1
VICTRIA HOFFMANN MOREIRA
A GESTO MATERIAL NO PROCESSO CIVIL E A BUSCA DA DECISO JUSTA
Mestrado em Cincias Jurdico-Civilstica/Meno em Direito Processual Civil
JULHO/2016
VICTRIA HOFFMANN MOREIRA
A GESTO MATERIAL NO PROCESSO CIVIL E A BUSCA DA DECISO JUSTA
Mestrado em Cincias Jurdico-Civilstica/Meno em Direito Processual Civil
JULHO/2016
LARISSE CAMPELO MESSIAS
O MOVIMENTO OLMPICO E O PLURALISMO JURDICO
Mestrado em Cincias Jurdico-Polticas/Meno em Direito Constitucional
JULHO/2016
LARISSE CAMPELO MESSIAS
O MOVIMENTO OLMPICO E O PLURALISMO JURDICO
THE OLYMPIC MOVEMENT AND THE LEGAL PLURALISM
Dissertao apresentada Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra no mbito
do 2. Ciclo de Estudos em Direito (conducente
ao grau de mestre), na rea de Especializao
em Cincias jurdico-polticas, meno em
Direito Constitucional. Orientadora: Prof.
Doutora Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares
da Silva.
Coimbra
2016
2
O que importa na vida no tanto o triunfo, mas o
combate; o essencial no ter vencido, mas ter
lutado bem.. (Pierre de Frdy, o Baro de Coubertin)
3
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus, Pai que sempre me levantou quando pensava no ter mais
foras.
Aos meus pais, Luiza de Marilac Campelo e Raimundo Jos Messias Filho, por
me possibilitarem trilhar essa jornada com dignidade.
Ao meu irmo Antonio Vinicius Campelo de Moraes, por ser meu melhor
amigo, o meu companheiro de jornada.
A todos meus queridos amigos que estiveram ao meu lado mesmo com um
oceano entre ns. Em especial, agradeo Renata Colares Viana que, nos ltimos dois
anos, tem sido meu infalvel porto seguro.
Por fim, agradeo Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e aos
meus professores: Prof. Dr. Mrio Alberto Pedrosa Reis Marques, Prof. Dr. Joo Jos
Nogueira de Almeida, Prof. Dr. Fernando Alves Correia e, em especial, a minha
orientadora, Prof. Suzana Tavares da Silva.
4
RESUMO
O presente trabalho discorre sobre a possibilidade de se encarar o Movimento Olmpico
como meio de concretizao da ordem jurdica transnacional relativa ao contexto
desportivo, perseguindo o objetivo de analisar o contexto regulatrio criado por atores
no estatais que desmistificam a ideia do Estado como detentor do monoplio da
produo jurdica. Temos nossa pesquisa orientada pelo seguinte problema: sob quais
condies podemos afirmar que a globalizao dos processos sociais, particularmente do
desporto, tem levado emergncia de verdadeiras ordens jurdicas cuja criao ultrapassa
a ideia de Estado? Para tanto, apresentaremos o quadro evolutivo institucional do
desporto moderno propiciando a inteligncia de sua estrutura regulatria global hodierna.
Na segunda parte, oferecemos os aportes tericos que viabilizam afirmar a existncia de
um ordenamento jurdico desportivo a partir de uma leitura baseada no pluralismo
jurdico, centrando nossa anlise na teoria do institucionalismo jurdico e na ideia de
globalizao e transnacionalizao do direito. Por fim, apresentamos o Movimento
Olmpico e seus aspectos jurdico-institucionais aptos a alicerarem nosso estudo, bem
como as implicaes jurdicas que permeiam a manifestao desportiva mais universal
do planeta: os Jogos Olmpicos.
PALAVRAS-CHAVES: Movimento Olmpico; desporto; globalizao; Pluralismo
Jurdico; Jogos Olmpicos;
5
ABSTRACT
This paper discusses the possibility of facing the Olympic Movement as a means of
implementation of the transnational legal order on the sporting context, pursuing the
objective of analyzing the regulatory framework created by non-state actors that
demystify the state idea as monopoly holder legal production. We have our research
guided by the following problem: Under what conditions can we say that the globalization
of social processes, particularly sport, has led to the emergence of true legal systems
whose creation goes beyond the idea of the state? Therefore, we present the progressive
institutional framework of modern sport providing the intelligence of your today's global
regulatory framework. In the second part, we offer theoretical contributions that enable
affirm the existence of a sports law from a reading based on legal pluralism, focusing our
analysis on the theory of legal institutionalism and the idea of globalization and
transnationalization of law. Finally, we present the Olympic Movement and its legal and
institutional aspects able to consolidate our study, as well as the legal implications that
permeate the most universal sporting event on the planet: the Olympics.
KEYWORDS: Olympic Movement; sport; globalization; Legal Pluralism; Olympic
Games;
6
ABREVIATURAS
AIBA- Associao Internacional de Boxe
AMA ou WADA- Agncia Mundial Antidoping
CAS ou TAD- Tribunal Arbitral do Desporto
CIAS- Conselho Internacional de Arbitragem em matria de desporto
CIGEPS- Intergovernmental Committe for Physical Education and Sport
CMA- Cdigo Mundial Antidoping
CNDD- Comit Nacional de Competio e Disciplina Desportiva
COI ou CIO- Comit Olmpico Internacional
CON- Comit Olmpico Nacional
CONI- Comit Olmpico Nacional Italiano
COJO- Comit Organizador dos Jogos Olmpicos
FI- Federao Desportiva Internacional
FIBA- Federao Internacional de Basquetebol
FIDEPS- International Fund for the Development of Physical Education and Sport
FINA-Federao Internacional de Natao
FIFA- Federao Internacional de Futebol
JO- Jogos Olmpicos
MO- Movimento Olmpico
ONU- Organizao das Naes Unidas
RFCE- Real Federao Espanhola de Ciclismo
UCI- Unio Ciclista Internacional
UNESCO- Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.
USOC- Comit Olmpico dos Estados Unidos
7
NDICE
INTRODUO ............................................................................................................... 8
1 A RELAO ENTRE O DESPORTO E O DIREITO .......................................... 12
1.1 A Aproximao do Estado ao fenmeno desportivo: a politizao e a
constitucionalizao do desporto ................................................................................. 14
1.2 O fenmeno da globalizao e o desporto ............................................................. 22
1.2.1.Organizao Desportiva de carter intergovernamental ................................. 26
1.2.2 Organizao Desportiva de carter no governamental .................................. 28
1.3 Da Estruturao Global do Desporto ..................................................................... 33
1.3.1 As Federaes Desportivas Internacionais ...................................................... 34
1.3.2 Tribunal Arbitral do Desporto como elemento concretizador da ordem
processual desportiva ............................................................................................... 36
1.3.3 A agncia mundial antidoping e o Movimento Antidoping: da autorregulao
corregulao. ......................................................................................................... 42
2 A EXISTNCIA DE UM ORDENAMENTO JURDICO PARA O
DESPORTO ................................................................................................................... 47
2.1 O Ordenamento Desportivo: do positivismo jurdico ao institucionalismo
jurdico. ........................................................................................................................ 47
2.2 O Ordenamento Jurdico Desportivo: uma leitura na era da hipercomplexidade. . 59
2.2.1 Digresses Conceituais ................................................................................... 65
3 O MOVIMENTO OLMPICO e sua acepo como LEX OLYMPICA ............. 78
3.1 O Movimento Olmpico: breve narrativa. .............................................................. 82
3.1.2 A Carta Olmpica como instrumento de natureza universal e constitucional . 85
3.1.3 O Comit Olmpico Internacional ................................................................... 90
3.1.2 O exerccio de harmonizao ao sistema olmpico ....................................... 102
3.1.3 Os Comits Olmpicos Nacionais ................................................................. 106
3.1.4 Os Jogos Olmpicos e os Comits Organizadores dos Jogos Olmpicos ...... 109
3.1.4.1 Candidatura organizao dos Jogos Olmpicos ....................................... 112
3.2 A concretizao da Lex Olympica. ................................................................... 117
CONCLUSO .............................................................................................................. 128
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 131
JURISPRUDNCIA .................................................................................................... 141
8
INTRODUO
No corrente ano completam-se exatos 120 anos da realizao das primeiras
Olimpadas da Era Moderna, qual teve como sede a cidade de Atenas, Grcia e contou
com a participao de 240 (duzentos e quarenta) atletas, todos do sexo masculino,
representando 14 (catorze) pases, sendo disputadas 9 (nove) modalidades desportivas.
De l pra c, fcil percebermos a evoluo em termos quantitativos desse evento ao nos
depararmos com o nmero de 10.500 (dez mil e quinhentos) atletas, sendo estimada a
participao de mais de 4.676 (quatro mil seiscentos e setenta e seis) mulheres1, tendo a
representao de 206 (duzentos e seis) pases e disputas de 42 (quarenta e duas)
modalidades desportivas na projeo para os Jogos do Rio de Janeiro 2016. O custo total
do evento est preliminarmente orado em 39,1 bilhes de reais2.
Observando esses dados eminentemente numricos, talvez no possamos
imaginar o campo frtil que as Olmpiadas podem oferecer ao direito. Tais dados trazem
consigo muito mais que a evoluo deste evento desportivo na sua corriqueira acepo de
megaevento, sendo fruto da progressiva evoluo orgnica materializada na
institucionalizao do Movimento Olmpico que, por sua vez, tem seu desenvolvimento
umbilicalmente relacionado evoluo do desporto moderno. Restando nos
questionarmos: o que o desporto tem a ver com o direito?
O desporto nasce, em princpio, como uma atividade livre, da mesma maneira
que ainda a simples prtica do exerccio fsico. Por isso, at dado momento de sua
histria, apenas era encarado como projeo da liberdade e das decises individuais3
(PALOMAR OLMEDA, 2014, pp.19-23). Destarte, numa primeira interpretao,
descuidada, convenhamos, poderamos afirmar que o desporto e o direito sequer se
1 Conforme informa site oficial dos Jogos Olmpicos do Rio de Janeiro A disputa pelas vagas, iniciada em 2014, est em andamento e ser finalizada pouco antes do incio dos Jogos, quando ser confirmada a lista
oficial de atletas., mas os levantamentos jornalsticos voltam-se a ideia que Apesar de ainda no haver
oficialmente a confirmao de todos os atletas que participaro dos Jogos Rio 2016, a expectativa que
essa marca de 4.676 registrada em Londres seja superada, graas incluso de dois novos esportes no
programa olmpico: o golfe e o rgbi.. (COJORIO, 2016) 2 Esta estimativa foi divulgada em janeiro do corrente ano pela Autoridade Pblica Olmpica (APO), no constituindo como valor total, tendo em vista que este s ser conhecido aps meses ao trmino dos Jogos,
no s pela magnitude do oramento em si, mas para que tambm possam ser incorporados os eventuais
gastos durante sua realizao que no foram previamente planejado (COSTA, 2016). 3 No mesmo sentido, Lcio Correia (2008, p.27) afirma que, tendo como provvel nascedouro a Grcia Antiga, na poca que se organizavam os Jogos Olmpico, a atividade desportiva surgiu com os primrdios
das manifestaes humanas e sua prtica iniciou-se por motivos relacionados com religio, a defesa pessoal,
a destreza fsica e a educao.
9
relacionavam, predominando um sentimento de ignorncia mtua ou uma recproca
indiferena. Isso porque, poderamos achar, e at certo momento da histria esse
pensamento prevalecia, que o desporto se resumia aos aspectos relacionados ao cio da
recreao, divertimento e lazer. J o direito, seria relacionado aos assuntos srios da
vida e entenderia o desporto como traduo de uma law free rea (AMADO, 2003, p.75).
Contudo, na verdade, o desporto4 sempre esteve intimamente relacionado ao
direito desde sua gnese em razo de sua prpria natureza, afinal, apenas com a existncia
de regras se tem viabilizada a competio (AMADO, 2003, p.76). Logo, se temos a
necessidade de imposio de regras, temos a imprescindibilidade de organizao capaz
de estabelec-las. At mesmo porque, recordemos, o Direito ordenao da coexistncia
do homem com qualquer das vertentes da vida social. (PALOMAR OLMEDA, 2014,
p.19). E o que seria o desporto seno uma das facetas da vida social? A faceta da vida
social que todo o globo compartilha em comum. A faceta da vida social que traz em seu
DNA o carter da universalidade.
Hoje, o desporto como fenmeno milenrio (CORREIA, 2004) encontra-se no
seu apogeu, levando ao reconhecimento de que vivemos na era do desporto
(CARZOLA PRIETO, 2013.) ou da desportivizao do planeta (CAILLAT, 1999),
tornando-se um fenmeno que ressoa nos mais diversos campos: cultural, social, poltico,
econmico e, conforme demonstraremos com o desenvolvimento deste trabalho, jurdico.
Logo, este estudo trata-se, tambm, sobre desvendar o mito do no direito no desporto
(MEIRIM, 2001). Mas vamos alm. O fenmeno desportivo ser nossa lente de estudo,
em ltima anlise, como instrumento para se compreender ou mesmo dimensionar a
4 Bermejo (1987, p.614) aduz que no existe uma clara identificacin de lo que por deporte deba entenderse, al menos desde la perspectiva jurdica. Si bien resulta aprehesible uma cocepcin vulgar del mismo, no
carece de dificultades la delimitacin conceptual jurdicamente relevante, por lo que com toda frecuencia
se generan conflitos para los que el Derecho no parece proporcionar instrumentos o parmetros de
solucin. Joo Leal Amado (2002, p.16-17), na mesma linha, assevera: Trata-se, por conseguinte, de um
fenmeno algo rebelde e de limites bastantes imprecisos, difcil de aprisionar numa qualquer definio. Da
o paradoxo: sendo um fenmeno de todos conhecido e compreendido, o certo que nem os maiores
especialistas no lograram, at hoje, defini-lo de modo inteiramente satisfatrio. Assim, e no que cincia
jurdica diz respeito, no sem razo, que o juristas se tem limitado a pressupor o conceito de desporto,
raramente se aventurando na busca de uma definio. Por seu turno, nos parece didtica e adequada ao
presente trabalho o conceituao constante no artigo 2, n 1, alnea a da Carta Europeia de Desporto:
Entende-se por desporto todas as formas de actividades fsicas que, atravs de uma participao
organizada ou no, tm por objectivo a expresso ou o melhoramento da condio fsica e psquica, o
desenvolvimento das relaes sociais ou a obteno de resultados na competio a todos os nveis. Sobre
tal problemtica ver mais em: TERRET, Thierry. Histria do desporto. Traduo Luiza Mascarenhas.
Sintra: Publicaes Europa-Amrica.2008, p.8-11 PIRES, Gustavo. Do Jogo ao Desporto, para uma
Dimenso Organizacional do Conceito de Desporto: Um projecto Pentadimensional de Geometria Varivel.
Ludens, vol. 14, n. 1, janeiro/maro, 1994, p. 43-60.
10
prpria complexidade e fluidez do direito na era internacional, transnacional, ps-
nacional, cosmopolita ou simplesmente globalizada.
Sob estes auspcios que emerge a presente dissertao, no intento de,
avalizados por aporte doutrinrio e ftico, avaliarmos a partir de uma dedicada descrio
do fenmeno do desporto, sob quais condies possvel afirmarmos que a globalizao
dos processos sociais tem levado emergncia de verdadeiras ordens jurdicas cuja
criao ultrapassa a ideia de Estado.
Neste diapaso, optamos por trabalhar sob o enfoque do Movimento Olmpico
como meio de concretizao da ordem jurdica transnacional relativa ao contexto
desportivo, tambm, muito pelo fascnio a sua principal manifestao: os Jogos
Olmpicos. Porm, desde j ressalvamos que para viabilizarmos a sua inteligncia,
devemos, obrigatoriamente, desvendar a seara da regulao do desporto a nvel global ao
qual pertence.
Iniciamos nosso estudo demonstrando a to pouco conhecida relao entre o
direito e o desporto, propiciando a realizao de um quadro evolutivo que inicia a partir
do desenvolvimento do desporto moderno na Inglaterra do sculo XVIII, com a genuna
espontaneidade do fenmeno desportivo que nasce como um campo autorregulado, a par
da ingerncia estatal. Depois, a aproximao estatal ao fenmeno desportivo que o tornou
um campo de direito heterogneo, formado por fontes pblicas e privadas. E, enfim,
fornecemos o panorama estrutural hodierno da regulao do desporto escala global.
Na segunda parte, nos preocupamos em fornecer os pilares tericos que nos
permitam imprimir juridicidade ao fenmeno desportivo no sentindo de conceb-lo como
um ordenamento jurdico. Para tanto, recorremos, sobretudo, teoria italiana do
institucionalismo jurdico, tendo em vista a necessidade de observar o desenvolvimento
do ramo do direito desportivo a partir de um olhar pluralstico. Em seguida, na mesma
tendncia, fornecemos o aporte terico para inteligncia do fenmeno na to propalada
era complexa/globalizada.
Por ltimo, nos centraremos na figura institucional do Movimento Olmpico e
como ponto central do nosso trabalho, investigaremos seus aspectos jurdico-
institucionais, e, sobretudo, dimensionaremos a existncia de uma lex olympica ou um
sistema olmpico como manifestao da ordem jurdica internacional/transnacional
autnoma do desporto, a partir da existncia da Carta Olmpica por se tratar do
instrumento de valor universal/constitucional no s para o Movimento Olmpico, mas
para todo o mundo desportivo, e do Comit Olmpico Internacional, por se tratar do
11
principal constituinte olmpico. Nesse contexto, inevitavelmente, daremos certa nfase
manifestao mais conhecida e, porque no dizer, mais universal do desporto, os Jogos
Olmpicos, principalmente no que tange ao aspecto jurdico do ato de um Estado submeter
uma candidatura formal visando sediar tal evento.
12
1 A RELAO ENTRE O DESPORTO E O DIREITO
O desporto tido como um dos fenmenos de carter social, econmico, cultural
e poltico mais marcantes da humanidade. Ora, hoje, tal qual a globalizao, este
fenmeno tambm no possui fronteiras, justificando o maior interesse por parte da
Cincia Jurdica, dada sua tamanha relevncia hodierna. Em razo disto, optamos por
aclarar a relao entre o Desporto e o Direito de modo que nos permita entender como
essa interao se estabelece. Portanto, traaremos, preliminarmente, um breve histrico
do desenvolvimento do desporto moderno.
De acordo com os ensinamentos de Thierry Terret (2007, pp. 6 e 14-23), a gnese
do desporto moderno ocorrera na Inglaterra dos sculos XVIII e XIX, tendo como causa
dois processos principais, um pela propagao da atividade fsica por meio da cultura
corporal dos grandes proprietrios de terra e, o outro, fruto das transformaes dos jogos
estudantis das publics schools. Portanto, o desenvolvimento do desporto se deu no seio
aristocrtico e estudantil ingls, e contou como trs formas de difuso: do
empreendimento colonial; da imigrao britnica; bem como entre os prprios estudantes
britnicos em contato com os estrangeiros. Por isso a afirmao de que at a segunda
metade do sculo XX o desporto era uma atividade restrita a esfera privada da sociedade,
sendo estranha e indiferente a regulao do campo do direito.
Todavia, favorecido pela condio poltica, econmica e social fomentada pela
Revoluo Industrial, j possvel visualizarmos no sculo XIX o apogeu da organizao
moderna do desporto, tendo a Inglaterra5 papel de destaque na propagao desse
desenvolvimento ao figurar como nascedouro de vrias modalidades desportivas, bem
como agente de divulgao dos mesmos pelas colnias britnicas e pelas sociedades
industrializadas (Amrica do Norte e Europa Ocidental). (TERRET, 2007, p.15).
Os estudiosos tambm perceberam que a propagao dos desportos esteve
diretamente relacionada com a geografia dos interesses coloniais econmicos, sociais e
polticos da Inglaterra. Isso explicaria a difuso do desporto no sculo XIX para pases
como do subcontinente indiano e para Austrlia e frica do Sul por meio da divulgao
da modalidade do crquete. J na Amrica do Sul e pela Europa Continental, foi o futebol
que ganhou relevo nessa difuso e foi exportado por meio das rotas comerciais e
5 Para maiores informaes sobre o temtica histrica ver tambm GRAYSON, Edward. The Historical Development of Sport and Law. Sport and the Law Journal. Volume 19, issue 2|3, 2011, pp.61-67.
13
educativas do imprio. J no caso dos Estados Unidos, em razo de sua modernizao j
se encontrar num estgio mais avanado na poca, no realizou um simples processo de
assimilao, pois desde o primeiro momento se encaminharam para realizao de prticas
desportivas autnomas (GUTTMANN,2008, p.250-253).
Nesse cenrio, constatamos que a base do franco desenvolvimento desportista
na era moderna foi perpetrada por meio do fenmeno do associativismo privado. Isso
porque, notamos j na metade do sculo XIX, o incio da institucionalizao do desporto
por meio da proliferao de entidades desportivas, sobretudo de associaes desportivas
de carter nacional, bem como a criao de regras desportivas escritas, dando azo s
competies nacionais (TERRET, 2007, p.08).
Gabriel Real Ferrer (1991, p.262), que tambm considera a Inglaterra como o
bero do movimento associativismo privado no mbito do desporto como fator decisivo
ao seu desenvolvimento, aponta que j no sculo XVIII os primeiros clubes dessa
natureza foram criados (Jockey Club em 1750 e o Club de Golf de San Andres em 1754),
tendo incio o protagonismo das associaes desportivas, prtica esta que logo em seguida
teve continuao nos Estados europeus e sul-americanos.
J entre os anos de 1800 e 1900, como consequncia natural da proliferao de
associaes desportivas, houve a necessidade de se constituir federaes para articular
tais associaes, bem como promover o desenvolvimento de competies desportivas.
Nesse sentido, em 1863 constituda a primeira federao, Football Association, seguida
pela criao da Bycyclists Union em 1878 e a Amateur Boxing Association em 1884.
No ano de 1904, tivemos a criao em solo francs da Federao Internacional de Futebol-
FIFA, organizao que regula a prtica do futebol a nvel global (GONALVES, 2005,
p.19; PESSANHA,2001, p.42). Quando da sua fundao contava apenas com sete pases
(Blgica, Dinamarca, Frana, Espanha, Holanda, Sucia e Sua), hoje possui 209
(duzentos e nove) membros, superando, dessa forma, o nmero de membros da
Organizao das Naes Unidas que hoje conta com 193 (cento e noventa e trs) Estados-
membros (ONU, 2016; FIFA,2016).
Mas, sem dvida, o ponto auge da organizao institucional do desporto veio a
partir da realizao do Congresso de Paris em 1894 no qual, graas aos esforos do
entusiasta Baro de Coubertin, foi criado o Comit Olmpico Internacional (COI), o que
culminou com o restabelecimento dos Jogos Olmpicos em 1896 em Atenas, Grcia.
Ponto que retomaremos no ltimo captulo como concluso de nossa anlise jurdico-
desportiva.
14
A partir de ento, o desporto desponta como forte fenmeno social,
principalmente com sua profissionalizao6 e consequente mercantilizao7. Justificando,
neste cenrio, a tendncia dos anos subsequentes nos quais notamos sua maior
organizao em escala mundial no sentido de se verificar a criao de associaes e
rgos autnomos de regulao especificamente dirigidos a seara desportiva, motivada,
sobretudo, pela normatizao lacunosa do direito estatal. Fato este que levou a
sedimentao de uma ordem jurdica desportiva, de formao espontnea, assente na
vontade associativa privada, sem interferncia dos poderes pblicos8 (MERIM,2002,
p.112).
Desta forma, facilmente conferimos que o processo de organizao desportiva
moderna se deu espontaneamente, a par da figura do Estado, tendo como nascedouro e
principal impulsionador o fenmeno de associativismo privado iniciado na Inglaterra. O
que ocasionou que a seara desportiva tivesse um direito prprio desde sua gnese
(GIANNI, 1996, p.71). Apenas aps as Grandes Guerras Mundiais, o Estado comea a
desempenhar papel significativo e intervm na seara desportiva, em maior ou menor
intensidade a depender do pas em questo.
1.1 A Aproximao do Estado ao fenmeno desportivo: a politizao e a
constitucionalizao do desporto
Antes de ser possvel identificar a politizao do fenmeno desportivo, conforme
abordamos, j encontrava-se em franco desenvolvimento a criao de federaes de
mbito nacional e, ainda, tnhamos o incio a institucionalizao do desporto a nvel
internacional. Nesse sentido, destacamos que a primeira grande reaproximao do
homem com o desporto em termo universais fora por intermdio da realizao do
6 Sobre o profissionalismo do desporto ver CARAVALHO, Maria Jos. Elementos Estruturantes do Regime Jurdico Do Desporto Profissional em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora. 2009 e BERMEJO VERA,
Jos. El deporte profesionalizado: um passado dudoso, um presente problemtico, um futuro incierto.
Revista espola de derecho desportivo, n. 33, 2014, p. 11-44. 7 Para Joo Leal Amado (2003, p.83) O estreitamento das relaes do direito (leia-se: direito estadual) e desporto revela-se, alis, como facilmente se compreender, uma consequncia inevitvel do processo de
profissionalizao/mercantilizao a que este ltimo foi, continua a ser e decerto ser cada vez mais,
submetido. No que respeita ao desporto, dir-se-ia, pois, que a comercializao + mediatizao +
profissionalizao = juridificao. 8 Nesse contexto, RIGAUX (1997, pp.386-387) sistematicamente identifica trs fases do desenvolvimento desportivo. A primeira fase da competio desportiva se caracteriza pela natureza ldica e pela no
profissionalizao atletas. A segunda fase, j a partir dos anos sessenta, caracteriza-se pelo incio da
profissionalizao. E na terceira e ltima fase temos a comercializao do desporto.
15
Congresso de Paris em 1894 no qual, graas aos esforos do historiador e pedagogo Baro
de Coubertin, fora criado o Comit Olmpico Internacional (COI), o que culminou com o
restabelecimento dos Jogos Olmpicos em 1896 em Atenas, Grcia.
Destaca-se que o momento histrico era favorvel para o at ento
desenvolvimento livre e independente da seara desportiva, a par da ingerncia estatal,
pois na Europa viviam-se os valores do liberalismo. Entretanto, a politizao desta seara
tem incio na metade do sculo XX, com a transio do Estado Liberal para o Estado de
Bem Estar Social, sobretudo por meio de vrios regimes ditatoriais europeus que o
instrumentalizaram como veculo de popularizao de sua ideologia (VIEIRA DE
ANDRADE, 2006, p.23;)
Talvez o exemplo mais marcante da politizao do desporto tenha ocorrido na
Alemanha nazista, na qual o desporto funcionou como verdadeiro veculo do pensamento
do nacional-socialismo, o que fica patente ao rememorarmos a histria dos Jogos
Olmpicos de 19369 realizados na capital alem, quando o Estado alemo quis passar ao
mundo a imagem poltica de paz, tolerncia, ordem e disciplina partindo do pensamento
do prprio Hitler (1925, p.307) de que a propaganda estimula a coletividade no sentido
de uma ideia, preparando-a para a vitria da mesma; a organizao tem de ganhar a vitria
mediante concentrao dos adeptos corajosos, capazes de combater pelo triunfo comum.
A vitria de uma ideia ser mais fcil quanto mais intensa for uma propaganda (...).
Em solo espanhol, a ingerncia do Estado se deu a partir do regime ditatorial de
Franco, no qual, por meio do Decreto de 1941, criou-se a Delegacin Nacional de
Deportes com o objetivo de representar e dirigir o desporto no pas, com a
particularidade de que todas as federaes desportivas passassem a ser submetidas
hierarquicamente a esta instituio estatal.
Em Portugal, tambm sob regime ditatorial, vislumbramos a aproximao do
Estado a este fenmeno em 1942, por meio do Decreto-Lei 32.241 de 5 de Setembro, o
qual instituiu a Direo Geral da Educao Fsica, Desportos e Sade Escolar com
objetivo de promover e orientar a prtica desportiva sem o escopo, segundo seu
preambulo, de substituir qualquer organizao preexistente formada de maneira
espontnea ou sem a interveno do Estado. J no ano seguinte, a interveno do Estado
9Sobre esse momento histrico mpar ver: MOSTARO, Felipe Fernandes Ribeiro. Jogos Olmpicos de
1936: o uso do esporte para fins nada esportivo. Comunicao e Entretenimento: Prticas Sociais, Indstrias
e Linguagens. Vol.19, N 01, 1 semestre 2012 e MANDELL, Richard D. The Nazi Olympics. Ballantine
Books: New York, 1971.
16
se intensifica por meio do o Decreto n. 32.946, de 3 de Agosto, o qual promoveu a
regulamentao do Decreto-Lei 32.241.
Restou patente o interesse do Estado de utilizar o desporto como instrumento do
regime ao ressalvar que no teria inteno de eliminar os elementos de organizao
desportiva que j existiam, mas, aproveit-los desde que tornasse possvel dirigir-lhes a
atividade e orient-los no sentido de sobreporem aos interesses clubistas o interesse geral,
substiturem a poltica da vitria do clube seja como for por uma poltica desportiva de
sabor verdadeiramente nacional. Retratando a submisso do desporto poltica do
Estado, Jos Manuel Merim (2002, p.108) aponta que teria sido o momento de
escravido do desporto no cenrio lusitano.
Fora do contexto europeu, a ditadura brasileira (1964-1985) tambm utilizou o
desporto como instrumento poltico, nomeadamente o futebol que, como sabemos, tem
um espao de alto destaque no Brasil. Talvez a conquista da Copa de 70 tenha sido o mais
marcante acontecimento, pois a seleo de futebol, poca, teve sua imagem e prestgio
relacionada aos militares, o que favoreceu a chancela do governo de Emlio Garrastazu
Mdici ao auxiliar no fomento da ideologia do Estado-nacional desenvolvimentista10.
Hodiernamente, no vislumbramos esse tipo de maniquesmo por parte do
Estado11. Por outro lado, ainda persiste o prestgio internacional gozado pelo Estado
quando alcana os primeiros lugares em nmeros de medalhas olmpicas, haja vista que
tido como sinnimo de desenvolvimento econmico, social e cultural12 (PESSANHA,
2001, p.19). No por acaso, nas ltimas edies dos Jogos Olmpicos, assistimos a China
10Sobre o assunto: RAMOS, Roberto. Futebol e Ideologia do Poder. Petrpolis: Vozes, 1984; SALDANHA,
Joo. Futebol e Outras Histrias. So Paulo: Record, 1998 e FICO, Carlos. Reinventando o otimismo:
ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. 11No obstante se referirem ao direito lusitano, torna-se interessante a observao sobre o reconhecido
poder desportivo realizada pelos mestres J.J Canotilho e Vital Moreira (2014, p.937) o desporto hoje
um fenmeno de massas, dado o nmero de praticantes, de adeptos e espectadores, sendo por isso muito
tentador o seu aproveitamento ou instrumentalizao para efeitos polticos e partidrios a todos os nveis
de poder (local, regional e nacional). Por isso, poderia justificar-se o estabelecimento de algumas garantias
tendentes separao do e poder poltico, quer atravs de incompatibilidade cargos
nos dois campos, que atravs de medidas de transparncia obrigatria das relaes financeiras entre os
Estados, as regies autnomas e a autarquias locais, por um lado, e os clubes desportivos, por outro lado.
Esta incompatibilidades so particularmente delicadas relativamente aos magistrados que no raro
acumulam os cargos jurisdicionais do Estado com cargo na (separao entre o e o do Estado). (grifo do autor) 12No por acaso, observa-se na prtica um demasiado e intenso envolvimento dos Governos nas
candidaturas aos Jogos Olmpicos, principalmente no que tange aos aspectos jurdicos e polticos.
Reforaremos essa anlise no ltimo captulo ao tratarmos sobre a natureza da Submisso formal de um
Estado quando d a candidatura organizao dos jogos olmpicos.
17
e os Estados Unidos disputando o primeiro lugar no ranking sendo caracterizada a prtica
do nacionalismo desportivo nos dias atuais.13
Ademais, tendo como fundamento que o desporto assunto de interesse
pblico14, como ntida e definitiva aproximao do Estado ao mundo desportivo, nas
ltimas dcadas verificamos o fenmeno da constitucionalizao do desporto. Por isso,
compreensvel o entendimento de que a constitucionalizao do desporto no um
acontecimento espontneo e, sim, uma evoluo dos deveres e direitos pblicos frente a
sociedade (CARZOLA PRIETO, 2013, pp. 220-225). Vejamos alguns exemplos deste
acontecimento.
A Constituio portuguesa prev no seu artigo 79, ttulo III (Direitos e Deveres
Culturais) da Parte I (direitos e deveres fundamentais), impondo ao Estado o dever de
fomentar e proteger a atividade fsico-desportiva e, ainda, reconhece expressamente que
Todos tm direito cultura fsica e ao desporto. Para Carzola Prieto (2013, p.223), esse
reconhecimento do desporto como direito de todos leva constatao de que o mesmo
passa a ser tido como direito do homem pelo ordenamento jurdico portugus.
J a Constituio espanhola de 1978 dispe no seu ttulo I (direitos e deveres
fundamentais), captulo III (princpios gerais da poltica social e econmica), artigo 43,
n.3 que Os poderes pblicos fomentaro a educao sanitria, a educao fsica e o
desporto. De igual modo facilitaro a fruio do cio. Destarte, podemos abstrair que
o direito do desporto tem natureza de princpio diretor da poltica do Estado espanhol e
este tem como obrigao promov-lo ou foment-lo (PESSANHA,2001, p.25).
13Devemos sair do pressuposto de quase a totalidade do pases do globo utiliza ou j utilizou o desporto
profissional como ferramenta de promoo do nacionalismo no plano interno e prestgio internacional no
plano externo. Nesse sentido Koller (2008) afirma que por vrias vezes lderes polticos utilizaram o
desporto para demonstrar a superioridade de seu sistema poltico, prtica que fica mais evidente no contexto
do Movimento olmpico (j citamos aqui exemplos como o da Alemanha Nazista). Mas, faz a ressalva de
que, naturalmente, a prtica do nacionalismo desportivo ganha uma roupagem diferente em cada pas a
depender da natureza do governo. Sobre a prtica do nacionalismo desportivo ver: BAINER, Alan. Sport,
Nationalims and Globaization: Relevance, Impact, Consequences. Hitotsubashi Journal of Arts and
Sciences, 49 (1), 2008, p. 43-53. KOLLER, Dionne L. H. How the United States Government Sacrifices
Athletes' Constitutional Rights in the Pursuit of National Prestige, 2008. RODRIGUES, Csar.
Nacionalismo desportivo ps Primeira Grande Guerra: Sucesso em ano de Jogos Olmpicos (1928). Revista
Portuguesa de Histria, n. 45. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. 14Com a queda dos regimes ditatoriais a postura do Estado alterou-se, terminando o perodo de
instrumentalizao poltica sistemtica do desporto. No entanto, a hegemonia e independncia alcanadas
pelo movimento associativo desportivo durante o Estado liberal no voltaria a repetir-se. A massificao e
a planetarizao conquistadas pelo desporto ao longo do presente sculo no permitiria o regresso s
origens. Definitivamente, o desporto transformou-se num assunto de interesse pblico, passando a integrar
o conjunto das preocupaes polticas do Estado contemporneo. (PESSANHA, 2001, p.19)
18
Ademais, vale pontuar a ingerncia pblica do desporto na Espanha quando
sabemos que as federaes desportivas so entendidas como entidades privadas investidas
de poderes pblicos (BERMEJO VERA,1991, p.299).
Assinala Jos Carlos Vieira de Andrade (2006, p.25) que diferentemente da
Constituio lusitana, que dispe expressamente do direito do desporto como direito
fundamental, a constituio espanhola de 1978, em que pese elenc-lo no ttulo dos
direitos e deveres dos cidados, o faz como uma concepo associada ao direito
proteo sade, a par da educao sanitria e da educao fsica.
A Constituio brasileira de 198815 trata de maneira indita o Direito Desportivo
no ttulo VIII (Da ordem social), captulo III (Da Educao, da Cultura e do Desporto),
artigo 217, pargrafos 1, 2 e 3, dispondo no caput que dever do Estado fomentar
prticas desportivas formais e no-formais, como direito de cada um, observados,
chamando ateno, sobretudo, o inciso I por dispor autonomia das entidades desportivas
dirigentes e associaes, quanto a sua organizao e funcionamento.
Para o jurista brasileiro lvaro Melo Filho (2003, p.55), sendo inclusive o
redator do supracitado inciso I, o aspecto da autonomia desportiva por fora
constitucional goza de importncia substancial por ser a pedra de toque ou a medula
espinhal do sistema desportivo nacional e isto foi assim colocado com o escopo de,
nomeadamente, propiciar s entidades desportivas dirigentes e associaes uma plstica
organizao e um flexvel mecanismo funcional que permitam o eficiente alcance de seus
objetivos.
Em que pese sua relevncia social, pblica e privada, importante pontuar que na
grande maioria das Constituies dos pases do bloco europeu ocidental no
vislumbramos qualquer referncia ao desporto (VIREIRA DE ANDRADE, 2006, p.25).
Por outro lado, isto no significa que os ordenamentos jurdicos de tais pases no
atribuam status constitucional ao desporto e que os poderes pblicos no esto aptos a
intervirem nessa seara (MEIRIM, 2002, p.43).
15 Para Jos Manuel Merim (2004, p.249) inegvel a pujana dos desporto, como facto social total, nas actuais sociedades. A sedimentao na sociedade de um valor do desporto conduziu a que, em alguns
pases, os textos constitucionais dedicassem espao a essa dimenso da vida humana. Nessa
constitucionalizao do desporto, Portugal, os pases africanos de expresso oficial portuguesa e o Brasil,
ocupam lugar mpar no contexto internacional. A constitucionalizao do desporto operou-se, numa
moldura democrtica, em primeiro lugar no nosso pas e, paulatinamente nos outros textos fundamentais
que consideramos. Bem se pode dizer, em suma, que o acesso ao desporto encarado como direito
fundamental, representa um acquis lusfono. (grifos nossos). Essa constitucionalizao, no se limitou,
porm, a esse grupo de pases. Tambm no centro e leste da Europa, se assistiu ao mesmo :
Bulgria (1991), artigo 52, Crocia (1990), artigo 68, Litunia (1992), artigo 53 pargrafo terceiro,
Macednia (1991), artigo 1947, pargrafo quinto e Rssia (1993), artigo 41, n.2.
19
A Constituio Italiana de 1947, em seus artigos 32, 33 e 34, por exemplo, no
faz qualquer referncia direta ao termo desporto, entretanto, estabelece que o Estado
tem o dever de dirigir sade uma proteo adequada. O que faz doutrinadores como
Real Ferrer (1991, p.225-226) afirmarem que sobre tal dispositivo constitucional
podemos inferir que ao Estado cabe o dever de promoo e fomento da atividade fsico-
desportiva por ser instrumento de desenvolvimento sociocultural.
No obstante a falta de referncia explcita, o carter pblico do direito do
desporto acentuado na Itlia. O exemplo nota-se a partir da definio, por lei, em 1942,
das federaes desportivas como rgo integrantes ao Comit Olmpico Italiano (CONI),
entidade que em princpio (1914) nasceu com a natureza privada, mas que posteriormente
fora lhe designada personalidade de direito pblico. Atualmente, temos a realidade das
federaes desportivas como possuidoras de natureza de direito privado, mas que
continuam obrigadas a observar as deliberaes e instrues do CONI (GONALVES,
2005, p.845).
Pessanha (2001, p.24) tambm traz a lume o exemplo da constituio francesa
que igualmente no traz referncia explcita ao desporto, entretanto, para este sistema, o
mesmo tido como consequncia natural da prpria condio humana. Destarte,
entendido que a interveno dos poderes pblicos neste campo foi legitimada por meio
do espontneo processo de desenvolvimento social e de conformao social.
Outrossim, vale uma ressalva quanto ao Estado francs. Destaca-se a publicao
da Ordannance de 28 de Agosto de 1945 por meio da qual fora atribudo aos poderes
pblicos o direito exclusivo de organizar as competies desportivas, bem como de
realizar a seleo dos atletas e das equipes que representariam a Frana em competies
internacionais. As legislaes posteriores (leis de 1975, de 1984 e de 2000) no
modificaram o carter altamente publicista do desporto no pas, podendo concluir-se que
no direito pblico francs as federaes desportivas so exemplares representativos de
raa dos organismos privados que gerem servios pblicos administrativos
(GONALVES, 2005, p.844).
Dessa forma, de modo geral, mesmo no caso desses ltimos pases nos quais a
presena do Estado na seara jusdesportiva mais intensa, nota-se frequentemente que o
Estado resiste em imiscuir-se diretamente nos pormenores organizatrios, regulatrios e
mesmo de superviso, optando por formas de administrao e de regulao pblica
delegada ao reconhecer as federaes desportivas como entidades privadas e lhe conferir
20
exerccio de poderes pblicos e de autoadministrao delegada (GONALVES,
2005, p.845).
Assim, nem mesmo os modelos regulatrios exercidos por tais pases esto a par
do fenmeno de internacionalizao e transnacionalizao do direito do desporto,
medida que as federaes nacionais esto integradas s federaes internacionais as quais
possuem poderes normativos e sancionatrios sob primeira, caracterizando-se o
fenmeno de administrao transnacional no estadual do desporto (J.J CANOTILHO,
MOREIRA, 2014, p.936).
Por outro lado, nem todos os ordenamentos so marcados pela macia ingerncia
pblica. Devemos excepcionar o modelo alemo e ingls nesse processo de
publicizao do direito do desporto, tendo em vista que se mantiveram fiis as suas
origens e, segundo a doutrina, portanto, seguem o princpio da subsidiariedade da
interveno do Estado na matria do desporto como manifestao de autonomia16.
Outro modelo a ser excepcionado o americano marcado pelas concepes
liberais, tendo como ponto de partida a mnima interveno estatal, sendo as entidades
desportivas de natureza privada e a seara desportiva encarada como verdadeiro
empreendimento privado, inexistindo qualquer instituio do governo destinada a este
assunto, seja agncia oficial ou mesmo um ministrio do desporto. A instituio
americana do desporto mais expressiva a USOC (Comit Olmpico do Estados Unidos)
que conta com estrutura de empresa privada e o exclusivo responsvel pela gesto do
desenvolvimento de atividade desportiva amadora, bem como pela seleo dos atletas aos
Jogos Olmpicos17. (KOLLER, 2008, pp.94-95).
16Explica Gonalves (2005, p.837), embasado na doutrina do alemo Stern, K em sua obra intitulada
Verfassungsrechtliche und verfassungspolitische Grundfrangen zur Aufnahme des Sports in die
Verfassung des Landes Nordrhein-Westfalen, Com efeito, na Alemanha, onde no existe qualquer
referncia ao desporto na GG, a Autonomie des Sports aparece enfatizada pela doutrina, que explica
constituir o princpio da subiariedade de interveno do Estado em matria de desporto como expresso
dessa autonomia. Salvo por solicitao das prprias associaes desportivas, limitando as suas misses
promoo e ao fomento das prticas desportivas. J sobre o caso ingls Pessanha (2001, p. 36), faz uma
pequena ressalva a estudos mais profundos sobre o tema: genericamente apontado como forte abolicionista
apresenta particularidades que o distinguem do modelo alemo. De todo o modo, a forte tradio associativa
e a clara separao entre o Estado e sociedade que em matria desportiva sempre se fez sentir, separam-no
claramente do modelo, no qual se inclui nomeadamente o sistema portugus, que espelha a preocupao de
racionalizar normativamente a actividade desportiva. Entretanto, correto entender que semelhana do
que se verifica no sistema alemo, o papel do Estado resume-se ao de mero promotor da actividade
desportiva. 17 Entretanto, at o caso dos Estados Unidos, onde verificamos grande autonomia concedida a desportiva e onde o recebimento de subvenes pblicas pelo USOC se apresenta como exceo, tem-se a imposio
legal de que esta entidades apresente Cmara do Representantes, ao Senado e aos Presidentes do EUA
uma relatoria de atividades a cada quatro anos (MESTRE, 2010, p.78).
21
Por outra banda, cumpre destacarmos que a atuao pblica no sentido de
estimular, promover e/ou proteger o desporto, principalmente no que tange ao aspecto da
sade pblica, se encontra presente nos ordenamentos jurdicos contemporneos que
explicitamente preveem isto e at mesmo naqueles onde o legislador se manteve silente
(PESSANHA, 2001, p.24).
Logo, a partir da percepo da maior ou menor aproximao do Estado
regulao desportiva, temos a classificao generalista dos pases em jusplublicistas e
jusprivatistas, por bvio, que em cada pas essa interveno se realiza em menor ou
maior grau, a depender de diversos fatores como suas culturas, sistema de governo e
estruturas polticas e at mesmo da forma que se deu o desenvolvimento histrico desse
fenmeno.
Os pases juspublicistas so aqueles que possuem a ingerncia estatal em matria
desportiva intensificada, se destacando os pases europeus: Portugal, Espanha, Itlia e a
Frana. J os pases jusprivatistas so aqueles nos quais a presena regulatria do Estado
nesta matria se mostra em menor grau, tendo como exemplo o Brasil, Alemanha,
Inglaterra e os Estados Unidos.
Aps dimensionarmos o desenvolvimento do desporto por meio do
associativismo privado, bem como a aproximao do Estado ao fenmeno desportivo,
verificamos que o processo de organizao desportiva se apresenta plural, tendo em vista
que possvel visualizarmos esse processo arredio do Estado e pelo Estado. justamente
a que observamos o direito desportivo como um direito conflitivo desde seu
desenvolvimento. O que nos provoca maior interesse pois, em razo desse crescente
exponencial do fenmeno desportivo e sua origem fincada nos pressupostos de autonomia
e autorregulao, por muitas vezes a relao Direito e Desporto no tem sido fcil.
Ora, percebemos que desde os seus primrdios, o sistema desportivo se
desenvolveu margem dos Poderes Pblicos e do Estado, por isso criou para si uma
lgica prpria, de carter privado e de racionalidade independente. Por outro lado,
notamos que os Estados cada vez mais interpretam que nesse sistema se desenvolvem
atividades de interesse pblico e, por isso, tendem, hoje, a promover interferncia direta
nesta seara. Resguardada a especificidade normativa de cada pas, certo que facilmente
notamos o carter dual do Direito do Desporto que, por vezes, se apresentar pblico, por
vezes, privado.
Fornecido esse panorama geral do desporto, trataremos a seguir sobre a
internacionalizao desportiva como consequncia do fenmeno da globalizao, a fim
22
de demonstrarmos a inexistncia de fronteiras para a realidade desportiva que veio a
instigar um mbito de direito desportivo internacional a cargo de organizaes
internacionais de carter intergovernamental.
1.2 O fenmeno da globalizao e o desporto
Como j dito outrora, o desporto um dos fenmenos que mais repercute nas
relaes sociais e, nas ltimas dcadas, tem sido fortalecido por meio da globalizao.
nesse contexto globalizado que o desporto18, fenmeno que pela sua prpria
natureza se apresenta universal, teve reforado seu crescimento social, econmico
(GULIANOTTI, ROBERTSON, 2007, p.31) e porque no dizer jurdico escala
global, tendo em vista que hoje conta com uma desenvolvida configurao jurdico-
institucional de ndole internacional que, conforme iremos perceber ao longo do trabalho,
d azo a preocupao de organizaes de carter intergovernamental, bem como a um
grande campo setorizado formado por organismos privados que criam uma dinmica
prpria a gerir o complexo movimento desportivo que se tem hoje. Fato este que,
conforme demonstraremos a seguir, pode ser notado por meio da regulao do desporto
por entidades privadas transnacionais.
No por acaso, que expresses como desportivizao do planeta (CAILLAT,
1999) ou era do desporto (CARZOLA PRIETO, 2013), bem como a prpria atribuio
a este fenmeno como globalizao desportiva (BELOFF,2009) esto em voga.
Segundo o professor Joseph Marguire (2008, p.356-358), no sculo XIX que
se verifica com maior nitidez a disseminao global do fenmeno desportivo por meio da
criao as organizaes desportivas de carter internacional, o estabelecimento de
competies mundiais, com destaque para o restabelecimento dos Jogos Olmpicos em
1984, bem como se nota que os pases, em sua grande maioria, passam a aceitar o
complexo da regulao desportiva de cunho privado.
18 Interessante a observao realizado pelo professor lusitano Antnio Marques de Se a economia hoje
a frente mais visvel do lan globalizador, suscitando legtimas preocupaes entre aqueles que no aceitam
que os donos do dinheiro sejam os donos do mundo, impondo, de uma forma arbitrria e ilegtima, os
modelos de organizao e de governo nas sociedades em que vivemos, outros aspectos da globalizao no
so hoje to estigmatizados. E entre eles est o desporto. Como poucas actividades, o desporto tem
explorado desde o incio o potencial da globalizao. E, contrariamente ao que tem acontecido em outros
domnios, o desporto tem escapado inclume s ondas de protesto pblico associados globalizao,
excepo de algumas campanhas de activistas contra produtos comerciais. (grifos do autor) (MARQUES,
2006, p.25).
23
Outrossim, aponta, ainda, que no final do sculo XX verificam-se as
consequncias deste desporto global relacionado rede mundial de cadeias de
interdependncia ocasionada pela globalizao. Nesse toar, temos a sua repercusso em
cinco dimenses: i) no movimento internacional de pessoas (turistas, migrantes, exilados
e trabalhadores convidados); ii) dimenso tecnolgica, devido ao fluxo de trocas de novas
tecnologias, mquinas e equipamentos desportivos; iii) dimenso econmica tendo em
conta ao j citado processo de mercantilizao do desporto e sua indstria que movimenta
bilhes de dlares; iv) dimenso miditica, ocasionado pelo fluxo de imagens e de
informaes entre pases que produzido e distribudo por jornais, revistas, rdio, cinema,
televiso, vdeo, satlite, cabo e rede mundial de computadores e v) dimenso ideolgica,
relacionada ao fluxo de valores relacionados com ideologias contra ou a favor do Estado
(MARGUIRE, 2008, pp.357-358).
De todos os aspectos ora destacados, sem dvida, o financeiro que ganha maior
relevo. O desporto teve seu potencial de movimentao financeira assustadoramente
alargada em razo da profissionalizao bem como por meio do desporto espetculo19.
Levando a constatao de que vivemos na era do business sport, tendo, irrefutavelmente,
o desporto lugar de destaque no mundo dos negcios20 sendo visto como mais do que um
simples jogo por ser enorme produto de consumo, um meio fantstico de publicidade e
uma importante alavanca de poder (AMADO, 2003, p.82).
Por outra banda, o desporto apontado como fenmeno capaz de transpor
barreiras de ordem cultural (lingustica ou religiosa), geogrfica e at mesmo a estimular
o nacionalismo e o conhecimento mtuo das naes, sem contar o espetacular poder de
propiciar dilogos internacionais chegando a ter casos em que se pode afirmar o exerccio
de uma espcie de diplomacia desportiva que nada menos que o reflexo da prpria
essncia desportiva que Bondux (1986, p.13) definiu por meio da frase potica A
vocao do desporto a de facilitar a aproximao do homem, humanizar os seus
encontros.
19 No mesmo sentido o autor brasileiro Manoel Jos Gomes Tubino (1992) realiza reflexo que nos permite
afirmar tal contexto do esporte-espetculo comercial, acaba por o resultado da descoberta de que o desporto
pode ser um produto rentvel, a partir da relao deste com os meios de comunicao. Assim, a
mercantilizao do desportiva abarca desde o alto rendimento espetacularizado at a criao e
comercializao de produtos voltados a praticantes de lazer que j movimentam cifras milionrias no
mundo todo. 20 Sobre a movimentao financeira no mbito desportivo ocorrida nos anos de 2006-2015, destacamos as
projees realizadas pela PricewaterhouseCoopers em seu estudo denominado Changing the game.
Outlook for the global sports market to 2015.
24
Nesse contexto, com intuito de destacarmos um exemplo dessa espcie de
diplomacia exercida pelo desporto relembremos o caso conhecido na doutrina como
ping-pong diplomacy que reflete exatamente a ideia que o desporto tem o poder de
ingerncia no somente nas reas social ou econmica mas, tambm, na poltica, inclusive
em casos considerados delicados no contexto internacional. Vejamos.
No ano de 1976, em Nagoya, Japo, durante o 31 Campeonato de Tnis de
Mesa, o atleta americano Gleen Cowan perdeu o transporte de sua equipe que lhe levaria
ao local onde estavam ocorrendo as competies, fato que levou um atleta chins a lhe
oferecer transporte junto a seleo chinesa. Durante a conversa informal travada, o atleta
chins realiza convite ao americano para visitar seu pas. Acontecimento que acabou por
servir de combustvel para retomada das relaes internacionais entre os Estados
Unidos e a China, tendo em vista que culminou com o convite formal de Mao Ts-Tung
seleo americana para que visitasse a China e, ato contnuo, os Estados Unidos no
somente aceitou o convite como tambm o retribuiu, ao convidar a seleo chinesa para
realizar uma visita oficial ao pas. (BELOFF,2009, p.41)
Logo, um desporto (tnis de mesa) apontado na histria como o responsvel
pelo arrefecimento das tenses que impediam relaes diplomticas entre esses dois
pases, bem como via preparatria para aes de reaproximao mais contundentes como
visita oficial do Secretrio de Estado americano Henry Kissinger, apontado como o
grande arquiteto da posterior visita do Presidente Richard Nixon ao gigante asitico
(BELOFF, 2009, p.41).
Outro exemplo prtico no sentido do desporto possuir a capacidade de suavizar
conflitos foi a constituio de uma delegao conjunta dos atletas olmpicos da Coreia do
Norte e da Coreia do Sul, desfilando sob uma nica bandeira na cerimnia de abertura
dos JO de Sidney (2000), com escopo de transmitir mundialmente a esperana numa
unificao das duas naes que j vivenciaram tantos momentos de tenso desde a Guerra
Fria.
Por fim, como olvidar do emblemtico caso da poltica de segregao racial na
frica do Sul, apartheid (1948-1994), no qual o desporto teve importante papel em termos
de pacificao social. Destacando-se a realizao do Copa do Mundo de Rgbi (1995) em
solo sul africano que ocasionou sentimento de unio nacionalista. Se ainda eram marcados
pela forte segregao de cunho racista, este momento entrou para histria como a
propagao de sentimento de unio provocado pela fora do desporto nacional, que
25
ganhou maior significncia quando a seleo sul africana contou com um atleta negro que
fora decisivo para vitria da seleo na partida final contra a seleo da Nova Zelndia21.
Nesse sentido, entendemos que na atualidade o desporto tem lugar de destaque
at no mbito de representao internacional, servindo aos Estados da popularidade em
massa potencializado pela influncia da expanso audiovisual dos acontecimentos
desportivos que acabam propiciando autnticas amostras do poder ou da debilidade
daqueles que o representam. Por isso, mesmo nos dias atuais, l-se o desporto como um
fenmeno de ferramenta de fcil politizao, de plstica representao dos problemas
internos dos Estados, bem como das suas relaes internacionais conflitivas com outros.
(VALLV, 2008, p.111)
Por outra banda, devemos nos atentar que sendo veculo e instrumento do
processo de globalizao, a manifestao deste fenmeno na sociedade se mostra difusa,
repercutindo nos mais diversos assuntos e pormenores do cotidiano que, por vezes, pode
passar desapercebido, tais como publicidade, direitos de transmisso televisivos,
contratos laborais, at mesmo sobre os fluxos migratrios.
Dessa feita, a colocao de Jnatas Machado (2015, p.57) nos apresenta
cirrgica ao sublinhar que o direito internacional do desporto , antes de mais, o
resultado do fenmeno da globalizao, desencadeado pela alterao significativa das
circunstncias da vida poltica, econmica, social e cultural num mbito planetrio.
Posto isto, a partir de agora no dedicaremos a identificar como o desporto
encontra-se organizado a nvel internacional utilizando duas divises: da organizao
desportiva de carter intergovernamental e da organizao desportiva de carter no
governamental. Isso porque, entendemos ser necessrios fazer tais distines para que
possamos compreender, mais a frente, a natureza e as discusses que cercam o direito de
desporto a nvel global, sobretudo, no campo do Movimento Olmpico.
21Por conta da poltica de segregao racial, a frica do Sul foi banida em 1964 de participar dos Jogos
Olmpico pelo Comit Olmpico Internacional (COI), s retornando no ano de 1992, nos Jogos Olmpicos
de Barcelona. Foi banida, tambm, pela FIFA (Federao Internacional de Futebol) em 1974 da
participao das competies internacionais oficiais sob sua responsabilidade. Inclusive, a FIFA negou
pedido realizado pelo pas de que pudesse competir na Copa do Mundo de 197 representado por duas
selees (uma negra e outra branca) o que foi rechaado por completo pela federao. Ver mais em
BLACK, David. R; NAURIGTH, Jonh. Rugby and South African nation. Sport, cultures, politcs and power
in the old and new South Africas. Manchester and New York: Manchester University Press. 1998
26
1.2.1.Organizao Desportiva de carter intergovernamental
E nesse universo de internacionalizao do desporto verificamos certa
organizao de carter intergovernamental que influi sobre a matria na comunidade
internacional como um todo. Destacamos nesse sentido as seguintes organizaes
universais: Organizao das Naes Unidas (ONU) e pela Organizao das Naes
Unidas para Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO).
Consultando os instrumentos normativos da Organizao das Naes Unidas em
matria de desporto, notamos que sua ateno no est voltada a este fenmeno como um
fim em si mesmo, mas na sua to propalada fora social. Vejamos.
Verificamos que as primeiras resolues da ONU sobre a matria eram voltadas
ao combate discriminao racial, destacando-se: Resoluo n. 2.775-D, de 29 de
Novembro de 1971, Resoluo n. 3.411-E, de 28 de novembro de 1975 e a Resoluo
n.32/105-M, de 14 de Dezembro de 1977 que d azo Declarao Internacional contra
o apartheid no desporto.
Por conseguinte, quando nos deparamos com a Resoluo 40/64-G de 10 de
Dezembro de 1985 da ONU, que tambm versa sobre combate discriminao racial, por
meio da qual foi elaborada um Projeto de Conveno Internacional que era dirigida
somente aos Estados, notamos que partiu do pressuposto de que os Estados exerciam
controle total sobre a estrutura desportiva, o que j na poca no condizia com a realidade
tendo em vista que os agentes desportivos privados j tinham destacado protagonismo no
mundo desportivo. (FERRER, 1991, p.401). Por outro lado, a Conveno Internacional
contra o Apartheid nos Desportos de 1985 passou a vigorar com a clara aluso e aderncia
ao princpio olmpico de que nenhum tipo de descriminao seja permitida, quer por razo
de raa, religio ou afiliao poltica.
Por outra banda, j no ano de 2013 a Assembleia Geral da ONU proclamou o dia
06 de abril como o dia internacional do desporto ao servio do desenvolvimento e da
paz. O presidente da Assembleia Geral poca destacou o desporto como um poderoso
aliado da paz e da reconciliao, ressaltando que em vrios aspectos representa valiosas
caratersticas da humanidade por meio de seus valores universais por ser algo que requer
perseverana e disciplina, encorajando os princpios da integridade, jogo limpo, e
competio honrada, inspirando-nos a esforarmo-nos alm dos nossos limites e
afirmando que todas as sociedades de sucesso se baseiam neles, e quanto mais
27
incutirmos o respeito por estes ideias, melhor ser o mundo que deixamos aos nossos
sucessores22.
Em novembro de 2014 temos o reconhecimento histrico pela ONU da
autonomia e independncia do desporto e da misso Comit Olmpico Internacional na
liderana do Movimento Olmpico reafirmando a inestimvel contribuio do desporto
para a promoo da paz e do desenvolvimento. Ainda quando das discusses
preliminares, na oportunidade de pronunciar sobre o reconhecimento na Assembleia da
ONU, o Presidente do COI assinalou O desporto realmente a nica rea da existncia
humana que alcanou uma lei universal. Entretanto, ressalvou Mas, para aplicar esta lei
universal em todo o mundo, o desporto tem de ter uma autonomia responsvel. A poltica
deve respeitar essa autonomia desportiva23.
No mbito da UNESCO, conforme seus objetivos primordiais de cooperao
internacional volta para reas da educao, cincia e cultura, destacam-se a criao em
1977 do CIGEPS (Intergovernmental Committe for Physical Education and Sport) e do
FIDEPS (International Fund for the Development of Physical Education and Sport), alm
da aprovao da Carta Internacional de Educao Fsica e Desporto em 1978, bem como
sua atualizao em 1991 e a reviso que culminou a nova Carta Internacional do Desporto
j em novembro de 201524 . Ademais, no de 2005 a organizao adotou a primeira
Conveno Internacional contra o doping.
Destacamos primeiramente a nova Carta Internacional de Educao Fsica e
Desporto que baseada no mesmo esprito universal Carta original de abarcar o desporto
como um direito fundamental do ser humanos e, portanto, figurando como verdadeiro
instrumento de desenvolvimento de sua personalidade (FERRER, 1991, p.401). Inova ao
introduzir princpios universais como a igualdade de gnero, no discriminao e incluso
social por meio do desporto, alm de amplo destaque aos benefcios da atividade fsica, a
sustentabilidade do esporte, a incluso de pessoas com deficincia e a proteo das
crianas.
22Tal proclamao foi materializada por meio da Resoluo n.67/269 de 23 de agosto de 2013. Ver tambm
a Resoluo 68/9 de 06 de novembro de 2013 sobre construo de um mundo pacfico e melhor atravs do
desporto e do ideal olmpico. 23Entendimento materializado na Resoluo da 69 Assembleia Geral da ONU. 24 Alm dos mecanismos citados, apontamos a existncia de outros no mbito da UNESCO no que tange a
seara desportiva: The International Convention against Doping in Sport; The Conference of Parties to the
International Convention against Doping in Sport; Fund for the Elimination of Doping in Sport. Para
maiores.
28
O CIGPES um comit de carter intergovernamental composto por
representantes de dezoitos Estados Membros Unesco, especialistas na rea Educao
Fsica e do Desporto, eleitos para uma mandato de quatro anos. Possui como objetivos
gerais a promoo do valor desportivo com o fim de fomentar sua incluso nas polticas
pblicas, facilitar o relacionamento entre os Estados ou organizaes intergovernamentais
e as organizao desportivas no governamentais, difundir os valores contidos na Carta
Internacional de Educao Fsica e Desporto, bem como gerir a execuo do FIDEPS.
J FIDEPS trata-se de fundo internacional criado para o desenvolvimento da
educao fsica e do desporto, tido como primeiro instrumento de carter de cooperao
econmica voltado para esta seara. Ressalvamos que os recurso angariados so
prioritariamente destinados aos pases subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.
Por fim, no ano de 2007 entrou em vigor a Conveno Internacional contra o
doping, a qual acaba por obrigar que os Estados-partes realizem e adotem medidas
polticas, legislativas, administrativas e/ou de regulao voltadas ao controle e combate
da dopagem de acordo com os parmetros adotados pelo Cdigo Mundial Antidoping da
Agncia Mundial Antidoping.
Notamos que, de maneira geral, a exceo da Conveno Internacional
Antidoping, o material normativo produzido pelas citadas organizaes de carter
intergovernamental de cunho diretivo e orientador, mas, por outra banda, no podemos
ignorar sua fora de governana em mbito global posto que so organizaes formadas
pelos Estados e que acabam por transparecer, em grande medida, o parecer da
comunidade internacional (FERRER, 1991, p.398).
1.2.2 Organizao Desportiva de carter no governamental
Conforme ressalvamos na parte introdutria do trabalho, nosso contributo para
o estudo da seara jurdico-desportiva se dar por meio de uma anlise macro, pois
partiremos da investigao das estruturas e regramentos a nvel mundial. Por isso, neste
ponto, ainda que j tenhamos elencado algumas pinceladas sobre, nos ateremos a
apresentar como se encontra institucionalizado o desporto neste mesmo nvel mundial.
Entretanto, desde j ressalvamos que no adentramos nas minudncias jurdico-
institucionais pois esta ser abordada em tpico prprio.
Assim, a organizao desportiva de carter no governamental fica a cargo
justamente da j citada estrutura do desporto, que se formou a partir do fenmeno do
29
associativismo privado iniciado na Inglaterra, ou seja, fica no plano do desenvolvimento
espontneo, tanto de natureza institucional, como de natureza jurdica. Logo, o
problema se inicia justamente na constatao da existncia de um sistema jurdico-
institucional que rege o desporto no plano mundial, e que formado por entidades de
natureza privada com sede, via de regra, na Sua. Vejamos.
Podemos pensar o ordenamento jurdico desportivo mundial como uma estrutura
piramidal, onde encontramos em seu vrtice o Comit Olmpico Internacional (COI)
ser objeto de estudo, por razo de organizao textual, no captulo referente ao MO e
as Federaes Desportivas Internacionais (FIS), sendo que estas ltimas encontram-se
numa relao de subordinao com o primeiro. Por conseguinte, temos as Federaes
Nacionais sendo subordinadas s Federaes Internacionais e o Comits olmpicos
nacionais subordinados ao Comit Olmpico Internacional. possvel tal concluso em
decorrncia da disposio do instrumento normativo desportivo da Carta Olmpica que
por sua fora universal dentro do contexto desportivo, chega a ser denominada at mesmo
como Constituio do Desporto (J.J CANTOILHO, 2011, P.154 e 156).
Para sanar questes conflitivas, sob o impulso do COI, fora criado o Tribunal
Arbitral do Desporto (TAD), que figura como pea fundamental para a eficcia e o
fortalecimento do sistema jurdico desportivo mundial. Tanto o COI como as FIS
conferem-lhe a ltima palavra na resoluo do conflitos. Da mesma forma, procedem
com o afastamento da jurisdio do tribunais nacionais. Na opinio de um dos maiores
estudiosos lusitanos, Jos Manuel Meirim (2010, p.39) a criao do tribunal seria uma
resposta credvel e autnoma, procurando, desta forma, dotar o sistema desportivo
internacional com um rgo que se adequasse s exigncias prprias das competies
desportivas.
Logo, quando observamos o conjunto normativo que regula o desporto no plano
global, o qual advm de organizaes de natureza privada (COI e FIS), vislumbramos
um regramento de aplicao universal com o carter da desterritorializao (para alm
das fronteiras nacionais). Ou seja, o direito do desporto a nvel mundial ter efetividade
em toda parte do mundo onde se tenha a prtica de um desporto que esteja sob a gide de
uma federao desportiva nacional, tendo em vista que esta est, obrigatoriamente,
associada a uma FI. Porquanto, o alcance da efetividade da norma desportiva se d por
meio da projeo desta norma em um dado territrio que, por sua vez, possui seu prprio
direito, podendo acolh-la ou at mesmo recha-la em determinado caso concreto
(MEIRIM, 2010, p,36).
30
Por outro lado, vale destacarmos o interessante entendimento de Jos Manuel
Meirim (2010, p.36) no intuito de apontar uma justificao estadual para o ordenamento
desportivo mundial, quando aduz que as normas desportivas no dependem de um
territrio e da nacionalidade do sujeitos para sua aplicao por possurem uma raiz
estadual, o mesmo dizer, acabarem por ter por parmetro da sua validade um direito
interno de um Estado e os respectivos tribunais como fiscalizadores do respeito do
respectivo ordenamento. Tal afirmao justificada pelo autor por meio de quatro
constataes: i) em razo das entidades desportivas que regulam o desporto a nvel
mundial terem natureza privada com sede, via de regra, na Sua; ii) a obrigatoriedade
impressa nos regulamentos de tais entidades de que os conflitos sejam dirimidos num
concreto tribunal arbitral, bem como que as associadas a estas entidades (federaes
desportivas nacionais) sejam obrigadas a inclurem tal norma em seus estatutos. iii) a
competncia do Tribunal Arbitral do Desporto com sede na Sua, que j se consolidou
como o tribunal desportivo por excelncia e, por fim, em razo iv) das normas suas
sobre associaes privadas e arbitragem.
Por oportuno, citamos aqui a existncia, ainda, da Agncia Mundial Antidoping
(AMA), que possui uma natureza mpar ao ser uma organizao desportiva hbrida,
pblico e privada, formada tanto por constituintes do Movimento Olmpico como por
representantes de governos nacionais, sendo responsvel por coordenar e supervisionar
todas as formas de dopagem em escala mundial, realizando este papel pautado pelo
Cdigo Mundial de Antidoping.
Levando em conta a realidade pluriforme e heterognea do contexto desportivo
como um todo (pblico e privado), o espanhol Alberto Palomar Olmeda (2010, p.15) nos
ajuda a sistematizar tal panorama como marcado pela: i) disperso normativa devido a
existncia de vrios pontos de produo da mesma; ii) disperso dos produtores das
normas j que a legitimidade das mesmas no homognea, de modo que a disperso
muitas vezes ocasiona o estabelecimento de medidas heterogneas e descoordenadas; iii)
disperso dos aplicadores das normas jurdicas e de organizao; iv) disperso dos
controladores; v) heterogeneidade no estabelecimento de sistemas de soluo de
conflitos.
Dito isto, fica mais fcil visualizarmos as mincias da organizao jurdico-
desportiva no contexto macro de anlise que propomos. Previamente, notamos a atividade
desportiva como uma atividade social fortemente regulamentada por meio de diferentes
nveis de poder, porquanto por distintos processos de produo normativa. Isso
31
naturalmente torna complexa a gesto desportiva como um todo no que tange ao aspecto
jurdico. Tanto que no raramente se verificam os diferentes nveis de poder
legislando sobre a mesma matria especfica ou, at mesmo, reivindicando prevalncia
normativa em determinado assunto ou caso concreto.
Neste sentido, preocupado com a complexidade da dinmica normativa deste
esquema ordenamental dual a partir de suas indiferenas e interferncias, analisando
pela perspectiva da existncia de uma comunidade jurdica transnacional e centralizado
na ideia de pluralismo jurdico e pluralidade de ordenamentos jurdicos, J.J Gomes
Canotilho (2011, p. 156-157) formula dois questionamentos que inevitavelmente ecoam
no presente estudo: como articular as normas do ordenamento desportivo com as normas
do ordenamento estadual? como se caracteriza o contacto dos ordenamentos estaduais
com o ordenamento desportivo mundial?
Para a primeira assertiva, lana duas hipteses, a do reconhecimento recproco
entre os ordenamentos estaduais e desportivo ou o mtuo no reconhecimento. Logo, aqui
a problemtica gira em torno da existncia ou no de um verdadeiro reconhecimento
jurdico. J em relao segunda assertiva, o autor afirma que a melhor forma de
aproximao ou de contacto entre os ordenamentos seria visualizada a partir do carter
heterogneo das normas, inerente a ambas as ordens. Nessa situao temos trs hipteses.
Verificamos normas exclusivamente estatais, a exemplo do regime fiscal e
tributrio de matria desportiva, normas exclusivamente desportivas, como as chamadas
regras do jogo25. E as normas mistas, de cunho estatal-desportivo, dado como exemplo
das normas de polcia, sanes disciplinares e qualificao jurdica dos rgos.
Chega-se concluso que os problemas centrais advm da terceira hiptese,
quando ocorre o contato entres os dois ordenamentos gerando o concurso de normas
25 Resta pontuar a existncia de normas que no possuem natureza jurdica no mbito desportivo, conhecidas como lei do jogo e que possuem carter estritamente desportivo. So regras especficas,
atinentes diferenciao das modalidades desportivas e de regras que viabilizem sua prtica. Como
exemplo, temos as regras que definem as dimenses de um campo de futebol e da baliza ou mesmo o peso
da bola. Podemos assim afirmar que tratam das minucias prticos desportivas de carter tcnico. Pedro
Gonalves (2006, p. 55-56) resume o abordado realizando uma diferenciao entre a trs categorias de
normas que o desporto abrange as diferenciando em aco do direito pblico aco do direito privado
e as aco no mbito desportivo. A primeira trata de normas de regulao pblica, enquanto a segunda
trata de relaes jurdicas estabelecidas com terceiros que tem sua regulamentao cardo do direito
privado. J a terceira tratam das regras tcnicas, das leis do jogo. Logo, visualizamos um entendimento
que distingue a ideia de direito do desporto e regras particulares sobre o desporto. Na mesma linha de
pensamento, afirmando que as regras do jogo esto situadas num campo muito diferente do direito,
constituindo a pare do no direito temos o grego Panagiotopulus (2014, p.04) que se embasa na obra
daquele refere como autor que iniciou a reflexo obre tal diferenciao Max Kummer (1973), Spielregel
und Rechtsregel, Staempfl i & Cie AG, Berne
32
contrastantes e de conflitos normativos. Isso, pois, acarreta duas hipteses, ambas aptas
a gerarem conflitos. Pode ocorrer, tambm, que o ordenamento desportivo e o estadual
at cheguem a atribuir a mesma qualificao jurdica aos fatos, mas atribuam distintas
consequncias jurdicas. O mestre portugus nos d como exemplo a expulso da
associao desportiva imposta pelo ordenamento estadual e, por outra banda, o
ordenamento desportivo aplicaria apenas desqualificao para a mesma conduta
praticada. H, ainda, como terem os mesmos resultados ou consequncias jurdicas,
entretanto com medidas distintas para a tutela de direitos, como no exemplo clssico do
conflito de competncia entre os rgos jurisdicionais dos Estados e a justia desportiva.
Ou ento, cabe questionarmos, ainda, como podemos entender o tamanho
poderio das instituies desportivas que faz com que notemos certas situaes em que
pases submeteram sua ordem jurdica como um todo ao poderia das mesmas quando da
organizao de um grande evento desportivo?
Entre tanto casos, aqui citamos os exemplos mais recentes e amplamente
conhecidos da frica do Sul26 e do Brasil que, motivados pelo interesse de recepcionar a
Copa do Mundo de Futebol, aceitaram condies que iam contra sua prpria ordem
interna27. No nos parece que a justificativa fincada apenas no interesse financeiro supra
a questo. Urge nos questionarmos sobre a estruturao e a lgica de funcionamento da
ordem desportiva mundial a cargo das entidades privadas para entendermos como fora
possvel chegarmos nesses casos.
Por enquanto, com a realizao da parte preliminar do presente trabalho
procuramos demonstrar principalmente que: i) o desenvolvimento do desporto moderno
e de sua estruturao tem suas origens fincadas na espontaneidade e autorregulao ; ii)
26 Exemplo contundente sobre o poderio das entidades desportivas e dos interesses que o desporto mundial centraliza o da frica do Sul quando recepcionou a Copa do Mundo de 2010 que promoveu a destruio
de parte da maior reserva natural (Parque Kruguer) do continente africano para construir um dos estdio da
Copa na cidade de Nelspruit (Estdio Mbombela) . 27 No caso brasileiro (copa de 2014), a problemtica girou em torno da promulgao da Lei n 12.663/2012, alcunhada como Lei Geral da Copa, que fora recebida pela maioria como um ataque direto Constituio
do Brasil pois suspendeu direitos bsicos do consumidor durante a realizao do evento, bem como
promoveu a liberao do consumo de bebidas alcolicas no estdios brasileiros durante o perodo mesmo
na vigncia do Estatuto do Torcedor que proibia tal conduta fundada na premissa da segurana. Outra
questo alvo de muita discusso foi a tributria (regulamentada pelo Decreto n 7.578, de 11 de outubro de
2011) em razo da FIFA e seu parceiros terem sido isentados da cobrana de diversos tributos. A Lei da
Copa foi objeto de Ao direta de Inconstitucionalidade n.497, perante o Supremo Tribunal Federal, de
autoria da Procuradoria da Repblica, porm a Corte julgou improcedente, considerando a Lei
constitucional. Tambm houve grande mobilizao popular com sries de manifestaes nas ruas de vrias
capitais brasileiras. Por outro lado, convm pontuar que no Brasil a cultura do futebol se mostra to forte
que levam a afirmao do plano das relaes internacionais que, ao lado da cultura popular do carnaval,
integra como elemento essencial do soft power (NEY, 2012, p.224).
33
que a partir do sculo XIX o Estado comea a se imiscuir no mbito do fenmeno
desportivo tornando-se um campo de atuao hbrida (pblica e privada) e iii) que o
fenmeno desportivo encontra-se mais fortalecido do que nunca com o advento da
globalizao, sobretudo devido a maximizao de seu aspecto econmico.
1.3 Da Estruturao Global do Desporto
Uma vez j visto o fenmeno evolutivo do desporto em sua matriz terica no
que diz respeito ao sistema organizacional, de maneira global, temos que, para o
desencadeamento lgico e um ideal desenvolvimento textual, cumpre-nos a demonstrao
concreta de como se estrutura o desporto. Isso, tendo em conta que o objetivo fulcral do
presente texto explorarmos todas as vicissitudes que eclodem do estudo da
transnacionalizao do desporto, sua hodierna situao, a manifestao inata ao
movimento olmpico e todos os consectrios que emanam da relao entre todos os
elementos de estudo ora em apreo, e, para tanto, nesta marcha, importa esta estruturao
seja descrita de maneira robusta para que o leitor adequadamente se situe28. Vejamos,
pois.
Conforme fora possvel constatar at aqui, a regulao do desporto a nvel
global se apresenta extremamente complexa em decorrncia da sua heterogeneidade,
abrangendo todo o conjunto de normas produzidas e implementadas a nvel internacional
e a nvel domstico. Logo, temos a presena de organismos privados tais como as
Federaes Internacionais, Comit Olmpico Internacional e o Tribunal Arbitral do
Desporto regulando o desporto a nvel internacional, ao passo que existe regulamentao
internacional, sobretudo, a cargo da ONU, por meio da Conveno Mundial Antidoping,
e cada Estado tem sua prpria regulamentao interna. Sem falar na existncia de
organismo desportivo de natureza pblico-privada, a Agncia Mundial Antidoping.
Por bvio, por questo de espao e foco, no adentraremos nas mincias
jurdicos-institucionais de cada componente do movimento desportivo, nos importando
apenas compreender como o mesmo consolidou seu funcionamento como uma ordem
jurdica transnacional que no conta com a participao essencial dos Estados e de que
28 Estes vetores de anlise sero devidamente explorados quando do momento oportuno no que diz
respeito pedagogia textual, pelo que somente foram referidos neste prembulo.
34
forma a mesma se impe e se relaciona com estes. Assim, tencionaremos buscar um
sentido mais concreto para o direito desportivo global.
Sem perder de vista que, o foco do nosso trabalho no mbito de compreenso
do Movimento Olmpico (MO), desde j faremos links sua inteligncia. Ou melhor,
na verdade somos forados a faz-lo tendo em vista que a j referida Constituio do
Desporto, que serve de parmetro jurdico para o Movimento Desportivo como um todo,
nada menos que a Carta Olmpica, instrumento de parmetro constitucional mximo ao
MO, de onde advm a legitimidade no s dos Estatutos e regulamentos internos do
Comit Olmpico Internacional e dos Comits Olmpico Nacionais, assim como das
Federaes Internacionais e Nacionais.
Dito isto, cabe frisarmos que justamente a partir da Constituio do Desporto
que retiramos a ideia de que o ordenamento jurdico desportivo mundial pode,
parcialmente, ser visto como uma estrutura piramidal, onde encontramos em seu vrtice
o Comit Olmpico Internacional (COI) e as Federaes Desportivas Internacionais
(FIS), sendo que estas ltimas encontram-se numa relao de subordinao com o
primeiro. Por conseguinte, temos as Federaes Nacionais sendo subordinadas s
Federaes Internacionais e o Comits olmpicos nacionais subordinados ao Comit
Olmpico Internacional. (J.J CANTOILHO, 2011, pp.154 e 156).
Em que pese ser correta tal perspectiva se nos restringirmos ao contexto das
relaes entre o COI e as FIs, notaremos que essa estrutura piramidal ainda no
representa a pluralidade dos atores no mbito da regulao do desporto a nvel global,
assim como no representa a complexidade das interaes estabelecidas entre os mesmos.
Posto isto analisaremos o Direito Desportivo Global a partir de 4 (quatro)
grandes espcies de subcategorias: i) o campo de regulao cargo das FIS ii) o campo
de concretizao processual cargo do TAD- Lex Sportiva o iii) movimento antidoping
iv) o campo de regulao cargo do Movimento Olmpico- Lex Olympica, o qual ser
tratado de maneira apartada por ser a ferramenta de anlise derradeira desta investigao
no sentido de estarmos ou no diante de uma manifestao concreta no que diz respeito a
ordem jurdica transnacional relativa ao contexto desportivo.
1.3.1 As Federaes Desportivas Internacionais
Como uma das consequncias da globalizao do desporto, temos o surgimento
da necessidade de se padronizar a organizao das modalidades desportivas em especfico
35
a nvel global para que fosse possvel viabilizar no somente as competies
internacionais, mas, tambm, a coerncia e a coeso do movimento desportivo como um
todo. Assumindo este papel fundamental na regulao desportiva, temos a figura das FIs
(LATTY, 2012, p.43-45).
As FIS so organizaes de natureza no-governamentais internacionais que
regulam as competies internacionais que digam respeito ao desporto que gerem29. Em
regra geral, possuem personalidade jurdica de direito privado albergado pelo direito
suo. Isso porque um expressivo nmero de FIs possuem sua sede na Sua30. Dentre
elas esto as mais importantes, destacando-se: Federao Internacional de Futebol
(FIFA); Federal Internacional de Basquetebol (FIBA), Federao Internacional de