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A LUZ DA FÉ

A fé de Israel

12. A história do povo de Israel, no livro do Êxodo, continua na esteira da fé de Abraão. De novo, a fé nasce de um dom originador: Israel abre-se à acção de Deus, que quer libertá-lo da sua miséria. A fé é chamada a um longo caminho, para poder adorar o Senhor no Sinai e herdar uma terra prometida.

O amor divino possui ostraços de um pai queconduz seu filho pelocaminho (cf. Dt 1, 31).A confissão de fé de Israeldesenrola-se como umanarração dos benefícios deDeus, da sua acção paralibertar e conduzir o povo(cf. Dt 26, 5-11); narraçãoesta, que o povo transmitede geração em geração. Aluz de Deus brilha paraIsrael, através dacomemoração dos factosrealizados pelo Senhor,recordados e confessadosno culto, transmitidos pelospais aos filhos. Deste modoaprendemos que a luztrazida pela fé está ligadacom a narração concreta davida, com a grata lembrança

dos benefícios de Deus ecom o progressivocumprimento das suaspromessas.A arquitectura góticaexprimiu-o muito bem: nasgrandes catedrais, a luzchega do céu através dosvitrais onde estárepresentada a históriasagrada. A luz de Deusvem-nos através da narraçãoda sua revelação e, assim, écapaz de iluminar o nossocaminho no tempo,recordando os benefíciosdivinos e mostrando comose cumprem as suaspromessas.

38. A transmissão da fé, quebrilha para as pessoas detodos os lugares, passatambém através do eixo dotempo, de geração emgeração. Dado que a fé nascede um encontro queacontece na história eilumina o nosso caminho notempo, a mesma deve sertransmitida ao longo dosséculos. É através de umacadeia ininterrupta detestemunhos que nos chegao rosto de Jesus. Como épossível isto? Como se podeestar seguro de beber no «verdadeiro Jesus » atravésdos séculos? Se o homemfosse um indivíduo isolado,se quiséssemos partir

apenas do « eu » individual,que pretende encontrar emsi mesmo a firmeza do seuconhecimento, tal certezaseria impossível;não posso, por mim mesmo,ver aquilo que aconteceunuma época tão distante demim. Mas, esta não é a únicamaneira de o homemconhecer; a pessoa vivesempre em relação: provémde outros, pertence a outros,a sua vida torna-se maior noencontro com os outros; opróprio conhecimento econsciência de nós mesmossão de tipo relacional eestão ligados a outros quenos precederam, a começarpelos nossos pais que nosderam a vida e o nome.

A própria linguagem, aspalavras com queinterpretamos a nossa vidae a realidade inteirachegam-nos através dosoutros, conservadas namemória viva de outros; oconhecimento de nósmesmos só é possívelquando participamos dumamemória mais ampla.O mesmo acontece com a fé,que leva à plenitude o modohumano de entender: opassado da fé, aquele actode amor de Jesus que gerouno mundo uma vida nova,chega até nós na memóriade outros, das testemunhas,guardado vivo naquelesujeito único de memóriaque é a Igreja;

esta é uma Mãe que nosensina a falar a linguagemda fé. São João insistiu sobreeste aspecto no seuEvangelho, unindoconjuntamente fé e memóriae associando as duas àacção do Espírito Santo que,como diz Jesus, «há-derecordar-vos tudo» (Jo 14,26). O Amor, que é oEspírito e que habita naIgreja, mantém unidos entresi todos os tempos e faz-noscontemporâneos de Jesus,tornando-Se assim o guia donosso caminho na fé.

43. A estrutura do Baptismo, a sua configuração como renascimento no qual recebemos um nome novo e uma vida nova, ajuda-nos a compreender o sentido e a importância do Baptismo das crianças. Uma criança não é capaz de um acto livre que acolha a fé: ainda não a pode confessar sozinha e, por isso mesmo, é confessada pelos seus pais e pelos padrinhos em nome dela. A fé é vivida no âmbito da comunidade da Igreja, insere-se num « nós » comum. Assim, a criança pode ser sustentada por outros, pelos seus pais e padrinhos, e pode ser acolhida na fé deles que é a fé da Igreja, simbolizada pela luz que o pai toma do círio na liturgia baptismal. Esta estrutura do Baptismo põe em evidência a importância da sinergia entre a Igreja e a família na transmissão da fé. Os pais são chamados — como diz Santo Agostinho — não só a gerar os filhos para a vida, mas a levá-los a Deus, para que sejam, através do Baptismo, regenerados como filhos de Deus, recebam o dom da fé. Assim, juntamente com a vida, é-lhes dada a orientação fundamental da existência e a segurança de um bom futuro; orientação esta, que será ulteriormente corroborada no sacramento da Confirmação com o selo indelével do Espírito Santo.

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A fé e a família

52. No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aosHebreus alude à bênção que se transmite dos pais aos filhos(cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade dos homensiluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, naunião estável do homem e da mulher no matrimónio. Talunião nasce do seu amor, sinal e presença do amor de Deus,nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é adiferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podemunir numa só carne (cf. Gn 2, 24) e são capazes de gerar umanova vida, manifestação da bondade do Criador, da suasabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre esteamor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuocom um gesto que compromete a vida inteira e que lembramuitos traços da fé: prometer um amor que dure parasempre é possível quando se descobre um desígnio maiorque os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar ofuturo inteiro à pessoa amada. Depois, a fé pode ajudar aindividuar em toda a sua profundidade e riqueza a geraçãodos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador quenos dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foiassim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe, apoiando-se nafidelidade de Deus à sua promessa (cf. Heb 11, 11).

53. Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, acomeçar pela infância: as crianças aprendem a confiar noamor de seus pais. Por isso, é importante que os paiscultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhemo amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, queatravessam uma idade da vida tão complexa, rica eimportante para a fé, devem sentir a proximidade e a atençãoda família e da comunidade eclesial no seu caminho decrescimento da fé. Todos vimos como, nas JornadasMundiais da Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, ocompromisso de viver uma fé cada vez mais sólida egenerosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; oencontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seuamor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperançafirme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente semcoragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grandechamada — a vocação ao amor — e assegura que este amoré fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seufundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é maisforte do que toda a nossa fragilidade.

Uma luz para a vida emsociedade

54. Assimilada eaprofundada em família, afé torna-se luz parailuminar todas as relaçõessociais. Como experiênciada paternidade e damisericórdia de Deus,dilata-se depois emcaminho fraterno. Na IdadeModerna, procurou-seconstruir a fraternidadeuniversal entre os homens,baseando-se na suaigualdade; mas, pouco apouco, fomoscompreendendo que estafraternidade, privada doreferimento a um Paicomum como seufundamento último, nãoconsegue subsistir; porisso, é necessário voltar àverdadeira raiz dafraternidade. Desde o seuinício, a história de fé foiuma história defraternidade, embora nãodesprovida de conflitos.Deus chama Abraão parasair da sua terra,prometendo fazer dele umaúnica e grande nação, umgrande povo, sobre o qualrepousa a Bênção divina(cf. Gn12, 1-3). À medidaque a história da salvaçãoavança, o homem descobreque Deus quer fazer atodos participar comoirmãos da única bênção,que encontra a suaplenitude em Jesus, paraque todos se tornem umsó. O amor inexaurível doPai é-nos comunicado emJesus, também através dapresença do irmão. A féensina-nos a ver que, emcada homem, há umabênção para mim, que a luzdo rosto de Deus meilumina através do rostodo irmão.

Quantos benefícios trouxeo olhar da fé cristã àcidade dos homens para asua vida em comum!Graças à fé,compreendemos adignidade única de cadapessoa, que não era tãoevidente no mundoantigo. No século II, opagão Celso censurava oscristãos por algo que lheparecia uma ilusão e umengano: pensar que Deustivesse criado o mundopara o homem,colocando-o no vértice douniverso inteiro. « Porquêpretender que [a verdura]cresça para os homens,em vez de crescer para osmais selvagens dosanimais sem razão?» «Seolhássemos a terra doalto do céu, que diferençase nos ofereceria entre asnossas actividades e asdas formigas e dasabelhas? » No centro da fébíblica, há o amor deDeus, o seu cuidadoconcreto por cada pessoa,o seu desejo de salvaçãoque abraça toda ahumanidade e a criaçãointeira e que atinge oclímax na encarnação,morte e ressurreição deJesus Cristo. Quando seobscurece esta realidade,falta o critério paraindividuar o que tornapreciosa e única a vida dohomem; e este perde oseu lugar no universo,extravia-se na natureza,renunciando à própriaresponsabilidade moral,ou então pretende serárbitro absoluto,arrogando-se um poder demanipulação sem limites.

da Encíclica LUZ DA FÉ,do Papa Francisco.


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