A GUERRA CONTRA O TERRORISMO: ASPECTOS ÉTICOS
Ricardo Vélez Rodríguez
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
A prática da desinformação em que são especialistas os espíritos totalitários
espalhou, pelo mundo afora, a idéia de que a guerra iniciada pelos americanos contra o
terrorismo, em 2002, não tinha nenhuma base moral de sustentação. A ofensiva deflagrada
pelo governo norte-americano contra os terroristas de Al Quaeda e os seus colaboradores
passou a ser considerada, por vários órgãos de imprensa, como um crime contra a
humanidade.
A resposta do governo estadunidense não foi, porém, ato genocida nem decisão
isolada da alta administração do Estado. Foi, antes de tudo, reação da sociedade americana,
profundamente indignada por uma agressão injusta. Convém analisar as razões de tipo
moral alegadas por cidadãos dos Estados Unidos em defesa dessa resposta armada. A
melhor explicitação das mesmas está contida na carta que sessenta reconhecidos
intelectuais americanos divulgaram pela imprensa, ao ensejo dos ataques terroristas de 11
de setembro, bem como em face da resposta armada do governo do presidente Bush contra
os terroristas de Al Qaeda. Esse documento foi publicado com o título de Carta da
América.
Diferentemente da guerra contra o Iraque - que desde o início foi afetada pela
desinformação passada à opinião pública mundial pelo governo americano, no sentido de
que Saddam Hussein deveria ser deposto porque tinha armas massivas de destruição (o que
a Comissão de expertos da ONU não confirmou) -, a guerra dos americanos e dos seus
aliados contra o Afeganistão contou, de entrada, com o apoio de muitos países no seio das
Nações Unidas, na trilha da transparência dos motivos que foram alegados. Em virtude
dessa razão, a Carta da América, inserida no contexto da primeira reação da sociedade
americana, antes da guerra contra Saddam Hussein, ganha um peso especial. Trata-se de
documento que expressa as idéias de intelectuais do país agredido, explicitando razões que,
como se pode observar a partir da sua leitura, primam pelo equilíbrio e pela objetividade.
Não há, nessa carta, um parti pris, como se poderia alegar em face da guerra contra o
Iraque. Existem razões de fundo (alicerçadas na secular tradição humanística do Ocidente)
que justificam, perante a opinião pública mundial, a opção bélica dos americanos e dos seus
aliados.
1) Os assinantes da Carta da América.- Os assinantes do mencionado documento,
publicado na íntegra por vários jornais nos Estados Unidos e na Europa (consultei a edição
internacional do Le Monde de 23 de fevereiro de 2002)1, foram os seguintes: Enola Aird
(pesquisadora do Institute for American Values e diretora do Motherhood project); John
Atlas ( fundador e presidente do National Housing Institute, grupo de reflexão dedicado ao
estudo dos problemas da pobreza, do racismo, do desemprego e da educação); Jay Belsky
(professor e diretor do Institute for the study of children, familics and social issues do
Birbeck College, vinculado à Universidade de Londres); David Blankenhorn (fundador e
presidente do Institute for American Values); David Bosworth (escritor); R. Maurice Boyd
(pastor da Igreja Presbiteriana, em Nova Iorque); Gerard V. Bradley (professor de direito
na Universidade de Notre Dame, Illinois); Margareth F. Brinig (professora de direito na
Universidade de Iowa); Allan Carlson (presidente do Howard Center for Family, Religion
and Society); Khalia Duràn (redator-chefe da Revista Transislam Magazine); Paul Ekman
(professor de psicologia no departamento de psiquiatria da Universidade da Califórnia - São
Francisco); Jean Bethke Elshtain (professora de ética social e política na Universidade de
Chicago); Amitai Etzioni (professor de sociologia da Universidade George Washington); 1 “La Lettre de l´Amérique”, Le Monde, Paris, edição de 23 de fevereiro de 2002.
Hillel Fradkin (presidente do Ethics and Public Policy Center); Samuel G. Freedman (ex-
jornalista do New York Times e professor da escola de jornalismo da Universidade de
Columbia); Francis Fukuyama (professor de economia política internacional na John
Hopkins School of Advanced International Studies); William A. Galston (professor de
teoria política na School of Public Affairs da Universidade de Maryland e integrante da
equipe de governo da primeira administração Clinton); Claire Gaudiani (ex-presidenta do
Connecticut College e diretora de pesquisa na faculdade de direito da Universidade de
Yale); Robert P. George (professor de jurisprudência e ciência política na Universidade de
Princeton); Neil Gilbert (professor de ciências sociais na Universidade da Califórnia -
Berkeley); Mary Ann Glendon (professora de direito na Universidade de Harvard); Norval
D. Glenn (professor de sociologia e estudos americanos na Universidade de Texas -
Austin); Os Guinness (ensaísta); David Gutmann (professor emérito de psiquiatria na
Northwestern University); Kevin Hasson (presidente do Becket Fund para a liberdade
religiosa); Sylvia Ann Hewlett (membro da National Parenting Assotiation); James
Davison Hunter (professor de sociologia e estudos religiosos na Universidade de Virginia);
Samuel Huntington (professor de ciências políticas da Universidade de Harvard); Byron
Johnson (diretor do centro de pesquisa sobre a religião e a sociedade civil urbana, na
Universidade da Pennsylvania); James Turner Johnson (professor de religião na
Universidade Rutgers - New Jersey); John Kelsay (professor de religião na Universidade do
Estado da Flórida); Diane Knippers (presidenta do Instituto Religião e Democracia);
Thomas C. Kohler (professor na faculdade de direito do Boston College); Glenn C. Loury
(professor de economia na Universidade de Boston); Harvey C. Mensfield (professor de
ciências políticas na Universidade de Harvard); Will Marshall (membro fundador e
presidente do Progressive Policy Institute de Washington, entidade que colaborou
estreitamente com a administração Clinton); Richard J. Mouw (professor de filosofia cristã
e presidente do Fuller Theological Seminary); Daniel Patrick Moynihan (ex-senador pelo
Estado de Nova Iorque e professor da Universidade de Syracuse, N Y); John E. Murray
(professor de direito na Universidade Duquesne - Pennsylvania); Michael Novak (membro
do American Enterprise Institute); Val J. Peter (diretor executivo de Boys and Girls Town);
David Popenoe (professor de sociologia na Universidade Rutgers - New Jersey); Robert D.
Putnam (professor de ciências políticas na Universidade de Harvard); Gloria C. Rodríguez
(fundadora e presidenta de Avance); Robert Royal (presidente do Faith and Reason
Institute - Washington); Nina Shea (diretora da Casa da Liberdade do Centro para a
Liberdade Religiosa); Fred Siegel (professor de história); Theda Skocpol (professora de
sociologia na Universidade de Harvard); Katherine Shaw Spath (professora de direito na
Universidade do Estado da Louisiana); Max L. Stackhouse (professor de ética cristã no
Seminário Teológico de Princeton); William Tell Jr. (membro da Fundação William and
Karen Tell); Maris A. Vinovski (professor de história e de ciências políticas na
Universidade de Michigan); Paul C. Vitz (professor de psicologia na Universidade de Nova
Iorque); Michael Walzer (professor do Institute for Advanced Study de Princeton); George
Weigel (pesquisador do Ethics and Public Policy Center); Charles Wilson (diretor do
Centro de Estudos da Cultura Sulista da Universidade de Mississippi); James D. Wilson
(professor emérito de administração e ciência política na Universidade da Califórnia - Los
Angeles); John Witte Jr. (professor de direito e ética na faculdade de direito da
Universidade Emory - Georgia); Christopher Wolfe (professor de ciências políticas na
Universidade Marquette - Wisconsin); Daniel Yankelovich (presidente de Public Agenda).
2) Princípios gerais.- Democratas e conservadores moderados, os assinantes da
Carta da América alicerçavam-se no princípio liberal, formulado por John Locke no seu
Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1689)2, de que o corpo social pode reagir contra
uma ameaça externa que coloque em risco a sua existência, fazendo, para isso, uso do
"poder federativo" de fazer a guerra. Os assinantes da Carta deixaram clara essa sua
inspiração liberal, com as seguintes palavras, com as que iniciavam a sua declaração: "É às
vezes necessário para uma nação se defender pelas armas. Posto que a guerra é um assunto
sério que entranha o sacrifício de preciosas vidas humanas, a consciência exige que aqueles
que a fazem expressem claramente o arrazoado moral que subjaze aos seus atos, a fim de
que as partes envolvidas e o mundo inteiro sejam advertidos, sem ambigüidades, dos
princípios que defendem".
O arrazoado moral em que os assinantes da Carta da América se alicerçavam para
defender a guerra contra os terroristas que atacaram os Estados Unidos, constava de cinco
princípios fundamentais. Esses princípios, que se aplicam a todas as nações do mundo, sem
2 Cf. LOCKE, John. Two Treatises of Government. (Notas de Peter Laslett). New York: Mentor Book, 1965.
exceção, são os seguintes: "1 - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e
em dignidade (Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU, artigo primeiro). 2 - O
sujeito fundamental da sociedade é a pessoa humana. Um governo tem como papel legítimo
proteger e garantir as condições do crescimento humano. 3 - Os seres humanos são
naturalmente inclinados a buscar a verdade acerca do sentido e do fim último da vida. 4 - A
liberdade de opinião e a liberdade de culto são direitos invioláveis da pessoa humana. 5 -
Matar em nome de Deus é contrário à fé em Deus. É a maior traição contra a universalidade
da fé religiosa. Nós lutamos por nos defendermos e por defender esses princípios
universais".
3) Os valores americanos.- Os assinantes da Carta da América perguntavam por
que os Estados Unidos foram atacados no dia 11 de setembro de 2001. Fazer essa pergunta
não significa, de forma alguma, que eles não fossem conscientes das falhas que os Estados
unidos têm cometido no seu relacionamento com os outros países. Os assinantes faziam o
seu mea culpa, reconhecendo as deficiências americanas no mundo globalizado. Eis as suas
palavras a respeito: "Reconhecemos que a nossa nação tem, às vezes, dado provas de
arrogância e de ignorância em face de outras sociedades. A nossa nação tem posto em
prática, às vezes, políticas mal orientadas e injustas. Temos amiúde, enquanto nação,
falhado em relação aos nossos próprios ideais. Não podemos impor princípios morais a
outras sociedades se, ao mesmo tempo, não reconhecemos as nossas próprias falhas em
face desses princípios".
Mas, se a consciência das próprias falhas é clara para os assinantes da Carta da
América, também não deixa de ser verdade que essa consciência não pode ser alegada
pelos inimigos dos Estados Unidos para que sejam atacados cidadãos americanos
indefensos. A respeito, os signatários afirmavam: "Nós estamos unanimemente convictos (e
seguros, por isso, de que seremos aprovados por todos os homens de boa vontade no
mundo), de que a alegação de tal ou qual falta específica em matéria de política externa não
pode, em caso nenhum, justificar, nem sequer servir de argumento válido para validar o
massacre massivo de inocentes".
Ora, consideravam os assinantes da Carta da América, os motivos alegados pelos
terroristas que perpetraram os atentados de 11 de setembro, não se prendem a uma
determinada exigência em matéria de política internacional. O chefe de Al Qaeda definiu os
"ataques benditos" de 11 de setembro, como golpes desferidos contra a América, "capital
do mundo dos infiéis". Em relação a esse fato, os assinantes frisavam que "é preciso, pois,
deduzir que os nossos agressores visam não somente o nosso governo mas a nossa
sociedade toda inteira, o nosso modo de vida em geral. Na realidade, os seus ataques se
endereçam fundamentalmente não ao nosso governo, mas àquilo que somos".
Se os Estados Unidos foram atacados pelos fundamentalistas islâmicos por aquilo
que os cidadãos americanos representam, os signatários da Carta da América consideravam
necessário explicitar a ordem de valores que constitui a base da cidadania americana. Tal
base axiológica - advertiam os intelectuais signatários da Carta - pode ser enxergada de
dois ângulos: ou do ponto de vista das deformações sociológicas sofridas pelos valores
fundantes, ou do ângulo da primordial expressão dos mesmos.
Ainda que fosse desagradável, consideravam os signatários, tornava-se necessário
encarar essas deformações, a fim de corrigi-las. Eis as palavras com que eles traduziam essa
dolorosa tomada de consciência dos antivalores que terminaram se instalando na sociedade
americana: "Então o que somos? Quais são os nossos valores? Alguns, compreendidos aí
numerosos americanos e especialmente vários signatários desta Carta, consideram que
certos valores americanos são pouco atraentes, rejeitáveis até. O consumismo como modo
de vida. A liberdade entendida como ausência de regras. A idéia de que o indivíduo é o seu
próprio dono, se faz a si mesmo e não deve nada a ninguém, ou quase. O afrouxamento dos
laços do casamento e da vida de família. Para não mencionar a enorme teia de
comunicações e de produtos culturais, de toda espécie, que enaltece sem medida esses
valores, quer sejam bem ou mal realizados, e os difunde em quase todos os cantos do
mundo".
Mas, consideravam os signatários da Carta, essa não é a essência axiológica da
cultura americana. Os princípios basilares da mesma são outros e foram os que inspiraram
aos criadores da República dos Estados Unidos da América, no rico período em que se
estruturaram as instituições desse país, entre 1776 e 1787. Quatro são esses princípios: o
primeiro consiste na convicção de que a dignidade humana é um direito inato de toda
pessoa, a qual, em conseqüência, deve ser tratada sempre como fim e nunca como meio. Eis
a forma em que os assinantes da Carta explicavam o alcance desse princípio: "Os
fundadores dos Estados Unidos, se alicerçando na tradição da lei natural, bem como sobre a
asserção religiosa fundamental segundo a qual todos os homens foram criados à imagem de
Deus, consideraram como evidente em si a noção de igual dignidade para todos. A
expressão política mais autêntica dessa crença numa dignidade humana transcendente é a
democracia. A sua expressão cultural mais fiel tem sido, para as gerações recentes nos
Estados Unidos, a reformulação e o alargamento do princípio da igual dignidade de todas as
pessoas, independentemente de seu sexo, raça ou da cor da sua pele".
O segundo princípio básico da cultura americana consiste na convicção de que há
verdades morais universais, (que os fundadores dos Estados Unidos chamaram de leis da
natureza e da natureza de Deus) e que essas verdades se aplicam a todos. A respeito, os
signatários da Carta frisavam: "Os testemunhos mais eloqüentes da nossa fidelidade a essas
verdades encontram-se na nossa Declaração de Independência, no discurso de despedida de
George Washington, o discurso de Gettysburg, e no segundo discurso de posse de Abraham
Lincoln, bem como na carta da prisão de Birmingham do Dr. Martin Luther King".
O terceiro princípio é a convicção de que, sendo imperfeito o nosso conhecimento
individual e coletivo da verdade, "os desacordos sobre esses valores devem ser discutidos
com civilidade e tolerância, tendo como base a fé numa argumentação razoável".
O quarto princípio consiste na defesa da liberdade de opinião e da liberdade de
culto. Essas liberdades decorrem da dignidade humana e são condição necessária para a
realização das outras liberdades cidadãs. A respeito da universalidade com que devem ser
defendidas as mencionadas liberdades, os assinantes da Carta escreviam: "Para nós, o que
esses valores possuem de mais sedutor, consiste em que eles se aplicam a todos sem
distinção e não podem, em conseqüência, serem utilizados para negar a ninguém o respeito
à sua raça, à sua língua, à sua memória, à sua religião. É por isso que todo mundo pode, em
princípio, virar americano. Em princípio e de fato. Gentes acodem de todas partes ao nosso
país para, como reza a inscrição numa estátua no porto de Nova Iorque, poder respirar
livremente, e muito rápido convertem-se em americanos. Nenhuma outra nação na História
forjou desse jeito a sua identidade - a sua Constituição, os seus textos fundamentais e ainda
a sua própria percepção - sobre a base de valores humanos tão universais. Para nós, esse
fato formata tudo neste país".
Os signatários da Carta frisavam que, para alguns, esses valores são apenas
patrimônio do ocidente, estando as outras nações dispensadas de respeitá-los. Culturas
diferentes da denominada "ocidental cristã" possuiriam outras prioridades, e seria uma
violência intolerável pretender que compartilhassem os princípios expostos. Os signatários
não concordam com esse ponto de vista. A propósito, afirmavam, salientando a base
comum de princípios morais válidos para toda a humanidade: "Cremos que todos os
homens foram criados iguais. Cremos que a liberdade humana é universalmente possível e
desejável. Cremos que certas verdades morais fundamentais são reconhecidas em todos os
lugares do mundo. Concordamos com a assembléia internacional de eminentes filósofos
que, no final dos anos 40, participaram da redação da Declaração Universal dos direitos do
homem da ONU e concluíram que certas idéias morais expandiram-se de tal forma, que
elas podem ser consideradas como inerentes à natureza do homem enquanto membro de
uma sociedade". Os autores da Carta acreditavam firmemente, com Martin Luther King,
em que o ideal da justiça deve brilhar não apenas para alguns, mas para todos. Aquilo que é
considerado melhor nos chamados valores americanos, não é patrimônio exclusivo do povo
dos Estados Unidos, mas constitui, também, "a herança comum da humanidade, sendo,
portanto, fundamento possível da esperança numa comunidade mundial alicerçada na paz e
na justiça". Os signatários referiam-se, sem dúvida, à idéia kantiana de uma República
Cosmopolita alicerçada nos ideais de liberdade e democracia.3
4) A questão de Deus.- Em face dos atos terroristas de 11 de Setembro, perpetrados
à sombra da idéia de "guerra santa", os signatários da Carta da América consideravam que
se tratou de uma utilização ilegítima dos princípios religiosos. A respeito, frisavam:
"Estamos unanimemente convencidos de que a invocação do nome de Deus para matar ou
maltratar seres humanos é imoral e contrária à fé em Deus". As idéias de "guerra santa" ou
"cruzada" constituem não somente uma violação dos princípios fundamentais da justiça,
3 Cf. KANT, Immanuel, La paz perpetua. (Apresentação de A. Truyol y Serra; tradução ao espanhol e introdução de J. Abellán). 2ª. Edição em espanhol. Madrid: Tecnos, 1989.
como também a negação da própria fé religiosa, pois "transforma Deus em ídolo a serviço
dos projetos humanos".
Os signatários da Carta consideravam que a dimensão religiosa é uma variável
fundamental da vida humana, mas que constitui um espaço não manipulável politicamente,
em virtude do caráter transcendente da própria religião. A propósito, era lembrada a
afirmação do presidente Abraham Lincoln: "Os caminhos do Senhor são impenetráveis".
As guerras de religião, que já dilaceraram as sociedades européias ao longo de séculos,
tendo dado ensejo ao enorme fluxo migratório que formou a população americana, são uma
nódoa que afetou a autenticidade da vivência religiosa. Voltar a pregar, nos dias que
correm, a "jihad" ou a "guerra santa", é querer fazer andar para trás o relógio da história.
A pessoa humana - consideravam os signatários da Carta - inclina-se, pela sua
natureza, ao desenvolvimento do saber. "Avaliar, escolher, determinar as razões pelas quais
queremos o que queremos, isso é próprio do homem. Para que nascemos? O que nos
acontecerá após a morte? Eis um conjunto de questões colocadas por essa necessidade
intrínseca de saber, que nos leva a nos perguntarmos pelos fins últimos, notadamente pela
existência de Deus".
Embora alguns dos signatários da Carta não se confessassem religiosos e outros
achassem que o homem é, por essência, religioso, todos, no entanto, reconheciam "que a fé
e as instituições religiosas são, aqui e acolá, no mundo, importantes bases da sociedade
civil que têm produzido amiúde resultados benéficos e apaziguadores, mas que por vezes
têm sido também fatores de divisão e de violência". Em face desse fato, os signatários da
Carta se perguntavam acerca das relações entre religião e política. Os signatários
consideravam que há três posições que não devem ser aceitas: em primeiro lugar, a dos que
apregoam a repressão legal à religião; em segundo lugar, a dos que consideram que deve
ser adotada uma ideologia laica, que acobertaria um ceticismo explícito ou uma real
hostilidade contra a religião, pressupondo que a explicitação pública desta acarretaria
problemas sociais; em terceiro lugar, a posição dos que apregoam a defesa pura e simples
da teocracia, ou seja, a instauração de uma única religião considerada como a verdadeira e
que deveria ser imposta a todo o corpo social pelo Estado, que passaria a financiá-la.
Em relação à primeira atitude, os signatários da Carta consideravam que "a
repressão legal implica num atentado às liberdades públicas", sendo, portanto,
"incompatível com uma sociedade democrática". Em relação à segunda atitude, os
signatários destacavam que "embora a ideologia laica pareça cada vez mais, na nossa
sociedade, ganhar a adesão das novas gerações, a desaprovamos porque ela vai contra a
legitimidade de uma parte importante da sociedade civil e tende a negar a existência do que
se pode considerar, com alguma razão, como uma dimensão importante da pessoa humana".
Quanto à atitude que defende a teocracia, os signatários achavam que deveria ser rejeitada
por razões sociais e teológicas. A respeito, frisavam: "Socialmente, a religião de Estado
opõe-se à liberdade de culto, um direito fundamental do homem. De outro lado, um
controle estatal da religião tem o risco de exacerbar conflitos religiosos e, mais grave ainda,
ameaça a vitalidade e a autenticidade das instituições religiosas. Teologicamente, mesmo
para os fiéis firmemente convictos da verdade da sua fé, a coerção em matéria religiosa é,
definitivamente, uma violação da religião mesma, pois priva aos outros do direito de
responder livre e dignamente ao convite do Criador".
Os signatários da Carta destacavam os princípios fundamentais que desde o início
da República Americana têm presidido às relações entre fé e política: o fundamental
pressuposto é a separação entre ambas as instâncias, bem como a defesa incondicional da
liberdade dos indivíduos em face do Estado e da tradição. Eis o seu arrazoado: "A
sociedade americana, no que ela tem de melhor, empenha-se em proceder de forma que fé e
liberdade caminhem paralelamente, cada uma enaltecendo a outra. Nós temos um regime
laico - os nossos dirigentes políticos não são dirigentes religiosos - mas a nossa sociedade é
de longe a mais religiosa do mundo ocidental. A nossa nação respeita profundamente a
liberdade e a diversidade religiosa, compreendidos aí os direitos dos não crentes, mas
proclama nos seus tribunais e inscreve sobre cada uma de suas moedas a divisa: In God We
Trust. Politicamente, a nossa separação de Igreja e Estado visa a manter a política na sua
própria esfera, limitando o poder de intervenção do Estado nos assuntos religiosos e
obrigando assim o governo a alicerçar a sua legitimidade e os seus atos sobre bases morais
que ele próprio não inventou. Espiritualmente, a nossa separação entre Igreja e Estado
permite à religião ser religião, separando-a do poder coercitivo do governo. Em resumo,
esforçamo-nos por separar Igreja de Estado para garantir a proteção e a vitalidade de uma e
de outro".
5) A questão da guerra justa. Princípios fundamentais. A guerra, como
manifestação da violência humana, é um evento que causa perplexidade. Esta se enraíza na
natureza humana, de forma que é impossível contemplar o mundo em preto e branco, como
se uma nação encarnasse o bem e outra o mal, ou como se houvesse uma religião positiva e
outra absolutamente negativa. Toda guerra é algo terrível e representa uma falência das
negociações diplomáticas. Mas essa perplexidade não significa que seja impossível realizar
uma aproximação racional do fenômeno bélico. A respeito, os signatários da Carta da
América frisavam: "No entanto, a razão e uma reflexão moral atenta ensinam-nos que, em
face do mal, a melhor resposta consiste em acabar com ele. Segue-se daí que a guerra é não
somente permitida do ângulo moral, mas também é moralmente necessária, para responder
a ignominiosas demonstrações de violência, de ódio e de injustiça. É o caso presente".
Os signatários distinguiam quatro posicionamentos básicos em face da guerra,
quando ela é analisada dos pontos de vista intelectual e moral. O primeiro consiste na
denominada posição realista dos que acham que "a guerra é fundamentalmente uma
questão de poder, de interesse, de necessidade, de sobrevivência, que descarta, portanto, a
análise moral abstrata". O segundo posicionamento é o dos que sustentam a idéia de guerra
santa, alicerçada na "crença de que Deus autoriza a repressão e o assassinato dos infiéis",
ou dos que acreditam que o domínio de "uma ideologia laica particular autoriza a repressão
e a eliminação dos incrédulos". O terceiro posicionamento consiste na atitude pacifista,
para a qual vale "a crença de que toda guerra é intrinsecamente imoral". O quarto
posicionamento é o dos que defendem o conceito de guerra justa e consiste na crença "de
que a razão moral universal, denominada também de lei moral natural, pode e deve se
aplicar à guerra". O grupo dos assinantes da Carta da América, no seu conjunto, inclinava-
se a se posicionar a favor da quarta atitude, rejeitando de forma explícita as duas primeiras
posições. Alguns dos signatários eram, no entanto, simpáticos ao terceiro posicionamento,
que defende a atitude pacifista.
Seis princípios gerais eram lembrados pelos signatários, em relação à questão da
guerra justa: A - Não há neutralidade moral em face da guerra. A respeito, afirmavam: "O
fato de não levar em consideração a moral em face da guerra, já é, em si, uma posição
moral; aquele que rejeita a razão, aceita a não regulamentação das relações internacionais e
capitula em face do cinismo. Fazer entrar a guerra no quadro de um raciocínio moral
objetivo é tentar fundar a sociedade civil e a comunidade internacional sobre a justiça".
B - Não se podem aceitar as guerras de agressão ou de conquista. "Os princípios da
guerra justa ensinam-nos que as guerras de agressão e de conquista não são aceitáveis
jamais. Não existe o direito de fazer a guerra para engrandecimento do próprio país, para
vingar erros passados, para conquistar territórios ou por qualquer outro motivo não
justificável". Os intelectuais americanos, certamente, assinariam embaixo das palavras de
Benjamin Constant de Rebecque quando, eliminado do Tribunado pelo despotismo
bonapartista (em 1802), elevava a sua voz contra a ilegitimidade das guerras de conquista
napoleônicas, destacando a fragilidade das instituições surgidas ao ensejo desse tipo de
aventura, absolutamente contrária à opinião pública (que era constituída pelas opiniões
particulares dos cidadãos sedentos de liberdade). 4
C - O princípio básico que justifica a guerra é o da defesa do inocente. A respeito,
os signatários da Carta frisavam: "A primeira justificativa moral da guerra é a proteção do
inocente contra o mal. Santo Agostinho, cuja obra A cidade de Deus é uma contribuição
essencial sobre a guerra justa, sustenta (se fazendo eco de Sócrates) que, para o cristão, é
melhor suportar o mal do que cometê-lo. Mas a renúncia à autodefesa, que é uma decisão
pessoal, pode ser moralmente imposta a outra pessoa? Para Santo Agostinho e para a maior
parte dos outros defensores da guerra justa, a resposta é não. Se possuirmos a prova
indubitável de que um recurso à força pode impedir o massacre de inocentes incapazes de
se defenderem por si próprios, então o princípio moral do amor ao próximo manda-nos
recorrer à força".5
D - A guerra deve ser deflagrada em última instância, quando os meios pacíficos
para evitá-la foram esgotados. A respeito, destacavam os signatários da Carta: "Não se
4 CONSTANT DE REBECQUE, Henri-Benjamin. De l´Esprit de Conquête et de l´Usurpation, dans les rapports avec la Civilisation Européenne. (Introdução, notas, bibliografia e cronologia de Éphraïm Harpaz). Paris: Flammarion – Centre National des Lettres, 1986, p. 71-72. 5 Cf. AGOSTINHO de Hipona, Santo. City of God. (Tradução inglesa de Henry Bettenson). Londres: Penguin Classics, 1984.
pode legitimamente fazer a guerra quando o perigo é mínimo, duvidoso, de conseqüências
incertas ou pode ser superado pela via da negociação, ou por meio do apelo à razão, pela
mediação de uma terceira parte ou por outros meios não violentos".
E - A guerra somente é justa se for deflagrada contra combatentes, jamais contra
populações civis indefesas. A propósito deste ponto, os signatários da Carta frisavam: "Os
que defendem a guerra justa ao longo da história, em todos os lugares do mundo (quer
sejam muçulmanos, judeus, cristãos, fiéis de outras religiões ou laicos), têm apregoado
sempre a imunidade dos não combatentes. Em outros termos, matar civis por espírito de
vingança, ou mesmo para dissuadir eventuais agressores partidários da sua causa, é uma
falta moral (...) É moralmente inaceitável considerar a morte de não combatentes como
objetivo operacional de uma ação militar".
F - Necessidade de reconhecer sempre o caráter inviolável da vida humana. A
respeito, os signatários consideravam que "cada vez que seres humanos tencionam ou
deflagram uma guerra, é ao mesmo tempo possível e necessário que afirmem o caráter
sagrado da vida humana, bem como o princípio da igual dignidade de todos os homens".
Deve ser lembrada sempre "a verdade moral segundo a qual os outros, ou seja, aqueles que
são estranhos para nós, que diferem de nós pela raça ou pela língua, cuja religião pode nos
parecer errada, têm, tanto quanto nós, o direito de viver e são portadores da mesma
dignidade humana e dos mesmos direitos em geral".
6) Julgamento acerca dos atos terroristas e conclusão.- Os signatários da Carta
passavam, na parte final do documento, a julgar acerca dos fatos acontecidos. Lembravam
que, em 11 de setembro de 2001, um grupo de indivíduos atacou deliberadamente os
Estados Unidos, utilizando aeronaves comerciais como armas para assassinar pelo menos 3
mil cidadãos indefensos em New York, Pensilvânia e Washington. "Os que morreram nessa
manhã - frisavam os signatários - foram covardemente eliminados, a esmo e com
premeditação, ou seja, em termos jurídicos, assassinados. Entre esses mortos havia gentes
de todas as raças, de diversas etnias, de quase todas as religiões. Havia, outrossim, tanto
garis quanto diretores de empresas".
Ora, os assassinos não tinham nenhum tipo de poder que legitimasse a sua ação.
Mas também não agiram sozinhos. Eles pertenciam a uma organização islamita
internacional, enraizada em alguns países e que respondia ao nome de Al-Qaeda. Eles
agiram com a conivência de alguns governos e proclamaram abertamente a sua disposição
de utilizar quaisquer meios, inclusive assassinatos massivos, para atingir as suas
finalidades.
Os signatários deixavam claro que utilizavam os termos islã e islâmico para se
referirem a uma das maiores religiões do mundo, com mais de um bilhão de fiéis, entre os
quais se contam milhares de americanos. Trata-se de uma respeitável confissão religiosa,
pacífica y cujos seguidores são pessoas honestas. Difere essencialmente dela o grupo de
terroristas que utiliza uma falsa imagem desse credo para perpetrar os seus crimes. Os
signatários reservavam os termos islamismo e islamita radical para se referirem aos
membros de Al-Qaeda e seus simpatizantes. Os signatários ressaltavam, de outro lado, o
caráter bárbaro desses terroristas, que pretendiam negar os fundamentos da civilização
ocidental e do mundo moderno. As suas palavras eram duras e vale a pena repeti-las: "Esse
movimento violento e radical opõe-se não somente a uma certa política americana e
ocidental - vários signatários desta Carta opõem-se também a ela em parte - mas [esse
movimento] opõe-se ainda ao princípio fundador do mundo moderno, a tolerância religiosa,
bem como aos direitos fundamentais do homem, especialmente à liberdade de religião e de
culto, inscritos na Declaração universal dos direitos do homem da ONU, e que devem ser
a base de toda civilização orientada ao aperfeiçoamento do homem, à justiça e à paz".6
A filosofia que anima a esses terroristas, identificada com o menosprezo à vida
humana, "ao conceber o mundo como uma luta a morte entre crentes e infiéis (sejam estes
muçulmanos não radicais, judeus, cristãos, hindus e outros), nega claramente a igual
dignidade de todas as pessoas e, fazendo isso, trai a religião e rejeita o fundamento mesmo
da vida civilizada e a possibilidade de paz entre as nações". A ameaça dessa falsa filosofia é
tanto mais grave quanto que os terroristas inspirados por ela mostram-se dispostos a utilizar
todos os recursos da tecnologia de destruição massiva, para atingir os seus objetivos. Dessa
6 Cf. ONU – Organização das Nações Unidas. “Declaração Universal dos Direitos do Homem”. New York: Nações Unidas, 1948. In: http://boes.org/un/brahr-b.html [consultado em 20/05/2008].
forma, os terroristas de Al-Qaeda representam, hoje, uma ameaça não apenas para
americanos e europeus, como também para todos os seres humanos que não compartilhem
os seus diabólicos pontos de vista.
Assim concluíam os signatários da Carta da América: "Assassinos organizados,
infiltrados no mundo inteiro ameaçam-nos a todos hoje em dia. Em nome da moral
universal e plenamente conscientes das restrições e exigências da guerra justa, apoiamos a
decisão do nosso governo e da nossa sociedade de utilizar contra eles a força armada". Mas
os intelectuais americanos eram conscientes de que a sociedade civil devia permanecer
vigilante, a fim de que os limites da guerra justa não fossem ultrapassados. Eles
consideravam que deviam se engajar nesse esforço de vigilância de forma clara e diuturna.
"Comprometemo-nos a fazer todo o possível para evitar as desastrosas tentações
(arrogância e chauvinismo principalmente), às que as nações em guerra parecem se render
tão freqüentemente". E vislumbravam uma luz de esperança no final de todo esse
conturbado episódio que deu início paradoxal ao novo milênio: "Esperamos que esta
guerra, pondo fim a um flagelo mundial, poderá fazer aumentar as possibilidades de
alicerçar a comunidade mundial na justiça".
Os signatários terminavam fazendo um apelo aos "irmãos e irmãs das sociedades
muçulmanas", no sentido de que deponham os ânimos agressivos e preconceituosos em
face dos americanos. Eis as palavras finais dos signatários da Carta: "Nós não devemos ser
inimigos. Temos muitos pontos em comum. Temos tantas coisas a fazer conjuntamente. A
vossa dignidade humana, não menos do que a nossa, o vosso direito a uma bela vida, não
menos do que o nosso, eis aquilo pelo qual acreditamos combater. Sabemos que alguns
dentre vós desconfiais enormemente de nós e sabemos que somos, nós Americanos, em
parte responsáveis por essa desconfiança. Mas não devemos ser inimigos. Esperamos poder
agir com vós e com todos os homens de boa vontade na construção de uma paz justa e
duradoura".
BIBLIOGRAFIA CITADA
AGOSTINHO de Hipona, Santo. City of God. (Tradução inglesa de Henry Bettenson). Londres: Penguin Classics, 1984.
CONSTANT DE REBECQUE, Henri-Benjamin. De l´Esprit de Conquête et de l´Usurpation, dans les rapports avec la Civilisation Européenne. (Introdução, notas, bibliografia e cronologia de Éphraïm Harpaz). Paris: Flammarion – Centre National des Lettres, 1986. KANT, Immanuel, La paz perpetua. (Apresentação de A. Truyol y Serra; tradução ao espanhol e introdução de J. Abellán). 2ª. Edição em espanhol. Madrid: Tecnos, 1989. LOCKE, John. Two Treatises of Government. (Notas de Peter Laslett). New York: Mentor Book, 1965. ONU – Organização das Nações Unidas. “Declaração Universal dos Direitos do Homem”. New York: Nações Unidas, 1948. In: http://boes.org/un/brahr-b.html [consultado em 20/05/2008]. VÁRIOS AUTORES, “La Lettre de l´Amérique”, Le Monde, Paris, edição de 23 de fevereiro de 2002.