dependa de um referente, „desindexando-
se‟) (COUCHOT, 1993; SOUSA, 2000; BAQUÉ, 2003, et alii). Nesse sentido,
igualando-se a outras formas de representações visuais, a imagem fotográfica foi
destituída da garantia de verdade absoluta que antes lhe era atribuída.
O trabalho do fotógrafo Joan Fontcuberta distinguiu bem esse entendimento,
indo até um pouco mais longe. Em Fauna (1987), ele apresentou registros resgatados do
arquivo de Peter Ameisenhaufen, cientista desaparecido em 1955. Nele, encontravam-se
fichas zoológicas, radiografias, mapas de dissecação e fotografias de um conjunto de
animais exóticos, como cobras de doze patas e macacos alados (figura 6). O arquivo ou
sequer o cientistas jamais existiram, bem como os animais dos quais as fotografias
parecem servir de prova; tudo foi inventado por Fontcuberta de maneira a induzir o
espectador a tomar como verdade um universo ficcional por ele criado. Brincadeira
semelhante o fotógrafo fez em Sputnik (1997), ao reescrever a história da exploração do
espaço pelos soviéticos através de fotografias e relatos de viagem do cosmonauta Ivan
Istochnikov, perdido no espaço em estranhas circunstâncias. O cosmonauta também
nunca existiu e as fotografias em que Istochnikov supostamente aparece são encenações
em que figura o próprio Fontcuberta. Em um caso e no outro, o que se fez foi uma sátira
que aponta a possibilidade de a fotografia aferir o status de verdade a uma mentira,
refletindo sobre a credibilidade da imagem fotográfica enquanto documento na medida
em que a indica como artificial, codificada e eventualmente mentirosa.
Figura 6. Joan Fontcuberta, Ceropithecus icarocornu, 1988.
Alguns anos depois, o fotógrafo transformou essa provocação em formulações
teórico-conceituais. Em um conjunto de ensaios, compilados em El beso de Judas,
Fontcuberta discorreu sobre a capacidade (ou incapacidade) de a fotografia apreender a
realidade e a verdade do mundo. De antemão, pelo próprio título do livro, ele antecipou
sua posição acerca do assunto: a despeito da vontade que a fotografia demonstra para se
aproximar verdadeiramente do real, ela se caracteriza por um gesto de traição – assim
como o beijo de Judas, a imagem fotográfica esconde uma atitude desleal, uma traição,
na medida em que diz „personificar a verdade‟ quando, de fato, camufla mecanismos
culturais e ideológicos que são afetados pelas suposições que cada um delas sustenta em
relação ao real (FONTCUBERTA, 1996). Mais do que as situações forjadas de modo
deliberado ou fraudulentas, como as cultivadas em seu trabalho artístico, Fontcuberta
chamou atenção para a condição construída que compartilham todas as imagens
fotográficas, assinalando a importância que desempenha o processo de criação que o
fotógrafo necessariamente leva a cabo.
O modo como esse processo de criação se evidenciou a serviço do documental, e
igualmente entrelaçando-se com uma provação acerca de seu caráter de construção do
real, pode ser pensado a partir das obras de fotógrafos como Cindy Sherman, Jeff Wall e
Philip-Lorca diCorsia. Nelas, é possível detectar uma realidade artificialmente
estabelecida (tornada óbvia pelo recurso a personagens, expressões e gestões
estereotipados e pela exploração de um arranjo visual em que os cenários, a marcação
teatral, o enquadramento e a luz fazem lembrar a estética cinematográfica) que, a
despeito disso, dão a entrever um cotidiano que apresenta similaridades com aquele que
se entende por verdadeiro. A justaposição de artificialidade e realismo gera um jogo de
estranhamento e familiaridade que diz algo sobre a condição do real atual, entendido
como o cruzamento desses mesmos elementos. Nesse caso, ao invés de servir a uma
mentira, o recurso ao ficcional aproximou-se ainda mais da realidade, mas de maneira
diferenciada do que nas formas tradicionais do documental, já que sua acuidade e sua
veracidade não estão atreladas à reapresentação da referência factual ou sequer estão
submissas à materialidade de um passado factual (ROUILLÉ, 2009).
Nessas fotografias, a reinvenção possibilitada pela/na fotografia reforçou o
poder documental da fotografia na medida em que passa a creditar sua eloqüência à
capacidade de subverter a lógica do registro fotográfico para propor imagens que
intentam menos referenciar ou descrever como as coisas aparentam no mundo factual e
assim reinstaurá-las do que revelar o que nele se encontra „invisível‟, reinventando-as a
partir de aspectos não-visíveis, palpáveis ou tangíveis do real. Entendeu-se que essa
forma de dar conta do mundo não é necessariamente menos válida que as anteriores;
afinal, como construção sempre imaginária, nem mesmo na „fotografia ao vivo‟ de
Thompson e Riis há garantias de sua acuidade: “[nada] nos garante que a fotografia
formalmente similar e precisa, e aparentemente objetiva (o que foi fotografado era o que
estava lá, nem mais nem menos), é o documento verdadeiro do que as pessoas vêem, e
sobretudo sentem, pensam, fazem e são” (MARTINS, 2008, p. 159).
4. Pedro Meyer e as virtualidades do seu imaginário
Ao deixar de lado a preocupação com a realidade factual pré-existente, o
fotodocumentário contemporâneo voltou-se para a criação de sentidos submetida a uma
racionalidade mais especulativa, condizente com a lógica das novas tecnologias: nela, a
informação é sempre processada; o que significa que armazenar, ordenar e avaliar dados
passaram a se constituir como condições indispensáveis para a representação do real
(FONTCUBERTA, 1996) e que puderam, conseqüentemente, ser apropriadas pela
fotografia em seu exercício documental. O trabalho do fotógrafo Pedro Meyer, aqui
tomado para estudo de caso, é paradigmático dessa nova compreensão de
fotodocumentação da realidade.
Meyer é um artista espanhol naturalizado mexicano que há mais de cinqüenta
anos se dedica ao fotodocumentário. Suas obras inaugurais atendiam aos preceitos de
um documentário comprometido com a idéia de apresentação do real em estado
passado. Todavia, a partir do final da década de 1980, Meyer levou a cabo experimentos
que determinaram uma transformação significativa no seu modo de representar a
realidade, produzindo imagens que não mais se fundamentavam na materialidade ou na
factualidade da referência, distanciando-se (às vezes em maior ou em menor
intensidade) do caráter mecânico do processo fotográfico, da natureza icônico-indicial
da imagem, da estética da transparência e da crença da auto-revelação da realidade.
Figura 7. Pedro Meyer, Mexican serenade, 1985/1992.
Figura 8. Pedro Meyer, Temptation of the angel, 1991/1991.
A primeira mudança a ser notada encontra-se nos procedimentos adotados, uma
vez que, através de manipulações digitais, ele passou a trabalhar as imagens originais,
alterando, combinando e transformando-as de maneira a criar novos fundos, novos
enquadramentos e novas composições. Além disso, essas manipulações foram tornadas
evidentes. Na maioria das fotografias, por não haver uma compatibilidade e um ajuste
perfeitos de tom, luz, escala e perspectiva, as alterações são visíveis até mesmo para um
olhar não treinado. Em outras imagens, as manipulações são ainda mais óbvias, pois a
composição é desprovida de quaisquer pretensões de ser percebida em seu aspecto de
„recorte do real‟, mostrando personagens fantasmagóricos, arranjos inusitados e
realidades com ares de estranheza ou surrealismo. Há ainda fotografias que são
acompanhadas da explanação dos procedimentos realizados. Em todos esses casos, a
indicação de manipulação aparece sempre explicitada nas legendas: as imagens
alteradas são datadas duplamente, com a designação do ano em que a fotografia foi
captada e do ano em que ela foi modificada (figuras 7 e 8).
Por meio desses procedimentos e com esses resultados, o trabalho de Meyer
atingiu um grau de estranhamento que não permite uma sensação efetiva de presença do
referente que remeta à materialidade de um passado, ao isso-foi barthesiano2; dele não
mais funcionando enquanto índice – até porque o ato que as fundaram é assumidamente
menos o de uma impregnação factual do que a de uma manipulação efetiva dele. Ao
invés de buscar a reinstauração do real a partir da re-apresentação de uma realidade
factual pré-existente, essas fotografias abdicaram de uma experiência direta do mundo
para dar conta dele apenas indiretamente. Na verdade, o que Meyer fez foi criar imagens
que funcionaram como espécies de enigmas visuais a guiar uma leitura metafórica ou
alegórica do que é apresentado, somente por meio da qual o espectador pode estabelecer
conexões e delas inferir significados.
O interessante, nesse ponto, é perceber que todas essas mudanças de ordem
técnica e estética não se refletiram no foco do seu trabalho, visto que o fotógrafo
permanece filiado às propostas de participação, denúncia e/ou representação da
realidade, típicas à prática documental ao qual sempre se dedicou. O que mudou foi o
modo como ele passou a entender a própria fotodocumentação. Para ele, documentar a
realidade através de fotografias não mais se restringia à captura do instante decisivo em
que a realidade supostamente já torna visível por si só a essência dos acontecimentos em
curso (CARTIER-BRESSON, 1952), mas se configura como um exercício expressivo
2 O termo „isso-foi‟, cunhado por Roland Barthes, demonstra a idéia de que a fotografia, por ter um referente que precisa ser necessariamente factual e posto diante da objetiva, serve de prova da existência e da condição passada daquilo que é representado.
“O que vejo [em um foto] não é uma lembrança, uma imaginação, uma reconstituição [...], mas o real no estado passado: a um só
tempo, o passado e o real” (BARTHES, 1998, p. 124).
ativo em que a mera reprodução da realidade é insuficiente. Meyer acredita que, para
além disso, é necessário incluir na imagem sua „visão de mundo‟, suas impressões e
sensações – mesmo que, para tal, seja preciso forjar as situações que retrata. Trata-se de
uma consciência documental segundo a qual o que importa é pôr em ordem e dar
sentido à experiência do mundo sem precisar necessariamente apresentá-lo em sua
factualidade. Meyer vs. The death of photography (figura 9) anunciou tal concepção: ele
mesmo aparece ao lado do esqueleto da fotografia documental, que ganha vida pelo
poder da imaginação digital que ele o confere (KAPLAN, 2006).
Figura 9. Pedro Meyer, Meyer vs. death of photography, 1991/1994.
No documentário Truths & fictions, essas questões podem ser observadas.
Fotolivro publicado em 1995, esse projeto documentou a vida dos chicanos através de
uma série de fotografias feitas em cidades norte-americanas e mexicanas. No livro, as
fotografias feitas nos Estados Unidos aparecem nas primeiras páginas. Nelas, imagens
com e sem manipulações digitais, na maior parte em preto e branco, retratam situações
quase sempre paradoxais, insólitas e irônicas. As fotografias feitas no México aparecem
apenas na segunda parte do livro, todas caracterizadas por manipulações digitais mais
explícitas e pelas cores exuberantes. Um traço recorrente nessas imagens é a exploração
do exagero e do sobrenatural, sempre envoltos em uma atmosfera de naturalidade. Seja
na exploração do paradoxal, do insólito, do exagero ou do sobrenatural, Meyer
configura-os como elementos estéticos que ajudam a traduzir a realidade retratada,
como um meio para aludir a uma maneira de enxergar as culturas documentadas. Ao
representar os imigrantes e descendentes de mexicanos residentes nos Estados Unidos,
por exemplo, os „desajustes‟ visuais apresentados nas imagens funcionam como
equivalentes estéticos do caráter deslocado, múltiplo e hifenizado que resulta da
miscigenação cultural desses sujeitos3.
Esses significados indiretos que se tornam possíveis nas fotografias de Meyer
reforçam a idéia de que o documental não precisa se referenciar direta e literalmente ao
mundo factual, mas pode funcionar como re-elaboração fundada no imaginário do
fotógrafo. Se essas formulações são válidas para toda e qualquer fotografia; no trabalho
de Meyer, isso é enfatizado pelo fato de as imagens estarem quase sempre destituídas do
caráter material e factual da referência. Com isso, as fotografias de Meyer não parecem
tentar provar ou testemunhar a materialidade ou factualidade das pessoas, coisas e
situações como nelas aparecem. Dessa forma, a intenção declarada e legitimada de
produzir asserções sobre a realidade não se dá com base no estatuto de evidência das
fotografias, mas no seu poder de tornar visíveis as virtualidades senão imperceptíveis.
Tem-se aí um tipo de fotodocumentário, segundo o qual o poder de designação,
atestação e testemunho do real factual, associado primeiramente à fotografia
documental, é substituído por uma noção de imagens virtuais – entendidas não em
oposição à realidade, mas como um modo do real que existe apenas em potência e não
em ato. Nesse caso, a imagem virtual é um misto da realidade factual em si mesma e do
que o fotógrafo é capaz de perceber e mobilizar nela. A materialidade da referência, o
isso-foi que se supõe ser o cerne da prática documental, mostra-se, assim, como apenas
uma dimensão que precisa ser complementada e só então efetivada pelo olhar do
fotógrafo em sua virtualidade (REZENDE FILHO, 2007), isto é, levando em conta as
lembranças, crenças, valores e interesses que fazem parte do seu imaginário.
5. Considerações finais
Tentou-se organizar neste artigo uma história da fotografia documental.
Priorizou-se demonstrar de que maneira o campo fotográfico foi capaz de responder de
maneiras diferenciadas aquela que parece ser a pergunta central do documentário, ou
seja, a indagação acerca de como representar adequada e verdadeiramente o mundo.
3 Essa questão é apresentada com maior rigor em outro artigo acerca do trabalho do artista: “O hibridismo da cultura chicana em
imagens: interpelações políticas e estéticas das fotografias de Pedro Meyer” (SANTOS, 2011).
Com isso, foi possível notar como as práticas fotodocumentárias levaram a cabo a
passagem de uma concepção em que valia mais a noção de relato objetivo do real
(presente nos primeiros trabalhos fotodocumentais) à de um fotodocumentário
imaginário que investe na invenção de mundos (ostentado pela fotografia
contemporânea). É importante, no entanto, lembrar que essa passagem não marca o fim
de uma ou outra compreensão, posto que atualmente todas elas co-existem e configuram
uma heterogeneidade de propostas técnicas, estéticas e éticas. Além disso, obviamente,
o desenrolar de tudo isso se deu de maneira menos linear e comportou mais linhas de
fugas do que foi possível demonstrar em um trabalho com objetivos mais restritos.
Contudo, ao olhar dessa maneira para o passado do documental, pode-se
identificar nele o surgimento e a consolidação das marcas de um campo de estruturas
que ampara não apenas as condições de produção, mas também de entendimento e de
aceitação das imagens que caracterizam o panorama atual do fotodocumentário. Até por
isso, o artigo dedicou algum esforço à apresentação e à análise do projeto Truths &
fictions, do fotógrafo Pedro Meyer, fotolivro paradigmático da compreensão de
fotodocumentação da realidade que se tem hoje; caracterizando-o a partir da
convergência de todas essas tendências, configuradas como condições de possibilidades
da existência dessas fotografias nos limites do documental, algo inconcebível nos
primórdios do documentário fotográfico. Como o que aqui se apresentou foi apenas uma
abordagem inicial sobre esse problema, outras observações podem e devem ser
derivadas, principalmente no que concerne ao modo como Meyer dá forma a processos
de reinvenções ou ressemantizações da realidade, alterando a relação que a sociedade
mantém com ela.
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